Correios – 350 anos aproximando pessoas
Depoimento de Helomar de Assis Gama
Entrevistado por Karen Worcman
Laranjal do Jari, 29 de julho de 2013
HVC068_Helomar de Assis Gama
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Claudia Lucena
MW Transcrições
História de vida
P/1 – Helomar, eu vou começar, vou te pedir de novo seu nome e o lugar que você nasceu.
R – Meu nome é Helomar de Assis Gama, eu nasci em Monte Dourado, município de Almeirim.
P/1 – Você nasceu quando?
R – Eu nasci em 22 de junho de 1965.
P/1 – E o nome do seu pai?
R – O nome do meu pai é Miguel Augusto da Gama.
P/1 – E da sua mãe?
R –Terezinha de Assis Gama.
P/1 – Você sabe a origem do seu nome?
R – Eu não sei, eu descobri que o meu pai, ele me deu esse nome porque tinha um cantor chamado Elomar, da MPB, e aí ele botou o meu nome de Helomar, só que quando foi me registrar a gente colocou com ‘h’, que o Elomar na MPB, o cantor, é com ‘e’, e eu acho que deve ter sido isso.
P/1 – Me conta um pouco sobre o seu pai e a sua mãe, de onde eles vieram, o que eles faziam.
R – Nossa origem é nordestina, do Piauí.
P/1 – Piauí?
R – É, mas o meu pai vivia em Porto de Moz, a minha avó, mãe da minha mãe, é boliviana, de La Paz, e é uma miscigenação muito grande, que eu ainda não sei te falar direito.
P/1 – Quer dizer que a sua mãe nasceu na Bolívia?
R – Não, minha avó, e a minha mãe nasceu em Almeirim.
P/1 – E o seu pai nasceu no Piauí?
R – O meu pai, ele é de Porto de Moz.
P/1 – Ah, ele é de Porto de Moz.
R – Meu avô que nasceu lá, aí vieram, aí o meu pai já nasceu em Porto de Moz.
P/1 – O que é Porto de Moz? Me explica.
R – Porto de Moz é uma cidade do Pará, próximo de Altamira.
P/1 – Você sabe porque que o seu avô foi parar nessa cidade, o que eles faziam lá?
R – A nossa família, ela veio aqui em influência da questão do extrativismo da borracha.
P/1 – Eles vieram atraídos por isso?
R – No tempo da guerra as pessoas eram convocadas, aqueles que tinham uma habilidade maior iam para o front, para guerra, e, como eles queriam aumentar a economia do país, aquelas pessoas que eram trabalhadores rurais vinham para extrair a borracha, o látex da seringueira.
P/1 – Isso é que é o soldado da borracha?
R – É, o soldado da borracha.
P/1 – O que quer dizer alguém virar soldado da borracha, você sabe?
R – Eu entendo que é porque enquanto aquelas pessoas lutavam na guerra esse soldado da borracha, eles trabalhavam para melhorar a economia do país, aí eram duas frentes, o lado econômico e o lado da guerra.
Então eles também foram denominados pelo governo militar de soldados da borracha.
P/1 – O governo militar, Getúlio?
R – É, não sei bem qual era o governo, deve ter sido em 50, esse tempo aí.
Tem uma curiosidade muito grande que eu gostaria de ressaltar, que o meu pai é o caçula dos irmãos, e o meu pai, ele é diferente, às ele me acha diferente, mas ele é diferente de todos os irmãos.
P/1 – Por quê?
R – Porque o meu pai, ele foi ajudante de padre, os padres vinham do estrangeiro, da Alemanha, de Portugal, da França, e esses homens eram muito cultos, tanto é que a maior parte das igrejas católicas foram construídas por eles, porque lá eles se formavam, eram arquitetos, eram médicos, e o meu pai acompanhava eles, meu pai era aquele coroinha, que chamava.
P/1 – Ah, ele era coroinha?
R – Ajudava a rezar missa e preparava as coisas do padre, o vinho, essas coisas, e o meu pai aprendeu a ler com eles e a minha mãe também, porque a tem mais ou menos 40 anos de catequese e ela aprendeu a ler com eles e o papai, ele tem uma visão muito moderna para os outros irmãos.
P/1 – Por que, o que quer dizer?
R – Porque meu pai é muito admirador da pessoa culta, pessoa que conhece, que gosta de ouvir as pessoas que tem um estudo elevado, pessoas que são intelectuais, e o meu pai sempre teve o hábito pela leitura.
P/1 – Ele lia?
R – Ele lia, até hoje quando eu vou para cidade, para Macapá, que aqui não tem os jornais, aqui não vende, é difícil banca, eu tenho que trazer um jornal para ele.
P/1 – Ele mora aonde, seu pai hoje?
R – Meu pai mora aqui na frente.
P/1 – Ah, é? Quantos anos ele tem?
R – Meu pai tem 78 anos, então meu pai, ele fazia o seguinte, ele ia para cidade quando eu era criança, eu acho que uma coisa, ele ficou muito feliz, a minha mãe me alfabetizou, me ensinou as quatro operação de contas.
Meu pai vinha para cidade, para os outros filhos ele trazia carro, ele trazia bola, para mim ele trazia livros: “Meu filho, eu encontrei esse livro ali e eu trouxe para você ler e depois você lê, que eu também vou ler e depois você me diz do que se trata”, isso foi me dando uma capacidade de interpretar as coisas, sem professor, sem nada.
P/1 – Isso desde pequenininho?
R – Desde pequeno.
P/1 – Você lembra quais foram os primeiros livros que você leu?
R – O meu pai era muito eclético e trazia de tudo, eu li de fotonovela, eu lia a Revista Cruzeiro, eu lia a Revista Capricho, Carícia, aquela Sabrina, eu lia os gibis de Walt Disney, eu lia aqueles bolsilivros de faroeste, o meu pai, até um certo tempo ele tinha uma coleção daqueles Tex, Zagor, aquelas coisas, a gente comprava e lia e me dava: “Vá, meu filho, vá trocar”, comprava literatura de cordel.
P/1 – Ele comprava muita literatura de cordel?
R – Muita literatura de cordel, inclusive foi a literatura de cordel que fez eu aprender a trabalhar versos.
P/1 – Ah, foi pela literatura de cordel?
R – Pela literatura de cordel.
P/1 – Quais eram os autores de literatura de cordel que você lia?
R – Eu não lembro, tem o Manuel não sei de que, eu não lembro totalmente do nome dessas pessoas, mas eram romances fabulosos, isso aí, lá na frente eu vou contar uma história para você que era a diversão daqui quando não tinha televisão.
Então, com isso, com essa variedade de leituras, isso me ajudou a ler bem, a escrever, eu acho a coisa, eu acho que depois de me criar, de me sustentar, de me dar as lições de caráter, o maior legado que o meu pai e a minha mãe deu para mim foi me ensinar a ler e escrever, estimular isso através do exemplo dele.
A minha mãe fica aqui atrás, mas de uma hora dessas ela almoça, aí ela descansa, quando dá três horas, quatro horas ela pega as literaturas da igreja e fica lendo bem aqui nessa porta, você pode observar, toda a tarde.
P/1 – Ela passa a tarde lendo?
R – É, lê todo dia, meu pai, de vez em quando ele vem pegar uma Veja aqui, alguma coisa para ler.
P/1 – Isso era uma raridade na sua infância?
R – Ah, era difícil, então por isso que eu acredito, assim, na questão do apadrinhamento, que isso o meu pai aprendeu com os padres, que essa região aqui, ela foi alfabetizada pelos padres, aonde o padre chegava ele rezava a missa, fazia batizados, ele procurava se tinha alguma pessoa que sabia ler, quando não sabia eles ensinavam, para aquela pessoa ficar ali para ensinar a comunidade inteira.
Depois que do final dos anos 70 foi que o governo foi se interessando por isso aqui, isso aqui era um emaranhado de pessoas, essa cidade, ela não foi planejada, ela foi forjada devido à necessidade, era proibido fazer casa aqui.
Quando a Jari comprou dos portugueses ela não queria que ninguém se estabelecesse aqui, a não sendo o meu tio, que ele tinha direito garantido, porque quando a Jari chegou ele já tinha feito negócio com os portugueses lá, o sítio dele era ali onde é Monte Dourado, ali no Vanguardas Hotel.
P/1 – Esse era o sítio do seu tio, ele já estava aqui?
R – É, era ele e o cunhado dele.
P/1 – Eles estavam aqui por quê?
R – Porque a gente trabalhava aqui nessa região, quando dava o inverno a gente subia para o Pará, aqui para as montanhas, até próximo São Miguel, cada um tinha a sua colocação.
P/1 – E fazia o que no inverno?
R – Trabalhava o extrato da castanha do Pará.
P/1 – Todo mundo?
R – É, de janeiro até junho, quando dava junho escoava a produção através de costa de burro, que não tinha carro, não tinha nada, aquelas picadas no meio da selva, e aí quando dava de julho a dezembro eles trabalhavam com a borracha, seja maçaranduba, balata ou a seringueira.
P/1 – A seringa também, tinha seringa aqui?
R – Tem seringa.
P/1 – Tem seringa?
R – É, a floresta na beira do rio é seringa, apesar de ninguém tirar mais, mas tem muito.
Então era assim, a balata se tirava para o Alto Jari, que é depois da Cachoeira de Santo Antônio, o alto do rio, aí fazia aquele monte de pessoas, eles subiam em canoas motorizadas para cortar balata lá em cima.
Que a balata, ela é cortada escalada, é aquelas árvores, tipo maçarandubeira de 30 metros de altura, a pessoa tem um equipamento que ele coloca no pé, com uns pinos, que vai segurando, ele vai subindo e vai cortando com facão, aí faz a rede, que aqueles gomos vão escorrendo só numa direção, aí eles botam o coisa lá em baixo para aparar.
Aí depois que ele pega o leite, assim como a maçaranduba, a seringa, eles defumar aquilo ali para fazer os blocos de borracha, faz uma fogueira, aí faz uma bola aqui, vão jogando leite e aquele leite vai endurecendo através da temperatura do fogo até formar os blocos de borracha.
Quando não o látex da seringueira eles colocavam nesses tambores de 200 litros, de ferro, e o barco vinha, pegava e levava para Belém para exportar.
P/1 – Como é que eles mandavam os blocos do Alto do Jari para.
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como é que chegava aqui?
R – Às vezes eles traziam de canoa, quando não eles soltavam lá de cima, ele vinha descendo até chegar no remanso, aí eles pegavam, porque a borracha boia, flutua.
P/1 – Eu tenho uma curiosidade, eles faziam isso, como que você sabia de quem que era o bloco, ou não importa?
R – Porque lá era uma produção geral, quando a pessoa saía de lá, você apresentava o seu, ele apresentava o dele e assim, assim, aí formava tudo, ele comercializava, dizia: “Olha, seu saldo deu tanto, seu saldo deu tanto”, aquilo já era dele, quando vinha de lá já era, ia uma pessoa responsável para fazer toda essa contabilidade: “Olha, Seu Miguel Gama tem tantos quilos, fulano tem tantas toneladas, fulano tem”, aí misturava tudo e jogava.
P/1 – Mas era de quem, o lugar de tirar a balata era de alguém?
R – Não, não era de ninguém, só tinha, era na floresta mesmo.
P/1 – Era na floresta?
R – É.
P/1 – Alguém era dono dessa árvore?
R – Não.
P/1 – Não?
R – Não tinha dono, só fazia tirar porque a área é muito grande e para lá era, só iam as pessoas mesmo mais corajosas, porque é uma odisseia você fazer um trabalho desse aí, sabe.
P/1 – O pessoal dormia aonde?
R – Em barracos improvisados, porque ali eles já tinham uma área onde ficar, quando eles saíam eles já tinham explorado, quando terminava aquilo que a gente chama de fabrico, que é o período que se tira, ele já deixava: “Olha, ano que vem nós vamos tirar para ali, para aquele lado”, aí eles já deixavam aquilo tudo esquematizado e fazia o barraco às vezes no mesmo lugar, às vezes limpava em outro, fazia, cobria com lona e armava as redes.
P/1 – Dormia dentro do barraco com rede.
R – Dentro do barraco.
P/1 – Agora, Helomar, me explica uma coisa, subia todo mundo, quem era o líder, ou seja, quem é que pegava toda essa borracha e vendia, vendia para quem?
R – Era para as pessoas que compravam, eram os portugueses na época.
P/1 – Os portugueses na época compravam, mas existia uma pessoa que.
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R – Existia, meu pai era um dos líderes.
P/1 – Ele era um dos líderes?
R – Era, porque ele entendia contabilidade, ele escrevia, sabia ler.
P/1 – Então ele anotava.
R – Ele tinha a turma dele, 40 homens, 30 homens, trabalhava por ele, aí chegava lá o patrão dizia assim: “Quantos homens você vai levar, Miguel?”, dizia: “Quarenta homens”, “Quantos meses você diz que você?”, “Ó, 90 dias, 120 dias”, “O que você precisa de rancho, de material?”, “Eu preciso de tantos machados, de tantos trançados, de tantas botas”, material que a gente chama hoje de EPI, “Quantas redes você precisa?”, medicamento, isso e aquilo, aí aviava eles, aviar significa dar toda aquele know how para que ele chegar lá e ter todo o material para ele só vir de lá no 120 dia, quando ele vim já baixar com.
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P/1 – E a comida?
R – Era arma de fogo e eles matavam caça, pegavam peixe.
P/1 – Quer dizer, eles não levavam?
R – Mas levavam também charque, feijão, arroz, mas a grande parte da alimentação deles era tirada da floresta, matavam um veado, uma paca, uma anta e faziam o rancho deles.
P/1 – Só homem ou ia homem e mulher?
R – Só homem, só homem.
P/1 – Mulher não?
R – Não, as mulheres ficavam cuidando dos meninos, às vezes se unia duas famílias, três quando aquela família era pequena, para ficar até o fulano voltar, você vai ficar na casa de fulano até a gente voltar, aí ficava, uma mulher fazendo companhia, às vezes já tinha um filho rapazinho que pescava, por exemplo, quando eu fiquei, quando eu completei dez anos de idade eu já pescava de rede, já pescava de linha e dava conta de trazer o peixe para minha mãe.
P/1 – Quer dizer, você ficava com a sua mãe aqui?
R – É, ficava.
P/1 – Você tem quantos irmãos?
R – Eu tenho mais uma irmã e mais três irmãos, nós somos quatro homens e uma mulher.
P/1 – E vocês todos ficavam aqui?
R – Todos ficavam e meus irmãos eram pequenos, porque eram.
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P/1 – Você é o mais velho?
R – É, eu sou o mais velho, é um distanciamento muito grande entre eu e meus irmãos.
P/1 – Você que cuidava da família?
R – Eu era o companheiro da minha mãe, tanto é que eu sou um cara prendado, às vezes as pessoas se admira, o tempo que eu fui para o Exército sabia fazer comida, tudo dentro de uma casa eu sei fazer porque eu fui uma pessoa que eu tinha que ajudar minha irmã, a minha mãe a cuidar dos meus irmãos.
E ela me ensinou tudo, ela: “Helomar, olha, você bota três xícaras de arroz e você bota o mesmo tanto de água, o tantinho de sal é esse”, era assim: “Ó, o mingau do menino você tem que fazer, depois você tem que coar”, porque às vezes ela estava em outra atividade, ficava cuidando de roça também, fazendo farinha, plantação de mamão, de banana.
Aí ela não ficava somente cuidando das crianças, ela também tinha as atividades dela, às vezes ela ia pescar, aí quando eu não podia ir ela disse: “Olha, você fica cuidando da Clélia”, que é a minha irmã depois de mim: “E você faz isso, isso e isso”, eu cumpria rigorosamente com as ordens dela.
Isso me ajudou muito porque depois que eu cheguei adulto ela disse: “Meu filho, isso aí pode parecer estranho, mas um dia você vai precisar disso” e aonde eu chego eu sou bem quisto porque eu vou, faço comida, tenho amigos até que dizem: “Olha, vem almoçar em casa, você vai fazer a comida”, eu faço tudo, churrasco, feijão, tal, tudo.
P/1 – Você aprendeu a fazer toda essa comida com ela?
R – Tudo, quando eu fui para o Exército eu fui morar numa casa, não tinha parente lá, eu engomava a minha roupa, porque no Exército tem que andar engomado, na época do governo militar, não sei agora, porque agora é camuflado, é outro tipo de farda.
Mas se você tivesse com um botão desse aberto na hora lá da formatura, de manhã, você era punido, aí tinha que andar traquejado e eu engomava minha própria roupa, ganhei muitos elogios, ganhei honra ao mérito do Exército por causa disso.
P/1 – Helomar, só queria voltar um pouquinho para essa história lá da borracha, quem é esse patrão que aviava, quem era na época do seu pai, por exemplo, você sabe?
R – Era os portugueses que compravam.
P/1 – Eles eram os patrões.
R – Eles eram os donos dessa região todinha aqui.
P/1 – Aviar significa dar todos os recursos?
R – Todos os recursos para pessoa.
P/1 – Quando ele vendia tudo ele pagava os portugueses?
R – Ele era descontado: “Miguel”, no caso do meu pai: “Você fez quantas toneladas de borracha?”, “Tantos”, “Olha, você tem um débito comigo aqui de tanto, vamos descontar esse débito e você tem tanto de saldo”, aí papai pegava aquele saldo, lá no caderno dele já tinha o que fulano, sicrano, que trabalhou com ele, a produção deles tudinho: “Olha, fulano, deu tanto, nós tivemos um débito de tanto, você”.
Porque cada um ficava com aquilo: “Você quer alguma coisa?”, “Quero, quero charque, eu quero uma bota de borracha, eu quero isso, aquilo outro”, aí ele anotava, aí quando chegava: “Olha, o seu saldo deu tanto, só que você tem um débito de tanto, você, vou tirar esse débito, você vai ficar com tanto”, aí entregava para ele.
Na castanha era a mesma coisa, já tinha aquela turma certa de trabalhar, que era irmão, era família, aí não tinha desentendimento, um confiava plenamente no outro.
P/1 – Como é, então isso é a época da borracha, então tem balata, a maçaranduba é borracha também?
R – Maçaranduba também é leite, é uma árvore
P/1 – Ela é diferente, ela fica em outra região?
R – É, ela ficava mais aqui junto com a castanha, agora lá só a balata, no alto.
P/1 – E aí a castanha, que época era a época da castanha?
R – De janeiro a junho.
P/1 – Como funcionava a coleta da castanha?
R – A coleta da castanha era o seguinte: primeiro cada trabalhador tinha uma casinha na beira do rio, a empresa que comprava, ela tinha um motor, na época era motor de dez,12, aquele motor de correia, Arquimedes, Penta, aí tinha um batelão, uma canoa grande, aí o patrão, a pessoa que era o gerente, aqui não ficava o patrão, ficava o gerente, ele dizia para o motorista: “Olha, amanhã você vai pegar o material do Seu Miguel, você sabe aonde é o Seu Miguel, é lá no Arapiranga, assim, assim”, ele ia lá, encostava: “Seu Miguel, vim buscar suas coisas”.
Aí o papai arrumava panela, arrumava roupa das crianças, tudo, botava ali dentro, quando chegava lá em cima, num lugar chamado São Militão, já tinha a tropa de burro para levar o material do papai tudinho em janeiro.
Aí o papai ia para lá, aí revitalizava o barraco que ele tinha deixado do ano anterior e esperava a castanha cair, porque não presta a gente trabalhar a castanha caindo, ela tem um período até março para cair, é o período que aumenta a chuva, aí o talo dela apodrece, ela cai.
Aí quando chega de março em diante que ele vai juntar os ouriços e quebrar, lavar e ensacar, aí quando chegava, isso é, chegava próximo do papai terminar o serviço: “Miguel, quando é que você quer que eu venha lhe pegar aqui, sua produção?”, “Ah, você vem pegar na segunda quinzena de junho”, aí quando chegava lá já estava tudo ensacado.
Aí a pessoa ia buscar só a produção, depois que ele passava a produção todinha aí que ele ia pegar a muda das pessoas, a mudança, para voltar novamente para beira do rio.
P/1 – Mas aí ia mulher, criança, ia todo mundo?
R – Mulher, criança, uma vez eu peguei uma queda de uma costa de uma burra que eu me lembro até hoje.
P/1 – Como é que foi?
R – Fiquei ruim, fiquei ruim, que eu era muito danado, a mamãe dizia: “Ó, você vai montar aqui no burro, segure-se aqui e não se mexa”, na hora que vinha o mato, que vinha aquelas ramas de mato você se abaixa, eu era muito sapeca, uma vez eu cai em cima do fogão de lenha, me queimei todo assim, fiz uma queimadura séria, aí curei com benzetacil, penicilina.
Aí era assim, mas subia, aquilo era muito, muito sacrificoso.
P/1 – Vocês também coletavam castanha?
R – Não, nós íamos só para lá para cuidar do papai quando ele chegava, porque a tarefa era muito grande, ele saía às seis horas da manhã, sete horas, começava a trabalhar, ele só voltava duas horas da tarde, aí quando ele voltava duas horas tinha que estar com a comida dele pronta, tinha que ter o suco, que a gente fazia suco com a castanha naquele tempo, que aqui os caboclos chamam de chimbereba, você pega o cacau, você pega o cupuí, que é um tipo de cupu que dá dentro do mato mesmo, nativo, você pega o maracujá, muitos tipos de fruta dentro do mato, uxi, aí mistura aquilo com castanha e faz, nessa época tinha as grotas de água gelada, aí a minha mãe botava lá, quando papai chegava ele comia.
Aí ela pegava as roupas dele de trabalho, ia lavar e a gente ficava em casa esse período.
P/1 – Vocês ficavam em casa?
R – É, aí o papai às vezes, quando pegava, chegava duas horas, ele dava uma descansada, quando dava quatro horas ele ia caçar, matava um bicho ali para comer no outro dia, era assim.
P/1 – Você saía para caçar também, não?
R – Não, eu era muito pequeno na época ainda, na faixa de cinco anos, seis anos.
P/1 – Quando que você começou, você chegou a trabalhar na castanha ou na borracha?
R – Não, nunca cheguei.
P/1 – Nunca trabalhou.
R – Porque o meu pai não deixou, nunca deixou.
P/1 – Isso era diferente também?
R – É, o meu pai só queria que eu estudasse.
P/1 – Isso que ele fez contigo ele fez só contigo, não fez com seus irmãos?
R – Com todos os meus irmãos.
P/1 – Todos sabem ler, escrever?
R – Todos, todos, mas como eu era o mais velho, porque nessa região aqui na verdade até hoje é assim, se a pessoa tiver que escolher entre sobreviver e colocar o filho na escola eles querem sobreviver, eles querem ter comida todo dia, não importa se estuda ou não.
Ainda não prioriza a educação, eles priorizam a pessoa ficar maior, arranjar um emprego para ajudar a sustentar a família, não tem assim, até mesmo porque a condição aqui é mínima, nós vivemos aqui num bolsão de pobreza muito grande, talvez a educação não seja melhor por causa dessa mentalidade.
Quem estudava antigamente, porque tinham os patrões, aquelas pessoas que tinha dinheiro, eles botavam os filhos na universidade, esses filhos, no mês de julho, eles vinham passar férias para cá e eu tinha essa influência, brincava com eles.
E aí por isso que eu tenho essa influência de fora, tinha um filho de um pastor aqui, tinha o do Seu Orlando Barreto, que foi um pioneiro aqui nessa questão, eles vinham, conviviam comigo.
Aí eles traziam as coisas de fora, traziam revista, livro, discos, essas coisas, eu ia ouvindo, ia colocando aquilo na minha mente: “Olha, Helomar, está acontecendo tal coisa lá fora, assim, assim, assim”, a gente, lá a televisão, no tempo que começou a televisão.
P/1 – Você lembra da chegada da televisão aqui?
R – Aqui era repetidora, passava a novela lá hoje, vinha repetir aqui amanhã.
P/1 – Quando que chegou isso, você lembra?
R – Isso foi anos 80, início dos anos 80.
P/1 – Antes disso como que as famílias se divertiam, conversavam, como é que era o dia a dia das famílias?
R – Tinha muita festa de santo, esse tempo o pessoal era genuinamente católico, não existia religião evangélica, eles faziam muita festa.
P/1 – Não existia?
R – Faziam muita festa, santo fulano de tal, São João, Santa Bárbara, cada comunidade, ela tinha um padroeiro, aqui, por exemplo, Santo Antônio do Jari, dia de Santo Antônio aqui era uma festa de arromba na Cachoeira, a gente ia dançar lá no pé da cachoeira.
P/1 – Ah, é?
R – E aí também acontecia que quando o regatão chegava, que regatão era o barco que trazia, que vinha buscar a castanha, terminavam o fabrico eles faziam festa, matavam porco, gado, aí soltava aqueles rojões, e chamava o cara muito longe, por exemplo, em Vitória do Jari, o cara escutava aquele rojão, quando dava três rojão já sabia que era festa: “É festa para o rumo de tal”, o cara pegava a canoa, vinha remando, três, quatro horas de viagem de canoa remando para participar daquela festa, casamentos, era muito comum isso aqui.
Chegou um período que eu era uma pessoa, assim, solicitada porque a diversão que tinha aqui era a gente ler literatura de cordel, então a pessoa passava de manhã na minha casa, dizia: “Helomar, eu comprei um folheto”, que eles chamavam: “Comprei um folheto novo, dá para você ir à noite ler lá para gente?”, “Dá”, aí eu ia para lá.
P/1 – Como era, fazia como?
R – Chegava lá, reunia a família, como se fosse uma reunião de família, o pai deitado na rede aqui na sala, a mãe para ali, outro para ali, outro sentado na cadeira, fazia uma garrafa de café, acendia a lamparina, que é o candeeiro, aí acendia um para mim quando era de noite.
Aí eu começava, lia, aí tinha gente que chorava, tinha gente que se emocionava, tinha gente que achava graça, sorria e a diversão era essa.
E eu tinha uma boa leitura e aquelas pessoas, gostavam, eu era solicitado para ler isso.
Aí eu, na minha família, meu pai mesmo sentia muito orgulho, aí deixava, que meu pai também tem uma educação antiga e ele não deixava eu sair fora, mas como era para esse fim ele deixava eu ir.
P/1 – Desde que idade que você fazia isso?
R – A idade de dez anos.
P/1 – Você vinha ler cordel?
R – Era, lia cordel, uma coisa impressionante, isso aí me ajudou muito.
P/1 – Te ajudou em quê, Helomar?
R – A poder descrever o que eu vejo, eu acho que o papel do escritor é quando ele tem sensibilidade e tem condições para descrever aquilo que ele está vendo, que faz com que a pessoa lá no Japão que está lendo aquele escrito dele saiba do que ele está falando, o que ele está querendo passar naquele escrito.
Eu acho a coisa mais fundamental do mundo, a riqueza da pessoa ter o privilégio de saber ler e escrever, que são muitos códigos, você lê um livro de cem páginas, quantos códigos não tem.
Por isso que coloquei aquela ali, do Professor Ivan Izquierdo, ele é neurocientista, ele diz que a leitura é o melhor exercício para memória porque são muitos códigos e você tem que decifrar, entender aquilo ali, e mais difícil ainda é passar aquilo que você leu para as outras pessoas, alguém que interpreta.
E o meu pai sempre dizia para mim: “Meu filho, você tem que observar essas pessoas que são cultos na televisão”, até hoje eu assisto a TV Senado, essas coisas de cultura, que eu gosto muito de ver uma pessoa que sabe falar, leio muita coisa sobre filosofia, porque na filosofia, naqueles tempos na Grécia as pessoas eram sábios e iam para as ruas, para as praças debater assuntos, discutir, uma coisa muito, eu acho muito bom isso e o meu mundo é esse.
P/1 – Então esse foi sendo sempre o seu mundo, você foi lendo cordel.
R – Isso, descobrindo, coisas que eu.
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P/1 – Você começou a descobrir outros livros, tinha outros lugares onde você podia arrumar fonte de leitura ou você dependia das viagens do seu pai?
R – Não, porque as pessoas que leem, que gostam de alguma coisa, elas estão empanadas por aquele hobby, e eu era assim, eu gostava de ler, vinham muitas pessoas cultas para cá para o Projeto Jari, aí eles iam dizendo: “Olha, tu tem que ler isso, tu tem que ler aquilo outro, tu tem que ouvir isso, tu tem que ouvir aquilo outro”.
E eu me cheguei só do lado de pessoas cultas, eu tinha um amigo que era universitário, um dia ele chegou com um vinil do Paul Mauriat, que é um cara francês, que é uma música quase clássica, digamos assim.
E eu vi aquilo, rapaz, aquele som estranho, assim, aí disse: “Olha, parece estranho, mas ele é muito bom, a questão é só você acostumar e pronto”, aí vinha outra, trazia um disco do Elvis.
Para você ter ideia, eu nasci em 1965, na efervescência cultural e na época quase não tinha música brasileira, eu ouvia nos rádios Beatles, Rolling Stones, aquelas coisas da Guerra do Vietnã, as pessoas debatendo, eu lembro disso na minha memória.
Aí depois veio a Jovem Guarda, vinha aqueles intérpretes que, como Renato e seus Blue Caps, Fevers, passava aquelas músicas dos Beatles para português e essas coisas, isso aí era o meu mundo de ouvir, ligava o rádio, ouvia, nas rádios tocava isso.
Aí depois veio a geração do pessoal da, como é que chama, do Tom Jobim, o movimento?
P/1 – Bossa Nova.
R – Bossa Nova, aí depois veio Tropicalismo, com Caetano.
P/1 – E você ia acompanhando tudo isso.
R – Acompanhando tudo isso.
P/1 – Pelo rádio?
R – Sim, pelo rádio, música de Geraldo Vandré, essas coisas, aí quando eu batia com meus amigos: “Rapaz, onde que eu compro tal coisa?”, “Eu vou trazer de Belém para você”.
Todo ano eu passava, nunca repeti ano, eu estudei oito anos, nunca passava, meu pai me dava um presente: “O que você quer, meu filho?”, eu: “Um gravador, um relógio”, aí o meu pai me deu um gravador Aiko, daquele repórter, tem as teclas igual um piano.
Aí aquilo foi uma revolução para mim, e aí o menino ia, trazia, uma vez um amigo trouxe um fita do Peter Frampton, um americano, canta rock, trouxeram Led Zeppellin para mim, essas coisas, e eu comecei a ouvir, pirei.
Aí eu pegava minhas aulas de Ciências, de Estudos Sociais naquela época, ou OSPB, eu gravava tudinho no gravador e.
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P/1 – Ficava ouvindo.
R – Ficava ouvindo de baixo da árvore ali, o meu pai: “Poxa, mas você gasta muita pilha, que não sei o que, todo mês eu tenho que comprar uma caixa de pilha para você”, aí eu pegava aquelas pilhas, furava, às vezes botava no sol para que ela pudesse dar mais um, não tinha energia.
P/1 – Não tinha energia elétrica aqui?
R – Não, energia aqui.
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R – Então você usava o gravador com fita K-7?
R – Com fita K-7, até hoje ainda tenho aquelas caixas tudo cheia de fita, tudo catalogada, tudo com as músicas, tudo, aí depois compramos eletrola, eu comecei a comprar vinil, tenho muito vinil aí.
P/1 – Você adorava o que então, era rock?
R – Rock, sempre gostei, eu sou bem eclético, que eu ouço tudo, eu tenho vinis do.
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por exemplo, aí do Paul Simon, Rod Stewart, essas coisas, pop, rhythm and blues, tudo isso aí eu ouvi, aquele pessoal do soul, Motown, Diana Ross, essas coisas tudo.
Aí passei também a ouvir e pesquisar aquilo ali: “Olha, tal coisa”, quando eu ouvia alguém falar na televisão: “Olha, um disco de fulano de tal vai sair assim”, eu procurava adquirir e hoje na internet a gente tem um campo, a gente, mas tudo essa influência veio de lá, do rádio, dos amigos que eram universitários que vinham para cá.
P/1 – E a leitura, o que você foi lendo que foi mudando? O rock você foi descobrindo, em leitura você foi descobrindo alguém especificamente, algum escritor?
R – Eu li muito, eu tenho uma história interessante, que eu estava lendo Ernest Hemingway, “O velho e o mar”, eu li aquele outro: “Por quem os sinos dobram”, aí um padre frequentava muito a minha casa, ele disse: “Meu filho, você não deve ler isso aí, que isso é influência má para você, esse cara morreu, ele se suicidou e tal”, eu digo, aí eu fiquei perguntando: “O que que tem a ver com isso, o cara fez aquele”.
E eu era, nos anos 80 eu fui sócio do círculo do livro, aí eles mandavam os livros para mim pelos Correios.
P/1 – Pelos Correios?
R – Pelos Correios.
P/1 – Como você pedia? Me conta como funcionava o círculo do livro para você.
R – Eu tinha um amigo que me deu uma coisa, eu preenchi, uma ficha e enviei pelos Correios e eles mandaram a resposta, então: “É assim, assim, assim, você paga uma mensalidade de tanto, a gente manda a revista”, que eles tinham tipo um catálogo: “Aí você risca o livro que você quer, bota o código e envia o dinheiro por vale postal e assim estamos certo”, aí chegava no meu endereço o livro que eu queria.
P/1 – E aí você escolhia, que tipos de livro, você recebia todo mês os livros?
R – Vinha um catálogo, sempre, era.
Eu também tive um mineiro de Governador Valadares, que era enfermeiro aqui dessas empresas, e ele tinha uma biblioteca semelhante a essa, era menor e eu via aqueles monte de livro lá e tal, aí um dia eu cheguei, disse: “E esses livros, doutor?”, eu chamava doutor para ele, disse: “Ah, isso aqui para mim é a vida”, aí eu fiquei pensando assim: “O senhor não empresta esses livros?”, “Você tem interesse de ler?”, digo: “Tenho, eu leio muito”.
Aí mostrei meus livros para ele: “Ah, sim”, aí ele passou a me orientar, ele tinha coleção da Segunda Guerra Mundial, Primeira Guerra Mundial, ele que me apresentou um dos poetas que eu acho mais incríveis, chama-se Carlos Drummond de Andrade, emprestou um livro chamado “A rosa do povo”.
Aí esse livro para mim foi muito interessante e o que eu não compreendia daquelas poesias ele ia dizendo o que era.
Aí eu achava aquela leitura a princípio estranha, ele disse: “Mas isso é um dos maiores poetas brasileiros, você deve ler”, depois Machado de Assis, uma coisa que até hoje me intriga a história da Capitu, é uma coisa maravilhosa.
P/1 – Aí você leu Machado de Assis, leu Carlos Drummond.
R – Carlos Drummond, Manoel Bandeira também eu gosto muito.
P/1 – Isso você lia da biblioteca dele e também do Círculo do livro?
R – Isso, porque ele me orientava, ele, eu ia lá, ele: “Ó, você tem adquirir esse aqui”, aí eu mostrava o catálogo para ele: “Isso aqui é muito bom, já li, é muito bom”.
Aí passei a ler Agatha Christie, gostava muito de romance policial, bolsilivro, ele tinha muito esse negócio de faroeste, essas coisas.
P/1 – Vinha também pelo círculo do livro Agatha Christie?
R – Vinha, aí teve um homem que montou uma banca de revista, aí vinha tudo, a gente comprava aqui mesmo, quando não mandava pedir de Belém, que tinha os barcos, a gente era amigo das pessoas que viajavam: “Fulano, vá na banca de revista de fulano de tal, traga uma revista para mim”, “Que revista você quer?”, “Essa aqui”, aí eu anotava, trazia, aí eu ia lendo.
Li muito Júlio Verne: “Vinte mil léguas submarinas”, aquele outro: “A volta ao mundo”, hoje fizeram bem uns três filmes disso aí, mas nunca é como o livro.
P/1 – Nunca é como o livro.
R – Nunca é como o livro, tão sem graça, assim, uma coisa que se você tivesse, pegasse um refrigerante, colocasse água dentro e tomasse, aí não tem, assim, aquela coisa do livro.
Então minha vida foi essa, eu sou um privilegiado por isso porque eu sou uma pessoa que eu vivo uma vida bastante modesta, tenho limitações, eu sofro de artrite reumatoide, mas eu tenho uma visão, assim, diferente das outras pessoas.
Eu, quando entro num ambiente desses que tem um livro, tem qualquer coisa de cultura, é meio que eu entrar num santuário, eu às vezes me acordo de madrugada, sento nessa cadeira assim e fico pensando.
Logo que nós começamos aqui com o Joel, aí nós tínhamos uma prateleira daquelas de livros: “Ah, essa que é a biblioteca da academia?”, porque as pessoas aqui, principalmente aquelas pessoas que tem um diploma, eu nunca tive diploma, sempre fui autodidata, e as pessoas às vezes zombavam da gente: “Ah, acadêmicos e tal, cadê o diploma desses caras?”.
Alguém que fez lá Unifap: “Ah, esses caras não são acadêmicos, são charlatão, que eles não tem nem curso, o cara tem o primário, quer ser”.
Hoje eu tenho, só no Recanto das Letras eu tenho uma base de 130 textos com quase cinco mil leituras, que é aquelas coisas da vivência, eu escrevo muito crítica social, escrevo muito sobre romances, essas coisas.
Meus poemas são, porque eu bebi nessa fonte, do Drummond, do Paulo Leminski, a coisa do modernismo, que antigamente as coisas tinha que ser tudo, os poemas ali tudo bem feitinho, tudo, tinha técnica para escrever e essas pessoas do modernismo veio para quebrar isso tudo.
Você lê uma poesia do Paulo Leminski que é quatro, dois, três textos, mas tem uma coisa profunda, as palavras às vezes são mais importantes que a arrumação do texto, ah, soneto e não sei o que, tem essas coisas, eu escrevo soneto também, faço quase tudo, crônicas eu escrevo também.
P/1 – Mas me conta antes, você ainda está terminando, enquanto isso tudo que você está falando é quando você ainda estava na escola?
R – É, eu tive na escola até em 83.
P/1 – Que foi que série?
R – Oitava série.
P/1 – Aí você parou?
R – Essa escola que tem aí, a primeira escola, a maior escola que tinha, que foi feita aqui inicialmente, eu fui o fundador dela, que um dos primeiros alunos que estudou nela, então aqui tem duas escolas de referência, é a Escola Sônia Henriques de Barreto e a Mineko Hayashida, o Joel é de lá da Mineko, eu sou na Sônia Henriques porque eu sou mais velho.
Então as autoridades, as maiores autoridades que tem do município, que nasceram aqui, quase todas vieram dessas escolas, é vereador, é enfermeiro.
P/1 – Era uma boa escola então?
R – Boa escola, que é aquele período do governo militar, ali teve muita coisa ruim, mas a educação eu senti, assim, que era um período romântico, os professores, eles tinham mais tempo, talvez era porque tinha menos emprego, eles se dedicavam mesmo.
Você não conseguia as notas para passar no final do ano, outros colegas, eu não, porque eu nunca repeti ano, mas eles tinham um carinho especial, quando eles não podiam eles iam naqueles alunos que tinham desenvolvimento maior: “Fulano, ajuda o sicrano aqui para que ele possa passar, poxa, nós temos que passar todo mundo, vai ser triste ele ficar aí e repetir ano, tal, vamos fazer isso, embora”.
P/1 – Conta para mim essa história das cartas.
R – Às vezes a gente tem tudo na vida e não sabe valorizar, e eu, quando eu trabalhei nos anos 80 na Cadam - Caulim da Amazônia, eu morava em alojamento porque os turnos eram muito apertados, 12 por 12, não dava tempo de vir aqui, às vezes nem ver os pais, aí quando era dia de domingo eu ficava no alojamento, eu e meus colegas.
Aí aquele que sabia cortar cabelo ia cortar o cabelo dos outros, e eu, o meu ofício era escrever cartas para aqueles que não sabiam escrever: “Helomar, você está lá no seu alojamento amanhã dez horas? Eu vou lá que eu quero escrever uma carta para minha velha mãe”, “Está bom, vá lá”.
Aí eu botava uma mesinha, um banco, pegava folha de papel, aí colocava lá: “Querida mamãe, Munguba, Pará, querida mamãe”, ele já tinha me falado que era o que ele queria: “Eu estou muito bem, graças a Deus, espero que essa lhe encontre em paz, com saúde.
Mamãe, estou empregado, estou lhe enviando um dinheiro por vale postal, quantia no valor tal, estou saindo de férias em junho, julho, no próximo mês, aguarde lá.
Esse dinheiro a senhora pega, compra tijolo para reformar a casa e compra uns boinho para gente”, que é a cabra, o bode eles chama de boinho, aí a pessoa comprava.
“Mamãe, estou com muita saudade, assim, assim, assim, tal”, aí: “Estou aqui pedindo a sua benção, ore por mim, tal, do seu filho, que nunca lhe esquece, Manuel dos Anzóis Pereira”, “Vem outro”.
Aí esse aí já era noivo, aí: “Querida fulana, querida Maria José, estou com muita saudade de você, estou mandando um forte abraço e um grande beijo, estou enviando um dinheiro no valor de tanto para você comprar o enxoval do nosso casamento, já acertei minhas férias para o ano que vem, mês de janeiro, assim, assim, assim.
Como é que você está por aí? Responda a minha carta, não sei o que, então, olha, quando você escrever escreva, estou morando no alojamento fulano de tal, número fulano de tal, assim.
Abraços e beijos do seu querido fulano de tal”, aí assim, era assim.
Então era, aquelas pessoas me procuravam muito para escrever.
P/1 – Eles mandavam carta para onde em geral, eles eram de onde?
R – Nordeste, Bahia, Ceará, Maranhão, Piauí, as pessoas do sul eram mais instruídas.
P/1 – Então esses que mandavam para o nordeste eram os que não sabiam ler?
R – Era, que não sabia ler.
P/1 – Nem escrever.
R – É.
P/1 – E quando chegava carta eles pediam para você ler?
R – Ler, eu lia de tudo, até hoje eu faço isso, bula de remédio, essa, recisão de contrato, terminava o contrato com a empresa, a empresa dava aquele papel, eles assinavam: “Olha, Helomar, vê aí como é que está isso aí”, “Ó, seu saldo foi tanto e tal, isso e aquilo, seu FGTS foi tanto”, aí eles traziam para mim.
Aqui, hoje, atualmente tem muita gente que ainda é assim, porque aqui é o seguinte, as pessoas vem do sítio, termina o ensino lá na Vila da Padaria, vamos fazer uma hipótese, aí o pai quer dar continuidade, aí vem com quatro, cinco filhos, que caboclo tem muito filho, bota tudo na escola pública aí e às vezes não tem condição, tem menino que bate na minha porta de manhã para pedir um lápis, uma borracha para estudar.
P/1 – Eles vem morar aqui na Malvinas?
R – É, vem morar aqui, aluga um quartinho, porque aqui é mais barata a moradia, é cem reais um quarto.
P/1 – Aqui é mais barato?
R – É, hotel ou às vezes até uma casa, aí eles vem, coloca, aí eles mandam o negócio de carta, esse negócio da bolsa família, essas coisas, INSS, carta da justiça, eles traz tudinho para mim ler.
P/1 – Para você ler?
R – É.
P/1 – E para mandar, você ainda faz carta para os outros?
R – Não, hoje não, carta praticamente está em desuso, ninguém escreve mais.
Houve uma coisa curiosa um certo dia aí, ano passado, veio uma senhora, que ela chegou a data dela se aposentar e ela foi lá com os documentos dela e tudo, aí mandaram lá para São Paulo, Rio, que é para lá para sede do INSS, aí veio a filha dela, leu, a filha dela tem o ensino médio.
Aí estava escrito lá: “Seu pedido foi indeferido por isso, por isso, falta de documento isso” e ela não sabia o que era indeferido, aí ela trouxe para mim: “Seu Helomar, os meninos lá em casa tudo já leu, mas aqueles meninos parece que quanto mais eles estuda mais burro eles ficam, que não sei o que, e não sabem isso aqui, eu quero saber o que é essa palavra aqui, o senhor pode ver para mim?”, eu digo: “Não sei, se não tiver a gente vai para o velho e amigo dicionário”.
“Seu pedido foi indeferido por razões isso, assim, assim”, aí eu disse para ela: Olha, Dona Maria, seu pedido não foi aceito devido falhas na sua documentação, essas coisas, tal”, “Pois é, Seu Helomar”, ela balançou a cabeça: “A gente às vezes se atrapalha por causa de uma palavra (risos) que a gente não sabe”.
O conhecimento é isso, às vezes a gente comete um crime e não sabe que está cometendo um crime porque não tem conhecimento.
Então eu acho que o maior poder que existe no mundo é isso, é o conhecimento, é você poder aprender, se interessar, ter curiosidade, sempre fui uma pessoa muito curioso, nunca gostei de ser pesado para ninguém.
Isso aqui poderia ser até um ouro, essa biblioteca com tudo, mas eu estaria amarrado e amordaçado e eu não gosto disso, sabe, eu aprendi a valorizar a liberdade, a não ter que estar sabe, sendo oprimido pelas pessoas.
Então eu aceito, tem muitos parceiros aqui, mas eu coloco logo, eu digo: “Olha, tem que ser parceiro com a nossa mesma filosofia”, aí eu digo: “Olha, eu estou com oito anos aqui com essa biblioteca, não ganho um centavo de fontes externas e faço isso porque eu gosto e sei da necessidade e do valor desse trabalho”.
Que isso aqui é um trabalho espiritual no meu modo de ver, as coisas espirituais ninguém vê, a gente só faz sentir, mesmo que eu explique para você: “Olha, aconteceu para mim um despertar espiritual assim”, mesmo que eu, você não vai entender porque aquilo é sentido.
E quantas e quantas gerações de alunos que passaram por aqui, que hoje estão bem empregados, que concluíram o ensino médio, estão na universidade, fizeram concurso públicos, estão fora do estado, trabalhando em outros lugares, como nos Correios, Polícia Federal, tudo porque tinha um livro que deu condições deles estudarem, eles fazem um apostilão, quando não vem um grupo de alunos, aí um vai para o quadro, aí fica estudando aqui para conseguir uma vida melhor.
E o governo gasta tanto dinheiro e não consegue fazer nada, sabe e eu ganho um salário mínimo e eu trabalho, que a minha esposa é manicure e nós vive com isso.
P/1 – Então, eu queria voltar para você contar um pouco a fundação da biblioteca, mas antes eu queria entender o que que é essa época, você escrevia carta, você estava aonde?
R – Foi da época que eu saí do Exército, isso aí foi em 86, 87.
P/1 – Então, quer dizer, você, quando terminou de estudar você ficou fazendo o que, Helomar?
R – Eu fui convocado para o Exército, meu estudo foi totalmente interrompido.
P/1 – Pelo Exército?
R – Sim, aí quando eu cheguei lá eu disse que era arrimo de família, mas eles não aceitaram, que eu tinha um porte físico bom, no Exército eles gostam muito dessas pessoas que moram no mato porque a infantaria de selva, a pessoa tem que conhecer, a pessoa que caça, que pesca tem uma, eles gostam muito, mais do que do pessoal da cidade.
E eu fui, passei direto, não teve conversa, não, aí eu passei um ano e pouco, quando terminou, com um ano que eu estava no Exército, eu ainda fiquei mais dois anos, mais dois meses lá para orientar os recrutas que estavam chegando, para mim poder sair, aí queriam me colocar para PM, mas eu achei o militarismo muito.
P/1 – Isso era durante a ditadura militar?
R – Era, ano de 84.
P/1 – Você sabia o que era ditadura militar, você já sabia, como é que foi a sua relação com o Exército e com tudo isso durante a ditadura militar?
R – A minha relação com o Exército, ela para mim foi muito boa, que eu aprendi muita coisa, principalmente o caráter da pessoa, a pontualidade, era forçado, mas era uma coisa que era para o próprio bem daquelas pessoas.
Isso me ajudou muito, sabe, a ter autoridade, a comandar, saber comandar uma tropa, saber me destacar onde eu estou, que o meu último emprego eu tomava conta de 60 pessoas e essas pessoas todinhas eu controlava, eu fazia o que a empresa pedia, isso me ajudou muito porque eu era muito tímido antes de ir para o Exército.
P/1 – Quer dizer, aí você fez o Exército, quando você saiu do Exército você foi fazer o quê?
R – Aí eu já vim recrutado para cá para trabalhar de segurança.
P/1 – Para que empresa?
R – Primeiro para Jari Celulose, depois eu passei para Cadam - Caulim da Amazônia.
P/1 – Cadam é uma outra empresa?
R – É, que produz o caulim.
P/1 – E é aqui perto?
R – É lá no Munbuga, tem fotos dela aí, da empresa lá, a fábrica.
P/1 – Essa época que você prestava esse serviço é a época que você estava na Cadam?
R – Isso.
P/1 – Não, quando você estava na Jari de segurança, você não fazia isso?
R – Na Jari também, eu comecei na Jari em 85, aí trabalhei um ano e pouco, aí passei para Cadam porque ela pagava melhor e o trabalho era menor.
P/1 – O que você fazia na Cadam?
R – Na Cadam eu tomava conta do supermercado dela, eu tomava conta de portaria, entrada e saída de materiais, de pessoal, aí tomava conta da chapeira, lá onde o pessoal batia cartão, essa coisas, ficava na portaria, serviço de portaria, entrada, saída de veículo, material, essas coisas.
P/1 – E aí você lia enquanto estava trabalhando, não?
R – Às vezes à noite, diminuía o movimento, aí à noite, quanto eu estava à noite sempre eu levava um livro.
P/1 – Depois da Caulim, você saiu da Caulim quando?
R – Eu saí da Caulim quando eu constituí família, com 25 anos.
P/1 – Por quê?
R – Eu saí que eu vim trabalhar com meu pai, meu pai é um dos fundadores dessa firma de catraia, essas voadeiras que atravessavam, aí eu comprei um motor novo e vim trabalhar com meu pai.
P/1 – Então você ficou trabalhando de barqueiro chama?
R – Marinheiro, tenho carteira de marinheiro, marinheiro regional de convés.
P/1 – O que faz o marinheiro?
R – Marinheiro, ele pilota barco, várias especialidades, pilota voadeira, trabalha em balsa, trabalhei naquela balsa também que atravessa carro do Munguba, para um lado, para o outro, atracando, desatracando, era assim que eu fazia.
P/1 – Mas você trabalhou lá?
R – Trabalhei também.
P/1 – De lá você foi para onde?
R – Aí eu fiquei trabalhando aqui na catraia, teve um tempo que eu fui para o garimpo também, montei uma cantina no garimpo para vender medicamento.
P/1 – Aonde, que garimpo você foi?
R – Era o Garimpo do Caju.
P/1 – Aqui perto?
R – Muito longe.
P/1 – No Pará?
R – É aqui, subindo o rio, aí da beira do rio a gente andava duas horas por dentro do mato para chegar lá na área de garimpo.
P/1 – Como era o garimpo?
P/1 – Vou só terminar essa sua trajetória de trabalho, você ficou na catraia trabalhando e aí?
R – Na época eu saí da Cadam, vim para catraia, aí fui passar um tempo no garimpo.
P/1 – Me conta como é o garimpo.
R – O garimpo na época era.
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terminou o governo militar e devido a inflação o ouro valorizou muito e a minha família tinha terrenos lá no garimpo, dois primos meu que tinham um terreno: “Helomar, estou precisando de você, eu quero propor um negócio com você, eu tenho um garimpo, tenho tantos homens que trabalha comigo, mas esses homem ficam desassistidos porque muitas coisas que eles querem comprar lá não tem e tem a turma também do outro primo, tem tantos homem e nós estamos dando valor a uma cantina de uma outra pessoa, por que que você não vai lá para dentro do garimpo comigo? Você toma conta também das minhas máquinas, que às vezes eu preciso sair, você monta a sua cantina, vende seus produtos, tira meus trabalhadores lá do cara, que vende muito caro e vão comprar tudo de ti e você vai receber na fonte, vou descontar lá as despesas dele, já desconto seu ouro e entrego no vidro, isso é negócio para você, só querer”.
P/1 – Você foi fazer isso então?
R – Aí eu fui.
P/1 – Como é que foi?
R – Cheguei lá, eu comprei um barraquinho feito de paxiúba, uma palmeira que tem, aí a gente bate ela e faz o assoalho.
P/1 – O assoalho é de quê?
R – Dessa paxiúba.
P/1 – Também.
R – Ela é tipo um açaizeiro, o caule do açaí, a gente corta o caule dela e racha, aí ela tem, tipo assim, uma bucha dentro, a gente tira aquela bucha, ela fica igual uma tábua, quase igual a uma tábua dessa, só que ela é boleada, aí fechei.
P/1 – O assoalho fica redondo assim?
R – Sim, aí fiz uma casinha lá, tal, aí levava biscoito, levava bebida, levava cigarro, remédio, aí eu comecei a ganhar dinheiro lá, aí com seis meses que eu estava lá eu peguei uma malária, aí vinha ruim, aí me tratei, dois meses me tratando, voltei para lá de novo, quando eu estava com um mês lá outra malária.
Conclusão que quando chegou no fim eu peguei outra malária de novo e aí não pude mais ir, aí encerrei, aí voltei para catraia de novo, para voadeira.
Aí nessa época eu comecei a trabalhar, aí o meu pai começou a fracassar, o negócio da catraia.
P/1 – Por quê?
R – Crise na Jari, que o papai vendia diretamente os tickets para travessia para os funcionários, aí a Jari foi fazendo mais casa, as pessoas foram atravessando para lá e não tinha necessidade mais de vir e voltar todo dia, aí foi diminuindo, diminuindo, aí o meu pai optou por outro ramo, de lanchonete.
Aí nós tínhamos amigos que tinham lanchonete, era amigo do papai, ele ensinou a gente a fazer lanche de chapa, todos nós sabemos fazer e o meu pai vive hoje de uma lanchonete que ele tem aí.
P/1 – Aqui dentro das Malvinas?
R – É, aqui, bem aí na frente, e aí nós passamos para outro ramo, eu comecei a trabalhar.
P/1 – Na lanchonete também?
R – É, aí também tive um problema sério de alcoolismo, me separei com a minha primeira esposa.
P/1 – Você começou a beber?
R – Foi, bebia muito.
P/1 – Você bebia muito?
R – Porque aqui era uma zona, de baixo meretrício, essa Malvina aqui, o nome é esse não é por acaso, da Guerra das Malvinas, e aí era muita prostituição aqui, era música para tudo quanto é lado, tipo corrutela de garimpo, e a gente vai nessa influência e eu trabalhava diretamente com as pessoas, passando bebida, mulheres que chegavam no bar.
Aí quando eu terminava de trabalhar eu ia para essas boates, tal, me envolvia com as mulheres de lá, aí a minha primeira mulher não aguentou, aí nós separamos, tínhamos quatro filhos, aí ela foi embora para o Maranhão, que ela era de lá, levou dois e dois o papai ficou cuidando.
Aí eu fui trabalhar no dendê lá perto de Porto Grande, produz óleo, exporta para França, tem um plantio lá e eu fui para lá trabalhar, aí depois quando voltei a mulher já tinha ido embora, aí eu parei de beber.
P/1 – Por que você parou de beber?
R – Eu parei porque eu encontrei uma instituição de autoajuda, aí parei.
P/1 – Qual foi?
R – Os Alcoólicos Anônimos.
P/1 – Mas você quis parar?
R – Quis parar, a família destruída.
P/1 – Você que foi procurar os Alcoólicos Anônimos?
R – Não, pessoas que me levaram lá e aí hoje eu tenho esse trabalho também lá, já há 19 anos.
P/1 – Seus filhos ficaram dois com.
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sua mãe estava viva, está viva?
R – Está viva.
P/1 – Quando você diz: “Ficaram dois com o papai” ficaram dois com a sua mãe também?
R – Não, dois com a mãe deles, com a minha ex-mulher.
P/1 – E os outros dois com os seus pais?
R – Humhum, aí eu fiquei aqui, aí fui cuidar deles, eles foram crescendo, eu fui trabalhando depois que eu parei de beber, aí eu arranjei outro emprego, aí foi o tempo que me deu esse problema, artrite reumatoide, aí eu adoeci na empresa, aí eu já estou 12 anos de benefício do INSS, a empresa já até acabou.
Eu trabalhava, nesse último emprego, eu trabalhava tomando conta de 60 pessoas que cuidavam da conservação do eucalipto.
P/1 – Que empresa era essa?
R – Era DJ Serviços Rurais, então lá a gente fazia, plantava o eucalipto, controlava saúva, cuidava do roço, cuidava do corte, do eucalipto, então esses trabalhos, adubava a terra.
Eu tive uma experiência grande nesse trabalho, um trabalho meio empírico, que eu tinha experiência de trabalhar, chegava essas pessoas, engenheiro agrônomo de Minas Gerais, eles iam trabalhar comigo para aprender a prática do serviço.
Então era um trabalho muito bom, eu acordava quatro horas da madrugada, aí quando chegava, amanhecia o dia no meio da floresta, os passarinhos cantando, essas coisas, cheiro da flor do eucalipto, da castanheira, encontrava onças caminhando na estrada, bichos e era assim.
P/1 – Mas você estava bem?
R – Aí estava, aí depois eu adoeci, aí eu não pude mais trabalhar.
P/1 – Você teve o quê?
R – Artrite, aquela reumatismo que dá nas juntas, inflama aí dói muito, aí você tem dificuldade de mobilidade, no joelho, nas pernas, aí tem um tempo que eu nem levanto, tem dias, dependendo do clima, aí isso aí atrapalho muito a minha vida.
Aí quando eu adoeci, que eu fiquei num estado de invalidez, aí que eu comecei a executar essa questão da biblioteca, e da arte.
P/1 – Como é que foi isso?
R – Nós já tínhamos formado a Academia Laranjalense de Letras, porque ela, a Academia Laranjalense de Letras é uma instituição que ela foi formada em 2003, mas o embrião dela começou em 96, quando eu conheci o Joel, nessa questão conheci o Trindade, conheci o Professor Cláudio, nessa questão de troca de livros.
P/1 – Então me conta, você conheceu quem em 96?
R – Eu conheci o Trindade primeiro.
P/1 – Quem é o Trindade?
R – Trindade é o cordelista, que escreve cordel, é um dos sócios fundador da Academia Laranjalense de Letras.
Eu na casa do Trindade lá, nós trocamos livros, fazia um escrito, fazia uma poesia, eu ia mostrar para ele e nós tinha esse intercâmbio.
Cheguei lá um dia, ele já conhecia o Joel, aí ele me apresentou o Joel, aí nós começamos a discutir: “Rapaz, a gente podia fazer, assim, um quarto na minha casa ou na tua onde a gente pudesse se reunir para gente ler, bater papo, ouvir música e tal, porque aqui é tão difícil essa questão da cultura, de encontrar pessoas iguais com a gente”.
Aí começamos esse papo, vai, aí como o Joel tinha uns amigos, estudava numa escola de Filosofia, aí o Joel já começou a passar a ideia para eles, acharam interessante, fizemos algumas reuniões.
O Joel viajou para Belém, aí se interessou lá pela Academia Paraense de Letras, de lá já trouxe o estatuto, regimento interno de lá, aí nós adaptamos, fizemos várias reuniões para aprovar o estatuto, para adaptar a nossa realidade.
P/1 – Quem são os fundadores da Academia Laranjalense?
R – De Letras, é eu, o Trindade, o Joel, o Cláudio, o Ivan.
P/1 – Fala o nome inteiro, vai.
R – Eu não sei os nomes deles todos.
P/1 – Joel, você, Trindade.
R – Joel Gomes, JR.
Trindade, Cláudio Chaves, tem o professor Bogé, que foi embora daqui e outros que foram embora e foram preenchendo.
Então no estatuto da Academia Laranjalense de Letras tem um artigo que ressalta essa questão que a academia tem que ter uma biblioteca, para fazer suas consultas, porque quer escrever um texto, tem que ter um dicionário, um determinado livro assim, interessante.
Aí eu trouxe a sede da academia para minha casa e aqui eu já tinha uns livros, que esse trabalho os alunos já faziam, porque eu comprava livros para os meus filhos: “Vamos lá para casa do pai do Heitor”, que é o meu filho: “Ele tem livros lá, embora fazer o trabalho lá” e vinham para cá: “Vamos lá na casa, será que o pai do Heitor não tem esse livro?” e tal, aí vinham consultar, já tinha vários livros.
Aí comecei a manter contato com os amigos que eu trocava figurinha, livro, eles foram doando aqueles livros que não estava mais servindo, eu fui comprando outros.
Aí nós começamos: “Embora fazer um programa de rádio? Embora”, aí fizemos um programa de rádio muito tempo.
P/1 – Sobre?
R – Sobre cultura, a gente ia lá, tocava uma música, aí falava a história daquela música, da pessoa: “Ó, hoje é o aniversário do Carlos Drummond de Andrade”, a gente falava um pouco da vida dele, recitava uma poesia dele, recitava as nossas e fazia esse bate papo, as pessoas escreviam.
Aí numa dessas o diretor do Colégio Positivo estava ouvindo o rádio e entrou no ar parabenizando pelo trabalho que a gente fazia e tal, que ele nunca tinha visto um trabalho igual aqui na região, se a gente poderia ir lá com ele, que ele queria fazer umas doações de livros.
Aí nós se comprometemos, terminou o programa no rádio nós se dirigimos para o Positivo, chegamos lá, ele deu umas apostilas para nós no valor de seis mil reais, do infantil até o terceiro ano, estão aqui atrás nessa prateleira, nos deu um computador.
E aí nós agradecemos no ar, conversamos com ele, às vezes ele entrava no ar com a gente, aí outras pessoas foram seguindo, professores que tinham aqueles livros, aí foi aumentando o nosso arquivo.
Aí o Joel foi para Macapá, entrou em contato com o pessoal da biblioteca pública do estado, o diretor ficou muito interessado, doou umas dez a 15 caixas de livros também, só livros especializados.
Aí nós entramos em, agora recentemente, em contato, através de um político, com a igreja dos mórmons, Igreja de Jesus Cristo dos Últimos Dias, eles tem um trabalho missionário no mundo inteiro, acharam muito interessante, trouxeram livros, nos ajudaram a reformar a biblioteca.
P/1 – Vocês reformaram essa biblioteca aqui?
R – Reformamos, aí levaram o projeto para São Paulo, foi aprovado, os caras maravilhosos, a postura deles, eles não quiseram nem que eu colocasse o nome da igreja aqui, acharam, inauguraram, chamaram as autoridades, nesse dia eu chorei, eu sou um cara que eu sou meio durão e ele disse que tinha andado o mundo inteiro, tinha visto muitos trabalhos assim, mas nunca tinha visto com esse perfil, a pessoa manter um trabalho desse assim do próprio bolso, esses elogios.
Chamou as autoridades, alguns vereadores: “Olha, isso aqui vocês deviam se orgulhar e tal e ajudar esse rapaz aí porque o trabalho dele não aparece, mas futuramente faz uma diferença muito grande, devido a aqui ter esses problemas”.
Aí pulou lá um vereador: “Nós já temos uma biblioteca aqui, que não sei o que”, eu não quis entrar em questão, a biblioteca deles é só para inglês ver, bate foto e tal, coloca em relatório, biblioteca de relatórios.
Então, o Milton Nascimento, ele diz uma coisa, o cantor Milton Nascimento, que o artista tem que ir aonde o povo está, eu digo, na questão política, na questão social, a solução tem que está aonde está o problema.
Botaram a biblioteca lá para cima, o pessoal de lá tem poder aquisitivo, todo mundo tem computador em casa, quem é que vai fazer questão de biblioteca? Vai fazer aqui, que às vezes o camarada não tem um lápis para dar para o filho estudar de manhã, então é aqui que está o problema, aqui que você devia investir, aonde se precisa, não aonde as autoridades que vem de fora, as pessoas que vêm de fora veem, porque você precisa fazer um trabalho, todo trabalho deve ser feito para que o povo se beneficie, não que aquilo ali seja um espelho para quem chega e para quem deixa de chegar.
E os políticos tem muito essa mentalidade, fazer as coisas para os que vêm de fora ver, não tão interessados se vai beneficiar o povo ou não.
P/1 – Mas deixa eu te fazer uma pergunta, Helomar.
Essa biblioteca você botou aqui e você passou a se dedicar a isso então depois que você ficou doente?
R – Doente, é.
P/1 – Porque aí você decidiu: “Vou montar uma biblioteca”, como é que foi que você decidiu isso?
R – Não, devido ao que está lá no estatuto, nós temos que colocar esse estatuto em prática, conversando com o Joel: “Vocês que estudam, vocês tem o trabalho de vocês, vocês são professores, vocês não vão, não vai tomar o tempo de vocês”, a biblioteca é assunto meu porque eu tenho essa capacidade de estar aqui, quando eu não estou a minha esposa está e ela já sabe trabalhar.
P/1 – Como é que funciona a biblioteca?
R – A biblioteca, ela é totalmente aberta ao público, a pessoa chega aqui, diz o que quer, a gente procura, quando não as pessoas já têm um contato permanente, eles mesmo vão lá: “Olha, Seu Helomar, eu quero o livro de ciência, eu vou pegar aquele ali”, aí ele vai lá, leva para casa ou então tira xerox, faz o trabalho dele, retorna o livro para cá.
P/1 – Você anota, você tem os livros catalogados ou eles tão aqui, como você sabe que livro que tem aqui?
R – É uma bagunça organizada, que a gente vai botando assim, de vez em quando eu não sei, que a mulher arruma: “Você botou o livro de fulano de tal, assim, você não viu?”, “Ah, eu acho que deve está naquela prateleira ali, veja lá”, aí eu vou lá, encontro, é assim.
P/1 – Quer dizer, você não tem uma lista dos livros?
R – Não, não tenho.
P/1 – E quando a pessoa leva o livro você anota que ela levou ou também não precisa?
R – Tem certas pessoas, só quando é da primeira vez, as pessoas que já estão acostumadas aqui eu não.
P/1 – Ela leva e traz, ela tem um número de dias para ficar com o livro ou tanto faz?
R – Não, ela leva, a não ser que seja um livro que eu tenha poucos volumes ou só tenho um volume, aí eu digo: “Olha, tira xerox, faz seu trabalho tranquilo lá porque esse livro eu só tenho esse e alguém pode vir procurar e ele não está aqui”.
P/1 – Helomar, me conta um pouquinho mais da biblioteca, da onde vieram os livros que estão aqui?
R – Eles vieram do Positivo, da Biblioteca Nacional, a Igreja de Jesus Cristo dos Últimos Dias fizeram uma campanha, mandaram os livros, alguns universitários que vêm para cá, eles visitam aqui, aí quando chega na cidade deles fazem uma campanha no próprio colégio, na própria universidade, aí manda.
P/1 – Eles mandam entregar como para você?
R – Correios.
P/1 – Os livros chegam pelos Correios?
R – Correios, é.
P/1 – Por Sedex?
R – Eu acho que sim.
P/1 – Você vai buscar ou eles entregam o livro aqui?
R – Não eles traz a ordem de chegada, eu vou lá buscar, pego o carro e vou buscar.
Aqui também fizeram uma base de polícia comunitária, eles também dão muito apoio, quando eu preciso da Kombi deles eu vou pedir para trazer.
P/1 – Aí me conta um pouco que tipo de livro que tem aqui, é mais romance, é mais livro de escola, é o quê?
R – Aqui tem de tudo, porque a pessoa, quando ela doa ela faz um pacote, ela não exemplifica, tem muitos que querem até se livrar dos livros e a gente nesse meio, garimpando, a gente encontra muita literatura, boa, a gente encontra muito livros didáticos, muito livro sobre leis, sobre Direito, e isso aí tudo é importante para as pessoas fazerem concursos públicos.
A gente aceita de tudo, aquele livro que vem rasgado, danificado, a gente faz trabalhos escolares, por exemplo, a criança pega uma cartolina: “Embora falar sobre dia das mães, bora falar da fauna brasileira”, aí recorta e prega na cartolina aqueles livros, a gente já tem uma área só de recorte.
E essa questão do extravio, a gente não se preocupa muito com isso porque um livro é como uma semente, aonde ele cai ele faz diferença e se a gente muitas vezes tem muito ciúme dos livros não vai adiantar nada a gente ter uma biblioteca, porque o importante, o livro foi feito para ser lido.
Às vezes as crianças chegam aqui, folheiam, aí as minhas filhas às vezes tem ciúme: “Ah, não é assim”, “Deixa a criança ter contato”, eu tenho um neto que está engatinhando, ele vai ali, derruba, a coisa dele, mais coisa, ele está mexendo com livro, ter aquele primeiro contato, eu acho isso primordial.
Então o livro, a gente não pode, não é uma coisa, assim, para você excluir as pessoas de ter o contato com aquele livro, os meninos sai daqui da escola: “Seu Helomar, me empresta um livro aí, eu quero uma historinha bíblica”, eu vou lá, empresto, não estou me importando se ele vai trazer ou se não vai trazer, eu quero que ele leia.
Eu estava pesquisando sobre as bibliotecas, parece que uma das primeiras bibliotecas que tinha no mundo foi construída em Alexandria, o tempo de Alexandre, o grande, ela chamava Farmácia da Alma.
A gente come, se alimenta, às vezes fica até obeso, mas a gente nunca se preocupa com a alma da gente, o corpo estando aí, barriguinha cheia e tal, você tomou sua água, está tudo certo, mas a alma também precisa de alimento e esse alimento é um bom livro, é você ver um bom filme, é você ir no museu, é você ir num teatro, eu acho que isso é o alimento da alma.
Você está com tantos problemas, você vê um filme, você liga ali num programa de humor, já mudou totalmente seu espírito, ler um livro ali que você chora, ri, o cara escreveu isso há séculos, você ler uma poesia de Camões, você ver um escrito de Sócrates, de Platão, quando não foi que esses caras escreveram isso e hoje eu estou lendo e estou entendendo, estou me emocionando.
Então é uma coisa extraordinária isso, eu acho que toda a riqueza da vida que eu tenho é o que eu conheci nos livros, como eu lhe disse anteriormente, eu entro num lugar desses é como eu entrar num santuário, numa igreja, não tem diferença.
Numa banca de revistas eu passo horas folheando, compro revista, tal, às vezes eu tenho até que me conter para não gastar muito, eu tenho muita música, tenho um arquivo de música imenso, tenho disco de vinil, fita K-7, CD, DVD, rock, essas coisas.
Eu ouço quando me dá saudade, assim, que eu me lembro dos meus 18 anos, aí coloco uma balada dos Rolling Stones, posso estar com a cabeça quente, do jeito, já saio de dentro do quarto sorrindo, brincando com a minha esposa, aquilo ali também me impulsiona, que meus textos eu escrevo ouvindo música.
P/1 – Você escreve o quê, Helomar?
R – Eu escrevo poesia romântica, crítica social.
P/1 – Você publica?
R – Publico.
P/1 – Aonde você publica?
R – Recanto das Letras.
P/1 – É um jornal?
R – Portal do UOL na internet, só para escritores, lá vocês tem tudo quanto é gênero de texto, aonde for sua praia você entra lá e clica e tem um portal lá que todas as pessoas que participam vêm o seu texto, manda crítica, comenta alguma coisa, se está bom, se está, excelente.
Eu tenho lá, eu tenho um livro que ainda não foi publicado porque eu não quero que o meu livro tenha carimbo do governo, tenha carimbo disso, aquilo outro, eu quero fazer uma coisa independente, mesmo que eu escreva 30 livros, 30 volumes, eu quero escrever independente.
Porque muitas vezes você quer vender, o cara diz: “Ah, isso aqui é patrocinado pelo governo, isso é patrocinado pela Caixa, isso aqui é para dar para o pessoal”, o pessoal tem essa visão, sabe, aí não valoriza o artista e os artistas daqui, como gostam disso, eles não gostam de tirar do próprio bolso: “Vamos lá na empresa fulano de tal, no grupo Orsa” e aí você fica amarrado, aí parece que tira um pouco da naturalidade do seu trabalho.
E isso é muito difícil no Amapá, como tem, aí o livro não emplaca, você vê um carimbo ali de um patrocínio, por exemplo, da Caixa Econômica, o cara não: “Pô, isso aí foi patrocinado, isso aí para dar para o pessoal, que não sei o que”, as pessoas têm essa ideia.
Não sou contra nada o patrocínio, eu sei que a gente tem que chegar em algum lugar, tem que ter parceiro, mas eu quero escrever o meu livro independente, tenho meu dinheiro: “Ah, custa quanto?”, “Dois mil reais”, “Então está aqui, é meu”, agradeço os amigos, aquelas pessoas que me ajudaram, que me orientaram em alguma coisa e só, minha família e só.
Aí eu posso chegar lá e dizer: “Olha, está aqui na banca de revistas, 50 reais o meu livro, se quiser bem, se não quiser”, eu tenho essa opinião assim.
P/1 – Pode falar, vai.
R – Essa poesia aqui eu fiz em dia primeiro de maio, é uma síntese sobre o dia do trabalho, as pessoas comemoram muito, param o dia e tal, feriado, aí eu estava deitado e pensei, ela diz assim: “Primeiro de maio, é de manhã, o barulho da chuva no telhado vem me acordar, é primeiro de maio, feriado, dia do trabalho, não vou trabalhar, vou aproveitar o dia para descansar e desfrutar com esposa e filhos o aconchego do meu lar.
De qualquer maneira, depois de tantas datas como essa, não tenho nada para comemorar, o sujeito sustenta a nação a vida inteira e tudo o que ganha os impostos e a inflação vêm lhe roubar.
Logo depois vem o pior, depois de uma vida derramando suor fica sem uma aposentadoria digna para compensar”, é uma crítica sobre.
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P/1 – Lê mais um para gente?
R – Isso aqui eu escrevi dia dos namorados, faz muito tempo já, é uma das mais lidas lá no portal: “Como dois namorados.
Vamos gostar um do outro, querida, só por hoje simplesmente, sem se importar com a vida e o longo caminho que temos pela frente, como dois namorados, assim vamos viver eternamente, envoltos por tanta ternura, eu cheio de carinho, tu cheia de doçura, dotados de tanta esperança, inocentes como dois passarinhos, felizes como duas crianças”.
P/1 – Que bonito!
R – Que às vezes as pessoas tem um relacionamento, quer acorrentar: “Ó, minha esposa, você não pode fazer isso, você é meu namorado, meu esposo, você não pode fazer isso”, eu acho que o amor é uma coisa mais leve, e eu fiz em relação a isso, como dois passarinhos, que é passarinho, uma criança, criança não se importa, faz aquilo, eu acho que tudo que a gente tem que fazer é assim, como se tivesse brincando.
Aqui tem uma que é mais pesada, crítica social, essa aqui eu fiz em homenagem aos trabalhadores do campo aí, você acredita que ainda tem trabalho escravo.
P/1 – Aqui na região?
R – Na região, então isso aqui eu fiz em cima do sofrimento desses brasileiros, que constroem um império e não tem, ninguém lhe dá valor, são desvalorizados, eu trabalhei com eles muito tempo, é: “Retrato de um brasileiro.
Um brasileiro desce o morro bem cedinho, para o trabalho vai, disfarçando na alma uma miséria que dói, sobrevivendo com salário mínimo, este brasileiro é um herói.
Vai caminhando com cuidado, enfrentando a escuridão, vencendo a ponte cheia de buracos, escapando do pedágio do ladrão para voltar à noite vivo para o barraco.
Vem eleição por cima de eleição, os políticos são eleitos, mas não vem a redenção, o povo é usado como massa de manobra nesse beco sem saída, sem encontrar a libertação, e a nação vivendo sempre oprimida.
Enquanto isso os pais da nação estão nos servindo pedras e nós estamos querendo pão, porque na realidade vivemos num país banhado pela corrupção e o povo segue sem oportunidade e o trabalhador sem crédito e aperreado, compra na taberna fiado e paga tudo super faturado e quando sobra algum dinheiro é fato muito raro.
Sua vida é um desespero e homem honesto deprimido bebe porque trabalha e não chega a lugar nenhum”.
Então essa vida é um círculo, aquela mesma coisa todos os dias e as pessoas construindo e as pessoas enriquecendo em cima do trabalho das pessoas e as pessoas vivendo todo tempo na miséria, se parar de trabalhar um dia não come.
Vai num supermercado desse, se não tiver cartão de crédito não compra, aí ele vai para as pequenas mercearias, que superfaturam o preço para poder ganhar algum, que não tem condição de correr com um supermercado grande, fica o dinheiro do cara lá tudinho.
Compra uma cesta lá na mercearia, dá para ele comprar duas no supermercado, mas nem sempre ele tem aquele dinheiro e às vezes passa até necessidade por isso, essas questões.
Isso aqui na realidade, essa letra eu escrevi para fazer uma letra de um rap, que eu tenho um amigo aí que faz rap.
P/1 – Você tem um amigo rapper?
R – É.
P/1 – E vocês fazem saraus de leitura de poesia também?
R – A gente já fez concurso de poesia, a gente faz todo o aniversário da academia, a gente já fez um evento esse ano agora, dia 22 de junho, que inclusive foi até dia do meu aniversário, fizeram uma homenagem muito grande para mim lá no data show, foto, o que eu fazia, eu declamei algumas poesias, a gente faz aqueles eventos assim, sabe.
P/1 – Helomar, me conta um pouco agora, nesse momento, já com a biblioteca, com todos os seus escritos, qual é o seu sonho?
R – Meu sonho é melhorar cada vez mais isso aqui, é comprar uma televisão moderna, comprar um computador potente para que os alunos possam fazer com mais rapidez os seus trabalhos, onde a gente tenha um espaço maior para guardar nossos arquivos, colocar ventiladores ou ar condicionado, terminar esse pedaço da casa, eu quero fazer os quartos em cima, de sobrado e deixar o espaço maior para biblioteca.
Aí eu quero fazer para cá o quê? Um estúdio de som aonde a pessoa possa também ver filmes, que os professores mandam fazer trabalho em cima de filmes, fazer uma coisa mais especializada, meu sonho é esse.
E poder cada vez mais fazer com que, trabalhar com livros eletrônicos, é muito melhor do que com livro, informatizar a biblioteca completamente, essas coisas, que eu acho que é uma coisa que é um investimento na realidade.
Eu acho que a maior injustiça que pode haver no ser humano é você como autoridade, como cidadão, negar a uma pessoa o direito de ler, aprender a ler e escrever, eu acho que é a maior injustiça, é como se fosse um aborto, no meu modo de ver.
E essas coisas assim a gente valoriza porque eu encontro, eu sou uma pessoa que eu tenho, como eu lhe disse, eu tenho só o ensino fundamental, mas eu sou chamado de professor: “Professor, quando é que vai ter o curso de arte? Professor, e a nossa biblioteca?”, é assim.
Teve um incêndio aqui há uns três anos atrás, então há uns dois ou três anos teve um incêndio aí, aqui, muito grande, muitas pessoas ficaram assustadas, mudaram-se daqui.
Eu tinha umas coisas velhas aí, eu juntei num carro para jogar no lixo, monitor de televisão, teclado velho, essas coisas, muita gente que faz doações aqui, mas só dá o que não presta, aí eu vou acumulando aquilo dentro de casa, nesse dia eu resolvi jogar no lixo.
Aí eu ia na metade da passarela aqui, o pessoal me encontrou: “Helomar, não faça isso, pelo amor de Deus”, eu pensei até que era alguma coisa: “Até o senhor vai nos deixar aqui”, aí eu fiquei: “Mas por quê?”, “Não, e a biblioteca, como é que nós vamos fazer com a biblioteca lá? Que o senhor vai embora”, eu digo: “Não, minha filha, eu não vou embora”, uma criança: “Eu não vou embora, eu vou só jogar isso aqui ali na lixeira”, “Ah, sim, eu pensei que o senhor ia embora”.
Para você ver a importância, isso aí, a educação, a cultura, é o único antídoto para livrar o pessoal da miséria, violência, eu estava dizendo isso, que eu sou conselheiro de segurança comunitária também, sou convidado para reuniões.
Eu falei isso para o comandante da Polícia Militar: “O senhor quer acabar com a violência sem dar um tiro, sem gastar um litro de gasolina, sem estar colocando soldado na rua?”, aí ele ficou olhando para mim assim: “Eu quero”, “Diga para o seu governador botar mais educação, botar mais cultura, faça um teatro em Laranjal do Jari, uma biblioteca decente em cada bairro, faça uma praça em cada bairro, incentive o esporte, o vôlei, o basquete, que eu duvido que esses meninos aí vão querer estar correndo atrás da polícia, estar roubando celular, é lógico que isso aí que eles fazem não é certo, mas, pô, não tem, eles olham para o lado, para o outro, não tem outra coisa para fazer”.
E se você botar um teatro, uma escola de música, duvido que essas crianças vão querer estar correndo na frente da polícia, para ele aprender a tocar um violão, a tocar um teclado, a dançar, fazer alguma coisa, então é, as pessoas não veem isso.
Você vê o investimento do PIB, parece que, se eu não estou enganado, o Brasil investe quatro por cento, países do primeiro mundo é seis, sete, dez por cento, e o Brasil tem dinheiro, o Brasil tem investido muito na educação, o problema do Brasil é a administração desse dinheiro, que o dinheiro é solto, ninguém quer saber nem o que vai se fazer, e há muita maquiagem, o pessoal maquiam as coisas nas prefeituras, desviam o dinheiro para outro lugar.
Tem, eu concordo que se, agora tem o pré-sal, eles querem doar até dez por cento do PIB, mas não vai adiantar nadinha se não tiver fiscalização, se as pessoas que roubam o dinheiro da merenda escolar, da escola, do projeto da escola, não forem para cadeia.
P/1 – Com certeza.
Helomar, eu só queria finalizar falando um pouco da sua família, você recasou e você teve mais filhos?
R – Eu tive mais uma filha, que a Maria tem, a minha mulher atual, tenho duas filhas com ela, tem 17 anos juntos já.
P/1 – E as suas filhas tem que idade?
R – A minha filha, tem uma que vai fazer 16 agora e tem uma com 17.
P/1 – E aí, elas gostam de ler?
R – Gostam, escrevem, ensinei elas a pintarem também, mas elas não se interessam muito, não.
P/1 – Pela leitura se interessam?
R – As minhas músicas também quero, às vezes eu fui até radical, elas querem ouvir esses negócio das músicas da moda, negócio de Michel Teló, essas coisas, digo: “Isso aqui vocês não colocam no meu DVD se não você vai travar meu aparelho”.
Pô, o cara ouvir Chico Buarque, cara, Djavan, Beatles, Rolling Stones, o cara vir com Michel Teló, nada contra, mas pelo amor de Deus, é uma coisa abominável para mim, não sou nada contra quem houve esse sertanejo aí, essas coisas também que fizeram, o soul tem uma história tão bonita, agora veio essa Lady Gaga, essa tal de Beyoncé, pô, comparado com Diana Ross, uma Aretha Franklin, meu Deus do céu!
P/1 – É verdade.
R – Canta uma, canta, ninguém sabe, aparece o sertanejo, pagode: “Quem é que está cantando, é o Exaltasamba”, “Não é o”, “Mas é parecido”, “Quem é, o Zezé de Camargo e Luciano e Chitãozinho e o Xororó?”, tudo, sabe, uma mesmice que dá dor de cabeça.
P/1 – É verdade.
Mas as suas filhas estão estudando?
R – Estão, elas estão terminando o ensino médio.
P/1 – E você acha que elas vão para faculdade?
R – Eu queria já que tivesse uma aqui, para elas irem, meu desejo é esse, também não posso forçar elas a, eu vejo tanta gente que tem faculdade e vive frustrado, eu quero que as minhas filhas sejam felizes, é só o que eu quero.
P/1 – Os seus outros que estão lá no Maranhão você tem contato?
R – Tenho, eles trabalham para o Suriname também.
P/1 – Estão no Suriname?
R – Estão no Suriname.
P/1 – Escolhe para mim, Helomar, uma frase de todas essas que você botou aí para gente deixar registrado para quem for ler o seu depoimento.
Qual você, de todas, acha mais importante?
R – Eu acho que no momento atual que nós estamos vivendo, tem uma do Napoleão Bonaparte e essa do Thomas Edison, o homem que inventou a lâmpada, mas eu fico com essa do Thomas Edison: “Inquietação e descontentamento são as primeiras necessidades para o progresso” e as pessoas querem amordaçar as pessoas que vão protestar, que vão.
Eu não sei, talvez porque eu não sou político, mas se eu fosse um político, as críticas é que constroem, as críticas construtivas, inconscientemente essas pessoas que estão protestando estão ensinando o governo a governar, então se eles fossem inteligentes era assim, era nessa questão.
E a gente diz assim, que quando a gente critica existem dois tipos de pessoa, o tolo e o sábio, quando o sábio recebe a crítica ele agradece e o tolo se aborrece.
P/1 – Exatamente, é isso aí, falou, Helomar, muito obrigada.
FINAL DA ENTREVISTA
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