P/1 - Paulo, você pode falar seu nome completo, local e data de nascimento.
R - Meu nome é Paulo Simões de Almeida Pina. Nasci em São Paulo, na capital, no bairro do Belém, em 28 de outubro de 1963.
P/1 - Seus pais são de São Paulo?
R - Não, meus pais são migrantes. Eles vieram da Bahia, mas se conheceram aqui em São Paulo.
P/1 - Os dois vieram da Bahia?
R - Os dois, só que de cidades diferentes. Minha mãe veio de uma cidade chamada Santa Bárbara e meu pai veio de outra cidade no interior da Bahia que eu não sei. Talvez eu lembre. Não lembro. Meu pai já faleceu e eu tive muito pouco contato com ele, porque eles se separaram quando eu era criança. Na verdade, eu acabei ficando com a minha mãe.
P/1 - Eles se conheceram aqui em São Paulo. Como eles se conheceram?
R - Eles se conheceram em São Paulo. Porque foi o seguinte. É uma história muito comprida e eu vou tentar resumir.
P/1 - Pode contar.
R - Minha avó, ela tinha seis filhos e quando ela estava grávida do último filho o marido dela faleceu. Morreu. E eles eram donos de duas fazendas no interior da Bahia. Uma mulher sozinha com seis filhos pequenos e com um na barriga. O irmão dela chegou e falou para ela: “Olha, ou você vende a sua propriedade ou você case-se de novo, porque você não pode sozinha administrar isso”. Aí ela falou assim: “Casar, novamente, eu não vou casar. Não quero casar novamente”. E ele falou: “Então você venda a sua propriedade”. Ela falou assim: “Não vou vender a propriedade”. Aí ela contava que ele mandava cercar as terras durante o dia e a noite eles roubavam a cerca. Então foi indo e ela foi obrigada a vender as terras e ir para a cidade mais próxima que era Feira de Santana. Lá, ela comprou seis casas, mas a situação ficou muito difícil porque não havia emprego. Então o filho mais velho, que já era um adolescente veio para São Paulo e voltou para lá e falou assim:...
Continuar leituraP/1 - Paulo, você pode falar seu nome completo, local e data de nascimento.
R - Meu nome é Paulo Simões de Almeida Pina. Nasci em São Paulo, na capital, no bairro do Belém, em 28 de outubro de 1963.
P/1 - Seus pais são de São Paulo?
R - Não, meus pais são migrantes. Eles vieram da Bahia, mas se conheceram aqui em São Paulo.
P/1 - Os dois vieram da Bahia?
R - Os dois, só que de cidades diferentes. Minha mãe veio de uma cidade chamada Santa Bárbara e meu pai veio de outra cidade no interior da Bahia que eu não sei. Talvez eu lembre. Não lembro. Meu pai já faleceu e eu tive muito pouco contato com ele, porque eles se separaram quando eu era criança. Na verdade, eu acabei ficando com a minha mãe.
P/1 - Eles se conheceram aqui em São Paulo. Como eles se conheceram?
R - Eles se conheceram em São Paulo. Porque foi o seguinte. É uma história muito comprida e eu vou tentar resumir.
P/1 - Pode contar.
R - Minha avó, ela tinha seis filhos e quando ela estava grávida do último filho o marido dela faleceu. Morreu. E eles eram donos de duas fazendas no interior da Bahia. Uma mulher sozinha com seis filhos pequenos e com um na barriga. O irmão dela chegou e falou para ela: “Olha, ou você vende a sua propriedade ou você case-se de novo, porque você não pode sozinha administrar isso”. Aí ela falou assim: “Casar, novamente, eu não vou casar. Não quero casar novamente”. E ele falou: “Então você venda a sua propriedade”. Ela falou assim: “Não vou vender a propriedade”. Aí ela contava que ele mandava cercar as terras durante o dia e a noite eles roubavam a cerca. Então foi indo e ela foi obrigada a vender as terras e ir para a cidade mais próxima que era Feira de Santana. Lá, ela comprou seis casas, mas a situação ficou muito difícil porque não havia emprego. Então o filho mais velho, que já era um adolescente veio para São Paulo e voltou para lá e falou assim: “Olha, São Paulo é uma cidade muito grande, maravilhosa e não sei o quê. Já arranjei trabalho lá. Tenho trabalho lá. Comprei inclusive uma casa para a gente. Então, vamos com todos os meninos para lá, que lá com certeza vai ter trabalho para eles e eles vão conseguir viver bem. Quando eles chegaram, ele falou para minha avó: “A casa... eu estou reformando a casa, então a gente vai ficar numa pensão. A senhora fica aqui e eu vou lá pra casa para terminar. Limpar, porque teve a tal reforma e eu volto”. Para isso aí, ele pegou o dinheiro da minha avó e foi para a casa. Ele nunca mais voltou. Ele deve ter fugido com o dinheiro e deixado minha avó sozinha com seis crianças numa pensão em São Paulo. Aqui. Acredito que tenha sido no bairro da Lapa isso. Essa pensão. Aí minha avó viu que ele não voltava e ela sozinha. Então ela começou a trabalhar, foi trabalhar como empregada doméstica e depois arranjou emprego numa fábrica e assim os filhos dela também. Minha avó era uma pessoa muito culta para a época dela. Ela tocava piano, tocava flauta, ela lia muito. Enquanto, a geração da minha mãe já tem essa cultura bem de fábrica, bem de migrante. Migrante vindo com poucas condições. Então,, na minha família, sempre teve essa distância. Minha avó por um lado cultivava muito a gente, lia para a gente, brincava com a gente, dava muita informação para a gente e minha mãe representava meio o mundo do trabalho, o mundo do fazer, da coisa braçal. Enfim, eram duas coisas bem diferentes. E às vezes, isso criava conflitos. Então, mais ou menos a história é essa. Minha mãe também casou e teve seis filhos. Eu sou o filho caçula. Teve que trabalhar, porque ela se separou do meu pai.
P/1 - Eles vieram e como eles foram parar no Belém?
R - Porque quando minha mãe casou... A família dela morava no bairro da Lapa, a adolescência e juventude da minha mãe foi no bairro da Lapa. Quando ela se casou com meu pai, ela mudou para o extremo leste da cidade. Eu acho que era Ermelino Matarazzo, se eu não me engano. Porque, na verdade ela se casou a contragosto da minha avó. Acho que tem uma questão racial aí no meio, porque o meu pai era negro, e minha mãe não. Então, por isso eu acho que minha mãe se casou a contragosto. São coisas que na família nunca são realmente ditas. Mas minha mãe se casou com meu pai. Eles tinham pouquíssimas posses. Minha avó não queria o casamento e minha mãe foi morar no extremo leste da cidade, depois de Ermelino Matarazzo, eles passaram a morar perto da Penha, num bairro chamado Vila Esperança. Que é a Vila Esperança do Adoniran, que ele fala do primeiro carnaval. Esse bairro. Na verdade, todos os meus irmãos nasceram... tiveram partos em casa com parteira. Eu, por ser o último, fui o único que nasci num hospital, que foi no São José de Belém. Por isso que eu nasci no bairro do Belém. Mas na verdade, a gente morava na Penha, na Vila Esperança.
P/1 - E você lembra quantos anos você morou nesse lugar?
R - Meus pais não tinham casa própria, então a gente alugava casas. Então, a gente mudou muito, mas sempre nessa região. Eu não me lembro de ter morado na Vila Esperança. Morava na Vila Matilde.
P/1 - É dessa casa que você lembra mais? A da Vila Matilde?
R - É, primeira casa que eu lembro. Era uma casa... na verdade era uma casa na frente e tinham outras duas famílias que moravam na casa do fundo. Duas casas no fundo. Tudo era muito precário. No início... É uma coisa hoje que é meio absurda de se falar. Por exemplo, o banheiro. Havia um banheiro que era para ser dividido entre duas casas, ele era fora da residência. Hoje, a gente não consegue imaginar como as pessoas viviam. Quer dizer, hoje ainda existe muita gente que vive precariamente, mas aquilo era São Paulo. Eu lembro dessa casa. Era uma casa... Uma coisa que eu lembro, era essa coisa de conviver com outras famílias. Tudo era muito comunidade assim e a gente tinha muitos bichos. Então, nós éramos seis crianças. A gente tinha cachorro, tinha gato, tinha papagaio. Minha mãe criava galinha. Não sei se era minha mãe ou os vizinhos que criavam galinhas e pintinhos. Foi uma infância muito cheia de coisas. Eu brincava muito com meus irmãos, com os meninos da rua. Nessa época, as ruas não eram asfaltadas ainda. Tinha muitas festas que a rua organizava, os moradores da rua organizavam. No São João, por exemplo, eu lembro daquele frio e das fogueiras em frente às casas. Das brincadeiras. Enfim, era outro tipo de convivência. Era uma casa simples, talvez uma das mais feias do bairro. Feias, no sentido de mais precárias. Mas, era aonde a gente vivia assim. No início, meus pais moravam juntos e separaram quando eu tinha mais ou menos sete anos.
P/ 1- E vocês já estavam nessa casa da Vila Matilde?
R - Já estávamos nessa casa.
P/1 - E depois que eles se separaram, continuou morando lá?
R - Moramos lá por um tempo e quando era adolescente mais ou menos, pré adolescente, treze, doze anos, nós nos mudamos para a rua de baixo. Era uma casa bem menor. Também era uma casa que tinha no outro quintal, outra casa. Minha avó, foi o seguinte... ela passou a morar conosco depois que o meu pai se separou da minha mãe. Minha avó passou a morar com a gente. Então, na verdade, quem me criou assim, quem ficava o dia, passava o dia comigo, porque eu era o mais jovem, era a minha avó. Porque minha mãe tinha que sair para trabalhar, voltava à tarde. À vezes, minha mãe trabalhava, inclusive final de semana. Então minha avó ficava comigo. Eu tenho uma relação... na verdade, em termos de formação, a minha avó foi muito importante para mim. Bastante importante. Talvez ela, não sei. Foi ela, a responsável pelo meu hábito de leitura. Por eu gostar de ler, por eu gostar de livros, por eu gostar... eu não toco nada, mas gosto muito de música. Na verdade, ela queria muito que eu virasse pianista ou que fosse estudar música. Só que nesse sentido, havia um atrito dela com a minha mãe. Minha mãe não queria esse tipo de coisa, nunca estimulou isso na gente, porque ela sabia que a gente precisava sobreviver e trabalhar. E ela sabia que coisa da música talvez não fosse, na cabeça dela de trabalhadora braçal, não seria um bom futuro para a gente. Então, enquanto minha avó estimulava isso, minha mãe estimulava o trabalho e o trabalho mais tradicional. Então, era assim.
P/1 - Com quantos anos você entrou na escola?
R - Eu entrei na escola mais cedo. Eu entrei na escola com seis anos, não sei por quê. Mas aos seis anos. Eu faço aniversário em outubro. Então, eu fiz cinco anos no outubro seguinte e aí já entrei na escola. Então, eu sempre estava adiantado com relação aos meus colegas. Enquanto eles tinham sete eu tinha seis, foi sempre assim. Eu estudei numa escola chamada João Pinheiro que era perto de casa.
P/1- Escola estadual?
R - Escola municipal.
P/1- Você ia a pé?
R - Ia a pé. Minha irmã... Porque era o seguinte, como era o filho mais novo, eu via meus irmãos todos irem para a escola, eu ficava pensando assim: “Putz, a escola deve ser um lugar super legal, porque todo mundo vai e eu nunca posso ir”. Isso, antes de eu entrar na escola. Eu não via a hora de ir para a escola, porque para mim era legal. Eles iam e ficavam lá e eu não sabia. Eu ficava em casa e brincava com os meninos da rua, mas eu falava que a escola devia ser um lugar super legal. Eu queria ir para a escola. Talvez, muito por isso, minha mãe tenha me levado mais cedo para a escola, porque eu ficava infernizando. Na verdade, eu queria ir para a escola com meus irmãos. Eu gostava de ir para a escola, é interessante. Eu ia para a escola, mas eu não sabia para que a escola servia. Eu acho que eu só fui me dar conta pra quê a escola servia quando já estava na quinta ou sexta série. Eu ia para a escola porque todo mundo ia para a escola. Eu gostava. Era um bom aluno, ótimo aluno inclusive. Mas eu não sabia para o que tudo aquilo ia servir no futuro. Não tinha uma ligação para mim. É interessante.
P/1 - O que te marcou mais na escola? Do que você gostava?
R - Olha, a coisa que mais me marcou na minha vida: foi o primeiro dia que eu tive aula de inglês na quinta série. Porque a professora chegou falando uma língua diferente. Eu achei aquilo muito estimulante, muito instigante. Saber que em outros lugares falavam de outras maneiras, eu não tinha essa noção. E para mim, na quinta série, eu tinha nove anos de idade. Isso foi para mim, na escola, uma das coisas que mais me marcou. Outra coisa que me marcou profundamente, mas aí num sentido mais... Eu sempre fui um ótimo aluno, sempre tirava as melhores notas, até que eu fui aprender álgebra. E aí, eu descobri que as letras substituíam números, mas eu não conseguia entender como uma letra podia substituir um número. Eu tive muita dificuldade. Talvez o professor não tivesse conseguido me explicar, mas eu tive muita dificuldade nos primeiros tempos com a matemática, quando a matemática se tornou essa coisa mais abstrata. Isso também me marcou bastante. Essa coisa de você imaginar, de calcular um círculo. Para mim aquilo era muito abstrato. Eu não conseguia entender muito bem, mas mesmo assim eu conseguia boas notas, porque eu estudava bastante. Essas são as lembranças que eu tenho que me marcaram mais na escola.
P/1 - E a sua juventude? Você já tinha trocado de bairro.
R - A gente continuou morando… Toda a minha juventude, eu morei nessas duas ruas do bairro, da Vila Matilde. Que era uma rua que descia e uma rua perpendicular.
P/1 - Você passeava? Você já tinha ido a algum museu?
R - Não. Para dizer a verdade, eu passeava com a escola. A gente ia ao zoológico. A gente ia aos parques. Eu me lembro da gente ir à fábrica da Coca-Cola uma vez. Eu não lembro museus na minha infância. Para falar a verdade eu fui entrar num museu de arte pela primeira vez no Museu Lasar Segall, onde eu trabalho até hoje.
P/1 - Você entrou para começar a trabalhar ou não?
R - Para começar a trabalhar, não tinha entrado em nenhum museu. E foi a primeira vez que eu fui ao museu. Eu acho que em São Paulo, nessa época não havia muitos museus. Na década de 1970, que foi quando eu fiz a minha formação, ou não havia muitos museus ou não havia o hábito de ir aos museus. A escola também não levava. A minha família, como eu disse, era uma família super proletária e a minha avó, que já tinha outro tipo de refinamento cultural, mas mesmo assim os museus não faziam parte do repertório cultural dela. Ah, não! Talvez eu tenha ido ao MASP, quando eu estava na universidade. Comecei a trabalhar no Museu Segall, logo depois que eu saí da universidade. Eu fui ao MASP, não para ver exposição. Eu fui ao MASP ver filmes da mostra de cinemas que eram no auditório do MASP. Eu fui ao MASP. Eu sabia que era museu, mas eu tinha ido à exposição.
P/1 - Na adolescência você continua nesse bairro? Como foi a adolescência? Como era a Vila Matilde nessa época?
R - A Vila Matilde passou por muitas transformações. Como eu falei, no início as ruas eram de terra ainda. Eu lembro que eu brincava muito. Jogava muita bola na rua. Brincava de esconde-esconde com os amigos. Tinha os amigos da escola que moravam todos ali por perto e tinha outros amigos da rua que não estudavam na mesma escola, mas eram colegas. Então a gente… Eu me lembro de brincar bastante. Isso, da minha infância. Na minha adolescência, eu meio que me fechei, eu passei a não mais... Os amigos ficaram mais os da escola do que os da rua, e mesmo dos colegas de escola eu comecei a evitar. Porque começou uma coisa muito interessante, eles começaram a freqüentar os bailinhos. Então, tinha um salão de bailes, famoso lá no bairro onde eu morava e eu não gostava daquilo. Eu não me identificava com aquilo. De ir lá e ficar. Eu fui me afastando dos colegas, dos amigos. Mas isso foi por um curto período, porque logo quando eu fui fazer o segundo grau, colegial que nós chamávamos na época eu conheci uma garota chamada Neide, que foi muito importante na minha vida. Eu era muito fechado no segundo grau. Ah. Aos quinze anos eu fui trabalhar, foi meu primeiro emprego.
P/1- Onde foi?
R - Foi no Banco Francês e Brasileiro, na seguradora do banco. Foi meu irmão mais velho que me levou para fazer entrevista nos bancos e ele. Aí eu fui trabalhar como Office-boy, na época. O lugar de trabalho era na Barão de Itapetininga, esquina com a Praça da República. Foi lá meu primeiro emprego. Eu fiz o primeiro colegial pela manhã e o segundo colegial, ou seja, eu tinha quinze anos eu fui estudar no período noturno. Trabalhava o dia todo, ajudava em casa porque precisava ajudar em casa. Eu ainda estava na adolescência.
P/1 - Já namorava? Já tinha namorada?
R - Já tinha tido namoradinhas, mas nada muito sério. Nada muito sério. Aí eu conheci a noite. Eu estudava a noite e conheci uma garota que não sei por que ela se interessou por mim.
P/1 - A Neide.
R - Isso. Deixa ver se eu lembro. Tem alguma coisa a ver com música. Ah, a gente conversando ela falou assim: “O que você faz no final de semana?”. Eu falei: “Eu estudo, leio. Passo minhas lições a limpo” - porque eu copiava tudo rapidinho, para poder ir mais rápido - “e depois eu passo a limpo e tal e dou uma estudada, mas não faço nada de especial”. E eu acho que ela já tinha ouvido eu falar com alguém que eu gostava do Chico Buarque. Foi por isso. Ela levou, naquele tempo era vinil, grande assim e ela levou a capa de um disco do Chico Buarque e nós começamos a conversar. E ela começou a saber o que eu fazia e ela falou assim: “Eu faço parte de um grupo de teatro aqui na Vila Carrão. Você não quer ir lá?”. Eu falei assim: “Você vai para minha casa domingo à tarde, sei lá e a gente vai ao grupo de teatro”. Eu gostava muito de teatro. Não sei. Um dos meus irmãos, ele ia ver as peças. Tinha essas campanhas de popularização do teatro que você conseguia entrada por baixo preço e o meu irmão estimulou essa idéia do gosto pelo teatro. E os professores falavam também em teatro nas aulas de português e eu me interessei por teatro. E como ela falou do grupo de teatro amador. Interessante. Eu posso saber como se faz o teatro e eu fui. E lá eu conheci um grupo de pessoas que são meus amigos até hoje. Eu conheci uma família, cujo pai era bombeiro e tinha feito parte do Partido Comunista e estava engradado pela Lei de Segurança Nacional. Então ele tinha sido expulso da corporação e ele fazia bicos, ele fazia pintura, essas coisas. E os filhos participavam do grupo de teatro e nos formamos um grupo de pessoas assim. E esse grupo era justamente de adolescentes, que eram diferentes daqueles adolescentes que iam para o bailinho. A gente lia, a gente escutava música, a gente estudava política no final da ditadura. A gente não podia discutir muito abertamente e efusivamente porque ainda tinha repressão. E foi com esse grupo que eu fiz amizades e nós discutíamos. Nós estudávamos. E eu prestei vestibular quando eu tinha dezessete anos. E passei.
P/1 - Prestou o quê?
R - Eu prestei para comunicações. Eu queria ser jornalista. Nessa época, a Escola de Comunicação e Artes da USP. Eu não podia pagar faculdade e eu não pude fazer cursinho porque eu não tinha dinheiro. Então o que eu fiz? Eu trabalhei dos quinze aos dezesseis anos como office boy nessa empresa. Aí, eu decidi. Eu fiquei uma noite sem dormir porque meu dinheiro era importante em casa. Tomei coragem e falei assim para minha mãe: “Eu quero ir para a universidade e fazer faculdade. Eu não posso pagar, então eu quero ficar sem trabalhar para eu poder estudar sozinho”. Eu achei que minha mãe fosse fazer um escândalo, mas ela falou: “Tudo bem, você para de trabalhar. Você não gosta mesmo”. Eu detestava o lugar onde eu trabalhava. Aí eu parei de trabalhar nesse ano. Dos quinze aos dezesseis, eu trabalhei nesse banco. Dos dezesseis aos dezessete, eu fiquei em casa estudando. E o gozado que, como eu estava em casa, a maioria das mães da rua me chamava para dar aulas particulares para os filhos, porque estavam tendo dificuldades e tal. E aí eu comecei a fazer uma graninha dando essas aulas particulares. Eu aproveitava e estudava, revia toda a matéria. Eram coisas de séries anteriores que eu já não via mais. E foi assim que eu prestei vestibular para comunicações. Nessa época, a Escola de Comunicações e Artes era tudo junto. Você prestava vestibular para comunicações, tinha dois anos básicos e depois você escolhia se você queria ir para turismo, jornalismo, para biblioteconomia, para relações públicas. Qual o outro curso? Publicidade. E a minha intenção era ser jornalista. Aí eu fui fazendo curso, mas o país vivia uma crise grande nessa época. Aí já era final do governo militar, Figueiredo. Uma grande crise de desemprego, tinha muito jornalista desempregado e eu morria. Eu sempre tive essa cultura de proletário.
P/1 - Mas você quando entrou na faculdade você voltou a trabalhar?
R - Voltei a fazer estágio. Quer dizer, espera aí... Nesse primeiro ano de faculdade, não trabalhei. Dos dezessete aos dezoito, eu não trabalhei. Eu fui morar no CRUSP, na moradia estudantil da USP, que nessa época estava sendo retomada pelos estudantes. Os prédios eram invadidos e nós acampávamos na frente do prédio. Porque o seguinte, o CRUSP foi fechado depois de 1968 pela ditadura militar porque, segundo eles diziam, era um foco de subversão. Então eles esvaziaram, evacuaram toda moradia estudantil e os blocos ficaram lá abandonados por anos e anos. Na minha época, que foi a época da redemocratização. O último governo militar, que foi o Figueiredo, foi muito mais brando em termos da repressão e tal. Já havia a sinalização de que os militares iam deixar o poder. Então, eu acho que o movimento social impulsionou muito essas mudanças e também cresceu com esse arrefecimento da ditadura. Então, só estudantes começaram a retomar espaços que tinham sido tirados deles. E a moradia estudantil era uma delas. Então eu fui morar no CRUSP, no bloco F aos dezessete anos, assim que eu entrei na universidade. Então, eu não pagava moradia, eu não precisava ter essa grana para me locomover para lá e para cá para estudar. Eu morava na USP. Aí eu consegui com as assistentes sociais uma bolsa de alimentação integral. Ou seja, eu almoçava e jantava no bandejão do CRUSP. Então, relativamente eu precisava de pouquíssimo dinheiro para mim, para sobreviver. Minha mãe, nessa época, ainda trabalhava, então ela segurava a onda em casa e eu fiquei nesse primeiro ano só estudando. Aí, também teve uma professora muito importante na minha vida no segundo grau, que era uma professora de história, a Maria Aparecida Aquino. Hoje ela vive na TV, fazendo comentários. Ela faz pesquisa sobre repressão e não sei quê. E ela foi minha professora na escola estadual, onde eu estudei quando era criança. Era professora de História e eu comecei a me apaixonar por História. Eu e essa amiga Neide, que me apresentou todos os amigos. Nós nos apaixonamos, nós discutíamos História. Nesse grupo de teatro nós também discutíamos história. Naquela época você podia prestar quanto vestibular você quisesse e estudar em quantas faculdades você quisesse. Então eu prestei o primeiro ano para a ECA, entrei. No segundo ano, eu prestei para História e entrei para História em 1981. E comecei a fazer os dois cursos ao mesmo tempo, fazia ECA a noite e fazia História a tarde. Mas aí eu já tinha decidido que eu ia fazer biblioteconomia, por conta dessa história do desemprego. Biblioteconomia era um curso que tinha pouquíssima gente interessada, era emprego certo. Qualidade de ensino, nós éramos cinco estudantes na classe. Nós tínhamos contato com os professores diretamente, ao contrário do que acontecia na História. Quando eu entrei, tive um choque nos primeiros dias.
P/1 - Aí você entrou. Você estava na ECA, prestou História e depois prestou biblioteconomia?
R - Não. Eu já estava fazendo curso na ECA, como eu disse. Era curso básico. Eu ia ter que optar.
P/1 - Biblioteconomia fazia parte da ECA?
R- Fazia parte da ECA. Biblioteconomia era um dos cursos dessa grande grade de comunicações e aí eu optei pela biblioteconomia. Ao contrário da ECA, onde você tinha uma coisa nada acadêmica. Era muito próxima com os professores, uma discussão muito mais verdadeira, muito mais intelectualizada. Eu levei um choque na história porque eram... Primeiro, que os professores ficavam em cima de um tablado, para mim aquilo era uma coisa nova. Falavam. Falavam, falavam a aula toda e só no final eles abríam para perguntas, então era uma coisa. A classe tinha setenta alunos, cento e cinqüenta alunos que eles dividiam em duas classes de setenta alunos. Então você era um número na História. Sentia-me na História como um número e na ECA não, sentia-me Paulo, porque todo mundo me conhecia. Os professores me conheciam e foi assim. Tanto é, que eu terminei o curso de biblioteconomia no tempo certo. Nos quatro anos e o curso de história eu estendi por sete anos e acabei não acabando. Acabei não me graduando em história, mas história ainda é uma coisa que eu gosto muito.
P/1 - Quando você foi para o Lasar Segall?
R - Aí eu comecei a fazer estágio. Fiz estágio no IPT, lá dentro da USP. Meu primeiro estágio que eu fiz, foi numa firma de engenharia. Na biblioteca dessa firma de engenharia, mas também não gostei. Aí fui fazer estágio no IPT. Então, eu trabalhava de manhã no IPT, fazia história a tarde e fazia biblioteconomia a noite. Minha vida era na USP, o tempo todo, só saía da USP nos finais de semana que aí eu ia para casa da minha mãe. Poucas vezes eu ficava no CRUSP nos finais de semana. Também porque não havia nada para fazer na USP nos finais de semana e o restaurante universitário fechava. Então eu ia para casa. A maioria das pessoas que moravam no CRUSP ia para casa. Como eu cheguei ao Lasar Segall? Depois de ter trabalhado no IPT eu fui trabalhar na ECA, justamente.
P/1 - Você nunca tinha ido ao museu.
R - Não. Eu fui trabalhar na ECA na fonoteca da ECA. Meu trabalho era com música, porque havia um acervo de discos de música erudita, jazz, popular e não sei o quê para os alunos da escola de música que também pertencia a ECA. E eles precisavam de alguém que gravasse os vinis em cassete porque se você emprestasse o vinil voltava todo riscado. Então o que eles faziam: guardava o vinil, reproduzia o vinil na fita cassete para emprestar o cassete para os alunos, se o cassete estragasse era só regravar de novo. Esse era o meu trabalho. Então eu passava o dia inteiro gravando discos para fitas cassete, que era para mim maravilhoso, era um trabalho que eu sempre quis. Aí eu fiquei dois anos nesse trabalho. Lembro que teve uma greve grande na USP e depois dessa greve - eu até fui bastante ativo na greve e aí resolvi sair da ECA - aí fui trabalhar com geologia na Sociedade Brasileira de Geologia para editar, para ajudar a editar a revista brasileira de geologia. Outra coisa completamente diferente. Aí, quando eu estava nesse estágio e era meu último ano de faculdade, liga uma professora para mim e fala assim: “Olha, tem uma vaga”. Eu já estava começando a me desesperar porque eu ia me formar, não ia mais poder fazer estágio. O trabalho na SBG, Sociedade Brasileira de Geologia, era um trabalho que eu sabia que não ia ficar muito tempo, e eu comecei a falar para as pessoas porque eu estava meio desesperado para arranjar um emprego na área. O Brasil com uma crise, era o começo daquela onda inflacionária, tinha muito desemprego. Aí tudo bem. Eu estava trabalhando na SBG, aí liga uma professora e falou assim: “Tem uma vaga no museu Lasar Segall. Só que é um emprego de meio período, quatro horas. Você está a fim de fazer uma entrevista? Eu falei que sim, eu vou lá. Era final do ano, estava começando a primavera, lá para setembro, outubro por aí. Aí eu fui fazer a entrevista, eu lembro. Eu não sabia onde era o Museu Lasar Segall. Ela perguntou: “Você sabe aonde é?” Eu falei sei. Bom, se eu não souber, eu procuro, mas eu não vou dispensar essa vaga. Eu falei que sabia aonde era. “Então tá, você liga para marcar hora”. E ela me deu o telefone, eu liguei para a bibliotecária, marquei o endereço, peguei no guia e fui lá. Eu lembro que era uma tarde muito bonita, tinha chovido e então tinha um cheiro na rua de chuva e não sei quê. Mas eu lembro uma coisa que me marcou no museu foi o seguinte, quando eu pus o pé dentro do museu, eu senti o cheiro do museu. A madeira. Não sei se era madeira ou eram as coisas lá velhas, mas eu falei que era ali que eu queria trabalhar, pelo cheiro do lugar. Eu fiquei fascinado, porque o museu era muito diferente do que é hoje. O museu era muito... Você entrava pela Rua Afonso Celso e a direita já tinha uma porta de vidro que era a biblioteca. O chão era preto. As paredes brancas ou beges, talvez. Ou brancas há muito tempo sem pintar. Em seguida, a sala de exposição. A direita tinha muitos armários de coisas que eu acho que ainda eram resquícios. Porque lá era a casa do Segall. Era uma coisa entulhada. O museu era um lugar entulhado de coisas.
P/1- Foi a primeira vez que você entrou num museu?
R- Foi a primeira vez que eu entrei num museu e eu adorei. Eu adorei aquela coisa.
P/1 - Vamos parar um pouquinho. Aí você adorou?
R - Adorei primeiro porque sabe o quê? Eu acho que o museu, o cheiro do museu me lembrou do teatro. Lembrou-me aquele palco vazio. Aquele cheiro de palco vazio que eu tinha. Quando eu fiz teatro amador na minha adolescência. Então aquilo tudo me remeteu ao bastidor, ao palco do teatro. E eu adorei aquilo. E por sinal, a biblioteca era especializada em teatro. A biblioteca do Museu Lasar Segall é especializada em teatro e cinema. Então para mim tudo aquilo foi como se eu tivesse achado meu lugar. Eu falei assim: “É aqui que eu quero trabalhar”. Aí fiz a entrevista, fiquei super feliz, mas eu falei assim: “Acho que não vai dar. Acho que eles não vão me chamar”. Aí um dia eu estava... não sei como eu recebi a notícia de que eu tinha sido contratado. Alguém me deu o recado, que tinham ligado para mim, dizendo que eu tinha sido escolhido para trabalhar no museu e que era para eu estar no dia tal, a tal hora e levar meus documentos que eu ia ser contratado. E que nesse mesmo dia ia ser a festa de confraternização dos funcionários. Eu era super tímido. Eu falei: “Putz, ai meu Deus. Eu já vou para uma festa assim”. É complicado. Mas eu fiquei super feliz. Eu lembro que eu pulava de alegria quando eu soube que ia trabalhar no museu. Aí fui à biblioteca da ECA e a atendente da biblioteca era uma colega de turma de biblioteconomia. E ela virou para mim e falou assim: “Paulo, você soube que a Mônica conseguiu?”. A Mônica era uma das colegas do curso de biblioteconomia que eu detestava. Ela falou assim: “Você soube que a Mônica conseguiu a vaga do Museu Lasar Segall”. “Como assim ela conseguiu? Eu fui chamado para trabalhar lá”. “Você foi chamado? Mas ela falou que tinha sido chamada”. Ah, vai ver que tinham duas vagas. Aí eu falei: “Ai, meu Deus, que saco. Vou ter que trabalhar com a Mônica”. Que era uma pessoa que eu não gostava. Acabou que a gente aos três meses trabalhando juntos nos tornamos os melhores amigos. E somos amigos até hoje. Nós trabalhamos juntos lá há vinte e seis anos e hoje somos super amigos.
P/1 - Isso tudo que você está contando tem vinte e seis anos.
R - Vinte e seis anos. Há vinte e seis anos eu entrei no museu. Aí era o seguinte, olha que loucura. O museu era um museu da família, foi a família que começou o Museu Segall, com a crise econômica do Brasil, eles começaram a ter muitas dificuldades em manter o museu. Então o museu ia fechar. Só que com a ameaça do museu fechar, na época a Fundação Nacional Pró-Memória, que pertencia ao Ministério da Educação, entrou em contato com o Maurício Segall. Entrou em contato com ele e eles iam absorver o museu. Então eles falaram para o Maurício: “Olha Maurício, nós vamos absorver o museu e então, agora quem vai manter o museu. A gente incorpora o museu”. E a família fez uma doação de obras para a Fundação Nacional pró Memória, deu não sei quantos por cento do acervo, mas deu muita coisa. Doou muita coisa para a Fundação Nacional Pró-Memória. Em contra partida a Fundação Nacional Pró-Memória ia absorver o museu e ia se responsabilizar por todos os funcionários. E foi falado para o Maurício o seguinte: “O museu será absorvido no dia trinta e um de dezembro de 1984. Quem estiver lá como funcionário será absorvido. Então, você contrate todos os postos de trabalho que você precisar até lá, que aí eles vão virar funcionários da Fundação Nacional Pró-Memória”. E foi nessa leva que eu entrei. Nessa leva de transição de um museu familiar e um museu público, porque a Fundação Nacional Pró-Memória é uma fundação pública. Então o museu, nos primeiros tempos era uma festa porque nós entramos. Funcionários antigos mesmo, acho que tinha uns dez e nós entramos em sessenta. Então todo mundo entrou no maior pique. E o museu tinha o Maurício Segall, que foi uma pessoa que me marcou profissionalmente muito, as ideias dele. O Maurício é um cara de esquerda, militante político, ficou também perseguido pela ditadura. E a ideia de museu dele era de um museu que se contrapusesse a massificação, aos meios de comunicação de massa. Então a idéia dele de museu era fazer um museu onde as pessoas que freqüentassem pudessem não ir lá só para ver obra de arte, mas também para produzir arte, para pensar sobre a arte. A gente discutia muito nos primeiros tempos do museu, por exemplo, a questão de que se todo mundo pode ser um artista. Se todo mundo é artista ou não. Só alguns são artistas. E o Maurício era filho do pintor. Ele sempre falava que podia ser, que nem todo mundo fosse artista, mas que todo mundo tinha um potencial criativo. E a idéia de museu dele era justamente desenvolver esse potencial criativo das pessoas, por isso que ele não fez um museu só com salas de exposição. Então o Museu Segall tinha um ateliê de fotografia, onde as pessoas podiam ir lá para aprender a linguagem fotográfica, fotografar e discutir sobre a sua produção. Havia duas ou três pessoas no ateliê de fotografia, que eram os funcionários, que eram os orientadores do setor. Então tinha o ateliê do Lasar, que foi antes do Lasar Segall e que virou um ateliê público. Então tinha um responsável por orientação de pintura, um para orientação de esculturas, um para orientação de gravuras e um pra orientação de desenho. Então era um ateliê público. As pessoas chegavam e iam para o ateliê para aprender essas linguagens e para desenvolver criativamente nessas linguagens. Tinha também um ateliê de redação, aonde as pessoas iam para aprender ou se desenvolver em poesia, romance. Poema, romance, conto, crônica. Então tinha duas pessoas responsáveis por esse ateliê de redação e tinha um coral também. O Coral do Museu Lasar Segall foi um coral muito respeitado por muito tempo. Tinha duas ou três pessoas que ficavam responsáveis pelo coral e na biblioteca. A biblioteca tinha sido... Porque é o seguinte, no início ele pensou em fazer uma biblioteca. Ele pensou no museu meio como um centro cultural diversificado. Então a biblioteca ele pensou assim: “Não vou fazer uma biblioteca de artes plásticas”. O que seria natural sendo que o museu era o Museu Lasar Segall de um artista plástico. Mas ele falou que não ia fazer porque já tem outras bibliotecas de artes plásticas em São Paulo. Isso em 1973, quando o museu começou. Já tinha a biblioteca de artes da Mário de Andrade, que era uma biblioteca importantíssima, com um acervo importantíssimo de artes. Tinha a própria Escola de Comunicações e Artes que tinha também um acervo de artes já importante. A FAAP tem a sua biblioteca de artes e ele falou que não ia fazer mais uma biblioteca de artes plásticas. Como tinham na casa muitos livros da mãe dele sobre teatro. A mãe dele, a Dona Jeni Klabin Segall era tradutora de teatro, ela traduziu os clássicos alemães e franceses para o português. Então ela traduziu Goethe, Fausto. Traduziu Moliere, Racine para o português também. Então eles tinham muitos livros de teatro. Então ele falou que em homenagem a mãe ele fez uma biblioteca especializada em teatro. Acontece que quando o museu estava iniciando. Tudo isso são histórias que eu ouvi. Quando o museu estava começando em 1973, a Cinemateca... Ou antes disso, o museu abriu para o público em 1973. Antes disso, no começo dos anos 1970, não sei bem a data. Talvez 1971, 1970. A Cinemateca Brasileira ficava no Parque do Ibirapuera. Os barracões da Cinemateca. Os filmes e a biblioteca da Cinemateca. Só que a Cinemateca Brasileira pegou fogo. Filmes se não ficam na temperatura adequada a película entra em combustão. E a Cinemateca já tinha tido outros problemas com incêndio, pegou fogo. O Paulo Emílio que era diretor da Cinemateca Brasileira não sabia o que fazer com o que restou do acervo da biblioteca e dos filmes e não sei o quê. E falou para o Maurício: “Maurício, sei que você está agora com o museu reformando para abrir para o público. Eu posso deixar o que restou da biblioteca da Cinemateca e alguns filmes aí, filmes curta metragem até eu conseguir um lugar para a Cinemateca”. E o Maurício falou que tudo bem. Então os filmes ficaram no ateliê e a biblioteca da Cinemateca foi lá para onde estava começando a biblioteca. Quando o Paulo Emílio conseguiu um lugar para a biblioteca da Cinemateca Brasileira que era ali na Conceição ele chegou para o Maurício e falou: “Maurício, me devolve a biblioteca e os filmes”. O Maurício falou assim: “Os filmes eu te devolvo, mas a biblioteca fica”. E deu para o Paulo Emílio um terreno como forma de compensação pela biblioteca. Então a biblioteca do Museu Lasar Segall ficou com esse núcleo desde antes de abrir, que era um bom acervo de teatro e um bom acervo de cinema. Então hoje a biblioteca da Cinemateca Brasileira, na verdade o cerne da biblioteca da Cinemateca Brasileira está no Museu Lasar Segall. E essa biblioteca de cinema e teatro foi se desenvolvendo, como eu falei. A família mantinha o museu e eles mantinham de uma forma digna. Então, por exemplo, a biblioteca do museu nos primeiros tempos comprava tudo que havia disponível no mercado para vender sobre essas áreas de especialidade, que era cinema e teatro. Então, havia um convênio com uma livraria chamada livraria Parthenon que pertenceu ao José Mindlin e depois passou para Álvaro Bittencourt, lá trabalharam várias pessoas importantes. Enfim, tinha um convênio com essa livraria e tudo que a livraria conseguia nessas áreas, imediatamente ia para a biblioteca do museu. Então a biblioteca do museu hoje é um acervo vasto, muito rico, importante nessas áreas de atividade. Em função do trabalho da fotografia, pela proximidade do cinema a biblioteca começou a comprar coisas sobre fotografias. Então tem um acervo muito bom sobre fotografia, sobre cinema, sobre teatro, sobre fotografia. E aí o teatro começou se desenvolver no acervo e aí começamos a coletar coisas sobre dança, sobre circo, todas as áreas.
P/1 - Você trabalhava na biblioteca.
R - Eu trabalhava na biblioteca. Essa história é uma história anterior a mim porque eu comecei a trabalhar em 1984, quando o museu foi incorporado pela Fundação Nacional Pró-Memória. Nesse meio tempo teve essa crise grande econômica e a família passou a não mais manter, ou poder manter todo o museu, toda essa estrutura. Mas depois, nesse renascimento que foi quando a Pró-Memória incorporou o museu, foi que a gente chegou. Então nós éramos quatro bibliotecários. Dois na biblioteca. Eu e a Mônica que chegamos juntos e Amélia e Cecília. Amélia era a bibliotecária mais velha, ela tinha iniciado a biblioteca, foi ela que começou a catalogação de tudo. Cecília veio um pouco depois e ficamos todos juntos lá. Amélia se aposentou nos anos de 1980. Final dos anos de 1980, 1989 sei lá eu. Deixou o cargo para a Cecília. A Cecília ficou a chefe da biblioteca até janeiro agora quando ela se aposentou. E agora a chefe da biblioteca é a Mônica e a gente enfim. Agora a gente está vivendo outra crise.
P/1- Quando você entrou já tinha toda essa especialização? Que desafios vocês tinham e o que aconteceu de lá para cá?
R - Tinha as especialidades. Além dessas especialidades a biblioteca cuidava de uma coisa chamada Documentação Lasar Segall, que era toda documentação impressa sobre o Lasar Segall. Então o museu tem o acervo documental do Lasar Segall que é o arquivo do Lasar Segall. Tem esse acervo de material impresso com tudo que foi escrito sobre Segall que fica na biblioteca. Isso também fazia parte das especializações. Eu acho que a minha geração foi uma geração muito privilegiada, porque nós passamos por uma revolução sem a gente saber. Se eu penso o que era a minha vida na Vila Matilde no começo dos anos de 1970 quando eu entrei na escola para hoje. Tudo isso foi uma revolução: de uma total precariedade para uma coisa muito mais refinada. E mesmo no trabalho, minha geração passou por essa coisa da coisa mecânica para a era digital. Quando eu era adolescente, quando era criança não tinha como avisar uma pessoa, por exemplo, que você ia a casa dela. Primeiro, porque telefone era uma coisa super difícil, quase ninguém tinha. Então você ia à casa das pessoas e batia e via se elas estavam lá, se elas não estivessem você dava meia volta e ia embora. Telefone era uma coisa muito difícil de ter, você ficava ano na fila para ter um telefone. Hoje em dia você tem um celular, todo mundo tem celular no bolso. Na área de biblioteconomia, na minha área de especialização quando eu cheguei ao museu a biblioteca era um andar com algumas estantes. Hoje ela ocupa dois andares imensos, não temos mais lugar para quase nada. Nós estamos numa crise. A gente precisa mudar de espaço. Antigamente, a gente fazia a catalogação na máquina de escrever. A gente tinha fichas que a gente fazia a mão. No catálogo da biblioteca, o fichário da biblioteca tinha fichas feitas manuscritas porque nem a máquina de escrever no início da biblioteca não tinha. A pessoa fazia catalogação à mão, depois passamos para uma máquina de escrever. Quando eu cheguei já tinha máquina de escrever. Aí, uma máquina de escrever elétrica, que reproduzia as fichas porque fazer catalogação manualmente é uma coisa. É uma loucura, porque de um livro você pode fazer dez fichas. Que é uma de autor, uma de título, várias de assuntos, porque a biblioteca especializada e a gente fazia uma catalogação muito precisa. Várias de assuntos e aí tinha catálogo por ano. Então para catalogar um livro se demorava muito tempo, muito tempo. Aí depois veio... A gente introduziu o computador na biblioteca, introduziu essa coisa da computação e o trabalho começou ficar mais ágil. Mas, por incrível que pareça. Eu não sei se com isso, também veio uma explosão de informações, mas a gente nunca conseguiu na biblioteca do museu ter a catalogação em dia. Ter tudo catalogado. Hoje a gente tem, digamos oitenta por cento no sistema da biblioteca. Naquela época, a gente não tinha. Como eu falei o trabalho era grande. O acervo não era tão grande, mas era muito trabalho a se fazer. Hoje é mais fácil trabalhar, hoje você pode dar quantos assuntos você quiser para um livro, porque você não precisa reproduzir a mesma coisa várias vezes, com o sistema e a base de dados, uma vez que você colocou lá, você pode recuperar de várias formas. Mas ao mesmo tempo você tem trilhões de informações. Muitos periódicos, muito que se publica hoje é impressionante nessas áreas. Muitas exposições sobre essas áreas, muita exposição de fotografias São Paulo tem. Eu fico muito feliz de ter nascido em São Paulo, no Brasil que teve esse bum. E de ter vivido essa revolução que foi esses tempos que a gente viveu, que foi essa virada do século. Que a gente mudou de mundo sem perceber. A gente mudou de mundo e na minha área isso foi brusco, foi total.
P/1- Qual a diferença de público que consultava a biblioteca e a que consulta hoje?
R - Bom, essa sua pergunta é muito interessante porque o público da biblioteca, não é o público do museu. O público da biblioteca é pessoal especializado em teatro e cinema. Ou seja, atores, diretores, grupos de teatro amador e profissional que vão à busca dos textos teatrais. Nós temos uma coleção, acho que a maior da América Latina de textos teatrais, muitos inéditos. Porque assim, os autores e diretores, como na década de 1960 e 1970, não se publicava muito teatro, então as peças eram todas mimeografadas ou datilografadas. Então, muitas traduções de textos importantes de autores consagrados do teatro mundial, ou mesmo peças de teatro de autores consagrados ou não brasileiros não eram editadas. Então, nós temos esses textos que eles usavam para o ensaio. Às vezes, muitas vezes marcados com cenas cortadas. Tudo isso está na biblioteca do museu. Eles, ao mesmo tempo em que doavam essas coisas, eles vinham depois consultar. Ou outros grupos que queriam montar esses textos, ou fazer essas coisas iam lá para consultar. Então, é um público especializado em teatro. O público de cinema também, porque como a biblioteca do museu é uma biblioteca, que por ter herdado a coleção da Cinemateca, tem muitas coisas em cinema. Muitas pessoas da universidade da ECA acabavam indo lá. Acabam indo lá pesquisar coisas. Então, por exemplo, nós temos a coleção completa das duas revistas brasileiras especializadas em cinema que é a Scena Muda e a Cinearte. Tem O FAN que saiu antes, mas tem poucos números: são seis números. E o nosso esforço hoje é para, na verdade, preservar essas obras raras e ao mesmo tempo dar acesso. Então a gente está num projeto grande da nossa biblioteca digital. De colocar esses acervos, ao mesmo tempo em que preservar, dá acesso ao público para eles. Então, nós digitalizamos toda essa coleção das primeiras revistas brasileiras de cinema, cujo texto a maioria está em domínio público, e colocamos na internet a disposição. Hoje eles estão acessíveis a qualquer pessoa no mundo inteiro. E o público sempre foi diferente. A diferença hoje, na biblioteca do museu é que antigamente as pessoas iam lá: por exemplo, quando queria fazer uma mostra de cinema, eles iam lá atrás da ficha técnica do filme para poder fazer aqueles folders, os folhetinhos, para poder divulgar na imprensa. Eles iam atrás das fichas técnicas dos filmes hoje eles acham na internet. Então, hoje não se vai à biblioteca do museu para fazer pesquisa muito simples. Geralmente, quem vai lá é quem está fazendo mestrado, doutorado. Pessoal que faz esses cursos de cinema independente, que tem por aí na cidade. Hoje se vai à biblioteca do museu, primeiro para consultar os periódicos de lá, que a gente assina periódicos do mundo todo nessas áreas. Segundo, para fazer uma pesquisa mais aprofundada em algum tema determinado, são pesquisas mais apuradas. Isso mudou, no público que vinha antes e no público que vem hoje. Os atores continuam vindo, porque lá está o material que eles precisam, os textos que eles precisam ainda não estão na internet, por conta da história do direito autoral. Então só tem lá mesmo e eles vão. Para nós é uma dificuldade, porque no fundo a gente acaba infringindo a lei de direitos autorais. Porque é impossível, um texto único ou uma tradução de um texto único, que não tem em nenhum lugar e o cara quer montar a peça. E a gente tem que deixar copiar o texto.
P/1- Vocês já tiveram problema com isso?
R - Não. Nunca tivemos problemas com essa coisa de direito autoral, mas ao mesmo tempo, a gente sabe que a gente no fundo não está, como se fala, respaldada na lei. Então as pessoas vão e tiram cópias, mas é o único jeito. Não tem outro jeito de fazer isso. No teatro é uma coisa diferente. Eu acho que deveria se discutir um pouco mais essa história, porque quando o grupo monta peça, eles pagam os direitos para o autor, para a SBAT. Então seria uma duplicidade você também não deixar tirar ou cobrar e mandar para o autor. Enfim, é uma discussão muito complicada. Essa discussão de direitos autorais na área de teatro e na área especificamente de documentação teatral, que é a área que a gente trabalha, eles acabam pagando os direitos, mas quando eles vão montar a peça, não quando eles tiram as cópias. Isso é um problema. O público mudou. A gente continua também atendendo o morador do bairro. Então, nós conseguimos colocar vários computadores para o público. Hoje a biblioteca tem seis máquinas à disposição do público, e quem acaba indo lá é o público carente do bairro, que não tem computador em casa e vai acessar a internet também na biblioteca. É uma biblioteca especializada e ao mesmo tempo, a gente não pode esquecer, que é uma instituição cultural inserida num contexto social. E a gente acaba oferecendo esse serviço, que é oferecer esse acesso a internet gratuita para o pessoal do bairro. Então também tem esse público novo que está indo a biblioteca, não por causa do acervo, mas para justamente ter acesso a coisas que não tem acesso em casa.
P/1 - Literatura tem alguma coisa?
R - Não.
P/1 - Mas as oficinas continuam?
R - Continuam, mas nunca investiu nessa área, até porque nas bibliotecas públicas eles já conseguem esse tipo de material.
P/1 - Nesse período de vinte e seis anos quais foram os fatos. Você já falou da sua entrada. Mas qual foi o fato mais marcante? Tem um causo ou alguma coisa que você lembre?
R - No museu tudo foi marcante. Como eu falei, a presença do Maurício Segall como uma pessoa polêmica. Tudo era discutido no museu. Nós fazíamos uma reunião semanal que depois passou à quinzenal onde eram discutidos todos os problemas do museu. E onde participava, desde o faxineiro até o diretor Maurício Segall. E nós debatíamos tudo. Sei lá. Houve problema com o público, ou com o visitante ou com o frequentador, isso era discutido entre nós. As questões mais teóricas também: Para que a gente está aqui? Para que serve o museu? Discutia-se para quê? Por quê? Por que a gente trabalhava ali? Para servir a quem? Para fazer o quê? Então, o museu para mim, nesse tempo todo, foi muito importante na minha formação. Tudo aquilo que a escola e a família, que a universidade não me preencheu, todo esse debate, toda essa vida e na verdade até o definhar dessa vida que havia no museu, fez eu aprender muito. Hoje, eu acho que a gente está numa crise. Primeiro que mudou. É interessante você ficar vinte e seis anos numa instituição. Quando eu entrei no museu, eu pensei que ia ficar uns cinco anos, fazer um trabalho e queria fazer outra coisa.
P/1 - Você foi estudar nesse período?
R - Fui, eu fui fazer uma especialização em Gestão Cultural na França.
P/1 - Você foi licenciado? Com bolsa?
R - Eu fui licenciado, recebi uma bolsa do governo francês. Era um curso que o Ministério da Cultura da França fazia, não sei se faz hoje. Deve fazer para pessoas que trabalhavam em instituições culturais. Era um curso de especialização para pessoas que já trabalhavam. Antes disso, eu tinha ganhado também uma bolsa para visitar instituições culturais na França., ou museus ou bibliotecas. Visitei museus e bibliotecas especializados em teatro e em cinema, foi uma visita de um mês. Isso foi me 1997. E depois ,1998 e 1999 eu fiquei um ano universitário na França, fazendo essa especialização em Gestão cultural. O museu me proporcionou muitas coisas, tudo foi marcante. As pessoas que passaram por lá que eu nunca vou esquecer. Fiz grandes amigos que hoje já não estão mais vivos, pessoas muito interessantes. As discussões todas. Mas o mundo muda muito, São Paulo mudou muito.
P/1 - Alguém do público consulente que você ficou amigo?
R - Vários, vários. Por exemplo, tinha um frequentador do cinema... Tinha uma oficina de cinema. Esqueci de falar, muito importante. Sempre teve cinema no museu, mas quando eu entrei o Maurício contratou uma pessoa chamada Silvia Machado e ela propôs para o Maurício fazer a mesa, coisa que se fazia nas outras atividades, mas com relação ao cinema. Que era uma oficina de programação. Então lá, ela reunia alguns freqüentadores do cinema, que eram a fim de discutir cinema, eram a fim de discutir linguagem cinematográfica. E esse público da oficina de cinema passou a frequentar a biblioteca, porque a biblioteca tinha tudo para eles. Então, por exemplo, Takeshi virou meu amigo, que começou a frequentar o cinema. Depois começou a ir à biblioteca e acabou se tornando amigo. A gente sempre procurou ter estagiários da escola pública de frente, gente jovem na biblioteca. Então muitas pessoas que estudaram na escola de frente, Basílio Machado acabaram trabalhando na biblioteca, acabaram ficando amigos. Quando você fica vinte e seis anos numa instituição acaba ficando amigo e inimigo das pessoas. Muitos, muitos. Pessoal que hoje está na Cinemateca Brasileira que frequentou a biblioteca, também o pessoal de teatro. Todos eles acabam ficando muito próximos porque vão muitas vezes à biblioteca. E a biblioteca tem uma coisa interessante: o espaço nosso. Como eu falei, era a casa do Segall e o espaço está atulhado de coisas, então nós acabamos fazendo todas nossas discussões internas no meio do público. Isso acaba criando uma relação meio familiar com o público. Então as nossas brigas internas, quando gente discute coisas de trabalho, quando a gente tem dúvidas de como catalogar uma coisa, uma discussão sobre termos, o público acaba participando de uma forma ou de outra. Então ficou uma coisa muito caseira, até hoje. E eles acabam ficando amigos. E a Mônica que é quem faz o atendimento é uma pessoa muito… ela se liga muito às pessoas, muito expansiva e não sei o quê, e as pessoas acabam fazendo amizades com ela. E como nós somos amigos pessoais, além de trabalharmos juntos, eles acabam fazendo parte do meu círculo de amigos. Várias pessoas, a Ana Carolina... Muita gente que acabou frequentando o museu e acabou frequentando a nossa casa.
P/1 - Qual o maior desafio do Museu Lasar Segall hoje?
R - O que eu ia falar. São Paulo mudou muito, daquela realidade de 1970 de onde não tinha o hábito de frequentar museus. Então o Maurício quis fazer uma sala de exposição com outras atividades. Ele achava também que, além dessa coisa de permitir que as pessoas expressassem a criatividade, ele achava que, num país que não tem tradição de ir a museus, era importante você atrair as pessoas por outras coisas. Então, a biblioteca, o cinema, a música: ele achava que isso atraia. Só que São Paulo mudou. Hoje, São Paulo é uma cidade que tem atividades de tudo que é tipo, qualquer hora. Uma oferta cultural muito grande, uma coisa que não era, na realidade. E tudo isso mudou e o museu foi perdendo essa sua capacidade de ser crítico em relação à sociedade. Eu acho que a cultura hoje está, se eu posso dizer massificada. Não sei, eu acho que o museu vive hoje uma grande crise, porque não sabe qual é o seu lugar nesse mar de instituições que estão por aí. O museu é um museu pequeno. Museu monográfico, digamos assim, porque é de um artista só. Num bairro que não é central: a Vila Mariana. É central, mas não é Avenida Paulista. É um museu pequeno que teria tudo para continuar de outras maneiras essa utopia do Maurício, que era utopia de ser a crítica da sociedade. Porque eu acho que o museu tinha muito esse papel, fazer a crítica do momento que se estava vivendo na sociedade. Então, se na década de 1970 e 1980 havia essa crítica grande, essa avalanche da comunicação de massa, o museu buscava justamente fazer um trabalho contrário da comunicação de massa que é trabalhar com pequenos grupos. Trabalhar com essa coisa da auto expressão, invés de só as pessoas consumirem cultura. As pessoas mudaram. Maurício se aposentou, saiu do museu. Nem todo mundo tinha a capacidade de discussão dele, de levar a discussão adiante. O museu entrou numa crise por ser um museu público, entrou numa crise grande nos anos de 2000. Os salários desceram muito. As pessoas começaram a sair para encontrar outras oportunidades. A discussão sofreu com isso. Tinha-se muito pouco dinheiro na época do Governo Fernando Henrique. Tudo virou uma coisa privada, você tinha que buscar dinheiro fora. Eu acho que o mundo dos museus, na minha visão, que não sou museólogo, sou trabalhador de museus a vinte e seis anos, está em crise. Porque numa sociedade que está sempre em transformação a idéia de museu é uma coisa complicada. Talvez por causa dessa transformação absurda que a gente vive, essa revolução constante. Houve uma explosão de museus, tudo vira museu, tudo tem que ser musealizado. Querem fazer museu de tudo, é o Museu do Futebol, é o museu de tudo, é o Museu da Pessoa. É o museu. Essa idéia de que tudo pode ser musealizado é uma coisa que só numa sociedade onde nada fica muito tempo, nada dura muito tempo. Acho que é um reflexo disso. Neste cenário, eu acho que os museus de arte, que é onde eu trabalho, também estão numa crise absurda. Por uma coisa que explodiu no Brasil nos últimos tempos chamado mercado de arte. O mercado de arte no Brasil sofreu uma expansão absurda. A arte brasileira tem uma cotação no mercado estrangeiro crescente, isso reflete na questão dos museus. Porque são os museus - e isso na Europa também é a mesma coisa, na França, na Inglaterra, nos Estados Unidos, em Nova York - são os museus que alavancam esse mercado de arte. E esse processo chegou aqui de uma forma arrasadora. É por isso que essa exposição arrasa quarteirão que são hordas de pessoas, que vão ao museu para ver determinado autor, determinado pintor, determinado artista. Mas ninguém nunca sabe por que que hoje está se expondo esse artista. Não fica claro para as pessoas, o que faz a política desses museus. Quem está decidindo o que nós, paulistanos, queremos ver em função da arte. Hoje em dia existe uma coisa, que não é dita para as pessoas do mundo dos museus de arte, que é que existe uma política e uma vontade política e uma vontade mercadológica que empurram para os museus exposições e grandes exposições. E o público consome esse tipo de coisa sem saber por que está consumindo, sem saber que aquela grande exposição que depois vai alavancar... Ou aquela exposição veio de outra exposição grande, que está lá fora. E que isso vai alavancar o leilão de arte na casa de leilões, de não sei donde, daqui a dois anos, daqui a três anos, daqui a um ano. Eu acho que todo esse mercado, toda essa coisa que está por trás dos bastidores, não fica claro. E não tem nenhuma instituição, nem no Brasil, nem fora do Brasil, que leve essa discussão. Eu acho que, pelo histórico do Museu Lasar Segall, dessa coisa de contestar a mercantilização da arte, a massificação pela arte e para a arte, o museu teria um papel importante para discutir isso, para mostrar: Olha, nada é de graça, nada é sem intenção. As exposições acontecem porque tem um curador, que é amigo de um marchand ou não. É amigo de outro diretor de museu, que por sua vez é ligado a não sei que artista, ou que família, ou que curador, ou casa de leilão. Isso é uma discussão que não está clara. E eu acho que o Museu Segall, pela sua tradição, seria um museu diferenciado para discutir isso e não está fazendo. Então assim, eu fico um pouco decepcionado desse mundo dos museus, principalmente dos museus de arte, porque eu acho que falta muita discussão. Falta qualidade de discussão, falta transparência, falta uma vontade de contribuir para o crescimento da sociedade, contribuir para o avanço da sociedade. Então, hoje em dia você vê, não estou fazendo críticas pessoais, eu estou falando que é todo um sistema, que está sendo montado e as pessoas até com muita boa vontade, acabam participando desse sistema sem discutir. Longe de mim, embora eu tenha diferenças pessoais, mas longe de mim. Eu não estou personalizando essa discussão. A gente está falando de um sistema que está montado aí. Ou as pessoas entram nisso, ou as pessoas estão marginalizadas disso. Hoje você pega a Pinacoteca Brasileira, por exemplo, e aquilo é uma máquina de fazer exposições. Eles inauguram exposições, duas, três, quatro por semana ou por mês. Não sei, virou uma indústria. A indústria da arte das exposições. E aí, há uma indústria do marketing, é o jornal, é a televisão, a massificação. Eles pegam também as escolas públicas. Levam hordas de estudantes e alunos para ver essas exposições. Sem nem ao menos com essas crianças, mostrar para elas, porque elas estão indo lá. Por que é importante que elas vejam, sei lá, o Rodchenko? Por que é importante que um aluno de escola pública da periferia ver Rodchenko? Alguém discute com elas. Alguém discute o que é a fotografia? Alguém discute como é o processo fotográfico que mudou tanto? Hoje é digital, antes não era. Então eu sou muito crítico ao que a gente está vivendo hoje e eu acho que falta uma instituição. O que falta no cenário museológico hoje, é profissional e instituições que, como havia antes no Museu Segall, que ponham o dedo na ferida.
P/1 - Qual o seu maior sonho hoje? Em relação à vida e ao trabalho?
R - Meu maior sonho hoje é fazer... Bom, eu não contei uma coisa aqui que é importante. Existe uma discussão há um tempo dentro do Museu Lasar Segall, que é fazer a biblioteca do Museu Lasar Segall se desligar do museu. O museu chegou à conclusão de que quer. A direção do museu junto com o conselho do museu chegou a uma conclusão, de que o museu é uma instituição muito grande, que eles querem se especializar só em Lasar Segall. Abandonando essa tradição, que começou com Maurício Segall, que era de um centro diversificado de atividades, eles querem se especializar em modernismo paulista, expressionismo. E nesse contexto a biblioteca e as outras atividades, que sempre compuseram o museu estão fora desse novo escopo. A biblioteca então está num processo de se desligar do museu. A gente não sabe aonde isso vai dar. Quase fomos incorporados pela Funarte. A Funarte acabou chegando à conclusão que não tem condições de manter a biblioteca, porque é um custo muito alto. Eles não têm o lugar para colocar a biblioteca. Nós precisamos de um lugar de pelo menos mil e quinhentos metros quadrados, porque nós temos mais de quinhentos mil documentos. E aí, agora quem pleiteia a biblioteca é a Cinemateca Brasileira. Então muito possivelmente, nosso acervo sairá do museu para compor a Cinemateca Brasileira. Digo possivelmente porque a gente nunca sabe o que vai ser. O meu sonho é por enquanto manter a biblioteca, que foi um projeto, que não começou comigo, mas é um projeto que eu abracei e eu gostaria de... Tenho vinte e seis anos de museus e fiz a minha contagem para a aposentadoria e eu devo ter mais uns nove anos. Nesses nove anos que restam, junto com Mônica e junto com o pessoal que eu trabalho, é deixar a biblioteca num lugar ou pode ser mesmo num museu, mas deixar a biblioteca numa situação que ela consiga se desenvolver. Consiga atualizar seu acervo, continuar a atualizar seu acervo, atender as perguntas das pessoas que chegam lá necessitando de informações especializadas nessas áreas. E que ela consiga continuar a atender a esse público mais da comunidade local, isso está ameaçado. Em termos de trabalho, a nossa briga, o nosso sonho, a nossa luta é manter isso e também ampliar esse tipo de coisa. Fazendo com que as raridades, as coisas preciosas que estejam lá não fiquem só a disposição de alguns poucos. Que isso a gente possa realmente fazer. Projetos para que um grande número de pessoas possa ter acesso a isso, que é o nosso esforço com a biblioteca digital, não sei. Isso a gente conseguiu aos trancos e barrancos a um custo, inclusive pessoal, fazer. Não sei se a gente vai continuar a fazer. Então é isso, o sonho seria esse, em termos de vida. Ah, queria também renovar a nossa estrutura, eu e a Mônica estamos lá há vinte e seis anos, a gente precisa de gente nova. A gente precisa de gente que venha com idéias novas, querendo fazer coisas, querendo renovar. Não que a gente não seja inovativo, mas a gente precisa de gente. Com o tempo você, numa mesma instituição, você vai ficando viciado nos relacionamentos extra biblioteca, relacionamentos estão muito viciados. Então talvez precise de gente nova que venha com outra cabeça, com outra mentalidade e que faça interação com a gente. Fazer essa coisa andar, tomar outro caminho. Enfim, isso também é importante. Pessoalmente que eu ia falar, eu me sinto muito feliz, muito feliz mesmo de ter vivido isso e contribuído para o museu. Ter discutido todas essas coisas, ter me afrontado com algumas questões e ter me defrontado, ter me debatido. Mas eu queria voltar a estudar, queria. Tenho pouco tempo em atividade. Esses oito, nove anos, eu queria voltar a estudar e talvez pesquisar um pouco, o que foi todo esse processo. Se ele foi desse jeito mesmo que eu penso, talvez eu não seja a pessoa mais adequada para fazer essa leitura, mas eu queria um pouco voltar para a universidade. Não sei se nesse esquema ou sentido. Eu tenho uma pesquisa minha que tem haver mais com outras coisas que eu trabalho na biblioteca que é a edição de textos teatrais, populares, no início do século XX. Então eu queria me dedicar a outras coisas. Mas eu só faria isso com segurança legal se a gente pudesse fazer essa transição. Acho que toda essa decisão da separação da biblioteca com o museu vem muito no bojo de todas essas discussões que eu falei, da crise que estão vivendo os museus de arte, que concorrem entre si. Então, hoje o Museu Segall para ter espaço, ele vai ter que entrar, já entrou nessa loucura desenfreada por essas exposições arrasa quarteirão. E para isso ele vai ter que deixar de lado todas essas outras coisas que faziam parte da sua estrutura e tudo isso tem a ver, tenho certeza, com todas essas questões que a gente está vivendo hoje. É triste, mas eu acho que é uma discussão que tem que ter. Também não sei se caberia lugar, se o museu continuasse como está agora, eu não sei se tem espaço. Teria que cavar um espaço. Ter uma pessoa como Maurício Segall que tivesse a fim de cavar um espaço diferente. E para isso você precisa ter muita coragem e muito desprendimento, o Maurício tinha essas qualidades, mas ele tinha todo um lastro familiar que as outras pessoas não têm. Então dá para entender porque isso não acontece sem ele. É isso.
P/1 - Paulo, o que você achou da experiência de dar esse depoimento para o Museu da Pessoa?
R - Eu adorei, eu acho isso daqui muito bom. E como eu disse, eu sou um pouco historiador. Adorei porque sei lá. Não sei o que sairá disso depois. Acho que as pessoas daqui a dez séculos vão pensar como nós éramos estranhos. Essas pessoas como se preocupavam com coisas interessantes. Eu acho que é legal. É uma oportunidade de eu mostrar a minha visão do mundo que a gente está vivendo, eu acho interessante. E por ser uma coisa falada. Não é um discurso todo organizadinho assim, como a gente lê nos livros. Talvez tudo isso eu pudesse escrever, mas o mais legal é falar que você vai lembrando coisas. Eu acho essa experiência super legal e que vocês possam continuar com isso e colocar para outras pessoas.
P/1- Obrigada. O depoimento agora vai para a internet.
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