P1 – Tudo bom, seu Evando? Queria que o senhor dissesse seu nome completo, a cidade e a data de nascimento. R – Meu nome é Evando dos Santos. Sou nascido na cidade de Aquidabã, Sergipe, no dia 18 do seis de 1960. P1 – E qual o nome dos seus pais? R – Minha mãe é Zelita...Continuar leitura
P1 – Tudo bom, seu Evando? Queria que o senhor dissesse seu nome completo, a cidade e a data de nascimento.
R – Meu nome é Evando dos Santos. Sou nascido na cidade de Aquidabã, Sergipe, no dia 18 do seis de 1960.
P1 – E qual o nome dos seus pais?
R – Minha mãe é Zelita da Cruz dos Santos. Eu sou filho sem pai, sou filho de mãe solteira, de maneiras que não posso colocar o nome do pai. Ele teve alguns problemas jurídicos e não pode me reconhecer. Mas é um grande cidadão. É gente muito boa. Depois eu o conheci, ele me recebeu e tal. É uma pessoa muito boa.
P1 – E o que sua mãe fazia?
R – Ela era costureira e professora.
P1 – E quantos irmãos o senhor tem?
R – Éramos duas irmãs e mais um irmão. No total quatro irmãos, cinco irmãos.
P1 – E eles vivem onde, hoje?
R – Três moram aqui, né, quatro moram no Rio e um mora em Aracaju.
P1 – Continua em Sergipe?
R – Continua em Sergipe.
P1 – E o senhor nasceu em Aquidabã, em Sergipe, e como era morar lá?
R – Morar em Aquidabã, era interessante. Jogávamos muito no campo do Ipiranga, jogávamos bola no campo do Ipiranga, tomávamos banho de tanque. Você não sabe o que é tanque? Tanque é um buraco cheio de água. Nadávamos, era uma beleza. E tinha meu querido avô, meu avô José Mestre, ele tinha um sítio na cidade, um povoadozinho. Eu gostava muito de ir pra lá, porque tinha umas vaquinhas, uns cavalos, um jumento. Eu andava, boiava, ia levar as vacas pra beber água nos tanques. Montava no burro, era uma beleza. Era uma vida assim, foi uma vida, até os dez anos, uma aventura na roça. Uma coisa fantástica.
P1 – Morava em casa ou em chácara?
R – Morava na entrada da cidade, numa rua chamada Paraguai. E no meio de semana a gente ia pro sítio do meu avô, eu e minha mãe Zelita. Ficávamos três dias na roça, plantando, limpando e cuidando das vacas com ele. Ele era uma figura muito valiosa, José mestre, figura de proa. Aliás, tem uma frase dele que me marcou muito. Um dia ele estava conversando com os amigos dele, lembro do nome de um deles, Pedro Magrinho. E esse período era um período de seca, década de 70, teve uma seca muito forte lá, ele se virou pro amigo dele e disse: “meu compadre, se essa seca continuar, nós estaremos em má situação. Porque não vamos ter o leite de Nossa Senhora, que é a farinha pra nos alimentar”. Cara, hoje eu parei pra analisar, como ele fez essa associação, leite de nossa Senhora com farinha? Você vê que ajuntamento, rapaz. E ele não sabia ler nem escrever. Era a coisa do dia a dia, da natureza humana de descobrir, de juntar coisas. Só mesmo Deus e a mente humana.
P1 – E como que era a cidade Aquidabã na época que o senhor morava?
R – A cidade era pacata, vive até hoje de pecuária, plantação de algodão e farinha de mandioca. Era uma cidade boazinha. As pessoas do meu tempo... Tinha o Praido, que era uma figura que morava num sitiozinho vizinho do meu avô. Praido era uma figura que contava histórias de mula sem cabeça, comia banana só com a casca. Dizia que a vitamina estava na casca e não no miolo da banana. Coisa do Praido. Uma das historias dele está no dicionário de pessoas importantes e desconhecidas. Praido, ele tomava umas canazinhas, umas cachacinhas. E era muito engraçado, no final de ano, festa de São João. Aí Praido se entusiasmava e apagava as brasas da fogueira com os pés. E, interessante, não ficava marcado nem uma queimadura nos pés dele. E ele pisava e apagava. Às vezes era fogueira grande, aquelas brasas acesas. E ele: “agora vou apagar as brasas com os pés”. E aquela turma: “não faça isso, você vai se queimar”. E ele ia lá e apagava e não queimava os pés. Praido foi uma das figuras que mais me entusiasmou.
P1 – Isso em época de festa de São João? Como eram essas festas?
R – Época de São João tinha milho assado, canjica, pamonha e tinha as histórias. Praido era um dos contadores de histórias. Jogava peteca... Isso à tarde. De noitinha tinha a fogueira e depois os comes e bebes. E tinha uma figura também chamada João Viúvo. Esse era uma figura de proa. Esse era que contava muitas histórias. Esse, não só na noite de São João, mas durante a semana, todo sábado ele ia na casa do meu avô pra contar história. Aí, eu e minha irmã Carmem e minha irmã Conceição... Eu sempre dormia e no outro dia, elas que me contavam o resto das histórias. Ele contava história de Joãozinho e Maria, contava história de mula sem cabeça também, contava história dos comboieiros, que tinham comboio, que levavam as carnes, que eram roubados, contava história de Lampião. Eu vim conhecer Lampião, pela primeira vez, com o João Viúvo e com o Josias Caranguejo. Essas eram as histórias ali do sítio de meu avô.
P1 – E como eram as brincadeiras dessa época?
R – Nossa brincadeira era pular fogueira e cantava aquelas cantigas de roda, de natal. Tinha uma cantiga que nós cantávamos que era muito interessante. Eu não estou lembrando agora. Nunca esqueci e agora esqueci, está vendo? “O morro da fonte grande é de valente. Tem subida e tem descida, é de Valente”. No final da música, quando parava aquela frase “do valente”, diziam: “quem é o Valente? Sou eu”. Aí era o dono, tinha todo um processo, era muito interessante. Cantava muito isso. Essa é uma historinha que eu lembro, mas tinha muitas interessantes.
P1 – Isso era também com seus irmãos?
R – Irmãos, primos, conhecidos da região. Todos eles ficavam ali. Meu avô era uma pessoa influente, tinha um comboio. Meu avô tinha uma burra chamada Paquinha, que era uma burra ensinada. Ela comandava o comboio. Quando ela descobria uma coisa diferente, ela parava. Era um comboio de 30, 40 burros. Parava ali Essa burra... Era Mulinha e Paquinha. E essas duas mulas morreram. Teve uma doença e morreram. Meu avô ficou muito triste. Foi um mês inteiro, uma coisa... Foi como se perdesse um filho dele, porque eram ensinadas. E ele rejeitou muito dinheiro, porque os ricos queriam comprar, mas ele não vendia. Era Mulinha e Paquinha, duas burras assim, uma coisa interessante.
P1 – E nessa época de Aquidabã, como era seu cotidiano?
R – Cotidiano, não fui à escola, né, não pude ir a escola. Tive algumas aulas com minha prima Zezeu, que é professora, mas não aprendi muita coisa. Depois fui cortar junco na Lagoa do Pombo, com minha prima Deusuita. Mas levava mais a vida fazendo boi de barro. Fazia boi de barro, cavalinho de barro, os caçoá, os milhos e as mandiocas. Vivia mais nesse período assim. Fazia carrinho pra brincar, né? Tinha um grande amigo que eu lembrei agora, o Zé Torresmo. Zé Torresmo era meu parceiro. Ele era cego de um olho, uma figura. Era meu amigo, parceiro de andar, ir tomar banho nos tanques, jogar bola no campo do Ipiranga. Aquela coisa toda. Mas eu gostava mais dos senhores, né, as pessoas de idade, que eu sentava ali e ficava ouvindo eles contarem aquelas histórias. Tinha um grande amigo, o Josias Caranguejo, que era meu grande parceiro. Toda tardinha eu ia pra casa dele na Rua do Paraguai, pra ouvir ele contar histórias. Ele contou histórias do Lampião. Contou que em 1928, Lampião entrou na cidade de Aquidabã, matou um rapaz louco, tirou a banha e passou no fuzil, na praça, Jogou umas moedas de ouro e um rapaz chamado José do Papel, que era garoto, adolescente, porque não ficou ninguém na cidade, só as crianças e elas começaram a apanhar as moedas de ouro. E aí José do Papel que já era garoto começou a apanhar e Lampião ficou muito furioso, mas não matou, cortou a orelha dele, a orelha esquerda. Eu conheci José do Papel, com 90 anos, andando nas ruas de Aquidabã. E ele ficava muito furioso quando alguém falava que não tinha orelha porque Lampião cortou. Ele usava o cabelo grande, usava um chapéu de palha pra encobrir. Voltei a Aquidabã tem um ano e fui ao cemitério tirar uma foto de José do Papel. Era uma figura, um homem muito rico. Depois ele tinha uma fazenda e tal. Mas teve a orelha esquerda cortada por Lampião e na segunda vez que Lampião entrou deu uma surra na mulher do médico, na praça. Foi um negócio. Lampião entrou duas vezes na minha cidade. Essas foram as histórias.
P1 – E qual foi seu primeiro trabalho, que o senhor falou que foi aos nove anos?
R – Meu primeiro trabalho foi cortando junco, na Lagoa do Pombo, com minha prima Deusuita. Cortava junco pra fazer colchão e travesseiro. Ela vendia esses colchões e travesseiros para o Seu Rosalvo. Seu Rosalvo era dono da maior loja de tecidos de Aquidabã, na época. Era um fidalgo, um homem muito culto, falava bem. Era tipo assim um coronel, não um coronel, mas o homem mais conceituado no comércio de Aquidabã. Era ele e Seu Lelo, que também era uma pessoa muito importante. Tinha também o Seu Flaviano. Eu estou lembrando porque esses eu conheci velhinhos. Eu garoto, 12 anos, e eles, o Seu Flaviano já tinha mais de 80 anos. Velhinho, na loja dele e tal. O Seu Rosalvo, não, já mais novo, 60, 65 anos. Tinha a maior loja e vendia colchão feito com o capim, o junco da Deusuita, que eu cortei algumas vezes.
P1 – Nessa época o senhor falou que não freqüentou a escola?
R –Não, não freqüentei. Ia numa escola, mas não aprendi muita coisa. Uma escolazinha no povoado, cuja professora era minha prima. Grande professora Zezeu. Eu tenho uma foto dela, uma figura. Depois eu voltei lá e pedi que me desse um papel, e como ela já trabalhava num outro colégio, ela me deu aquele papel dizendo que eu tive algumas aulas, e tal. Eu fui agora lá e tirei umas fotos. Estava a casa ainda em que eu estudei alguns meses. Depois saí e não fui mais.
P1 – O senhor ficou lá poucos tempo por quê?
R – Não, porque a lida da roça. E na roça você tem a idéia que estudar pra quê? Essas coisas de pobre. E aí não estudei.
P1 – E quando o senhor começou efetivamente a ter contato com as letras?
R – Já adolescente, na feira de Aquidabã. Ia pra feira pra ouvir cordéis. Ah, como era bonito. Cheguei a ter 300 cordéis, mas eu não lia. Era só pra ter, pra olhar as figuras. Aqueles desenhos de xilogravura, acho que é isso. Mas quando eu cheguei no Rio, fui pra Igreja Batista de Vista Alegre.
P1 – O senhor tinha quantos anos?
R – Ah, tinha uns 15, 16 anos. Lá eu aceitei Jesus, na Igreja Batista, na rua Capital, 51, num bairro aqui próximo. Lá eu me deparei com o pastor José Evangelista de Oliveira, esse homem muito sábio. Aí ele descobriu que eu sabia ler, e aí ele me chamou um dia e falou: Evandro, você já sabe ler O negócio é que você está assim meio amarrado, a leitura evolui num processo, é uma coisa assim prazerosa, é como comer um bom doce. Essa é a linguagem dele pra não dizer que eu não sabia ler. Falou: “Mas eu vou lhe dar umas dicas, você começa nos salmos, você começa com o salmo vinte e três e começa a juntar as letras. Não precisa correr. Ler não é correr Ler é um processo, é bem lento. Você vai correr quando você aprender a ler. Quando você dominar a leitura aí você correr, vai ler muitos livros, vai se entusiasmar”. Foi por aí que eu comecei a ler.
P1 – E esses cordéis que o senhor tinha guardado, você trouxe para o Rio?
R – Não, não trouxe. Aí vendi a um camelô chamado Fumaça. Fumaça tinha uma banca de livros, livros não, revistas usadas na feira de Aquidabã, feira de segunda-feira. E aí quando eu vim pra cá, eu chamei ele, minha mãe chamou ele e vendi os livros, quase dei pra ele os cordéis, 300 cordéis. Mas quando cheguei aqui encontrei na cidade, no sebo, alguns livros daqueles que eu li, que eu olhava, que tinha em casa. Romeu, Josafá e Marieta, é um romance cordel lindo. É a história de um cidadão que é pego e é vendido como escravo para um fazendeiro baiano, e ele lá consegue se soltar e a filha, filha única do fazendeiro consegue se entusiasmar e se apaixonar por Josafá. Ela é Marieta. Mas o pai queria que ela se casasse com seu capataz, que era um homem muito cruel e rebelde. E aí o Josafá consegue vencer o capataz, se solta, vence o capataz e mata ele, numa briga, e consegue se casar com Marieta, e voltar pra terra dele, aonde ele era muito rico, fazendeiro, foi muito rico. Eu acho que eu tenho um cordel desse. Consegui uns três daquela época, que eu lembre, e comprei. Está guardado aí.
P1 – Mas como era o pessoal naquela época com os cordéis? Ficava vendo as xilogravuras e ficava imaginando as histórias?
R – Era, era. Você vê o cordel da roça daqui, né? Lá o propagandista na feira, ele começa a cantar o cordel: “vou contar-lhe uma história de Josafá e Marieta...” aí começa, é tudo cantado no microfone. E aí pára na segunda estrofe, para você comprar o livrinho. Aí pega outro e começa a cantar. Senão o cara ouve um cordel e não quer comprar.
P1 – E o senhor foi comprando?
R – Não, aí quando eu ganhava um centavo, quando eu ganhava um dinheirinho, eu corria e comprava um cordel na feira.
P1 – O senhor chegou a ter trezentos cordéis?
R – Trezentos cordéis. É muitos cordéis. É muita coisa.
P1 – E esse Josafá e Marieta marcou o senhor por algum motivo?
R – Marcou porque era um romance bonito. É um romance bonito. Depois que eu li aqui, comprei ele, li, é uma coisa. Eu ouvi o cara ler lá, por aquelas idéias dele lendo eu já achava uma coisa. Josafá e Marieta, é uma coisa. E tem aquelas imagens de Josafá, Marieta. Josafá sendo pego no navio, preso, vendido escravo. É um enredo, assim... Depois o Pavão Misterioso, esse é um romance...
P1 – O senhor não tem algum que sabe de cor?
R – Não, não lembro não.
P1 – Que possa cantar um trechinho pra gente?
R – Não. Josafá e Marieta lembro, porque contei esparsamente como é a história, o enredo, mas não lembro assim. Ultimamente não estou lendo cordel. Leio cordel também, mas não procuro decorar cordel, eu procuro mais decorar a literatura, poesia, alguns textos. Porque decorar uma poesia não está em você ler ela toda, você tem que declamar uma frase daquela poesia, um textozinho, que é para o individuo se mancar e ir lá ler o livro, buscar o autor. Ele tem que se entusiasmar. Ele é que tem que ir buscar o conteúdo da poesia no livro daquele autor.
P1 – Me diz uma coisa, como é que foi? O pastor começou a ensinar o senhor a ler, e eventualmente o senhor lia trechos da Bíblia? Como foi lapidando isso, a leitura, o aprendizado?
R – É porque não existe analfabeto, né? Não existe. Existe é intelectos não lapidados, é um neologismo que eu criei, intelectos não lapidados. A vida é uma lapidação de intelecto. Você pode não saber ler e escrever, mas você usa as letras e números dia e noite, sem parar, certo? Então, me dê um beijo, um cara pedindo à esposa ou à noiva. Nesse me dê um beijo você usou quantas palavras, quantas letras? Sem saber que está usando as letras do alfabeto. “Oi, tudo bem?”, usou o alfabeto. Pegar o ônibus, usou o alfabeto, letra. Então o homem é números e letras, só isso. Aliás, quem disse foi Pitágoras, não estou inventando nada. Aí comecei a ler, me entusiasmar com salmos e tal, aí a Bíblia, né? Fui trabalhar na Vila do João, ali perto do Instituto Manguinhos, a vila do João fica daquele lado ali, Bonsucesso. E lá eu encontrei uma figura, assim, de proa na literatura, o Dernival Pereira Santos, um pedreiro, da cidade de Capelas, uma cidade de Sergipe. Ah Esse foi um achado E ele era muito sistemático. Pra eu me aproximar dele, pra criar aquela coisa de amizade, foi uma batalha. Mas consegui. Aí na hora do almoço, almoçava rápido a marmita e ia lá pra ouvir ele declamar Shakespeare, Tobias Barreto, Lima Barreto, Machado de Assis, Silvio Romero, Gabriela Mistral, Pablo Neruda, eu nem sabia... E aí quando ele falava assim, ele se posicionava e tal, dizia: hoje Evando, vamos falar sobre os clássicos Quando ele falava clássico eu não entendia bulhufas, me vinha na mente, clássicos, aquele cigarro. Um cigarro clássico que tinha na Souza Cruz. Eu pra mim, que cabra besta, ele vai de clássico, de cigarro, pra que ele vai falar de cigarro? Aí depois que eu fui entender que clássico era os textos. Texto clássico significava um texto bem apurado. Um Shakespeare, um Neruda, uma Gabriela Mistral, um Machado de Assis. Isso era clássico. Clássico era um texto em que a crítica chegava a seguinte conclusão: que tinha o menos possível de falha. Aí era um clássico da literatura, aí é que eu fui entender. Aí com ele eu aprendi e descobri a literatura brasileira.
P1 – E isso o senhor tinha que idade?
R – Ah, tinha mais ou menos uns 19 anos, já.
P1 – E o senhor começou a trabalhar também como pedreiro? Ele também era pedreiro?
R – Pedreiro. Eu já tinha trabalhado na Manchete, né, meu primeiro emprego aqui no Rio foi na Manchete, de pedreiro. A Manchete tem uma história maravilhosa. Quando eu me lembro da Manchete, às vezes me vem lágrima nos olhos, porque foi o período que eu mais aprendi, não só profissionalmente como pedreiro, fazendo aquelas paredes de tijolinho à vista, um trabalho meticuloso. Mas lá também conheci pessoas maravilhosas no ramo de pedreiro. E o Adolfo Bloch, que pra mim depois de Tobias Barreto, Monteiro Lobato, vem Adolfo Bloch na divulgação do livro e da revista no Brasil. Eu se pudesse já tinha feito uma estátua e colocado numa praça do Rio de Janeiro em homenagem a Adolfo Bloch, porque ele merece. Pouco se fala dele. O Rio não fez uma homenagem à altura da sua memória. Lá, todo final de semana, ele determinava que todos os seus operários, tanto da gráfica quanto da construção ganhassem uma revista Manchete e uma Fatos e Fotos. Aí eu pude me deliciar na beleza das imagens. Já sabia ler, mas a Manchete me impressionava mais com as imagens. Eram pequenos textos com aquelas figuras, aquelas fotos maravilhosas. E ganhamos também uma vez um exemplar da História do Brasil do Adolfo Bloch. Ah, que coisa. Adolfo era judeu, era uma pessoa maravilhosa. O salário mais alto que eu ganhei foi na Manchete, a refeição melhor foi na Manchete. O almoço era dois bifes acavalados, era comida à vontade. Eu fazia questão de fazer cerão, só por causa do “rango”. Foi um período, um ano e um mês trabalhando num paraíso. A Manchete era um paraíso em matéria de trabalho. Era onde o operário era respeitado, comia bem e ganhava bem. E ganhava cultura.
P1 – Um ano e meio?
R – Um ano e meio. Adolfo foi o primeiro homem no Brasil que juntou livro e comida ao mesmo tempo para os seus operários. Ele merece uma medalha de ouro cunhada em homenagem a ele. Merece estátua, muita coisa. Lá eu pude me deliciar com as imagens da revista Manchete e era uma coisa... Todo final de semana tinha uma pilha de revistas Manchete e Fatos e Fotos. Você passava lá e apanhava duas revistas pra levar pra você. Fantástico
P1 – Mas como o senhor chegou ao Rio de Janeiro?
R – Veio eu e minha mãe. Meus três irmãos, meu irmão José, a Conceição e a Carmem já estavam aqui. Nós viemos porque lá na cidade estava muito ruim, não tinha condições de trabalho. Minha mãe veio primeiro. Chegou aqui e ficou encantada com a festa de Cosme e Damião, que dava doce. “Olha, lá tem umas festas que eles dão doce, dão presente...”. Ela chegou lá maravilhada com essa coisa do mundo rico. O Rio de Janeiro é muito rico, São Paulo, essa coisa de dar as coisas, comida e bebida. Uma coisa de louco. Ela chegou lá contando, “vamos pro Rio”. Aqui nós fomos morar na casa do José, meu irmão. Depois um parente nosso, primo, chamado Dionísio, que era padeiro há muitos anos, muito inteligente, ele tinha uma casa ao lado da igreja em que eu fui morar. Meu irmão fez um comodozinho, um quartinho e eu fui morar lá. Ele ajudou, cobrava barato. Depois eu fui morar em Parada de Lucas, outro bairro. Mas eu agradeço a Deus, e ao Rio de Janeiro, porque nos preservou. Pra você ter uma idéia, eu amo o Rio de Janeiro. Acho o Rio de Janeiro um pavão de asa aberta, só tem beleza. As rugas do pé do pavão são pequenos detalhes. Mas o Rio é um lugar maravilhoso.
Eu não tenho do que me queixar do Rio de Janeiro, só tenho a agradecer.
P1 – Qual a lembrança que o senhor tem do Rio de Janeiro dessa época?
R – Dessa época? A lembrança é da vinda do João, conhecendo o Dermival. E depois da minha igreja Batista. Indo ao Maracanã pra Cruzada da Família e andando no Rio de Janeiro. Indo ao presídio pregar. Fui dois anos no presídio pregar para as presas. Uma equipe de evangelismo. A irmã Luci, uma das mulheres, uma das professoras de mulheres que eu já vi com maior entusiasmo pra pregar o evangelho e ensinar a ler e escrever
presas, que eu nunca vi. Mulher essa que está com deficiência mental, não lembra mais das coisas, está numa cama. E a nossa denominação Batista não fez uma homenagem a essa mulher. Eu aproveito esse espaço pra falar isso. E o meu amigo e pastor, professor, como é rapaz o nome, me fugiu, mas vou lembrar. Um cabra que foi muito importante na minha vida. Lembrei da irmã Luci, mas me deu branco. Ele ia pro presídio cantava, pregava, era uma figura. Morreu. Faz uns dois anos que ele morreu. Foi uma figura que me marcou muito. Outro também que me marcou foi a minha irmã Aurora, que me deu a minha primeira bíblia quando eu cheguei na igreja. Irmã Aurora. Eu tinha uma bíblia emprestada, ela falou: “não, Evando, eu vou te dar uma bíblia de presente”. Foi a primeiro livro que eu ganhei no Rio de Janeiro e está aí até hoje. Ela fez uma dedicatória e eu de uma maneira não muito sábia, quando a página rasgou, eu joguei fora as palavras de irmã Aurora. Irmão Laurindo que me levava pra pregar na Central do Brasil. Imagine Central do Brasil, quatro horas da manhã? Coisa de louco Eu tive essa experiência. Nicodemos Achei o nome dele. Nicodemos é uma das figuras mais típicas que eu já vi na minha vida. Ele dançava no espírito, ele pregava, ele cantava, né? Ele era uma figura. Uma figura que me ensinou muito a pregar. Irmão Nicodemos.
P1 – Seu Evando, o senhor comentou sobre seu colega de trabalho que lia os clássicos. Eu queria que o senhor me falasse mais desse cotidiano.
R – Ah, o Dermival, Dermival Pereira Santos. O Dermival era uma figura. Hora do almoço... Uma vez eu cheguei, como consegui contato com ele, uma vez eu cheguei meio afoito – era novo na igreja – e ele era ateu. Eu não sabia. Aí cheguei, seis e meia na hora de marcar o cartão. Marquei o cartão e me encontrei com o Dermival e comecei a falar da bíblia e ele falou: “Pára”. “Pára, por que seu Pereira?”. “Pára e me explica tudo que você falou”. E eu não soube explicar. Aí ele coçou a cabeça e disse assim: “eu sinto que você e um rapaz que usa a inteligência, e que busca aprender as coisas. Mas eu vou te dar um conselho: se você não fosse uma pessoa que eu... Você é uma pessoa interessante, que gosta de aprender as coisas. Mas se não fosse dessa maneira eu já ia te dizer a verdade, não ia ter muita conversa, porque não gosto de perder tempo com gente burra. Mas você é uma pessoa que tem futuro. Eu vou te ensinar uma coisa. Nunca fale algo que você não pode explicar. Só fale algo que você tenha certeza e se te perguntarem algo, você explica”. Procurei chão nesse dia e não achei. Fiquei branco, amarelo... Depois que fui entender o Seu Pereira. Desse dia em diante é que eu comecei a freqüentar o local em que ele ficava e comecei a perguntar. Aí ele me presenteou com um acróstico do meu nome. Eu nem sabia o que era acróstico, agora que eu fui entender o que é. Acróstico é uma modalidade grega, que os gregos usavam e cada letra termina com uma frase poética. Então ele me presenteou com um acróstico poético do meu nome. Era uma figura, lia muito, uma pessoa que falava bem. Uma vez eu perguntei: “Seu Dermival, o senhor um homem tão culto. Por que fica perdendo tempo na obra?”. Ele falou: “Evando, aprenda outra coisa: Não se mede o homem pela profissão que ele exerce”. Eu posso ser um pedreiro, um varredor e ler muito. Ser um homem muito culto. O saber não está amarrado na sua profissão. Ter uma profissão é uma dignidade, seja ele pedreiro, doutor, advogado, médico. Não importa o que ele é. Uma profissão é uma coisa sagrada”. Aí, uma vez, outra coisa típica dele, uma vez o Figueiredo fez um discurso. Eu cheguei na obra e ele estava furioso com o presidente Figueiredo: “como que pode? O presidente da minha Pátria e não sabe se expressar bem em português? Por que não me convidou e eu faria um discurso a altura do cargo que ele exerce”. Me deu muita vontade de rir, mas não podia rir, porque senão perdia a amizade dele. Essa foi uma das coisas. Outra coisa que ele ficava furioso era quando falavam que Luis Gonzaga era um genial cantor: “não me fale uma bobagem dessa. Que genial cantor?”. Ele tinha umas coisas assim. “Silvio Santos, que Silvio Santos, rapaz. É um apresentadorzinho”. “Mas é o maior apresentador do Brasil, seu Pereira”. “muda de assunto que eu não quero essas besteiras”. O Seu Pereira tinha essas... Esse do discurso do Figueiredo foi demais: “por que não me convidou que eu faria um discurso a altura do cargo que ele exerce. Não sabe se expressar. Um presidente...”. Eu admirava o Seu Pereira. Era meio chato, quando cismava, assim, acabou. Não tinha mais jeito. Eu li um livro uma vez e aprendi o nome dele em francês. Cheguei lá todo prosa, já tinha a manha do Seu Pereira, e quando sentia ele mais a vontade falava. Um dia cheguei lá na obra e falei: “bon jour, le Poirier”. Ele falou: “parabéns, meu nome em francês”. Graças a Deus que não errei. Bon jour, le Poirier. Pereira em francês. Acho que é, nem me lembro mais.
P1 – Seu Pereira tinha que idade?
R – Ah, ele já era de idade, tinha uns 60 anos na época. Era velhinho. Depois eu procurei o Seu Pereira, mas não achei mais. Esteve na minha casa uma outra vez, me deu um livro de presente sobre Agronomia. Preciso procurar onde está, quero dar um lugar de destaque a esse livro lá na nova biblioteca, em memória dele. Mas eu estou sempre recordando, onde eu vou em entrevista eu falo dele. Ele é o pedreiro mais famoso, depois de mim, na literatura. Está em tudo que é texto. Foi uma lembrança. Ele, Josias Caranguejo, Pastor José Evangelista. Todos já morreram. Todos esses que eram amigos já morreram todos. Josias morreu com quase 86 anos. Era uma figura, aquele era... Essa é uma piada que ele contava, mas eu não posso contar porque ela é pesada. Uma vez eu estava lá ouvindo, ele falou: Evando, vou te contar uma piada. O que é que entra na rua sem ver, com a boca pra baixo?”. Depois ele me falou, mas eu não posso falar o que é, porque é uma sacanagem.
P1 –Mas, Josias Caranguejo, ele fazia ...
R – Ele trabalhava na roça, fazia farinha. Era contador de história. Foi a pessoa que mais me marcou. Ele, meu avô, João Viúvo e Praido. Esses quatro assim... O Praido era um contador de história. A banana... Você vê: o cientista disse que na casca que tem a vitamina. Mas ele não sabia ler, não sabia nada, era da roça. Ele ouviu alguém falar. Mas ouvir como, se não tinha nem rádio lá no lugar? Meu avô foi o primeiro a comprar um rádio. No dia que meu avô comprou o rádio, foi com minha avó, mãe Maria, né, chamava de Mãe Maria; avô José Mestre e mãe Maria, eles foram pra cidade de Muribeca, visitar uns parentes. E aí, minhas irmãs e as mocinhas da região fizeram o primeiro baile, ouvindo rádio. Coisa de louco Ouvindo a rádio Liberdade de Sergipe. Aí, cara, tinha um intervalo que o locutor contava aquela história e botava uma música. É mole? Aí na hora da música é que eles dançavam. Meu avô não gostou quando soube, deu uma briga. Lugar que tinha baile e dança era coisa de, não era confiável. Aí aproveitaram que ele foi pra Muribeca, visitar uns parentes, com minha avó, mãe Maria, e elas aproveitaram e fizeram o baile. Um baile a rádio de madeira grandão. Aquilo ligava, era uma coisa... E elas sintonizaram na rádio Liberdade de Aracaju. O cabra lá era aquela... Vinha uma música. Contava aquela história...
P1 - O senhor começou lendo a bíblia. Qual foi o primeiro livro de literatura que o senhor se lembra de ter lido?
R – Dias e Noites de Tobias Barreto. Dias e Noites, eu li e sempre leio. Não só livro de filosofia e crítica literária dele, mas o Dias e Noites. Dias e Noites é o maior livro de poesias da fase condoreira no Brasil. Aí, decorei alguns trechos do livro e tal.
P1 – Por favor.
R – “Juntei umas almas gratas, de colegas e irmãos, do vento que acorda as matas, nos toma os livros das mãos. A vida é uma leitura, quando a espada figura, quando se sente bater no peito a heróica pancada, se deixa a folha dobrada quando se vai morrer”. Capitulação de Montevidéu, 1866. Aliás, esse poema, você quando for lá na Faculdade de São Francisco, vai ver algumas frases desse poema lá, nos umbrais da entrada da academia de Direito, lá do São Francisco. Eles dizem que é de Castro Alves, mas é de Tobias.
P1 – Por que esse livro?
R – Não, porque eu gosto de poesia. Poesia é a coisa mais importante da literatura. Se você quer ensinar alguém, comece a ensiná-lo com poesia. Eu comecei com poesia. Os salmos é poesia.
P1 – E quem indicou pro senhor esse livro?
R – Foi o Dermival. Uma figura de proa. Eu fui lendo e descubro nas minhas leituras que Confúcio, filósofo Chinês, 500 anos antes de Cristo, dizia que só se educa bem com três pontos: poesia, bons costumes e música. Olha Isso é Confúcio, 500 anos... Que coisa maravilhosa. Três pontos: poesia, bons costumes e música. Então, a poesia te leva ao delírio, sem a loucura, diziam os gregos. Então a poesia meche com todo teu ser mentalmente, fisicamente e com todas as suas engrenagens físicas do seu corpo. A poesia tem essa coisa, né? Então, o que é poesia? Poesia é isso. Tem uma frase de Camões que ele diz assim: o amor é fogo que arde e não se vê. Ferida que dói e não se sente, é um contentamento descontente. É dor que desatina, sem doer. Isso é poesia. Martins Fontes, poeta paulista, dizia assim: antes de conhecer-te, eu já te amava. Porque sempre te amarei a vida inteira. Era a irmã, a noiva e companheira, alma gêmea da minha que eu sonhava. Eu se tivesse dinheiro fazia... Mesmo sem dinheiro já faço. É uma plaquinhas pra dar às pessoas na rua. Como eu já faço o folheto literário, umas plaquinhas, só frases poéticas sobre amor. Aí tem um casal de namorados, você declama e dá uma plaquinha pra eles, com uma dica: acorde sua amada com esse poema todas as manhãs. Tem muita coisa a fazer com literatura que evita mortes, evita droga, evita roubo. Só ter inteligência, só ter criatividade.
P1 – O senhor trabalhava na construção e aí conheceu o Dermival Pereira. E daí o senhor saiu dessa construção e foi pra outra. Continuou trabalhando como pedreiro?
R – Continuei trabalhando como pedreiro. Há oito anos é que eu estou na moita do livro. Até oito anos atrás eu continuava trabalhando como pedreiro, fazendo pisos, azulejos em parede. Minha parte era mais fazer azulejo e piso. Mas eu sei fazer parede, sei emboçar, só não faço na obra uma coisa que nem faço nem quero, que é mexer com eletricidade. Isso não faço, nem pego. Tenho pavor de negócio de eletricidade, choque. Mas, fazer a encanação, fazer uma parede, emboçar, marcar uma obra, desde que não seja muito complicada. Porque você tem plantas complicadas. Mas marcar uma casa comum eu faço, né, já fiz isso.
P1 – Daí o senhor continuou mantendo aquele costume de nos almoços ir lendo, mesmo sem o Dermival Pereira?
R – Aí, montamos a biblioteca. Falei: “como lembrar meu grande amigo Dermival?” Aí criamos a feijoada literária Tobias Barreto. A gente faz uma feijoada por ano. Ah, nossa feijoada, eu tenho gravada. Já filmei a nossa feijoada. A nossa feijoada literária, se eu tenho dinheiro fazia todo mês uma feijoada, de três em três meses uma feijoada. A nossa feijoada nós recebemos aqui 160, 150 pessoas. Aí vêm poetas, escritor, varredor, gari, todo mundo. Enche isso aqui, fica gente lá fora. Essa mesa é ali, a feijoada é ali. Você come a sua feijoada, não paga nada. Aí depois tem período literário, período da música, mas sem aquela regra. “Oh, vou declamar um poema”. Levanta, declama, fala sobre seu autor predileto. Não tem aquela amarra. Não tem apresentador. Eu só dou um pontapé. Cara, vai até seis, sete horas da noite. É a coisa mais deliciosa. Você não pode divorciar comida de livro. Quando você junta comida e livro, você tem violência zero. Aliás, o velho Tobias, o maior escritor brasileiro, dizia: “fácil é falar pra quem está com a barriga cheia. Difícil é falar pra quem está com ela vazia. O homem com a barriga vazia, ele não produz, ele não cria, ele é uma presa fácil das coisas malévolas”. Imagina Tobias falando isso no século XIX? Ninguém pensava nisso. Aí tem uma frase dele que ele diz: “o estado pergunta se a criança aprende. Por que não procura saber se ela comeu, se encheu a barriga?” Está vendo? Então você já tem um problema de fome em pelo período de Pedro II e problema de escola, porque tem criança na rua, abandonada.
P1 – E como o senhor nessa época que era pedreiro conseguia os livros?
R – Comprava. Eu comprava. Deixava de comer pra comprar livros. Eu me dou ao luxo de ler... Não gosto de ler qualquer livro. Em certas matérias eu sou muito rigoroso e meticuloso. Por exemplo, na história do Brasil, pra mim só tem três historiadores brasileiros: Roberto Souto, de 1810. Um inglês que fez a primeira história do Brasil. E aí eu tenho seis volumes dele e me dou o luxo de ler. Quero uma história do Brasil, vou lá em Roberto Souto. Depois o Padre Terereca, em 1825. São dois volumes. Pronto aí está a minha história do Brasil. Sem essa não tem história do Brasil, o resto é conversa fiada. Eu quero história do Rio de Janeiro? Monsenhor Bizarro, Noronha Santos. Mas pra achar Monsenhor Bizarro e Noronha Santos, vê se eu tenho dinheiro pra comprar. Só quando você acha no sebo pra comprar. Eu tenho dez volumes do Monsenhor Bizarro e do Noronha Santos. Aí eu quero Rio de Janeiro? Noronha Santos.
P1 – Nessa época então o senhor deixava de comer pra comprar os livros?
R – Eu comprava. E tinha a maior fascinação. Eu pedi a Deus, eu orei: “Senhor, eu preciso ter a História dos Hebreus, de Flávio Josefo. Eu quero os nove volumes”. A melhor tradução já feita em língua portuguesa, por um padre paulista. Não tem, é relíquia. “Ah, e quero, Senhor, a obra do Tobias Barreto, os dez volumes editados no estado de Sergipe”. Oh um galo músico É a única casa do Rio de Janeiro, onde você vai ter o prazer de ouvir um galo músico cantar. Você já viu um galo cantar desse jeito? Só aqui você vai ver. Veio de Carambola, cidade de Minas. Professora Amelinha, secretária de cultura, me mandou de presente. Eu fui lá inaugurar a biblioteca, doamos 5400 livros. Eles me fizeram uma placa lá em Carambola, uma homenagem e tal, e aí eu falei: “professora Amelinha, como é que eu acho um galo músico?” Ela se empenhou, descobriu numa fazenda e ó... Eu sou sempre um privilegiado, livro à vontade, um galo músico... Você não tem... E aí o livro Josefo, eu fui fazer um piso e um banheiro do Doutor Ronaldo, na avenida, ali no centro do Rio, não lembro o nome. Saí de tarde do trabalho, desci ali, porque eu sou um rato de sebo, até hoje, comprei um livro outro dia de sebo. Quando eu entrei no sebo, me deparei coma Historia dos Hebreus de Flávio Josefo, a obra do Tobias Barreto. Não acreditei. Falei pro moço: “pelo amor de Deus, não venda. Amanhã venho buscar esses livros”. Liguei pro doutor Ronaldo, ele me adiantou uma parte do dinheiro. Nesse dia eu não trabalhei, comprei as duas coleções e vim pra casa. Então eu me dou ao luxo de ler, quando eu quero literatura antiga sobre a história dos judeus, que é considerada a segunda bíblia dos judeus, o maior, um dos quatro maiores historiadores do mundo – você tem Filos, um historiador grego também, tem um historiador egípcio, tem Josefo que é considerado o pai da história, Josefo, não. Heródoto, o pai da história. Que escreve a primeira história do mundo nos moldes como nós conhecemos, por isso foi considerado o pai da história, um grego; depois você tem Filos, outro grego; um historiador egípcio; depois tem Josefo, o historiador hebreu. Um príncipe judeu. Quando Jerusalém é invadida pelos romanos, o imperador da época mandou separar alguns jovens judeus, príncipes, e lá eles foram educados segundo os costumes de Roma. Mas ele já era um príncipe. Josefo se destaca nesse grupo de príncipes judeus e ele começa a escrever a história dos hebreus em hebraico, em grego e depois em hebraico. É a melhor. Se você lê a bíblia e depois lê Josefo você tem a noção exata do que é o mundo em todos os seus aspectos. Eu me dou ao luxo de ler Josefo, numa edição primorosa, a primeira feita no Brasil, em nove volumes. Eu tenho o prazer de ler. Eu tenho uma bíblia aí de 1800. Antes de ler, eu me ajoelho, oro a Deus e agradeço por ter aquela bíblia. Abro um texto, beijo o texto e leio de joelhos. Só eu vou ter esse privilégio, ou um pastor muito antigo. É uma bíblia de 1852, em latim. Josefo fazia esse mesmo ritual. Então, eu não leio qualquer literatura no assunto. Quando eu quero filósofo, eu leio Comte, porque pra mim Comte é o maior dos filósofos. O mundo só teve quatro filósofos: Sócrates – todo meu saber consiste em saber que nada sei. Aí está a base do saber. Depois vem Comte. Tem uma frase de Comte que eu acho assim... Eu um intelecto não lapidado não posso me dizer Comteano. Porque pra estudar Comte, você tem que ter no mínimo dez anos estudando Comte, pra se dizer um comteano. Mas como eu sou um indivíduo abusado, muito abusado, eu me digo Comteano. Em filosofia, só leio Comte. Tem uma frase de Comte que ele diz assim: toda e qualquer noção da realidade, só pode ser bebida na fonte da experiência. Isso é Comte. Outra frase dele: não basta saber, tem que fazer. Olha Imagina Comte, é o maior filósofo da renascença. A filosofia é Sócrates, pai da filosofia; Comte; e Confúcio. Aí Confúcio diz: “só se educa bem com três pontos: poesia, bons costumes e música”. Quando Confúcio fala em música, eu que sou abusado, quando vou fazer palestra, eu declamo, conto essas experiências e canto. Tem uma música linda que eu acho, o cidadão fez pra mim, ele não sabe, mas fez pra mim, que é o Almir Sater, na voz da Bethânia, é um favo de mel. É Tocando em Frente. Ele diz assim: ando devagar, porque já tive pressa. E levo esse sorriso, porque já chorei demais. Hoje me sinto mais forte, mais feliz quem sabe, de só levar a certeza de que muito pouco eu sei, e nada sei. Conhecer as manhas e as manhãs, o sabor das massas e das maçãs. É preciso amor pra poder buscar, é preciso paz pra poder sorrir, é preciso chuva para florir. Sinto que seguir a vida seja simplesmente conhecer a marcha e ir tocando em frente. Como um velho boiadeiro levando a boiada, vou tocando os dias nessa longa estrada eu vou. Estrada eu sou. Conhecer as manhas e as manhãs, o sabor das massas e das maçãs. É preciso amor pra poder buscar, é preciso paz pra poder sorrir, é preciso chuva para florir. Sinto que seguir a vida seja simplesmente compreender a marcha e ir tocando em frente. Como um velho boiadeiro levando a boiada, vou tocando os dias pela longa estrada, eu vou. Estrada eu sou. Cada um de nós compõe a sua história e cada ser em si carrega o dom de ser capaz, de ser feliz”. Essa é a música do século do passado e de todos os séculos que virão.
P1 – E por que essa música é pro senhor?
R – Porque ela é uma história de vida. Ela é a minha história. A história daqueles que não tiveram dinheiro, que não conseguiram vencer na vida e nem por isso se prostituíram, fumaram, cheiraram. Se esquivaram dessas coisas e seguiram um caminho firme, compondo sua própria história. Seguiram seu caminho, vencendo obstáculos através das boas experiências, da vida. Essa música é... Quando a Bethânia canta, ela é uma rainha... Tanto é que eu andei pela cidade igual a um jumento atrás do CD. Eu nunca comprei CD. CD só compro de Roberto Carlos, Ângela Maria, Vicente Celestino. Mas comprei o CD da Maria Bethânia, só por causa dessa música. Porque eu não compro qualquer CD. Eu sigo aquela regra do maior apresentador, Flávio Cavalcante, quando quebrava aqueles bagulhos no seu programa. Como Flávio Cavalcante está fazendo falta hoje na televisão pra quebrar muitos agora CDs.
P1 – Então, voltando um pouquinho nessa época que o senhor começou a ler, a comprar livros, guardando muito do seu salário pra comprar livros.
R – Juntei. Eu tinha a minha biblioteca particular, está espalhada na casa da minha mãe e alguns livros no quarto – Josefo, Tobias Barreto está guardado . Eu cheguei a ter 700 livros nessa biblioteca particular. Bíblias, Introdução ao Novo Testamento. Eu tenho aqui também o segundo livro de homilética feito no Brasil. Temos a primeira introdução feita, e comentários do novo e do velho testamento, feita em língua portuguesa, da década de 50. Editado pela Casa Comunicadora Batista, hoje Joe. Eu tenho alguns livros teológicos que são raros, poucos têm, só pastores antigos, outros pastores da velha guarda, né? Meu pastor, Pastor Luis de França, que foi meu pastor depois do João Evangelista. Eu tive só dois pastores na Igreja: o pastor João Evangelista, que tinha livros raríssimos. Eu também aprendi a ler livros teológicos na biblioteca dele.
P1 – E como passou dessa idéia de ter uma biblioteca particular para ela ser pública.
R – A idéia de uma biblioteca comunitária surgiu quando eu fui a uma biblioteca pública. E lá eu me deparei com aquela burocracia muito grande: tem que escrever um texto, pagar uma taxa, levar uma foto. Tanto tem, tanto tem e nada de volta, que eu me enchi a paciência e me veio na mente: “Meu Deus, eu tenho que criar uma biblioteca comunitária e sem burocracia, totalmente liberta dessa burocracia. Fazer com que o livro circule, fazer com que o livro assuma verdadeiramente o papel pelo qual foi editado, o papel da circulação. Foi quando eu achei 50 livros, indo consertar um vazamento na casa do Dona Benedita, no dia 17 do sete de 98. Achei os 50 livros e trouxe, coloquei na sala. Falei: “agora é a hora”. Orei ao Senhor e falei: “ Senhor, uma biblioteca tem que ser fundada por quem é do ramo, um professor, uma pessoa culta. Eu sou um intelecto mal lapidado, vou ter problemas. As pessoas vão me encher a paciência, me chamar de analfabeto e eu posso...” Aí eu pensei: “a mídia. Só a mídia pode alavancar isso”. E um folheto cultural pra dar na rua. Criei o folheto cultural, cada vez tem um texto, uma historinha, uma curiosidade, ou um assunto educativo e liguei pro jornal o Dia. O primeiro jornal que eu liguei.
P1 – Isso logo depois de pegar os 50 livros?
R – Os 50, depois tinha mais 300, já tinha 1200 livros.
P1 – 1200 livros?
R – 1200 com os 50. Aí liguei pro jornal O Dia e lembro como se fosse hoje. Falei com a repórter, a jornalista e ela: “ah, esse negócio de biblioteca... Já tem muita biblioteca”. Tem e não tem. “Não interessa,não”. Eu falei: “mas é um pedreiro, analfabeto, aprendeu a ler na bíblia...” “aí já é uma história meio diferente. Uma biblioteca de um pedreiro, já é interessante. Eu te ligo depois. Vou falar como chefe de redação”. Uma semana depois ela me ligou, veio uma terça-feira aqui, fez a reportagem, pôs o telefone. Aí decolou. Logo, logo, muitas ligações pra buscar livros e eu fui buscar. Dos 6000 livros, fui buscar 4000 livros de ônibus, com um saco nas costas. Fruto dessa matéria de O Dia. Pessoa ligava “tem aqui 40 livros, 50...”Eu fui buscar livro em Copacabana, Caxias, Nova Iguaçu. Fui buscar livros até em Nova Iguaçu. A boa regra diz que você não pode se auto-elogiar, porque se torna uma coisa muito cafona, muito monótona, mas eu vou me auto-elogiar: eu sou um verdadeiro herói. Porque você encarar ônibus... Ainda encaro, mas penso dez vezes pra encarar. Só quando é um livro de Machado de Assis, aí eu encaro, se não tiver dinheiro pra ir de carro. Mas tem fotos aí que eu tirei no ônibus cheio e eu com saco de livros. Pedi pra pessoa tirar foto. Eu tenho foto aí. Tem foto no bondinho, quando fui buscar livros em Santa Teresa. Coisa de louco, uma aventura. Esse auto-elogio não é um elogio besta, querendo ser... É pra dizer que você pode fazer melhor do que eu.
P1 – O senhor lembra, dessas epopéias, uma história mais curiosa, que ligaram e o senhor foi pegar?
R – Lembro. Tem uma aqui. Uma madame na avenida Atlântica, não, em Copacabana, uma avenida perto da praia, não lembro a avenida. Ela me ligou três semanas direto pra eu ir buscar os livros. Mas eu estava meio preguiçoso de ir buscar. Ela me ligou e me deu um ultimato: “se você não vier buscar, vou jogar o livro fora”. Eram duas bolsinhas de livros. Nesse dia até convidei um amigo que foi de carro. Ah, se não tivesse ido tinha perdido uma preciosidade: tinha perdido um Camões, de 1865, uma edição com um texto de Voltaire, criticando Camões. Essa edição é tão rara, que você não tem nem na biblioteca de Lisboa. Quando eu estive no Jô Soares, um colecionador de São Paulo me ligou e disse: “qual a sua edição? Tenha muito cuidado, guarde porque nem em Lisboa eles têm essa edição. Me ofereceram 1000 dólares e eu não vendi o meu”. Palavra do cara. Aí estava nessa bolsa com esse livro que a mulher ia jogar fora. É uma história típica, uma coisa... E outros livros, veio mais cinco ou seis livros de Júlio Verne de 1881. E outras histórias, como você entrar no ônibus e estar cheio e ficar ali apertado, coisa de louco.
P1 – Qual foi o maior volume de livros?
R – 70 livros. Cheguei a trazer 70 livros nas costas. Pesa muito o livro. Livro pesa muito. Mas o prazer de você disponibilizar, dar para pessoa, doar um livro. Só existem dois prazeres no mundo: o prazer da leitura e o prazer do sexo, no casamento. Você casado com a mulher que você ama, o sexo é a coisa mais deliciosa do mundo. Não tem coisa melhor. Porque Deus preparou a mulher de uma maneira tão maravilhosa, e o que eu vou falar aqui não é sacanagem, é uma pitada de sociologia feminina: você vê o seio da mulher é a coisa mais bela do mundo; as coxas... Vamos parar por aí. (RISOS) É uma coisa... Só Deus pra criar um ser tão maravilhoso como a mulher.
P1 – Depois da matéria no jornal...
R – A biblioteca explodiu. Começou a receber um monte de ligações, eu me danei a buscar livro, a gastar dinheiro pra buscar livro. Livro na Barra da Tijuca, tinha que contratar carro pra ir buscar, coisa de louco.
P1 – Nessa época o senhor ainda estava trabalhando como pedreiro?
R – Ainda estava trabalhando. Escolhia os dias, sábado, domingo pra ir buscar. Ou dia de semana, quando a pessoa dizia: “tenho um monte de livros bons aqui”. Aí eu ia. Estava lá por minha conta, autônomo, eu pago a minha autonomia até hoje, estou com mais de 20 anos de Inps pago, uma coisa rara. Pagando sobre dois salários. Espero que Deus me abençoe e eu me aposente. Falta só 15 anos pra eu pagar. Coisa de louco.
P1 – Senhor Evando, quando o senhor se deu conta, entre aqueles primeiros 50 livros e um volume em que o senhor pensou: “agora tenho realmente uma biblioteca” Quando foi isso?
R – Quanto tinha ali 600 livros, estava ali, já. Eu parei, olhei, e falei: “uma biblioteca tem que ter no mínimo uma estante”. Comprei umas tábuas e fiz a primeira estante de madeira. Aí arrumei os livros todinhos lá na estante.
P1 – Da sua biblioteca particular?
R – Não, aí já tinha os livros doados. Da minha biblioteca particular, eu deixei lá dentro. Não estão aqui, não. Aí fiz a estante que você não vê, mas se olhar ali, vê uma parte da estante. Aí, a biblioteca tem que ter uma visão de biblioteca, mesmo comunitária. Arrumei tudo bonitinho por assunto e aí começou a chegar livro. E comecei a amontoar. Amontoei e esqueci dos livros lá por assunto. Aí começou a chegar gente. A pessoa ia na pilha e era uma dificuldade pra achar o livro que queria. Voltei ao velho processo e passei a arrumar: pilha de matemática,coloquei uma plaquinha, o patrono e algumas frases de autores. Por exemplo: pilha de História do Brasil, Tobias Barreto, nasceu no dia sete do seis de 1839 e morreu dia 26 do seis de 1889. E uma frase dele: a vida é uma leitura, ler é lutar. Uma frase de Comte: Não basta saber, tem que fazer. Uma frase de Cícero, senador romano: uma casa sem livros é um corpo sem alma. O patrono da pilha, frases instrutivas dando estrutura àquela pilha. Aí divide por assunto como está aí. Olha, eu acho que toda biblioteca, mesmo as burocráticas do Estado deveria ser dividida por assunto. É muito prático. E aí o indivíduo chega lá na pilha e garimpa o assunto que ele quer, pra sentir o livro. O livro tem que ser sentido e cheirado, dizia Monteiro Lobato. Livro tem que ser sentido e cheirado, só dessa maneira vai ser lido. Se não tem esse processo, não adianta que não vai. É isso que está aí, falta de leitores. 1,8 leitor por ano enquanto o americano lê dez livros por ano. Agora pergunta por que ele lê? Pergunta por que eles mandam no mundo? Eles têm a maior biblioteca do mundo em Washington, no congresso americano, em Washington, que tem 24,6 milhões de livros. É a maior biblioteca já formada no planeta. Só a biblioteca de Alexandria foi superada até hoje, a de Alexandria, considerada a maior biblioteca do mundo antigo em número. Que a primeira biblioteca foi a da cidade de Tebas, no baixo Egito, criada 3200 anos antes de Cristo por Hansés II, o grande Faraó Egípcio. E estava escrito na entrada: Tesouro dos remédios da alma. Olha que coisa. Essa frase eu vou colocar lá na entrada. Duas frases: Tesouro dos remédios da alma, frase de Hansés II, biblioteca de Tebas, 3050 anos antes de Cristo. Aliás, essa frase vou escrever na entrada, que eu vou dividir a calçada por fase literária: condorismo, realismo, simbolismo, semana de arte moderna e a frase do Hansés II, Tesouro dos Remédios da Alma, primeira biblioteca da terra, cidade de Tebas, baixo Egito. Depois: a vida é uma leitura, ler é lutar. Uma casa sem livros é um corpo sem alma, Cícero, 100 anos antes de Cristo. Você vê que coisa. Realmente a biblioteca é uma farmácia, é um tesouro e tem os remédios para todasos problemas da alma e as dores do mundo. Isso é 3050 anos... Coisa de louco. Um faraó fantástico e foi o faraó que mais prosperou no Egito, porque gostava de livro e amava livro. E era livro de tijolo, argila, imagine, meu Deus do céu, uma coisa...
P1 – Quantas pessoas o senhor acha que passaram pela biblioteca?
R – Nós temos uma média de 30 a 40 pessoas por dia.
P1 – Por dia?
R – Por dia. Tem dias que vêm 30, 20, 10. Tem dias que vêm 30, 40, 50. Isso de segunda a sexta. E domingo tem cinco ou seis pessoas. Trabalhadores que não podem vir durante a semana, vem no fim de semana. Ela está aberta. Pegam o livro, fazem a pesquisa, ou pra fazer concurso, né? Tem dias que aqui está cheio de adolescentes, estudantes de direito, de pedagogia e crianças de modo geral.
P1 – Tem alguma história que o senhor se lembre e que tenha marcado? Pessoa que mudou o hábito de leitura?
R – Tem a história de uma criança. Há três anos atrás. Ela bateu palma ali, era 18 horas, ela bateu palma. Estava ela e o tio. O tio é quem lia pra ela. Eu digo: “boa tarde”. “Senhor Evando, eu quero um livro esperto e maneiro pra ler”. Eu abri o portão, entrei, ela sentou ali eu fiquei em pé, ali. Ela sentou, eu falei: “o que é um livro esperto e maneiro?” “Olha seu Evando é um livro cheio de figura, bonito”. Ela não sabia ler. Realmente aquilo foi a coisa mais marcante que eu tive na biblioteca. Isso me fez pensar como o velho Brizola, que o futuro está na criança e no ancião. E tudo sai da cabeça, dizia o velho Brizola e o Tobias Barreto. A criança é a base do Estado. O Estado somos nós. Então se não cuida das suas crianças, não tem futuro. Se não preserva a vida do seu idoso, seu futuro é zero. Por isso o Brasil está assim, pensam em tudo, mas não acontece nada. Eles matam as crianças e destroem os velhos e não amam os livros. Essa foi uma coisa. E outra, tem uns dois anos: chegou um rapaz, com uma criancinha desse tamanho – da criança eu não tirei a foto dela nesse dia – fiquei tão atordoado com a mensagem livresca que perdi o time e não tirei a foto dela. Mas, esse rapaz veio aqui e falou: “seu Evando, boa tarde. Vim trazer o meu filho para o senhor conhecer”. E aí ele parou ali e começou a contar a história dele. “meu filho, esses são os livros do Seu Evando. Aqui eu apanhei um livro, passei no concurso público e você até hoje come bem, dorme bem, graças aos livros que o Seu Evando disponibiliza aqui. Eu fiz questão de te trazer pra você ver. Aqui está o seu futuro”. Essa foi muito forte. Eu tirei a foto dele. Tem mais de 300 fotos, mas essa eu tirei. E tem muitas outras, de quanto o livro é capaz de fazer. Hoje ele é bem empregado no estado, ganha bem e trouxe o filhinho pra mostrar o lugar onde apanhou o livro.
P1 – Esse é o maior orgulho para o senhor?
R – É um dos orgulhos. O maior orgulho é ter os livros aqui e emprestar às pessoas e dar. Os orgulhos são muitos. Orgulho é uma coisa como amar um livro. A cada minuto acontece um orgulho novo, uma coisa nova. Mas o maior orgulho é ver a pessoa apanhar o livro. Não tem dinheiro, mas apanha o livro e leva, faz sua tarefa. Essa é a... É muito interessante. É um trabalho que merece muito carinho do Estado, mas às vezes o Estado não quer dar. O Estado somos nós, e algumas vezes, nós não estamos a altura de um projeto tão maravilhoso quanto o projeto do livro na vida do ser humano. Eu tenho uma frase que eu criei pro arrastão, e você vê o poder da literatura, que você cria até frases, tem uma frase que eu criei que diz assim: leia um livro e encontre-se consigo mesmo. Não tem frase mais maravilhosa que essa, é uma frase poderosíssima. Leia um livro e encontre-se consigo mesmo. Se você ler um livro e se encontrar consigo mesmo, você vai ser uma benção socialmente e com você mesmo. Porque quando você não é bom com você mesmo, não vai ser bom com ninguém. E o livro consegue fazer isso. Só o livro consegue eliminar a discriminação e a violência, porque o livro iguala os homens. Você vê, o meu sonho é tomar um chá na academia. Ah, eu delirava. Dois anos esperando. Aí fui convidado pelo professor Antonio Olinto, membro da academia. Mas graças ao amigo e filósofo, grande amigo, Doutor Paulo Mercadante, que é amigo do Antonio Olinto. Ele que conseguiu o chá para eu tomar. Foi uma experiência... Só o livro me levou lá.
P1 – Conta pra gente.
R – Quando um homem comum como eu ia na academia tomar chá? Mas eles se sensibilizaram, o doutor Antonio Olinto, por causa dos livros. Fui de terno. Foi uma experiência que eu quero ter outra. Qualquer dia desses, eu vou pedir pra ele me arrumar outro chá que já tem novos imortais que eu quero conhecer lá no chá. Af, foi... Quando eu adentrei naquele salão, recebido, introduzido no salão do chá pelo Antonio Olinto, e já estava tomando chá o professor Josué Montelo. Aí, eu entrei, o Antonio Olinto falou: “Montelo, amigo, este é o Evando, o pedreiro que montou uma biblioteca, distribui livros, o homem que distribui os livros que nós escrevemos. Merece todo carinho”. Aí o Josué Montelo olhou: “meus parabéns, sente-se aqui. Vamos tomar um chá juntos”. Coisa de loucos (RISOS). Josué Montelo, uma legenda, uma marca da nossa literatura, um dos homens mais importantes da literatura do pós-modernismo. O homem que mais escreveu livros no Brasil, depois de Coelho Neto, mais de 100 livros escritos. Uma perda muito grande a morte de Josué Montelo. Morreu com quase 100 anos, 90 e poucos anos. E o Antonio Olinto que é uma figura maravilhosa. Eu, no princípio, meio acabrunhado, mas depois eu me soltei e falei errado, partindo da minha idéia de que não existe palavra errada: Traga minha “cardeira”, deixe pegar o “ônibro”, isso não é errado, é linguagem comum. Não tem negócio de errado. Agora op indivíduo que fez a gramática diz isso é certo, isso é errado, existe o domínio da linguagem. Mas não existe palavra errada. Errado é roubar, matar, isso que é errado. Mas palavra... A linguagem comum é mais bonita que a linguagem acadêmica. Aí, dali a pouco chegou a nossa pena de ouro da literatura, Nélida Piñon, eu sou um fã dela. Minha “ídala”. Não existe palavra errada: minha “ídala”, sou seu súdito. Ela entrou e o professor Olinto, o mesmo ritual: “Nélida, aqui o Evando...”. “Queria muito lhe conhecer, sou sua fã”. Você ouvir isso de Nélida, a pena de ouro do romantismo brasileiro, a Machado de Assis de saia. A importância dela, a mulher mais premiada do Brasil lá fora, só falta ganhar o Nobel de literatura e vai ganhar. Vai ser a primeira mulher a ganhar o Nobel de literatura será Nélida Piñon. Seria Rachel de Queiroz, mas já morreu. Eu lancei Rachel de Queiroz pra ganhar o Nobel, lancei a campanha “Um Nobel pra Rachel”. (RISOS) Aí o Jornal do Brasil fez uma matéria, essas loucuras. Aí um repórter foi entrevistar ela e ela disse: “ah, meu amigo, me deixa fora dessa”. Uma figura muito... Eu tive o prazer de ir a casa dela três vezes. Tenho livros autografados por ela, “dedico este meu livro ao professor Evando...” Fiz documentários com ela, uma coisa de louco. O sonho era conhecer Rachel de Queiroz. Rachel de Queiroz e tomar o chá. Aí a professora Nélida, pena de ouro do romantismo, as duas, né, Rachel de Queiroz e ela, mas uma já sumiu, ela: “Evando, eu queria muito lhe conhecer. O que você faz é maravilhoso. Senta vamos tomar um chá”. Sentei ao lado dela e tem foto ali com ela. Dali a pouco chegou o professor Arnaldo Niskier: “Arnaldo, aqui é o Evando”. Uma emoção. Só Jesus e o livro pra proporcionar. E você aquelas figuras das enciclopédias andando, você ao lado deles. Cara, a Academia Brasileira de Letras, a casa de Machado de Assis, de Joaquim Maria Machado de Assis, é a coisa mais preciosa que o Brasil tem na cultura brasileira. A Academia é o ouro da literatura brasileira. Quem chegar à Academia é a última fase da literatura. Quem chegou à Academia pode se considerar não um imortal, mas um mini Deus da literatura brasileira. Porque, aquelas xícaras francesas, o ritual, aqueles bolinhos. Aí o ritual acabou, porque tem uma hora que eles vão pra uma sala, discutir a literatura. Mas só eles entram. É restrito só aos imortais. Aí eu comecei a comer o bolinho, comer o bolinho, e que bolinho Eu pensei até em amoitar numa bolsinha, mas não levei nem bolsa nesse dia. Coisa de pobre. “Vou levar um bocado desses aqui”. Tinha bastante, coisa de rico é fartura. (RISOS) Mas não deu, esqueci. Quando lembrei já estava no táxi. Eu fui de táxi nesse dia, gastei um dinheirão. Mas foi bom. Aí o outro sonho era ir a uma posse. Ah, eu delirei. Mas pra ir na posse de um imortal, você tem que ser convidado, receber um convite. Mas aí a Nélida me proporcionou essa maravilha, me mandou um convite pra eu ir na posse do Marco Maciel. Oh. A posse é um ritual maravilhoso. É uma coisa estupenda. E o doutor Marco Maciel, que eu não conhecia, só de televisão, tirei uma foto ao lado dele, nos cumprimentos aos imortais. Foi uma emoção. E o discurso do imortal? Eu me posicionei, fui o primeiro a chegar naquele dia, na Academia, cheguei 10 ou 15 para as seis. Mostrei o convite ao porteiro, entrei. Ele não quis o convite e ainda bem, porque aí eu guardei. Me soltei, aproveitei e conheci tudo, tirei foto e tal. Tem aquele livro gigante lá, com a assinatura do Machado. Cara, um negócio de louco Aí eu aproveitei e mandei o cara tirar uma foto ao lado do imortal que estava fazendo um discurso. Eu aproveitei. Digo: “não sei se fazer haver outra, vou aproveitar”. E aí entrei, sentei logo na porta, do lado da porta, numa cadeira ali, sentei e daqui a pouco começou a chegar a rapaziada. Só rico. Só rico e gente importante. Eu sentei e estou ali posicionado, de smoking. Só pode ir de smoking, no chá pode ir de terno, mas na posse só de smoking. Foi uma luta pra eu ir de smoking, porque eu não queria. Coisa de pobre. Eu vou até fazer uma campanha, pra quem puder me ajudar “Me dê um smoking de presente”. Até pra sair na rua, é chique. Você vê eu andando de smoking aqui na rua é uma coisa fantástica. Vão me chamar de louco, mas é a loucura santa. Aí, de smoking, bem alinhado e tal, quem introduz o novo imortal no salão nobre? Nélida e Antônio Olinto. Oh, minhas duas estrelas. E eu estou ali, quando ela adentrou ao salão – vai o candidato na frente e vem os dois introdutores atrás – aí, quando ela olhou, assim, eu estava num lugar de destaque pra aparecer mesmo, pra ser visto, ela olhou: “Evando, meus parabéns Você veio. Meus parabéns. Esta é a sua casa. A casa do homem da cultura”. “Não. É a minha casa porque sou brasileiro, mas não como a senhora. Muito obrigado, Mestra”. E ainda ganhei um beijinho. Nessa não tirei foto. Um beijinho de leve. Ela é a mulher mais importante, mais doce. A sua literatura é uma literatura ouro. Nélida é a escritora mais genial que eu já li e já conheci em toda minha vida. É a maior escritora brasileira e latino-americana, a maior do mundo. Ela está no mesmo patamar de Gabriela Mistral, a primeira latino-americana que ganhou um Nobel em 1945, Gabriela Mistral. Foi essa coisa na posse. Chegou na hora dos cumprimentos e o vice-presidente da república na fila. Aquele empurra-empurra e eu senti que não fosse pro empurra-empurra não ia entrar. Eu dando uma de João sem Braço e daqui a pouco, quando me infiltrei lá na frente, entrei. Nem o vice entrou pra dar os cumprimentos ao novo imortal, mas eu entrei. E aí com a máquina na mão, pedi pra um cabra lá: “tira uma foto”. Ainda bem que a foto ficou boa. Daí fomos pros comes e bebes. Também uma coisa... Mas aí não conhecia nenhuma pessoa, minha “ídala” já tinha ido embora, porque os imortais são assim recatados, não ficam. Mas Nélida, que é uma estrela, mas muito simples. Ela já teve coragem de me convidar pra assistir a uma palestra dela no H Stern. Olha só, H Stern, lugar só de burguês. Aí ela abriu pra fazer pergunta, eu fiz a minha. Quando ela olhou pra mim, disse: “Esse aí é o Evando, pedreiro, uma grande figura da literatura...” Aquela velharada, aquelas senhoras, porque pobre que usa esses termos “velho”, aquelas senhoras, burguesas ricas, maravilhosas, impressionantes, estão com dinheiro, são mulheres maravilhosas, levantaram e olharam e aí foi aquela coisa. No H Stern, lá em Ipanema, lugar de rico, burguês. H Stern é a loja que só vende jóias caríssimas, de um judeu. Me apresentou o dono, um senhor, ancião, porque pobre que usa essa palavra “velho”, né, rico usa a palavra “experiente”, nunca usa velho, que é coisa de pobre. Rico usa uma linguagem diferente.
P1 – Desse tempo, como é que a comunidade foi a longo do tempo abrigando a biblioteca comunitária?
R – A comunidade foi vendo as entrevistas, a TV Globo já veio aqui umas...já encerramos o Jornal Nacional duas vezes, um privilégio, né, tive no Jô a quatro anos, recebi 500 ligações, até dos Estados Unidos, o RJ TV umas quatro ou cinco vezes nós já encerramos, Ana Maria Braga, Tv Bandeirantes foi a primeira que esteve aqui, umas três ou quatro vezes. A Globo umas oito ou dez vezes. Olha eu devo à Globo, não só a TV Globo, mas ao Jornal O
Globo, todo sistema Globo de jornais e televisão, porque eles apóiam muito essa obra. Eles têm divulgado, dão prioridade, não é prioridade, mas mostram nossa obra com carinho e com destaque. Porque uma coisa é você mostrar assim rápido. Não, eles sempre mostram a Tobias Barreto com destaque. Encerramos o Jornal Nacional duas vezes. Rj, Jô Soares. Falei dez minutos com o gordo, uma coisa impressionante. Ele é o maior apresentador do mundo, porque eu não conheço dos outros países, então pra mim ele é o maior do mundo. É puxando o saco dele mesmo, mas ele é gente muito boa. Me deixou a vontade, fez perguntas muito sábias, não me pressionou, porque ele pode, é muito culto. Mas fez perguntas muito sábias, me deixou a vontade. Eu falei muito e ele não cortou. Dez minutos, cara
P1 – Desses projetos que o senhor foi realizando, começou com a biblioteca, começou com a disponibilização dos livros e aí?
R – Aí que uma biblioteca não pode ser só uma biblioteca. Tem que ter uma interatividade com o público, com a comunidade. Daí, criamos o concurso de poesia.
P1 – A primeira coisa?
R – Não, a primeira coisa foi o folheto cultural que eu dou na rua, mas aonde vou levo o folheto. O folheto e um livro pra dar na rua. Depois, há quatro anos atrás, chegaram aqui umas crianças: “Seu Evando, eu quero um livro sobre a história da Vila da Penha”. Eu falei: “é fácil”. Fui na enciclopédia Barsa, não achei nada. Fui na Mirador, nada. Fui na Larousse, nada. Digo: “olha, vocês voltem aqui na semana que vem, que eu vou ver se dou um jeito e ver se consigo alguma coisa”. Aí me veio a idéia de montar uma livro com a história da vila, a partir dos moradores. Cada morador escrevendo a sua história sem interferência de ninguém. Ele coloca no papel a sua vida, como ele nasceu na vila, se mora a muitos anos na vila. E dividimos o livro pela história mais antiga. O cara que mora a mais tempo abre o livro e assim sucessivamente. Porque cada idade é posto. Então o livro está estruturado assim. Depois a pessoa que editou, que foi a Albertina Ramos, que conseguiu a edição, ela seguiu a regra. Então eu visitei a minha amiga professora Sonia Araújo. Digo: “Sonia, você tem alguma coisa sobre a vila da Penha?”. “Não, tenho sobre a Penha”. Aí que eu conheci o maior historiador carioca, o Noronha Santos. Ela falou: “tem um livro do Noronha Santos e lá você tem foto da Penha antiga, tem a historinha”. Ela me deu essa dica e eu corri pro sebo. Nesse dia eu cheguei na cidade oito e meia da manhã. Saí de lá quase cinco horas da tarde. Andei todos os sebos do Rio de Janeiro e não achava. Achei num sebo ali na Praça Tiradentes. Tinha um exemplar e me custou sessenta reais. Isso há uns quatro anos atrás, mas eu comprei. Aí as crianças vieram no dia em que eu marquei, aí eu tirei a xerox da historinha e dei pra eles. Agora chegou a hora de desmontar o livro. Veio na mente a idéia de como montar a história das pessoas antigas, elas mesmas escrevendo, não é eu escutar lá no gravador, não. Eles mesmo vão escrever. Aí desci aqui, fui lá na primeira moradora, uma das primeiras, a Magdala, casa ali da esquina, rua Professor Oscar ___, casa da esquina. Daí bati palma, eu conhecia ela de vista. A minha esposa conhece, porque a minha esposa nasceu praticamente aqui, morou aqui. Aí eu falei: Magdala, bom dia “Bom dia, o que é?” Eu falei: “olha, a idéia é essa, essa e essa”. Ela falou: “Boa idéia Espera aí um pouquinho”. Aí entrou, foi lá pegar umas fotos antigas que ela tinha da família dela, do pai. O pai dela foi muito importante aqui, o pai dela foi o homem que levou as pessoas para comprar os lotes, ele mostrava os lotes, mostrava a divisa do terreno, importantíssimo em toda essa área aqui. Aí eu falei: agora você escreve na sua historinha. Aí três dias depois, pena que ela escreveu pouca coisa, mas escreveu. Foi a primeira historinha que escreveu. Aí ela: vai em fulano e tal Aí eu fui descobrindo outros e fui montando a historinha. Porque o alvo não era só história, era história e fotos. Conseguimos quarenta e seis fotos. Conseguimos a foto da Nanci. A mãe da Nanci vai fazer mais de oitenta anos, então ela chegou aqui com um ano de idade, mais ou menos isso. Então o avô dela foi o primeiro homem a ter um carro nessa região, foi o primeiro a fazer uma estradinha pra ir pra Penha. Era engenheiro, era italiano e engenheiro mecânico, tinha uma firma na cidade de peças e tudo. Aí ela escreveu uma historinha. E ela é dona da foto mais antiga de toda a zona norte, foto de 1920, as duas casinhas da família dela, com essa uma parte da vila, totalmente sem nada. A avenida Brás de Pina era mato. Então o projeto, esse envolvimento biblioteca, comunidade. Mas não é só aí, vamos ao concurso poesia, comunidades, escolas participam. A escola quer, tem muita que não quer nada, porque eles não quer, mas colégio Pequeno Torcedor é nosso parceiro desde o primeiro concurso de poesia, até hoje. Vai pra sete anos firme. Então, o colégio Pequeno Torcedor, não só participa com as crianças, mas como, bom, eu tenho uma aventura literária a realizar, aí bato lá na porta dela, a professora Sônia, e a Sônia Araújo compram a idéia, desmarcam trabalhos do colégio e vamos pra aventura literária. Foi assim o primeiro arrastão literário. Elas desmarcaram num sábado e a gente foi pra Avenida Atlântica. Sucesso, uma maravilha. Então um colégio, colégio Municipal Grécia, o colégio Agras, que infelizmente está num processo de falência, mas foi sempre parceiro com a professora e diretora, dona Maria Agras, uma pessoa maravilhosa, e o colégio Municipal Grécia, com o professor Luiz Carlos. Esse veste a camisa, é um cineasta, é professor de geografia. Quando eu tenho uma aventura, vou lá chamo, ele vem, participa. Então essa coisa. Fizemos o primeiro fórum da vila, eles participaram, colégio Pequeno Torcedor, colégio Grécia e outros colégios. O primeiro fórum da região de Irajá, isso é uma região muito farta, foi numa grande região, foi freguesia a partir de 1644, foi muito importante pro Rio de Janeiro, porque tudo produzido no Rio era aqui, hortifruti, carne, verduras, grãos. A freguesia que mais produzia era a freguesia de Irajá, a freguesia de Santa Cruz, então fizemos um fórum contando a história, terminou numa cartilha. Aí a editora Zit, a Zit Editora editou 1250 cartilhas pra gente dar no fórum e distribuir na rua. Você vê 1250 cartilhas, a Zit Editora, é do doutor José Carlos, é um parceirão. Olha pra você editar essa revistinha, tem que ter um dinheirão. Você vê, olha é essa cartilha maravilhosa. Essa igreja é de 1613. Agora, essa cartilha é uma cartilha inovadora. Todos deveriam imitar essa cartilha. Tem não só a história de Irajá, mas no final um dicionariozinho de Tupi-Guarani. Que coisa educativa. Aqui você tem palavras, tipo carioca; pavuna, estância preta; piraquê, buraco ou toca de peixe; e por aí vai. Tijuca, brejo lamaçal. Tinguá, líquido que vem, o sumo, espuma. E por aí vai. Jacaré Paguá, lagoa do jacaré. Vê que coisa. É um negócio interessante. Não é só pensar o índio, ou seja, Irajá, vem do Tupi e significa cuia de mel. Lugar que tem mel ou que brota mel, dado o nome pelos índios. E aí nós criamos a cartilha que é o seguinte: é um casal de índios, nascendo, crescendo, se casando e andando na freguesia. Tomando banho no rio Irajá, ou seja, no rio do mel, plantando na rua do mel, colhendo, fazendo a sua oca. Você vê que coisa maravilhosa. Isso merecia ser editado pra ser vendido. Isso daqui é um negócio fantástico. É uma coisa... Tem todas as fases, olha: a índia fazendo a comida, plantando na roça, passando no rio do mel, fazendo sua roça, pescando, caçando, o índio tomando banho, você tem todas as fases nessa cartilha. No final, antes do dicionário, você tem toda história de Irajá. Uma história que você pode ler, conhecer a história. Aqui você tem a história da freguesia, dos primeiros habitantes, os índios, e no final a maravilha em Tupi-Guarani, que é um mini dicionário.
P1 – Esses projetos todos o senhor foi fazendo junto com a biblioteca e a comunidade?
R – Junto com a biblioteca, a comunidade e o bairro. Nessa interação, comunidade e projetos, né? O carteiro literário. Você liga, quando eu posso, vou levar o livro na sua casa, sem gastar nada. Carimbo o livro e no livro tem recebi do carteiro literário o livro tal, no dia tal, hora tal. A pessoa escreve o endereço dela dizendo que recebeu do carteiro literário. Eu carimbo. Já fazemos isso há uns quatro anos. Hoje o carteiro dá livros também na rua. Eu paro a pessoa, declamo um poema e dou um livro de presente a ele. É o carteiro literário distribuindo livros pras pessoas comuns.
P1 – Como foi a história do arrastão literário?
R – O arrastão é um sonho. Criei a roupa livro. O carteiro se veste de roupa livro e fomos pra Copacabana, com 200 livros. Paramos no Copacabana Palace, em frente, que é o ponto principal da Avenida Atlântica. E aí começamos, eu, Sonia Isoton, Sonia Araújo, mais quatro alunos do colégio dela. Ela falou no colégio todo, mas só foram quatro alunos e quatro pais. E aí, livro na mão e abordando as pessoas. Fez fila. Porteiro correu atrás de livro, quando não tinha mais livro. E terminamos na estátua do nosso poeta genial, Drumonnd. Encerramos no Drummond e foi uma emoção: “E agora José, José. Para onde? E agora você...”. Essa é a grande poesia do Drummond que virou música. Tirei uma foto ao lado do Drummond e o Jornal Extra, do sistema Globo de jornal, fez uma página inteira sobre o nosso... Você pra ter uma página inteira no Jornal Extra que é um dos mais lidos, empata com o Jornal O Dia, pau a pau, fazer uma página inteira na segunda feira é uma glória. Arrastão Literário Tobias Barreto.
P1 – E quantos arrastões o senhor já fez?
R – Isso foi o primeiro. Agora nós estamos planejando o segundo arrastão, com de 500 a 1000 livros, em abril. Após o carnaval. Janeiro, fevereiro, março e abril. A biblioteca talvez seja inaugurada talvez, dependendo dos trâmites, habite-se e tal, em abril. Eu quero ir pra Avenida Atlântica, Arrastão Literário, e se eu tiver patrocínio vamos fazer os Galhardetes com fotos de Machado de Assis, Lima Barreto, Tobias Barreto, Monteiro Lobato, Martins Fontes, Nélida Piñon, essas figuras da literatura. Um cartaz com os nomes deles, nome das obras, data de nascimento pra quem não morreu e quem morreu data de nascimento e morte. Aí, crianças com aquele galhardete na frente. E um megafone gritando: a vida é uma leitura, ler é lutar. Declamando os poemas. E os nossos colaboradores dando livro e declamando em inglês, francês, alemão e português. Não importa se você é brasileiro, ele tasca-lhe ali uma frase de poesia em alemão, em francês, em inglês e termina em português. Dessa não teve. Nesse arrastão teve um momento, assim, eu estava entretido dando entrevista pro Extra e um outro jornal, o Jornal Educar, e aí uma argentina parou, recebeu um livro de uma criança, recebeu o livro de uma criança e pediu um autógrafo. Aí a Sonia Araújo ia me chamar para autografar, mas eu estava ocupado. Ela autografou com a criança. E a Argentina falou: “vou levar de presente pra minha netinha, lá em Buenos Aires. Que idéia maravilhosa, dar livros na rua. Vou levar essa idéia pra Argentina”. Foi um momento crucial. Um policial saiu da cabine e veio pedir um livro que ele queria levar pra filha. Um vendedor - essa é outra parte, mas teve muitas, estou contando algumas – lá na estátua do velho Drummond, um vendedor de refrigerante, de suco natural, veio. Eu dei o livro e ele falou: “esse é o presente de natal pra minha filha”. (RISOS) Ele me deu uma garrafinha de suco de laranja. Eu fui pagar e ele: “isso é um presente”. “Veio” pessoas que estavam tomando banho para ver o que era, mas já não tinha mais livro. O arrastão... Duas coisas que se eu tivesse dinheiro faria todo final de mês: a feijoada literária e o arrastão literário. Todo dia eu ia pra praça, pra avenida Atlântica, ou escolhia um ponto no Rio de Janeiro. Mas o ponto principal é a Avenida Atlântica, porque lá está a burguesia e você trem que estar onde a burguesia está. Sem a burguesia, dizia o velho Chateaubriand: “eu vivo com a burguesia, preciso da burguesia e não vou contrariar a burguesia com essa semana de arte moderna. Porque preciso dela pra viver”. Essas são palavras de Assis Chateaubriand, o homem que criou a televisão e o rádio no Brasil. Não, o rádio foi Roquete Pinto. A televisão foi Chateaubriand.
P1 – E esse projeto “poesia no meio fio”?
R – Esse também é fantástico. É livro a céu aberto e poesia no meio fio, com as fases da literatura, as principais: condorismo, Tobias Barreto e Castro Alves. Então, você já tem ali Tobias Barreto, Pedro de Calazans e Castro Alves. Três casas com esses poetas na ponta. Quem acordar ali, vai... Condorismo na base, depois vamos entrar com Santos Souza, o poeta mais declamado no Brasil e em Sergipe, hoje. Foi aclamado pela crítica paulista, como o maior poeta da atualidade. Santos Souza, um jovem de 84 anos. Poesia renascentista, mil vezes melhor do que a poesia de Augusto dos Anjos e Hermes Fontes. Então a próxima eu já pintei, está chovendo, não estou botando. Mas amanhã, se tiver estiagem, vou já colocar a frase do poeta, do poema ali: Santos Souza. Depois vamos com Augusto dos Anjos, Machado de Assis, Martins Fontes e por aí vai. Então, vamos subindo a corrente da leitura que vai parar lá na biblioteca. Você vai lendo e as letrinhas vão numa ordem crescente, vão caminhando. E você vai até chegar lá na biblioteca, deste lado e do outro lado. É livro a céu aberto e poesia no meio fio, as fases da literatura: condorismo, realismo, simbolismo e semana de arte moderna.
P1 – Como surgiu a história da concretização da biblioteca?
R – A biblioteca surge, nós doamos os livros que tínhamos, conseguimos um projeto do doutor Niemayer, que ele deu, e aí...
P1 – Conta como foi isso.
R – O Niemayer, foi há uns quatro anos, mais ou menos. Eu fui fazer um trabalho e cheguei em casa, liguei a televisão na Globo, depois passei pra Bandeirantes e estava ele dando entrevista num programa da Multi-Rio, que é um programa que fala sobre cultura. Nessa entrevista apareceu o telefone. Eu anotei o telefone e liguei pra falar com ele, pedir ajuda. A atendente falou: “é melhor você contar essa história pra ele”. Botou no ar o telefonema, eu pedi ajuda. Ele: “ajudo Quando você tiver o terreno eu...” Aí, nós conseguimos dar o terreno, doamos o terreno. Eu liguei pra Fundação, a neta dele Ana Lúcia Niemayer, que nos atendeu disse: “vovô lembra da história. Outro dia ele perguntou e tal”. E marcou uma audiência. Lá eu fui com ela e fiquei quase uma hora falando com ele. Ele quase não falou, porque eu falei o tempo todo. Ele falou: “olha, Evando, meu sonho é ver esse tipo de biblioteca em todo Brasil. Só esse tipo de projeto e o livro vai tirar o Brasil da falência em que se encontra”. Até ele teve a idéia de fazer mini-salinhas pra fazer mini-bibliotecas no morro. É um projeto que a gente tem aqui, muito antigo. São mini-bibliotecas, em casas de crianças que não podem comprar livros. A gente cria um kit, 300 livros e aquela criança recebe aquele kit, leva pra casa. Recebe um estudante de biblioteconomia, que vai como o médico do livro, que vai uma vez por mês. Ela vai ensinar pra criança como cuidar do livro, como organizar a sua mini-biblioteca. A criança vai escolher um patrono pra sua biblioteca e vai se encarregar de convidar as crianças para participar do movimento Biblioteca no Quarto ou Biblioteca no Lar da criança carente, ou da criança que não tem livros, não se usa a palavra carente. Esse é um projeto. Nós fizemos um só, mas depois a criança desistiu. Devolveu os livros. Mas é um projeto pra se deflagrar no Brasil inteiro. Ele falou: “que idéia boa, Evando. Já pensou se eu crio um projetinho “mini-salas”, pra levar pras favelas, pros morros. Leva um kitizinho 500, 1000 livros, mini-bibliotecas?” Maravilha. Uma hora. E depois eu me toquei que estou com um dos maiores gênios da arquitetura. Aí tirei foto com ele e tudo. Ele é animado, é um gênio. O maior homem do Brasil, hoje, é doutor Oscar Niemayer. Pelé fica em segundo lugar. Eu coloco os três maiores homens do Brasil e da América do Sul, hoje: Doutor Oscar Niemeyer, depois Roberto Carlos, depois Silvio Santos, depois Pelé. Como Roberto Marinho já morreu, eu botava ele em segundo lugar. Mas aí eu coloco o Roberto Carlos. Roberto Carlos é o maior homem da música brasileira. É único, não tem outro. Música caipira, sertaneja, Zezé de Camargo e Luciano. E a filha dele. Eu tenho o maior... Eu quero conhecer ele. Mas a filha dele, a Vanessa Camargo, ela é a melhor cantora. É a Wanderléia numa fase mais moderna. Então, a Vanessa é a melhor cantora que o Brasil já produziu nessa remessa de cantoras novas. Ela é um gênio. É a maior cantora. O estilo dela é... E ela é genial, é fantástica. Eu não estou aqui puxando o saco dela, porque posso nem a conhecer, não sei da vida dela, nem quero nada dela. É a única que eu paro. E ela e a filha da Zizi Possi, as duas. Eu coloco ela em primeiro. Ela é cópia, não é cópia, mas a encarnação da Vanusa, da Wanderléia nova, em pleno auge, com Roberto e aquela turma da jovem guarda.
P1 – Voltando um pouco no tema do concurso de poesia, o senhor disse que trabalha muito em cima disso e que é difícil estimular. Eu queria que o senhor contasse um pouco da história de como é organizar, desde o primeiro concurso de poesia. Como foi essa organização, mobilizar as pessoas, a premiação?
R – A gente faz a primeira organização, um folheto. Eu fiz um folheto simples e aí, no Concurso de Poesia, nós temos uma parceria. Parceria só pra ajudar, ninguém quer dar dinheiro. É a Dalva Meireles e Iracema. Dalva é escritora, uma escritora de renome internacional e Iracema, uma pessoa que conhece muito bem a língua portuguesa e trabalhou dez anos corrigindo o dicionário Aurélio Buarque de Hollanda. Conhece muito bem. Elas duas ficam encarregadas de escrever o convite, né, e divulgar. Eu também divulgo. Saio nas ruas, levo nas escolas mobilizando as escolas. Aí no dia do concurso, nós usávamos sempre o teatro da Escola Municipal Grécia, um teatro muito bonito, pra 300 lugares. Nós conseguimos e todo último sábado de janeiro, fevereiro, março, abril, e maio. Todo último sábado, à noite, das 19 às 21 horas, o concurso de poesia. É categoria adulto, adolescente e juvenil, são três categorias. Eles se inscrevem, recebem o convite, vêem as regras e de acordo com as regras do convite se inscrevem. Então a Dalva e a Iracema é que convidam os jurados, que são escritores, professores, pra analisar e dar o voto às poesias. Eles escolhem 10 poesias em cada categoria. Das 10, eles tiram três, primeiro, segundo e terceiro lugar, nas três categorias. Medalhas de ouro, prata e bronze. E aí, nós conseguimos levar de 150 a 170 pessoas, num teatro, no sábado à noite, na zona norte. É um sucesso. É o único movimento de poesia, têm outros por aí, alguns outros fazem, mas o nosso não é só poesia, é levar pessoas ao teatro pra assistir a poesia, pra ver poetas novos, crianças e adultos. A Dalva e a Iracema coordenam essa parte. Eu não adentro num campo que eu não domino. Não é que eu não saiba dar nota a uma poesia, eu vou ler a poesia e vou descobrir se ela está boa ou não. Mas, eu vou ler como leitor. Eu não vou ter habilidade com a língua portuguesa. Não conheço as minúcias da língua. Pra dar nota numa poesia, você tem que conhecer não só o conteúdo, a língua, mas ter sensibilidade e conhecer a língua portuguesa e a poesia. Eu não conheço a língua, então não me aventuro nisso. Então, ela convida professores, doutores, que vem. São oito ou dez candidatos que vêm, dão as notas e se escolhe os primeiros de cada categoria. É um momento muito especial. Em 2003, nós recebemos 1300 poesias. É nacional. Vem poesia do Rio, de São Paulo, Minas, Paraíba, Sergipe, Bahia, Mato Grosso. Vem poesia de todo Brasil. É muito interessante. Agora, é muito dificultoso. Já pensei muito em terminar. Penso “termino esse ano. O ano que vem não vou fazer mais”. Porque chega na hora de comprar a medalha é muito difícil, é caro. Aí tem uma pessoa Adenoir Produção, que faz medalha, placas, ele cobra só o material. Já é uma grande vitória. Mas você tem que pensar que ele vive daquilo, doutor Sérgio. Uma das maiores mentes, um dos homens que mais divulga cultura no Rio de Janeiro. Então, você vê, eles estão contribuindo, mas vivem daquilo. Têm muitos funcionários. E pra nós eu vou juntando dinheiro até o final do ano pra comprar as medalhas, Os diplomas, a Iracema faz. Muito bonitinhos. Ela usa o dinheiro dela e o trabalho, a Iracema. Ela e Dalva quem coordena. Os dois “troféis”, os três “troféis”, a Dalva Meireles se encarrega de dar. Uma amiga dela de uma academia, ela fala com essa dona da academia e ela dá os “troféis”. Mas, o básico é a medalha. A medalha tem a foto do homenageado e os dizeres do concurso: Sétimo concurso de poesia, homenageado... Esse ano, nós estamos inovando, homenageando duas das mais altas personalidades brasileiras: Lígia Bojunga, a única mulher latino-americana que ganhou o Nobel da literatura infantil, por duas vezes. Já esteve na biblioteca visitando. E o outro é um jurista sergipano, poeta, muito sensível. Me levou a Sergipe no ano passado pra fazer uma série de palestras, pagou a passagem com dinheiro do bolso dele, me hospedou no apartamento dele de luxo lá em Sergipe. Um homem de visão. Você vê: eu que precisava ir a minha terra, o estado nunca me convidou. Imagine que não tem ninguém fora de Sergipe divulgando mais Sergipe do que eu. Dia e noite. A cidade que Tobias Barreto nasceu, a cidade nunca tomou conhecimento de nada, nunca me convidou pra nada. É um crime que eles cometem. Só o Doutor Aderbal, um grande professor que mandou uma quantia em dinheiro pra ajuda na biblioteca, há uns cinco meses atrás. Falou pra gente não falar a quantia, então não vou falar. Mas mandou o dinheiro como grato por tudo que a gente está fazendo pelo Tobias, por divulgar Tobias. Tobias não precisa de divulgação nenhuma, eu estou fazendo porque gosto dele como autor. Mas o professor Aderbal mandou um dinheiro e está sempre, quando eu preciso de alguma coisa, livros ou autoria, ele me manda uma xerox. Então, de Sergipe, o professor Aderbal, professor Jackson, professora Medina e só. E agora esse professor, esse cidadão... Estou ficando velho, me fugiu o nome desse cabra, que é o homenageado do mês. Cara, me deu branco aqui. Ele vai ser o homenageado com a Lígia Bojunga. Ele é um dos maiores juristas sergipanos, defensor público, poeta. Um homem de muita, muito valor. Pra ele gastar o dinheiro dele e me levar pra fazer palestra, não é brincadeira. Fiquei lá três dias, fiquei 17 dias em Sergipe. Doze dias eu passei em Aquidabã, que também nunca me convidou pra nada. Aproveitei essa chance e fui pra lá. O cabra pagou, eu não lembro o nome dele, coisa de louco.
P1 – Eu queria que você contasse também a história do dicionário.
R – Ah, o dicionário. É uma proposta na linha, surgiu no mesmo tempo do livro na vila da Penha. Porque você pega os dicionários biográficos e não tem a biografia de um coveiro, de uma lavadeira, de um varredor. Isso é um crime que se comete contra a vida comum das pessoas. Aí, me veio a mente se fazer um dicionário, onde agregue essas vidas dessas pessoas: coveiro, pedreiro, lavadeira. E aí, o meu refúgio, né, meu refúgio para as idéias literárias e loucas, Colégio Pequeno Torcedor, Sonia Araújo e Sonia Isoton. Fui lá e falei: “oh, Sônia, o projeto é esse, tal e tal”. A Sonia bolou o formulário. Eu dei os nomes do que eu queria, gosto literário, gosto esportivo, convivência no trabalho, livro que mais leu, comida que mais gosta, essas perguntas. A Sonia bolou um formulário com essas perguntas e só o Colégio fez 111 biografias. Só esse colégio. Outro fez 40; outro, 60. E o resto de 738 biografias, eu que colhi o resto.
P1 – 738?
R – 738 biografias.
P1 – E onde elas estão?
R – Estão aqui, guardadas, prontas para serem editadas. Só ter uma editora e editar. Aí tem biografia de coveiro, de lavadeira, de professor, médico, jornalista. São pequenos verbetes, mas uma coisa maravilhosa. Imagine esse dicionário, numa edição de luxo, pra ser divulgado nas escolas e para as pessoas que gostam de curiosidades. Fantástico. Não é um dicionário do cunho de curiosidade. São histórias feitas pelas pessoas. Eu gosto de feijoada, botou lá. Meu partido é o PMDB, botou lá. O meu time é flamengo, é América, botou lá. No meu trabalho eu gosto muito do que faço, aí escreve sobre o trabalho. Muitos só escrevem uma frase, outros escrevem um textozinho. O lugar onde nasceu, o nome do pai, da mãe. É uma coisa...
P1 – E a gramática. Conta aí.
R – A gramática de língua bunda. A língua bunda já foi mais falada no Rio que o português. Porque os negros bundas foram 90% dos que habitaram o Rio de Janeiro. Então, doaram uma gramática dessa pra mim. O rapaz deixou de vender - Olivar, professor Olivar, ele é livreiro e conhece os trabalhos da biblioteca - uma vez deixou de vender por 2000 reais essa gramática e dou pra biblioteca essa gramática. Eu descobri que não tem nem na Biblioteca Nacional. Quando eu estive no Jô, mandei Xerox do dicionário. Nós temos a gramática, o dicionário e a bíblia em língua bunda. E uma cartilha. Nós temos quatro obras dessa língua o que é difícil de achar, não é fácil. Quando eu estive no Jô, mandei xerox pra Portugal, pra Brasília, São Paulo, Olinda e Rio de Janeiro. Os pesquisadores que vieram aqui, os dois, falaram que essa gramática não tem nem na Biblioteca Nacional. Aí me veio a mente, como é domínio público, me veio a mente fazer a segunda edição. Juntei um dinheirinho, 800 reais, foi muito doloroso juntar esse dinheiro. Faço uma ressalva: uma pessoa doou 50 reais pra esse fim, eu gastei 750. Aí, peguei a gramática e dei pra uma moça digitar. Ela digitou e colocou num disquete. Aí, um amigo chamado Professor Oto Villas Boas, um homem muito culto, só lecionou 35 anos num colégio só, então geografia e história. Colégio de segundo grau. Eu fui lá na gráfica dele e ele: “não vou lhe cobrar. É uma edição muito cara e você vai me pagar só o material que são o papel manteiga, as placas de alumínio e o papel”. Deu 700 reais. Eu fiz uma edição de 20 livros. “Está” aí os 20 livros. Mas o meu sonho era ver uma edição de uns 10 mil exemplares, 20 mil exemplares, pra gente vender não só pro mundo angolano, que não tem essa gramática, é uma gramática pioneira de 1800, em inglês, que alguém traduziu para o português. O professor Luis Quintal que fez a edição bebeu na gramática em Inglês e as aulas dele, que ele dava na escola real do Rio de Janeiro, com as aulas que ele dava de língua bunda, ele juntou e fez a gramática. A primeira edição é de 1934, domínio público. Aí eu fiz essa aventura. A maior aventura que eu fiz de edição de livro. Seria bom que um editor editasse. Seria interessante. É um sonho ver editada. Se tivesse dinheiro editava a gramática, o dicionário e a cartilha. E colocava na praça pra vender. E distribuía também de graça. Ia vendendo e dando a quem não pudesse comprar.
P1 – Senhor Evando, o senhor tem vontade de escrever poesia?
R – Não, já fiz algumas poesias, mas não me atrevo a... Eu não faço divulgação do que eu faço. O livro não é meu, é nosso. A cartilha não é minha, é nossa. A gramática não é minha. É uma idéia que... Bom, então a idéia é que nunca, se você for numa palestra que eu faço, você não vai me ouvir falar de mim. Dou apenas uma introdução, comecei assim e tal, mas depois só falo sobre literatura brasileira. Porque a idéia da biblioteca é divulgar a literatura, divulgar os autores brasileiros, porque são eles que faz com que as mesas deles fiquem fartas, quando passam nos concursos. Como você vai passar num concurso? Tem que ler Tobias Barreto, Machado de Assis, Lima Barreto. Tem que ler. Eles estão dando a base pra eles terem a mesa farta, andarem de carro, de avião, terem apartamento. Se não fosse os autores, eles não tinham nada. Quer dizer, não iam ler nada. A idéia aqui é nunca divulgar “você”, mas tudo girar em torno da literatura. Por exemplo, eu fiz uma palestra agora, na Universidade da Uerj, falar pra classe de Alfabetização. De lapidação de intelecto, são trabalhadores da Uerj, que um grupo de professores tem um projeto e ensinam eles a ler e escrever, ou a fazer o curso. A Uerj está com esse projeto, um projeto lindo. Aí, o estudante que é estagiário é o professor. É de estagiários e tem um professor que coordena. Ele veio aqui, descobriu na revista Monet, e em outras revistas, eu falei: “me leva lá”. Ele gostou da idéia, falou com a chefe, mostrou aquelas reportagens e naturalmente as reportagens é que sensibilizou a diretora a professora. Porque naturalmente se fosse só ele falar não... Aí eu fui lá. Tinha bastante gente. Estava a diretora, a reitora do projeto. Foi um momento muito interessante, fiquei emocionado. Ganhei um livro de presente. Teve três bibliotecárias da Uerj lá. Fiquei muito feliz, porque tinha gente do mais alto nível da pedagogia da Uerj lá me ouvindo. Então, eu começo falando que aprendi a ler na bíblia e aí eu conto algumas historinhas. Por exemplo, a história de um negro, epilético, que o pai era pintor de parede e a mãe lavadeira e ele se tornou um dos maiores fenômenos da literatura. Estou falando em quem? Viu Você se formou. Imagine. Eu estou falando de Joaquim Maria Machado de Assis, esse negrinho epilético. Que o livro levou Machado de Assis para as glórias do livro. Só o livro. Mas para Joaquim Maria machado de Assis chegar aonde chegou, ele sofreu muito .Ele foi camelô, entregador de cocada e bala em São Cristóvão. O refúgio dele era o gabinete real de leitura a partir de 1839, 37, 38, quando é inaugurado. Machado nasce dia 21 do seis de 1839. Então toda infância dele é gabinete real português de leitura e o convento do padre ensinando latim. E ele lendo exaustivamente. Então, eu tenho que passar pra eles que só o livro e a literatura é capaz de mudar a vida deles, e muda. E coloca ele numa posição invejável. Só o livro. Eu desenvolvo a palestra baseado nessa experiência, nessa prática. Usando a linguagem de Machado, de Tobias, de Lima Barreto. Declamo, canto. E, particularmente, sou um show, modéstia a parte. Aliás, Tobias dizia que a modéstia era a arma dos incompetentes. Os incompetentes quando queriam burlar alguma coisa, ou sobressair, diziam: “não, a modéstia...” Não tinham modéstia nenhuma, eram verdadeiros crápulas. A modéstia é a arma dos incompetentes, dizia o velho Tobias.
PAUSA PARA TROCA DE FITA
P1 – Eu queria que o senhor me desse uma definição. Como o senhor definiria o livro?
R – O livro é como uma bela mulher. Cheio de beleza e cheio de artimanha por dentro. No pensar e no pensar seu pensamento. Porque o livro passa seu pensamento pra você. Cabe a você descobrir o que ele passou. Então, eu comparo um livro a uma bela mulher. Maravilhosa e bela, mas cheia de artimanhas. E essas artimanhas que te levam a uma boa leitura, a descoberta. Se você não é capaz de observar essas artimanhas livrescas e adentrar no profundo do que o autor escreveu, você fica a ver navios. Por isso que precisa sentir o livro. Livro, você tem que ter em casa mesmo não sabendo ler. Mesmo não sabendo ler, você tem que ter livro. Porque um dia o livro vai te ensinar a ler e te passar as suas artimanhas, suas descobertas. Livro é como uma bela mulher, todos querem, mas poucos sabem usar.
P1 – Em relação ao livro, como o senhor relaciona a sua vida com o livro? Eu quero dizer o seguinte: a partir do momento em que o senhor conhece o livro e adquire o hábito de leitura, o que o senhor vê de novo? Qual foi a mudança na sua vida depois desse ingresso na literatura?
R – Ah, eu nasci de novo. Eu nasci três vezes. Nasci biologicamente, na barriga da minha mãe. Depois nasci quando aceitei Jesus, me batizei com o Pastor José Evangelista e a segunda foi quando eu descobri a literatura. Descobrir o livro e aí nasci de novo. E nasci pra descobrir as coisas que eu não sabia. Então, o livro é a única fonte transformadora do homem. Sem livro, você não transforma nada. Você só consegue fazer as outras leituras, tendo livro de papel. Dominou o livro de papel, cheirou, sentiu como dizia Monteiro Lobato, começa a fazer as outras leituras. Leitura da violência, por exemplo, você é incapaz de fazer sem ler o livro de papel. A leitura da fome, você não consegue fazer sem ler o livro de papel. A leitura do desemprego, a leitura do morar mal, do dormir mal, você só faz isso quando lê o livro de papel e o domina, ou seja, quando o livro te mostra as suas artimanhas libertadoras. Aí você consegue. E os tontos? Tem um montão de tontos nesse país, que sabem tudo, mas não sabem nada. Tem receita pra tudo, mas não provou a receita. Ele não fez um bolo da sua receita, não comeu um pedaço do seu bolo, não sentiu o gosto. Mas ele sabe tudo. Mas não faz nada. Então, os tontos dizem assim: o livro é uma das coisas, mas tem muitas leituras pra serem feitas. Tolo é o que faz isso, o que fala dessa maneira. Sabe por quê? Porque o rico - quando eu estou falando o rico, não estou falando do ponto de vista de ter dinheiro, estou falando do rico mentalmente, rico financeiramente – o rico financeiramente, ele enriquece a sua mente com o livro. Aí, ele consegue fazer a leitura da rua sem calçamento e consegue dizer: “eu quero calçamento aqui”, porque ele não é um só, são muitos ricos exigindo. Aí o poder público vai lá e faz. Ou estou mentindo? Agora vai fazer isso na favela. Até calçar a favela já morreu muitas gerações. Certo ou mentira? Mas aquele favelado, não é que ele seja favelado, é que ele não tem o prazer, como dizia o velho Tobias, que o homem quando não se organiza não se liberta. Quando não se liberta é presa fácil daquele que é organizado e liberto com o livro e a leitura. Tobias já dizia isso no século XIX. Você organizado porque leu o livro. É o livro que organiza a mente do homem pra ele fazer todas as leituras. Não vamos longe: pega uma criança que nasceu na favela. Pergunta a ela nos mesmos moldes de um filho de um burguês que nasceu em Copacabana, não vai ter diferença nenhuma. Agora você vai pegar aquela criança, no mesmo período que educou, e vai pegar outra criança da mesma idade, do mesmo período, nasceu no mesmo dia, no mesmo local, vai colocar em salas separadas e entrevistar, faça esse trabalho, um dos projetos que eu te desafio a fazer. Aí você vai ver a diferença. Licurgo, grande educador grego -
não lembro se era grego ou romano - Licurgo uma vez foi desafiado a mostrar o poder da educação, ele falou: “quero dois anos pra te provar em praça pública que só o livro e a educação tem o poder de transformar não só os homens como os animais”. Aí, Licurgo, o grande mestre, pegou dois cães e dois coelhos. Conseguiu educar um cão pra conviver com um coelho como se irmão fosse. E o outro cão e o outro coelho, ele separou por dois anos, nem o coelho nem o cão via o outro animal. No dia marcado, ele em praça pública soltou o cão e o coelho que tinham sofrido o processo de educação. Ambos saíram brincando como se irmãos fossem. Passou e ele deu uma explicação do poder da educação. Logo em seguida ele soltou o cão e o coelho que não tinham se visto. Em fração de segundos o cão devorou o coelho. Diz ele: “eis aí o poder da educação. Eu gastei dois anos com aquele cão pra aprender a conviver e tolerar aquele coelho. E passei dois anos sem dar nenhuma educação, sem usar nenhuma prática pedagógica com esse outro cão. Viram o resultado? O instinto dominou e ele imediatamente matou sua presa”. Assim é o homem quando não está apto a tolerar o seu semelhante. Ele se torna mil vezes mais feroz do que aquele cão com o coelho. Ele não só mata, mas usa dos piores requintes de crueldade para com o seu semelhante, que é igual a ele. Daí poder do livro da leitura e da educação. Isso é Licurgo, cara. 300 anos antes de Cristo. É isso.
P1 – Voltando ao projeto da biblioteca, que é o projeto da sua vida...
R – Não, de nossas vidas. Quando um projeto de livro não é de todas as vidas, ele é fracassado e falido. Não quer dizer que amanhã não caia a biblioteca, mas a idéia é essa. Mas muitas realizações ela já fez.
P1 – Então, a biblioteca das nossas vidas, está agora para ser terminada, porque o Niemayer fez o projeto. Mas como foi depois pra conseguir os recursos?
R – Os recursos, o doutor Niemayer fez o projeto, nós doamos o terreiro e aí o BNDES está investindo 650 mil reais ali. Já está pronta. Só falta pintar as estantes, os computadores, as mesas. Nós vamos ter ali, que o BNDES deu a idéia, a doutora Ângela Macedo deu uma idéia brilhante de se colocar ali uma cabine pra cegos, um elevador pra deficiente. Vai ser a primeira biblioteca dessa região, a terceira ou quarta do Rio de Janeiro, aparelhada pra cegos e deficientes. Deficiência visual e deficiência física. Com duas salas pra gente montar o Curso de Letras Machado de Assis, Faculdade Comunitária Paulo Mercadante e Antônio Olinto. Uma idéia de se criar o curso de letras pra se estudar a língua portuguesa, incluindo a língua bunda, o espanhol, o tupi-guarani, o inglês e o francês. Fazendo com que quem vá estudar essa língua, o que vai acontecer? Ele vai pagar uma pequena taxa, aquele que puder, pra manter luz e água. E vamos esperar que o MEC se sensibilize.
P1 – Seu Evando, como que o senhor se sente, o senhor que é sergipano, que chegou no Rio sem saber ler e escrever, e muitos anos depois o senhor se vê fundando, ou sendo patrono de uma faculdade de letras?
R – Isso é o processo da leitura. Quando você lê e sente o livro, como dizia Monteiro Lobato, o livro te dá todas essas facetas. Te dá dicas. Você olha o Brasil, o Brasil já foi uma potência em matéria de educação. Você vê: século XIX, o melhor século que o Brasil teve. Num mesmo período, nós tivemos três grandes escolas: a Escola de Direito de Recife, que estudava Comte, estudava Marx; aliás, Tobias foi o primeiro a estudar Comte e traduzir Marx na América do Sul, um negro pobre professor do Recife. Num mesmo século XIX você teve um gênio como Tobias Barreto, um gênio como Machado de Assis, um gênio como Silvio Romero, um gênio como Luis de Souza, um gênio como Joaquim Manoel de Macedo, um gênio como Rui Barbosa. Tudo isso num mesmo século, convivendo quase que num mesmo período, cara. Nenhum país da América do Sul teve tantas mentes, tantos gênios num mesmo período. Um Castro Alves, né, enfim, isso vem dos livros. Quando veio a idéia, desde o início da biblioteca, a idéia do arrastão, isso tudo surgiu na minha mente, porque você vê a carência. As pessoas que são muito aptas, ou que são intelectuais, elas não estão nem aí pras pessoas comuns. A discriminação já começa, a discriminação maior é não dar a elas a possibilidade de pensar, pensar em ser um doutor, só em pensar já é uma grande coisa. Tudo vem do pensar. Agora, o agir é outra coisa. Se você não pensa, não age. Se você não age, não realiza. Comte dizia: não basta saber, tem que realizar. Toda e qualquer noção de realidade, tem que ser bebida na fonte da experiência. Outro dia eu me deparei com um cidadão que se dizia muito culto, mas não é culto, é um rabo de égua, aí a gente estava conversando e eu citei essa frase de Comte e ele: “Comte está totalmente errado. Se eu fizer uma coisa indevida, vou ter que provar do outro lado?”. “Não meu filho, Comte não se referiu nisso. Está se referindo a experiência do saber, do transformar, de fazer coisas boas”. As coisas ruins você não precisa nem de experiência, as coisas ruins você vai lá entra e morre. Matar alguém é fácil, chega lá e mata. Agora quero ver criar. É difícil a experiência, outro processo. Mas, você vê, o cara é culto, está fazendo faculdade. Ele está igual um rabo de égua, crescendo pro chão. Não tem visibilidade, amplidão. Eu não quero ser rabo de égua, quero ser uma águia. Aliás, quando eu vou nas palestras, eu cito cinco pontos do sucesso, ou do melhor educar, imitando Confúcio e Comte: você pra ser um cidadão de boa índole, ou seja, que tenha boa prosperidade, você tem que ter uma visão de águia, ver tudo do alto e do global. Só a águia tem uma visão privilegiada. Aliás, os americanos fizeram uma máquina, impressora, e colocaram o nome da máquina de olho de águia. Ela vai imprimindo as páginas e se faltar um ponto, uma vírgula, ela tira aquela página fora e não para o processo de imprimir. Ela põe o ponto que estava faltando e está pronto. Chamam de olho de águia. Só a águia tem isso. A águia voa como nenhuma outra ave de rapina; a águia só come filé e não carniça. Carniça é para o urubu. Então, queira ser como uma águia. Veja tudo a sua volta com olho de águia. Tenha capacidade de enxergar como se uma águia fosse. Depois você tem que ter o faro de uma raposa, farejar tudo a sua volta pra farejar o certo e o errado. A raposa é considerada o animal mais perspicaz em matéria de faro do mundo. Depois tem que ter uma prudência de cascavel. É uma das serpentes mais prudentes do mundo. Aliás, ela só usa seu veneno pra matar. Porque quando ela perde o veneno, pra recuperar ela fica mais frágil que uma casca de ovo. Depois a simplicidade de uma pomba. Olho de águia, faro de raposa, prudência de cascavel e simplicidade de pomba, você completou quase que um ciclo de vitória e de sucesso. Depois, o quinto ponto, o cuidado da galinha com seus pintainhos. A galinha foi considerada a mãe mais cuidadosa da terra. No agasalho, no cuidado, no criar. Aí vem uma frase da roça que é chique, chique ouro – eu criei até essa frase: chique ouro. Tudo que não tem mais qualificativo você pode empregar essa frase “chique ouro”. Eu criei essa frase – então tem um provérbio na roça que eu ouvi muito do meu avô José Mestre e de minha avó Mãe Maria: “tenha cuidado com isso rapaz. Pé de galinha não mata pinto, nem quebra ovo”. Olha que sabedoria. Você já olhou o pé da galinha? Já olhou o ovo? A fragilidade de um ovo, e ela fica 21 dias ali deitada, mexendo aqueles ovos pra clara não colar com a gema. Então, pé de galinha não mata o pinto, nem quebra o ovo. Você junta esses cinco pontos do sucesso e se lança e é sucesso garantido. Não há como você ser fracassado.
P1 – Eu queria que o senhor me contasse um pouquinho, como é o seu dia a dia?
R – Eu levanto seis horas. Levanto, às vezes varro o quintal e a porta ali na frente. Uma frase também Comtiana, Comte dizia: queres manter tua cidade limpa, comece por varrer a porta da tua casa. Baseado nessa frase de Comte, eu vou escrevê-la nesses próximos dias ali. Varro até um pedacinho de um vivinho e um pedacinho do outro vizinho. Não varro toda. Varro um pedacinho simbolizando a minha fraternidade varredoura, pra mostrar a ele que eu não fui egoísta. Varri por prazer. Aí vou fazer alguma coisa na cidade, comprar alguma coisa, outros afazeres. Preparo o livro que vou dar na rua, ou no ônibus. Quando eu vou pra cidade, vou sempre de ônibus e gosto de dar no ônibus. Recebo as pessoas e se chegou livros vou olhar um por um. Se tem livro de mulher pelada, separo e coloco numa bolsa. Eu sou evangélico, mas olho o livro, pra ver o que é sacanagem o que não é. Olho o livro e boto numa bolsa, fecho e guardo num lugar que só eu sei onde está. Se vier aqui um médico, um pesquisador, querendo fazer pesquisa nessa área, eu dou. Todo livro que é doado aqui não é jogado fora, nem desperdiçado. Porque é o bolso daquela pessoa que tem que ser respeitado. Um deu, outro precisa. Esse é o dia a dia. Quando eu não estou inventando alguma coisa Livro a céu aberto e Poesia no meio fio, você chama um pra fazer, não quer, aí é aquela... Quer me matar? Me deixe esperar e invente conversa fiada pra fazer as coisas. Eu saio fora. Você chegou aqui, eu lhe recebo, abro a porta, levo lá, ofereço-lhe ajuda. Se não tiver o livro, vou procurar. Achei o livro, ligo pra casa dela: “achei o livro, venha buscar”. A vida é prática. Eu se fosse diretor de um hospital acabava com todas as filas e acabava com todos os doentes. Ou seja, a doença deles ia acabar em 90%. Eu sem saber ler e escrever Sabe por quê? Porque ia para prática. Se o médico não quer atender, bota pra rua. Bota um que quer atender direito. Entendeu? Aliás, reunia todos os médicos. Sentia olho no olho qual tem sensibilidade pra ser médico. Porque ser médico, não é só diploma. Tem que ser sensível. Todo dia ele ia recitar, antes de começar o plantão, recitar um poema, pra sentir a sensibilidade do poema. Pra atender um ser que é mais importante, um ser de carne, que sente dores, como ele também. É por aí. Todo dia uma poesia. O médico ia declamar pra todos. Ia começar o plantão dele sensivelmente. Outra coisa, antes de ir para sala tinha que ir meia hora antes em toda a fila, dar uma palavra rápida: “oi, como o senhor está?”. Aquele primeiro que entrasse na sala já tinha falado com ele. Aquele falar com ele já quebrou 90% da insensibilidade e aquela doença já começava a se extirpar. Isso é fazer medicina. Agora eu não sou médico. Eu li isso onde? Eu li isso, lendo a história do pai da medicina, Hipócrates, o pai da medicina. Se Hipócrates fez isso 500 anos antes de Cristo, porque esses cidadãos que se formam e que tem mais chances do que Hipócrates não podem fazer? Está vendo, eu estou falando, aí eu já fui a 400, 500 anos antes de Cristo, buscar algo pra falar no início do século aqui. É mole?
P1 – Se o senhor fosse escolher um poema, qual o senhor escolheria para representá-lo, que fosse mais significativo?
R – Não, é uma pergunta muito difícil que eu não posso responder. Pra mim todos os poemas são iguais, têm uma mensagem. Mas tem uma frase poética do Tobias, que eu escolhia, poderia escolher Castro Alves, mas esse tem um toque de humanidade. Ele diz assim: “fazer o bem sobre a terra é a beleza suprema, tem mais luz do que um poema, vale mais do que um troféu. Poema Caridade, 1866, escrito pelo Tobias. Só essa parte do poema já diz tudo. Nesse poema você está incluindo o livro, a sensibilidade e o fazer o bem. Independente de ganhar um troféu ou um prêmio. Fazer o bem é que é importante.
P1 – Que momento o senhor escolhe pra ler?
R – Leio a todo o momento. Vou pro banheiro, leio. Lembro de assunto, vou lá no livro buscar pra ler. “Chegou” esses livros do Geraldo de Menezes. Estou me deliciando. Toda hora em que tenho um tempinho, vou lá e leio. Está lá no quarto. Vou pegando e sentindo os livros. E agradecendo a Deus, não porque ele morreu, mas porque Deus colocou na mente dele que ele comprasse aqueles livros e que o filho dele não desse pra qualquer um e viesse trazer pra aqui. Pra acrescentar grandeza ao acervo e pra que outras pessoas que viessem pesquisar sobre o Rio de Janeiro e literatura tenha bons livros. Igual aos que já tem, mas mais bons livros. Que Deus o tenha lá onde ele estiver. Eu vou homenagear o Geraldo de Menezes na biblioteca. Eu vou escolher um cantinho de uma estante, junto com o Noronha Santos, e homenagear o nome dele. Como muitos outros que merecem. Eu vou escolher os dois pra simbolizar os outros. Entendeu?
P1 – O senhor falou que a poesia seria a primeira coisa pra pessoa se iniciar na literatura e pra leitura. Qual seria o livro que o senhor recomendaria?
R – Dias e noites. Dias e Noites, Espumas Flutuantes e um livro do Martins Fontes que eu não me lembro o nome sobre poesia. Mas a poesia do Martins Fontes. Poesia do Castro Alves, do Tobias e do Martins Fontes. E de quebra você pode ler Hermes Fontes e Augusto dos Anjos. Aí, já é uma...Augusto dos Anjos, quando chegou ao Recife, aos 13 anos, saiu da Paraíba pra estudar Direito em Recife, O Tobias Barreto tinha 13 anos que tinha morrido. E Augusto dos Anjos bebeu na fonte tobiática, bebeu. Bebeu, claro, tem um poema do Dias e Noites que diz assim: “sinta”. E quando você lê Augusto dos Anjos você sente. É isso que diz a poesia. Tobias diz assim sobre os vermes: “já vêm os vermes beijar-me a face e você não pode perguntar quem é. Lá no lago dos túmulos vorazes, quem não lambe meus pés”. Isso é Tobias Barreto. Você lê a poesia de Augusto dos Anjos... Tobias escreve isso em 1868, em Recife. “Já vem os vermes talvez beijar-lhe as faces e você morto não pode... Quem é que vem me comer? Lá no lago dos
túmulos vorazes, os vermes, os bichos te comendo. Quem não lambe-lhe os pés? Todo mundo. Você morto, defunto... Isso é Tobias. É um poema do Tobias sobre os vermes. E aí você lê Augusto dos Anjos e tem muita coisa sobre os vermes, a morte, ele bebeu na fonte tobiática. Não é que ele tenha sido discípulo, porque Tobias já tinha morrido há 13 anos. É que ele bebe no condorismo tobiático, pra se inspirar e criar sua poesia muito peculiar e única dele, Augusto dos Anjos. Quem tem uma poesia muito peculiar e diferente é Hermes Fontes.
P1 – Excetuando Tobias Barreto, quais seus autores prediletos?
R – Meus autores prediletos mesmo, porque autor é como casar, né? Eu não gay, mas autor é como casar. Não tenho nada contra quem é gay, mas é bom que ele deixe de ser gay e vá caçar mulher. É melhor, muito mais prático, entendeu? Mas vamos mudar de assunto. Autor é como casar. Você escolhe a mulher pra casar e tem que viver eternamente. Só se ela lhe cornear, você tem que deixar dela. Se ela lhe cornear, não queira mais mulher, fique só nas aventuras. Porque se você é chifrudo uma vez, é perigoso. Porque o resto, meu amigo, um problema sério. Esse negócio de posse é muito sério. Meus autores prediletos “é”: Tobias, Lima Barreto, Silvio Romero, Manoel Bonfim, Hermes Fontes, Pablo Neruda, gosto um pouquinho de Machado, mas sou mais o Lima, Gabriela Mistral, Nélida Piñon, Raquel de Queiroz, Paulo Mercadante. É um autor novo, tem 82 anos, mas é moderno, e por aí vai. E Martins Fontes. Ah, e Monteiro Lobato. Monteiro Lobato é o meu... Esses autores eu leio sempre como leio a bíblia. E por aí vai.
P1 – O senhor citou uma poesia pra São Paulo. E para o Rio de Janeiro?
R – Para o Rio de Janeiro tem uma boa poesia do Martins Fontes, que eu já li, mas não decorei. Só lembro da última frase, quando ele diz: oh, urbe canaã, quem aqui chega, não te deixa. E sempre que sai, volta. E não te deixa mais. Hermes Fontes. Ele chama Rio de Janeiro de urbe – cidade – e Canaã, terra prometida. “quem aqui chega não sai mais e quem sai volta e daqui não sai mais. Hermes Fontes é um poeta de arrombar. É uma coisa o Hermes Fontes. Lembrei dessa última frase, mas tenho que decorar ela toda pra citar, como cito Camões. Dos estrangeiros, eu leio Camões, Fernando Pessoa. Fernando Pessoa, depois de Camões, é o maior poeta português. “O poeta é um fingidor. Finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”. “Tudo vale a pena quando a alma não é pequena”. Fernando Pessoa. Camões é o maior e Fernando Pessoa o segundo. Em outro gênero, mas é poeta e escritor. Camões é o maior poeta da língua portuguesa. Os Lusíadas é o maior poema épico do mundo, o segundo maior poema épico do mundo. O maior poema língua portuguesa. O maior poema do mundo é de origem hindu, autores desconhecido. Autores desconhecidos, indiano. O maior poema do mundo.
P1 – Uma pergunta sobre o Rio de Janeiro. Essa cidade que o senhor também nunca deixou, essa terra prometida.
R – E nem quero deixar. Só quando for pro cemitério do Irajá, daqui a 60 anos. Eu quero ir com 100 anos, daqui a 60 pode me enterrar lá. Se eu tivesse dinheiro, já ia comprar o terreno pra fazer o túmulo. O túmulo seria no formato de livro. Eu já levava livro pra lá, enchia o túmulo de livros. Ia ser uma coisa típica, né? Botava já meu nome lá. “Nesse túmulo, daqui a 60 anos vai se enterrar o senhor Evando dos Santos, amigo dos livros. Mas se você quiser, já ponha um livro aqui de presente, antes que ele venha pra cá”. Até os nomes... Falta de dinheiro é uma coisa... Aliás, eu desapropriaria um túmulo lá. Comprava da família, O maior túmulo da entrada. Imagina um túmulo no formato de livro, tipo uma casinha, e já biblioteca, com o buraco lá pra descer. Não, eu quero me enterrar de pé. Então, o túmulo tinha que ser diferente. Em vez de deitado, o cara já ia descer e me botar de pé. Estilo de hebraico, romano. Nada de deitar. Eu não quero nada deitado. Mas já ia ter o germe, o germe me beijava a face, acabou lá mesmo. Mas eu queira mesmo em pé. É difícil, mas eu queira em pé.
P1 – Senhor Evando, qual o maior sonho que o senhor tem?
R – Eu tenho muito sonho. Cada dia minha mente pari um sonho novo. É sonho pra lá, sonho pra cá. Mas tem alguns sonhos, por exemplo, criar uma biblioteca viva. Comprar uma fazenda e fazer um galpão chiquérrimo e lá colocar cocheiras de vacas, cavalos, tudo em miniatura, cabras... E aí fazer uma biblioteca só de ciências e biologia. Então, a criança ou o adulto vai lá, pega o livro e senta aqui. Descordou do livro, vai lá na cocheira, vê a vaca
cagar, berrar, mijar e fazer tudo. Ele está olhando e a vaca... Esse é um sonho. Outro sonho é fazer um grande dicionário de biografia de pessoas importantes, desconhecidas, urbano e rural. Ir para zona rural. Colher canto de pássaros, nome de pessoas, de árvores, tudo na linguagem popular. Nada a ver com Graciliano Ramos ou Silvio Romero. Coisa popular mesmo. Chegar sentar, ficar horas conversando e tal. Ir lá no caboclo. Uma enciclopédia rural de pessoas importantes e desconhecidas. Esse é o grande sonho. Talvez esse eu não consiga, porque esse requer dinheiro e pessoas capazes. Eu, se tivesse dinheiro, contratava, pagava um salário de peso. O catedrático da universidade está ganhando 6 mil reais, eu pagava pra uma estagiária 10 mil por mês, pra ir comigo fazer o trabalho. Imagina essa menina, só garota – não é que eu seja papa-anjo, mas trabalhar com mulher é melhor que com homem. Teriam dois homens só pra quebrar galho – porque a mulher é mais dócil, se aplica mais, é muito valiosa uma mulher. Aliás, está faltando aqui pra vocês uma mulher, duas mulheres. Da próxima, quando chegarem aqui, duas mulheres: uma morena e uma loira. Sem mulher o ambiente fica muito pesado. Vocês já estão carregando um peso desgraçado aí, e sem mulher, “fica” dois pesos.
P1 – o senhor aspira a Academia Brasileira de Letras?
R – Não, não. Eu como brasileiro, adoro. Faço da Academia como se membro fosse. Mas não posso ser membro, nem tenho essa pretensão. Aliás, pretensão besta, uma falta de bom senso. Mas eu amo a Academia, como amo a minha casa. Acho a academia um lugar mais maravilhoso do mundo. E, por exemplo, eu chorei de emoção, bati palmas sozinha, alegre, quando a academia convidou e elegeu o José Mindlin. Cara, foi a maior aquisição da Academia nesses 50 anos. Não, nesses 10 anos. Cara, foi a maior maravilha que a Academia fez. A Academia colocou o homem mais importante para nós, brasileiros, numa cadeira. O amigo dos livros, o amigo que edita livros, o amigo que vive 24 horas com livros. Claro, ele melhor que eu, porque tem dinheiro. Eu sou o irmão pobre dos livros, o primo pobre. Eu vivo livros pobremente, mas de uma maneira muito rústica. Ele vive livros das relíquias, do dinheiro que ele foi lá e comprou. Montou a maior biblioteca da América do Sul. Tem o prazer de ler livros que eu já mais vou tocar. Ele merece de todos nós brasileiros, aliás, já merecia, uma estátua. Eu, se fosse o Estado de São Paulo, fosse o governador de São Paulo, faria uma estátua de bronze deste cavalheiro e colocava em frente a maior biblioteca de São Paulo.
P1 – Se o senhor pudesse mandar uma mensagem pro José Mindlin, o que o senhor diria?
R – Minha mensagem pra ele: “eu preciso te conhecer, ficar pelo menos... Almoçar, já estou abusando, mas almoçar com o senhor na sua casa e falar pelo menos uma meia hora, meio dia, meia hora é pouco. E sentar e ouvir. Aliás, vou só ouvir, porque o senhor tem muita coisa a me dizer sobre livro e sobre o viver com livros. Meu sonho é ir daqui a São Paulo, de avião, ter um carro me esperando, uma Mercedes me esperando, para me conduzir à casa desse cavalheiro, José Mindlin. Você vê: sonho de rico É porque é um sonho. Sonho tem que ser chique, né? O que é alugar uma Mercedes, 2 ou 3 mil reais, pra levar um amigo pobre dos livros pra ver o amigo rico dos livros. Não é nada. Esse é o meu sonho. Não sei se vou realizar, porque é difícil.
P1 – Se o senhor pudesse mudar alguma coisa na sua vida, mudaria?
R – Agora, não mudaria nada. Melhoraria. Se ia fundar uma biblioteca, fundaria duas. Se dou três livros, daria 10 por dia. Melhorar.
P1 – E na sua trajetória de vida?
R – Não mudaria nada. Está bem, está indo bem. Estou com os livros, estou com Deus. Sem os livros estou sem Deus. E aí ficou ruim.
P1 – Senhor Evando, o que o senhor diria para uma pessoa que classifica o livro como algo chato?
R – Ele que é chato. E aí precisa fazer um trabalho muito sério com ele, pra mostrar que o livro não é chato, que chato é ele. E que se ele tiver essa chatice na mente, vai ser uma titica, mais chata que titica de gato não tem.
P1 – Uma pergunta sobre uma questão mais prática, cotidiana, essa coisa quase platônica, eu diria, e pagar contas, o cotidiano de casa.
R – Aqui nós vivemos, como disse no início em off, já estou até falando em off, nós aqui vivemos uma aventura livresca no bom sentido. Não é aventura no sentido de se aventurar para adquirir qualquer coisa. Eu, Evando Santos, a minha esposa, Maria José e a Zelita da Cruz dos Santos. Então, a minha esposa é aposentada e minha mãe aposentada, ganham pouco. Quando eu não trabalho... Então, nós vivemos, dividimos esses pequenos recursos e vivemos livrescamente essa aventura. Porque acreditamos que só Jesus e os livros “é capaz” de mudar a vida dos cidadãos. E aí nós colocamos a nossa casa, que não é nossa, mas da minha esposa, fruto de muito trabalho de um pintor de parede com uma costureira, senhor Benedito e Dona Vicentina, que tinham o sonho de ver esta casa se transformar num colégio. Já morreram. O senhor Benedito morreu com 96 anos e a sua esposa com 60 e poucos anos. Então hoje a casa deles é até universidade, é tudo. Porque os alunos vêm e aqui usufruem da sua beleza. E a sua filha, que eles deram educação, a Maria José, trabalhou, se aposentou. Eu parei de trabalhar a oito anos e vivemos essa aventura. Ela concordou com essa aventura. Nem ela me sustenta, nem eu estou sustentando ela. Ela é sustentada pelo trabalho que ela trabalhou 35 anos. 30 anos de trabalho, se aposentou, ganha um salário razoável, não é muita coisa. E o que sobra a gente investe aqui, eu e minha mãe. Você já viu uma mulher igual a ela? Não tem. E uma mãe igual a ela? Não tem. Dar a casa dela... No princípio ela não queria, mas foi vencida por livre e espontânea pressão livresca. A pressão dos livros mesmos, porque os livros foram chegando e imprensando ela. A pressão dos livros mesmo, né? Na livre e espontânea pressão livresca, está aí o resultado. Mas valeu a pena. Projeto do Doutor Niemeyer e tudo. BNDES investindo, olha Só de ter a marca BNDES, eles não vão dar mais nada, mas deram 650 mil. Se eu trabalhar 10 anos, não vou ganhar 650 mil, nem em 100 anos de trabalho. Em seis meses eles investiram ai. Isso quer dizer que o livro e a idéia transformam o mundo. Eu sou prova disso. Eu já estive em São Paulo, aliás, São Paulo é o estado que eu sou apaixonado. Queria que a prefeitura me convidasse pra fazer uma série de palestras nos colégios. É um sonho? É um sonho Porque São Paulo é o lugar mais maravilhoso... Depois do Rio, é São Paulo. É Rio, São Paulo, Minas e Sergipe. São Paulo sempre me acolheu. Já fui quatro vezes a São Paulo. Fui pro fórum mundial patrocinado pelo Banco Itaú e pela Unesco, Ministério da Cultura. Me deram cachê. Desse cachê comprei uma televisão e comprei um livro. Gastei. Fui a São Paulo agora num encontro mundial da Literatura Evangélica. Tive o prazer de ver gente do mundo inteiro. Foi o publicitário Carlos Carrenho, uma das maiores personalidades do mundo evangélico e secular. Tem o maior site do mundo. O cara é... Ele diz que não, mas me achou na Internet e o Ministério da Cultura me levou a Brasília, pra ver sua Excelência Lula assinando a lei que isentou o livro de ICMS. Eu estava lá, graças ao Carrenho que me achou na Internet e que a pessoa do Ministério lá, do Viva a Leitura me pagou a passagem. Ele me levou agora nesse fórum mundial de pessoas do mundo inteiro. Foi maravilhoso. Só não foi mais maravilhoso, porque eu não entendi bulhufas. E eu fui como palestrante, né? Ele que me traduziu. Eu coloquei ele em situações muito delicadas, porque falava palavras que não havia tradução na língua inglesa. Ele ficou numa saia justa. Eu fui logo falar em Tupi e ele: “para com isso”. Fui dar boa noite em Tupi. (RISOS) Ele que mandou a equipe me convidar. Eu tive o prazer de sentar do lado de um indiano e de uma africana pra falar de minha experiência de vida. No Fórum Mundial. Ali tinha gente de todos os continentes do mundo. E o ruim dessa maravilha é que lá só falava inglês e eu não falava bulhufas. A pessoa que me convidou, ele me convidou, mas tinha um tradutor, que me recebeu no aeroporto comum carro muito chique. Coisa de rico é maravilhoso. Coisa de pobre é uma pobreza caçoar, cangalha, jumento, trem cheio, apertado. Coisa de rico tem avião, tem até um nome “Frescão”. Você vai viajar num “frescão”, com ar condicionado no ônibus. E ai pessoa que estava traduzindo me ajudou, traduziu muito, me explicou muito, mas tinha hora que tinha que sair. E aí eu resolvi: pelo menos 10 palavras em inglês eu vou aprender até o final desse ano. Até o final do ano eu estarei falando 10 palavras em inglês, falando e entendendo o que o cara está falando. Pelo menos 10 palavras eu já estou safo. Chegar num lugar desses e blá-blá-blá. Quando eu não entender, jogo a palavra que eu sei pro cara falar o que eu sei. 10 palavras em inglês e 50 em francês, porque francês é o nosso tronco. É mais... Espanhol eu “hablo “mucho” biem”,
P1 – Mucho gusto.
R – Usted hablas castellano?
P1 – Um pouco.
P1 – Existe alguma coisa que o senhor gostaria de falar mais na entrevista?
R – Não, já falei bastante. Tinha mais o que falar, mas já falei bastante.
P1 – Eu sei que o senhor já contou muitas vezes a sua história
R – Algumas, mas essa é um momento especial, vocês vão passar lá no rádio, não sei se vai ficar lá no Museu, mas se ficar vai ser uma honra. Mas eu quero que depois vocês me levem lá pra eu ver isso lá no Museu. Aproveita. Arma um jeito de eu conhecer a casa do Mindlin e depois eu fico um dia lá no Museu. Depois você me embarcam num avião e me mandam de volta. Coisa de pobre. Pobre está sempre armando.
P1 – Senhor Evando, muitíssimo obrigado.
R – Não, eu tenho... Não se termina uma conversa sem um poema, já imaginou? Aliás, três poemas. Um do Martins Fontes, que eu vou deixar pro final. Primeiro um do Tobias, que diz assim: “Sou eu quem assiste as lutas que dentro da alma se dão. Que são todas as lutas profundas do coração. Quis do céu ver os segredos, rebelde sou do rochedo. Cravado sou prometeu. Tive sede do infinito, gênio, infeliz ou maldito. A humanidade sou eu. Ergo os braços e aceno aos ares, o céu se azulando vai. Estando as mãos sobre os males e os males dizem: passai. Satisfazendo do grande, do bom e do belo. Todas as formas também. Como Homero fui poeta, como Isaías, profeta. Como Alexandre, fui rei.”
Tobias Barreto, Capitulação de Montevidéu, 1866, Tobias Barreto. Agora um poema do Castro Alves, o Livro e a América: “Por uma fatalidade, dessas que vêm de além, no século que viu Colombo, viu Gutenberg também. Quando trouxe o estaleiro da Alemanha, o velho obreiro, a ave da imprensa gerou. Oh vai, o genovês em altos mares, buscai os ninhos entre os palmares, a pátria da imprensa achou. Por uma impaciência dessa sede do saber, como as aves no deserto, as almas buscam beber. Oh bendito é o que semeias livros, livros a mão cheias e manda o povo pensar. O livro caindo na alma é germe que faz a palma, é chuva que faz pensar”. Castro Alves, escrito no Largo São Francisco, na Faculdade de Direito em São Paulo. E um outro poema do Martins Fontes “Ser Paulista”. Esse poema é lindo, é um tratado de nacionalismo. Ser Paulista, de Martins Fontes: “Ser paulista é ser grande no passado e ainda maior nas glórias do presente. É ser o sonho do Brasil sonhado e ao mesmo tempo do Brasil nascente. Ah, mas ser paulista é morrer pela nossa terra e pela nossa gente. É ter dó das fraquezas de um soldado e ter horror às falácias de um tenente. Ah, mas ser paulista é rezar pelo evangelho sacro-santo de Rui Barbosa, velho civilista imortal da nossa fé. Mas ser paulista em brasão e pergaminho, é ser traído e pelejar sozinho. É ser vencido, e cair de pé”. É um tratado de nacionalismo. Foi na década de 30, os paulistas perdem a guerra e São Paulo fica numa inquietação muito grande. Os paulistas ficaram muito inquietos com a perda da revolução e aí Martins Fontes faz esse poema que foi declamado em prosa e verso em toda São Paulo. Aliás, pra mim, o hino de São Paulo deveria ser esse poema de Martins Fontes. Pela beleza e riqueza de imagem, de sonoridade e de perspicácia no juntar as frases, né, o ser, com o querer, com o ter. Com o mais importante que é o indivíduo, o seu nacionalismo. Ela pedia pra eu declamar, mas me fugiu a estrofe, eu não lembro. E eu esqueci o nome do nosso homenageado desse ano, que é a Lígia Bojunga e o Osvaldo Abreu, que é o maior jurista de Sergipe hoje. É uma mistura de Tobias Barreto com Silva Romero. Você imaginou? O cidadão é uma águia em matéria de jurisprudência. É defensor público da área civil, um homem de uma visão tremenda. É escritor, poeta, contista. Está lançando agora três livros, no meio do ano ou final do ano. Meu grande patrono de Sergipe. Me levou lá pra fazer umas palestras, me tratou muito bem. Estou esperando aqui, não pra ele dormir bem e comer bem. Comer, eu vou levar ele no restaurante, eles vão pagar a conta. Lá pagou tudo. Só não vou pagar pra ele a passagem de avião. Porque é cara. Mas ele não precisa disso, compreendeu? Tem o cascalho, tem o arame muito grande.
P1 – Perfeito. Obrigado.
R – Não, tem uma outra frase do Martins Fontes que é para as mulheres, pras amantes e pros amantes. Martins Fontes tem um soneto que diz assim: “antes de conhecer-te já te amava. Porque sempre te amarei a vida inteira. Era a irmã, a noiva, a companheira, alma gêmea da minha, que eu sonhava”. Então que os amantes, você, é noivo?
P1 – Não.
R – Casado?
P1 – Não.
R – Mas já tem namorada, né? Então, quando encontrar a namorada você declame esse soneto. Você é noivo, casado?
P1 – Estou a procura.
R – Não, é muito fácil. Tem 10 mulheres pra cada homem. Já pensou você chegar na cabrocha e diz assim: “antes de conhecer-te já te amava. Sempre te amarei a vida inteira. Era a irmã, a noiva, a companheira, alma gêmea da minha que eu sonhava”. Já pensou nisso? Está chegando aqui um grande amigo do Jornal Suburbano, que tem ajudado muito, um grande parceiro. Não corte essa parte, porque é o maior jornal da nossa região. As minhas aventuras literárias eu ligo pra ele e ele deixa de ganhar o espaço e joga lá, matéria boa, página inteira. Sempre em destaque. O nome dele é Roberto. É isso.
P1 – Obrigado.
R – Obrigado, como dizia o César, Alea jactas est, o dardo foi lançado, o rubicão já foi derrubado. Pronto.Recolher