Projeto Conte sua História Vidas Negras
Entrevista de Bel Santos Meyer
Entrevistada por Jonas Samauma e Wini Calaça
São Paulo, 25 de novembro de 2020
Código PSCH_HV926
Transcrito por Selma Paiva
P1 – Queria te pedir, assim, se pudesse, fechar os olhos pra gente começar, assim, a entrevista. Virar assim e fosse buscar lá no baú das suas lembranças a sua memória mais antiga, a primeira memória que você tem na sua vida.
R1 – E falo sobre ela?
P1 – Hum hum.
R1 – As memórias, tem alguém que já falou sobre isso, tem muita coisa que está aqui, tem coisa que a gente inventou e tem coisa que vira nossa, de tanto a gente ouvir. Mas, nesse pedido pra fechar os olhos, a memória que veio foi eu pequenininha, com uns dois anos de idade, andando quase uma hora com a minha mãe grávida, atravessando de Santo André pra São Paulo, do Jardim Utinga, para o Parque Santa Madalena, na zona leste de São Paulo, com materiais pra construir a primeira casa dela, do meu pai e das minhas irmãs, em São Paulo. Eu sou filha de um casal nordestino, do Recôncavo Baiano, Terra Nova e eles moraram nas casas dos outros quando chegaram aqui, nos anos 60. E sempre quando eu fico pensando na infância, eu fico imaginando aquela menina gordinha andando, porque minha mãe não podia me pôr no colo, porque ela precisava carregar um monte de coisas nessa travessia. Então, era essa a imagem. De uma criança de mãos dadas com a sua mãe, caminhando na construção do sonho da casa própria, que é onde eles vivem até hoje.
P1 - Nossa! E você podia contar um pouquinho como que foi a construção dessa casa? Como eles decidiram que ia ser lá? Como é que aconteceu isso?
R1 – Primeiro uma irmã da minha mãe, a minha tia Eunice, que foi a irmã que migrou pra São Paulo antes dela, conseguiu comprar um terreno nesse Parque Santa Madalena e ficou em cima do meu pai e da minha mãe: “Vocês têm que conseguir comprar um terreno também. Vocês têm que se organizar. Esse bairro é novo, que está nascendo, dá pra conseguir comprar e depois vai construindo”. A ideia era comprar perto da minha tia, que era o bairro que já estava aplanado, mas era muito caro. Então, meu pai comprou na parte que tem o morro. Até a gente era conhecido em Santo André como o pessoal do Morrão. Eu passei a minha infância na escola sendo chamada a Bel do Morrão, que era saber que vinha desse bairro, que era um morro. Então, meus pais compraram, a máquina passou em uma primeira parte do terreno e aí eles construíram dois cômodos: a cozinha e um quarto. Que aí morava todo mundo num quarto e tinha uma cozinha. Quem era todo mundo? A vó, as filhas, (risos) uma tia, era todo mundo mesmo. E depois foi, aos poucos, construindo a outra parte. Então, aí depois construiu mais um quarto, que era do meu pai e da minha mãe, na frente, essa tradição do quarto do pai e da mãe ser na frente, pra poder olhar que horas que os filhos chegam em casa, né? E atrás o nosso. Então, eu lembro, eu passei a infância dormindo em beliche, dormindo em cima, porque aí tinham duas beliches e mais uma cama de solteiro. Depois meus pais conseguiram construir mais um quarto. Aí deu pra dividir, ficavam três filhas num quarto; um a minha vó, uma tia e mais uma irmã no outro quarto. Depois conseguiram construir uma sala do lado do quarto dos meus pais. Aí, no final, a minha vó que morava na Bahia, começou a ficar idosa e todos nós preocupados dela ficar lá morando sozinha, longe de todo mundo e aí meu pai prometeu, meu pai chamava minha vó de mãe, porque eles eram vizinhos, meu pai e minha mãe, casaram ela com vinte e ele com 18 anos e ele sempre chamou minha vó de mãe, ele falou: “Mãe, se você vier pra São Paulo, eu vou construir uma casa pra você” e aí eu prometi pra minha vó que eu moraria com ela, se ela viesse. Ela me adorava e aí, nos fundos do morrão, que nunca deu pra tirar, então tem essa casa que está embaixo, que tem que subir uma escada, tem um morro, foi construída a casa da minha avó, com quem eu morei até... eu viajei, fui estudar na Itália e ela morreu antes que eu voltasse.
P1 – Qual é o nome da sua vó?
R1 – Edelmira. Dona Edelmira da Silva Cruz. Ixi!
P1 – O que você lembra de contato seu com a Dona Edelmira? O que você sabe da história dela? Que memória você tem de criança, com ela?
R1 – Nossa, eu vou chorar. Você entrou num campo muito sensível. (risos) A foto da minha vó é a única de pessoa não viva que está na minha casa, que fica no corredor de casa. Essa minha vó, minha história com ela. Ixi, vamos ver se eu vou conseguir, viu? É muito sensível essa história. Uma história muito bonita. Eu poderia ter sido uma pessoa da equipe de vocês. Eu sempre gostei muito de história das pessoas. Eu nasci em 1967, num período que as crianças nem comiam junto com os adultos, nas famílias mais simples. Então, primeiro comiam as crianças, num espaço separado e os adultos comiam no espaço deles. Porque não é pra ouvir história de adulto. Mas eu sempre gostei. Então, sempre que eu podia, eu estava ouvindo as histórias e eu adorava ver minha vó contar histórias. Ela era engraçada, era uma mulher muito simples. Ela era alta também, assim que nem eu, magra e ela contava umas histórias que eu adorava que ela repetisse aquelas histórias, eu morria de rir e ela tinha uma coisa: ela não sabia comer de garfo e faca. Ela comia ou de mão ou de colher. Então, ela sempre comia com a gente, com as crianças. E aquela coisa era um negócio que me chamava atenção. Eu falava: “Vó, a senhora não tem que ter vergonha, porque a senhora não sabe comer de garfo e faca”. Minha mãe sabia, porque ela tinha sido doméstica e ela aprendeu na casa das patroas. Eu falei: “Eu não tenho vergonha”. E aí eu lembro uma vez, eu levei um amigo pra comer em casa e o chamei pra comer com a gente. Eu já era adolescente e aí a minha vó não quis comer. Ela pegou a comida dela e foi pros fundos, onde a gente morava, onde eu dormia com ela, né? E eu falei: “Vó, não, a senhora vai comer aqui, com a gente” “Não, não vou”. E aí eu comi de mão, junto com ela. E ela me olhava, ela ficou irritada com aquilo, meu amigo não entendeu nada, mas a nossa relação sempre foi essa. Eu queria sempre que ela se sentisse à vontade, porque o que estava fora do lugar era um país que as pessoas tinham que viver sem saber o que era garfo, né? E ter vergonha de comer com a mão. Não era ela que estava fora do lugar. Então, eu lembro dessa história e nós éramos muito amigas, ela gostava de uma pinga e minha mãe era contra, minha mãe era preocupada e tinha uma coisa meio moral. Ela tinha uma preocupação com a saúde dela também. E eu comprava pinga escondido pra ela, chamava Tatuzinho, que era uma garrafa de pinga assim. Então, ela me dava um dinheiro, uma sacola, eu criança, no tempo que se vendia pinga pra criança, não tinha estatuto da criança, aí eu ia, comprava Tatuzinho ou a Cavalinho. Era uma das duas que ela gostava. Trazia tudo embrulhado secretamente e ficava escondido. E aí eu comecei a ficar preocupada, que eu vi uma pessoa que tinha tomado um produto de limpeza por engano e aí eu comecei a falar pra ela: “Não, pode esconder no meu guarda-roupa”, porque era um lugar que minha mãe não mexia. E aí a garrafa de pinga começou a ficar escondida no meu guarda-roupa. Outra coisa que eu lembro muito dela... estou falando as coisas meio sem pé nem cabeça, né, mas é que você falou das lembranças e as coisas vêm. Ela fumava cachimbo. Então, ela tinha um vestido, sempre furado. Eu que comprava o fumo pra ela, de rolo, na feira e ela fumava aquele cachimbo, lembro dela sentada, com aquele olhar perdido. Como a casa nossa está nesse morro, então você olha toda a favela do Parque Santa Madalena de lá e ela ficava com aquele olhar perdido, fumando cachimbo. Ela morria de saudades da terra dela, do quintal. Aí meu pai resolveu não cimentar um pedaço da terra, pra ela poder plantar. Tinha sempre esse cuidado. A gente queria que ela se sentisse bem, dentro do que a gente podia oferecer. A outra coisa que eu lembro: eu fiz faculdade de Matemática e eu estudava na Mooca. Eu chegava em casa quase uma hora da manhã e eu dormia com ela. E ela ficava me esperando, pra contar as coisas do dia. O que eram as coisas do dia? O que ela ouvia no rádio, no Eli Corrêa, que eu odiava. (risos) E tanto eu odiava a coisa, que eu falava assim: “Vó, é tudo mentira, é tudo armação essas histórias”. E aí ela ficava: “Será, filha?” Era aquela que colocava copo de água pra ser benzido às seis da tarde, no programa de rádio. E aí eu falava assim: “Vó, esse pessoal...”. Então, ela falava, me chamava: “Essa Isabel é muito crítica”, mas ela ria das histórias. Então, ela me esperava. Imagina, eu chegava de madrugada da faculdade e ela começava a me contar as coisas que ela ouviu no rádio. Eu tinha cinco horas pra dormir, porque às sete da manhã eu dava aula, já, na escola de educação infantil. E aí eu fui ficando num nível bem cansada e aí minha mãe falou com ela: “Mãe, a senhora não pode ficar conversando com a Bel quando ela chega da escola” - Beca, ela me chamava – “com a Beca, porque ela chega cansada. Deixa pra conversar com ela no final de semana. E aí tinha uma cena muito engraçada. Imagina, ela já morreu há tantos anos! Ela morreu em 1997. Mas até hoje a família virou um meme familiar, por que o que ela fazia? Eu chegava, ela estava deitada na cama, é um quartinho, metade disso aqui, a minha cama grudada na dela, em L e ela deitada, cobertinha e balançando o pé. Aí ela ficava balançando o pezinho e eu falava: “Vó, está acordada?” “Acordei agora” e aí começava a conversar. (risos) Então, virou um meme na minha família, quando você está fingindo que está dormindo, você faz: “Ah, acordei agora”. (risos) E aí era uma figura muito bonita, muita dignidade, um olhar com muita dignidade, muito amorosa e quando eu ganhei uma bolsa de estudos, fui morar na Itália e ela não se despediu de mim. Por isso, sempre, falar dela é uma coisa muito sensível. Ela não se despediu, porque ela falou: “Eu nunca mais vou te ver”. Eu falei: “Vó, são dois anos. Daqui a dois anos eu vou voltar”. E ela não me deixou, não me deu um beijo, subiu chorando pro nosso quartinho e eu fui embora e aí, no dia de voltar, dois anos e meio depois, eu queria falar com ela: “Está vendo? Amanhã eu estou no Brasil” e ninguém me deixava falar com ela. “Ela não está aqui”. Eu falei: “Mas onde ela está?” “Está na tia”. Aí eu liguei pra minha tia: “Ela não...”. Eu falei: “Gente, o que aconteceu com a vó?” E ela tinha morrido fazia 15 dias e ninguém me contou, pra não atrapalhar a apresentação do meu TCC, lá na pós, eu estava estudando. Foi a pior viagem da minha vida. Eu viajei 11 horas chorando no avião, cheguei no Brasil, fiquei na cama dela e, assim, eu não acredito em quase nada, não tenho religião, mas tem uma coisa: tem uma foto dela que eu consegui recuperar e todo mundo da família tem, que está no corredor. Então, eu acredito nesse amor ancestral que ela conseguiu deixar. Eu sei que é uma pessoa que, se ela pudesse, ela faria de tudo pra que as coisas dessem certo na minha vida. Então, uma figura que eu sempre dou risada com ela, eu olho e falo assim: “Vó, acho que as coisas vão caminhar por aqui. Tomara que essa energia, esse amor que você me deu, me ajude a fazer a melhor decisão”. Então, se tem alguém que eu acredito é na Dona Edelmira da Silva Cruz.
P1 – Ela benzia?
R1 – Ela benzia. E aí tinha uma história engraçada. Não sei o que acontecia entre nós duas. Ela me adorava. Tinha uma coisa... embora também ela gostava de todas as netas, né? Meus pais, quando migram pra São Paulo, deixam duas filhas com ela, porque eles não tinham dinheiro pra trazer as duas. E depois minha mãe fica grávida de mim, consegue trabalho, aí precisa de alguém pra ajudar a cuidar de mim, aí vem, minha vó traz as crianças pra cá, mas ela não muda pra São Paulo e ela tinha uma coisa assim: todo mundo achava que eu era muito boba. Eu não era uma criança linda, pros padrões de beleza de criança, ninguém me achava muito linda, ninguém me achava muito inteligente, eu vivia caindo. Sabe aquela figura assim? Pede pra ir comprar o pão, aí cai na rua? E aí chega com o joelho todo esfolado, chorando e aí todo mundo: “Essa menina é uma boba” e minha mãe vó tinha uma coisa assim, ela me adorava, então ela falava: “Não”. Eu era muito magra, muito alta e ela vivia me benzendo. Porque ela falava assim: “Essa menina é muito boa”. E ela tinha uma frase que minhas irmãs odeiam, (risos) elas falam pra me encher, porque minha vó falava assim: “Quem não se dá com essa Isabel, não se dá com mais ninguém, porque essa menina é muito boa”. Aí minhas irmãs têm ciúmes, então, quando eu faço coisa errada, elas falam: “Essa menina é muito boa”. (risos) E aí ela me benzia muito. E uma vez eu estava na quarta série, tinha uma colega que era muito discriminada, porque todos nós éramos do Morrão, mas ela era da favela da viela Santa ngela, que era onde ficava o tráfico, então ninguém conversava muito com essa menina, com a Nizete, que eu nunca encontrei mais. E a Nizete estava mal, meio desanimada, meio chorando, eu falei: “Nizete, acho que você está com quebranto. Vamos lá, pra minha vó te benzer”. Aí lá vou eu, né? Imagina, já tinha nove, dez anos, eu chego com a Nizete e falo: “Vó, a Nizete está com quebranto. Você pode benzê-la?” Minha vó falou: “Eu não sei benzer”. Eu falei: “Vó, (risos) é só benzer, pra tirar o quebranto dela” e ela falou: “Eu não sei benzer, eu não benzo”. Eu falei: “A senhora não me benze?” “Eu - não - benzo”. E aí eu falei pra Nizete: “Desculpa, eu achei que minha vó sabia benzer”. Aí minha vó falou: “Nunca conte por aí que eu sei benzer, porque eu não quero os padres aqui na porta de casa, falando mal da nossa família”. Então, medo do preconceito. Uma família nordestina, ser benzedeira. Ela estava indo pra igreja católica, então o medo do preconceito, de ser considerada bruxa, sei lá o quê. Porque ela me benzia. Eu até lembro a frase, era: “Com dois te botaram, com três eu te tiro” e ela juntava um ramo, tinha arruda, guiné e mastruz. E ela fazia: “Com dois te botaram, com três eu te tiro” e aquela planta murchava, ela amarrava uma fita vermelha no meu braço. E nunca mais se tocou nesse assunto de benzimento. Depois de jovem, era mais jovem, eu lembro, tive problema de garganta, eu fui benzer, tinha uma avozinha no bairro e eu ia nessa benzedeira. Ela nunca mais tocou no assunto benzimento.
P1 – Depois dessa menina que você levou?
R1 – Depois de eu ter ido levar a Nizete.
P1 – E ela falou que tinha essa coisa dos padres irem falar... isso que eu ia te perguntar: se tinha algum tipo de discriminação, por ela ter falado isso, se tinha algum...
R1 – Então, nossa família... eu comecei a ir pra igreja, eu tinha acho que uns 12, 13 anos. Porque aí começavam as comunidades eclesiais de base, a Teologia da Libertação e aí meus tios, aquela minha tia Nicinha, que é irmã da minha mãe, começaram a me levar pra igreja e eu fui pra pender tocar violão. Nem era igreja, era mais: “Tem o Camargo, que ensina violão” e eu fui, pra aprender a tocar violão. Então, minha família não ia pra igreja. Depois tinha uma outra questão: meus pais não eram casados na igreja, então tinha também esse preconceito de não ser casado, uma família negra cheia de filhos, de certo modo, a nossa casa era do lado da casa da família do dono da padaria, do casal português, que eram nossos vizinhos. Então, na nossa rua, só depois foi ter uma família negra que conseguiu comprar um terreno. Então, acho que tinha mais, acho, que existia um preconceito da igreja, do pessoal do bairro, de um bairro que está em constituição, o medo deles de serem discriminados. Acho que tinha essa coisa muito assim: quanto menos falarem da gente, souberem o que a gente faz, é melhor. A gente viveu uma história que foi desagradável quando eu tinha... eu aprendi a ler, tinha uma senhora que ensinava a ler no bairro, que era uma coisa muito comum, não existia educação infantil. Imagina, a gente chamava a pessoa de finada Josefa, né? Imagina você ficar chamando de finado! (risos) Um horror, né? Mas era a finada Josefa, foi quem me alfabetizou, que é uma coisa bonita, a gente ia pra casa dessa pessoa, que ensinava a gente a ler. E aí, depois da Dona Josefa, finada, aí eu fui pra escola do bairro, que é uma escola municipal. E eu era uma menina muito tímida, né? Tem quem diria assim: intimidada, mais do que tímida. Mas aí aconteceu de eu estar na escola, no primeiro ano, minha mãe trabalhava como doméstica, a gente ficava com a vó, com a irmã mais velha e eu, chegou num ponto, que você tinha sempre que pedir pra ir ao banheiro. Acho que isso ainda existe, em algumas escolas. Mas o negócio era cruel, né? Você tinha que pedir pra ir ao banheiro publicamente e a professora, se te autorizasse, você ia. E aí imagina pra uma menina tímida. Eu aguentei até o último limite, ao limite, aí eu levantei e pedi pra essa professora, falei: “Professora, por favor, eu preciso ir ao banheiro”. Ela gritou, me mandou sentar. Eu fiz xixi na calça. Então, imagina: todo mundo ri, a professora grita ainda mais, foi um horror. E aí minha mãe não acompanhava o nosso dia a dia, né, porque ela estava trabalhando, cuidando dos filhos dos outros. E aí minha vó ficou indignada com essa coisa, que ela fala: “Como é que uma menina faz... urina na calça, porque a professora não deixa ir ao banheiro?” E aí minha vó falou pra minha mãe: “Você tem que ir nessa escola. Eu nem vou, porque se eu for (risos) essa professora não sabe o que vai acontecer com ela”. Aí minha mãe precisou, claro, primeiro, ir trabalhar no dia seguinte, pra pedir pra patroa, pra poder ir na escola. Aí conseguiu só ir numa segunda-feira e minha mãe foi, né, também indignada, conversar com essa professora e a professora falou: “Sua filha é muito mimada”. Imagina, uma menina mimada que não tem nem o direito de passar o dia a dia com a mãe, porque a mãe precisa pedir pra patroa, pra poder ir defendê-la. Então, essa menina é muito mimada, aí gritou ainda com a minha mãe e minha mãe me tirou da escola. No meio do ano eu mudei, saí daquela escola e minha mãe decidiu, a partir dali, que a gente não estudaria mais em São Paulo, que a gente estudaria em Santo André. E aí a gente volta a fazer aquele caminho que eu contei, da minha memória inicial. Eu, com dois anos de idade, atravessava de Santo André pra São Paulo e, os sete anos, eu começo a fazer o caminho de volta.
P1 – Então, queria voltar pra esse momento que você recomeça a fazer aquela migração da sua primeira memória. Se você pudesse contar alguma coisa dessa travessia.
R1 – Que aí, então, minha mãe decide que eu não vou estudar numa escola em que eu não posso nem ir ao banheiro e ela fala exatamente isso: “Como chamar de mimada uma criança que não pode nem estar perto da sua mãe? Uma menina que pede pra ir ao banheiro! Minhas filhas são educadas. Se ela pediu é porque ela estava precisando, mesmo”. E a humilhação, né? Imagina, eu era a mais alta da sala de aula! Eu tinha oito anos, mas eu era uma criança alta. Então, a vergonha, tudo isso e aí eu começo a fazer o caminho de volta, de São Paulo, andar até o Jardim Utinga, na Escola Estadual de Primeiro Grau Camilo Peduti. Dava, de caminhada, pra uma menina de oito anos, cinquenta minutos, pra chegar à escola. E aí meus primos moravam na parte de baixo do morro e aí minha tia matriculou meus primos nessa mesma escola. Então, eu descia, ia andando até a casa dos meus tios, que dava uma meia hora, pegava meu primo caçula e nós íamos juntos para o Jardim Utinga. Esse caminho que eu estou falando tem um riacho que divide São Paulo de Santo André e uma pinguela, aquelas pontinhas de madeira. Então, a gente tinha que atravessar essa pinguela, pra chegar do outro lado. E essa pinguela, esse riacho, sempre foi uma área de grandes conflitos, porque aí vinha polícia militar de Santo André e também a polícia militar de São Paulo, pra fazer confrontos. Então, a gente teve que enfrentar situações de tiroteio nessa passagem pra ir pra escola. E a memória que eu tenho também desse caminho são muito duras, né? Um desses tiroteios, eu em pânico com meu priminho pequeno, menor do que eu, tendo que ir pra escola e medo de que acontecesse alguma coisa com ele, porque o recado era sempre: “Cuida do Álvaro”. Até uma das fotos que eu deixei aqui ele está segurando uma bola. Nós estávamos na praia e ele está com essa bola. “Cuida do Álvaro”. Eu começo a ouvir esse tiroteio e aí a gente se joga na beirada do rio, embaixo da ponte e a gente fica ali, agarrado no mato, esperando esse tiroteio passar. Essa é uma das lembranças muito difíceis que eu tenho, de medo, né, do que acontecia e muitas outras vezes que a gente atravessava e alguém falava: “Olha, tem um morto ali”. Então, como infância, você fazer esse caminho de ter pessoas mortas, assassinadas, no seu caminho pra escola, quando eu vou chegando à adolescência, 12, 13, 14 anos, não é mais um corpo, né? É o irmão do meu colega de escola, o pai do meu colega de escola, o meu colega de escola. Isso começa a explicar as escolhas que eu começo a fazer na minha vida, que é de acompanhar os meninos que são presos e que vão pra Febem, de acompanhar as famílias desses meninos. Minha história de militância começa aí.
P1 – Essas pessoas que morriam, morriam nesses tiroteios da polícia?
R1 – Tinha confrontos entre a polícia, confrontos entre os três pontos de tráfico daquela região, que eu estou falando de uma área favelizada, mas com favelas distintas, né? A favela de Santa ngela, a favela do Jardim Elba e a favela do Parque Santa Madalena. Então, era um período de disputas. São anos 70, início dos anos 80. Então, muitas disputas de território. E aí, mil conflitos existiam naquela região. Então, imagina como é que Santo André nos olhava! A gente era a turma do Morrão. Pra eles todo mundo era bandido, nós éramos todos da favela e favela pra eles, era sinônimo de bandidagem. Além de que a gente chegava com o pé cheio de barro. Tinha uma estratégia que a gente usava, que era carregar um sapato limpo dentro da bolsa, pra quando chegar do trabalho, trocar. Isso minha mãe, meu pai, minhas tias faziam. Só que a gente, na escola, era uniforme. Como você vai ter um uniforme extra? A gente não tinha um sapato a mais pra colocar, pra entrar dentro da escola. Então, eu lembro de uma professora, eu escrevi sobre isso nas minhas crônicas, quando era Meu Professor Racista, um movimento, de uma professora, uma Dona Neli, que mandava assim: “Pessoal do Morrão pra cá e os outros pra cá” e vinham com mangueira lavar nosso pé, (risos) pra entrar dentro da escola. Então, assim, umas coisas, né, muito duras que a gente tinha que enfrentar. Então, você chegava morrendo de vergonha. Essa vergonha imposta pra gente, tudo isso era muito duro. E quem tinha que ter vergonha era o país, de nos colocar... e eu estou falando de uma escola que tinha salas de madeira. Não é que ela era toda de cimento. Parte dessa escola eram barracões, que eram provisórios, mas eu passei a minha vida estudando naquele barracão provisório. E ainda assim, você ser professor, te colocava num lugar de separar as pessoas por de onde elas vinham. Isso era muito duro.
P1 – Você descreveu que tinha três favelas. O lugar onde você morava era em alguma delas?
R1 – Meus pais conseguiram, com a compra do terreno, construir uma casinha. Então, foi construindo aos poucos, como eu contei no início e a nossa casa fica na Rua Planalto dos Alcantilados. A gente sai da casa da mãe, mas fica sempre a ‘nossa casa’, né? Então, eu chamo de ‘minha casa’ a casa dos meus pais, da minha mãe, meu pai e mãe e ela fica em frente a favela do Madalena. Só que pra ir pra escola, a gente passava pela do Jardim Elba. E a viela Santa ngela. E lá, na viela Santa ngela, que eu começo a minha militância, minha primeira experiência como educadora começa dentro dessa viela, que é onde essa minha amiga Nizete morava, nessa favela.
P1 – Isso foi com 14 anos?
R1 – Treze, catorze anos.
P1 - Queria voltar um pouquinho antes de entrar na sua militância, perguntar por que seus pais migraram.
R1 – Olha, Jonas, essa é uma ótima pergunta. Sabe que eu estou gravando, Jonas e Wini, a história da minha família. Eu adoro mesmo essa coisa de ouvir as histórias e eu comecei, aos poucos, gravar com a minha mãe e com a minha tia. Minha tia não gosta de contar, muito, essas histórias e aí, quando eu percebo que elas não estão bem, eu começo a mudar um pouco o assunto e mexer com boas memórias, porque eu estou falando de duas mulheres octogenárias, né? Então, não pode ser um processo de dor pra elas. Eu falo: “Eu quero esse direito de conhecer a nossa história, mas tem que ser uma coisa gostosa também, pra vocês”. O ano passado nós gravamos as circunstâncias do meu nascimento. Era meu aniversário e eu pedi, de presente, passar o dia do meu aniversário com elas duas, com a mãe e a tia e eu falei: “Eu quero saber como foi a notícia da gravidez, como vocês se prepararam? Como você me recebeu? Como foi pensar: ‘Estou grávida da terceira filha?’”. Foi uma coisa linda. E aí, aos poucos, elas vão trazendo essas circunstâncias da migração, né?
P1 – Nossa! Aproveita e conta do seu nascimento também.
R1 – (risos) Tá bom, eu vou contar. E aí, o que aconteceu, né? Meu pai tinha um irmão mais velho, meu pai é o filho caçula da família dele e um dos irmãos mais velhos se envolveu numa briga com o patrão, no trabalho e foi ameaçado de morte e aí a mãe dele, minha vó, pediu pra ele: “Salva seu irmão e vai embora daqui”. E como já tinha uma tia aqui em São Paulo, já tinha um outro tio, meu tio Armando também já estava aqui em São Paulo e meu pai e minha mãe vieram embora pra cá. Imagina, deixar duas filhas pequenas - não deve ter sido fácil pra eles tomarem essa decisão – e os dois migram e São Paulo vendia essa ideia da cidade do futuro, onde tudo ia dar certo, onde teria trabalho. Meu pai trabalhou em casa de farinha, na Bahia. Ele começou a trabalhar criança. Ele teve uma deficiência no desenvolvimento, por carregar peso. Ainda no processo de desenvolvimento ósseo, estava lá carregando peso e teve uma deformidade. A minha mãe começou a trabalhar como doméstica aos oito anos de idade. Minha vó a entregou com oito e a minha tia com dez, pra serem empregadas domésticas. E encontrou quem aceitou que isso acontecesse. Minha mãe lembra dela chorando, pedindo pra minha vó: “Não deixa a gente aqui”, mas minha vó falou: “Era isso ou a fome”. Ela não tinha como dar comida pra quatro filhos. Então, precisou dar as duas mais velhas pra serem empregadas domésticas. E aí eles migram pra São Paulo. Meu pai vai trabalhar, de tudo ele fez: como pedreiro, trabalhou também em casa de farinha, até ser metalúrgico. Ele consegue, depois, estudar, fazer o curso de torneiro mecânico e se aposentou como metalúrgico. Minha mãe trabalhando como doméstica, também como cabeleireira, ela fazia alisamento, a chapinha. Imagina, né, o trabalho. Ela alisava o cabelo dela e começou a alisar o cabelo de outras pessoas também. Principalmente depois que minha vó paterna morre e aí ela tinha uma filha pequena, não tinha mais jeito de sair pra continuar sendo doméstica e aí ela começa a, principalmente, fazer esses trabalhos dentro de casa. E aí as circunstâncias, então eu falo: “Eu sou filha do êxodo rural”. Nascer em 1967, quantas pessoas estava largando o nordeste e vindo pra cá, com essa promessa de vida, de trabalho, de progresso. E as circunstâncias do meu nascimento eu fiquei sabendo, minha mãe conta que ela ficou grávida antes de mim, de um menino, que seria o único menino, nós somos uma família de muitas mulheres, nós somos cinco filhas mulheres e um monte de sobrinhos, ela ficou grávida e, aos cinco meses da gestação ela, voltando do trabalho... minha mãe sabia ler muito pouco, ela estudou só quatro meses de vida, que depois ela ficou trabalhando como doméstica e não pôde mais ir pra escola, chega em São Paulo, mal sabia pegar ônibus. Então, ela tinha um combinado com meu pai: ela pegava um primeiro ônibus, descia num lugar que ela tinha como referência, que era o IVG, esse bairro e aí meu pai a pegava lá. O que aconteceu? Ela, grávida de cinco meses, teve um temporal, inundaram vários bairros, meu pai não conseguia buscá-la. E ela, em pânico, não sabia ir pra casa. Ela começa a chorar, desesperada e aí os motoristas avisam, falam: “Não tem jeito. Está tudo inundado lá pra frente”. E ela falou: “Não conheço ninguém, eu não sei pegar ônibus, pra onde eu tenho que ir, o caminho a pé”. E aí ela entra numa situação de desespero, consegue uma pessoa que fala assim: “Conta como é o lugar que a senhora mora”. Não tinham muitas referências. Não tinha muita coisa construída. Era mato. E essa pessoa fala: “Nós vamos achar sua casa”. Mas era quase uma hora de caminhada. Mas conseguiram. E aí, naquela noite, ela começa a passar mal, mas também ninguém tinha carro no bairro, não tinha telefone e meu pai falou pra se aguentar e amanhã a gente vai pro hospital. Mas aí o bebê já tinha morrido. E foi muito difícil pra ela perder um bebê de cinco meses, ter uma intervenção cirúrgica. E aí, depois de um ano, ela ficou grávida de mim e aí sempre ela teve uma coisa que eu nunca entendi: ela sempre tinha medo de que eu morresse. Sempre tinha medo de alguma coisa. Então, quando minha irmã mais nova nasceu, eu lembro que aí meu pai veio e falou: “Nós vamos buscar sua irmã no hospital”. Imagina que alegria, é uma festa! Mas depois eu soube que minha mãe, depois do parto, começou a chorar e falou: “A Isabel morreu e vocês não querem me contar”. O meu nome, Isabel, já é por isso, porque ela achou que ela estava grávida de dez meses e faz uma promessa pra Santa Isabel, que é a santa que seria a vó de Jesus, no catolicismo, uma mulher que fica grávida já idosa. Ainda assim ela ficou em dúvida, porque o médico falou: “Olha, se essa menina não nascer” – essa criança, nem sabia que era uma menina – “até o dia 26 de julho, a gente vai fazer uma cesárea”. Aí, no dia 26, ela fez outra promessa, pra Nossa Senhora Aparecida. Aí eu chamo Isabel Aparecida. Eu falo: “Nem confiou na Isabel. Vocês são cristãos, assim, que confia mais ou menos”. Então, ela fez toda essa promessa. E aí, quando minha irmã nasce, diz que ela começa a chorar, porque ela acha que eu tinha morrido e meu pai fala: “Está tudo bem. Ela e a Valda estão bem”. Mas ela não acredita, aí meu pai pega um táxi, uma baratinha, os táxis eram Fusquinhas, a gente foi lá pro hospital, pra poder ela ver que eu estava bem. E aí, quando eu tinha também uns sete meses, eu tive um problema de prisão de ventre e aí teve uma situação perto de desmaio e ela achou que eu estava morta. E aí, não bastasse, há dez anos, com 43 anos, eu tive câncer. E aí ela pirou outra vez. Então, sempre essa preocupação que, quando começa a contar as histórias, você começa a entender, né? Ela perdeu um filho antes que eu nascesse. Então, você está sempre lidando com esse medo da morte. E depois eu fiz escolhas perigosas na minha vida, na minha militância, que aí foi só aumentando o medo.
P1 – Você falou um pouco das lembranças que você tinha da sua vó. Queria que você contasse um pouco também das lembranças da sua mãe, durante a infância. O que você convivia, o que ela te falava.
R1 – Olha, minha mãe foi uma mulher muito braba. Nervosa. Sabe aquela pessoa que você olha e está em ponto de explodir? Claro que ela não era só isso, né? Mas são as principais lembranças que eu tenho dela. Meu pai o oposto, um cara muito calado, muito silencioso, que não gostava muito de conversa. Mas minha mãe é aquele tipo que está sempre batendo panela, sabe? Ela ficava irritada com muitas coisas, né? Eu sempre gostei dessa coisa de estudar. Eu gostei, gostava de estar lendo. Então, os poucos passeios que nós tínhamos, eu ia com um livro embaixo do braço. E isso, um pouco, irritava (risos) as pessoas. Eu até entendo hoje, né? Podia parecer uma coisa meio arrogante. O que ela acha que é, né? Está sempre com um livro na mão. Então, tem fotos que eu estou sempre com um livro embaixo do braço. Eu acho que isso deve ter soado como uma coisa meio arrogante. Então, minha mãe se irritava com essa coisa de eu estar sentada estudando, por exemplo. Então, eu lembro dela me ver na mesa, estudando... claro, a gente tinha uma única mesa em casa. Naquela mesa se comia, se costurava, se passava roupa. Era mesa pra tudo. E eu estava estudando na mesa e ela falando assim: “Primeiro a obrigação e depois a devoção”. Então, estudar estava no campo da devoção, no campo da religião. Então, qual era a obrigação? Pia limpa, a casa em ordem. Então, tinha essa coisa meio de irritação. Eu sempre gostei de escrever diário e essa coisa de escrever, você imagina, pra uma mulher que não escrevia, também devia ser irritante essa coisa de ver escrevendo. Aí eu sei que um dia ela abriu meu diário, porque ela falou comigo uma coisa que estava escrito no diário, então ela se irritou. Tinha, quando a gente era criança, se dizia que, se o chinelo da mãe estivesse virado, a mãe morria. Ela bateu na minha irmã e, no dia seguinte, todos os sapatos dela estavam virados na frente da porta. (risos) Então, assim, o pessoal também era bonzinho, né? Então, eu lembro... imagino a dor, né, pra ela, você pensar que tem uma filha sua desejando a sua morte, né? E aí eu lembro, foi um inferno aquele período. Então, ela era uma pessoa muito brava. O oposto da minha tia. Minha tia é, está viva ainda, o campo do afeto, do amor, mas minha tia, mãe de três homens. Outro tipo de relação. Os meus primos chegavam, minha tia dava bronca, eles a agarrava, a enchiam de beijos. Eu não lembro de eu beijar a minha mãe, quando a gente era pequena. Não existia. Era um outro tipo de relação entre mulheres, que eu não via na casa dessa minha tia. Por outro lado, a tia adorava as sobrinhas.
P1 – Sua mãe era doméstica, né?
R1 – Doméstica, depois trabalhou como cabeleireira...
P1 – E o que ela contava desse período? Ela contava, assim, como era o trabalho dela?
R1 – Ah, ela conta coisas horríveis, antes de nós, do nosso tempo, de trabalho. Eu lembro de quando ela trabalhou no Centro da cidade, fazendo faxina na casa de uma mulher que chamava Dona Sara, eu ia na casa dessa Dona Sara algumas vezes, então eu lembro dessa casa e todas as recomendações que ela fazia: “Não olha pra eles”, porque a gente aprendeu a não olhar nos olhos, porque era falta de respeito olhar nos olhos. “Não aceita nada que eles oferecerem, não olha quando eles estiverem comendo, não fala”. Então, assim, mil recomendações. Então, esse lugar que sua mãe passa o dia dela, mas tentando ser invisível. E tem que fingir que você é invisível também. Eu tenho outras lembranças, de minha mãe trabalhar na casa das pessoas, quando ela não dormia lá, voltava pra casa, de trazer a comida, porque a gente passava muita necessidade, passava fome mesmo em casa e ela trazia comida, fingia que não tinha fome e perguntava pra patroa: “Posso levar pra comer depois?” e era o que dividia com a minha vó e a minha tia, que ficavam em casa, porque não tinha outra comida. E nós todas, as filhas, a gente tomava um negócio que chamava sopa de pão, que era um leite com pão velho cortado e um pouquinho de café. Eu lembro que eu morria de nojo disso, quando subia aquele pão pingando, aquela coisa e minha vó falava: “Fecha o olho e come”. Porque não tinha outra coisa. Tinha o que a gente comia na escola e depois, à noite, era sopa de pão ou nada. Então, eu lembro dessa memória e das memórias que aí é ela contando. Minha mãe nunca deixou a gente dormir na casa de ninguém. Ela tinha pânico disso. E ela fala: “Eu sei o que é dormir na casa dos outros”. E aí depois ela contou o que era. Ela sofreu tentativas de abuso, de estupro, na casa de patrões, dormindo no quartinho da empregada. E ela tinha pânico de que isso acontecesse com a gente. E ela dizia: “Se depender de mim, nenhuma filha minha vai limpar a casa dos outros”. E ela fez o que ela podia. Mesmo com toda essa irritação de achar que estudo era devoção, ela cuidou pra que a gente pudesse ter outras histórias.
P1 – Eu queria aproveitar que você falou que ela falava dessa coisa do estudo, que era devoção, que você contasse um pouco da finada Josefa, né, que te alfabetizou e como foi surgindo esse gosto pela leitura, pela escrita.
R1 – Quem me ensinou a ler foi a finada Josefa, né, (risos) a Dona Josefa e eu lembro um vizinho, o José Luiz, um português, o sobrinho do dono da padaria... tem uma coisa nas periferias: geralmente as esquinas são padarias de portugueses. E o sobrinho do dono da padaria morava do lado da minha casa, o José Luiz. E ele contou, ele é mais velho do que eu: “Olha, tem ali na favela” – que a gente morava na rua, né? Que a favela estava em frente – “tem a Dona Josefa, que ensina crianças a ler”. E essa memória eu tenho bem, porque eu fui outro dia numa oficina e pedi pras pessoas lembrarem as suas memórias de leitores e aí eu entrei em contato com essa minha. Então, a Dona Josefa, imagina: era um barraquinho, ela juntava várias crianças dentro desse barraco e o filho dela ficava lá com ela, o Tonho e o Tonho, o que ele fazia? Fritava linguiça, jogava farinha. Não sei se vocês são vegetarianos. Eu não sou. Adoro uma linguiça com farinha! E aí ele jogava a farinha, a Dona Josefa colocava as palavras na lousa. Quando a gente conseguia ler, o Tonho pegava um pouquinho de farinha de linguiça e dava na nossa mão. Então, era tão saboroso aprender a ler e escrever! Tinha esse cheiro da linguiça fritando, da farinha, do Tonho. Uma coisa muito afetuosa. Uma pessoa que não ganhava nada. Ninguém pagava nada. A Dona Josefa fazia isso gratuitamente. O que acontecia... a gente também não tinha nada pra dar, a gente comia... meu pai trazia, nessa época ele já estava trabalhando numa metalúrgica, ele juntava a semana inteira a sobremesa que vinha no bandejão. Geralmente era paçoca Amor, pé de moleque. Aí ele juntava a semana inteira e, na sexta-feira ele trazia, porque aí dava uma pra cada, pra todas nós comermos. Então, às vezes, a gente guardava o nosso pra dar pra Dona Josefa. Então, acho que essa história dessa mulher, gratuitamente ensinando outras pessoas a ler. Parecendo aquele canto da capoeira: “Vou aprender a ler pra ensinar meus camaradas”. Eu acho que eu tenho que agradecer à Dona Josefa por isso. Quando eu decido estudar, eu decidi que eu queria ser professora e também uma outra imagem muito bonita me ajudou a fazer essa escolha: um casal de tios meus eram caseiros no Colégio Santa Marcelina, na Vila Mariana, a tia Cida e o tio Domingos. E meu pai, nessa época, tinha uma perua Kombi - eu já estava na quinta série – e aí a gente combinava... Kombi, combinava... tinha um acordo quem podia sentar na frente, que todo mundo queria sentar na frente, olhar a paisagem a partir do banco da frente e eu lembro, um dia era a minha vez. Quem sentava na frente tinha uma outra postura, né? Porque você se achava, né? Você estava sentado na frente da Kombi. E eu me endireitei ali no banco e a tia Cida veio do lado da janela e falou: “Gente, olha a pose dessa menina! Parecendo uma professora”. E ela me falou: “Você quer ser professora?” Eu nunca tinha pensado o que eu queria ser. (risos) Ser o que, né? Aí ela falou: “Eu acho que você vai ser professora. Já pensou eu aqui” – porque ela era caseira do colégio – “vendo a minha sobrinha entrar com um monte de criança atrás dela?” E eu voltei pra casa e comecei a andar com os livros em cima da cabeça e me olhando no espelho, como se eu fosse uma professora. Andando com o livro na cabeça e na mão. Essa minha tia Cida faleceu esse ano, no começo, logo depois que ela terminou a faculdade de Assistência Social. E eu escrevi essa história pra filha dela, em homenagem a ela, falando da pessoa que conseguiu sonhar que eu pudesse ser uma professora um dia. E mandei isso de presente pra minha prima. Acho que ali pode ter começado o sonho da Bel professora. Aí eu fui fazer Magistério. Já em São Paulo tinha uma escola, o Aroldo de Azevedo, que tinha Magistério, uma escola pública. Isso causou um certo conflito em casa, porque o acordo era: todo mundo ia trabalhar depois dos 14 anos e eu estava fazendo uma escolha que me levaria pra estudar até os 17. Porque a gente precisava ajudar em casa. E aí eu pedi pro meu pai... já fazia vários trabalhinhos, né, que era uma coisa que acontecia muito na periferia. Eu bordei meia de bebê. Os bebês usavam meias bordadas e aí tinha um pessoal que pegava e terceirizava esses trabalhos, levavam nas periferias. Hoje ainda tem, né, muito disso. Eu bordei muita meia. Eu colocava grampos na caixa, pra colocar a cabeça dos grampos. Você colocava cem grampos numa ficha de papel pra ir pra máquina. Eu fiz um monte de trabalhinhos. E aí eu fui fazer o curso de manicure. Eu fui uma ótima manicure. Acho que, por isso, nunca mais eu pintei as unhas, não faço. (risos) ‘Casa de ferreiro, espeto de pau’. Eu fui manicure profissional, pra poder fazer o Magistério, porque minha mãe falou: “Não dá pra ficar aqui dentro de casa sem trabalhar”. Eu trabalhava muito, né? Eu estava, já, dentro da favela, alfabetizando pessoas. Eu estava no movimento social, mas eu precisava trazer dinheiro pra casa e, com o trabalho de manicure eu consegui dar essa contribuição e aí foi um caminho importante e minha mãe ficou doente, precisou fazer uma cirurgia e precisava de alguém pra ajudá-la também, em casa. Eu falei: “Eu faço todo serviço de casa, se eu puder estudar”. Aí meu pai topou, autorizaram, os dois, aí eu consegui fazer o Magistério. No Magistério tinha uma professora que percebeu que tinha alguma coisa em mim, de prazer dessa coisa do estudo, foi a pessoa que colocou na minha mão o Paulo Freire, pela primeira vez a Pedagogia do Oprimido na minha mão. Eu devorei, voltei pra professora Neuza e falei: “É isso aqui. Como é que a gente pode deixar de hospedar o opressor? É isso que eu quero fazer”. Aí ela colocou um outro livro na minha mão, do Neidson Rodrigues “Também nos ensine a ler” e aí eu já estava na favela, como alfabetizadora e aí fui sendo pega por essa coisa de ser educadora, ser professora. Era isso que eu queria. E eu viro professora. Eu comecei antes de terminar o Magistério, já a dar aula.
P1 – Nossa! Eu queria voltar lá pra aquele período que ia pra escola e aí você vê seus colegas sendo mortos e que começa essa militância. Queria que você contasse como é que começa, então.
R1 – Essa minha militância dentro do bairro começa nesse mesmo caminho, bem pertinho. Tem essa casa dessa minha tia, que depois virou uma casa religiosa, hoje ela é uma casa pra homens que moravam na rua, idosos que moravam na rua. Meus tios foram moram no interior de São Paulo depois, então tinha essa casa deles e, na casa desses meus tios, a gente começa a fazer encontros de jovens, de um grupo que chamava Alicerce. Um grupo ligado à Teologia da Libertação. Vira o lugar em que a gente começa a trabalhar com essa coisa do ler, ver e agir, né? Então, era essa ideia. A gente se encontrava pra ler a Bíblia e ver o que a Bíblia tinha a ver com a nossa vida. Era isso, né, a ideia da Teologia da Libertação. Então, tinha também essa história de rezar, mas era o que menos me interessava. Eu estava com esse grupo que começou a estudar violão: eu, uma prima, meus primos, todos nós aprendemos a tocar violão e a coisa gostosa. Minha tia, como eu falei, era um espaço, uma casa muito cheia de afeto e com os meus primos, então, tinha uma ideia assim: na casa de meninas, não precisa de amiga, têm que ser amigas da irmã e ajudar a cuidar da casa. Com os meninos, isso era inevitável, eles eram todos homens: começam a trazer namorada, os amigos do futebol e minha tia construiu uma sala grande na casa dela e ela consentia que aquele fosse o espaço de encontro. E lá a gente começa a ter esses encontros. Começam a participar, também, alguns jovens que vinham da favela. Embora a casa dela era de tijolo, está a dez minutos da favela. E aí eu virei a primeira pessoa da minha família, nem minha tia, nem meu tio foram pra favela, mas eu fui, porque eu tinha a Nizete, a minha amiga que minha vó não benzeu. Ela morava lá. Eu lembro o primeiro dia que eu entrei na favela, a Nizete se escondeu. Então, olha só! Minha vó se negou a benzê-la e ela se escondeu da amiga. Ela tinha vergonha de morar lá. Isso foi chocante também, pra mim. Nossa, eu adoraria encontrar a Nizete! Se algum dia vir uma Nizete aqui contar história, vocês me ligam, pra ver se é a minha Nizete. (risos) Seria bonito, né? As pessoas não têm ideia de quanto elas são importantes e marcantes nas nossas vidas. Isso é uma coisa que me chocou. Tinha essa coisa das mortes e a minha amiga ter vergonha de morar naquele lugar. E aí a gente começa a andar lá, eu começo a andar nessa comunidade com um seminarista mexicano, o Filomeno. Eu vou ao México a primeira vez na minha vida pra encontrar o Filomeno, décadas depois. Eu e o Filó começamos a andar lá, a conhecer as pessoas, mas qual era a minha ideia? Alfabetizar os adultos. E aí me dou conta uma surpresa: um monte de criança que não ia pra escola. Por que aquelas crianças não iam pra escola? Porque a escola está longe, fica na parte de cima do morro e eles não alcançam o escadão. Tinha um escadão pra subir, com os degraus muito grandes e as crianças pequenas não subiam. E aí a gente mobiliza a comunidade: eu, Valdênia, que é uma outra figura com quem eu começo toda essa história de militância. A gente mobiliza a comunidade, pra diminuir os degraus do escadão. Porque não tinha sentido criança não ir pra escola. E aí, então, nessa alfabetização que eu dava à noite, era num espacinho, a gente conseguiu que o pessoal da igreja construísse um espacinho lá dentro da favela, eu começo a ir pra lá à noite, pra desespero da minha mãe e do meu pai, eles ficam desesperados, porque assim: como é que vai pra dentro da favela, num lugar onde tem violência, tiro? Então, eles também, com essa ideia preconceituosa que o resto tinha e com medo da filha andando ali à noite, pra dar aula, né, eu e a Ednalva. Aí a gente começa, na nossa turma tinha idosos e tinham as crianças também e, no ano seguinte, eu consegui aula na escola, como professora substituta. Aí as coisas começam a mudar, né? Eu trouxe uma das fotos pra vocês. E aí começa a mudar, porque aí eu virei a professora da escola, dentro da favela, é uma escola, Arlindo Caetano Filho e aí eu decido que, na minha sala de aula, vai estudar também quem não tem documento. Era um tempo que era proibido estudar sem documento. Só com o estatuto que a gente garante, o Estatuto da Criança e do Adolescente, que a criança tem que ser matriculada e é a escola quem tem que contribuir pra que ela tenha documentação, mas até lá, quem não tinha documento, não estudava. E aí a diretora da escola era uma ex freira e eu falei: “Irma, eu conheço essas crianças” e a minha sala de aula virou a sala que todo mundo subia, inclusive um dos meninos, o Dedeco, que era um menino que já tinha 16 anos e nunca tinha estudado, porque não tinha documento. Além de ter uma deficiência intelectual, ele não tinha documento e, quando eu viro professora da escola, o Dedeco me pede, fala: “Bel, você deixa um dia eu só ver os seus alunos?” e eu falei: “Se você quiser, você vai ser meu aluno”. Ele não aguentava de alegria. Aí, toda hora que ele me via, ele falava: “Bel, é verdade que eu posso ir?” Eu falei: “É”. Aí eu pedi na escola, eu falei: “Vai ter um menino, não tem documento. Quer dizer: ele nunca estudou”. E aí eu lembro dele aparecendo todo bonitinho, cabelinho dividido de lado, com um caderninho, um lápis, de chinelo mesmo, entrando na sala de aula. Foi uma coisa muito bonita. E aconteceu um fenômeno, a gente conseguiu fazer uma certa revolução dentro daquela escola, porque uma realidade na periferia: muitos professores vêm de fora. Eu era uma professora da comunidade. Até os filhos da pessoa que organizava um dos lugares do tráfico era meu aluno e a gente conseguiu - naquela época, nós criamos um Centro de Defesa do Direito da Criança e do Adolescente, a partir dos anos 90 – que nenhum jovem com menos de 16 anos trabalhasse no tráfico. A gente conseguiu fazer esse tipo de conversa. Então, foi marcante pra mim. Ainda não é a minha história com a literatura, mas foi marcante.
P1 – Como você conseguiu fazer isso, com que nenhum jovem de até 16 anos não...
R1 – A gente conversou com os traficantes. Eu, Valdênia Paulino, que é uma figura que um dia deveria ter a história dela aqui no Museu, porque ela é uma figura. Hoje ela mora no Maranhão. E a gente fez essa conversa abertamente, a gente falou: “Olha, nós queremos ter oportunidade de tentar. É uma batalha. Vocês estão batalhando pra manter o tráfico e a gente está batalhando pra salvar os meninos. A gente quer ter a chance”. E o acordo foi cumprido. Enquanto esse grupo esteve lá. Alguns deles eu conhecia de muito tempo, conheci pequenos também e isso foi muito importante. E eu não chamo isso, né, gente, de negociar com o tráfico. Isso não é negociação. Isso é construir uma relação de civilidade dentro de um território. Então, saber exatamente que as nossas escolhas eram diferentes. Nós estávamos com escolhas diferentes e lutando contra o tempo, de formas diferentes.
P1 – E eles acolheram isso?
R1 – Acolheram. Isso foi bem importante. Aquele foi um outro tempo, né? O tráfico era mantido por um grupo ligado, era de uma mesma família, tinham outras regras, né? Não era um bairro violento, de assaltos. Nunca teve esse tipo de coisa. Depois as coisas vão mudando. Hoje eu não sei dizer mais como as coisas são. Eu não conheço as pessoas. Meus pais continuam morando no bairro. Hoje é outro jeito.
P1 – Então, nessa primeira escola que você foi professora, você conseguiu a coisa dos degraus; essa do tráfico; a coisa de quem não tinha documento, estudar. O que mais você conseguiu implementar? (risos)
R1 – Não sou eu, era um coletivo, né? Eu estou falando... a zona leste tem uma história de muita mobilização, né? De muita luta por educação, por creche. Nós éramos muito jovens, ligados à comunidade, a essa comunidade eclesial de base. A igreja era o único lugar que a gente tinha pra se organizar. Era o lugar, inclusive, em que eu estudava. Como não tinha espaço pra estudar em casa, eu estudava na capela da Comunidade São José Operário. A igreja que eu frequentava o nome foi São José Operário. Era uma comunidade já com uma certa militância, né, falando de trabalhador. Então, eu falo: eu estava na escola da turma, eu fui a única que foi ser professora, alfabetizadora, inclusive dos filhos dos nossos colegas de comunidade, mas era muita gente, né? A Valdênia, advogada, a gente criou o Centro de Defesa, criou espaços de formação dos jovens. Então, lá dentro da escola, uma coisa que a gente conseguiu, que foi muito importante, foi mudar a lixeira, por exemplo, do lugar, né? Abrir a rua, porque não tinha rua pra chegar dentro da escola, mas tudo isso junto com os moradores também, de lá de dentro da comunidade. Poder discutir a educação de um outro jeito. Na foto que eu trouxe pra vocês as crianças estão na sala de leitura. Eu não sabia ainda de biblioteca comunitária. Não tinha biblioteca. A escola que eu estudei a gente nunca entrou dentro da biblioteca. A biblioteca era o lugar que ia quem estava de castigo. Como eu era boa aluna, eu nunca fiquei de castigo na biblioteca. Então, eu nem sabia que essas coisas existiam, mas a gente tinha ali uma intuição de que a literatura podia ser um colo e a gente foi experimentando isso. Então, o jeito de experimentar que eu tive foi parar a aula, todo dia a aula acabava meia hora antes e eu lia. Eu tenho uma voz que favorece, né, pra leitura, então eu comecei, eu li quase O Mundo de Sofia inteiro, pra crianças de terceiro ano. A gente conseguiu, no ano seguinte... que ninguém queria muito meus alunos, eles achavam que a minha turma era bagunçada. O que eles chamavam de bagunçada? Porque eu falava: “Gente, o que é melhor a gente olhar, os olhos das pessoas ou a nuca?” Então, eu sempre fazia perguntas pras crianças. “É melhor olhar os olhos”. Então, pra que a gente vai sentar um atrás do outro? Vamos encontrar um jeito que a gente olha. Coisas que hoje são óbvias, sentar em roda, hoje é óbvio isso, mas no final dos anos 80, não era. A carteira era até difícil de você mudar de lugar, porque era uma carteira emendada na cadeira da frente. A cadeira emendava na carteira. E eu colocava isso pra criança de terceiro ano: “Vamos encontrar um jeito” e aí era uma barulheira, né, pra conseguir e a gente tinha que deixar em ordem, pra professora da tarde dar a aula seguinte. Então, eu perdia tempos de aula, mas eu falava assim: “A gente vai ganhar isso pra vida” e eu conversava isso na reunião. Eu nunca fiz reunião de pai e mãe, que chamava reunião de pais, sem as crianças. Era uma questão de respeito, eu falava assim: “Não tenho nada pra falar de vocês escondido de vocês”. Então, a reunião era junto. São coisas muito pequenas, mas que trazem alguns conceitos. A chave do armário ficava com as crianças. Imagina! Naquele tempo não tinha papel higiênico dentro do banheiro. Você tinha que pedir o papel higiênico pro professor. Então, uma menina que fez xixi na calça, porque a professora não deixou ir ao banheiro! Eu jamais fiz isso com uma criança! Então, a chave ficava lá, pendurada no armário. Você quer ir ao banheiro? Você pega o papel e vai. Então, foram muitas lições de respeito profundo às crianças, as coisas que a gente foi experimentando nessa escola.
P1 – Aí essa era a escola que você era professora. Você sempre teve professora ...?
R1 – Não. Eu já tinha trabalhado em outras escolas. Hoje eu não acompanho tanto como é a forma de escolha, mas na minha época você era uma professora substituta, depois você virava professora eventual e, por último, professora efetiva. Então, eu fui professora substituta até na escola em que eu não pude ir ao banheiro. Até naquela escola eu voltei como professora, eu fui substituta também em escolas em Santo André, onde eu tinha estudado. Foi até bem interessante, porque eu fui uma vez formadora de uma pessoa que tinha sido minha professora e ela não falou com essas palavras, mas ela falou: “Quem diria que um dia você ia ser alguém” – ela continuou – “pra dar formação pra professores!” E aí eu falei: “Pois é, Elisabete, acho que muita gente achou que eu não iria ser alguém”, porque achava que as crianças não eram, né? Então, eu passei por muitas escolas. Mas a Arlindo Caetano Filho foi uma escola do coração, porque foi a escola pra onde eu consegui me remover, escolher, eu escolhi estar naquela escola. Eu não fui pra lá porque eu não tinha um outro lugar pra ir e tinha essa diretora que tinha sido a freira do bairro. Então, era uma pessoa que já tinha uma relação de respeito e amor por aquela comunidade. A Irma Mater Genari, que é minha amiga até hoje. E nessa escola deu pra gente conseguir experimentar muitas coisas. Então, a sala de leitura a gente conseguiu fazer não um lugar onde se enfiavam as crianças, mas um lugar em que existia um projeto de leitura. Eu sentava com a orientadora de sala de leitura, pra pensar qual era o projeto de leitura que nós íamos desenvolver naquele ano. Isso faz uma diferença enorme, você colocar um lugar pra leitura. Todos os meus amigos, porque aí eu comecei a ter uma rede de amigos bem grande por causa da militância, foram visitar os meus alunos. Eu, procurando fotografias pra fazer essa conversa com vocês, encontrei várias fotos de amigos da Itália porque, em 1989, eu fui convidada pra ir pra Itália, pra contar sobre as situações de violência do Brasil. Conversar com um grupo de jovens. E conheci um monte de gente lá. E aconteceu que depois eles vinham me visitar. Cada vez que alguém vinha me visitar, a gente tinha um dia de aula especial: conhecer um pouco mais sobre os outros países. E teve uma outra coisa muito bacana também (risos) que aconteceu, que eu lembrei agora: a gente colocou um cofrinho. Parecem bobagens, mas isso de você confiar na criança, em um contexto que tem tanta desconfiança e que as pessoas acham que a gente não vai dar pra nada e que sempre as pessoas estão te enganando. Eu coloquei um cofrinho na sala de aula e, naquele cofrinho, nós íamos colocando dinheiro ali dentro. Eu falei: “Depois a gente vai decidir juntos o que a gente vai fazer”. E esse cofrinho ficava lá durante a reunião, os meus amigos que iam me visitar também, às vezes até um professor da sala ao lado passava lá e tinha alguma moeda, colocava lá dentro. Quando a gente abriu, em outubro, o dinheiro dava pra gente ir pra praia! Alugar um ônibus. A gente fez uma lista do que a gente queria fazer. (risos) E aí as crianças só tinha uma que conhecia a praia. E, gente, eu estou falando de 38 crianças! As salas eram numerosíssimas. E a gente falou: “Nós vamos pra praia”. E aí a gente decidiu: vamos pra praia. Aí fez a reunião com a família, pra saber se tudo bem. Consegui dois amigos que toparam ir, uma prima e mais um amigo do bairro, que era um seminarista, porque você imagina: ir pra praia com esse monte de criança pequena que nunca viu praia! E a gente alugou. Claro, choveu, né? (risos) Porque, você nunca foi pra praia, vai chover no dia que você escolhe ir pra praia. A gente alugou esse ônibus, lá fomos nós, pra Praia Grande. A gente chega, uma emoção. Está me lembrando aqui de Diego e o Mar, né? Essa coisa das crianças paradas, saindo de dentro da favela, pra olhar pro mar e a gente combinou: tem que andar em grupo de cinco, não pode andar sozinho. Tudo combinado e tudo certo. Esses meninos entram no mar e a gente combinou com o motorista, o motorista também queria aproveitar a praia, então ele deixou o ônibus lá. Começa a garoar, frio. Então, gente, vamos tomar lanche. Depois, as nossas idas pra praia eram curtíssimas, né? Porque você chegava, saía cedo e ia pra praia, o dia voa e você tem que voltar cedo, pra chegar num bom horário ainda. Quando a gente vai pegar o ônibus, tinham roubado tudo: o lanche, roupa (risos) e aí assim, eu falava: “Gente, e agora?” Eu nem tinha cartão de crédito. Já devia existir cartão de crédito, mas eu também não tinha, eu era uma professora do bairro e a gente falou: “E agora?” Os meninos começam a chorar, uns e outros... tem um que fala assim: “Meu, para de chorar, de desesperar a pro” – eles me chamavam de pro – “uns caras que nos roubam devem ser muito pior que nós”. (risos) Aí todo mundo riu, né? A gente estava precisando, porque, de verdade, assim: uns caras que nos roubam, o que é isso? E aí eu falo assim: “Gente, então é isso: vamos pensar o que a gente vai fazer”. Esse Flávio era um italiano, seminarista, falou: “Vamos na padaria. Eu tenho um pouco de dinheiro aqui. Vamos comer, comprar pão”. Aí, chegou na padaria, contou o que tinha acontecido, o dono da padaria não cobrou, fez um sacão de lanche pra gente dar pros meninos e aí, algumas horas depois, um pouco mais de uma hora depois, devolveram todas as roupas de frio, pelo menos. Só um relógio que não voltou. O resto, o pessoal da padaria resolveu e as coisas voltaram. Então, essas são coisas que são inesquecíveis. Então, assim, uma criança chamar os outros e falar: “Agora não é hora de ficar desesperado. Vamos ficar juntos. Já basta a situação”. Eu aprendi demais. Então, quando o Paulo Freire disse: “Educador é alguém que, de repente, aprende”, eu aprendi tanta coisa! Coisas que, às vezes, na hora, eu não sabia o que eu estava aprendendo, mas que me ensinaram. Eu aprendi sobre esse profundo respeito, sobre o inventar, o tentar. E aí, depois do Arlindo Caetano Filho, as famílias foram, em grupo, pra Delegacia de Ensino, como se chamava na época, pedir que no ano seguinte eu pudesse continuar com a turma. Porque não era assim, era por pontuação. O professor com mais ponto escolhe. E as famílias sabiam o que estava acontecendo ali, com aquela turma. Era uma coisa: crianças que não tinham vontade de estudar, estavam estudando. Essa coisa de conviver com meninos como o Dedeco; a Carina, que era uma menina cadeirante, que não ia pra escola, porque a escola tinha escada. Então, foi importantíssimo abrir a rua e a Carina começou a chegar. O professor de Educação Física teve que pensar como ele fazia atividade, porque aí ele começou a propor: “Então, a senhora fica com a Carina na aula de Educação Física?” Eu falei: “Eu topo sentar com você e vamos pensar o que a gente pode fazer na aula de Educação Física, pra Carina participar”. A Carina virou a menina que todo mundo cuidava dela. Então, a gente tinha um acordo: quem levava a Carina pro banheiro? Quem sentava com a Carina na hora do lanche? A classe foi se reorganizando. Então, isso foi, pra mim, mais do que ensinar esses meninos e meninas a ler, a gente conseguiu construir uma escola de humanização, deles se importarem uns com os outros, deles se olharem. E aí aconteceu que teve, na gestão da Erundina, a querida Luiza Erundina, concurso público pra professores. Na verdade, tinha tido concurso um pouquinho antes, ninguém tinha sido chamado na gestão da Erundina teve o chamamento e aí eu fui chamada pra ser efetiva e aí eu me efetivei em Cidade Tiradentes, berço do movimento hip hop. Onde estava a primeira posse - o Poder e Revolução, o Núcleo Cultural Força Ativa – dentro da cidade, que era como o movimento hip hop se organizava. E aí eu viro professora efetiva lá na Avenida dos Metalúrgicos, na Escola Oswaldo Aranha e aí começo a construir uma outra história, que aí eu me encontro com esses jovens do movimento hip hop querendo abrir a primeira biblioteca da sua região. E aí começa uma outra história, que eu não sei se eu emendo e vou contando ou se você quer perguntar alguma outra coisa.
P1 – Olha, eu ia perguntar justamente sobre isso, mas acho que eu vou perguntar e a gente entra nessa história, porque a gente costuma falar que o livro transforma, faz isso e aquilo. Então, você tem dito muito do contato com a leitura, mas queria que você contasse qual livro específico, alguma coisa, uma relação, uma história que você viveu ou que você viu acontecer, onde o livro foi algo transformador.
R1 – Comigo... esses dias eu encontrei uma foto da minha irmã com um livro, mostrando pro meu priminho, que tem apenas meses. E eu falei: “Gente, que coisa bonita! Porque eu estou, nesse exato momento, com um coletivo de Parelheiros, escrevendo o primeiro livro das crianças de Parelheiros. Porque eu coloquei na minha cabeça, conhecendo outras experiências, que a gente precisa dar oportunidade nas áreas periféricas, pras crianças nascerem sabendo que existe uma família literária a qual ela pertence. E que essa família está pensando nela. Então, desde o mês de junho nós estamos com um grupo de quase sessenta pessoas, estudando literatura pra crianças, o impacto da literatura na infância e fazendo um livro, com fotografias e textos literários sobre as expressões que as crianças têm. E aí eu achei essa foto da minha irmã, nos anos 80, final dos anos 70, mostrando um livrinho prum primo e eu lembro qual era esse livro: Xande, o Grande. E foi muito engraçado, que foi, assim, a primeira vez que alguém, na nossa família, ganhou um livro de presente. Essa minha irmã ganhou o livro de presente num amigo secreto da escola. A professora que a tirou e deu esse livro. E ela lia esse livro muitas vezes e a gente tinha vontade de ler, mas o livro estava sempre na mão dela. Então, lembrei dessa imagem, mais do que o texto. Lembro do livro também na minha família, o meu pai lendo a obra do Jorge Amado e lendo Dom Quixote. Meu pai, dentro da fábrica, começa a estudar, entra num programa do Mobral, depois no Madureza, continua estudando e aí tinha os vendedores de livros, passavam na rua vendendo livro. Aí minha mãe decidiu que o primeiro livro seria a Bíblia ilustrada, aquelas grandes, aí eles compram a Bíblia. Quando termina de pagar a Bíblia meu pai compra a coleção de Jorge Amado e eu lembro dele, muitas vezes, sentado, lendo. Capitães de Areia, Tereza Batista Cansada de Guerra. Então, essa é uma imagem bonita pra mim, de ver o meu pai com um livro. Agora, eu vou entrar em contato com a literatura com os poetas negros. Militante do Movimento Negro, tinha todo um movimento pra que a gente não deixasse a nossa cor passar em branco nos censos. A campanha era exatamente assim: “Não deixe a sua cor passar em branco. Responda com bom senso”. Porque os recenseadores atribuíam a nossa cor ou raça. E aí você tinha, em São Paulo, 4% da população negra porque, se você era simpático, legal, o recenseador ficava com dó de dizer que você era preto e aí dizia que você era branco, que você era tão legal, que você parecia branco. E aí ninguém respondia que era negro. Porque até então dizer qual era sua cor ou raça só servia pra te discriminar. E as pessoas não queriam dizer de que cor elas eram. Tinha lógica, sentido. E, dentro desse movimento do responda com bom senso, teve a campanha da fraternidade, de 1988, uma campanha que a igreja católica faz cada ano e em 1988 a campanha da fraternidade era: Ouvi o clamor do meu povo negro. Aí teve manifestações dos brancos da igreja e a campanha chamou: Ouvi o clamor do meu povo. Imagina, falar de negro era igual falar de câncer. Você não podia falar a palavra. E, dentro desses movimentos, eu vou um dia pra uma manifestação, na Avenida Nazaré, perto do museu tinha uma faculdade, tem acho que até hoje, a FAI, era a faculdade onde estudavam os seminaristas, os padres. Onde eles faziam Filosofia, Teologia. E jovens negros que estudavam pra ser padres fizeram um movimento pra denunciar a discriminação que eles sofriam dentro da igreja. E, nessa manifestação, na avenida, eu ouço uns jovens negros do Rio, o Geraldo, o Tião, declamando poemas do Oliveira Silveira. Talvez eu fale aqui dele, errado, porque eu não sei de cor, mas as palavras estão lá, presentes e falavam assim: “Eles querem que nós saibamos que eles foram senhores e que nós fomos escravos”. Eu disse: “Eles foram senhores e nós fomos escravos”. Eu repito: “Eles foram senhores e nós fomos escravos”. Quando eu ouvi aqueles homens declamando esse poema, aquilo ficou no meu ouvido e aí que eu conheço os Cadernos Negros, que estão aí fazendo mais de quarenta anos que esses cadernos existem. E aí eu começo a entrar em contato com Oliveira Silveira, Solano Trindade, Cuti, Miriam Alves. Essa poesia negra. Uma poesia que fala de uma dor que nem eu sabia que sentia. Como mulher negra, muitas vezes você sente dores, como algumas que eu falei aqui, de uma mãe que não aguenta te ver sentada estudando, porque tem outras coisas pra fazer, você acha que essa dor é sua, mas aí a poesia negra vem falar de uma dor ancestral, de um não lugar, de alguém que só o seu corpo interessa, pra essa lógica do fazer. Só querem saber da sua força e não do que você pensa. E quando você encontra a poesia te ajudando a encontrar palavras pra aquilo que você sente, pra dor que você nem sabe que tem nome, você começa a querer que isso aconteça com mais pessoas. Então, quando eu encontro esses jovens do movimento hip hop, que sabem usar tão bem as palavras pra dizer. Os Fantasmas Vermelhos e todos os movimentos. Aí eu conheço o KL Jay, o Mano Brown. Imagina! Quando a gente está lá em Cidade Tiradentes, nós começamos, com outro professor, Valter, ele começa a falar: “Essa ideia de achar que o rap é bagunça, é de quem não respeita o povo. Esses meninos estão pensando e muito”. E aí o Valter cria um projeto que chama Repensando a Educação e aí a gente vai pras portas dos bailes rappers, pra perguntar pro pessoal sobre a letra que tinha sido tocada lá dentro. Se eles sabiam o que estava tocando. Então, a gente pega os textos do... (risos) imagina, aquelas maravilhas que hoje é até conteúdo de pré-vestibular, você pega o álbum Sobrevivendo no Inferno, como você acha que alguém que canta aquelas músicas não sabe - é baderneiro – o que está acontecendo? Aí a gente faz uma pesquisa, que é pra ir pra porta dos salões, pras festas rappers, de rap e perguntar o que tocou lá dentro, o que você acha disso. Isso no NAE9, que era o Núcleo de Ação Educativa Nove, no governo da Erundina. Aí a gente organiza os dados dessa pesquisa, a professora Marília Esposito, da USP, se interessa muito por essa discussão e a gente começa a organizar - nas sextas-feiras, que era o dia que tinha a maior ausência nas aulas, sexta-feira à noite – encontros filosóficos pra discutir os textos de rap. E aí a gente conseguiu, participou o Racionais Mc’s, eles iam na última sexta-feira, juntavam três, quatro escolas da região e aí era uma conversa com eles. Os professores falavam: “Isso vai dar errado, vai dar ruim, isso é perigoso, porque o rap é uma coisa super violenta”. Nunca aconteceu uma briga, uma morte. Aqueles pátios lotados. Tem um livro, Repensando a Educação, em que a Marília Esposito conta essa história. Aquilo foi uma escola também pra mim. E eu já era da área da luta pelos direitos de meninos e meninas que eram presos, aí a gente conseguiu fazer também uma articulação com Rappin’ Hood, Racionais Mc’s e a gente fazia alguns encontros na Casa Dez, com meninos que eram egressos da Febem.
P1 – Conta um pouco desse trabalho, que você não ensinou como é que começou esse trabalho.
R1 – Isso começou com os educadores dessa casa, que chamava Casa Dez, do Cedeca, o Centro de Defesa de Crianças e Adolescentes. A gente propõe realizar, eu era educadora social, fazia formação desses educadores também e aí a gente começou a fazer esse trabalho de discutir os textos de rap com esses meninos, nos encontros de liberdade assistida. Os Cedecas até hoje fazem isso, mas foi muito forte isso nos anos 80. Nós fomos credenciados como instituições pra acompanhar meninos que saíam da Febem. A gente acompanhava a liberdade assistida comunitária e uma das outras medidas, que era de trabalho, sobre prestação de serviço à comunidade, a PSC. Então, essas duas medidas nós que desenvolvíamos toda a proposta de acompanhamento e aí, na Casa Dez, eu coordenava dois trabalhos. Um com o Cedeca Mônica Paião Trevisan, que fica no bairro onde eu moro, que eu criei junto com Valdênia e outros jovens. E nós assumimos como missão ajudar a criar outros centros de defesa. E aí, no Ipiranga, na Casa Dez, a gente criou uma ação que era essa, que os meninos discutiam textos de rap e depois se encontravam com o Rappin’ Hood e com o KL Jay e com o Mano Brown. E era uma coisa fantástica, né? (risos) Vocês podem imaginar. Sentar e discutir com esses meninos, entender que o seu ato infracional não era só o seu ato infracional. Que contexto é esse de desigualdade em que a gente foi imerso e como é que a gente pode sair disso? Porque, se a gente continuar dentro desse lugar da violência, do furto, é ruim só pra nós. Como a gente pode fazer desse espaço, dessa experiência, um lugar de transformação? E foi marcante pra vida de todos nós essa história. Gente, mas cada história que a gente já viveu!
EDIÇÃO
R1 – Cidade Tiradentes foi uma escola pra mim, por muitos motivos. Primeiro assumir uma sala de aula numa gestão democrática da Luiza Erundina com o Paulo Freire, secretário de Educação. Essa já foi a primeira coisa. A segunda, uma escola que foi entregue... o governo do Jânio Quadros construiu várias moradias populares naquela região, sem planejar as escolas. Então, quando nós assumimos, não tinha sala de aula pra todo mundo. E nós fizemos uma reunião entre nós, jovens professoras que estavam assumindo e a gente decidiu que daria aula meio período pra cada grupo de crianças, pra que ninguém ficasse sem escola. Então, essas decisões são emocionantes, porque elas te colocam no lugar, com o pé no chão daquela comunidade. Então, não adiantava a gente terceirizar o problema e falar: “Esse governo irresponsável...”. É. Agora, o que a gente faz pra essa criança ter o direito dela garantido? Sentar com a comunidade e decidir, tomar as decisões. E aí, naquela região, estavam esses meninos. Eu os chamo de meninos até hoje, uns meninos tudo barbudos. (risos) Eu falo pra eles assim: “Que bom que vocês estão tudo velhos também, não sou só eu”. Homens eles estão, mas meninos, porque eram esses meninos lutando, pra ter um espaço onde eles pudessem ler O Capital. Eles se juntavam na casa de um deles, mas a gente está falando... chamavam de Pombal na época, aquela região. Aquelas casas super pequenas, apartamentos super pequenos. Amontoava essas pessoas e esses meninos se encontravam pra fazer a leitura, pra poder ler e eles desejavam ter uma biblioteca e eu já era militante, estava dentro de uma organização social, conhecia já o Tião Rocha, já conhecia um monte de gente interessante e falei: “Gente, vamos ajudar e fazer isso junto com esses meninos”. Nós dávamos uma formação na região norte - nós do Ibeac, Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário – de agentes comunitários de Direitos Humanos e alguém nos provocou: “Por que vocês não fazem isso em São Paulo também?” Eu era professora lá em cidade Tiradentes, falei: “Pronto, vamos fazer isso no Núcleo Cultural Força Ativa”. Aí, conversamos com os Góes, a família Góes: Weber Góes; o Nando, que é o Djalma Góes; o Washington. São vários irmãos. E aí conversamos com eles, com o Guiné, com as outras Posses: “Gente, o que vocês acham? Topam?” “Topo” “Vamos conversar”. Aí eles marcaram domingo à noite pra gente conversar. Aí lá vamos eu e Vera Lion, domingo à noite, conversar com eles: “Então, gente, a ideia - eu sou professora aqui da região – é a gente fazer uma formação”, contei o que era a formação que a gente fazia lá. “Esse negócio de Direitos Humanos é coisa de burguês, esses negócios da ONU a gente não quer nem saber”. (risos) Eu falei: “Meu, negócio da ONU! Tudo bem, Direitos Humanos negócio da ONU, mas está falando dos nossos direitos”. E aí, claro, fez toda a diferença eu ser uma mulher preta, falando sobre essas coisas. Mas a Vera, uma mulher mais velha, branca... então foi um ar de desconfiança e aí, então, eu falei: “Vocês pensam, vamos ver” e aí comecei a fazer uma conversa individual. Eles pensaram e decidiram. Essa formação dava um apoio que seria o correspondente, hoje, a oito dólares, para os jovens que participavam, que era pra apoiar com transporte, alimentação, com o que eles quiserem. O Núcleo Cultural Força Ativa toma a decisão e fala: “Nós vamos fazer disso um fundo coletivo, pra comprar livro”. Meu, gente, (risos) que meninos são esses? E, assim, o maior apoio, eu falei: “Gente, é isso aí”. E aí eles decidiram, nenhum deles recebeu um centavo e eles resolveram comprar só livros de esquerda. Aí a gente passa um ano juntos, com essas discussões de Direitos Humanos e aí vai chegando o final do ano, uma das meninas - eu quero contar uma história, porque é bacana a gente ver como é que a gente vai mudando também. Eu aprendi demais com eles, mas sei que eles também conseguiram aprender algumas coisas comigo – fala: “E aí, o que a gente vai fazer, pra fechar o ano?” Aí um ironiza, fala: “Festinha do final do ano, festinha de burguês?” Aí eu falei: “Não precisa ser de burguês, pode ser uma nossa. A gente pode fazer uma festa nossa”. E aí começo a colocar, eu e as meninas, uma delas é a Fernanda, que é da Ação Educativa, era uma das pessoas desse grupo, que é uma figura que lidera hoje as formações que acontecem na Fundação Casa e era mais uma coisa das meninas colocando. No final decidem: “Então, vamos fazer um churrasco no Parque do Carmo”, que é lá perto. Tá. Aí eu falo: “Gente e aí, se chover? Por que a gente não vai pra, sei lá, uma churrascaria, então? Se vocês querem churrasco, por que não vai pruma churrascaria?” “Não, churrascaria não sei o que” - começam a discutir - “imagina, a gente vai chegar lá, ninguém vai querer atender a gente”. E a Vera quieta, como mulher branca, na dela, aí eu falei assim: “Escuta, vocês não querem entrar na churrascaria com medo de ser maltratado?” e aí eu fiz um sermão, eu lembro que eu terminei chorando, mas eu falei assim: “Então, vocês querem viver num país em que vocês constroem os lugares onde vocês vão ser aceitos? A gente é militante de gueto? Se um cara tratar mal um de vocês em qualquer lugar que eu estiver, eu não vou deixar, eu vou pra cima. Então, vocês não querem ir pra churrascaria, com medo de ser maltratado? Eu quero mais é denunciar uma churrascaria que maltrata as pessoas que entram”. Então, eu fiz uma fala, chorei e falei assim: “Não acho que as coisas são desse jeito que as coisas funcionam, sabe? Vocês acham que faculdade é coisa de burguês, que restaurante é coisa de burguês. Eu sou burguesa? O que vocês querem, mais, de prova, pra saber que a gente está do mesmo lado? Se a gente não entrar dentro da faculdade, a faculdade não vai mudar. Se a gente não entrar dentro do restaurante, o restaurante não vai mudar. Se a gente não andar na Avenida Paulista, (risos) eles não vão nos enxergar”. Então, fiz um sermão e falei: “Olha, a gente decide no próximo encontro. Por mim a gente pode não fazer nada, também. Agora, o que eu não quero é que a gente fique escolhendo os lugares onde a gente vai entrar, por medo. Deixar de ir nos lugares, por medo de não ser aceito”. Então, foi um sermão daqueles, no outro encontro a gente decidiu: “Vamos pra churrascaria”. Tá bom, vamos pra churrascaria. Churrascaria na Aricanduva. Não é que a gente vinha pra Avenida Paulista. Era lá na Aricanduva, no nosso pedaço mesmo. E aí, o que aconteceu? Eu e a Vera, no dia da churrascaria, a gente decidiu: “Vamos meio mal arrumadas”, porque eu sempre gostei de me arrumar, sabe? Esse brinco não é por acaso, o colar não é por acaso, esse anel não é por acaso, esse cabelo não é por acaso. Eu me arrumo, eu gosto. Eu nunca fui desarrumada pra sala de aula. Isso, pra mim, fez sempre parte do meu respeito às crianças que estavam lá. A minha sala de aula era dentro da favela. Dentro do bairro. E eu me arrumava, chegava arrumada pra eles saberem: “Eu pensei como eu vou chegar aqui na frente, pra encontrar com vocês”. E nesse dia eu falei: “Não, na churrascaria eu vou meio desarrumada”. Então, eu pus o vestido mais simples que eu tinha, uma sandalinha. Aí a gente chega na churrascaria, todo mundo atrasado. Quando chega o Nando, que é uma das grandes lideranças, tinha trançado o cabelo. Ele de trança, camisa, foi a primeira vez que eu vi o Nando de camisa! (risos) Hoje de manhã eu mandei uma foto, essa foto, pra ele falando: “A gente tem muitos motivos pra rir nessa vida”. Eles se produziram tanto pra estar naquele lugar, pra chegar com dignidade. E aí, o que aconteceu? Os garçons não saíam da nossa mesa, né, porque você está falando de um rodízio que ele ganha na bebida e na sobremesa, então eles queriam mais era vender, mesmo. Mas aquilo foi um marco pra gente, de que a gente tem que entrar nos lugares que a gente quiser. E do jeito que a gente quiser. Pra eles também foi um símbolo me ver muito menos arrumada do que eu estava no meu dia a dia. Eu tinha feito aquilo pra parecer com eles. E eles tinham também (risos) se arrumado, pra se parecer comigo. E aí a vida é isso, é esse jogo também, da gente entender. Então, até eu conseguir ser aceita em qualquer lugar com os meus cabelos, eu precisei construir um lugar em que a minha fala fosse respeitada e eu vou do jeito que eu sou, né? Quem me encontra, seja pra falar de violência, de educação, de biblioteca, do que for, de economia, sabe que está encontrando uma mulher negra que conhece a sua história e que faz questão de estar ali como mulher negra. Então, hoje a gente conquistou isso. Mas eu estou falando do início dos anos 90. Era muito difícil. Imagina, quem diria que o Núcleo Cultural Força Ativa acharia - hoje, um lugar de mestres, doutores... está lá, cheio de mestres, doutores, doutorandos, universitários - que a universidade não era pra nós, que um restaurante não era um lugar pra nós. E achar que tudo isso tem a ver com educação. Até a biblioteca. Aquela biblioteca que está lá, que chama Solano Trindade, que também foi uma conquista, eles colocarem o nome de um poeta, não chamar de Marx ou Engels. Então, ali já é parte de um movimento que aqueles meninos começam a fazer. De homenagear um escritor literário. Ali tem gente formada em Letras hoje. E o meu pai que reformou aquele espaço. E a gente reformou imagina como: eu tinha ido pra Itália, conhecia pessoas de lá e uma pessoa me escreveu falando assim: “Bel, eu vou casar...”. Na verdade, da Solano, era a filha nasceu: “Eu vou batizar a minha filha” - e aqui tem uma tradição, na Itália: quando você faz um batizado, todos os convidados dão um presente pra criança – “e eu decidi que minha filha não precisa de nada, as pessoas vão doar em dinheiro o presente que ela daria e eu gostaria que esse dinheiro fosse pra apoiar algum projeto seu, porque você é a nossa conexão com a América Latina”. E a gente estava começando essa história em Cidade Tiradentes, com a biblioteca. E aí, o que a gente fez? Fomos atrás da Cohab, pedir uma sala, a Cohab não sabia como fazer isso, porque os prédios da Cohab eram pra morar ou pra comércio. E eles não sabiam, o Zé Gregório era a pessoa que estava à frente da Cohab naquela época e a gente falou: “Vamos ver, o que a gente quer é fazer uma biblioteca. São os jovens que querem uma biblioteca que não vai dar lucro, então a gente não pode alugar o espaço”. Foi o nosso primeiro contrato de comodato, que está lá até hoje, né? Vinte e um anos se passaram. Então, um contrato de comodato, a gente não paga nada e só cuida do espaço. Hoje está no nome deles, já faz alguns anos que está no nome do pessoal do Força Ativa. E esse dinheiro, que a Verena e o André doaram, do batizado da filhinha, que é a Luccia, foi pra fazer a reforma. Aí carreguei meu pai lá como voluntário e que fez toda a reforma do espaço que está lá até hoje, como biblioteca comunitária.
P1 – Bel, a gente já volta pra biblioteca. Tudo que você está contando, em todos os assuntos, já é muito consciente, muito politizada, muito forte, assim. Queria te perguntar como você pegou essa consciência. Se teve algum momento que você teve esse empoderamento, que você se conscientizou, assim ou foi ao longo, mas...
R1 – Eu diria que foi ao longo, Jonas. Acho que tem alguns marcos. Respondendo agora essa pergunta, eu fico pensando, assim. Acho que uma coisa foram as pessoas que eu encontrei na minha história. As pessoas foram muito potentes. Essa professora, Dona Neuza, colocar a Pedagogia do Oprimido na mão de uma menina de 15 anos e falar: “Lê e me diz o que você acha disso”, é marcante. Quem não leu, a gente fala: “Leia”. Acho que isso foi marcante na minha vida. A comunidade eclesial de base foi, também, muito marcante. Quando eu comecei a entender que as injustiças são construídas, têm uma história de construção das injustiças, das desigualdades e perceber isso lá no meu bairro onde, na minha infância, aqueles corpos caídos eram só: “Nossa, mataram mais um” e eu consegui ir dizendo: “Não, não mataram mais um. Essa pessoa que morreu tem nome”. Nós estamos fazendo essa entrevista agora, no período da covid. Cada vez que a gente vê os números da covid e você saber que, por trás desses números, tem nome, faz toda a diferença, né? Eu cheguei aqui com um táxi, sabendo que um taxista que me levava muitas vezes pra dar aula aqui no Vera Cruz morreu nesse domingo. Então, assim, os números deixam de ser números. Então, essa também fez parte da minha consciência. O chão da escola. Aí são as crianças. A provocação que as crianças me deram. Eu não sabia como eu ia colocar uma menina cadeirante dentro da sala de aula, mas eu sabia que ela não podia estar fora. Eu não sabia como era colocar um menino com deficiência intelectual dentro da minha sala de aula. Um menino de 16 anos perto de crianças de nove. Mas eu sabia que não dava pra dizer não, ele tinha que estar lá dentro. Então, essas coisas foram me formando. Depois, o Centro de Defesa de Criança e Adolescente, o Padre Júlio Lancelotti, foi uma grande escola pra mim. O padre Júlio confiou em mim. Ele me contratou uma vez pra estar trabalhando no Cedeca. Ele confiou que ele podia ter uma menina de vinte anos sendo paga por ele pra estar lá na favela do Madalena, do lado das mães que tinham os meninos presos. Depois disso, ter ido pra Itália, participar de um evento no mundo de Herodes, um país que mata suas crianças e estar lá falando sobre o Brasil. Eu, mesmo uma menina muito tímida, estar lá naquele lugar falando. Depois eu fui fazer um curso de Diplomacia Popular, com pessoas da ex Iugoslávia. Nós éramos um grupo de brasileiros, um grupo de italianos e um grupo de jovens da ex Iugoslávia. Fomos convidados pra ir pra Rovereto, pro norte da Itália, pra criar o primeiro curso de uma universidade dos povos pela paz. Nesse grupo tinha Guido Mantega, Carlos Brandão e outras lideranças de São Paulo e nós super jovens lá, estudando Diplomacia Popular e pensando como é ser jovem num país em guerra. Um país que mata a sua juventude. Além disso, depois eu virei uma pessoa que colava nas pessoas. Até por ser uma pessoa um pouco tímida, eu sempre escutei muito. Então, na gestão da Luiza Erundina eu estava lá ainda. Eu fui convidada pra trabalhar na secretaria, eu coordenei a área de Ciências Matemáticas da região leste, do NAE9. Junto com o Pablo. Imagina, a gente tinha reunião com o Paulo Freire! Imagina o que era isso! Você sentar e ouvir o Paulo Freire falando!
P1 – Como foi o contato com o Paulo Freire?
R1 – Ah, foi uma choradeira pra mim, né? Eu o encontrei, a primeira vez, na PUC, eu estava de frente pra ele e eu falei: “Professor” – eu fico emocionada (choro) – “o senhor mudou a minha vida com a Pedagogia do Oprimido, eu posso beijar a sua mão?” Aí eu peguei a mão dele pra beijar e ele beijou a minha e bateu a mão, assim, no meu rosto, falou: “Ah, menina!” Imagina! Isso marcou a minha vida. A gestão da Erundina marcou a minha vida. Conhecer Tião Rocha, quando eu conheci, ele não é de escrever muito, ele é muito de falar, então, assim, tudo que eu sabia que o Tião estava e eu podia estar também, eu estava. Eu ia atrás, né? Depois, experiência de imersão de estudo, foi na Itália. Quando eu participei dessa formação, eu também me apaixonei por uma pessoa na Itália, que também se apaixonou por mim, às vezes acontece de dar essas sortes na vida (risos) e aí ele começou a fazer de tudo pra que eu fosse morar na Itália e eu fui morar, mas eu falei: “Pra eu sair do meu país, eu preciso ir pra estudar. Eu não posso me dar ao luxo de só viver uma história de amor, por mais que isso possa ser interessante. Então eu acho que vale a pena também, mas eu não posso me dar ao luxo”. E aí eu fui estudar, eu fui fazer Pedagogia Social e, pela primeira vez na minha vida, eu tinha tempo pra estudar, pra ler livros inteiros, conversar com as pessoas sobre o que eu lia. Isso foi uma experiência linda na minha vida. E aí, assim, não tinha internet. Existia, mas nós não tínhamos. Mas eu tinha amigos que mandavam por correio, livros. Eu lembro que tinha saído um livro importante sobre a temática racial, Joel Rufino dos Santos. Uma amiga falou: “Comprei dois”. Me mandou um dos livros. Então, foi um período também de muita formação pra mim. Agora, como eu fui virando essa pessoa hoje... um dia um amigo meu que é maravilhoso, o Tony Marlon, falou que ele estava numa reunião, num evento e uma pessoa se apresentou pra ele, pegou na mão dele e falou: “Prazer! Quem você é?” Ele falou: “Eu sou Tony Marlon, comunicador, uma liderança. Você...” “Eu sou influencer” (risos) e a gente riu muito, né? O que é ser influencer? Eu meio virei uma pessoa, eu fico muito surpresa quando eu encontro muitas pessoas que falam: “Bel, você me inspira, você é uma referência”. Eu sempre pego isso ainda com muita surpresa, assim. Isso eu acho que a comunicação é uma grande responsável por isso. Hoje a gente viaja muito mais, mas eu tenho, também, assim, as pessoas do começo da minha história, as pessoas na minha comunidade, a emoção que elas têm quando elas me veem na TV, quando elas me encontram na rua, porque eu ando na rua da minha casa, (risos) do meu bairro, da minha comunidade. (risos) Eu estou sempre lembrando dessas pessoas, nas entrevistas, nas coisas que eu falo. Isso, pra mim, é uma honra, que as pessoas que começaram a história comigo percebam uma coerência entre a Bel que elas ajudaram a ser, a estar aqui e se digam inspiradas por aquilo que eu faço, que eu falo. Agora, eu falo do que eu sei fazer. Eu estou aqui tentando terminar meu mestrado em pleno 2020, tentando escrever sobre muito do que tenho feito nesse tempo.
P1 – E essa história de amor? Como é que foi? Você foi pra Itália, estudar Pedagogia Social e viver, mas quer contar um pouco mais o que aconteceu?
R1 – Então, outro dia eu chamei essa pessoa de um casinho e eu sei que ele ficou super ofendido, porque não é o meu marido. (risos) Ele também já é casado com outra pessoa, então eu vou pensar o que eu conto.
P1 - Não precisa contar.
R1 - Nem precisa, né?
P1 – Vamos pra biblioteca!
R1 – Porque às vezes a pessoa vai ver, vai ficar péssima de novo.
P1 – Fala, acho que isso é importante a gente deixar registrado: você estava contando do Força Ativa, seu pai foi trabalhar de voluntário. Como é que aconteceu a fundação da biblioteca?
R1 – Nossa, a fundação da biblioteca é uma história! É um dos casos que vai virar crônica um dia, porque isso é muito bonito na nossa história do Ibeac. O Ibeac é uma organização que vai fazer quarenta anos em 2021. Foi fundado por Franco Montoro. Imagina! Mas é uma instituição que conseguiu ir mudando pelo seu potencial de escuta. Esse envolvimento com as áreas periféricas, com jovens do movimento hip hop, comigo, ajudou o Ibeac a mudar, a virar uma outra organização. Só que uma coisa que o Ibeac sempre teve como princípio é a participação e autonomia. E sempre foi assim no nosso trabalho com os jovens. Acho que por isso deu tão certo a minha história com o Ibeac. E sempre as decisões tomadas coletivamente. E aí, o que aconteceu? Meu pai foi lá, juntos com os meninos, Ice Boy e toda a turma, reformando a biblioteca. Eles decidiram inaugurar a biblioteca. Esqueceram de me convidar e de convidar a Vera. Os processos de autonomia geram essas coisas também, né? Hoje eles não esqueceriam. Mas à época, muito jovens, alguns com 18, 20 anos, esqueceram. Eles lembraram à noite. Ninguém tinha celular, na época, então eles começaram a ligar e deixar recado na secretária eletrônica dos nossos telefones de casa. Mas nós já tínhamos decidido porque claro, nós ficamos magoadas e é importante eles saberem também, porque, assim, o protagonismo era todo deles. Claro, a biblioteca era deles. Isso desde o princípio. Mas esquecer de convidar é feio também, né? Aí a gente tinha decidido: “Nós não vamos”. Nós duas somos leoninas, aquelas leoninas meio marrentas também, né? Aí deixamos todos os recados, que era quase um implorar, assim: “Então, vocês não precisam nem ser convidadas, né?” Começava assim. E aí a gente não foi. Mas eles estavam incomodados e isso também é pedagógico, né? Porque a gente precisa saber, na história da gente, sempre, quem está caminhando com a gente. Vocês sabem o que é esquecer de quem apoia vocês a manter essa história aqui de pé. É importante, é história sua. Mas quem ajuda a sua história estar de pé a gente não pode esquecer também. E aí passaram alguns dias. Essa história a gente já contou algumas vezes, eles morrem de rir: quando a biblioteca fez vinte anos eu fui a convidada pra fazer a conversa de abertura, né? E eles falaram assim: “Nem vem contar aquela história que a gente esqueceu de te convidar. É que quem é de casa não precisa ser convidado”. E nunca mais eles esqueceram de convidar e de reconhecer os parceiros que apoiam o caminho. A gente precisa decidir com quem a gente quer caminhar, mas a gente não pode deixar essas pessoas pra trás. E isso acho que foi uma aprendizagem importante. Essa biblioteca, hoje, virou uma biblioteca também literária, pelos caminhos que eu fui construindo na vida. Porque ela era uma biblioteca política, sociológica.
P1 – Como foi que ela foi virando literária?
R1 – Porque eu fui construindo o meu caminho. Quando eu conheci o pessoal, uma turma que começou a trabalhar com a força da literatura pensada pra criança, A Cor da Letra. O pessoal da A Cor da Letra começou a trabalhar com várias oficinas de literatura e aí vieram me perguntar se a gente tinha jovem que poderia participar. Nós tínhamos algumas pessoas, uns jovens que a gente dava formação em Direitos Humanos, convidou. Nada a ver com Força Ativa. A gente foi convidando essas outras pessoas e eu comecei também a participar disso e eu comecei a entender que força que a literatura tinha. Também você trabalhar com educadores, pra que eles levassem a literatura pra sala de aula. Eu comecei a lembrar do tempo que eu lia O Mundo de Sofia pras crianças, dentro da sala de aula. Do lugar que a poesia negra tinha tido também na minha vida. E eu começo a entrar e andar também com essa turma e aí começo a decidir junto com o Ibeac, nós do Ibeac decidimos que a gente queria começar a juntar tudo que a gente sabia fazer num único lugar, num único território. E que a gente ia fazer isso num território que tivesse poucas coisas acontecendo. É aí que a gente vai parar em Parelheiros, no extremo sul aqui de São Paulo. E quando a gente vai pra Parelheiros, não vou dar todos os detalhes da história, depois, se vocês quiserem, perguntem, eu conto...
P1 – Por que Parelheiros?
R1 – Então eu vou contar. A gente não sabia que seria Parelheiros. A gente começa a pensar se tinha sentido levar pra algum lugar onde poucas coisas acontecessem e aí sai, nos anos 2000, um ranking das subprefeituras de São Paulo, a partir do índice de desenvolvimento humano municipal, o Idhm. E aí são ranqueadas as subprefeituras: Pinheiros aparece em primeiro lugar, como melhor lugar pra se viver em São Paulo e Parelheiros aparece em 31º lugar, como pior lugar pra se viver em São Paulo. Então, a gente falou: “Olha, pode ter sentido que o melhor lugar - a sede do Ibeac está na Doutor Arnaldo, do lado de Pinheiros - vá se encontrar com aquilo que é considerado o pior lugar”, além de outras coincidências, né? Pinheiros, Parelheiros. Mas, a gente falou, eu não moro em Parelheiros, a Vera não mora em Parelheiros, quem pode querer é o pessoal de Parelheiros. Aí a gente começa a estudar sobre Parelheiros. Compilar as pesquisas, tudo que tinha, teses, dados e falou: “Olha, vamos tentar ver se tem sentido”. O subprefeito de Parelheiros era o Walter Tesch, que era uma pessoa que conheceu o Ibeac, porque o Ibeac foi um lugar em que vários conselhos de participação nasceram, dentro do processo de democratização do país. Os debates aconteciam lá. Inclusive o projeto de subprefeituras nasceu dentro do Ibeac. O Franco Montoro tinha um grupo que fazia essa discussão. Quando a Erundina foi eleita, ele entregou na mão da Erundina o projeto pra organizar as subprefeituras de São Paulo e o Walter Tesch era uma das pessoas que estavam dentro desse grupo. Ele era o subprefeito lá. A gente falou: “Walter” – tomamos um café com ele, numa padaria aqui na Doutor Arnaldo, perguntando – “você acha que tem sentido?” Ele achou que tinha todo o sentido e aí a gente falou: “Então, vamos começar a conversar com o pessoal da Saúde”, porque na gestão da ex Marta Suplicy nós demos formação em Direitos Humanos pra todos os agentes comunitários de Saúde de São Paulo. Então, essas pessoas nos conheciam e aí a gente foi perguntar, vamos ver, será que os agentes de Saúde topam conversar com a gente? E aí tinha uma gerente, a Flávia, enfermeira na gestão da Marta e tinha participado das formações conosco. E nesse momento, em 2008, ela era gerente de três UBSs lá em Parelheiros. E aí a gente falou: “Flávia, você quer encontrar, marcar um encontro com as pessoas pra gente ir?” e ela falou: “Pelo amor de Deus, pelo amor das deusas, venham, porque eu preciso de vocês lá. Lá não tem nada acontecendo”. E ela conhecia o nosso trabalho já há quase seis anos e ela marcou um encontro com os agentes comunitários de Saúde e fomos - Bel e Vera, as pessoas chamam, às vezes, de Bel e Vera – pra lá e aí a gente apresentou o que diziam sobre Parelheiros. Imagina eu chego aqui, no Museu da Pessoa e falo: “Olha, Jonas, vou contar o que falam por aí do Museu” e só começo a despejar coisas ruins: que aqui não tem nada, que aqui falta isso, falta aquilo. Aí, o que você vai falar? “Puxa, ninguém conta o que tem? Que aqui é uma reserva de Mata Atlântica? Que tentaram exterminar os indígenas dessa cidade e que os remanescentes estão aqui? Que aqui tem gente lutando por educação?” Aí eles começaram a falar isso, a gente falou: “Pronto, é isso mesmo. A coisa que a gente mais gosta de fazer é contar sobre o lado cheio do copo, como a gente aprendeu com o Tião Rocha. Vocês topam?” E aí eles decidem: “A gente quer, mas a gente duvida que vocês vão voltar, porque todo mundo que vem pra cá é fogo de palha. Vem, depois acha que é longe e não volta mais. A gente está cansado de projeto que começa, depois acaba e ninguém nem avisa pra gente que acabou”. E a gente falou: “Olha, vocês não conhecem a gente. A gente não é desse tipo”. E a Flávia falou: “Elas não são desse tipo”. Aí decidiram que a gente tinha que começar pelos jovens. Só que só tinha gente adulta no encontro. Então a gente falou: “Cadê os jovens?” e uma professora de Artes, a Darlene Glória, falou: “Na escola tem um monte de meninos do ensino médio que ficam lá, jogando bola na quadra. Eu vou chamar, ver se eles topam vir”. Aí a gente marcou um encontro na semana seguinte e apareceram 27 adolescentes. E aí a gente falou: “Gente, é aqui o nosso lugar. Como é que 27 adolescentes vêm encontrar duas mulheres que eles nem sabem quem são?”.
P1 – Como se deu esse encontro? Como foi?
R1 – A gente chamou esse encontro pra contar pra eles a mesma coisa que a gente tinha contado pros adultos: “Olha, o que falam de Parelheiros. O que vocês sonham pra Parelheiros?” A gente sempre trabalha com essa ideia do sonho. E aí a gente falou: “Agora a gente tem que começar”.
P1 – O que eles sonhavam?
R1 – Olha, bem bacana, porque eu tenho a lista de sonhos deles, que é o meu assunto do mestrado. Eu estou olhando as mobilidades que uma biblioteca causa na vida das pessoas. Como ela muda até os seus sonhos. Eu perguntei isso pra eles em abril de 2008 e aí eles colocam que eles tinham como sonho que eles conseguissem casar, ter um emprego e uma família. Um deles sonhava ser jogador de futebol. Emprego era a coisa marcante. Alguns sonhavam que tivesse um shopping center em Parelheiros e eles pudessem trabalhar lá. Os sonhos, todos, giravam em torno da vida, né? Eu ter uma vidinha com a minha família, organizada. E alguns sonhavam em abrir a biblioteca da escola, porque eu trabalhava com aquela ideia do sonho de agora e o sonho onde você quer estar daqui a dez anos. E nós lemos juntos, em 2018. E eles morriam de rir (risos) de ver os sonhos deles, de falar assim: “Olha só, na biblioteca, O Tamanho dos Sonhos, que é o título de um livro de uma pesquisadora que analisa a história de vida de cinco deles e ela chama, na biblioteca, O Tamanho dos Sonhos”. Eles falam: “Como é que os nossos sonhos mudaram, a partir da biblioteca!” Tinha alguns que queriam abrir a biblioteca da escola. E por que eles queriam abrir a biblioteca da escola? Porque era o único lugar em silêncio naquela escola. Era uma escola que tinha do primeiro ano, até o terceiro ano do ensino médio. Então, imagina qual era o nível de ruído que essa escola tinha o tempo todo! Pra adolescente, na fase das paixões, eles queriam um lugar que eles podiam estar assim, em roda, se olhando, conversando. O lugar era a biblioteca. A professora que cuidava da biblioteca foi embora, a escola trancou a biblioteca e ninguém pôde mais entrar. E eles queriam abrir. A gente falou: “Gente, tem alguma deusa ajudando pras coisas acontecerem aqui”. Abrir biblioteca era coisa que a gente sabia fazer e a gente falou: “Olha, a gente precisa apresentar algumas pessoas pra vocês, porque a gente vai abrir a biblioteca da escola juntos, mas e se a gente criasse uma biblioteca nossa, pra todo mundo, pra toda gente?” E aí a gente começou com uma ação chamada Pílulas de Leitura. A gente ficava na unidade de saúde, que era onde a gente se encontrava, lendo poesia, enquanto as pessoas aguardavam a consulta. E aí conseguimos convencer os médicos, eles entregavam livros na hora da receita. Então, junto com a receita pro bebê, ele dava um livro. No começo eles não queriam, porque eles achavam que os livros iam sumir. A gente falou: “Pode confiar na nossa gente. Eles vão sumir pra onde? Todo mundo é vizinho nosso, daqui”. E aí muitas pessoas não queriam receber, que não sabiam ler. E aí os meninos iam ler o livro pra aquela criança. Assim começa nossa história em Parelheiros, com Pílulas de Leitura. E quando você constrói uma relação assim, tão perto das pessoas, lendo, conversando, aconteceu que a gente descobriu que não tinha dentista em Parelheiros. A gente via muitas pessoas sem dentes, mas a gente não sabia que isso estava associado também a ausência do profissional, não só ausência do recurso e ali começa uma luta dos moradores, pra trazer um dentista. Quando o dentista chega, ele precisa de uma sala e aí a nossa salinha que era tudo: refeitório dos agentes de Saúde, era a nossa biblioteca, era o espaço de reunião, aí precisava virar sala de dentista. Por questão de assepsia, tinha que virar uma sala exclusiva e aí o pessoal falou: “A biblioteca vai ter que sair. E agora? A gente vai achar um outro lugar” e aí a comunidade começa a ajudar. Esse começo, quem nos apoiou foi a Ashoka, era o único recurso que a gente tinha, três mil reais. Com três mil reais a gente começou a fazer milagres, inclusive trazer os meninos pra conhecer o Centro, que nenhum deles conhecia o Centro da cidade.
P1 – Como foi que você foi escolhida pra Ashoka? Como se deu essa aproximação?
R1 – Eu fui escolhida pra Ashoka em 2004, quatro anos antes dessa história acontecer. A Maria Clara Pinheiro, que era uma pessoa da Ashoka, que tinha essa tarefa, de encontrar pessoas empreendedoras. Eu falei num evento, falando sobre a Cidade Tiradentes, sobre a biblioteca e as questões raciais, ela me ouviu e falou: “Nossa, você precisa conhecer a Ashoka, você conhece?” Eu não conhecia. Aí ela me falou do Tião Rocha, Cida Bento, começamos a falar de um monte de gente, eu falei: “Nossa, eu não sabia que essas pessoas...”, mas aí eles olharam... eu não tinha uma instituição. Eu atuava no Ibeac e no Ceert, no Centro de Estudo das Relações de Trabalho e Desigualdades. E a Ashoka era uma instituição que apoiava o fellow que tinha uma instituição. Então, me entrevistaram e falaram, a Célia Cruz e falou: “Nossa, interessante, mas você é perfil, mas você não tem a sua instituição”. Eu falei: “Talvez meu lugar seja esse, de ajudar as instituições a mudarem. O Ibeac começou a andar pra periferia. O Ceert começou a olhar pra juventude, pra educação. O Cedeca se aproximou do hip hop. Talvez esse seja o meu lugar. Eu não sei se eu quero ter uma instituição”. Mas aí a Maria Clara Pinheiro, a Clarinha, falou, convenceu a Célia Cruz que eu merecia ser entrevistada pelos outros fellows que ela falava: “A Bel tem uma coisa diferente”. E aí eu passei, eles acharam que valia a pena e aí, quando a gente vai pra Parelheiros, acontece essa história, eu chamo dois fellows: a Valdênia Paulino, essa advogada, que começa toda a militância comigo e o Paulo Lima, da Viração e a gente faz um projeto colaborativo pra discutir os Direitos Humanos. É aí que os meninos discutem os Direitos Humanos. Eles não conheciam. Trinta artigos dos Direitos Humanos, eles nunca tinham ouvido falar disso. E a gente propõe: “Olha, a gente vai reescrever essa declaração, até a mãe da gente entender”. Por que a mãe da gente? Porque todo nós éramos filhos de mães que não tinham estudado, que não eram letradas e a gente falava: “A nossa mãe precisa saber que existem trinta artigos escritos em 1948, há sessenta anos, essa deveria ser a nossa cartilha e a gente nem a conhece”. E aí a gente reescreve essa declaração, faz um álbum, um seriado, com a Viração e espalha nas escolas, no comércio, na padaria, no supermercado. Essa começa sendo a nossa primeira ação. Depois o Pílulas de Leitura. Aí a gente perde a sala e aí alguém lembra que a casa do coveiro, do Cemitério de Colônia, estava desocupada. E aí a gente muda. Eu falo, já em outras palestras eu falei: pela primeira vez, você sair de um serviço de Saúde e ir pro cemitério, significa sair dessa pra uma melhor. Porque aí a gente vai pra casa do coveiro e começa a pensar: o que significa a gente estar aqui? A maioria jovens negros, vítimas do genocídio, existe um genocídio da juventude negra e aí a gente vai prum cemitério, pra falar de leitura, de literatura? E ali começa toda uma história, construir uma narrativa de vida num lugar de morte. E a gente passa, ali dentro, a não se envergonhar de estar lá dentro, mas ter orgulho. A gente ocupou o lugar que ninguém queria, a casa do coveiro. Quem é que quer colocar a última pá de cal em qualquer história? Então a gente fala: a gente está ali desenterrando histórias. Você entra na nossa varanda, que nós mesmos construímos, a gente tem lá várias autoras negras: Carolina Maria de Jesus, que morreu em Parelheiros; Conceição Evaristo; Kiusam de Oliveira. Estão todas lá. As suas fotos. Lembrando que a gente precisa desenterrar as nossas histórias. E eu tenho dito mais recentemente, construindo um ciclo de vida ao contrário: a gente sai da morte e vai até a maternidade. Porque hoje a gente tem uma casa que chama Casa do Meio do Caminho, que fica colada na Maternidade de Interlagos e lá é o nosso berço literário. Toda criança de Parelheiros sai de lá com um livro e com uma mãe mobilizadora, que é a sua referência, pra levar leituras pras casas das crianças que os pais não sabem ler.
P1 – Nossa! Como foi que você conseguiu implementar isso? Você estava falando da casa maternidade, muito massa, mas vamos voltar lá pro coveiro. Como foi transformar uma casa de um coveiro numa biblioteca? Poderia descrever o processo físico, como isso aconteceu?
R1 – Posso. Essa casa do coveiro está no cemitério mais antigo de São Paulo, que é o Cemitério de Colônia, que foi construído num terreno que o imperador deu pra uma família, pra 189 famílias de alemães, que subiram pelo litoral lá, onde estão as aldeias indígenas de Parelheiros, pra chegar em Santo Amaro. Eles chegaram aqui com uma promessa de trabalho, que depois não aconteceu e era um grupo protestante, que não poderia ser enterrado em igreja católica. Então, o imperador dá essa terra e eles constroem esse cemitério alemão, que está lá até hoje, em processo de tombamento. Tem o tombamento municipal e eles estão tentando o tombamento nacional. E o coveiro também era alguém que vinha de fora e morava lá no cemitério. Por isso que existia essa casinha. Nessa casinha já foi também apoio a unidade de Saúde, já funcionou uma escola particular, mas é uma casinha mesmo: são três cômodos e um jardim. A casa estava abandonada, então eles falaram: “Dá pra gente emprestar por dois anos”. A Cempro, que é a Associação Cemitério dos Protestantes, porque ele pertence ao mesmo cemitério que fica aqui na Teodoro Sampaio, o Cemitério dos Protestantes, nos cederam por dois anos e aí a gente começou a pensar como a gente vai organizar. Precisava arrumar a porta, ter um espaço com as estantes, porque aí a gente teve uma grande sorte, foi aberto um edital pra bibliotecas comunitárias. Nós escrevemos o projeto, coletivamente, com os jovens e fomos aprovados. A gente tinha vinte mil reais pra comprar livros. Imagina o que foi isso em 2009! Parecia um sonho, né? Todas as coisas acontecendo. E aí a gente tinha também um pouquinho de recurso, pra pintar as paredes. Aí nós conhecemos os Arquitetos Descalços e a ideia das tintas de terra. Então a gente decidiu que ia pintar com tinta de terra. E escreveu um projeto, pra conseguir reformar a partir dos princípios da permacultura: pintar com tinta de terra e fazer um banco de adobe do lado de fora. Porque a biblioteca era pequena, então a gente precisava ter espaço do lado de fora, aproveitar o quintal e aí você chega, vou descrever como ela é hoje: então você pode entrar por dentro do cemitério, você vai encontrar essas lápides azuis e brancas, porque ele é um cemitério antigo, é todo baixinho, as lápides todas baixinhas, azul e branca, com algumas estruturas de ferro, algumas cruzes de ferro ou pode entrar por fora do cemitério, seguindo o muro, é uma rua sem saída. A Rua Sachio Nakao, tem um nome japonês, porque tem um centro de cultura japonesa grudado com a casa do coveiro. Um lugar que faz karaokê aos sábados. É sempre uma concorrência aos eventos literários de sábado, porque tem o karaokê e os nossos saraus também, acontecendo. Aí você vai por fora, aí tem essa entrada à esquerda. Esse fundo a gente pintou um grafite. Tem uns grafites do Helder Oliveira, que é um parceiro nosso também, da região, grafiteiro de lá. Aí você entra à esquerda, tem algumas árvores frutíferas com jabuticaba, tem um pé de cidreira, tem uma horta que os jovens plantaram e os bancos de adobe cobertos com uma flor que chama Tumbérgia Roxa. A gente não sabia. Vocês vão achar que a gente fez tudo pra virar uma história, né? Uma flor que chama Tumbérgia? Mas foi por acaso, a gente achou que era maracujá doce e não era. E é muito bonito quando está florido, porque ela dá essa flor roxa e garante essa sombra nesse espaço do lado de fora. Aí você continua, tem uma área aberta, que cabem até trinta, quarenta cadeiras. Ali que acontecem os encontros de leitura, o Cine Debate Literário. E dentro da biblioteca, a sala do meio era uma sala onde estão os textos literários, nós temos mais de quatro mil títulos exclusivamente de literatura, ela é uma biblioteca literária. Nós não temos livros didáticos, nem de pesquisa. Não tem Barsa na nossa biblioteca, porque a gente escolheu que ela é uma biblioteca de literatura, porque esse é o texto que estava menos presente na casa das pessoas e é um texto que permite a gente entrar em contato com a História, com a Geografia, com sonho, com fantasia, com realidade, com o que a gente quiser, com etnicidade. Essa primeira sala é pensada pra jovens e adultos, a sala do fundo é um espaço pensado em crianças. Os livros vão do chão até o teto, porque a ideia é que o frequentador possa pegar os livros, a partir das várias estaturas que ele tenha e aproveitando o máximo o espaço que tem lá. A gente trabalha com a classificação por cores, que foi desenvolvido pelo Centro Cultural Luiz Freire, de Pernambuco. A gente tem cor pra literatura pensada em criança, em jovem e adulto. Tem cor pra literatura indígena, negra. Se é poesia, se é romance. Por que a gente coloca as cores? Porque é um jeito de letramento sobre o que é a bibliodiversidade. Aqueles códigos que a gente tem nos livros diz pra quem entrou nesse universo da Biblioteconomia, mas o frequentador mais simples, que está entrando na biblioteca pelas primeiras vezes na sua vida, não sabe nem por onde começar. Então, além dos mediadores de leitura e das mediadoras serem as pessoas que se colocam no meio entre o livro e esse leitor ou não leitor, você tem lá esse cartaz que está dizendo o que cada cor significa. Então, quando as pessoas olham e veem lá literatura de autoria indígena, tem indígena que escreve? Tem. E onde esses livros estão? Estão aqui. Literatura africana? Que literatura é? O que ela é de diferente das outras? Aí alguém vai apresentar pra ela. “Eu gosto só de poesia”, ela vai lá na cor poesia e está lá na lombada do livro essas fitinhas com as cores, pra ela entender. É um jeito de letramento sobre a bibliodiversidade. É também um jeito dos próprios jovens mediadores conhecerem o seu acervo. Então, eles também vão entrando em contato com essa diversidade. E uma estante que é cobiçada na nossa biblioteca chama Esse a Gente Conhece, que é um acervo que são os autores que a gente já encontrou. O José está lá, com seu livro autografado, o Luiz Ruffato, a Conceição Evaristo e as pessoas chegam e vão direto naquela estante, Esse a Gente Conhece. Aí olha lá no autógrafo: “Vocês conhecem, mesmo?” Um dia eu brinquei e falei: “Não, a gente falsifica autógrafo”. É, não, a gente conhece.
P1 – E como é que vocês pensaram essa...
R1 - ... estante? Ai, eu adoro inventar coisa! Eu percebi que... tem uma coisa que a gente percebeu, não só eu, muita gente: que, pra quem é um neoleitor, uma neoleitora, existe um imaginário que todo escritor já morreu. Que, assim, escreveu um negócio tão importante, que quem já fez isso não está mais vivo. Pode parecer um absurdo pra nós, que somos leitores, mas isso está no imaginário, principalmente das crianças, porque é um tal de colocar defunto nos livros, nos resumos dos livros didáticos. E aí os saraus contribuíram muito pra mudar sobre isso, porque o autor está lá no sarau, você está encontrando com ele. Então você sabe, as festas literárias. Mas isso ainda é um universo de algumas pessoas. E aí a gente começou... eu tenho na minha mala de formação, levo sempre autores negros e autoras mulheres pras pessoas conhecerem e eu deixo separadinho os livros autografados, porque eu sei o quanto isso é fascinante pros jovens. E aí, um dia, um jovem me perguntou, lá da zona leste, de uma escola que eu dava formação sobre autoria negra: “Bel, você conhece todo esse pessoal?” Ele estava na mão com o livro Mundo Palavreado, do Ricardo Aleixo. E eu fiz a mesma brincadeira: “Não, eu falsifico autógrafo” e aí ele riu: “É verdade?”, eu falei: “Não, esse eu conheço”. Aí me deu a ideia, eu falei pros meninos: “Olha o que aconteceu! E se a gente tivesse uma estante...”. Aí rapidinho, o Rafael, que é o jovem que faz Biblioteconomia, da biblioteca, pôs lá um cartaz: “Esse a Gente Conhece”.
P1 – Eu queria ver se o Tião Rocha realmente acertou falando que você é boa contadora de causo, que você escolhesse daqueles vinte anos... são vinte anos?
R1 – Em Parelheiros são dez, mas com a Solano Trindade, 21 anos.
P1 – Então eu queria que você me contasse três causos da biblioteca. Três causos marcantes pra você, você pode escolher três.
R1 – Isso tem que combinar antes. Pode deixar, viu, Wini, vou te pagar lá fora. (risos) Vamos lá! Um causo vai puxando o outro. Acho que um muito marcante: eu estava na Alemanha na época que o Luiz Ruffato... que o Brasil foi um grande homenageado de Frankfurt. Mas eu não estava em Frankfurt, nem tinha sido convidada pra aquela festa, mas estava lá acompanhando as notícias e eu sou casada com um alemão e aí eu vi essa notícia, de que o Ruffato tinha causado constrangimento ao Brasil, com depoimento dele falando os dados da desigualdade. Um depoimento que está aí nas redes sociais, que o Ruffato foi o palestrante convidado, Luiz Ruffato e ele apresentava todos os dados de desigualdade, falando: “Olha, o Brasil está aqui sendo homenageado por sua inserção na leitura, nós estamos caminhando num processo de democracia” – a gente achava que a gente estava avançando na democracia – “mas quais são os dados? Como o Brasil trata os indígenas, os negros? Como se tratam as políticas de educação?” Eu fiquei super impactada com aquele depoimento e aí eu mandei por e-mail para os jovens, falei: “Gente, olha o babado aqui na Alemanha! Não sei como está a repercussão no Brasil. Olha isso!” Os meninos leram e ficaram impactados também com o texto, falaram: “Nossa, esse Ruffato é demais!” E eu falei: “Vamos escrever pra ele, agradecer que ele vai prum lugar tão importante falar da gente”. E aí eu consegui o e-mail do Ruffato e mandei, a gente escreveu, eu passei pros jovens e a gente escreveu pra ele em nosso nome e a resposta do Ruffato é: “Eu quero conhecer esses meninos”. Isso foi muito... claro que a gente imaginava que isso pode acontecer, mas é interessante acontecer. Eu também não tinha lido ainda nada do Ruffato. O conhecia, mas não tinha lido. E aí a gente falou: “Não, a gente vai marcar um encontro com ele, depois que a gente ler”. Aí, conversei com uma pessoa que conhecia o Ruffato, que trabalhava na Companhia das Letras, a editora onde ele estava publicando e eu falei: “Você consegue pra gente livro do Ruffato com desconto?” e aí contei a história, ela falou: “Consigo mais, que o Ruffato encontre vocês mesmo, pela Companhia e vou conseguir os livros”. E aí a gente começou lendo o livro dele Estive em Lisboa e Lembrei de Você, porque ela falou: “Acho que é melhor começar por esse, porque Eles Eram Muitos Cavalos é um livro mais denso, embora fale de São Paulo”. Aí a gente leu Estive em Lisboa e Lembrei de Você, mas rápido e a gente falou: “Nós vamos ler Eles Eram Muitos Cavalos” e foi um processo muito lindo os meninos lendo aquele livro e se encontrando com aquela narrativa tão caótica, do que é a cidade. Aí o Ruffato foi encontrar com a gente e foi uma conversa muito linda, tem um vídeo que eu estou chorando. Eu gosto de chorar também. Não é programado, mas eu me emociono muito com as histórias. Eu leio um dos últimos contos, um romance, na verdade, uma das últimas páginas, em que tem um casal que está ouvindo uma pessoa sendo assassinada, a mulher fala: “Parece que é tiro” e o marido fala: “Fala baixo” “Não, mas parece que estão matando” e aí tem essa história e o marido fala no final: “Mulher, apaga a luz, fica quieta, vamos dormir” e eu falo pro Ruffato: “Essa biblioteca não quer dormir. A gente não vai dormir, enquanto tiver gente tombando. A gente quer estar acordado”. E nós ficamos muito emocionados nesse encontro e o Ruffato chegou lá com uma sacolinha e nessa sacolinha tinha todos os livros que ele lia pra Helena, quando a mulher dele morreu. E ele fala: “Esses foram os livros que me ensinaram a ser pai e mãe da Helena e eu quero que esses livros fiquem aqui”. Essa virou uma história tão linda, de tanta amizade da biblioteca com o Ruffato, nossa, né, nós somos amigos. Nesse tempo de pandemia a gente se fala todos os dias. Nós combinamos, quando a pandemia começou, que ele, todo dia, ia dar bom dia, pra gente saber que a gente estava vivo. Ele faz isso com algumas pessoas, eu sou uma dessas, que ele dá bom dia todos os dias: “Aqui é Ruffato, na sua ronda matinal”. E de vez em quando a gente escreve outras coisas. E depois desse encontro, virou um encontro de amizade que a literatura proporcionou. Não é só uma amizade de jovens com o Ruffato, minha com o Ruffato. É a literatura dizendo pra gente que a gente não precisa ter medo, que a gente pode construir caminhos, falar com as pessoas, batalhar pelo sim na vida. Não está garantido, a gente tem que batalhar pelo sim. Essa é uma história que eu acho que é muito marcante pro Ruffato, pra nós. Teve um ano que o Ruffato nos convidou pra tomar café na casa dele e a gente foi pra tomar café, nós levamos pães que as mulheres de Parelheiros fazem, a Cozinha Amara, que é uma cozinha que a gente criou e o Ruffato preparou o café e aí ele falou pra gente agora entrar na biblioteca dele: “Essa estante, essa estante, essa estante, essas caixas, peguem o que vocês quiserem”. Você imagina o que isso significa pra uma biblioteca comunitária, que muitas vezes recebe só o que sobra da casa das pessoas? Elas fazem faxina e aí: “Vamos levar lá pra aquele pessoal, que qualquer coisa, pra eles, está bom” e aí você tem um escritor que você admira falar: “Pega o que vocês quiserem”. Isso é marcante pra nossas vidas. A gente encontrou um homem, uma pessoa humana por trás de um encontro com o leitor, de um depoimento que ele deu. Ponto. Essa é a história. Aí, eu vou contar uma outra história, de não leitores, que aconteceu na biblioteca. Uma história bem recente: as Amaras, cozinha, é um empreendimento de alimentação saudável que nasceu dentro da biblioteca. Como a gente sempre trabalhou com isso, de olhar pros dados da nossa biblioteca, a gente descobriu que o maior número de diabéticos da cidade estava em Parelheiros. Aí você fala: “Não, não é possível. Por quê?” Você está num lugar que você tem uma reserva de Mata Atlântica, que você poderia estar tendo uma alimentação mais saudável e isso não acontece. E aí a gente assumiu um compromisso que o que a gente vem tentando é sempre ser coerente nas coisas pequenas, se a gente puder. Então, a gente falou: “Puxa vida”. Aí a gente vem aqui pra biblioteca, faz um lanche e aí, na hora do lanche, a gente serve refrigerante e biscoito? Então, vamos mudar isso aqui, né? Pelo menos aqui a gente tem que fazer o que a gente aprendeu com o Tião, com os brinquedos: a gente só vai comprar brinquedo quando a gente não souber mais fazer. A gente só vai comprar comida quando a gente não souber mais fazer. E aí a gente combinou: o dinheiro que a gente tem pra alimentação, a gente que vai fazer. Deu errado, no começo, porque aí, o que chegou, no encontro seguinte? Um cuscuz de tapioca delicioso, com uma lata de leite condensado em cima, (risos) totalmente proibida pra diabéticos. Mas a gente falou: “Não tem problema, não. A gente vai acertar”. Aí levamos uma amiga nossa que trabalhava com alimentação saudável e ela começou a levar pra gente alternativas. Também não deu certo. Ela ensinou a gente a fazer uma tal de biomassa. Era um brigadeiro de biomassa. Aí, bateu lá a massa da banana, fez, tá. Um dia eu vi os meninos numa discussão, falaram: “Meu, faz isso pra mim” “Não vou fazer, não” “Se você não fizer, no seu aniversário eu vou te dar brigadeiro de biomassa”. Eu falei: “Então não deu certo a história da biomassa”. Aí a gente falou: “Meu, vamos conhecer o que tem de alimentação saudável e saborosa”. Aí fomos atrás de Espaço Zym e outros restaurantes aqui da região e convidar essas pessoas pra irem lá em Parelheiros, ensinar a nossa turma a fazer comida com as plantas cosmetíveis de lá. Pra resumir a história, isso virou um empreendimento de alimentação saudável, com vários pratos. E aí, qual é a conexão literária? Quem faz são mulheres mais velhas, algumas mães, avós dos meninos ou tias e avós da comunidade e um dia os meninos falaram pra elas: “Olha só, quando a gente vai nos restaurantes chiques, todos os pratos têm nome, tudo tem nome, eles põem nome Alfredo, João, não sei o que de Paris. Os pratos de vocês também deviam ter nome. Imagina se tivesse nome literário!” Eu catei isso e eu falei: “Vocês topam uma oficina sobre literatura e comida?” Aí levei trechos de Jorge Amado, levei músicas do Adoniran Barbosa, levei vários trechos que falavam de comida e literatura e fui lendo com elas, conversando, até trabalhando com as memórias que elas tinham, de comida: “Como era o comer na casa de vocês, quando vocês eram pequenas?” Muitas histórias de fome, mas também muitas de pratos tradicionais. E aí eu trouxe um trecho da Carolina Maria de Jesus. A Carolina viveu em Parelheiros, os últimos anos da vida dela. E aí eu peguei um trecho em que ela fala que, quando ela colocava na mesa quatro ingredientes, quando ela tinha: carne, salada, arroz e feijão, pra dar pra Vera Eunice e pros meninos, ela dizia que aquilo era um espetáculo, um grande espetáculo, ter tanta cor na mesa e a comida pra enfrentar a fome. E aí, o que aconteceu? Essas mulheres ficaram emocionadíssimas e decidiram: “O melhor café da manhã que a gente fizer vai se chamar Espetáculo para Carolina” e aí elas conseguiram apresentar nada menos que pra Conceição Evaristo, numa oficina de Escrevivência. Foi um encontro lindo das Amaras no Sesc, no CTF, apresentando café da manhã pra Conceição Evaristo e ganhando, de Conceição, Olhos D’água. Autografado. E algumas estão se letrando a partir de Olhos D’água e das mulheres de Conceição. Essa história é linda, né? (risos) Agora deixa eu pensar a última história. Uma última história vai ser bem recente, vou contar uma história coletiva. Já contei duas histórias com nomes, uma envolvendo o escritor, uma envolvendo mulheres não letradas e uma história coletiva, que é bem recente. Eu conheci um programa na Itália que chama Nati per Leggere. Um grupo de médicos do norte da Itália se juntou pra colocar literatura na vida dos bebês, desde o nascimento e acompanhar o desenvolvimento deles, até entrar na escola. Eles são médicos, muitos deles neurocientistas e eles começaram a acompanhar o que acontece com o cérebro de um bebê cada vez que ele ouve uma palavra nova. Cada vez que essa palavra nova é dita pela mãe do ventre onde ele ficou, que ele reconhece. Ele ou ela reconhecem essa voz. Quando é dita por outras pessoas. E eles vão acompanhando as sinapses neuronais. É uma coisa impressionante quando a criança ouve a voz da mãe falando outras palavras! Quando essas palavras têm uma história e uma cadência. E aí eles começam a desenvolver, o Nati per Leggere, que é um programa que você pode desenvolver, acompanhar o desenvolvimento de uma criança pela literatura. Coisa super sofisticada. Eu falei: “Nós vamos traduzir até a mãe da gente entender”. Aí convidei a moça que estava falando desse conceito: “Você topa ir ali em Parelheiros?”, a Juliana Junqueira. Ela topou. Eu falei: “Só que é o seguinte: precisa ser bem explicadinho, que a gente quer entender essa coisa e a gente quer explicar isso pra nossa comunidade”. Nós pegamos os conceitos que ela trouxe e traduzimos em trinta cards. Os jovens e as mães mobilizadoras foram traduzindo isso. Então, eles colocavam assim: “Ouvir a sua mãe cantando pra você é uma delícia. Ouvir a sua mãe apresentando uma história nova pra você é mais do que uma delícia. Ouvir uma história nova no colo da sua mãe é inesquecível”. Aí vinha o conhecimento científico embaixo. E a gente começou a espalhar isso na maternidade, nas creches e aí eu falei assim: “Olha, a gente precisa ter o nosso livro aqui de Parelheiros”, porque o primeiro livro dos bebês que são entregues lá aos três meses de vida são expressões: bebê sorrindo, bebê chorando. Aí o pessoal da Itália falou: “Se vocês quiserem, a gente consegue um preço pra vocês comprarem esses livros”. A gente falou: “Não. A gente quer o nosso livro, com a cara das crianças”. E aí eu fiquei com isso na cabeça, são uns quatro anos com essa história na cabeça e aí eu tenho confiança que tem histórias que você vai repetindo, até que elas acontecem. Tinha um autor que fala: “Por que o príncipe virou sapo? Não é porque a bruxa faz feitiço, é porque ele acreditou na palavra. Então você precisa usar o contrário, também: pegar a palavra e ir repetindo, pra que elas aconteçam”. Então, sempre que eu encontrava alguém que eu achava que podia render a história, eu contava, falava: “Olha, tem essa história”. E um dia eu estava em Madri, eu fui fazer a abertura, o ano passado, da Feira do Livro de Madri e tinha os grandes expoentes da literatura por lá e, tomando café com uma pessoa, eu contei essa história. A gente estava tomando café numa área aberta e de repente veio um vento, que levou o nosso guarda-sol, derrubou tudo da mesa e ela me falou assim: “Belzinha, o vento está dizendo que essa história vai render”. Eu falei: “Tá bom”. Eu não sou de acreditar em muitas coisas, (risos) mas acredito na força da palavra e nas pessoas. E um ano depois ela entrou em contato comigo e falou: “Olha, eu tenho um pouco de recurso pra começar essa história. Põe no papel”. Coloquei no papel. Desde o mês de junho cerca de sessenta pessoas, uma média de quarenta por encontro, tem feito oficinas com o João Anzanello Carrascoza, com a Juliana Carrascoza, pra produzir esse primeiro livro. A gente construiu um banco de mais de cem fotografias e de quase duzentos textos literários escritos por jovens mediadores de leituras, por mães mobilizadoras, educadoras de creche, cozinheiras, jovens agentes comunitários. Todas as quintas-feiras, das duas e meia às quatro e meia da tarde, a gente se encontra pra estudar literatura e pra escrever esse livro. Agora a gente está na fase da edição e todos participando de todos os processos de construção de um livro, aí apareceu um novo vento, que decidiu que vai produzir os dois mil para os primeiros dois mil livros, que vão ser entregues na maternidade, junto com a certidão de nascimento para os bebês, eles vão sair de lá com a certidão, de que eles nasceram para a família literária de Parelheiros. E a gente vai ficar acompanhando esses bebês, o desenvolvimento deles, o contato com o livro, em 2021. Então, essa é uma história linda. A gente tem dentro desse grupo – a gente criou um grupo – pessoas que falam: “Essa formação me ensinou a olhar não só pra fora, pra mim também. Depois dessa formação, eu nunca mais fiz selfie. Eu faço autorretrato, porque eu aprendi a lidar com as sombras e as luzes que batem em mim”. E isso é uma mulher que nem sabia, antes dessas oficinas, que dava pra tirar foto com celular. E hoje está aí, escrevendo, fotografando. A literatura é um negócio. As bibliotecas comunitárias, outro negócio.
P1 – Quer fazer alguma pergunta?
P2 – Eu ia perguntar sobre as suas atividades atuais, agora você está na Vera Cruz. E eu queria que você comentasse quais os seus planos, como você pensa as bibliotecas pro futuro? E comentasse como estão sendo suas atividades agora.
R1 – Então, agora, as coisas principais que eu tenho feito: eu sou mestranda. O meu orientador vai ficar feliz em ouvir que isso é minha atividade principal, mesmo que ele não acredite. Porque eu já estou no prazo estendido e pedi pra prorrogar o prazo do mestrado, devo terminar até fevereiro do ano que vem. Eu faço mestrado em Turismo na USP. Eu estou analisando como uma biblioteca pode promover mobilidades na vida das pessoas, concretas e simbólicas. Os jovens, pela literatura, mas não é só pelo que eles leram, é por tudo que a literatura trouxe pra vida deles, mudaram de lugar. Eles construíram, com seus corpos, uma nova geografia aqui nessa cidade. O caminho de Parelheiros pra Biblioteca Mário de Andrade não é o mesmo que era há dez anos, por conta dos movimentos que nós e todos os outros nós, as festas literárias, têm feito. O que faz Mia Couto sair de Moçambique e ir lá pra Felizs, na zona sul? Ou ir lá pra USP? Eu levei Mia Couto pra Each, era um encontro com a rede LiteraSampa, que eu faço parte. Mas eu percebi que era muito estratégico levá-lo pra encontrar o cursinho popular da universidade. E eu fiz uma proposta, que não era porque eu quero sucesso, nada disso, mas eu falei pro meu orientador: “O que você acha da gente levar o Mia Couto pra USP?” Ele falou: “Você está brincando?” Eu falei: “Não estou. Ele vai vir se encontrar com a gente. A gente pode levar todo mundo pra Each. É interessante a minha gente entrar dentro da USP e aí a gente não vai entrar pela porta do fundo. A gente está entrando com um escritor que todo mundo venera e ele está indo com os periféricos pra dentro da USP”. O reitor ofereceu a sala dele e a gente falou: “Obrigada. A gente vai se encontrar onde o cursinho se encontra, embaixo da escada do segundo andar”. E a gente sentou lá, o Mia Couto, foi lá que ele conversou com a gente, autografou os livros pra deixar com a turma do cursinho, chamamos a turma da escola pública, que fica ao lado, que ninguém tinha se encontrado com eles ainda e a gente conseguiu lotar os três auditórios, nessa visita. Foi uma coisa muito linda! As bibliotecas comunitárias lotando os auditórios da universidade pública. Na semana que vem eu estou abrindo o Congresso Nacional da Pós Graduação em Turismo, da USP. Da USP, não, do Brasil. É que o professor da USP que é o coordenador. De onde vem esse convite? De todo esse movimento periférico que a gente tem feito pra entrar dentro da universidade. Então, a gente fala o que eu estou fazendo: em alguns momentos, sendo porta-voz de uma história que é coletiva. Então, tem esse movimento dentro das redes, de bibliotecas comunitárias também; o mestrado; a rede LiteraSampa; a Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias, que eu atuo como cogestora, que a gente tem uma gestão compartilhada; sou professora de uma faculdade pública, de uma pós em Literatura, em mediação de leitura. Todo ano eu tenho vontade de parar, mas todo ano está entrando mais gente das bibliotecas comunitárias, das periferias e ficam: “Bel, pelo amor de Deus, não sai. Bel, fica”. Aí eu fico, mas é uma coisa que me dá muito trabalho, você pensar, preparar aula. Ainda mais agora que tudo virou remoto. É uma coisa que me cansa muito. Além disso eu faço a gestão de uma instituição, que é o Ibeac, eu sou coordenadora do Ibeac, com a Vera Lion e tento, nos outros momentos, fazer aí um monte de formação, de live, de conversa. Principalmente nos lugares em que eu percebo que potência pode ter a literatura ali dentro. Quando a gente criou a Biblioteca Caminhos da Leitura como biblioteca literária, algumas pessoas diziam: “Mas escuta, em Parelheiros falta tanta coisa! Por que vocês não criam um curso profissionalizante?” E a minha resposta pra quem falou isso foi que eu não estava lá pra ajudar os meninos a ter uma profissão pra encontrar um lugar no mundo. Que eu estava lá pra conseguir, com os meninos, o caminho que eles quisessem, pra mudar o mundo e não para encontrar um lugar no mundo. Então, acho que a literatura faz isso. Ela é transformadora. Ela leva a gente pra um caminho que a gente não imagina. Valter Hugo Mãe fala que a biblioteca é parente dos aeroportos e dos aviões. Mas é um avião que você compra a passagem pra algum lugar que você não sabe qual é. Então, por isso eu faço muita live, fico com muitos grupos, pra conseguir levar essa contaminação literária.
P1 – Quer perguntar alguma?
P3 – Eu quero. Posso?
R1 – Já que, né? (risos)
P3 – Você lê em quantas línguas?
R1 – Olha, eu não leio em muitas línguas. Eu tenho algum defeitinho, eu tinha que ter, eu acho. Só em italiano, espanhol e português.
P3 – Só?
R1 – Eu não falo inglês, infelizmente. Só.
P3 – Qual que você gosta mais?
R1 – Português. Mas eu precisava estudar línguas. As pessoas pegam no meu pé com isso, pelas oportunidades. Eu vou abrir, fazer uma aula magna agora, no dia 2 também, do Congresso Nacional de Livre Leitura da Colômbia. Então eles me chamaram pra fazer a aula magna. Eu levei um susto quando eu vi o convite também pra Madri, porque eu falei depois de um Ministro da Educação da Espanha. Mas acho que a história que nós temos construído nas periferias, os slams, os saraus, as bibliotecas, é um caminho sem volta. A gente manteve a literatura viva quando todo mundo dizia que isso ia acabar, que ninguém ia comprar mais livro e olha nós aqui. Então, eu entendo esse lugar. Então, eles me chamaram, achei que tinha sido engano, não tinha, aí eles me escreveram, falaram: “Professora, a gente gostaria que a abertura fosse em espanhol. Tudo bem?” Eu falei: “Não. Eu leio espanhol, mas eu não tenho tempo”. Eles me avisaram que seria pra ser em espanhol em uma semana. Então, uma hora de fala em espanhol significa que eu preciso ter quantas horas escrevendo um texto, pra fazer a leitura em espanhol? Aí eu falei: “Fiquem absolutamente à vontade pra chamar uma outra pessoa e eu participo da roda de conversa, que já estava previsto. Numa roda de conversa o meu espanhol tudo bem. Aí eles decidiram e falaram: “Não. A senhora vai fazer a sua conferência em português”. Então, essas coisas me deixam mal acostumada. Mais um motivo pra eu não estudar espanhol: no final dá certo. (risos)
P1 – Bel, pra gente fechar, a gente começou de olho fechado, queria que você fechasse o olho de novo e o que eu vou trazer aqui foi de um filme japonês, é assim: se, quando você morresse, só pudesse levar uma memória pra eternidade, a eternidade fosse essa memória, qual você levaria?
R1 – Ixi! Olha, talvez, a memória que mais me emocionou aqui nessa conversa foi pensar na minha vó e a memória que eu levaria, ela olhando pra mim e falando assim: “Ah, essa Isabel, viu?” Acho que é a memória que fica em mim. Tem horas que até eu acho que eu sou uma lenda e acho que a Dona Edelmira tinha razão: “Ah, essa Isabel, viu?” (risos)
P1 – Como foi contar a história?
R1 – Olha, é muito interessante, né? Porque as perguntas muito boas, vocês três obrigada pelas perguntas, ajudam a gente a ir acessando outros lugares, né? Então, não foi uma entrevista de trabalho, sobre leitura, é uma entrevista sobre mim e acho que eu saio daqui me entendendo também, mais. Me conhecendo, também, mais. Cada vez que a gente vai acessando quem a gente é... quando a gente está sofrendo, por que a gente quer conversar com os amigos? Não é pra eles encontrarem solução. Porque a gente quer entender melhor o que a gente está sofrendo e acho que isso serve pra alegria e pra tristeza. Eu tenho sempre falado pros jovens que às vezes a gente tem vergonha de ser feliz, parece que o mundo está tão difícil, que é feio a gente contar que a gente está feliz, que a gente passou no vestibular, que a gente entrou no mestrado, que tem uma alegria pequena ali dentro de casa e eu tenho dito, quem me escreve, acho que eu devo ter escrito isso pra Wini nesse período, sempre quando as pessoas me perguntam como estou, eu falo com saúde, esperança e pequenas alegrias, até que a grande não chega. Então, essa entrevista é também um jeito da gente ir produzindo pequenas alegrias. A gente acessa coisas difíceis, mas compartilha alegrias também. Graça Graúna, uma escritora, poeta, fala dessas nossas metades, fragmentos. E eu espero que vocês consigam costurar esses fragmentos de Bel pra, se a Dona Edelmira olhar, falar: “Ah, essa Isabel, viu?” (risos)
P2 – Muito obrigada!
P1 – Muito obrigada!
R1 – Obrigada vocês, gente!
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