Projeto Vida, Morte e Fé - Programa Conte Sua História
Entrevista de Ivaldino de Assis Mendes Tavares (Padre Assis)
Entrevistado por Jonas Samaúma
Filmado por Ana Clara Muller
São Paulo, 23 de junho de 2022
Entrevista número PCSH_HV1270
Revisada por Larissa Colejo
P/1- Então, Padre, primeiro eu gostaria de te agradecer por toda a sua disponibilidade, esse carinho e acolhimento! A primeira pergunta eu ia falar pra você falar seu nome mesmo e onde você nasceu.
R- Bom… Paz e bem, galera! Aquele axé a todos vocês, salaam aleikum, shalom, mojubá. Então, meu nome é mais conhecido como Assis, Padre Assis Tavares. Nasci no Cabo Verde. Cabo Verde é um país que fica na costa ocidental africana, né? São dez ilhas e eu nasci na Ilha de Santiago… Ilha de Santiago em oitenta e três.
P/1- E você sabe alguma história sobre o seu parto, sobre o seu nascimento?
R- Não propriamente. Eu só sei que eu nasci às dez da noite, em casa. Minha mãe não foi pro hospital, sabe? Foi um parto natural, por quê? Também a minha bisa era parteira, né? Então, foi ela quem fez o parto, assim, da nossa família toda. Mas eu nasci… Eu sou o filho mais velho e nasci em casa.
P/1 - Você sabe como foi que seu pai conheceu a sua mãe?
R- Olha, o meu pai… o meu pai… Eles falam muito disso, porque eles são jovens, meus pais têm cinquenta e seis anos, me tiveram com dezesseis, dezessete, né? Aí… acho que foi numa feira que tem no Cabo Verde, onde vem pessoas de vários lugares com seus produtos para vender, tanto legumes, frutas… Até hoje existe isso, como a feira daqui, na verdade, isso no Cabo Verde. Aí a galera se conheceu lá, trocou os primeiros olhares lá mesmo, de uma forma muito tímida. Depois foi num… pra nós, Liceu, sabe? Foi no colégio que se conheceram, se amaram. Sempre brincam comigo: “Eu não sei se a gente fez você debaixo duma árvore ou dentro” (risos). Então eu não sei, só sei que me tiveram muito jovens, muito...
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Entrevista de Ivaldino de Assis Mendes Tavares (Padre Assis)
Entrevistado por Jonas Samaúma
Filmado por Ana Clara Muller
São Paulo, 23 de junho de 2022
Entrevista número PCSH_HV1270
Revisada por Larissa Colejo
P/1- Então, Padre, primeiro eu gostaria de te agradecer por toda a sua disponibilidade, esse carinho e acolhimento! A primeira pergunta eu ia falar pra você falar seu nome mesmo e onde você nasceu.
R- Bom… Paz e bem, galera! Aquele axé a todos vocês, salaam aleikum, shalom, mojubá. Então, meu nome é mais conhecido como Assis, Padre Assis Tavares. Nasci no Cabo Verde. Cabo Verde é um país que fica na costa ocidental africana, né? São dez ilhas e eu nasci na Ilha de Santiago… Ilha de Santiago em oitenta e três.
P/1- E você sabe alguma história sobre o seu parto, sobre o seu nascimento?
R- Não propriamente. Eu só sei que eu nasci às dez da noite, em casa. Minha mãe não foi pro hospital, sabe? Foi um parto natural, por quê? Também a minha bisa era parteira, né? Então, foi ela quem fez o parto, assim, da nossa família toda. Mas eu nasci… Eu sou o filho mais velho e nasci em casa.
P/1 - Você sabe como foi que seu pai conheceu a sua mãe?
R- Olha, o meu pai… o meu pai… Eles falam muito disso, porque eles são jovens, meus pais têm cinquenta e seis anos, me tiveram com dezesseis, dezessete, né? Aí… acho que foi numa feira que tem no Cabo Verde, onde vem pessoas de vários lugares com seus produtos para vender, tanto legumes, frutas… Até hoje existe isso, como a feira daqui, na verdade, isso no Cabo Verde. Aí a galera se conheceu lá, trocou os primeiros olhares lá mesmo, de uma forma muito tímida. Depois foi num… pra nós, Liceu, sabe? Foi no colégio que se conheceram, se amaram. Sempre brincam comigo: “Eu não sei se a gente fez você debaixo duma árvore ou dentro” (risos). Então eu não sei, só sei que me tiveram muito jovens, muito jovens… Com dezesseis a dezessete anos eu havia nascido, né? O meu professor… o meu pai já era professor do magistério, então foi eles que decidiram viver juntos mesmo, certo? Até hoje estão juntos.
P/1- Que lembranças você tem deles na sua infância? Histórias…
R- Ah, nossa, Jonas… Os meus pais foram muito presentes, sabe? Isso é uma das coisas que eu agradeço ao universo. Desde o berço eu recebi a energia, a positividade de ambas as partes, da parte paterna, como da parte materna. Acho que isso forjou o Assis que vocês hoje conhecem. Eu via o meu pai desde criança partilhar, digamos, o trabalho doméstico com a minha mãe. Eu cresci vendo meu pai passando roupa da minha mãe, as nossas roupas, e não o contrário, sabe? Então isso são imagens que quando a gente analisa o contexto cultural do nosso país, onde o machismo infelizmente impera… Aí na minha casa tive uma outra imagem, um homem, um cabo verdiano, um africano, que partilha os deveres de casa com a esposa, cozinhava… Então isso pra mim… quando ia pra casa os outros colegas via que o cara não fazia nada, deixava, transportava tudo para para a esposa ou então a filha. Falei, “pô mano, de fato sou privilegiado nesse sentido”, porque em casa tive exemplos, né? E isso marcou enormemente meu pai, minha mãe sempre foram... Depois também, somos três meninos. A menina veio em noventa e quatro, certo? Então, tem um irmão que nasceu em oitenta e cinco, tem outro que nasceu em oitenta e oito. A minha irmã em noventa e quatro. Então crescemos os três fazendo tudo em casa… tudo em casa. E quando a minha irmã nasceu continua a mesma coisa. Não é porque havia nascido uma mulher, uma jovem, que íamos transportar todos deveres de casa. Coisa simples, lavar louça, pegar água, cuidar dos animais, sabe? Coisas assim. Ela cresceu no meio assim. A gente fala que fomos desconstruindo, aos poucos. Claro que nós somos uma eterna desconstrução, sobretudo quando nascemos num país ou num continente onde o machismo é muito… Tem separação: esse é trabalho de homem, esse é trabalho de mulher.
P/1- Mas lá no Cabo Verde tinha isso?
R- Tinha, tinha! Tinha.. tem, né? Como muitos países, como aqui mesmo também, infelizmente isso é…
P/1- O que que fez o seu pai, por exemplo, ter essa postura diferente?
R- Cara… Talvez porque também ele foi educado assim na casa dele. O meu pai… os meus avós não tiveram meninas, só tiveram meninos, certo? Então a minha vó também, uma matriarca… Nossa! Quando dá uma ordem você para e vai, certo? Então acho que pelo fato da minha vó ser uma matriarca, com postura, uma rainha mesmo, ela transmitiu isso para os filhos. E os filhos transmitiram, nesse caso, meu pai transmitiu para nós. Eu tenho um sobrinho… tenho três: não conheço duas que estão em Lisboa, onde o meu irmão está, e um garotinho… Mas a minha irmã também já está educando ele de uma forma diferente. Eu acho também que os meus irmãos lá em Lisboa vão educar as minhas sobrinhas com essa pegada. Eu creio, eu creio… Que a gente fala sobre isso, uma educação onde a gente não vai ver os gêneros, ou que trabalham disso e aquilo, mas pessoas tentando trabalhar junto, fazendo teias, rosários. Somos eu, você, ela, somos conta do rosário. O rosário é formado por contas, cada conta “conta” (risos), é importante, certo? Então é isso, sabe?
P/1- Você podia me falar um pouquinho da sua vó, o que cê aprendeu com ela?
R- Cara, eu sou… eu fui privilegiado porque conheci os meus quatro avós. Nas férias ficava com meus quatro avós do lado materno e lado paterno. Cara, cada vez que eu ficava no lado materno era um aprendizado terrível, que o meu avô contava história de infância, contava história de quando ele foi para Portugal, trabalhar pra poder sustentar a família. A minha avó conta a história de São Tomé e Príncipe, que é outro país que foi colonizado pelos portugueses também, cujo regime português levou muitos cabo-verdianos pra trabalhar na roça de uma forma forçada, né? Então eu ia pros meus avós paternos e o meu avô contava história quando ele foi quase obrigado a ir pra São Tomé trabalhar na roça, sabe? Ele conta das pessoas que ele perdeu, ele conta dos amigos que ele fez, ele conta dos perrengues que o regime de Salazar fazia, ele conta da fome. Minha vó viveu no tempo… Teve uma fome em vinte e um, vinte e dois por aí, ano, né, vinte, vinte e um, terrível no Cabo Verde, e muita gente faleceu. E a minha avó conta a história do pai que faleceu porque foi procurar comida e, a gente diz a “estância”, a casa onde é tipo o abrigo, onde distribui comida, o teto caiu, matou quase a maioria das pessoas que tava lá. Então de um lado eu cresci escutando histórias de trabalho forçado em São Tomé, por outro da fome que assolou Cabo Verde na década de vinte, vinte e um. Ao mesmo tempo escutava outra história do meu avô materno de Lisboa, quando emigrou muito jovem, os perrengues, as alegrias, as coisas boas também que ele viveu. Minha vó que fica contando também das festas que ela ia, das romarias, das paqueras, sabe? É uma coisa assim muito doida (risos). Mas ao mesmo tempo foi lá que eu aprendi a trabalhar na roça, foi lá que aprendi a poupar água. Cabo Verde é um país que não chove muito, cada gota d'água conta. Foi lá que eu aprendi a riqueza da partilha, de enxergar o outro como ser humano mesmo, que os meus avós sempre me ensinaram. Foi lá que eu aprendi, de fato, a sentir as dores também da mãe terra. Cara, então, eu falo que se hoje sou assim, uma junção de retalhos, foi graças aos retalhos que me fizeram no passado, que me fazem hoje também, sabe? Então resumindo, guardo retalhos, memórias, “slides”, dos meus quatro avós. E só vim perder o meu avô materno há dois anos atrás. Então, cresci, tenho trinta e oito anos hoje, e por trinta e seis anos tive os meus quatro avós. Então isso foi uma riqueza, foi uma riqueza… Porque a maioria dos meus colegas que eu vejo não cresceram com os avós. Ouviram ou conheceram uma, um, ou lado materno ou paterno, ou não se dou bem. Eu, pra mim, foi tudo… Passar a temporada com os meus avós maternos era alegria, passar temporada com avós paternos era benção, era chuva de… Só tenho a agradecer a Pachamama, mãe Terra, por eles, meus ancestrais, existirem e transmitirem essa energia boa que acredito mesmo, que nos faz mover, que nos faz sonhar. Eu sonho com os meus avós (risos).
P/1- Perguntar como é que era um pouco sua… Você descreveu como era a relação com Cabo Verde, com a paisagem de lá. Você tem memórias, histórias?
R- Ah, claro. Nossa, como eu falei pra vocês, Cabo Verde é um arquipélago, né? Arquipélago no meio do mar Atlântico, composto por dez ilhas. É o país da África mais perto do Brasil. De Fortaleza pra Cabo Verde dá somente quatro horas, em linha reta de voo. E Cabo Verde, para o comércio triangular dos escravizados, foi muito importante, porque a gente servia como ponto de escala de comércio triangular, entre África, Europa e América Latina. Então a formação de Cabo Verde em si foi polêmico, porque os portugueses dizem que não encontraram ninguém na ilha, porém estávamos perto do Senegal. Aí, de certeza alguns antropólogos falam que não, que já tinha resquício de pessoas visitando a ilha. Isso é mil quatrocentos e sessenta, quarenta anos antes do Brasil, o Brasil foi mil e quinhentos, certo? Então Cabo Verde se formou, de fato, com muita miscigenação, que também rolou no Brasil, entre portugueses, holandeses e demais povos, e com os escravizados também, né? Vindo tudo do Senegal, Guiné-Bissau, Moçambique. Então você tem ilhas que são bem pretas, bem pretas. Tem ilhas que você passaria por um cabo verdiano, ela também por uma cabo verdiana tranquilamente, sabe? Então cada ilha teve a sua particularidade. A minha ilha, a de Santiago, é bem assim… A minha casa fica bem no litoral, da minha casa para o mar, para o oceano, para a praia, não dá nem um quilômetro. Então a gente acorda com o bater das ondas, e dorme (inaudível) com o bater das ondas também. Isso faz com que entre energia boa, como sai também as energias pesadas, acaba sendo uma engrenagem. A onda vem “pah”, cê escuta, “pah”, tipo respirar. Eu vejo o mar como isso. O eterno respiro, como bate o meu coração… Então eu, de Cabo Verde, da minha ilha, da minha cidadezinha, é o mar. É o mar e a paisagem bem seca, sabe? Paisagem seca, assim, marrom. É uma ilha montanhosa. Você vê, é umas montanhas altas, tudo de barro, mas ao mesmo tempo - isso é de dezembro até junho, se encontra essa paisagem inóspita - bem, bem… tudo seco mesmo, árido. Mas ao mesmo tempo, de julho a dezembro, é época da colheita, não! De semear, certo? Época do plantio. Então a gente planta milho por tudo quanto é lugar, cara! É sítio, a ilha se enche, se renova com milho. Então essa paisagem também é bonita… Quando você pega o ônibus pra ir pra cidade, você vê tudo verde, aí você fala: “agora é Cabo Verde mesmo, não Cabo Seco, o nome agora é Cabo Verde mesmo” (risos). Vê tudo bonito… Porém, isso quando chove. Mas a nossa vontade, a nossa força, a gente começava a plantar, a semear mesmo antes da chuva, com a certeza de que a chuva cairia. Tinha anos que a gente plantava três anos seguidos e não chovia. Ou então quando chovia, chovia uma chuva só. A planta, a semente se desabrochava, mas não tinha continuidade, porque a chuva parou por aí. Então, meu, é uma paisagem que ficou assim na minha na minha cabeça até hoje. Um Cabo Verde onde você vê tudo inóspito, de dezembro a julho. E outro Cabo Verde, que te renova, que dá esperança, de julho até dezembro, que dezembro culmina com a colheita. Isso também me fez pensar muito no campo da fé, por exemplo: a Páscoa. A gente fala que a Páscoa é uma passagem, uma passagem onde as coisas se renovam, né? Eu via muito dessa transição assim, digamos, da paisagem, com a questão da Páscoa, desde criança.
P/1- Na infância você fazia essa relação?
R- Exato, exato! Quando a catequista - a gente fazia catequese- tentava explicar o que é a Páscoa com um monte de palavras difíceis que a gente não entendia porra nenhuma, né? Mas enquanto que quando a gente sentava diante da nossa própria… Porque era uma catequese mais portuguesa, não inculturada, cabo verdiana, então a gente só ia repetindo coisas, fórmulas... Mas aos poucos fomos pegando. Mano, olha a Páscoa assim, olha a nossa paisagem… Não tem tempo que fica assim, outro tempo que fica assim? É, cara, talvez seja isso mesmo. Antes dele foi assim, depois dele, com ele, talvez seja diferente, né? A gente pegava, a minha vó pegava num ovo que tava o ovo chocado, pronto pra o pintinho sair. Quando o pintinho quebrava, eu via ele quebrando a casca: “ó, olha a vida aí, olha a ressurreição!” (risos). Coisas que, de fato, hoje me fazem pensar a religião, a minha fé católica, diferentemente. Olhando sempre para o chão onde eu piso, e ali eu concebo o meu Deus, o meu Jesus, mas sempre fazendo uma coisa encarnada. Você pensa o impensável através da sua realidade pensável e pisante.
P/1- Dentro dessa realidade pensável e pisante, você descreveu esse verdejar da Páscoa, esse nascer, né? Quais mais coisas você viu sagradas, ainda na sua infância? Momentos que você lembra…
R- Mano, o processo de semear sem ter certeza que vai chover (inaudível). Sabe aquele filme “O menino que inventou o vento”? Mano, eu me vejo nesse filme (risos). A fé, a esperança dos meus avós! E a gente não queria semear, a molecada, né? Queria ficar em casa de boa, mano, só férias, curtir a praia... Não, ia pro campo. A gente fala, “vô, nem sabe se vai chover, vô!”. Falou: é como aposta, se a gente não apostar também não sabe se vai ganhar ou não. Então vamos apostar e pensar positivamente que a gente vai ganhar esse milhão”. Não vamos saber se a gente vai ganhar ou não se não apostar. A gente não vai saber se vamos colher ou não, se a gente não semear, certo? Então no próprio ato de semear sem ter certeza que chove, pra mim, é um baita significado do esperançar, do Paulo Freire, que não é passivo, mas o esperançar que te faz falar: “opa, não vou ficar aqui somente esperando, não, também posso fazer algo para que junto com a esperança a gente possa acolher o esperançar, do verbo esperançar”, sabe? Então (inaudível) esse gesto já pra mim era… E quando chovesse, e quando, digamos, sentíamos o trabalho, o fruto do nosso esforço, era a partilha, colheita. Hoje era no meu campo, amanhã é no terreno dela. O mutirão, sentido de mutirão. E Ubuntu é isso. A filosofia Ubuntu é isso: eu sou porque nós somos. Não é o código cartesiano, não, “eu sou, logo existo”. Não, não, não! Eu sou porque nós somos. Não é a lógica cartesiana que parte do indivíduo para o todo, mas parte do todo como indivíduo. Isso é…
P/1- Essa lógica que você falou, do todo para o indivíduo… Você viu alguma cena assim? Tipo, se você vivenciava essas coisas.
R- Justamente. Eu deixava de hoje fazer uma colheita só pra mim, e demorava muito mais se fosse sozinho, do que deixar hoje, agendar pra amanhã, ajudar o vizinho e os demais amigos no seu campo hoje, né? Terminar e amanhã falar, “amanhã vai ser no meu”. E juntos, em uma, duas horas, já tínhamos feito a colheita toda. Mas se for eu sozinho passaria um mês (risos), sabe? Você vê o quanto nesses pequenos gestos a coletividade faz parte. Igual, eu via isso porque no colégio, na escola, o professor tinha direito e obrigação de nos corrigir mesmo com palmatória (inaudível), a gente falava, às vezes com vara. E chegasse em casa: “o professor me bateu”, “por quê?”, “ah, porque eu baguncei a aula”. Chegava em casa e levava mais porrada (risos). Mas ao mesmo tempo dizemos que na aldeia é o seguinte, a minha família não é a única responsável pela minha educação, por forjar um indivíduo, uma pessoa. Toda família alargada, toda a ideia, todo o quimbo, é responsável pela educação do Assis, como é responsável pela educação do Jonas, pela educação da Ana, sabe? Isso a gente sentia mesmo, sentia o peso da coletividade, que às vezes era interessante, outras vezes não, sabe? Outras vezes não… Porque você pode pode, digamos, cometer ou escolher algo errado porque a maioria escolheu, ou porque a maioria não teve um discernimento justo, coerente para trazer a luz, a verdade desse fato. Então a coletividade, ela também tem que ser muito equilibrada, né? Ou seja, é uma baita responsa, é uma baita responsa… Porque são olhos que te condenam, como são mãos que te salvam, e bocas que te amaldiçoam.
P/1- Você disse que cresceu já na igreja, fazendo catequese. Contar um pouco como foi sua vivência…
R- A vivência da fé?
P/1- Aham.
R- De fato, eu nasci… Cabo Verde nasceu do colonialismo, né? E a igreja, o cristianismo chegou juntamente com os colonos, no mesmo barco (risos). Essa é a realidade, né não? No mesmo barco! Então crescemos no Cabo Verde tanto com o protestantismo, quanto o catolicismo. Só que o catolicismo, como aqui, ainda é a maioria. Então éramos, tipo, que vivêssemos a cristandade, ou seja, todo mundo nascia cristão e morria cristão. E no meu caso foi, eu não me tornei, eu nasci, né? Porque depois fui me tornar a luz das minhas reflexões, você se aderindo… Então, catequese pra mim não era novidade, missa não era novidade, encontro de grupos não era novidade. Como passeios, quermesses, que era uma coisa interessante, não era novidade, porque eu nasci nisso. Nasci, nasci nisso, certo?
P/1- Mas o que você achava desse ambiente?
R- Muito chato, mano! O bagulho era muito pesado, o bagulho era uma segunda escola, se sentia coagido. Por quê? Porque catequese é pergunta e resposta, é uma coisa que tinha que ir todo domingo. Ao invés de estar na praia… eu via os meus amigos que não estavam na catequese indo pra praia, e eu com raiva de ter que ir pra catequese, véi (risos)! Chegando lá tem que responder os bagulho, tem que ficar assim, muito sério. O bagulho era chato, mano. Chato, chato, chato! Mas tinha que fazer… Por quê? Os sacramentos, os rituais acabavam tornando-se como ritos de passagem. E até a minha idade funcionou, certo? Você nascia, era batizado. E no batizado: festa, as pessoas se reúnem. Cê fazia a primeira comunhão, primeira eucaristia, que era uma festa, né, “meu filho ta tomando a hóstia pela primeira vez”, isso com doze… Aí com treze e quatorze vem a crisma, a confirmação, já tá mais jovem: é festa, né? Depois alguns seguiam pro caminho do casamento, matrimônio, parava, se organizava: festa. E alguns partiam, ou seja, morriam. Ali também é um ritual de passagem, o velório. Então isso ritmava o cotidiano, não somente o meu, mas o cotidiano do povo cabo verdiano.
P/1- Era só a igreja que tinha ou tinha religiões de Cabo Verde?
R- Tinha, tinha também. Mas que foi apagado, justamente. Sobrou resquícios pouquíssimos, diferentes, por exemplo da Guiné-Bissau, Moçambique, Angola, que até hoje guardam. Mas no Cabo Verde, não… Cabo Verde, não, sabe? O cristianismo quase se tornou… Roubou a alma do povo, vai? Roubou, trouxe coisas boas, mas ao longo do tempo a gente conheceu um Cristo, um cristianismo europeizado, com uma roupagem branca. Não da Palestina, não de Israel. Agora que estamos falando de um Cristo que nasceu na periferia de Nazaré, em Israel, que quebrou, que caminhou pelas terras do Egito. Depois voltou, voltou para a Palestina, para Israel, reuniu um grupo de maloqueiros, certo? Aí mexeu com o Estado e morreu como um preso político. Jesus morreu como um preso político. Mas eu só vim ter essa visão depois, mas de criança, adolescente, de jovem, era esse Jesus loiro, de cabelo liso, com os traços europeus.
P/1- Como que você começou a fazer esses questionamentos? Que aquilo deixou de ser chato e também começou a te atrair?
R- Cara, acho que isso só veio a ser depois.
P/1- Mais tarde?
R- Muito mais tarde… Comecei a ver melhor as coisas e a sentir que é diferente quando saí…
P/1- Saiu de Cabo Verde?
R- Não quando sai de Cabo Verde, porque até Portugal para mim não foi um choque. Cultura portuguesa a gente vivia desde que tem a realidade, infelizmente. Língua, pá… Mas lá pela primeira vez você sente que você é estrangeiro, é outro, né? Mas eu comecei a ter uma visão diferente de Deus, da humanidade, do cristianismo, quando pisei na Amazônia em 2006 para o meu estágio. Só pra te falar que foi depois, que a minha visão, conhecer a teologia da libertação, ali a minha visão mudou, sabe?
P/1- Nesse momento eu queria perguntar, em Cabo Verde, qual foi a pessoa que você viu que tinha mais fé?
R- Eu não posso te falar que tinha mais fé, mas eu posso falar que viviam-se através de gestos… Eu acreditava nisso assim, falava “mano, esses caras são os caras”, que tem uma fonte, não sei de onde jorra, mas tem algo aí que os impulsiona, que sempre nos faz pensar: vale a pena, vale a pena! Como eu te falei, pelo simples fato de ver a maioria do povo cabo verdiano no mês de julho plantar sem saber se vai chover. Pensa comigo (risos)... Pensa comigo! É algo, sabe, que te impulsiona de tal forma que você não vai pensar em não colher. Você não vai pensar em não colher! O não colher vai ser uma consequência da falta da chuva, mas não da falta de plantar. Tá ligado? Isso nos leva a outro patamar. Tem muitos crentes, pessoas de fé que fazem assim: “ai, eu vou fazer gestos bons pra mim poder ir pro céu”. Acaba sendo como um trampolim, um passaporte, né? Faz aqui pensando lá. Mas eu falo diferente: eu faço aqui, porque eu sei que o céu está aqui, como o inferno também está aqui. Não quero passaporte. Quero fazer! E o deixar de fazer pra mim é omissão. Omissão é falta de agir. Se você for ver, você peca por ação, como por omissão. Você pode agir, como não agir. Pode falar, como não se permitir a falar. Luther King fala: “o que mais me incomoda é o silêncio dos bons” (risos). O que mais me incomoda é o silêncio dos bons, e não o palavreado dos maus… O silêncio dos bons também me incomoda muito.
P/1- Como é que estava a sua vida? Você então fazia catequese, tinha essa família que morava perto do mar. E o que mais da escola? Como é que foi sua vivência na escola?
R- Legal porque a gente ia pra escola de uniforme, a gente ficava todo feliz de uniforme, todo uniformizado… No início, a escola primária, a gente fazia, a gente começou numas casinhas simples, nem era um colégio, eram casinhas simples que o Estado alugava. Tinha poucas carteiras, a gente compartilhava as carteiras. Tem vez que não tinha giz pra escrever na lousa e tal… Mas a gente via a vontade de aprender. Cê via professores que são maestros e pais. Além de pais, amigos… Os meus melhores amigos, os meus melhores professores foram da primária, e até hoje temos uma boa relação. Eu não via somente na imagem dele o maestro, mas um pai. Eu não ia desrespeitar o meu pai, então automaticamente não vou desrespeitar o professor. Porque ele era maestro, ele é um pai, e está lá pra ensinar. Então é uma coisa louca, a gente venerava… Não venerava, mas respeitava muito os nossos maestros e maestras, sabe? São as pessoas que nos aprenderam o beabá da gramática, da literatura, da poesia - claro, muito europeias, muito europeizadas - e o gosto à leitura e sobretudo ao conhecimento. Isso você vê, doze… De sete foi subindo, subindo, subindo, até o colegial. Mas na primária era isso, tínhamos lanche também, todo mundo juntava pra comer o lanche, a gente levava uma vitamina pra casa. Porque estamos falando num contexto de um país que era governado também pela esquerda, né? PA e CV, Partido Africano Língua Oficial, Partido Africano, para a Independência de Cabo Verde e Guiné-Bissau, liderado pelo Amílcar Cabral. Amílcar Cabral chegou a ser considerado como um Che Guevara da África, então foi um cara muito legal. E então cresci nesse contexto de socialismo, onde a gente partilhava, partilhava assim as coisas. E o Estado mesmo, né? O Estado também. Então a gente tinha acesso, a gente sentia assim, eu sentia.
P/1- Você tem alguma imagem, algum momento de partilha que te tocou?
R- Cara, eu tenho várias, várias, várias imagens. Mas uma que até hoje carrego é a solidariedade que você vive no velório, no ritual de velório. Olha só, se eu falecer, vou ser enterrado, certo? Mas durante sete dias acontece o que chamamos de esteira, esteira é o momento de vivenciar o luto. Ou seja, acabo adotando um vestuário melancólico, a gente se veste de preto. E durante sete dias toda a família tá lá de manhã, à noite, sentada na sala, para vir receber condolências. Condolências da aldeia, condolências da vila, condolência da cidade. Porém durante esses sete dias quem chegar vai comer, vai almoçar, vai jantar, mas cada pessoa que vem me visitar, que vem prestar condolência, traz um quilo de arroz, traz um quilo de café, traz um quilo de feijão, traz uma carne; isso durante sete dias. Então todo mundo que vier traz algo para poder partilhar durante esses sete dias. E isso cara é uma coisa que se repete até hoje, esse gesto de eu ir te visitar num momento triste e levar algo. Tinha famílias que não tinham, você vê que não tinham condições, mas levava algo. Porque o pensamento é isso: se eu não levar, e o outro não levar, e o outro não levar, pensar naquele que uns vão levar, pode faltar. Agora pra não faltar, vou levar isso seriamente, né? Vou partilhar seriamente e se ver não faltará, porque foram milagres e multiplicação de partilha, como num piquenique, num churrasco. Você fala: “entro com a minha casa, com um pouco de carne, e bebida cada um traz”. Quando muitos não trazem, vai faltar, mas quando todos convidados, todos convivas trazerem algo de beber, cê vai ver que a festa não tem hora pra acabar (risos). Não tem hora pra acabar, né? O meu avô conta que a galera fez isso por quê? Diz que uma vez a aldeia foi convidada para uma festa, era a festa de um dos anciãos da aldeia. Aí colocaram no centro da aldeia um pote bem grande, bem gigante, um barril assim, para que os (inaudível) pudessem compartilhar o vinho deles da colheita. Todos vieram pra festa, mas todos pensaram como um cara, ao invés de colocar vinho, ele veio e colocou água, e todos tiveram essa ideia. Porque como vai ter vinho já, eu vou lá com água, misturo e já era. E todos tiveram a mesma ideia, ao invés de vinho, água. No momento de celebrar a vida, de brindar a colheita, quando foram ver, ao invés de vinho, estava a água (risos). Porque não pensaram na partilha, pensaram em levar vantagem, né? Todos guardaram seu vinho em casa. Mas nesse dia a aldeia passou vergonha, que se revelou que a partilha não tava funcionando.
P/1- Esse era um ritual de quê? Qual que era o evento?
R- Do velório que eu tô falando. Então, por que o doar, sabe? Então isso é muito doido. Porque que cada um traz algo, o pouco que tem em casa? Para isso, para não faltar e para a família viver o luto de uma forma tranquila, sem se preocupar em comprar algo para partilhar e pra oferecer às pessoas que vieram e que vem prestar condolência. Cara, isso nunca vi em nenhuma parte mais do mundo. Olha que eu já andei muito, viu? De verdade (inaudível). Isso, exato! Ainda mais, pior pra mim, eu fico frustrado porque aqui eu vejo que a galera tem - alguns, né? - outra forma ali de lidar com a morte, certo? É sobretudo aqui dentro, não sei se banalizou, ou então que eu vejo casos… Por exemplo, pra pessoa, o vizinho perdeu alguém, mas a outra vizinha continua com a música alta e de boa, né? Eu vou num velório, enterro, volto e vou pra farra, já faço a festa. E pra mim, não. Pra mim quando a gente pede alguém, cara, é um momento de recolhimento. Não vejo isso em Cabo Verde: você enterra a mãe e a tarde vai pra balada. Não estou falando que é errado, mas o ato de perder mesmo te obriga a se recolher, a fazer a sua introspecção, da pessoa que você conheceu, da pessoa que você perdeu, dos momentos bons, dos momentos menos bons. Você acaba se recolhendo mesmo, né não?
P/1- Perguntei um momento de solidariedade e você jogou pro momento da morte. Como é que foi seus primeiros momentos com a morte?
R- O primeiro impacto foi quando perdi meu tio e padrinho em noventa e… sete? É. Já tinha mais ou menos treze, catorze… Não, uns doze por aí, mais ou menos. Cara, foi a primeira vez que eu vi toda a família assim reunida, todo mundo chorando. Chorando mesmo! Nossa… um vinha, chorava, mas por quê? A gente não via o corpo dele. Ele morreu, faleceu longe, em Lisboa e não puderam fazer o translado do corpo, ficou lá. A família tava chorando mas com o corpo ausente. Aí a dor era maior, a dor era maior, certo? Isso eu só vim também, eu tô fazendo zigue-zague, mas sou vim também ler isso, por quê? Quando vejo mães aqui que perdem os seus filhos e não conseguem enterrar. Muitas falam: “eu só queria enterrar o meu filho, só queria ver o meu filho pela única e última vez”. Então voltando para lá, quando vi todo mundo chorando daquela forma assim desesperada, bateu assim: porra, perdi alguém de interessante. Porque eu conheci meu padrinho, porém não estou vendo ele aqui, nem pra dar tchau, certo? Pra ver se é verdade, para conferir se de fato é o corpo dele. E a noite, por exemplo, quando a gente ia dormir, falava: “ não, o espírito do meu tio vai vir”, e a gente criança ficava apavorado assim, né? “Nossa, não vou conseguir dormir”, e os meus primos também. Esse foi um dos - que eu guardo isso, né? - momentos que eu falei: “cara, morrer é interesse”. Todos nós vamos morrer, mas morrer longe da sua terra é muito mais dolorido ainda. Eu penso muito nisso porque eu estou aqui. Eu posso, eu e vocês aqui, sobretudo eu, posso virar a esquina aqui e ser morto, simplesmente por ser um jovem preto. Não vai ter condições de me transladar pra lá, mas imagino a minha mãe chorar meu corpo, chorar minha morte, mas sem o corpo presente. Agora imagina quando Mães de Maio choram os seus, quando as mães do Rio perderam os seus… Imagina pessoas nos desastres naturais em Petrópolis, em Maceió, em Pernambuco. Quantas pessoas não viveram o luto sem ver os corpos, mesmo que sejam os corpos? Mas simplesmente choraram, como a minha família chorou a morte do meu tio. Só que chorou muito mais porque não estava vendo, não estava sendo testemunha ocular.
P/1- Aprofundando ainda dentro da esfera da morte. Você já lidou de perto, já vivenciou suicídio?
R- Suicídio, sim. É. Infelizmente, infelizmente sim. É uma das coisas que sempre me instigou. Como é que a pessoa pra se livrar, não sei, de algo dolorido, chega ao ponto de falar: “eu acho melhor fazer minha passagem forçadamente por mim mesmo, do que esperar uma passagem natural e carregar isso pro resto da vida e não ser feliz”. Talvez seja essa fita… Já vi gente que nasceu pendurada, que acordou pendurada. Já vi gente que se jogou do precipício, já vi gente que se jogou no mar, já vi gente que…
P/1- Você já viu?
R- Sim, sim, sim. E nenhum desses corpos foram reanimados, né? Ou seja, sinal que vidas foram ceifadas. A Igreja Católica fala que suicídio é um pecado, mas eu falo, talvez porque a gente vê também pecado em tudo e em nada. A gente acaba dizendo que tudo é pecado, tudo isso pode, isso não pode. E suicídio pra nós é um pecado. Você ser pecador, a pessoa não tem direito a um velório, a uma missa na igreja. No momento que a pessoa mais precisa, o que ditar é a moral, é a regra. Esquecendo da pessoa que precisa de um braço amigo. Ví isso muitas vezes, né? Tive que debater: “não, vai ter missa ou não?”. Porque a pessoa se suicidou, e quando se suicida não entra no céu. Olha só a imagem: não entra no céu! Vai ter que ficar no limbo, vai ter que conversar primeiro com São Pedro pra dizer por que que tirou a vida. É uns bagulho doido, né? Mas isso também foi um tiro no pé da igreja. Por quê? De uns tempos pra cá muitos padres começaram a se suicidar. Olha só! Homens que se dedicaram totalmente a sua vida talvez à religião, a sua fé, mas que chega um ponto… Homens também que falaram, que se recusaram de fazer muitas missas por conta do suicídio. São esses próprios homens também que pegam uma arma e “pah”. E que os outros padres vão se reunir pra fazer missa ou não, já que foi suicídio. Isso acaba…
P/1- Você vivenciou essa situação?
R- Já, já! Não presenciei assim, mas já acompanhamos casos. E foi aí que começou a tirar um pouco essa ideia. Mas uma das coisas que temos que trabalhar muito nisso com relação a minha igreja, porque ela moralizou tudo. Isso é um estrago terrível, que vai ter gerações pra poder desconstruir tudo isso, sabe?
P/1- Agora, essas cenas que você viu, você sentiu que elas testaram a sua fé?
R- Ali eu não sei, não sei te dizer. Ou então teria vários desfechos. O cara é tão espiritual, o cara é tão resolvido consigo mesmo que fala: “eu não pedi pra nascer”. Mas uma coisa eu sei: quando nasce um dia é morto, só não sei quando, não sei onde, não sei como. Mas eu posso colocar fim a essa existência, que não pedi pra vir, mas eu posso. Esse poder pode ser interessante. Pode ser interessante no sentido de falar assim, eu acredito nisso. Eu posso tirar a minha vida e acabar com o meu sofrimento. Acredito, por isso que eu faço. Como também pode acontecer o contrário: como eu não acredito nisso, mas eu tô cheio disso. O entorno me colocou isso. Como não acredito também, eu vou fazer simplesmente pra tirar isso de mim. Pra mim poder ir em paz, pra mim poder, digamos, construir um mundo com as coisas que eu acredito, com as coisas que eu falo que vale a pena, e não com coisas que foram impostas. Então, meu, pode ser uma renascença, pode ser uma passagem, pode ser uma renovação, né? Como também pode ser uma fuga, como pode ser uma forma de dizer: “basta! Basta, já deu para mim”. Então aí não sei…
P/1- Voltando pra sua vida, lá na sua adolescência. Quando cê foi ficando adolescente, que que cê fazia ali?
R- Cara, adolescência não tem muita coisa pra fazer a não ser de setembro até junho… Eu tô vendo o calendário escolar de Cabo Verde, que é diferente. Porque aqui começa, a gente começa em fevereiro e vai até junho, certo? O círculo, né? Mas nós, a gente começa em outubro e vai até junho lá. Outubro, novembro… Já embolei tudinho, cara! Nossa, isso ritmava a minha vida e agora estou esquecendo do calendário. Então esse tempo é tempo de escola. A gente estudava, dedicava mesmo. A gente tinha muito reforço, reforço escolar. Quem era bom de matemática, a gente se reunia em grupos tirando dúvidas, sabatina, né? Tabuadas, multiplicação, divisão, sabe? De competição mesmo, isso também fez com que a gente aprendesse bastante coisa, viu? A não ter, a saber ganhar e perder às vezes (risos). Ter humildade de falar, “ai, não sei”, então voltar pra casa virar a noite estudando e voltar na roda sabendo. Então esse tempo era de estudar mesmo, estudar… Mas tinha outro tempo, um período, que era justamente de férias, para a casa dos meus avós, pra ajudar a plantar, ajudar a capinar, a pegar água da bica, pegar água do poço. A gente ajudava a pastar os animais, a olhar os animais, tudo em grupo também. Cara, então tinha um tempinho, uns meses, estudando e outros meses tendo experiência campesina, experiência do campo, da terra, da aldeia. Porque eu cresci na cidade, mas os meus pais num sítio, os meus avós, os meus quatro avós, no sítio. Então isso fazia com que desde a tenra idade a gente sentia já campo e cidade. Calmaria e correria. Qual que é melhor? Não tem melhor. Qual que é pior? Não tem o pior. Mas são experiências que a gente vai ter nos espaços, no tempo e espaço. Uns meses na cidade, outros meses menos, porém no campo. E ali vidas foram forjadas, personalidades foram forjadas. E digo isso porque tanto os meus irmãos, todos nós íamos, não era apenas eu, e lá partilhávamos vivências que nos fizeram persistir, que nos fizeram caminhar e ter uma visão do mundo diferente até hoje. Essas duas fases: um tempo na escola, brincando, estudando, e um tempo com os avós no campo. Não quer dizer que a gente não brincava no campo também, tinha muita coisa legal, muitas brincadeiras. Inclusive (inaudível) eu aprendi lá assim. Então foi uma adolescência…
P/1- Quer contar um pouco das brincadeiras?
R- Ah, meu… Tinha brincadeiras como - aqui vocês falam tombo, tomba lata - a gente pegava um monte de latinha assim e jogava uma bola assim, espalhava a latinha. Quem conseguisse juntar latinhas sem levar uma bolada, ganhava. Então cê se esquivava assim pra poder justamente colocar as latinhas. E lá era por times, não era solo. Um time ficava ciente pra não deixar o outro time montar as canequinhas. E outro time fazia tudo para que o outro montasse (risos). Era bem legal! Dava muita briga também às vezes. A gente tinha também jogos como, a gente colocava na mão (cantando), assim em crioulo, né? Mas isso tudo jogando pedras assim pro ar. Se fazer assim e não segurar essa pedra, ia começar tudo de novo. Nossa, várias coisas! E esse jogo nos despertava muito a ter, digamos, insights, sabe? A velocidade pra poder jogar pedra, e fazer assim e segurar, como também o equilíbrio de segurar a pedra assim. Mano, bagulho doido assim, doido, doido... Mas de criança a gente fazia tranquilamente, né? Aí tinha também brincadeira como essa que eu tenho lá em casa, de cavar oito buracos, pegar umas pedrinhas e improvisar um tabuleiro onde a gente jogava (inaudível). Oito buracos, quatro pedrinhas pro buraco, e a gente jogava o dia todo. E ali rolava matemática, você tinha que contar pra poder cair na casa certa, pra poder contar pro outro não roubar sua pedra. Você acaba já, digamos, se inscrevendo na escola da aritmética, na escola da tática, de saber defender, de saber cobrar… Uma das brincadeiras também que a gente fazia muito era transformar latas em carros, em brinquedos, vai? Pra falar a verdade, brinquedos. Você pega uma lata de sardinha, lata de sardinha virava a roda. Ou lata de conserva virava sabe… Meu, eram carros lindos! Então pegava a (inaudível) e transformava em carro, em Jipe. Nada podia vir na nossa mão, virava coisas pra brincar, virava um objeto. virava coisa útil que nos trazia alegria. Eu não cresci comprando brinquedos, eu cresci fabricando os meu brinquedos (risos). Cresci fabricando os meus brinquedos! Os meus pais não vão me deixar mentir, nem meus avós. Eles incentivavam. A gente fabricava os nossos próprios brinquedos, carro, moto, bike, tudo de materiais descartáveis. Como o menino que inventou o vento, construiu aquele moinho, mano. Então a coisa é louca! A minha geração, oitenta e três, brincou com os seus próprios brinquedos, brinquedos fabricados por eles mesmo. E a gente dava valor a isso… Geração essa agora que graças a Deus hoje a condição de posse é diferente, não to falando que tão perdendo ou tão ganhando, mas é outra circunstância. Porém, eu posso afirmar e sem receio de errar: eu, Assis, brinquei com os brinquedos que eu mesmo e com os demais fabricava.
P/1- Desses brinquedos que você fabricou, teve algum que foi seu xodó?
R- Cara, foi um Pajero, sabe? Um Jeep, que a gente fez de arame, tipo cobre, né? Brilhava! A gente passou uma palha de aço assim nos arames. Cara, o bagulho brilhava! Parecia um Jeep que veio da China, fabricado. E bom que a gente fez, o meu irmão passou a tinta, um outro vizinho meu colocou, armou o Jeep. Cara, foi um trabalho assim de troca de saberes que acabaram produzindo um protótipo. De algo descartável se tornou um objeto prazeroso, que prova que podemos fazer algo e muito mais. Podemos fazer algo e muito mais… Então esse Jeep, esse Pajero, mano, sempre que vinha os amigos: “oh! Fizemos juntos, cada um entrou com o negócio e fez!”. E cara, se eu não me engano ficou por muitos anos lá em casa, por muitos anos… Agora não me lembro se continuar lá, porque a gente reformou a casa, e eu deixei Cabo Verde em 2001, certo? E nunca mais vi e nunca mais ninguém parou pra me provocar. O meu brinquedo de infância não sei se tá lá ou não, é uma coisa que eu vou voltar pra casa pensando. Eu vou perguntar pra minha mãe (risos. Te juro!
P/1- Essa reflexão que você fez de sempre ver as coisas sagradas aqui na terra, né?
R- Sim.
P/1 Essa coisa que você falou de você construir os seus próprios brinquedos e não comprar. O que seria isso dentro desse mundo sagrado, de todas essas instruções, esse ato das crianças estarem fabricando brinquedo. Seria o quê?
R- Cara, talvez eu ia fazer uma analogia com a seguinte coisa; Cê tem várias ferramentas disponíveis para que você não somente consuma o que os outros dizem da tua fé, para que você não viva somente repetindo o que os outros te vendem da tua fé. Então você tem ferramentas a tua volta que te faz pensar assim: eu não vou simplesmente receber isso de uma forma passiva, mas eu vou, com as ferramentas que eu tenho a minha disposição, lapidar o que eu estou escutando, lapidar o que eu estou lendo, lapidar aquilo que os outros me dizem, para forjar uma nova compreensão, uma nova compreensão do meu estar e ser no mundo. Nas minhas questões sobre a morte, na minha forma de me relacionar com os outros, na minha forma de me posicionar enquanto ser humano, enquanto pessoa, enquanto Assis, enquanto preto, enquanto homem, enquanto religioso. Será que eu vou ficar somente naquilo que os outros me transmitiram, me passaram? Ou será que eu pego tudo isso que me foram transmitido e também trazer um pouco do meu saber construir brinquedo, do saber construir, uma compreensão do mundo e me posicionar no meio e com as ferramentas que eu tenho a minha disponibilidade, a minha mão? Então eu vejo claramente, eu posso fazer essa analogia de quando eu brincava com brinquedos produzidos, fabricados por mim mesmo. Como eu, Assis, hoje, de trinta e oito anos, e tudo aquilo que eu já vivi, de tudo aquilo que já foi me transmitido, pego tudo isso e fabrico, concebo na prática, a minha forma de viver a fé, minha forma de se relacionar com Deus, a minha forma de se relacionar com os outros e a minha forma de se posicionar nesse palco da existência, não? Consigo fazer essa analogia.
P/1- E nessa época, a sua primeira comunhão foi algo marcante pra você?
R- Foi pela positiva e pela negativa (risos). Pela positiva, eu comecei a catequese muito cedo, e já com sete anos já podia fazer a primeira comunhão, com sete anos, certo? Mas a minha catequista… Eu fiz a prova, eu passei. Porém a minha catequista não queria que eu fizesse a primeira comunhão com essa turma porque eram todos já mais velhos do que eu. Queria que eu esperasse mais um ano pra pegar a turma que tinha quase a mesma idade. Isso não me deixou feliz. Eu queria fazer a primeira comunhão já! Porque a primeira comunhão é o momento que quando você faz e vai pra igreja, também vai fazer a fila pra receber o corpo de Jesus, como todo mundo de idade, né? Então o fato é: a primeira comunhão abria essa porta pra você, de serviço na igreja. Você ia lá na frente, né? Eu não queria que esse prazer fosse protelado (risos), queria que fosse juntamente com a turma, mesmo que seja mais velha. Mas a minha mãe acabou não deixando, e a catequista também. Então eu tive que esperar mais um ano pra poder fazer a primeira comunhão e fazer a fila com os meus que já tinha feito catequese comigo, mas que por conta de ser um ano mais velho puderam estar. E eu não, né? Então a primeira comunhão foi, pô mano, veio esse desconcerto interior. Querer fazer e não poder fazer. Mas uma coisa também eu aprendi: o querer não é poder. Você pode fazer tudo que quer, que queira fazer, mas às vezes não deve (risos). Você pode, mas tem vez que melhor não, né? Esses episódios me fazem interpretar tudo isso: o dever, o poder, o querer e não poder fazer, sabe? Devido a essas pequenas coisinhas… Aí a minha primeira comunhão foi essa, mano.
P/1- E nessa fase, o que você queria fazer da vida? Cê já pensava nisso?
R- Cara, eu queria ser jornalista ou então advogado. Advogado agora vai ser (risos). Jornalista não, mas ao meu tempo continuo gostando de escrever, continuo gostando de fazer artigos. Eu tenho um diário também, que todo dia conta o meu cotidiano. Adotei esse diário simplesmente porque como não cresci com a minha família, como deixei a casa muito cedo… Como deixei a casa com dezessete, dezesseis anos, nunca mais pude passar Natal com a minha família, nunca mais… Eu não vi a minha irmã crescer, dar o seu primeiro beijo. Não vi… Eu não acompanhei muita coisa, porque o fato de estar nesses vinte e pouco anos fora do meu país…
P/1- Você saiu com dezesseis, dezessete anos?
R- Exato. Eu volto de férias, de três em três anos. Mas você vai ficar um mês, dois meses, e não é a mesma coisa mais, né? Cê acaba, digamos, perdendo bastante coisas da sua família. Daí eu falei, eu também, pra eles saber um pouco de mim, nas minhas andanças, vou deixar um diário. Se um dia eu morrer, quando eu morrer, a minha mãe vai dizer: hoje o filho dela estava na cooperativa, encontrou fulana, encontrou fulano; hoje, 23 de junho de 2022, o Assis deu uma entrevista com o Jonas, com a Ana, ali na igreja; ele foi pro curso no Haiti pra levar umas tendas, uma barraca… O dia foi normal, agradeço ao universo, ponto! A minha família daqui há uns anos quando não estiver fisicamente, tô me preparando para que a farda do corpo, que o caderno seja um sacramento, um sinal. Quando vê o caderno, imagine o corpo presente, porque vai ter histórias abertas assim… Vai ter histórias!
P/1- E como foi que você começou a fazer os seus diários?
R- Justamente quando passei um ano e meio na Amazônia. Até então em Lisboa, não tive essa percepção.
P/1- Então vamos chegar nessa parte. Quando você decide ir embora de Cabo Verde?
R- Quando terminei o colegial. Tinha dezessete, dezesseis, dezessete. Aí, nessa altura já ela estava já com intuito de entrar pro seminário, certo? Mas foi um processo interessante porque eu sempre fui assim - não estou me gabando - mas uma pessoa muito desenrolada, um líder no colégio, em grupo de amigos, fazia parte do Grêmio da escola… Então a gente ia mesmo, tinha noção da coletividade, do se juntar pra mudar o micro, o chão onde a gente pisava. Então, levei isso também pra igreja, né? A gente movia os jovens, a gente se organizava pra fazer atividades, pra visitar e tal. Aí o padre falou, mano, “cê daria um bom padre” (risos)... “Cê daria um bom padre missionário. Ó, a minha congregação é essa, sou missionário” - ele é português e tá há mais de quarenta anos no Cabo Verde, ele casou os meus avós e os meus meus pais, batizou os meus pais, me batizou; ou seja, é um cara que está lá. “Mano, você daria um bom missionário. E, digamos, a característica da minha ordem religiosa, da minha família missionária, você sempre…” - ele falando, né - “você sempre trabalha num país outro, num país estrangeiro. Por um lado é legal porque você vai acabar conhecendo o mundo, ganhando outras famílias. Por outro lado você vai perder coisas boas também da sua família de origem, porque você vai ter que deixar a casa, o lar, o país, o continente, pra poder tirar sandálias e entrar na cultura dos outros”. Cara eu fiquei com isso assim, indo, indo… Comecei a frequentar os encontros vocacionais, que a gente fala, pra ver como é que era e tal. O tempo de namoro assim, com a ordem religiosa. Aí cheguei em casa, falei: “mãe, acho que eu vou pro seminário”. A minha mãe dava risada, porque eu também, eu pirraçava no bar, eu era… Já namorava, já pegava (risos). Então no bairro ninguém acreditou que eu ia pro seminário, e muito mais que hoje seria padre faz uns dez anos, muito mais! A galera não acreditava, só falava assim, “ah, o Assis está na fase de se descobrir, se reencontrar, mas no seminário, com a regra que tem lá, ele não fica nem um dia”. A minha mãe dando risada, mano. “Aí meu filho, só faltava essa agora” (risos). E na altura, o meu pai tava chegando de Lisboa, porque foi estudar, ganhou uma bolsa, se formou contador em Lisboa, e voltou. Quando ele voltou, eu já tava quase saindo pra Portugal. Até as jaquetas que ele usava lá, eu levei de volta. Tem uma história interessante também essa, né? Ele acabou também me dando umas dicas sobre Lisboa, como pegar ônibus, pegar o trem, o comboio - como eles falam em Lisboa - como pegar o metrô, sabe? Já no Cabo Verde, meu pai que morou lá quatro anos, já havia me antecipado algumas coisas. E meu vô também, que me contava as histórias de Lisboa, tudo em Lisboa - meu vô lado paterno, que eu falei. Meu, acabei entrando pro seminário. Fiquei lá um ano, depois já em 2002, e fui para Portugal pra fazer filosofia na PUC de Portugal. Morava em São Domingo de Rana, num seminário lá, só que a gente estudava na PUC. Mas, ou seja, até eu ir, até eu deixar a casa, ninguém estava acreditando mesmo que eu ia entrar pro seminário e que eu ia permanecer no seminário. Fiquei três anos em Lisboa. Portugal tem muitos africanos em língua oficial portuguesa, porque fomos colonizados, cinco países foram colonizados por Portugal. Você tem Cabo Verde, Guiné Bissau, São Tomé e Príncipe, Angola e Moçambique, países que falam português, então acabam estudando… A maioria acaba escolhendo Portugal como destino pra estudar, pra viver, pra trabalhar, que seja. Tranquilo! Portugal vivi assim, sempre me senti um estrangeiro, sim.
P/1- Como foi o seu primeiro dia em Portugal? Chegar em Portugal.
R- Oh louco, cara! Um dos primeiros choques assim que eu tive foi quando aterramos em Lisboa, pegamos o carro para vir para o seminário em Carcavelos. Era carro demais, cara! Cidade grande demais, né? Tudo muito movimentado, tudo muito agitado! Cabo Verde, ainda mais nossa cidade, era tudo pacato… Vi ambulância uma ou outra vez. Sirene de polícia? Não… Muito mais pessoas andando a pé ou de bike do que você vê, marginais, carro passando, tah tah tah tah tah! Cara, eu falei: “caraca, que cidade doida!”. Isso em Lisboa, foi o primeiro impacto assim, de tudo grande, um monte de prédios… Aí eu falei: “mano, não estou mais na minha pequena, no meu pequeno arquipélago, acho que atravessei o Atlântico, acho que atravessei aquela linha de fronteira que a gente via”. Quando você é do litoral, é da praia, é do mar, você vê a linha do horizonte, isso tudo no pôr do sol, e sempre você vai falar: “será que ali é o fim ou tem algo além dessa linha”. E quem é das ilhas tem sempre isso na cabeça: “cara, acho que tem algo a mais, e se tiver algo a mais um dia vou ser testemunha ocular”. Nessa hora falei: “já atravessei essa linha do horizonte, agora eu tô em outra cultura”, certo? Chegando em casa, meu - não é que lá no Cabo Verde não tinha, mas o nosso sistema era diferente - cheguei em casa, pra tomar banho o chuveiro era um chuveiro no meio para água quente e água fria, você tinha que regular o negócio. Rapaz, eu coloquei mais pra quente assim e não dosei o chuveiro, né? Me queimei quase tudinho com a água quente (risos)! Porque pra nós tinha o verde… Tinha dois chuveiros, um com vermelho é água quente, outro com azul a água é fria, aí você fazia a dosagem. Mas como esse chuveiro era um chuveiro assim, que vinha pro meio, não caía nem quente, nem frio… Morno, morna, água morna, você descia um pouco, já havia um pouco a água quente. Coisa simples, sabe? Mas se eu tivesse um reflexo num gesto de mexer um pouco? Não, eu fui abrir só de um lado, e quando abri saiu água quente (inaudível). Me queimei, né (risos)? Foi só depois de ter queimado um pouco disse, “vou ter que agora me virar pra ver, se tem quente demais é porque também tem fria”. Prefiro tomar banho na água fria do que me queimar (risos)! Aí eu fui mexendo, fui mexendo, fui mexendo… Encontrei a dosagem certa, né? Sai do banho, fui conta ao meu amigo, que chegamos juntos, e aconteceu a mesma coisa com ele, a mesma coisa aconteceu com ele tomando banho. Fomos jantar e contamos isso na mesa, todo mundo dando risada: “mas vocês não sabem que é normal?”. Não tem normal, cara! Espero um dia você ir pro Cabo Verde e te falar: “ó, come isso”. Tem a fruta não dá pra ver, mas tem que descascar pra comer. Mas já vi muitos gringos pegar e mastigar, e a gente dando risada (risos). A gente dando risada! Então não vem falar que é normal... Não! Aqui é comum, mas pra mim não é normal. Doravante vai ser comum: abre o chuveiro desse lado e não do outro, pra mim não me queimar, sabe? Coisas bestas assim, mas que te marcam assim na vida…
P/1- E de questão racial? Cê começou a olhar pra ela mais em Portugal ou você já prestava muita atenção nisso em Cabo Verde?
R- Não, Cabo Verde, não! Cabo Verde a gente não - eu gosto de falar isso - a gente não colocava a questão. Por quê? Os meus professores foram negros, as minhas maestras foram negras…
P/1- E os padres?
R- Não, padre era português, branco… O presidente da república sempre foi preto, os parlamentares sempre foram pretos, os médicos que me cuidavam sempre foram pretos. Toda minha referência era uma referência preta, certo? Não me colocava a questão, “opa, mas calma aí, eu sou mais claro, menos claro, eu sou mais retinto?”, não! Eu sentia isso porque o contexto favorecia isso. Mas quando você deixa o país, você está num espaço e vê que tem cinco ou seis da sua cor… Hum! Ah… aqui então somos a minoria, aqui então olha de fato quem tá varrendo em Lisboa, olha quem tá trabalhando nas obras, nas construções de Lisboa são os imigrantes, a maioria aqui que vem do continente tal…
P/1 - E você ficava pensando nisso?
R- Sim, sim! Você acaba pensando nisso… Mas você ainda está num momento de pensar, de processar… Isso, vindo pra Amazônia, eu não senti isso. Me senti um estrangeiro, né? Eu não sou daqui. Mas eu nunca me senti, por exemplo, na Amazônia, que deixaram de lado por conta de ser - onde eu estava - de ser um um jovem preto africano que veio (inaudível). Não, não senti isso.
P/1- Na Amazônia não?
R- Onde eu estava, na Amazônia, concretamente em Tefé, naquele pouco período de tempo, não, certo?
P/1- E em Portugal?
R- Em Portugal, sim!
P/1- Você lembra do momento em que você começou a sentir isso? Esse estranhamento…
R- Você vê, quando cê entra na faculdade, a maioria dos seus colegas são brancos, todos os professores são brancos, e são dois ou três pretos na turma. Mas você sai no intervalo, quando vai pra o banheiro, quando vai pra cantina, a maioria que serve é pessoa imigrante e preta, saca? Você começa já a ter uns insights assim. Até o professor jogando piada assim, né? Aí você acaba se armando um pouco... E isso foi se transformando, transformando, transformando aos poucos… Quando passei sete anos, durante sete anos na França também, você sente isso. Você sente isso também, certo? A periferia francesa, você vê a maioria dos imigrantes que são mesmo colocados assim… “Blanc Lieu”, quando fala “Blanc Lieu”, aí é periferia! É tudo imigrantes, árabes, argelinos, marroquinos e tal. Então é um bairro que você sente já esse discurso de, “não, ali pode, ali não pode, ali são mais perigosos”. Vai trabalhando… Mas só pra resumir um pouco, é como aquela música dos Racionais, que ele falou: “prestei vestibular no assalto de um busão, num assalto bancário me tornei ladrão”, algo assim, né? Eu falo, “prestei vestibular de militância em Portugal, me formei um pouco na França, e no Brasil me tornei”, porque aqui eu vi que você tem que se posicionar, não ficar em cima do muro. Por quê? Porque você também pode ser o próximo a virar o muro, a virar esquina e ser morto. E ser morto. E só depois vão saber que você estudou fora, que você tem diploma, que você… Mas vai ser um corpo comum, que é traficante comum, que assaltou comum, que a bala achada encontrou. Corpos. E para que não haja mais corpos assim, ou então para que haja consciência, eu me posiciono. Eu me tornei militante, eu me tornei um ativista, eu me formei, sabe? Eu não vou mais me silenciar, não vou mais me calar, nem na igreja, nem fora. Eu vou ser a voz dos sem voz. Mas por quê? Porque eu também posso virar a esquina e cair como qualquer corpo. Corpo preto, jovem da periferia aí, né não? Isso é muito triste, muito forte, mas acontece. Isso acontece, sabe?
P/1- Mas lá em Portugal, você foi pra lá fazer o seminário…
R- Sim. Filosofia.
P/1- E o seminário te mantinha?
R- Sim, sim. Tinha uma bolsa…
P/1- Como é que foi essa experiência?
R- Olha, até que foi… Por um lado, eu tive uma boa experiência no seminário. Tenho as minhas críticas simplesmente porque a gente reproduz uma formação europeia e não decolonial, sabe? Mas é bem… simplesmente você é mais um filho da pátria amada, você é mais um filho da nação que te colonizou, que vai repetir a cultura, que vai repetir o modo de pensar, que vai perpetuar o imperialismo… Ponto final. Essa é a coisa. Mas no seminário o que me marcou muito foi a diversidade de países, de pensamento, de vivências. Desde que eu entrei no seminário, em 2002, até 2012, sempre, Jonas, morei com pessoas vindas de mais de dez, quinze países diferentes! Em Lisboa morei com jovens que vieram do Gana, da Tanzânia, do Quênia, de Portugal, da Angola… é uma riqueza enorme. Cada refeição, cada almoço, você sai do país estando na mesa, você viaja para Angola só com uma história que o cara te contou, você já viaja pra Tanzânia só com a história, almoçando, jantando… Ou seja, já viaja já, sabe? Então cada refeição era uma viagem… Cada refeição era uma viagem, cada ida à faculdade era uma história, cada momento de celebrar 25 de África - que o dia internacional da África é 25 - com os pretos da PUC de Lisboa, já era outra viagem. A diversidade de continentes, de países, de culturas… O seminário é uma casa formidável pra isso! E isso me ajudou muito também, sabe? Tanto é que hoje tenho amigo de tudo quanto é canto, de tudo quanto é raça, povos, nações, ideologia… O seminário te proporciona isso. Ao mesmo tempo, gostei também porque te obriga, não te obriga, mas te dá uma boa formação. Ser formado mesmo, assim, academicamente falando… E eu aproveitei muito também por conta disso. Eu queria fabricar com as ferramentas que eu tive a minha própria forma de existir nesse mundo, aí apliquei ainda mais, no sentido que não brincava com a formação, porque eu sabia que tinha que me armar. Armando tanto filosoficamente falando, como teologicamente falando, que quando eu pusesse esse gesto, e alguém questionar, eu poderia rebater tranquilamente de uma forma honesta, intelectualmente falando… com a universidade intelectual. Então, o seminário também me proporcionou muito isso, por isso a minha vivência no seminário foi muito positiva. Gostei…
P/1- Do campo das próprias passagens bíblicas, o que que mais te…
R- Ah, mano... Uma das coisas que até hoje eu questiono muito… fico brincando às vezes… Quando a gente fala assim, que na criação Deus criou primeiro Adão e Eva, né? E a partir de lá veio tudo, toda a cadeia do ser humano, certo? Mas que também, ao meu tempo, foi lá que fomos amaldiçoados, por conta da maçã que a Eva comeu. Cara, essa interpretação pra mim, antropologicamente falando, é muito pesado. É muito pesado, né? Como através de uma ação de uma pessoa, a humanidade caia num suplício tão grande, que pra sair desse lugar tem que vir alguém de fora? Para uma pessoa também se sacrificar, para que a humanidade, dentro do caos, ganhe o equilíbrio… É uma história doida, uma história muito doida, né? Então biblicamente falando, se a gente for pensar… Isso que dá também no fundamentalismo, ler a Bíblia como, digamos, a lei, a gente acaba… pegar a Bíblia e ler de uma forma literal, a gente acaba… a gente prejudicou a humanidade nesse sentido, criando muitas coisas. Até mesmo o racismo veio de lá, o machismo também veio de lá, esse desdém para com a mulher veio de lá, esse desdém para com o nosso corpo veio de lá… porque a gente fala: “Não, o homem é corpo e alma, mas o mais importante é a alma. O corpo que caia agora, mas o mais importante, que é a sua alma, seja salva”. Tanto é que os escravizados, antes de vir para o navio negreiro, eram batizados, pra alma não ir pro inferno. O corpo poderia ir, o corpo poderia se perder no oceano, mas a alma tinha que ser salva. A gente criou essa dicotomia, essas deturpações pequenas, que fizemos no início da da cristandade, que até hoje acaba reverberando, acaba trazendo consequências bem graves. Se você pegar o caso daquela mulher que foi pega em adultério, a lei falava que quando é assim tem que apedrejá-la até a morte. Apedreja-la, a mulher. Mas a mulher não cometeu o adultério sozinha? E cadê o homem? Cadê o homem nessa história? Não, o homem fica de lá, se calhar com uma pedra na mão também. É! Aí quem é julgada é ela. Ou seja, quando o homem faz é normal, porém quando a mulher fizer ela é condenada. Essa interpretação, certo? E Jesus veio: “Não, mano, quem não tiver pecado que atire a primeira pedra”. Começaram pelas pessoas idosas, a irem embora, porque eram pessoas que mais viveram, que mais acumularam pecados, mas eles estavam dispostos a matar um ser humano. Aí está a sacada de Jesus, certo? Aí está a sacada Jesus… Mas os homens queriam matá-la, porque na Bíblia diz que, na lei de Moisés, se pegar tem que morrer! Olha só como isso se tornou uma arma, um perigo… Um perigo até hoje! Até hoje pra nós ler qualquer livro sagrado de uma forma literal acaba produzindo absurdos que a gente conhece: intolerância religiosa, terrorismo, a matança, a exclusão, o ódio, a transfobia, a homofobia… Tudo em nome de Deus (risos).
P/1- Dentro desse raciocínio, como foi que senhor lidou com essa contradição de ser tocado pela fé, querer seguir esse caminho, mas ao mesmo tempo ver isso que você falou do racismo, do machismo, da colonização? Como é que era pra você? Como é que você lidava?
R- Eu sempre falei assim: eu escolhi ser. Nasci, fui, mas também escolhi continuar a ser católico, acreditar num Jesus de Nazaré. Eu tenho esse direito de acreditar e conceber esse Jesus, mas não com a roupagem que me apresentaram, não com a roupagem europeia, mas um Jesus com a roupagem africana.
P/1- Como é o Jesus com essa roupagem?
R- Com a roupagem africana é um Jesus que senta no nosso meio e come fufu, é o Jesus que joga com com a gente (inaudível), é o Jesus que vai para a pesca com a gente num barquinho. É o Jesus que senta sete dias com os amigos para, num momento de velório, aqueles sete dias que cada um traz… esse Jesus que senta conosco. Esse Jesus que, no tempo de sementeira, de plantar, ele está lá com a gente pegando enxada, capinando. É o Jesus que brincava com a gente na escola… Ou seja, é um Jesus presente na minha cultura, bebendo a minha água, bebendo meu vinho de palma, fumando o que eu fumo, certo? Mas eu o vejo como uma pessoa importante, como uma pessoa que dá sentido a minha vida, como a uma pessoa que os seus ensinamentos moldou um pouco a pessoa de Assis. Agir e acolher, não apontar o dedo. E sorrir. Amar e ser amado. Um Jesus que fala: “Onde houver ódio, que eu leve a paz. Onde houver divisão, que eu tento levar a união. Onde houver injustiça, que eu tento levar a justiça. Onde houver um caído, que eu tento levar uma palavra de ânimo”. E não um cara distante que fala: “Se você vacilar, eu vou te chicotear. Se você vacilar, você vai pro inferno”. Não, o meu Jesus cola comigo nas minhas alegrias e tristezas, até nas minhas putarias ele tá comigo, né não? Porque pra mim é um truta… Truta é truta (risos). Truta te fala a verdade quando é pra falar a verdade. Truta te fala: “Mano, ali não pise, não!”. Ele fala pra mim assim através da minha voz da consciência (risos). Quando eu for dormir, o travesseiro me pesar, falo: “Porra, mano, fiz merda hoje!”.
P/1- Teve algum momento que você sentiu que era o próprio Jesus falando com você?
R- O próprio Jesus, como pessoa assim, não posso te falar. Mas as inspirações também você sente...
P/1- Padre, você descreveu pra nós um Jesus africano, né? E ao mesmo tempo, o seu seminário, ele apresentava o Jesus europeu…
R- Claro, até hoje mesmo…
P/1- Como foi que você africanizou Jesus?
R- Justamente a partir do meu encontro com as ferramentas que me apresentaram, com a teologia… Mas sobretudo isso se tornou real para mim quando cheguei na Amazônia, em 2006, e encontrei todos os padres que fizeram opção preferencial para estar ao lado daqueles que querem ter voz - ribeirinhos, pessoas quilombola - usando anel de tucum. Esse anel é muito frágil, quebra facilmente, mas eles falaram que esse aqui é o meu compromisso, o meu casamento com a causa, com as pautas que matam. E o meu Jesus - os padres lá, e os leigos da Igreja amazônica - o meu Jesus é um Jesus, né? com traços indígenas… A mãe dele é uma mãe com traços indígenas - a gente via nos desenhos, nas iconografias. Um Jesus que dormia na rede, um cara que pegava pirarucu, que é o peixe que vive nas águas doces da Amazônia, um cara que tomava açaí. O meu Jesus, dizem - presenciei muitos padres dizendo isso na catequese - é um Jesus que vai pescar com a gente, que vai caçar com a gente. E conta as histórias bonitas, histórias interessantes, histórias de ânimo, “A caça está difícil, mas vamos lá! A gente consegue!”, histórias de apaziguar, “O mar está bravo, está muito banzeiro, como se fala, mas calma aí! Vai vir a calmaria”. É o Jesus que fala: “Pô, hoje fomos pescar, não pegamos nada, não tem nem farinha pra comer… Mas vai no vizinho. Há de providenciar. Vamos compartilhar”. Oh, mano, fiquei maravilhado! (Inaudível) era de ter contato com a Teologia da Libertação, que se formou lá nos anos sessenta, justamente com essa visão. Vamos conceber, construir um Cristo latino americano, que caminha com o seu povo, com as veias abertas - Eduardo Galeano, “As veias abertas da América Latina”. Quer saber o que é Teologia da Libertação? Tem que ler esse livro, “As veias abertas da América Latina”, onde ele conta a história de todo sufoco que a América Latina passou por conta do imperialismo. Então eles trouxeram tudo isso pra Teologia da Libertação da libertação. O Paulo Freire… Ninguém sabe mais do que ninguém, mas aqui há troca de saberes. Meu, quando vi tudo isso, um Jesus amazonense, digamos, fiquei maravilhado! Falei: “Cara, já me descobri! É isso que eu queria!”. Mas está vendo? São ferramentas que me foram dadas, uma viagem, um período de estágio, um ano e meio, com o que eu tinha, com o que pude reunir. Falei: “Doravante esse vai ser o meu Jesus também!”. Voltei pra França, 2007, 2012, durante o meu percurso de Teologia, mesmo nos meus trabalhos, eu fui pesquisando assim um Jesus africano, com traços também africanos… um Jesus, uma cristologia africanizada. Me apresentaram uma cristologia, o estudo de Cristo, com a roupagem europeia, mas com as ferramentas que eu adquiri até agora, vou fazer o contrário. Vou também desdobrar essa dobra, mas (inaudível) vou ver também tecidos africanos. Então foi ali que eu comecei, a partir da Amazônia, que eu comecei a conceber um Cristo com o cabelo crespo, uma Maria com os beiços assim bem carnudos, com Jesus bem bonitinho assim, com o cabelo curto. Porque até então, a imagem era essa, um Jesus de barba… Mas a Amazônia me fez quebrar, quebrar essa visão de Jesus, pra poder conceber também um Jesus mano a mano, né? Um Jesus mano a mano.
P/1- E aí então o que eu estou entendendo é que o coração dessa história é a Amazônia…
R- É a Amazônia…
P/1- O que levou você para a Amazônia?
R- Justamente, como eu estava no seminário, terminando a filosofia, tinha que dar mais um passo. Esse passo é você ir pro estágio, que é no estágio que você vai decidir: “Eu quero ser padre?”, ou então, “Mano, até então não curti. Vou me vazar”. Então o estágio era o momento de falar: “Ou saio, ou entro com outro compromisso. Vai ter um engajamento, você vai pronunciar uns votos… Então o estágio é pra isso, é um momento de discernimento, momento de você pesar as coisas, momento de você falar, “Vale a pena”, momentos de você falar, “Não. Pra mim já deu”... Por isso que o estágio é importante. Eles te dão esse tempo de reflexão, mas também de experiência. De experiência porque você acaba vendo coisas bonitas acontecendo, experiências que te inspiram, experiências que você fala: “Pô, mano, se eu voltar amanhã como padre, gostaria de ser assim, ou não gostaria de agir assim, gostaria de reunir o povo desse jeito”... Te dá vontade também, certo? Se você estiver na dúvida, a sua dúvida vai se emancipar aos poucos, dissipar aos poucos, no tempo de estágio. Não cem por cento, mas oitenta por cento, alguém vai te segredar assim… Cê vai escutar a voz da consciência. Eu vou dar um salto no escuro com a certeza que eu não vou cair. E quando você faz um pacto de amizade numa relação, num casamento, é isso. Vou dar um salto no escuro com a certeza que nem eu, nem você, vai se machucar, e ninguém vai sentir o solo, né? Mas a gente vai levitar juntos, por conta desse pacto, ou graças a esse pacto, sabe? Foi por isso que eu fui pra Amazônia, pra ter esse tempo. Mas a Amazônia pra mim foi um divisor de águas. Se tem um antes de Jesus e depois de Jesus, também tem um antes da Amazônia e depois da Amazônia para o menino Assis que está falando com vocês hoje. Foi lá que eu me reencantei, com a natureza, com o rio… Cabo Verde não tem rio, mano. Imagina você passar um mês no rio, no barco, de aldeia em aldeia, ver o povo celebrar, contar história, jogar bola, dar risada… Ver matas e matas, ver a sinfonia da Patchama, aquelas vozes lindas de pássaros que voam, ver uma vitória-régia que nem que se desperdiça diante de você… Pô, mano, se já gritava em Deus, isso me faz também acreditar muito mais, isso que eu estou vendo, sabe? À beleza, a natureza, pra mim é o reflexo, de fato, da existência de Deus, do equilíbrio, do ser humano… De verdade.
P/1- E era onde na Amazônia que você estava?
R- Eu fiquei em Tefé. Tefé era um município, ainda é, mas na altura tinha setenta mil habitantes, pequenininho. E pra mim chegar em Manaus, capital do estado, eram três dias de barco. Você come, lê, dorme, come, lê, dorme, come, lê, dorme… Daí que me veio a ideia do diário, porque também tinha tempo pra contemplar, pra desfrutar, para ler e para escrever. Eu quis juntar o útil ao agradável. Cara, eu tenho na minha cabeça a viagem que a gente fazia… Rio Grande e Solimões, você vê o encontro das águas. Água barrenta com a água preta, que correm lado a lado sem se misturar, cara. Eu falei: “Pô, mano, que beleza, meu! Que beleza!”. Você vai na pesca com vara simples, pega um pirarucu desse tamanho, cara… Ao mesmo tempo, o menino tava sangrando, colocou a mão assim, subiu sem os dedos, a piranha comeu tudinho, né? Como tinha coisas também, tinha perigos também da mãe Terra, que você falava: “Nossa!”, te deixava sem reação. Vi muito isso… Criança colocando a mão e sair sem os dedos, sabe?
P/1- Você viu isso acontecer?
R- Sim! Numa das minhas viagens. Aí você vê que, pô, mano, a natureza é bonita, mas cuidado, viu? (Risos) Não invade ela, não…
P/1- Novamente descrevendo sua experiência na Amazônia…
R- Sim…
P/1- Essa experiência desses dias de barco terem levado você a fazer diários… O que mais foi impactante pra você nesse período?
R- Na Amazônia você fala? É justamente uma igreja que caminhava lado a lado com o povo. Uma igreja que comprou a briga, a pauta do povo campesino. Uma igreja que comprou a pauta da preservação da mãe Terra, dos povos originários. Uma igreja que não pregava somente o evangelho, mas que fazia as coisas acontecer no dia a dia, organizar os ribeirinhos a não pescar todo peixe grande no mesmo mês, a criar viveiros pra pesca, a fazer um monitoramento dos viveiros, como eles chamam. Ou seja, que se preocupou com a fé do povo, mas também se preocupou com a vivência, com a vivência social desse povo. Que a fé também é libertadora, ela é pra transformar o crente, o cara que acredita, a transformar o seu mundo, de uma forma que ele e os outros possam viver na paz e amor com esse Jesus, livre da fome, do preconceito, do coronelismo, da grilagem de terra, do desmatamento… Tudo isso eu encontrei lá. E o respeito também para com a Pachamama. Eu me lembro da gente fazer o mesmo… Quando encontrei esse mesmo gesto, que o meu vô fazia, com palavras… o meu vô, eu me lembro dos meus vós… Exemplo, como a gente criava animais, como galinha, pato, sabe essas coisas? O meu vô quando precisava matar uma galinha, pegava a galinha e antes de cortar o pescoço pedia perdão pela galinha que ia matar, e traçava um sinal da cruz assim. Tanto para com a Pachamama, que dá a galinha, quanto como também para a galinha que ia ser morta, mas servir de alimento, saca? Então as minhas vós não pegavam a galinha e simplesmente fazia assim pra comer, mas tinha todo um respeito. Pega a linha, pede licença e mata a galinha. Como quando um jovem que está na roda, e tem os anciãos mais velhos, pede licença antes de tomar a palavra. Esse respeito pelo espaço… Na Amazônia, onde eu tava, quando a gente fazia nossas viagens, via a mesma coisa. A galera ia cortar uma árvore, pra poder fazer de pilar da casa, pedia perdão pra essa árvore e depois cortava. Quando ia pescar pedia perdão e permissão para o rio, para os peixes. Então não era uma peça qualquer. Não, mano… É para comer, pro sustento. Eu vou pescar com dignidade e vou comer com dignidade, porque a coisa que eu vou pescar também tem dignidade. Nesse sentido, certo? Faz parte da natureza, como eu faço. Então quando eu enxergo a natureza como uma aliada, como um corpo vivo, eu tendo a ter muito mais respeito para com com esse corpo, que pra mim não é objeto somente. Não, tem uma sinergia, tem uma… tudo tá interligado. Tudo tá interligado. Se eu acho, se eu concebo o mundo como uma casa comum, a natureza também é uma casa comum. Estamos todos na mesma sintonia, né? Isso vi na Amazônia, me fez lembrar o meu vô no Cabo Verde. E até hoje eu sou um apaixonado também da luta campesina, da luta contra o desmatamento, contra as agressões que a mãe Terra tem sofrido. E se eu luto contra as agressões da mãe Terra, obrigatoriamente tenho que lutar também contra todas as agressões dos corpos que habitam essa mãe Terra. Não me compactuo com a xenofobia, não me compactuo com o machismo, não me compactuo com o feminicídio, não me compactuo com injustiça, não me compactuo com a LGBTfobia. Não me compactou com essas agressões em qualquer dimensão, tanto à mãe Terra, como aos seus corpos também. Isso carrego comigo para a vida toda.
P/1- Pegando esse ponto que você tocou agora, não necessariamente da Amazônia. Você falou de LGBT né? Você teve alguma experiência de como incluir isso dentro da Igreja? Como é que é também a reação mais conservadora de trazer esse tipo de coisa?
R- Eu sempre falo que a gente acaba dando tiro no próprio pé, né? Quem forjou a moral que hoje vivemos é o cristianismo, certo? Deus criou homem, mulher e tal. O normal é que a mulher deixa a sua casa, vai se juntar a uma pessoa… Ponto. Ao mesmo tempo, a gente fala assim, mas Deus criou todo ser humano a sua imagem e semelhança. A escritura diz isso: “Deus criou o ser humano a sua imagem e semelhança”. Se Deus criou o ser humano a sua imagem e semelhança, quando eu vejo… Para um menino que sempre cresceu num padrão, numa moral cristã rígida, que sempre escutou que o normal é se relacionar com meninas e não meninos, que normal é o menino usar o azul e a menina usar a rosa, que é normal o menino gostar de bola e a menina gostar de boneca… Chegou nesse ponto que a Igreja fala: “Não, não, não.. Aí ele não pode, porque está contra a moral. O normal é homem gostar de mulher, mulher gostar de homem”. Eu falo agora: mas a gente acabou de falar que na Bíblia tá que Deus criou o ser humano a sua imagem e semelhança. Voltamos falando aqui da sua orientação sexual (risos)... Estamos falando do ser humano, de uma pessoa, e se ela é pessoa, ela também é imagem e semelhança de Deus, e tem um preço. Daí não pode ser excluída, daí não pode ser massacrada, só por gostar de menino ou só por gostar de menina. A pessoa é muito mais que a sua orientação sexual. Teologicamente você acaba tendo base para acolher, como teologicamente você vai ter base, se fizer uma leitura literal, para excluir. Mas eu prefiro ter base teológica para incluir, como Jesus incluiu.
P/1- Você tem alguma história de inclusão?
R- Ah, eu tenho várias, sobretudo aqui nas nossas quebradas. Tem um… isso faz uns quatro meses, o nome dele é Felipe, um menino bonito, um jovem gay, lindo assim... Ele é de Alagoas, e no Norte com relação a isso, por exemplo, a Igreja é muito mais rígida com relação a isso ainda, né? Aí esse menino tá morando aqui faz tempo, mas nunca havia feito primeira comunhão na vida dele. E era uma das coisas que ele mais almejava. Lá na favela do Morro do Peu, Comunidade Nossa Senhora Aparecida, eu rezava a missa lá, eu vi que ele não comungava. No momento reverenciava assim aquela coisa, mesmo de longe. Certo dia, perguntei: “Mas, Felipe, por que você não comunga, meu?”. Ele desabou assim, chorou, chorou, chorou… Falou: “Padre, você me conhece, né? É uma das coisas que eu mais gostaria de ter feito na minha igreja de Alagoas, fazer a primeira comunhão e comungar com meus amigos. Mas como desde sempre eu me declarei, eu me assumi gay, os padres que passaram por lá ou a igreja mesmo não me deixou, porque falou que isso não está de acordo com a Bíblia, com a moral”. Eu falei: “Você gostaria de fazer a primeira comunhão, Felipe?”. “É o que eu mais quero!”, ele chorou, não acreditou… Eu falei: “Não, mas a catequista… Você já tem entendimento, sabe da sua fé, da sua espiritualidade. Olha, vai te preparar, daqui a duas semanas você vai fazer a primeira comunhão”. “Sério, Padre?”, “Sério!”. Aí chegou a semana, esse moleque veio lá da Senhora Aparecida, teve uma missa lindíssima aqui, eu chamei ele, ele se sentou ao meu lado durante a celebração. Ele chorou durante a celebração toda, tremendo. E quando chegou o momento de fazer… E falei: “Não venha sozinho, traga os seus amigos”. E trouxe toda a molecada, sabe? Toda molecada, que veio presenciar. Coisa simples… Momento de comungar, ele comungou, chorou, e a assembleia batendo palmas. Aí você vê gestos simples que trazem vidas. Ali você está além de uma lei injusta, retrógrada e suicida. Suicida, porque por conta dessa rejeição muitos acabam com suas vidas… Cês sabem disso, né? E um simples gesto de acolhida… Esse é só um dos exemplos, um dos, que eu tô falando! Um menino que hoje tá em paz consigo, tá reconciliado com o seu Jesus, porque é o Jesus que acolhe, e não o Jesus que apontou o dedo. Um menino que tá amando, tá amando como ele quer e como ele deseja ser amado. Simples! Outra vez foi na Casa Florescer, não sei se vocês conhecem a casa. Tem um abrigo, Casa Florescer, é uma casa que só acolhe mulheres trans, lá no Metrô Armênia, sabe? Casa Florescer. Podem procurar depois… Estava tendo Dia da Consciência Negra e tal. Galera ligou: “Padre, já conversamos com vários padres pra rezar uma missa lá, mas não, porque é um abrigo LGBTQIA+, então não pode e tal…”. Me ligaram. Eu vou! Eu vou! Aí eu fui, rezei a missa, e numa das falas de uma jovem, uma que levantou e falou: “Durante os anos todos nunca tive uma missa que eu me senti não julgada, mas acolhida e em casa”. E uma das mães… vai ver que a história vai se casar… e uma das mães que estava lá, era mãe… essa pessoa espírita que eu te falei, que faz parte da associação de mães de jovens LGBTQIA+, que eu falei que é uma baita mulher também pra dar pra dar uma entrevista, ela estava lá. Até hoje ajuda a gente aqui na área pastoral, até hoje seu filho, hoje mora com um menino. Os meninos sabe que tem onde conversar, tem onde, por exemplo, se um dia querem, onde se abrir tranquilamente, onde se acolher tranquilamente, e outras coisas… Mas posso dar exemplo na cadeia também que eu visito, né? Na cadeia que eu visito tem alas que é só de pessoas trans…
P/1- A gente vai pra essas histórias mais sociais… Só pra fechar então a Amazônia. Tem mais alguma história importante que você viveu na Amazônia? Alguma imagem?
R- Tem (risos). Meu primeiro parto! Ou seja, eu tava indo para Manaus para tratar os meus documentos na Polícia Federal, pegar o meu RNE, registro nacional dos imigrantes e estrangeiros, e no barco tinha uma moça gestante, que estava indo justamente pra Manaus pra dar a luz. Não sei o que aconteceu, que no meio da viagem, ela começou a entrar num serviço de parto. Tinha poucos homens lá, os que tinham quase que desmaiavam, todos correram (risos), aí sobrou para algumas meninas. E eu fiquei em pânico? Fiquei. Porque a gente não tinha… ninguém sabia… não tinha parteira no barco, não tinha instrumentos, não tinha… A mulher ia dar a luz no hospital, e acabou vindo no caminho, no barco. Cara, foi ali que eu vi o quanto quando você tem na mente salvar vidas, você acaba separando os seus desejos e paranoias que habitam as nossas mentes poluídas às vezes. Eu quando vi aquela aquela moça no chão, fazendo o gesto, toda aberta assim, toda aberta, te juro… Não veio na cabeça, por exemplo, questões eróticas. Você não pensa nisso, brother. Você pensa simplesmente em ajudar essa pessoa a dar a luz, no momento salvar duas vidas. Você não vai pensar: “Nossa, eu não conheço ela, mas ela está assim toda exposta”. Mano, foi lá, de verdade, que eu falo assim, quando você tá num momento de perigo, você faz qualquer coisa pra salvar vidas! Você esquece lá do pudor, você esquece… Mas você simplesmente faz o que é preciso ser feito. E foi um parto coletivo, porque um segurou, outro corria pra caçar uma tesoura pra cortar o umbigo… Meu, todo mundo assim atrapalhado, mas o milagre fizemos, ou seja, o bebê chorou, “Nhé, nhé, nhé!”. (Inaudível) e todo mundo senta, olha pro outro: “Conseguimos! Mas como? Como conseguimos?” (risos). Só sei que a criança chegou em Manaus bem, a mulher foi pro hospital, dizem, e a criança até hoje está… Mas foi o momento de desespero, mas ao mesmo tempo de falar: “Temos que fazer algo, senão ou vamos ter dois cadáveres, dois corpos inanimados, ou vamos, com nossos gestos e inspirações, teremos duas vidas pulsando. E foi isso que tivemos, duas vidas pulsando. Isso é uma das histórias que me marcou muito da Amazônia. Essa história é forte…
P/1- Você se tornou isso na Amazônia. Como é voltar pra França depois de…
R- Eu voltei com vontade. O estágio foi divisor de água. Queria continuar, até queria voltar pra Amazônia na época e continuar essa história que eu vivenciei, de estar ao lado do meu povo, lutar com o meu povo, por um teto, por moradia, terra, direitos... Então, por um lado, voltei pra academia, mas com vontade. Com vontade, voltei pra academia também mais questionador. Certas teorias a gente não aceitava mais (risos), porque não fazia mais sentido para mim. A explicação dada até então não me satisfazia mais. Mesmo que eu era barrado nas minhas questões, tinha bibliotecas, tinha muitas ferramentas. Fui atrás, fui atrás… Então acabei fazendo a teologia, a passar sete anos na França, muito mais consciente, muito mais com vontade de voltar, e muito mais também consciente do meu lugar como preto, jovem preto, (inaudível), nessa Igreja que é bem colonial. A partir de lá, mano, não parei, não parei… Na França também tive boas vivências, uma vez mais com a diversidade. França é um país que você encontra de tudo quanto é… gente de tudo quanto é canto do mundo. Um país bonito… Morei mais em Paris, sim. Mas vi muitas coisas bonitas, muitas histórias lindas, como também coisas menos boas, atos de racismo que me faz mais uma vez falar: “De fato, sou estrangeiro. De fato, não vou assistir isso sem me calar mais”. Somos convocados então a lutar pelo que é certo, a lutar pelos nossos. Aí voltando da Amazônia fui preparado. Foi um embate, e também pra me preparar lá, e voltar pra guerra, num bom sentido.
P/1- E aí eu queria que você contasse, então, um pouco qual que foi a sua grande guerra social?
R- Cara, eu não posso falar o que eu fiz. Posso falar o que fizemos juntos… Né não? (Risos). Posso falar o que fizemos juntos… Juntos organizamos greves daqueles que chamam sans papiers, os indocumentados na França, que é muito forte. Se você não tiver o seu RG, ou a carteira de imigrante, você é explorado pelos caras que trabalham no restaurante, pelos patrões, porque você não é registrado, recebe pouco, você trabalha muito mais. (Inaudível) juntamos, isso juntamente com um bispo que foi… não é expulso, mas de escanteio, na França, Jacques Gaillot, justamente porque ele sempre acolheu o povo LGBTQIA+, sempre acolheu os imigrantes, sempre acolheu… fez casamentos LGBTQIA+. Ou seja, um cara que foi contra o sistema, mas o sistema o engoliu, deixou ele sem o poder. Mas uma vez bispo, ele é bispo pra sempre, certo? Por isso ele continuava suas ações, mesmo fora, e tinha seguidores. A gente o amava, era o meu o meu diretor espiritual. Tive esse privilégio… Jacques Gaillot, podem pesquisar. Jacques Gaillot, grande nome! E com o nosso coletivo, a gente organizou greves dos sans papiers, dos caras que não tinham papéis. Juntos falamos: “A partir de hoje ninguém vai se sujeitar a trabalhar quinze horas pra ganhar dez. Não! Vocês não são máquinas. São pessoas!”. O homem é julgado muito mais... Olha só analogia, eu, por ser gay, digamos, a sociedade, a minha casa, me expulsa, mas eu sou muito mais que isso. Posso ser um grande arquiteto, um grande pintor, um grande nome, mas pelo simples fato, se eu pego só um lado, eu excluo. Eu sou pessoa, eu sou africano, estou na França, estou contribuindo, tenho famílias aqui… mas o fato de não ter um papel, você acaba sendo reduzido a instrumento de consumo, porque você vai seguir, vai servir a mesa dos grandes boys, você vai você vai servir a mesa dos grandes chefes, você vai se servir… vai limpar a merda dos grandes empresários. No momento que você limpa, mas no momento de pagar, eles: “Não! O seu trabalho vale menos, porque você não tem papel, você não tem documento”. Nossa, olha só lógica, que a gente fala, de Necropolítica, Achille Mbembe: o Estado, o contexto, escolhe quem vive e quem morre, quem trabalha mais e quem trabalha menos, quem ganha mais e quem ganha menos, quem circula e quem fica preso. Essa é a lógica. Dentro dessa lógica, a gente falou: “Para! Basta!”. E tenho, de fato, essa lembrança desse primeiro negócio que fizemos. Foi juntar todos os caras que não estavam com medo de ser deportados, ditos sem papeis, para reivindicar: “Não vamos trabalhar. Vamos fazer greve!”. Mano, você via restaurante chiques de Paris tudo parado… Os caras que trabalhavam lá na cozinha saíam e: “Estamos em greve”. Isso fez um barulho da porra, mano! Que pipocou nas outras cidades francesas, porque a gente estava em Paris. Pipocou lá em Nice, pipocou lá em Marselha, pipocou em Lyon, Bordeaux… As pessoas mesmo com medo, na doloridade… a doloridade fez com que eles agissem. Doloridade. Como as Mães de Maio reuniram por conta da doloridade da perca dos meninos, dos seus filhos. Nasceu as Mãe de Maio. Como nasceu o PCC, da doloridade dos presos. “Vamos se reunir”, nasceu o comando. Ou seja, como nasceram vários movimentos. Através da doloridade você tem vontade de ganhar e transformar essa realidade. Então isso foi uma das coisas que eu lembro com prazer de ter feito juntos em um mutirão na França com os sans papiers. E militei… militei até hoje ao lado dos imigrantes, porque eu sou um dos também. Eu sou um dos, por isso as dores de uma irmã colombiana são as minhas dores também. As dores do jovem preto que nasceu aqui são as minhas dores também. Como as dores do senegalês… Está ligado? E é isso, cara, é isso…
P/1- E aí de lá você veio pra cá?
R- De lá ainda passei uns quatro meses na Irlanda, mano! (Risos). Fui porque eu defendi a minha tese, a minha dissertação de mestrado… eu fiz mestrado sobre o diálogo inter-religioso e a cultura da paz, na PUC. Quando defendi… Não, quando terminei a dissertação estava cansado, porque não parei pra… Engrenei com a facul, durante cinco anos não parei. Nesse intervalo, no verão, junho, julho, agosto, setembro, outubro, passei na Irlanda, Dublin. Aí fui estudar um pouco, aprimorar um pouco o inglês, né? Sabia também que viria depois para trabalhar com os irlandeses aqui nesse chão. Então foi um momento de eu também ir um pouco pra Irlanda, pra descobrir um pouco a cultura, tomar o Guinness, beber Jameson, ouvir a música holandesa… E vim pra cá, certo? Depois da Irlanda é que voltei pra França, defendi a minha monografia no mês de novembro, início de novembro, e doze dias depois, ou treze, viajei pra Cabo Verde. E desde de 2012 nunca mais voltei para a Europa, porque vim pra cá direto e não fui mais. Não é que não tenha saudade, mas hoje prefiro, nas minhas férias de um mês, visitar o Brasil, América Latina, do que a Europa. França, nesses dez anos da Europa, pegava trem bala, ia tomar cachaça em Amsterdam com os amigos no verão, depois de trabalhar e ganhar uns euro, né? Então pra mim já deu. Hoje quero descobrir América Latina, fazer mochilão pela África como fiz também já. Então é isso… Isso porque, daí também você vai ver o significado da cruz que eu te falei, o terceiro símbolo, que eu escolhi para o museu. Enquanto eu estava em Lisboa, 2005, aconteceu um evento a nível mundial na Igreja, o encontro da juventude, a nível mundial, o encontro com o seu líder, com o Papa, de quatro em quatro anos isso. Então eu pude viver isso em 2005, e o encontro foi na Alemanha, Colônia, veio jovem de tudo quanto é continente e nações. A gente se reuniu durante uma semana… Como é muita gente, vai se dividindo por acomodações. A gente ficou num colégio dos espiritanos, dos padres nossos. E justamente nesse colégio, como é da família espiritana, juntou os missionários que levaram jovens de outros países nesse mesmo colégio. Eu vindo de Portugal, o Patrick - Patrick é esse irlandês que fundou isso tudo aqui - ele estava chegando do Brasil, dessa favela, com dez jovens daqui, que até hoje fazem parte… 2005, (risos) olha só! Eu não os conhecia, eu descobri lá. E eles estavam levando essa cruz, por tudo quanto é ato, faziam parte da juventude MDF, Movimento Defesa dos Favelados - ou das favela - então levavam camiseta e tal. Ficamos uma semana juntos ali nos encontros. Como eles também… tinha gente vindo, jovens vindo da Irlanda, de Portugal, da Polônia, do Brasil… e a maioria deles não falava outro idioma, e no campo circulava espanhol, circulava inglês, circulava francês… Então os jovens aqui, dessa favela, andavam muito com os portugueses, com a gente, falavam a mesma língua, né? E eu fiquei muito tempo com os jovens brasileiros. Eu até traduzia pra eles quando a gente falava francês… eu traduzia, espanhol, inglês assim um pouquinho… traduzia para os caras. Terminou a Jornada Mundial da Juventude, a gente separou, mas guardamos contatos, e-mail, essas coisinhas assim, e na altura tinha Orkut. Orkut é uma rede social que você nem conhece, né? Acho que não é da vossa geração. Orkut, que é bem brasileiro. Aí a gente foi mantendo o contato também através de correspondências com jovens aqui. Na Amazônia, quando vim em 2006, tinha esse Orkut, a gente se procurou, juntou… Como é o Facebook hoje, né? Orkut. A gente conversava, tal, tal, tal… e os jovens sempre falavam de mim pro Patrick, que é padre irlandês, que está aqui há mais de quarenta e poucos anos. Aí, sempre no término dos seus estudos, você chega em um momento onde você tem uma lista de países que estão precisando de gente, mas vão ver segundo o perfil das pessoas. E o Patrick estava precisando de mais um jovem aqui para ajudá-lo a tocar isso pra frente. E os jovens falaram: “Meu, tem aquele aquele jovem, sabe? Que a gente conheceu em 2005, que está se formando agora. Seria o momento de você ir visitá-lo”. Patrick foi pra França, ele tava indo pra Irlanda de férias, passou em Paris, conversamos, ele me apresentou o projeto aqui da área Vila Prudente, São José Operário, ele falou - e na altura tinha dreads - ele falou: “Mano, você é tudo que estamos precisando. Honestamente falando, e sem exagero, você ia se dar bem na Vila Prudente”. Mas eu também… a Amazônia foi meu primeiro amor, eu queria voltar pra Amazônia também. Queria voltar pra Amazônia. E nessa lista você escolhe três países, certo? Então com o meu contacto com o Patrick, eu escolhi o Brasil, mais sudoeste, Vila Prudente. Escolhi Brasil, Norte, Amazônia. Escolhi Índia. A Índia, porque a gente ia começar uma missão na Índia. Como tinha feito mestrado no diálogo inter-religioso, falaram: “Vamos precisar de você para o diálogo com os muçulmanos, com os hindus, com os budistas…”, que a gente estudou tudo isso no mestrado. Só que quando você escolhe, manda pra Roma, e Roma escolhe um país pra te enviar. E coube a mim ser escolhido pra cá, Vila Prudente. Está vendo só? E chegando, 4 de abril de 2013, quando vim pra cá, já tinha já esses mesmo jovens me esperando, no domingo depois. Cara, foi uma… sabe? Então já vim, já pisei já esse becos e vielas, tendo amizade. Isso já vão dar dezessete anos atrás, amizade de 2005 a 2022, né? Estando uma semana aqui, já conhecia dez famílias, que os jovens me levaram pra suas casas, me apresentaram os pais, os irmãos, os primos, os vizinhos… Cara, de repente, já conhecia já muita gente, em nome de muita gente… e isso de 2013. E até então, tenho contato com esses jovens, são os amigos meus que frequentam aqui, e que juntos a gente vai tentando transformar lutos em lutas, nesses becos e vielas, sabe? Mas foi assim que eu cheguei aqui. Foi assim uma história bonita, sobretudo uma história de amizades, de empatia. Isso é muito muito lindo mesmo. Eu gosto de contar essa história. E quando entrei por essa porta, encontrei a cruz que eles levavam, né? Levaram em 2005, ali na porta. Fale: “Antes de vir, já conhecia a cruz”. Essa cruz com esses dizeres: “Trabalhemos pela paz. Com o pé ferido, mas com o tempo olhando pro alto”. Então, mano, a minha vida é… Eu sou feliz no que eu faço, sabe? (Risos). Me sinto muito feliz no que eu faço, de verdade!
P/1- Pra a gente ir finalizando, queria que você contasse, de todo esse trabalho aqui em Vila Prudente, qual foi uma história aqui que você acha que resume tudo? Algum episódio?
R- Eu falo… Eu não diria episódio, mas eu te falei que a minha vida é feita de retalhos, né?
P/1- Retalho…
R- Tá ligado? O fato de ser um padre jovem, de trinta e oito anos, mas que chegou com vinte e nove. O fato de vir trabalhar com um padre branco, velho, de idade. O fato de eu carregar os meus dreads… Tudo isso foi um choque para as pessoas, certo? Mas ao mesmo tempo, o que eu falo que valeu a pena, porque a regra de ouro pra mim é a seguinte: age de tal forma que as suas ações falem muito mais que a sua aparência, em todos os lugares e circunstâncias. Age de tal forma que as suas ações falem muito mais que a sua aparência. Ou seja, chegando aqui tive que conquistar pessoas, porque era muito estranho olhar pra mim, padre, negro, de dreads, que leva enquadro da polícia nos becos, como todos os negros aqui. Mas domingo tá aqui no altar, nos fins de semana tá na roda de samba aqui, às vezes tá no aniversário de fulano, fulana, tá na escola, tá na equipe de futebol Grêmio, tá na equipe de futebol Vera Cruz, é professor de francês da molecada, é catador de terça-feira na cooperativa de reciclagem, visita os filhos na cadeia de quarta-feira de mulheres estrangeiras, e sábado no Carandiru, que no momento de carnaval participa da escola de samba Cabeções da Vila Prudente, que participa das ONGs dos franceses. Ou seja, essa pessoa acabou tendo uma atuação, digamos, transversal. Acabei pegando a favela de uma forma transversal. Se na escola de samba a gente não olha se o cara, o menino que está tocando surdo, se ele é traficante ou não, (inaudível) que está tocando caixinha, né? Não vemos. A gente vê a bateria. Bateria composta de pessoas, né? Composta de pessoas. Essas pessoas, independentemente de, apesar de, acaba transformando caixinhas em sinfonias, em ritmos que vão pra avenida, se alegra, faz a festa. Então, mano, valeu a pena? Valeu a pena ter uma visão do mundo onde não excluímos. Mas valeu a pena cultivar essa cultura de hospitalidade, de respeito, de falar: “Eu não vejo o Davi como um traficante, vejo o Davi que pisou os becos e vielas. Ele é Davi, o tráfico não lhe define”, como a sua orientação sexual não te define, como a minha cor não me define. Então, essa é a pegada, mano. Essa é a pegada que você acaba tendo, e você acaba vendo… igual eu também conheci Cristo. Tinha uma vez, em 2016, que de quarta-feira eu visito esse CDP da Vila Independência, que está aqui, Centro de Detenção Provisória, CDP. Era pra ser provisório, você ficar uns meses, mas a galera acaba cumprindo a sua pena lá. Numa cela que é feita para doze pessoas, lá tá vinte, trinta, quarenta, onde pra dormir fazem rodízio. Então uma vez, aqui, eu fui visitar o castigo, castigo é quando você infringe uma regra interna, você vai para o tronco, para ser açoitado, mas de uma outra forma falando. Então, uma vez eu fui visitar o castigo… é uns dias sem banho de sol, você fica isolado… estava um cara muito… um cara no castigo estava nervoso, dando chute no portão, xingando todo mundo assim, mano, um bagulho tenso, como o carro de churros, poluição sonora. Então eu cheguei, como no automático, estava vindo de uma outra reunião do CONDEP, lá no centro, por conta do jovem que foi assassinado e tal, aí eu chego no castigo, escutei esse barulho e fui lá, me debrucei num negócio cela, assim: “E aí, meu, tranquilo?”. Ele falou: “Tranquilo porra nenhum!” (risos), “Alguma vez vocês já viram alguém aqui desse lado tranquilo, em paz? Eu não tô porra nenhuma!”. Aí eu me assustei, assim, aí eu falei: “Pô, mano, de fato, estou vindo de rua, né? E tenho esse tudo tranquilo, beleza, tá na paz.. Não sei outra palavra nesse momento, que uma saudação tranquila. E aí, tranquilo?”. O cara me xingou até umas horas, sabe? “Tranquilo, porra nenhuma! Porra, tô aqui de castigo!” e tal, ou seja, não me aproximei mais. E depois, aos poucos, fui assim, me debrucei novamente, mas ele falou: “Está perdoado por esse vacilo seu”. Aí eu falei: “Mas perdoado por quê?”. Falou: “O simples fato de você ter vindo e ter se debruçado, somente isso já pra mim foi sinal de confiança”. Eu podia até te assustar, mas sabe que você veio aqui pra me escutar, porque você fez um gesto, né? E duas vezes, um gesto de acolhida. Então agora, mesmo estando preso, não vão colocar algemas nas minhas palavras, porque mesmo no castigo eu quero conversar. Já que você veio de visita, não vou colocar algemas nas palavras. Podem colocar algemas em mim, na minha liberdade, mas não nas minhas palavras, não no que eu penso”. Aí que você vê de fato a liberdade, né? Que dom que é liberdade. “Não coloque as algemas nas palavras”. Essa é a frase que nunca mais parou na minha mente. Não, não coloque entraves nas tuas emoções, não coloca entrave nas tuas alegrias, na tua positividade, naquilo que você é, porque somos sempre eternos aprendizes, como dizia a música de Gonzaguinha. Somos eternos aprendizes, quando a gente quer ser. Não coloquemos algemas nas palavras… (Risos).
P/1- Pra a gente finalizar. Dentro da sua vida, toda a sua experiência, qual foi o momento que… eu sei que é todos, mas… que você vivenciou Deus? Ou melhor, como, como foi se transformando Deus pra você? Como era Deus quando você era criança, e o que é Deus pra você hoje?
R- Mano, por conta da catequese, a gente foi encucuda uma visão de Deus muito paternal, sabe? Paternalista. Muito imperialista. Ou seja, se você fizer assim, vai ganhar uns bônus, né? Mas se você sair do caminho, vai ser castigado, certo? Eu sempre briguei com uma noção de um Deus castigador, mano. Não entrava pra mim aquilo. Não povoa o meu pensamento um Deus castigador, mas foi a imagem que eu recebi na catequese. Foi a imagem que você via em algumas pregações: “Deus te castiga. Deus que é pai”. Eu falo hoje para mim: “Deus é pai e mãe”. Mas como assim? É. Ele é pai e mãe! Como não tem hemisfério norte e hemisfério sul no espaço, certo? Como não tem essa: o menino tem que jogar bola e a menina tem que jogar de boneca, ainda a Barbie. Hoje dou uma boneca afro, herois afros. Então essa mudança, os gregos falam metanoia. Metanoia, quando você vai se transformando e virando a cabeça assim, você se, digamos, transformando espiritualmente o seu interior. Metanoia, sabe? Que hoje eu concebo um Deus pai e mãe, um Deus que liberta, um Deus que acolhe, um Deus que não faz perguntas: “Você preto ou branco? Você gay ou hétero? Você é trans ou não?”. Um Deus que acolhe, que acolhe pessoas, que acolhe pessoas com aquilo que elas são e têm, porque quase todos atributos que temos, que a gente, paradoxalmente falando, quando vai se dirigir a Deus, são atributos femininos. Deus em misericórdia, Deus de amor, Deus disso e aquilo, certo? E por que ele não pode ser mãe também? Então essa é a minha grande, digamos, a minha visão desse Deus que me impuseram. A imagem que me impuseram lá, hoje ela está filtrada, é essa. E é assim que eu vou tentar transmitir às gerações, não a de lá, mas a filtrada hoje. Deus está contigo, Deus acolhe, Deus é mãe e pai, e não aquele que vinga, que expulsa, que castiga, né? Que é uma visão bem judaica também, de um Deus que liberta, mas também que pune. Então se você for ver, no Candomblé não tem noção de demônio, do Satanás, não. A energia circula, né? Não interessa.
P/1- Como é que é a sua última? Sacerdotes, outras matrizes?
R- (Risos). Olha, graças a Deus, por fato da minha formação, como eu te falei, do diálogo inter-religioso, que a gente junta, tenta fazer um trabalho para não a unidade, mas a união na diversidade da religião. A ideia não é converter ninguém, mas dentro de cada um, com o seu, a gente puder transformar o mundo com as nossas boas ações, mas também com a nossa visão de Deus e da vida. Tenham boas relações, porque somos poucos que pensam assim, e os poucos também se atraem, né? Cê junta… eu conheço vários pastores, como eu te falei, vários sheiks, vários pais e mães da religião de matriz, que juntos tentamos trazer uma outra visão dos orixás, uma outra visão de ler a bíblia, uma outra visão de interpretar o judaísmo, outra visão de interpretar o Islã, tentar fazer isso. Não na reza, mas na prática de ações, de fazer o bem juntos, certo? A nossa base é juntos. Essa é a nossa pauta: vamos defender vidas. Vidas, pessoas.
P/1- Padre, como foi pra você contar a história da sua vida, da sua pessoa?
R- Cara, é interessante, porque eu penso muito mais no amanhã, ou então no fortuito. É louco falar isso pra vocês, mas eu fico muito triste, porque… não triste de estar aqui contando a história pra vocês, mas o simples fato de que eu posso, como eu já falei pra vocês, sair daqui, virar a esquina e ser morto. Isso é muito sério, né? Sair daqui, virar a esquina e ser morto. Ser morto. Então deixar histórias assim registradas, acaba contrariando as narrativas que falam: “Não, foi apenas mais um bandido. Foi apenas mais um corpo preto. Ele estava com dreads, estava na favela, então pra nós era um suspeito em potencial… Aí se foi. Então a culpa não é nossa”. Mas essa entrevista, por exemplo, vocês, se isso tivesse acontecido, falariam: “Não, mano. Olha aqui, mano, o que esse moleque fez com a gente” (risos), “Olha aqui, mano, você acha esse moleque bandido? Bota no Datena pra colocar essa gravação aí”. Isso é triste, sabe…
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FIM
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