Entrevista de Jalmir
Entrevistado por Jonas Samauma e Wini Calaça
São Paulo, 14 de outubro de 2020
Projeto Conte sua História Vidas Negras
PCSH_HV909
Transcrita por Selma Paiva
Observação: Entrevista com o áudio extremamente danificado.
P1: Então, Padre Jalmir, muito agradecido a você , à Carol e todo comitê por o senhor estar dando essa entrevista. E eu queria começar com uma pergunta, pra você falar qual que é a sua lembrança mais antiga.
R1: Isso está me parecendo um plágio do programa do... me ajudem aí, por favor.
P1: Não, a gente não está plagiando ninguém. A gente só está querendo ouvir a sua vida, mesmo. Como é que foi?
R1: Me conte sua história, não é? Eu estava esses dias vendo Conte Sua História, que tem essa pergunta sempre, eu estava tentando recordar um pouquinho sobre isso. Eu lembro apanhando, né? Com uma vara, uma régua atrás de mim, porque eu fui pra escola com cinco anos e eu não entendia o que era ir pra escola. Não é? Aquelas coisas todas que dá. E eu era muito apegado a minha mãe e tudo mais, então eu chorava pra ir à escola. E tinha um caminho não muito longo, né? "Não, tem que ir pra escola”. Lá vinha a minha mãe atrás, pra eu ir pra escola, não é? E era muito raro ter criança com cinco anos na escola, naquela época. Lá você ia pra escola com sete anos, era a idade certa pra você iniciar. Não tinha esse negócio da pré-escola, que hoje tem e tudo mais. Então, era raríssimo. Então, tinha um professor que era amigo do meu pai, que permitiu que começasse o ensino com essa idade. Então, eu não queria, não era a idade. Então eu chorava pra ir à escola. Chorei muitos anos na escola, o primeiro ano, eu nem sei como o professor suportava. Ficava chorando, um bom tempo. Mas depois, eu estava também recordando um pouco outras lembranças. Lembro dos brinquedos que a gente tinha em casa. E, pensando um pouco, mesmo que numa família pobre, nós tínhamos uns brinquedos muito bons, né? Eu lembro dos meus irmãos, nós somos cinco irmãos.
P1: E antes do senhor falar dos seus irmãos, queria falar pro senhor contar um pouco dos seus pais?
R1: Uhum. Muito pouco, nós nos conhecemos muito pouco. Essas coisas... inclusive, tem um primo que estava fazendo um levantamento na árvore genealógica, não é, da família e ele perguntou: "Como sua mãe foi parar na nossa família?". Eu falei: "Sabe que é uma coisa tão natural, que eu nem lembro?" Minha mãe, na verdade, foi criada por uma família italiana, não é? Eu recordo... tenho a recordação do meu bisavô, nós fomos visitar numa época, eu não sei o lugar, se é Jacupiranga, interior de São Paulo e eu tenho a lembrança do meu avô numa tapera, uma casa de barro muito pobre, não é? Chão de barro. A minha vó materna é de origem indígena, né? Ela estava numa... não era nem cama aquela época, era... as pessoas faziam colchão de... com mato, com o próprio mato mesmo, né, seco, fazia os colchões. E eu lembro desse meu bisavô. E me lembro assim, estava do lado dela, ela estava no leito, nós fomos visitar porque ela estava no leito de morte já, não é? Então, eu tenho essa recordação dos meus bisavós.
P1: Seus bisavós eram indígenas?
R1: É, indígena. Isso. E esse meu bisavô, ele disse que foi escravo. Depois minha mãe falou, né, que ele foi escravo. A avó Niardina e o vô Ezequiel, não é? Eu lembro dos dois, uma única vez, que a gente foi visitá-los, nessa situação. Eu creio... como eu falei, ela já estava no leito de morte, e aí, levaram pra gente despedir, eu creio que foi essa ocasião, não é? Então, eu tenho a imagem dos dois, essa última e única vez que eu os vi. Depois, a minha avó materna, também de origem indígena, não é, era empregada doméstica, eu soube depois que ela trabalhou também na casa dos padres, não é? Foi empregada na casa dos padres, tanto que eu recebi... depois, minha mãe deixou como uma herança, um tercinho de dedo, que era muito comum nessa época, as pessoas usavam. Quem tinha mais recurso era um terço um pouco melhor, quem tinha... era quase de um alumínio, ou uma coisa assim. E o meu avô, era um negro alto, forte. A gente dizia que ele não passava na porta, de tão alto que ele era. Negão muito forte, muito, muito alto. Mas eles tiveram... acho que tinham poucos recursos e doaram minha mãe pra uma família italiana. Então, a minha mãe cresceu numa família italiana, com cinco homens e só ela de mulher. Então, ela passou... estava até falando com esse meu primo, que está fazendo esse levantamento da família italiana e ele quer incluir a nossa família também porque, de fato, sempre consideraram como se nós fizéssemos parte da família deles, família Patucci, aqui do litoral de São Paulo. E então a minha mãe cresceu nessa família, única mulher, imagine vocês, com cinco homens. Então, ela passou um dobrado: lavar, passar, cozinhar pra todo mundo. A vó que nós tivemos, italiana, muito exigente. Eu lembro a minha mãe falando, né? As camisas, naquela época, tinham de ser todas engomadas, ela tinha de engomar as camisas dos irmãos. Ela tinha que sair cedo pra buscar lenha, pra poder fazer a comida. A minha mãe tinha muitas marcas no corpo, do... ainda que era o ferro a lenha, com carvão, não é? Lavar roupa no rio, a roupa tinha... o branco pra minha vó, essa vó italiana, branco é branco. Tanto que minha mãe cresceu também um pouco com isso, com aquelas coisas de limpeza, limpeza. A minha mãe... era limpo, as panelas tinham que brilhar, né? Essas coisas todas. Então, minha mãe teve essa educação, essa formação, foi educada nessa família, até praticamente se casar. Até o casamento mesmo, os meus avós que patrocinaram, de certa forma, ajudaram. Então isso daí. Minha mãe, depois, trabalhou num instituto de cardiologia, se eu não me engano, em Santos, São Vicente, eu lembro que ela falava sobre isso e como copeira. Então, também a exigência era, assim, máxima, porque era tudo muito cuidado, por causa das doenças e tudo mais. Então, tinha que ser tudo muito higiênico e ela tinha, muito, essa preocupação. Meu pai é daqui do litoral norte, de Maresias, né? Hoje famoso Maresias que todo mundo quer, mas naquela época era um povoadinho. Eu não sei até hoje... eu fiquei de estudar, mas a gente com tanta coisa, acaba não tendo tempo suficiente pra investigar de onde que eles vieram, que são dos holandeses que tiveram lá por São Sebastião, não é? Porque meu pai já é mais claro, bem claro, mas o cabelo é o cabelo mais sarará, dele. São os brancos com o cabelo enrolado, bem enrolado. E meu pai foi um caiçara típico, não é? Pescava, vendia os pescados dele, sempre vendeu os pescados a uma certa distância, porque levavam pra Santos para poder vender, né, nas canoas, tinha que enfrentar o mar, pra poder levar o pescado ali naquela região. Então, meu pai cresceu lá, acho que até uns 16,17 anos, mais ou menos e ele resolveu ir... meu pai cresceu no litoral, lá em Maresias. Ele muito preocupado com a família, também família muito pobre, pegava caça pra poder vender, passarinhos, naquela época, se permitia, que era outra consciência, outra visão de mundo. Então, o passarinho pra vender, pra poder arrumar algum dinheiro, pra ajudar a família. Eles viviam praticamente do peixe, produziam uma farinha muito boa, a farinha de mandioca ali do pessoal do litoral, muito boa. E, mais ou menos com 17 anos, ele resolveu ir pra Santos, pra tentar a vida em Santos, uma vida melhor, porque lá não tinha muitos recursos, não tinha muito futuro. E, em Santos, ele foi trabalhar no matadouro, não é? Sofreu, também, bastante, não é? Que era para matar... como se diz? Você tinha que sacrificar os bois para poder, depois, levar para os açougues e tudo mais. Então, não tinha muita experiência, então, sofreu bastante. Mas ele tinha espírito, assim, de construir as coisas, preocupação com a família e ele fez uma boa economia com... ganhando muito pouco, ele fez uma boa economia e comprou um terreno. E ali ele trouxe também os pais depois, pra morar lá em São Vicente. Um lugar bem afastado, um lugar isolado, as pessoas não valorizavam muito. Lá, ele construiu duas casas. Naquela época, ter uma casa de alvenaria era muito difícil, tínhamos um chalezinho, também, na frente. E também repartiu o terreno e trouxe os irmãos e trouxe os pais pra morar nesse mesmo lugar, não é? Então, o que eu lembro um pouco dos meus pais, a história um pouco foi essa daí.
P1: E você sabe como foi a história do seu nascimento?
R1: Eu sou o filho do meio, o terceiro, mas como eu falei, somos cinco irmãos, todos homens, não é? Minha mãe também tinha essa coisa. Ela disse que ela pedia a Deus só ter filhos homens, por causa de tudo que ela tinha sofrido, ela não queria ter filha mulher, não é? Então, tínhamos um coqueiro na frente, no terreno da casa, no chalé, onde nós morávamos e ela disse que se ajoelhava ali, pedindo pra Deus só ter filhos homens também. Como ela teve cinco irmãos e teve cinco filhos também. E eu vim nessa leva da contagem dos cinco, ((risos)) eu vim aí entre os dois mais velhos e os dois mais novos.
P2: E qual era essa casa ?
R1: Nós tínhamos... é, duas... um terreno mais ou menos comprido. Meu pai construiu um chalé, aqueles chalés que você desenha quando está começando a desenhar na escola? É aquela coisinha do sonho, aquela casinha bonitinha, toda arrumadinha, de madeira, não é? Com as ripinhas todas... aquela varanda com uma espécie de bordado que fazia com a madeira, aquelas coisas bem românticas, né? Bem romantizadas. Mas muito bem cuidado, uma casa bem-feitinha. E fez uma casa de alvenaria nos fundos, já dividindo o terreno, dividindo o lote, fez uma casa que tinha quarto, sala e cozinha, que nós ficávamos. Acho que quando eu nasci, já nasci nessa casa de alvenaria, nós ficávamos lá. Mas depois, a família crescendo, meu pai pensou em aumentar casa, ampliar a casa, mudá-la, não é? Um cômodo só, um quarto pra família toda? Não tinha condições. E aí começou a demolir o chalé, pra construir uma casa nova, não é? Uma casa maior. E aí, começamos a ter uma série de revezes na vida, que atrapalhou bastante toda a nossa caminhada: meu irmão ficou doente, meu irmão mais velho ficou doente, teve osteomielite, estava jogando bola, bateu a perna, começou com uma dorzinha, passa remédio, aquelas coisas todas, até que chegou um ponto que ele não aguentava mais, começou a gritar, gritava assim, desesperadamente e levaram a um médico e tinha uma infecção no osso. Ele ficou um ano internado. Um ano. A última fase dessa internação, ele ficou com gesso nas duas pernas, ele tinha uma vara pra não poder... pra imobilizá-lo, né? Então, foi um período bastante difícil. Ele não comia quase a comida do hospital, não é? Ele devia estar com 12, 13 anos, 14 anos meu irmão tinha nessa época. Essa época estudava em escola particular, ele tinha um privilégio ainda, não é? Estudava numa escola particular, aí teve que deixar a escola, porque uma que estava doente, depois que não tínhamos recursos. E, para poder manter, a minha mãe todo dia ia ao hospital levar a comida pra ele, fazer comida em casa e tinha que ser uma comida um pouco especial, por causa da situação dele. Então, meu pai resolveu vender a casa. Vender um terreno, aliás, que nós tínhamos no final dessas casas. Vendeu esse terreno e uma senhora da igreja da comunidade. E quando nós fomos... eu com a minha mãe, inclusive, eu lembro, eu fui levar o documento, era uma senhora que tinha uma padaria, os portugueses, então o pessoal que tinha mais recursos e como a urgência em termos o dinheiro logo pra poder investir no tratamento do meu irmão, eram aqueles que tinham condições de adquirir aquela casa naquele momento. Nós levamos, ela deu a entrada e falou assim: "Olha, então, eu não estou com tanto dinheiro, depois, então, nós acertamos o restante”. E minha mãe entregou a escritura e tudo mais. Não é? Passou um mês quase e nada de acertar. Quando fomos conversar com essa senhora: "Não, a senhora está louca, nós pagamos tudo. Como que é isso?" E não foi nem um terço do terreno que ela pagou, deu como se fosse uma entrada. Então, foi muito triste, foi muito duro, praticamente perdermos o dinheiro. Tínhamos começado a construção da casa, aí meu avô, esse meu avô era pedreiro, junto com o meu tio, mas bebia assim, que era uma beleza. Bebia uma cachaça assim, que era uma coisa assim, do outro mundo, não é? Meu vô mesmo, já em idade muito avançada, já quase debilitado, não é? Mas fazia as coisas dele direito lá, trabalhava. Na noite, ele levantava à noite, pegava um copo, tomava um copo como se fosse água, virava assim, né? E quase sonâmbulo. E quase sonâmbulo. ((riso)) Então, eles estavam construindo pra gente essa... começou... nós começamos de trás pra frente. Então, fez a cozinha, fez a copa, o banheiro, levantou as paredes e tudo mais. Passou o fiscal da prefeitura, veio verificar. Falou: "Essa construção totalmente irregular, as paredes estão tortas, não sei mais o quê. Vai ter que demolir tudo". Então, tudo que tinham investido, o dinheiro que tinha. Então, o meu irmão doente, a venda do terreno que não deu certo, a casa que teve que demolir, colocar toda no chão, um prejuízo gigantesco e ficamos assim, então, numa situação muito precária. Muito precária, mesmo. Só conseguimos melhorar um pouquinho depois que o meu irmão saiu do hospital, aí que foi um... mas também continuamos com muita dificuldade. Bastante dificuldade. Esse meu irmão, depois, começou a trabalhar no Banco, já ajudava um pouco, mas também já tinha os projetos dele, queria fazer a faculdade, já estava quase no final do ensino médio, não é? Aquela questão do segundo grau, colegial, se dizia naquela época, não é? E eu estava, eu acho que na... o equivalente à sexta série, por aí. E eu era bom de Matemática. Era muito bom de Matemática. E eu descobri, por acaso, que tinha uns colegas que estavam indo muito mal, aí eles pediram pra dar uma ajuda, não é? E eu comecei a estudar junto com eles, tal, a mãe pediu pra eu dar um apoio e ela me deu uns trocos. Aí eu falei: "Opa! Olha aí”. ((risos)) Não é? "Olha aí". Aí eu falei: "Acho que dá pra tirar uns trocados com isso”. Aí eu comecei a dar aula particular em casa. E, com isso, foi tendo uma mixaria, pouca coisa. Depois tinha uma turminha, em princípio, de pré-escola, a gente fez uma coisa assim na cozinha da casa, nessa construção, não é? Muito precária, muito... chovia, tinha laje, vazava toda, a gente trabalhava durante o dia... meu pai trabalhava durante o dia, não é? Meu pai era ferroviário, trabalhou na... nessa época era Sorocabana, depois passou à Fepasa, não é? E ele teve um acidente também, nesse período, eu acho que antes de eu nascer, não me lembro nem... não lembro exatamente. Ele teve um acidente, ele era manobrista e, quando ele foi pra colocar os engates no trem, um vagão veio e esmagou a mão dele, não é? Os vagões quando vêm pra você fazer o engate, não é, esmagou. Mas ele, na época tinha... você tinha também muito isso, muitas pessoas que mutilavam, para ter aposentadoria. Era uma coisa muito triste. Imagina você, né? A situação de um trabalhador naquela época. Então, tinha muita mutilação. E o médico achou que ele queria isso, que ele tinha feito a propósito e o médico queria amputar a mão dele todinha. Ele falou: "Não, de jeito nenhum. O que der pra salvar, o que for, eu quero que salve. O que der pra salvar, você salva". Então, conseguiu amputar o dedo e ele ficou com a mão meio atrofiada, a mão direita, que eu acho que foi justamente a mão direita. E ele, com isso, foi reintegrado num outro posto, um serviço interno no escritório da companhia e ele desenvolveu um jeito de escrever, ele prende a caneta aqui e ele consegue escrever, consegue. Então, ele ficou trabalhando um bom tempo nesse serviço, até a aposentadoria dele, praticamente, não é? Então, o meu pai trabalhava bastante nessa... na companhia, vinha tarde da noite e a gente ia mexer na construção. Ia amarrar ferragem, pra economizar tudo que era possível, não é, pra poder levar adiante essa construção. Então, nós fazíamos muito isso: virar concreto, carregar concreto, levar - não tinha, você não tinha essas facilidades que hoje você tem, era tudo muito precário - na lata, nas costas. Era um... foi uma barra pesada. Foram momentos difíceis. E eu quebrava o galho um pouco nisso: dando umas aulas particulares, fazendo um pouquinho de escolinha em casa, não é?
P1: E sua mãe, fazia o quê?
R1: Minha mãe era doméstica. Não é? Mas ela sempre deu - como diz o pessoal - os ‘pulos’ dela, que ela vinha aqui em São Paulo comprar roupa pra revender, não é? Ela vendia... aquela época, o Avon... ((risos)) época do Avon, ela era revendedora Avon, sempre levando prejuízo, porque o pessoal não pagava. Meu Deus do céu! Era uma briga final do mês, né, porque você tinha que pagar o Avon. Então, você pegava a mercadoria e as pessoas não pagavam. Aí meu pai: "Não, você está tendo prejuízo, não sei o que, tem que tirar o dinheiro do salário pra essas coisas”. Não é? O que nos ajudava muito - e é bonito isso, né? - era a solidariedade, né, entre vizinhos, naquela época. Hoje tem também, você tem as pessoas que socorrem umas às outras, mas era muito interessante. Imagine, cinco homens, né? Imagina a quantidade de comida que era. Além do meu pai e minha mãe, sete pessoas na casa. Eu fico pensando até hoje o heroísmo deles. Nossa, como esse pessoal conseguiu? E não tinha essas facilidades que você tem hoje, não é? Você não tinha merenda escolar. Você não tinha... eu fico pensando, os professores pediam os livros na escola, não é? Nós pegamos aquela época do trabalho dirigido, onde você tinha que preencher no livro, então você tem que ter o livro, cada um tinha que ter... caríssimos aqueles livros, todo ano tinha que comprar. Eu não sei como eles conseguiram fazer esse arranjo, não é, financeiro, pra poder manter, com salário tão baixo. Meu pai hoje, aposentado, ele está com 97 anos, ele é vivo ainda, minha mãe já faleceu há uns 20 anos, não é? É uma mixaria a aposentadoria dele. É nada. Menos que o salário-mínimo. E eu nem sabia que podia pagar menos que o salário-mínimo, não é? É uma coisa assim... e eu pensando, então, se é meio salário-mínimo, não ganhava tanto assim pra você... e educaram a gente. Tinha um ensino... pra ir pra escola, você... aquela época, pegava, quando tinha condições, né, passar o pão com manteiga e jogava açúcar, né, ((risos)) no pão, era a nossa merenda, né? Ele fazia essas coisas. Então, eu fico pensando no heroísmo deles. E tinha, então, muito essa questão da solidariedade entre os vizinhos, né? Então, chegava o final do mês, o arroz não deu, aí você levava um pacote de feijão pra trocar com uma senhora não sei na onde, que trabalhava... o marido trabalhou junto com meu pai e trocávamos, né, o açúcar com o arroz, o café com... o que você tem com... ou então a pessoa mesmo emprestava: "Olha, leva cinco quilos de açúcar, de arroz”. Era tudo nessas coisas, aqueles pacotões gigantes, dar comida pra todo mundo, né? Imagina quando nós éramos todos adolescentes, todo mundo morrendo de fome. Então, era muita comida. Tínhamos uma vizinha também que nos socorria bastante, ela pegava os restos da feira para... ela criava porcos, então, tudo que estava melhor, ela pegava, já separava e levava pra minha casa. Tinha caqui, tinha mamão e, às vezes, o feirante não conseguia vender, descartava no final da feira, não é? Nos socorria assim. Então, tinha muita solidariedade, muita ajuda nesse sentido. As pessoas se ajudavam, colaboravam umas com as outras.
P1: No bairro mesmo?
R1: No bairro, entre conhecidos, entre amigos, pessoas que trabalhavam junto, como tinham pessoas que trabalhavam na mesma empresa do meu pai também, então conhecia. E a gente tinha, também, os funcionários, uma outra coisa que ajudava muito naquela época, o armazém da companhia, né? A Sorocabana mantinha um armazém. Então você podia fazer a compra, você levava o pedido e fazia a compra, já vinha descontado no holerite, no salário. Que deixava o meu pai doido, né, porque a gente fazia a lista e nem sempre o meu pai estava perto, pra ouvir a gente colocar uma coisinha a mais, uma coisa diferente ali, né? Quando ele via: "Ai, meu Deus, vocês colocaram isso aqui, não sei quanto de carne seca, não sei quanto de pêssego, que isso?”. Pêssego em calda, né, era moda naquela época, né? Quando estava surgindo aquilo ali, era tudo novidade. Os enlatados, embutido, essas coisas, era novidade, não existia antes. E tinha o pessoal do campo, o pessoal da roça, não conheciam essas coisas, não é? Então, essas coisas que iam surgindo. Lembro também, nós fomos os primeiros a ter geladeira no bairro, ter televisão também. Nós tínhamos os televizinhos, ((risos)). Eu tenho trauma dos televizinhos. Não por causa... a maioria era meus primos, que moravam do lado, né, que viam para assistir, né, o Zé do Caixão. Eles adoravam o Zé do Caixão. Sexta-feira, não é, lotava a casa pra assistir Zé do Caixão. E quando ele saía do caixão, não é, tinha uma abertura do programa, ((risos)), ele saía do caixão e ele vinha com aquela unha: "Você, esta noite vou levar o seu cadáver”. ((risos)) Uma coisa assim. Eu chorava, eu berrava, eu me escondia. Eu tinha, sei lá, sete anos, oito anos, nessa idade, eu ia pra baixo da cama. E o pessoal todo rindo, o pessoal todo... então nós fomos as primeiras famílias no bairro, assim, que tivemos televisão pra ver o... pessoal é heroico, eu não sei como conseguiram todas essas coisas, não é? Tinha geladeira, fomos uma das primeiras famílias também que tivemos geladeira, no bairro. Mas tudo isso com essa coisa do meu pai de fazer economia e tudo mais, não é? E ajudou muita gente, eu me recordo também. Tinha muita briga em casa, muita discussão em casa, por causa disso. Vinham os afilhados, tinha muito afilhados, né? Afilhados de parentes que vinham pedir pra ser fiador. Aquela época, tinha também muito isso, nada se fazia sem um fiador. Então, quantos canos nós levamos! Quantos canos levamos, não é? Sempre estávamos dispostos, não sabiam dizer não. Vinha parente, vinha afilhado. Ah, brigaram, alugaram um apartamento em Santos. Imagina, nós nem tínhamos condições nem de ter nada em Santos, né, porque Santos era, pra nós, uma cidade mais evoluída e tudo mais, chique, né? Turística. Tinha apartamento, eles brigaram e quebraram a porta, então ia ter que pagar a porta do apartamento e deixaram lá, sabe? Pagou porta de apartamento, coisas assim? Nós nem tínhamos, não é? Por causa dos parentes, essas coisas todas. Então, eles tinham, também, uma generosidade muito grande. A minha mãe era... a gente dizia pra ela: "A senhora é o pronto-socorro daqui do bairro, da vila. Todo mundo que vem, a senhora socorre todo mundo, acolhe todo mundo. Por isso que a gente nunca melhora”. E tudo mais, não é? Uma pessoa muito generosa, muito generosa. Acolhedora, não media esforços pra socorrer nenhum outro, não é?
P1: Fala dos seus pais um pouco?
R1: Olha, do meu pai, um pouco, é isso daí. Meu pai é trabalhador, assim, dedicado, o dono tinha... sabe? Eu não lembro que meu pai tinha faltado um dia no serviço. Nem chegava atrasado, né? Então, esta honestidade, não é? Sempre foi uma pessoa muito correta, muito honesta nas suas coisas, muito direita nas suas coisas. Então, sempre nós... eu acho que um caráter que ele... com que ele educou a gente, que marcou também a nossa educação. Todos nós, né? Minha mãe também. Minha mãe dizia: "Olha, vocês vão limpar privada dos outros, mas nunca pegue coisa que não é de vocês”. Também um pouquinho por causa disso, não é? A questão do medo, estava muito isso presente nela. Não tinha esse discurso, lógico, era outra época, outro tempo. Muito pelo contrário, minha mãe mostrava, assim, uma... embora pele negra e tudo mais, mas ela tinha um certo racismo, que é histórico, não é? É histórico-cultural, que todo mundo conhece. E ela sempre dizia pra gente, ou comentando com as irmãs, com a família: "Nunca quis casar com um homem mais negro do que eu. Sempre pedi a Deus que me colocasse uma pessoa mais clara do que eu”. Porque eu ficava pensando: “Como que eu vou pentear o cabelo dos meus filhos?”. Essas coisas todas. Então, estava muito incutido nela, né, essa questão. E também, por causa disso, que ela dizia sempre pra gente: "Vocês vão limpar privada dos outros, mas nunca peguem o que não é de vocês. Seja honesto, faça qualquer serviço que seja honesto, né, correto”. Porque tinha, muito, essa questão, não é, da imagem do negro ligada sempre a coisas erradas, né? Então: “Vocês não podem manchar, não é, a nossa raça”. Embora não assumisse nunca, mas estava por trás do discurso dela, esse discurso está um pouquinho essa coisa: preservar, por causa da imagem que se tinha, que sempre negros tinham essas coisas. Não é? Era visto como perigoso, como sempre a gente que estava fazendo coisa errada. Então, o discurso dela marcou nesse sentido. E, depois, o valor da fé, não é? São pessoas muito religiosas, não é? A correção, a honestidade, o respeito pelo outro, pelas coisas do outro. Então, sempre teve... a generosidade também da minha mãe, assim, essa coisa: quem viesse, ela estava sempre pronta pra socorrer. Tinha gente que, praticamente, morava lá em casa. Uma senhora chegava lá de manhã cedinho, né e começou a conversar, conversar, aí já ficava pro almoço: "Nossa, mas a sua comida é tão boa. Acho que vou ficar pra um cafezinho”. E ficava. Tinha gente que ficava lá o dia inteiro. ((risos)) Meu pai chegava, né, meu pai: "Olha, está na hora de dormir já, não é?". E a pessoa lá ainda! Lembro um pouco isso. A generosidade, essas coisas, não é? O valor do trabalho, né, a dedicação, são valores que a gente recebeu, eu, tanto os meus irmãos, acho que isso nós preservamos, graças a Deus.
P2: E a religião, como era essa questão?
R1: Porque vem também um pouco dessa... da cultura dos italianos, né? Então, respeitávamos muito as datas religiosas, eventos religiosos. Quaresma é Quaresma pra nós. Quaresma é Quaresma. Não é? Acabou o Carnaval? Acabou o Carnaval. Não se canta mais música de Carnaval, não se faz barulho, não se faz bagunça. Não é? Os dias que pode comer carne, os dias que não pode comer carne, não é? Porque senão você vai criar rabinho, vai ficar com rabinho. Então, (risos) tinha várias dessas coisas. Então, respeitava muito. A Semana Santa a gente vivia com muito intensidade, participava de todas as celebrações de Semana Santa, procissões, das festas todas. Natal, pra gente, era uma coisa, assim... ãhn... que vivíamos com muita... muito empenho, não é? Com muito respeito, dedicação. A festa de Natal era aquelas coisas que italianos faz, com muita comida, que tem muita comida e aí tinha muito dessas coisas também, não é, que nós tínhamos que fazer pras famílias. Por exemplo: panetone. Quem que conhecia panetone? Ninguém ouvia falar panetone. Lá em casa não tinha Natal sem panetone. Não é? E ainda tinha que comprar açúcar cristalizado lá no mercado não sei da onde, tinha que ter todas aquelas coisas de Natal, tinha que ter. Então, investia. Mas não se faz nada sem participar da Missa do Galo antes. Sem a Missa do Galo, não tem Natal. A Missa do Galo, a missa de passagem de ano, a comemoração. As datas religiosas eram sempre muito respeitadas: Corpus Christi, festa da Nossa Senhora, era muito respeitado.
P1: E você disse que __ (32:57).
R1: Isso quando eu era pequeno, sim. Não é? Isso era normal, tinha... quase todos nós, não é? Batizados e tudo mais. A minha mãe muito cuidadosa também com a medicação que tinha que dar pras crianças, carteirinhas, né, que tem essas carteirinhas de vacina e tudo mais. Era muito cuidadosa com isso. E eu fico imaginando, gente, é muito doido. Com cinco crianças, você levar no posto de saúde, aquela carreira... eu lembro que uma vez pra missa, era uma carreirinha, assim, ó. Porque a diferença é de um ano pro outro, praticamente. Você tinha a escadinha. Então, ia a família toda pra missa, não é? Até quando, depois, começou a adolescência, os meus irmãos já não quiseram mais, já fizeram a primeira comunhão e tudo mais e não quiseram continuar. Mas até uma certa idade, era uma carreirinha. Então, cinco crianças carregar levando pro hospital e trazendo do hospital, eu fico imaginando que loucura, sem carro, sem nada não é? Marcar consulta, acompanhar. E não éramos as famílias maiores, tinha família de sete, de oito. E a gente ficar imaginando tudo isso... naquela época, os recursos, . É coisa de doido. É coisa de doido. Eu fico só imaginando. Hoje, as mães, com dois filhos já ficam piradas, né, pra dar conta de tudo e você pensar ainda, roupa. Roupa todo ano era Natal. A gente tinha que esperar o Natal, porque era quando ganhava roupa nova. Era só Natal. Então, sapato, calça, camisa, ficávamos esperando um pouco essa época, né? Então, roupa, alimentação, a saúde.
P1: E era periferia onde você morava?
R1: Eu acho que São Vicente é meio a periferia da baixada. Não é? Porque eu fui esses dias visitar a minha sobrinha, meu Deus do céu! Que tristeza, que abandono! Que abandono! Que situação doida, gente!
P1: Mas essa época de agora pra lá, quando você acha que foi isso?
R1: Eu acho que aquela época era mais tranquilo, porque também a concentração populacional era menor, não era tão grande, não é? E... então você tinha mais espaço para... mas também tinha muita pobreza, mas ainda não tinha água encanada. Nós ainda tivemos que, quantas vezes, buscar barril de água, vir rolando barril de água. Filas até tarde da noite pra você pegar água, pra ter água em casa. Da gente buscar água, ficar em fila aguardando, pra poder encher barril de água, pra poder ir pra casa. Tomava... um bom tempo tinha que tomar tempo de canequinha, não é? Essas coisas todas. Esquentar água, né? Minha mãe também era muito prendada. Muito prendada. Fazia as toalhas de saco. Então, tinha que alvejar o saco, depois aí você fazia um bordadinho que desfiava, depois fazia uma espécie de um bordado, pra dar um acabamento naquelas toalhas, né? Pra cinco filhos, cinco homens, não é? Tomar banho... meu Deus do céu! Era muito trabalho, gente! Eu fico imaginando, hoje, com todas essas facilidades já reclamam, naquela época então, meu Deus do céu! Era muita, mas muita bagunça. Muita bagunça. E os filhos tomavam muito tempo das mulheres, não é? Muito tempo. Nós tínhamos... do lado, morava meu tio, irmão do meu pai, não é? Minha tia casada com esse tio. Também uma senhora muito prendada, que também nos ajudava muito. Ela era uma boleira, uma doceira, assim, de muita qualidade. E interessante essa tia também. Ela - naquela época, era muito difícil, né - tocava acordeão, tocava violão. Mulher que tocava instrumento, era dificílimo. Então, era muito interessante isso também, né? Aí um pouco, ãhn... desse contato, desse... um pouco dessa cultura também, ligada à família italiana. Minha mãe disse que meus irmãos também tocavam piano. Tocaram piano. Os dois mais velho foram pro conservatório, mas não continuaram. Essa minha prima, vizinha, fez, se formou. Ela é médica hoje. E ela fez o curso todo, se formou, participou... em Campos do Jordão que tem aquele festival de inverno, né? Os primeiros festivais de inverno, ela foi classificada pra participar. Então, tinha também um pouco esse contato com a vizinhança muito próxima. Meu pai, ele gostava... ele gosta, gostava muito de música, chegava em casa assoviando. Então, como não tinha filha, ele pegava... quando nós éramos pequenos, ele pegava a gente no colo e dançava com a gente. (risos) Minha mãe tinha que fazer as coisas, então não dava muita atenção, ficava: "Não, eu tenho que preparar a janta, tenho que lavar não sei o quê”. E eu via minha mãe até meia-noite lavando louça. Panelas de pressão pra lavar ali, ariar, não sei mais o quê. Ficava até tarde, a gente ia dormir e falava: "A mãe não vai dormir? A mãe não vai descansar?". Meia noite, uma hora, lavando tudo, guardando, pro dia seguinte acordar cedo, né, botar as coisas em ordem. Então, o meu pai... a minha mãe estava muito atarefada, meu pai colocava música e pegava e dançava com a gente. Ele tinha muitos discos, aqueles LPs. Muitos discos. Então, também é uma família bem musical, embora a gente não tenha desenvolvido muito isso, eu não aprendi muita coisa. Meus irmãos foram mais iniciados no piano, mas o resto, não tocamos nenhum instrumento. Mas meu pai era muito musical. E tinha um pessoal, amigos, a gente chamava de boêmios, né, o pessoal da boemia, mas não eram da boemia de farra, o pessoal que se reunia. Então, era muito legal reunir assim, fazer uma roda num sábado, num domingo e vinha todo o pessoal cantar. Tocar violão, cantar. Era muito legal. Era muito interessante isso. Aquelas músicas daquela época, era muito legal. E o pessoal cantava: “Boemia, aqui me tens de regresso”. E ia longe isso daí, não é? E faziam alguma coisa, comiam. Então, era muito interessante. Uma convivência muito boa. Com todos os recursos, dificuldades, não é? Tinha essas coisas muito boas.
P1: E você __ (39:49).
R1: Isso quando pequeno, né? Eu lembro muito, como eu estava falando pra vocês no início, recordando, eu acho que era mais novo ainda do que quando apanhava pra ir pra escola. ((riso)) Que eu lembro desses brinquedos. Tinha o posto de gasolina, não é? Ambulância, aquela já com... eu nem lembro se era pilha, eu sei que ela andava, soltava a corda e ela ia sozinha. Tinha uns brinquedos assim, muito legais. Mas, assim, as coisas também... como éramos cinco irmãos, cinco homens e nessa escadinha, então ficava assim: passava de um pro outro. A roupa do mais velho passava pro outro, (risos) até você esgotar, né? Então, você aproveitava tudo. Então, você tinha esses brinquedos assim, que eram brinquedos top naquela época. Brinquedos tops, que a gente tinha. Mas ficou no meu irmão, depois ficou pra outro, então o último, coitado, já não tinha muita coisa, né? Não sobrou muita coisa pra ele. Mas tinham esses brinquedos aí, que eram brinquedos, vamos dizer, top. Naquela época, eram brinquedos interessantes. E depois, a gente está no litoral, então, pra onde você vai? A praia é nossa referência. Não é? Tanto que a coisa mais estranha que eu senti, foi quando eu cheguei em São Paulo, saí, eu vim pro seminário, não é? - eu estou pulando, aqui, etapas, né - e o seminário que eu vim, a gente tinha que trabalhar, né? Os padres mesmo falaram. Logo quando eles mandaram a carta pra mim, me admitindo, aceitando que eu visse pro seminário, me mandaram uma carta dizendo assim: "Olha, se você não sabe datilografia..." - naquela época, era datilografia, não é? - “nem venha, você não vai arrumar emprego. E a nossa congregação, enquanto estiver fazendo Filosofia, todos da Filosofia têm que trabalhar, serviço remunerado e a gente não quer que trabalhe com igreja, nada disso, não. Como todo mundo trabalha, pegar ônibus como todo mundo, ver a vida do trabalhador. Você tem que experimentar. Não é falar na teoria, vocês têm que viver a vida do trabalhador normal, como todo mundo faz, como os jovens fazem em São Paulo". E... ai, me deu um branco agora. Então, quando eu vim pra cá, eu falei: "E agora? Vou ter que procurar emprego". Nunca tinha trabalhado fora, sempre dei as aulinhas e me virava com as minhas aulinhas particulares, não é? Falei: "E agora? Como que eu faço? Não conheço nada de São Paulo, nunca vim pra...”. Tinha vindo pra São Paulo raríssimas vezes que a escola trazia a gente pro planetário, pra conhecer o planetário, você vinha pro zoológico, o Museu do Ipiranga, os passeios que a escola fazia. Interessante isso naquela época, não é? A gente já fazia, a escola investia, de São Vicente a gente vinha pra São Paulo, pelo menos uma, duas vezes no ano, para fazer essas visitas, não é? Então, eu não conhecia nada, praticamente. Tinha vindo também, pra prestar um concurso uma vez, no Bosque da Saúde, que eu fiquei: "Mas cadê o bosque? Não tem um bosque aqui, meu Deus? Que lugar é esse? Não tem nada aqui”. Não é? Fui prestar um concurso, mas não conhecia nada. Saí naquele Centro de São Paulo, prédio pra tudo quanto é lado. É estranho isso pra gente, que você tem a visão do horizonte, não é, na praia e não encontrar nada. Você olhava pra um prédio e não era referência nenhuma. Em Santos, São Vicente é bem determinado, bem delimitado, as coisas são bem claras, não é? Você vai na direção da praia. Então, um exemplo: os canais de Santos, você tem canal 1, canal 2, canal 3, né, que marcam, de certa forma, divide as cidades, os bairros. Então, você se localiza nisso. E todos vão dar na onde? Na praia. Né? Então, é muito fácil de você se movimentar na cidade. Não tinha referência nenhuma. Lá nós colocávamos um chinelinho de Havaiana e um short e está vestido. No Centro de São Paulo, todo mundo de paletó. Naquela época então, era assim mesmo, né? Onde estava os Bancos, as empresas do Centro ali, todo mundo de paletó e gravata. Eu falei: "Meu Deus do céu". Fiquei até doente, no primeiro dia. Começou a sair furúnculo por tudo quanto é lado, né? Tinha uns três meses que eu não encontrava nada, não conhecia. Até que começaram a chegar os outros seminaristas, que vieram também do interior, aí falamos assim: "Olha, vamos sair juntos, pra gente procurar emprego? E vamos fazer assim: nós vamos entrar em tudo quanto é Banco". Porque como o único serviço de meio período que a gente encontrava naquela época... que a gente tinha que fazer a faculdade e tem que estudar e o padre do seminário não queria que a gente pegasse período integral, meio período. O único lugar era Banco que a gente ia, que a gente podia trabalhar meio período, era Banco, né? E hospital, mas ninguém... hospital tinha que ter feito qualquer curso da área, um técnico de enfermagem, alguma coisa assim. Então, nós saímos um dia, eu lembro que nós saímos, falamos: "Vamos pegar a Paulista todinha, nós vamos entrar em todos os Bancos, qualquer agência, grande, pequena, nós vamos entrar em todas as agências, pra gente ver se consegue alguma coisa". Acho que saímos em uns sete, oito seminaristas, oito rapazes. Quando a gente chegava nos Bancos, ((risos)) aquele bando chegando nos Bancos, o pessoal todo se afastava, ia pra trás, né? O pessoal fugindo, se afastando, se escondendo. Era assim. Era assim, né? E Bancos também dizendo que não admitiam brasileiros, o Banco de Tokyo, que só era descendente de japonês... tinha outros Bancos, mas não lembro, mas entramos em todos os Bancos. Todos os Bancos tinham que fazer ficha, naquela época fazia ficha, pra depois fazer a entrevista. A gente fazia a ficha, deixava a ficha lá. Acho que não ficou um Banco, uma agência que seja, qualquer agenciazinha, que tenha ficado sem a gente passar. Entramos em todas elas pra fazer.
P1: Só voltando um pouquinho.
R1: Vamos voltar. Eu pulei, dei um salto aí.
P1: Como é que nasceu essa vontade de ser padre?
R1: Isso já na adolescência, de certa forma. Eu fiz toda a caminhada na igreja. Fiz a Primeira Comunhão, que é normal, não é? Eu e meus irmãos todos fizemos Primeira Comunhão. Depois eu continuei na Crisma, acho que nem todos os meus irmãos foram crismados, não... depois da Primeira Comunhão, nós tínhamos um grupinho, que a gente chamava Perseverança. Então tinha um grupinho, uma turminha meia encapetada, não é? Mas era esse grupinho que perseverou, continuou, né? E sempre estão ajudando, participando na igreja, na comunidade. Depois fui pra fazer a Crisma, depois da Crisma já estava participando um pouco mais na igreja, não é? Acho que nessa época comecei a fazer alguma leitura nas missas, se não me engano. Nossa igreja era muito pobre, muito, muito pequena, até hoje. Agora estão reconstruindo a igreja lá em São Vicente, no Bairro Jockey Club, na Fátima, né? Jockey Club, que tem um jockey próximo.
P1: ________________ (47:08)?
R1: Vem da educação e depois também eu fui despertando o gosto, o prazer de estar... ajudar nas quermesses, participar. Nós participávamos muito, colaborávamos muito, não é? E a minha espiritualidade, foi trabalhando, foi sendo trabalhada um pouco nesse sentido, né? Então, eu me sentia bem, me sentia à vontade, eu tinha prazer de participar, tinha alegria em participar, né? Me dedicava. Depois grupo de jovens, aí começou uma comunidade. O nosso padre é espanhol, de origem espanhola e tinha uma freira também que colaborava, espanhola. Muito bom, gente muito boa. Ele é vivo ainda, o padre ainda, que me levou pro seminário, da nossa paróquia, um padre muito próximo do povo. Eu lembro quando ele chegou, ainda naquela época, usava batina, né, era obrigatório, veste obrigatória a batina preta e foi o primeiro padre que nós tivemos. Você pode criar uma comunidade, mas pode não ter um pároco fixo, um padre fixo ali. Então, como cresceu, era um senhor que cuidava, o bispo mandou o padre. Então, quando o padre chegou, uma fila quilométrica pra beijar a mão do padre, pra acolher o padre. Então, tinha esse respeito de beijar a mão do padre. Passou aquilo, o padre tirou a batina, não usava mais batina, usava roupa comum, como nós, né? Que também já começou a reforma na Igreja, né, igreja universal, não é, do mundo todo, a Igreja Católica, começou essa ideia do concílio, começaram as mudanças que vieram, né, a modernização, então não era mais obrigado a usar batina. Então, o padre... e ele é muito próximo do povo, muito... tanto que, na nossa região, nós estamos bem ali no final do município. Que São Vicente, na verdade, é uma ilha, né? Estamos bem no final, onde tem os manguezais. Não sei se você conhece um pouco essa realidade, os manguezais que tinha palafita. As pessoas que não tinham recursos foram chegando em São Vicente, foram... muitos trabalharam em Santos, na construção da cidade de Santos e, como não tinha recurso pra ficar em Santos, foram pra lugares afastados, assim como acontece aqui em São Paulo, né? As pessoas que construíram a cidade, onde estão? Aqui na nossa periferia. Então, foram construindo as casas. E aí você tem a época das cheias da maré e das chuvas. A chuva, janeiro, é intensa. Se aqui é forte, lá é devastadora. Então subia, enchia as casas todas, as pessoas perdiam tudo. E você via, o padre tinha um costume naquela época... até esse nosso grupinho dos encapetados lá, do pessoal da Perseverança, nós apelidamos de Fusca Anfíbio. Era o único que tinha coragem de entrar na água, pegava o povo, colocava todas as roupas das pessoas, aquelas trouxas em cima do carro, amarrava e lá vinha o Padre Júlio tirando o povo da água. E lá vinha o Padre Júlio. Então, essas coisas também despertavam a gente, não é? O nosso desejo também. Talvez aí que comece _________ (50:13) exemplo o testemunho dele, né, do que é ser padre. Né? Pregava muito bem, pregava numa linguagem que o povo entendia. Era muito próximo. Visitava as famílias e chegava na casa... ele era assim: entrava na casa das pessoas, já ia gritando no quintal e já ia entrando, não batia palma: "Filhote, filhote. Ô, como que tá?". E vai mexendo com um, brincando com outro. Então, tivemos uma ligação bastante forte também com o padre. E essa freira também, muito engajada. E depois ela fez aqui o mestrado, doutorado em Teologia, não é? Mas trabalhava na periferia. E, naquela época, ela já tinha feito opção, muito engajada socialmente também, não é? Na luta do povo, na organização do povo. Eu lembro quando ela foi trabalhar em Cubatão... Cubatão não, em Guarujá. Guarujá tem a parte onde estão as casas melhores, né e tem a periferia também, como todo lugar. Então, entrava na periferia, periferia ‘braba’ em Guarujá, muito tempo, eles brigando pra conquistar a coleta de lixo, que não tinha. Não tinha. Então, muita doença, muito rato, muito problema de saúde. E a irmã com o povo fazendo, organizando abaixo-assinado, indo à prefeitura trocentas vezes. Chegou um momento que se esgotou. Ela falou: "Quer saber de uma coisa? Vamos fazer uma coisa. Vamos fazer uma vaquinha, a gente vai alugar um caminhão, nós vamos colocar todo esse lixo e nós vamos despejar na porta da prefeitura". ((risos)) Ela despejou, mas o povo todo se animou, se entusiasmou, todo mundo, criançada, encheram o caminhão com todo o lixo do bairro, pegaram tudo, foram à porta da prefeitura, largaram tudo na porta da prefeitura. Uma semana depois, a coleta começou a funcionar. Irmã Dolores. Irmã Dolores. Muito querida, muito conhecida e muito inteligente, uma senhora muito inteligente. Doutora em Teologia, tudo, ela deu aula, inclusive, em São Paulo, na universidade, mas ela continuava o trabalho. Então, tinha esse engajamento, essa participação. Depois, então, eles criavam comunidades, muitas comunidades também, que era um pouco a prática da igreja: não ter igrejas grandes, mas ter comunidades menores, igrejas menores, onde as pessoas se conhecem, as pessoas se relacionam, se encontram, né? Eu não entendia nada, _________ (52:51), mas eles já estavam dentro dessa proposta. Então, criaram comunidades. Criou uma comunidade nova perto da minha casa, Nossa Senhora das Dores. Aí eu fui lá com o pessoal pra ajudar, pra gente começar a comunidade e a gente fez um grupo de jovens. E muito próximo dessa comunidade também tínhamos casa de palafita, que é uma realidade muito difícil, muito dura. Você tem aqui, tem em Recife, você tem lugar de manguezais, as ruas são todas... como em Manaus também, né? De madeira, você anda por cima de algumas coisas, se equilibrando e ali tem vida, as pessoas moram lá e vivem lá. Então, enchia muito e a gente sempre organizava cestas básicas pra levar pro pessoal, sobretudo no Natal, nós organizávamos muito isso daí. Então, a minha vocação foi surgindo dentro desse ambiente. Também fomos testemunhas desse padre que nós tínhamos, não é? Dessa religiosa. Depois tivemos outra religiosa. Participávamos de encontro de jovens que tinham, as coisas que tinham também na diocese, eu acho que com 15 anos eu tinha já decidido: "Eu quero ser padre". Mas eu fui guardando pra mim, não fui falando pra ninguém. Fui lá, esperando, aguardando, falei: "Deixa eu terminar o ensino médio, e aí, quando eu estava já no último ano, não é, eu falei: "Agora eu tenho que falar pra família". E meu irmão mais velho tinha começado Engenharia e o pessoal torcendo pra fazer Medicina, né? Como tinha boas notas e tudo mais, então achavam. E eu comecei a fazer o cursinho, pra me preparar pro vestibular. Mas na minha cabeça, eu achava: "Vou fazer vestibular pra Filosofia, (risos) vou fazer vestibular pra Filosofia". Mas não tinha falado nada pros meus pais, pro meu pessoal em casa, não tinha falado nada pra ninguém e eles na expectativa de que eu fosse fazer... meu irmão já tinha arrumado até lugar em Brasília pra eu ficar e tudo mais, né? Aí, quando chegou acho que segundo semestre, setembro, alguma coisa assim, eu falei: "Vou ter que falar pra eles". Eu fui falar com o padre que eu pensava, estava pensando em ser padre, gostaria de ser padre missionário. É um caminho um pouco... uma visão um pouco equivocada, não é? Que a gente sempre pensa missionário, é aquele que vai pra fora do país, lugares distantes. Eu pensava em ir pra África, eu pensava em lugares distantes também. Tinha essa ideia de evangelizar em lugares difíceis, distantes. Pensava um pouco isso. E pedi pro meu padre lá... existe uma Congregação Missionária, que eu queria ingressar. Na igreja nós temos diversos grupos assim, nós chamamos de congregações ou órgãos: Franciscanos, Salesianos etc. Então, cada um tem uma função específica na igreja. A gente chama de Carisma. Então, tem os padres que trabalham com hospitais, os Camilianos, por exemplo. Então, tem alguns que são médicos até, alguns padres são médicos e que dão assistência em hospital, pros doentes e pros médicos, pros profissionais. Temos padres que trabalham com jovens, com a juventude, como são os Salesianos, que têm escola, faculdade e o trabalho deles é voltado para a juventude. Foi fundado por Dom Bosco. Dom Bosco trabalhou com jovens e fundou um grupo de padres pra trabalhar com a juventude. Então, nós temos diversos grupos... a gente até brinca, por exemplo, de padres até dá pra saber, mas de freiras, então, não dá nem pra contar quantos grupos nós temos, quantas congregações nós temos. E elas vão surgindo de acordo também com as necessidades, né? Surgiu a questão da Aids, não é? Então, um grupo de freiras, sensibilizado com isso, decidiu trabalhar com os portadores do HIV. Então, surgiu um grupo de freiras com essa espiritualidade de cuidar de Jesus que está doente ________ (56:53). Então, conforme as necessidades, também de acordo com a época, vão surgindo grupos, né, religiosos. Então, eu pensei que seria padre missionário. Então, ele que me encaminhou pro seminário, pra vir pro seminário, para entrar nessa congregação. Surgiu então, nessa época, eu estava no grupo de jovens, com 15 anos e aí fui falar com o pessoal. Falar: "Eu já falei com o padre, inclusive, né? Eu quero ser padre missionário, o padre já está vendo pra mim". Quando eu falei isso em casa, foi uma coisa, uma bomba, como se tivesse caído uma bomba: "De jeito nenhum! Você está sendo influenciado por esse padre e não sei o quê”. Falei: “Não". Mesmo meus pais sendo muito religiosos, não é? Minha mãe então, a reação dela foi essa. Minha mãe, até praticamente na última hora quase, né, ela ainda ficava: "Olha, vai sair um concurso muito bom agora, tem no Banco do Brasil. Por que você não tenta?". Eu já era diácono já, né? E minha mãe: "Olha, mas não sei o quê". Mas depois que eu me ordenei padre, aí pronto, ela... aí mudou completamente, defende os padres. Mas foi uma bomba lá em casa, ficou um clima terrível. Só tinha uma tia, que faleceu agora esse ano, faleceu com o Covid, né, lá no Arraial do Cabo, disse: "Faz mesmo, vai seguir a vida, vai fazer o que você quer. Isso mesmo. É isso que você quer? Vai, vai, eu te dou apoio". Aí depois uma outra tia também, que foi a que me deu o primeiro enxoval, né, pra eu ir pro seminário, toalha, o... eu sou muito grato. Eu nunca mais vi quase essa minha tia, não encontrei mais com ela, não é? Também que me incentivou. E algumas pessoas da comunidade e as pessoas da comunidade, né, que me apoiaram.
P1: Deixa eu te perguntar, do seu contato com o padre ? Qual foi o momento que decidiu isso por caminho?
R1: Eu acho que desde esses primeiros anos. Eu acho que desde os primeiros anos, na catequese. Que eu fui pra catequese também muito cedo. Fiz Primeira Comunhão com sete anos, o que não é normal. Por exemplo: aqui mesmo na paróquia, nós só pegamos as crianças pra Primeira Comunhão a partir de nove anos, que elas têm um pouco mais, sabe, de curiosidade e também um pouco mais de entendimento e conhecimento, pra poder... a pré-catequese, a gente pega antes, até com cinco anos a gente começa as primeiras orações e tudo mais, mas pra catequese e Primeira Comunhão, a gente pega a partir de nove anos. Então, eu lembro que eu fiz Primeira Comunhão com sete anos. Não é? Então, já tinha essa presença... eu sentia um pouco essa questão da presença de Deus na vida da gente e, como somos de família religiosa, então era muito viva. E depois se aguçou nessa fase da juventude, da adolescência e juventude, né? Sobretudo, com as pessoas pobres vivendo naquelas casas, aquelas famílias, né? __________ (01:00:25) meu Deus. Era uma situação muito, muito precária, muito difícil. Ali a gente sente mesmo, né, sempre senti, sentia a presença de Deus __________ (01:00:41), você sente mesmo, não é? Isso foi muito marcante na minha vida.
P1: Você via Jesus branco ou negro?
R1: Eu acho que nessa época havia mais branco, que você tem as referências eram... né? Mas não lembro. Acho que talvez até nem branco, nem negro. Acho que moreno. Porque também __________ (01:01:06) bem pouquinho, né? Da região __________ (01:01:08) não tem, assim, pessoas tão claras, né? Mas a imagem tradicional que você tem, né? Nas casas, nas famílias, pelo menos naquela época... ainda hoje tem muitas pessoas que fazem __________ (01:01:23) Sagrado Coração de Jesus, quase todas as casas tinham Sagrado Coração de Jesus, o quadro, a imagem do Sagrado Coração de Jesus. Então, a referência nossa era ____________ (01:01:32), era essa a nossa referência, né? E nós já pegamos um pouco da mudança da igreja, como eu falei, do Concílio Vaticano II, já pegamos esse momento já algumas mudanças. Tanto que na nossa paróquia mesmo, foi um pouco abrupta a mudança, não foi tão bem preparada, né? Nós chegamos um domingo pra missa: "Cadê as imagens daqui da igreja? O que houve?". Né? _____________ (01:02:00) de não ter tantas imagens. Deixar a imagem ___________ de Jesus e de Nossa Senhora, bastava. Porque estávamos tendo um problema com a religiosidade do povo, que tinha mais devoção aos santos, do que ao Cristo. E o Cristo que é o centro da nossa fé. Não tem sentido. Os santos são os santos, são aqueles que serviram o Cristo. Então, muitas das pessoas buscavam mais os santos, do que o próprio Cristo. Então, a igreja, pra corrigir essa deformação, essa deficiência na educação religiosa do povo, quis colocar: o que é o central da nossa fé. É Jesus ressuscitado. Ele é o centro da nossa fé. Então, retomarmos aquilo que é o centro, que é fundamental da nossa fé. Então, mesmo o Concílio Vaticano vem pra colocar de volta aquilo que é o central, pra gente não dispersar. Mas só que foi, assim, sem preparar, sem nada. Chegamos na igreja, os móveis mudados, né, onde colocavam as imagens: "Cadê?". Não é? Nós tínhamos uma... eu esqueço o nome. Ela tem um nome próprio, né? O lugar onde você senta pra comungar, você ajoelhava, não é, e o padre vinha colocar a comunhão na boca de cada um. Aí já teve a mudança, você já recebia a comunhão na mão. Os idosos, mais velhos, então, foi um escândalo, foi... sabe? Até entre os bispos, nossa, muitas discussões entre os bispos mais velhos, tradicionais, né, que não admitiam isso: "Como colocar a mão, que é suja?”. Não é? “O Senhor, tocar no Senhor, no corpo de Cristo? Isso é uma ofensa, uma blasfêmia". Até que um bispo, numa das reuniões dos bispos do Brasil, um bispo levantou assim, me parece... não lembro quem foi, pra gravar nome eu sou terrível, também de uma certa idade, levantou e falou assim: "Olha, e a língua não é muito mais suja, às vezes, do que as nossas mãos?". Questionou os bispos todos. Aí os bispos se calaram, muitos se calaram e aí conforme foi, foram aceitando mais. Mas então essas mudanças... por exemplo: o instrumento que era permitido na missa, era só o órgão, né? O harmônio que tocava. Não se podia tocar outro instrumento. Aí já foram tocando um violãozinho, já foi entrando o violão, um ritmo mais próximo do povo, mais popular. Então, parecem mudanças muito bobas, muito pequenas, mas são grandes mudanças na igreja, né? E também que motivou os jovens. E depois também, nós tínhamos, começaram nessa época, a entender um pouco da história da igreja, não é? A participação da igreja nos movimentos, os movimentos juvenis, nos movimentos operários e tudo mais e nós tínhamos, na nossa paróquia, alguns jovens que estudavam aqui em São Paulo, se não me engano, estudavam era na USP, que também sofreu essa influência dos movimentos estudantis e tudo mais e eles voltavam nas férias, feriados prologados, pra São Vicente e participavam na igreja lá, no bairro, não é? Já com essa visão. Então, até as orações que eles faziam durante a missa despertava a gente, coisa que a gente não prestava atenção. As preces que eles faziam eram preces dentro da realidade nossa, do povo sofrido ali, daquela situação toda nossa, de abandono, de desprezo, né? De um povo totalmente jogado naquela periferia, sem recurso algum, esquecido totalmente. Eles colocavam nas orações, a realidade. Então, aquilo lá, quando você ouvia, parece que era... as preces eram muito mais realistas, né? Então, aquilo também começa a despertar em você uma outra consciência, um outro jeito.
P1: _________ (01:06:06)?
R1: Sim.
P1: Perguntar uma coisa íntima: depois que você se ordenou padre, ____________ (01:06:18) mulheres?
R1: Não.
P1: Mas antes. Antes de se ordenar padre.
R1: Alguns namorinhos. Namoros assim, muito... mas como eu já desde os 15 anos praticamente, eu já pensava nisso, não é? Mesmo no ensino médio. Aí vinha, se aproximava, tal, eu falava: "Caraca, _________ (01:06:40) vou deixar essa menina aí? Não vai dar nada, isso aí não vai dar certo, não. Melhor ficar amigos, vamos ficar amigos e vamos”, não é? Eram uns namoricos assim, mas nada muito sério não, porque eu tinha essa consciência clara, que eu queria ser padre e eu sabia que não podia casar, porque padre não podia casar. É doutrina da igreja até hoje, né? Então tinha, tinha lá um pessoal apaixonado e tudo mais.
P1: E como foi domar essa coisa biológica?
R1: Eu acho que não é questão de domar, né? É questão de você estar engajado numa causa, envolvido, de fato, né? Que aquilo preenche você. E, se você se apaixona, se você se interessa por alguém, ninguém toma uma injeção, a gente não toma uma injeção pra ficar imune, né? Vai acontecer, em algum momento, vai acontecer. Você tem que lidar com isso também, porque faz parte da vida da gente, não é? Mas você tem que fazer... são opções que você tem que fazer, são escolhas. E eu digo sempre pro pessoal, mesmo quem quer ser padre e tudo mais: “A gente faz escolhas, não é entre coisas fáceis. Se fosse, tranquilo, não é opção, é uma escolha, né?” Você faz escolhas que têm peso importante na sua vida. Ter família é um peso importante, claro que é, né? A questão da sexualidade também é importante, não é? E você tem outras coisas que você tem também, que você se apaixonou, que você se enamorou por ela, aí você vai ter que tomar uma decisão. É uma escolha que você tem que fazer, não é? E você vai ter que arcar também com as consequências disso. Mesma coisa quem casa, não é? __________ (01:08:22), não é? Você tem responsabilidade, vai ter uma série de coisas que vai ter que arcar. __________ (01:08:32) se tem filhos, não é? ____________ (01:08:37). Então, você tem que fazer escolhas, tem que fazer opções e vai convivendo com algumas coisas que têm algumas contradições. Tem momentos mais difíceis, tem momentos mais fáceis e tem também essa presença da comunidade, que isso preenche bastante a sua vida. Eu nunca pensei nisso, né? Você fazer de propósito, fazer... você tem, assim... eu tenho tantos que se sentem meus filhos. É interessante isso, não é? Ah, o Dia dos Pais, tem uma turma que manda recado agradecendo: "Você é um paizão pra nós, não sei o que, tal, tal, tal". ___________ (01:09:23) não quero ser chamado de pai, não quero que eles me considerem pai ______________ (01:09:30). Mas a nossa convivência, intimidade com esses jovens, com essas pessoas adultas mesmo, né? Então, você tem um monte de filhos por aí, filhos espirituais, que você apoiou no momento, que você aconselhou, que você orientou __________ (01:09:47). Eu digo: “É a nossa família”. Quando um casal separa, pra gente é dolorido também. Você acompanhou aqueles jovens, acompanhou aquela turma, você torceu por eles, você acreditou. E isso você sabe que não vai dar certo. Não, tem, mas são teimosos, cabeçudos demais. Você recomenda, fala com eles, você orienta. Você está vendo. Né? Mas são teimosos. Aí você fica triste com isso. Porque tem outros que sofrem também, ainda mais quando tem filhos, né? Tem uns que sempre tão em contato comigo “Rapaz, eu não tinha falado pra você?” sabe? Você faz tudo que você pode, onde você alcança. Mas é importante, é uma referência importante também, né? A presença da mãe e tudo mais. Então, vai pra lá, vai pra cá, joga de um lado, do outro. É sofrido. Quando eu fui lá pro Jardim das Oliveiras, a minha primeira paróquia foi aqui na Parada XV, né? Fica entre Guaianazes e aqui, Itaquera, na Parada XV. Então, tinha a estação de trem ali da Parada XV e o acesso pra universidade, lá pra Mogi das Cruzes, é fácil. Então, nós temos muitos estudantes universitários, muitos, aqui no bairro, muita gente fazendo faculdade e tudo mais. Então, quando eu fui pro Jardim das Oliveiras: "Quem está fazendo faculdade? Quem está estudando?". Não aparecia um. Quando a gente começou, incentivamos, fomos começando a incentivar o pessoal a estudar, fazer faculdade e tudo mais, né? Quando o pessoal começou a aparecer, ah, eu pedia pra bater palma, pra aplaudir, pra... né? Imagina. A gente fica contente. Não é fazer cena, nada disso, não. A gente fica contente. É como um filho seu que está indo pra faculdade, que está... sabe, organizando a sua vida, repensando a sua vida. É muito bonito. Então, você tem uma família imensa. Com tudo aquilo, com os ônus e os bônus, né? Os problemas, dor de cabeça também, que sobra pra você também, não é? E as alegrias. E as alegrias, não é?
P1: E, padre, ia te perguntar se você tem algum contato com as religiões, né, do lado de cá: candomblé. Como é que você concilia isso?
R1: Litoral não tem jeito. Litoral é muito forte isso, né? Não desrespeitando, não eram, assim, desrespeitosos, não era nesse sentido, mas, por exemplo, os despachos eram na porta da igreja. Muitos. Litoral tem água, tem o mar, Iemanjá, essas coisas todas. Então, litoral é muito forte as religiões de origem afro, africana, são muito presentes, não é? Umbanda, candomblé. Mais essas, né? Então, na porta da igreja eram despachos enormes, não é? Sempre a gente via. A minha tia, que foi casada com o meu tio, irmão da minha mãe, tinha um terreiro, não é? Minha avó, essa de origem, ãhn... índia, né, era muito católica, mas ela dizia que também recebia os caboclos dela. (risos) Ela tinha os caboclos dela também, né? Então ela falava assim: "Não mexe comigo, viu? Não mexe comigo, eu tenho os meus caboclos _________ (01:13:45)". Ela não falava brincando. E eu respeitava. Então, essa minha tia tinha o terreiro, só que a gente quase... a minha mãe não queria que a gente participasse, que a gente ia, mas a gente sempre ia visitar. Então, quando tinha festa, porque em festa não pode faltar, tem comida, bastante, né, bastante coisa gostosa, né? ((risos)) Então, à festa a gente não podia faltar, então a gente fugia de vez em quando, quando tinha festa. Tinha umas coisas que a gente ficava um pouco assustado, né, porque __________ (01:14:13), então a gente ficava um pouco assustados e nos lugares mais reservados da religião, não é? Então alguns, a gente tinha um pouco de acesso, por ser o estudante da família, então que a gente invadia as casas, então sem querer você tinha lá um... mas tinha as partes muito reservadas, que é só daqueles iniciados, não é? Então, alguma coisa a gente sempre tinha contato, sempre teve essa proximidade, não de participar, não de estarmos presentes. Eu lembro que uma vez eu fui pra levar, tomar um passe numa sessão, não é? Então, tem um pouco esse contato, não de vivência direta, não é? Mas contato a gente sempre teve, querendo ou não, porque estava ali na família um pouco, tal, o pessoal e mesmo pelo espaço que a gente vivia, não é? Litoral você encontra. _________ (01:15:18). Teve um ano, inclusive, que eu não estava bem de saúde e eu fiquei afastado. Foi o único ano que eu não celebrei o Natal e Ano Novo na paróquia, não é? Eu estava de repouso, então não podia celebrar. Aí eu estava em casa descansando, eu falei pra um amigo, Luciano: "Vamos lá na praia, na passagem do ano?". Né? É incrível. É incrível. Você fica assim, né, de boca aberta com essas coisas. Tinha um tapete de velas assim, né, na beira do mar, as pessoas fazendo as suas devoções, com muito respeito, né? É muito bonito. É muito bonito. E você via também muita gente que ia na igreja, estava lá também fazendo suas oferendas: "Pelo sim, pelo não, vamos dar os três pulinhos, vamos levar um perfume, vamos levar uma rosa, vamos jogar uma rosa, vamos fazer um pedido". Então, tem muito esse __________ (01:16:19) também no litoral, a gente vê bastante isso, via bastante, convivia com isso, convivia com isso. E você tem uma quantidade enorme de terreiros espalhados no litoral, terreiros grandes, terreiros pequenos, não é? Você tinha casas, não é, de axé e tudo mais, em muitos lugares. Você está celebrando aqui e o atabaque está batendo do lado, você está ouvindo lá o atabaque.
P1: Você estava contando a sua formação __________ (01:17:04) e foi nesse momento que você se mudou pra São Paulo?
R1: É, eu vim quando eu terminei... aliás, eu terminei o ensino médio, chamava colegial naquela época, né, depois segundo grau, concluí, aí fui apresentado pra congregação, Congregação do Verbo Divino, Missionário do Verbo Divino, a Casa Central Seminária, que é aqui em Santo Amaro, não é? Mas, quando vim falar com os padres, já tinha feito o... já ia começar o ano letivo. Eles falaram: "É melhor você ficar em Santos, você fica, você faz o primeiro ano da Filosofia aqui em Santos, depois você pede transferência e vai com a gente e a gente vai acompanhar você de longe". Então, o primeiro ano da Filosofia eu fiz em Santos, continuava participando da minha comunidade local, não é? E vim pra cá, pra São Paulo, no segundo ano de Filosofia. No primeiro ano, meus pais... foi em faculdade particular, Faculdade de Santos, particular, né? Meus pais não podiam ajudar, não tinham condições, então o padre que me ajudou, né, a pagar os estudos. O que eu ganhava lá com as aulas particulares não dava pra pagar os estudos, então eu fiz _________ (01:18:25) que é o Fies hoje, né? Falei: "Também não tenho condição de ficar pedindo pro padre todo mês a colaboração". Me ajudou a pagar a matrícula e entrei no crédito educativo e depois os padres aqui de São Paulo iriam pagar esse ano que eu já tinha feito de crédito. Aí vim pra São Paulo, a recepção foi ótima. Assim que desci na rodoviária, a polícia me parou ((risos)). A polícia me parou. Vem de Santos, vem do litoral, é droga, é o pessoal da droga. Me fez abrir a mala, não é? Ainda... o que eu tinha? Sei lá, o enxoval que a minha tia tinha me dado, não tinha muita roupa, não tinha nada quase, no meio de todo mundo ali na estação Jabaquara, na frente de todo mundo, abriram a mala e olhando, vasculhando se eu tinha alguma coisa. Então, a recepção foi ótima quando eu cheguei aqui em São Paulo. Vim pro seminário seminário, tem que acostumar, não é? Era um outro estilo de vida, você tem horário, você tem todas essas coisas, você tem que ter uma certa organização na casa. Eram 20 homens, né, 20 seminaristas, só da Filosofia, né, foi feito... o nosso seminário estava em... fazia uma remodelação, uma mudança, então os que estavam na Teologia ficavam do outro lado e a gente ficava nessa casa, que era só dos filósofos. _____________ (01:20:00) sai de casa e você morar com muita gente, né? Pra tomar banho, cuidar das roupas e tudo o mais, limpar a casa, como que é que você faz, a capela, você tem jardim, _______ (01:20:12). Então, tem que se organizar nesse sentido. Isso é normal, todo mundo que vai pro seminário... cada seminário tem também um pouco isso. E fui procurar emprego, como eu te falei. Procurei emprego três meses sem achar nada, furúnculo. ((risos)) Depois de três meses, aí começaram as aulas na faculdade e, ao lado da faculdade... nós estudávamos ali na Paulista com a Haddock Lobo, Colégio São Luís, né e a Faculdade de Filosofia nossa era __________ (01:20:43) jesuítas ali, né? E ali atrás, falei: "Olha, tem um Banco aqui. Nunca vi esse Banco”. Banco Internacional para a América Latina, uma coisa assim. “Será que é Banco, mesmo? Deixa eu ver aqui". Aí fui lá, falei: "Olha, estou procurando um emprego. Vocês estão admitindo? Estão fazendo ficha?". Ela falou: “Ah, estamos fazendo ficha. O Banco está funcionando, está começando a funcionar, você faz uma ficha e vem fazer um teste, tem um testezinho aí. O que você está procurando?". Falei: "Qualquer coisa” “O que você...”. Eu falei: “Qualquer coisa, de boy, qualquer coisa, office boy, o que vocês quiserem". Né? Ela falou: “Está bom, então vem fazer o teste". Fui fazer o teste. Fui péssimo no teste, fui mal no teste, né? De office boy. As ruas de São Paulo, ônibus, né, que eu sabia, conhecia: a Praça das Bandeiras, a Praça da Sé. Só isso que eu conhecia de São Paulo. A Paulista. Mais nada. Aí falei: "Olha, mas na Praça das Bandeiras tem ônibus que vão não sei pra onde. Então ali também tem informação, a gente consegue qualquer lugar" "Também na Praça da Sé?" "Também. Olha, sai uma série de ônibus, tem o ponto final dos ônibus ali que a gente pode ir pra zona leste, zona oeste, não sei o quê". Passei lá. "Numa conta, qual o dígito mais importante? É o dígito final, não sei o quê?". Meu Deus do céu, eu nunca tive conta em Banco. Era a coisa mais rara você ter conta em Banco, né? Não era qualquer um que tinha, né? Falei: “É o dígito do meio”. Você bate o olho e você... não sabia nada. __________ (01:22:38) controle das contas e tudo mais. Mandou eu fazer uma pequena redação, fiz. Aí falei: "Ah, acho que nem vou ver o resultado. Vou passar vergonha, pelo amor de Deus, eu não vou". Mas fui. Falei: "_______ (01:22:48) nada, deixa eu ir lá dar uma olhada". Fui lá, a menina do departamento pessoal: "Você foi muito bem nas suas respostas. Você está no segundo de Filosofia, né? Você está na universidade e tudo mais. Nós vamos admitir você, só que você não vai ficar como office boy, você vai pro departamento de câmbio. Só que tem um probleminha: o último cliente é oito horas da noite. Você vai ter que ficar até às oito horas". Falei: "Ai, caramba. E agora? Como que eu faço?". Como eu vim de transferência de Santos, eu tinha matérias pendentes que eu tinha que cursar à noite. Então, eu ia pra faculdade de manhã, né? A gente aplicava todos... estudávamos de manhã, todos os cursos, o normal era de manhã e a gente fazia, então, as adaptações de matérias, quem tinha transferência, alguma coisa, fazíamos à noite e tinha outros que gostavam de outras, vinham fazer outras matérias, né, em outras faculdades, também vinham à noite do seminário pra fazer essas matérias. Falei: "Caraca, __________ (01:23:42) naquela aula daquele professor ___________ (01:23:48) rigoroso e não sei o quê. O que eu vou fazer?". Falei: "Não, mas eu fico, eu fico". Eu estava já cansado de procurar, não achava nada, falei: "Eu vou ficar". Aí, nessa semana que eu consegui fazer essa ficha, tal, ela ia providenciar a documentação, aí saiu um do Banco Sulbrasileiro, que nem existe mais também, né? Aí falei: "Ah". E como esse do Banco Sulbrasileiro eu podia... não precisava ficar até tão tarde, seis horas podia sair, falei: "Eu vou ficar nesse Banco". Aí comecei nesse Banco, no Banco Sulbrasileiro, no Centro, aí saiu o resultado de um concurso que eu tinha feito... não, não, desculpa. Saiu do Banco do Estado do Rio de Janeiro. Falei: "Caraca. O Banco do Estado do Rio de Janeiro é melhor, o que eles estavam me oferecendo, o salário também é um pouquinho melhor, está mais próximo, eu saio da faculdade, já desço a Augusta” - ficava na Rua Augusta – “estou ali pertinho. E agora? Como que eu faço? Primeira semana de trabalho, agora que eu... eu não encontrava nada, nada, agora... agora que eu mandei....". E naquela semana, eu mandei a carteira de trabalho e a carteira de trabalho ia pra matriz, que era em Porto Alegre. Falei: "Caramba, como que eu vou fazer?". Fui no departamento pessoal, falei com a menina, ela falou assim: "Vamos fazer assim: semana que vem é a Semana Santa, né? Vocês vão trabalhar até só quarta-feira, o Banco vai funcionar. Então você fica, porque você vai ganhar a semana toda e você justifica lá no Banco do Estado do Rio de Janeiro que você está providenciando a documentação". Aí fiquei, eles mandaram a carteira, aí ganhei duas semanas, ganhei mais alguma coisinha lá, eles me pagaram, fui pro Banco do Estado do Rio de Janeiro. No Banco do Estado do Rio de Janeiro, primeira semana saiu o resultado de um concurso que eu tinha feito pro Banco do Estado da Paraíba. Falei: "Não é possível. Não é possível, eu estou aqui agora...”. E o Banco do Estado da Paraíba, melhor ainda. Ficava ali bem no Centro da cidade, não tinha ninguém, não passava uma mosca lá nesse Banco, também no departamento de câmbio também, mas foi a mesma coisa, tinha que ficar até último cliente. O salário era melhor e tudo mais, um Banco super... uma agência que... não tinha uma agência aqui em São Paulo do Banco da Paraíba, _________ (01:26:05) era por lá que passava, mas pouquíssimo movimento. Aí eu falei: “Melhor ficar por aqui”. Depois saiu de um outro Banco, que não valia nada, um Banco aqui de São Paulo, que pagava muito mal e, além do mais era, assim, uma disciplina de exército: você tinha que ir com o cabelo cortadinho direitinho, gravata, terno todos os dias. Se fosse o terno amassado ou coisa parecida, você voltava pra casa. Eles descontavam qualquer coisa. Todo mundo que trabalhava nesse Banco reclamava demais. Falei: "Não, vou ficar aqui no Banco do Estado do Rio de Janeiro mesmo". Não exigia terno, né, não tinha que usar gravata, tudo, camisa social e tudo mais e tinha uma turma muito legal. Tinham uns jovens que eram da USP, estudantes da USP e tudo mais. Então, eu fiquei nesse Banco, trabalhando nesse período do seminário, não é? E a gente fazia pastoral, trabalho de pastoral lá no final da zona sul, lá no Jardim ngela. Aí fiquei até o final da Filosofia, terminei a Filosofia...
P1: Como foi a experiência na faculdade?
R1: Na faculdade? Normal.
P1: Normal?
R1: Normal. Estudar, estudar, estudar. Não é? E a gente... eu tenho um amigo que eu reencontrei agora, do tempo da faculdade, também ele depois casou, deixou... estava se preparando pra ser padre, mas depois deixou e tudo mais, não é? E a gente recordando naquela época, nós, que trabalhávamos fora, tínhamos a mesma nota daqueles que não trabalhavam. Que, geralmente, quando você vai pro seminário, é vida de oração, uma vida reclusa, não é? Oração, trabalho, mas o trabalho interno só, não é? Trabalho nas comunidades e tudo mais. Não tinha um trabalho remunerado, não tinha um trabalho fora. E nós tínhamos, né, que pegar ônibus, passei uns perrengues. Uma vez me esqueceram lá na faculdade e aproveitei, falei: "Já que eu estou aqui, deixa eu pegar e fazer outras matérias também". Aí comecei a fazer matéria, que era política e esse professor ficava até o último segundo, ficava até o último segundo. Aquele frio de junho, que era frio demais. Aqui em São Paulo, quando chegava maio, já começava a temperatura, né, a gente ia pra faculdade de manhã, você via aquelas camadinhas de gelo ainda, né, evaporando, até 10 horas você via aquilo lá. Naquela época, era assim. E o pessoal viu a porta fechada, pensou que eu tinha ido embora já. Me largaram lá sem dinheiro, com fome, que eu tinha... tivemos aula de manhã na Filosofia, fui direto pro trabalho, do trabalho vim pra matéria da noite, fiquei - no Banco a gente tomava um cafezinho, não é - sem janta, com fome, com frio e gelado, sem dinheiro. E eu ali naquela Nove de Julho, pegar o ônibus pra voltar pra casa: "Como que eu faço agora, sem dinheiro? Eu vou entrar em qualquer ônibus e vou ficar no fundo". ((risos)) Antigamente, a gente entrava atrás, você não entrava pela frente, entrava por trás no ônibus: "Vou ficar aqui até chegar lá perto e vou falar pro cobrador que eu não tenho dinheiro _________ (01:29:28) e ver se me deixe sair pelo fundo”. Aí fiquei, não tinha quase ninguém no ônibus, tinha um rapaz do exército__________ (01:29:42) e eu de gravata, social, do Banco pra ir pra faculdade. O rapaz ficou olhando assim. Falou: “Não, eu sou do exército, a gente não paga condução, não tenho dinheiro também”. Falei: “Meu Deus! E agora? Como é que eu vou fazer?”. Estava chegando. E o motorista já estava fechando lá a conta, né? Aí uma senhora com uma criança desceu, quando estava passando em frente ao hospital, com uma criança no colo, passou, eu falei: “(01:30:08) pra ela, misericórdia". Aí ela olhou assim pra mim, não é? Como se dissesse assim: “Eu que queria pedir pra você, você...”. Aí ela meio cismada assim, ela falou: “Está bom, eu vou pagar pra você". Aí eu falei assim: "Me dá o endereço da senhora pra eu levar o dinheiro” "Não, não, não precisa, de jeito nenhum". Mas, assim, tem uns perrengues. Imagina você ficar no frio, fome. Mas a convivência na faculdade, normal, nós tínhamos que estudar, fazer trabalho, essas coisas, correria, porque como nós estudávamos e trabalhávamos, então o final de semana era mais pra fazer isso, preparar os seminários, as coisas que tinha que entregar, né? Um pouco esse ritmo. O trabalho não era nada agradável. Eu fui contratado como... seria hoje o assistente administrativo, né? Mas me colocaram lá no Banco pra bater talão de cheque naquela época. Era uma coisa, assim, do tempo da pedra. Era uma pedra mesmo, você tinha um negócio de ferro, como se fosse uma máquina que você batia assim e tinha um clichê onde imprimia, na folha do cheque, o nome, o endereço da pessoa, então, você tinha que bater ali pra ela poder... ficava peft, peft. Falei: "Meu Deus do céu, vim trabalhar no Banco pra fazer esse negócio, ficar batendo no talão de cheque aqui?”. Eu falei: Não acredito que eu vou fazer um negócio desse". E era horrível, porque tinha umas empresas muito grandes ali da... que tinham conta na Augusta: a Kibon, Monsanto, então eles chegavam na última hora, saía seis horas, estava saindo, estava terminando o expediente, o diretor da empresa vinha, o diretor da... queria 20... "Quero 20 talões de cheque agora". Nós tínhamos talão de cheque especial pras empresas, com 20 folhas. 20 talões de cheque, 400 folhas. Tinha que bater uma por uma. Eu tinha que abrir, pá, pá, pá. E a máquina às vezes prendia aquela... o clichê saía do lugar, tinha que arrumar. Era uma fita igual fita de máquina de escrever, mais larga, né? Então que ela batia e saía, então imprimia lá. Eu já estava assim tão cansado, tão estressado já, eu batia com tanta força, que eu bati no dedo, abriu meu dedo aqui, olha, até hoje, né? E rasgou meu dedo no meio. Falei: "Meu Deus do céu, onde eu vim me meter?". Mas lá tinha um grupo muito bom, interessante. Como eu falei assim, era um grupo de estudantes universitários, a gente conversava. Então tinha greve, opa, a gente parava. A gente fazia greve, a gente conversava lá entre nós: "O Banco explora tanto a gente". Tinha toda uma discussão, já começavam... estavam iniciando os movimentos, né, praticamente greve era proibido e os bancários e os metalúrgicos foram que iniciaram o movimento grevista, retomaram o movimento grevista, já no final da Ditadura. Todo o movimento do fim da Ditadura, então nós participávamos muito disso, das assembleias, discussões e esse grupo que sempre: "Não, vamos parar o Banco, vamos parar, vamos fazer piquete, vamos lá. Mas os outros Bancos também, o pessoal tem que parar, né, esses Bancos que pagam pior do que o nosso aqui, que exploram tanta gente. Não, vamos lá". Então tinha esse movimento, esse envolvimento, que era bastante interessante. A gente vai despertando pras causas sociais, a participação social.
P1: __________ (01:33:59)?
R1: Partiu daí mesmo, da faculdade, cursando a faculdade, né, você vai tendo uma outra visão das coisas, né, as discussões de tudo, das palestras, aprofundamento. Então, foi um período também bastante incerto, né, estava tudo borbulhando, estava agora voltando, era o fim da Ditadura. Então, um ambiente que fervilhava, né? Era propício pra isso, um ambiente propício pra investigação, pra discussão, pro debate, né, pra aflorar uma série de coisas, que durante a Ditadura, estavam escondidas.
P1: Como foi essa vivência com a ditadura?
R1: Ixi, nós tivemos que fugir de cavalaria, nós tivemos que fugir de bomba de gás lacrimogênio, esconder. O que a gente teve que esconder, de correr daquela cidade, no Centro da cidade. Não tinha um buraco que a gente não conhecia. Perto do Anhangabaú, perto do... ali que era o lugar das manifestações, na Sé, né, lá em São Bento. Era por ali as manifestações. Então, a gente já tentava localizar estrategicamente pra onde você ia correr caso viesse a cavalaria, caso houvesse repressão. Você tinha que localizar pra onde você ia correr, pra que lado você ia correr. Não é? Era pra uma loja? E as lojas também, logo o pessoal baixava as portas, então era mais difícil ainda, né? É pra um banheiro? É pra um...? Pra onde você vai correr? Pra igreja? Pra onde você vai correr? Então, nós tivemos muito disso, nós fomos... tivemos que correr bastante.
P1: E isso por causa das manifestações?
R1: As manifestações, é. No tempo da Ditadura.
P1: E qual que foi a primeira manifestação que teve?
R1: Foi dos bancários, foi o movimento dos bancários. E na faculdade nós apoiávamos bastante também o movimento dos metalúrgicos. Então, fazia cesta básica, porque eles ficavam sem salário, cortavam o salário dos metalúrgicos, mandavam embora muitos metalúrgicos, que estavam envolvidos nos movimentos sindicais, eles mandavam muito embora. Então, a participação, também o apoio aos movimentos, a gente teve uma participação interessante nesse período.
P1: Em que período?
R1: Isso nós estamos na década de 80. 1979, 1980, 1981. Eu me ordenei em 1983, já no final da Ditadura, né? Mas foram anos difíceis. Então, na universidade você tinha essa discussão, tinha esse debate na universidade. Foi coisa muito interessante. Graças a Deus eu fui pra uma congregação muito aberta, tinha uma formação muito interessante. O padre superior da nossa casa, não é, era alemão. A congregação que eu fui foi fundada na Alemanha por esse padre missionário, mas ele incentivava muito a cultura. Então, ele mesmo falava: "Olha, vai ter uma peça muito boa. Vocês vão assistir Macunaíma”. Imagina, estudantes assistir Macunaíma! Tinha nudez, tinha palavrão, tinha tudo, né? "Não, vocês têm que assistir. É importante". Tinha um filme bom? Geralmente, seminário é assim: como é muita gente, então é van, né, o transporte é esse, nosso. Todo mundo já sabia: “Vamos levar os seminaristas”, era van. Antigamente era Kombi, né? Então, lotava a Kombi, levava a gente pro cinema, pra assistir esse filme. Era muito importante. "Vamos ver isso daqui, vamos assistir isso daqui". Tínhamos uma discoteca muito boa no seminário também, né? Caetano, Milton, Gil, não é? Esse pessoal dessa época. Tinha uma discoteca muito boa, uma seleção muito boa. Então, se incentivava muito essas coisas no nosso seminário. Então, foi uma formação muito boa, nesse sentido. E eu fiquei até o final da Filosofia com esse padre missionário. Aí, quando termina a Filosofia, você tem que fazer um pedido pra você fazer... chama-se noviciado. Noviciado, você vai conhecer a congregação melhor, o carisma da congregação, como foi fundada, onde foi fundada, qual o propósito que foi fundada, qual é o trabalho dessa congregação missionária, onde nós estamos, quais países que nós estamos, qual o trabalho que desenvolve. E a nossa era Verbo Divino. Então, o conhecimento da palavra de Deus, né? Então, estudar a Bíblia, ter um conhecimento muito grande da Bíblia é fundamental pros padres da congregação. Mas aí, nesse momento de noviciado, noviciado é fechado, é tempo de oração, tempo de estudo e oração, você não trabalha, fica... né, é mais... um tempo mais de espiritualidade, mais aprofundado. Mas nós tínhamos, chama-se mestre noviço o padre que é responsável por orientar os noviços, acompanhar os noviços, né, chama-se mestre noviço, era um alemão, assim, muito rigoroso, muito. Então entrava, por exemplo, 20 seminaristas, ficavam dois, três no máximo. Fazia uma triagem assim, não é? Ele era muito rigoroso, muito exigente e o pessoal não aguentava. Aí eu falei assim: "Eu vou... estou sabendo que talvez vai mudar o mestre noviço, (risos) vai mudar daqui uns anos, não é? - já estava adiantando o tempo dele – “eu vou pedir, ao invés de fazer o noviciado, vou pedir pra fazer a Teologia direto, passar pra Teologia, pra depois fazer o noviciado". Tem outras congregações que permitiam isso, mas tem que estar no estatuto da congregação, daquela ordem, não é? Dentro das regras daquela congregação.
P2: Qual a duração do noviciado?
R1: Depende da congregação. Tem congregação que é um ano. A nossa é um ano. Tem umas que são dois anos, tem outras que são três anos, porque junto com o noviciado, você tem uma experiência, você para os estudos, pra fazer uma experiência in loco, vai onde está a congregação, vai pra um lugar, vai pra Amazônia, vai pra periferia aqui de São Paulo, vai pra favela, vai pra algum lugar assim, pra você... aí eu pedi, só que não foi aceito o meu pedido. Falou: "Não, mas a nossa congregação não permite, talvez seria bom você fazer uma experiência no clero diocesano". Não é? Porque o clero religioso, os padres religiosos vivem em comunidade, não pode morar sozinho o padre, tem que ter uns dois, três, você não vive sozinho. A diferença entre os religiosos e os diocesanos são essas. Eu, por exemplo, sou padre diocesano agora, não é? Então eu não preciso morar com ninguém, não necessariamente. O bispo pode dizer: "Olha, eu vou mandar um vigário pra te ajudar, porque eu estou vendo necessidade". Aí eu vou ter que aceitar, mas necessariamente você não precisa ficar com outro padre, você pode ficar sozinho. Religioso não, ele nunca fica sozinho, são pequenas comunidades, você vive a vida comunitária, é vida comunitária e a gente é educado pra vida comunitária. E aí falou assim: "Acho melhor você fazer uma experiência no clero diocesano". Aí saí desse seminário, já sabia que queria ser padre, falei: "Bom, não tenho perspectiva nenhuma, não sei se volto pra Santos, se vou me engajar na diocese de Santos, procurar o bispo lá". Falei: "Vou ficar por aqui". E mesmo o padre que era o nosso formador, ele era também um reitor da Faculdade de Teologia. Ele falou: "Por que você não faz Teologia com a gente? Você não vai continuar estudando?". Falei: "Vou" "O nosso curso é muito bom e tudo mais, não sei o quê". Eu falei: “Está bom, eu vou fazer então lá". Como eu também... a congregação também tinha isso, né? Como você trabalhava já, então quem saía da congregação não saía com uma mão na frente e outra atrás, também tinha essa questão. Então, você já estava trabalhando, se você namorou, ficou apaixonado, descobriu que não era a sua vocação, então você tinha já um respaldo, já tinha alguma coisa, não ia ficar aqui em São Paulo. Tinha muitos meninos do interior, de outros lugares, né? Nossa congregação mesmo vinha muito de Araraquara, Monte Alto, daqui do interior de São Paulo, onde tem um seminário menor, que pegam... pegavam antigamente, né, jovens que ainda estavam no ensino médio. Hoje está acabando, isso na Igreja está acabando. Pegava um pessoal muito novo. Não está pegando, só depois do ensino médio só, né? Mas, antes, nós tínhamos. Então, muitos chegavam em São Paulo e ficavam fascinados por São Paulo, meu Deus do céu! E muita gente saía do seminário. Então, quem saía, pelo menos estava trabalhando, tinha como se virar. Então, eu saí desse seminário e mais cinco colegas, da mesma época. "O que vocês vão fazer?" "Ah, vamos ficar aqui em São Paulo, acho que eu vou continuar aqui, não sei o quê". Aí resolvemos alugar um apartamento. Ficava: “Olha, vamos ficar morando juntos aqui, até cada um decidir o que vai fazer, né, quem vai casar, quem vai voltar pro interior". Mas a maioria ficava aqui em São Paulo. Tinha um que já trabalhava como cameraman, na própria congregação. Na congregação nós temos... tinha a Verbo Filmes, eles fazem documentários, tudo, então esse já trabalhava, já tinha emprego fixo e os outros, nós trabalhávamos em Banco. Alugamos um apartamento na boca do túnel da Nove de Julho. Imagina o barulho, a poluição! Aquilo que o pessoal chama de Treme-Treme, tem os prédios ao lado da GV. Ficamos ali e eu fiquei esse ano afastado, mas foi um ano também muito bom, muito bom. Eu queria ser padre, continuei os estudos, né, entrei na Teologia, comecei a fazer Teologia, primeiro ano, eu pagava com o dinheiro que eu recebia do Banco, os estudos, né? Mas foi um ano interessante. Aí participei de algumas coisas do... tinha alguns projetos, algumas oficinas da USP, né, capoeira, aí vim participar. Tinha um outro projeto que chamava Dança Primitiva, né, fui lá participar também desse negócio de Dança Primitiva, alguma coisa de teatro. Foi bastante bom pra mim, foi muito interessante, mas sempre continuava ligado à igreja, participando das missas, essas coisas todas, né? Enquanto decidia. Aí teve uma greve grande dos bancários...
P1: ______________ (01:44:33)?
R1: Estudava lá na Teologia, estudando Teologia já. Aí tivemos uma greve muito grande... estava na Teologia e trabalhava no Banco. Uma greve muito grande. Estou lembrando agora, me lembro dos perrengues, né? Quando nós saímos do seminário, a gente combinou os seis, né? "Vamos morar juntos e tudo mais, vamos procurar o apartamento". E eu tinha que voltar, porque era período de férias, nós tínhamos que voltar pro trabalho. E confiei nos outros, que tinham procurado apartamento, tinha olhado as coisas, tínhamos que voltar pra gente... chego aqui em São Paulo, ninguém tinha visto nada, não tinha procurado nada, não tinha achado nada, só tinham visto um apartamento, mas estava ainda na dúvida. Falei: "Onde que eu vou colocar as minhas coisas? Onde eu vou ficar?". Aí arrumei uma pensão na Avenida Santo Amaro, uma pensãozinha muito sem vergonha, que eu não sei... que é o que dava pra pagar, éramos seis pessoas no mesmo lugar. Tinha um fliperama do lado, ficava até não sei que horas da madrugada: duuuuu du duuuuuuuu duuduu. Não conseguia dormir. Não é? Então, uma noite um rapaz incorporou não sei o que, veio, pulou pra cima e não deixava a gente dormir. Falava: "Não dá pra ficar aqui". Depois que eu... não tinha um armário pra guardar as coisas, documento e tudo mais, dinheiro. Então, assim, você ia dormir... dormia com um olho e o outro acordado, ((riso)) ficava revezando a noite toda, você não sabe, que era um pessoal desconhecido, imagina. Não dava pra tomar banho, nada. Falei: "Não, não dá pra ficar aqui, não". Aí estava esse apartamento que a gente tinha visto pra alugar, mas eles não pintaram ainda, estava em reforma. Falei: "Não, eu vou pra lá. Quero nem saber". Não tinha cama, não tinha... eles não providenciaram nada, o pessoal não tinha providenciado nada. Falei: "Não, eu vou pra lá". Peguei uns jornais... como é apartamento antigo, eles tinham uns armários embutidos grandes, falei: "É aqui mesmo que eu vou dormir". Dormi dentro do guarda-roupa. Acho que uns 15 dias dormi dentro do guarda-roupa, tudo quebrado, forrei lá com jornal, tudo, né, durante o dia, pra sair daquelas coisas. Foi um período ‘brabo’ também pra organizar isso daí. Então, estávamos um dia numa greve e eu cheguei já um pouquinho atrasado. A Praça da Sé não entrava uma agulha, os bancários, lotado, lotado, lotado, foi um movimento forte que fizemos, né? Não tínhamos recursos, estávamos começando a fazer greve, não existia esse negócio de som, essa parafernália toda de som, um som... um equipamento de som, nada disso. Estávamos voltando da Ditadura ainda, era proibido. Ditadura ninguém podia se reunir, umas seis pessoas em cima, pra ver o que estão fazendo, porque estão reunindo _________ (01:47:32). Então, tinha... o negócio era assim: a pessoa falava lá na frente, que estava discursando, falava na frente, o grupo que estava aqui mais próximo repetia, o outro grupo repetia, até chegar no final: "Então, camaradas”; “então camaradas”; “nós vamos marcar”; “nós vamos marcar”, “nós vamos marcar”, “nós vamos marcar”; “a próxima concentração”, “a próxima concentração". Era assim a comunicação. E tinha uma pessoa discursando na frente da Igreja da Sé, as portas fechadas, em cima de um banquinho, cada frase que ele fala, que ele abria a boca pra falar, o povo “ééé”, ovacionava tudo “Ahhh”. Falei: "Quem está discursando lá?" "Você não conhece? É o bispo de São Miguel". Falei: "É o bispo?" "É, o bispo de São Miguel está nos apoiando. Já veio aqui, nos ajudou, incentivou" "O bispo de São Miguel?". Falei: "É pra lá que eu vou. Vou conhecer esse bispo". Não é? E foi assim que eu vim parar aqui em São Miguel. Era Dom Angélico. Dom Angélico Sândalo Bernardino, é uma figura, um ícone em São Paulo _____________ (01:48:37) Dom Paulo Evaristo, em São Paulo, né? É um ícone aqui da cidade, nesse período da mudança, da transição, né, tem uma participação direta na luta da Ditadura e tudo mais. Bispo daqui de São Miguel. Aí vim pra conhecer São Miguel. Marquei com ele entrevista pra me apresentar e tudo mais. E São Miguel não chegava nunca. Eu nunca tinha ido pra zona leste. A gente só conhecia a zona sul. O nosso seminário ficava lá no lugar mais chique da zona sul ali, na... Jardim Santo Antônio, né, um lugar... perto do Borba Gato, uma área muito nobre, ali ficava o nosso seminário. Quando eu vou vindo pra cá, era um calor, era um calor terrível, final de ano, sabe? Um calor terrível, aqueles ônibus que vinham desde o Parque Dom Pedro direto, o pessoal... não descia ninguém no Parque Dom Pedro até aqui. E eu vendo passar, a paisagem vai modificando, as casas sem acabar, um monte de rua sem asfalto, sem nada, barro, falei: “Meu Deus!” E eu toda hora com... grudei no... agarrei no... ali perto do cobrador, ficava: "Escuta, São Miguel, onde que é? Eu estou indo pra São Miguel, por favor, eu tenho compromisso em São Miguel" "Não, pode ficar tranquilo, eu aviso. Pode ficar tranquilo, eu aviso” "Não chegou em São Miguel ainda?" "Eu falei pra você que eu aviso quando chegar em São Miguel". ((risos)) Gente, não chegava nunca. Acho que deu duas horas, quase, a viagem. Sem exagero algum. Pra ver o sofrimento desse povo. Eu fico pensando ainda hoje, né, que tempo precioso da sua vida você perde! É um tempo perdido da sua vida, quatro horas por dia, duas pra ir e duas pra voltar. É muita coisa, gente! Pelo amor de Deus! Você perde um tempo precioso da sua vida com nada, sofrendo, né? Trem, ônibus, tanto faz, não é? Era uma coisa terrível. Cheguei em São Miguel... cheguei, a secretária falou: "Corre, que o bispo está saindo. Você atrasou. Corre, que o bispo está saindo". Fui lá, falei com Dom Angélico, ele falou: "Eu preciso ver por que que você saiu do seminário. Por que você... se você foi mandando embora? O que aconteceu? Temos que investigar, não pode pegar: “Eu quero ser padre e pronto”. Vamos ver, né? Aí: "Vamos, vamos rapidinho, eu tenho compromisso, mas vou atender você". Eu pedi desculpas e ele pegou, na minha frente, ligou para o provincial da congregação que eu estava, dessa _____ (01:51:23), perguntou, né: "Não, o rapaz é muito bom, pode aceitar, não tem nada contra ele, não sei o quê". Né? E ele, na minha frente, conversando com o outro: “Pode aceitá-lo?”. Falou: "Olha, não tem nada contra você, você é bem-vindo. Bem-vindo à nossa diocese! Vai ter uma ordenação, você venha tal dia aqui, já". Aí conversou comigo rapidamente, aí eu vim parar em São Miguel. Aí continuei meus estudos aqui, segundo e terceiro ano de Teologia eu fiz aqui, né? Também estávamos com mudança na formação aqui também, estávamos tentando uma nova proposta também de formação: não ter seminários grandes, reunir muitos jovens no mesmo lugar, né? Mas pequenas casas de formação, se pensava naquela época, pequenos núcleos de formação. Eu fui pra Penha, fiquei na Penha, com o padre espanhol, que tinha lá, que acompanhava a gente, mais dois seminaristas. Então, estávamos espalhados assim, os seminaristas, em vários lugares. Até que veio também uma reforma, direto de Roma, não é? Veio um visitador de Roma pra ver um pouquinho essa situação e não gostou nada disso, desse tipo de formação, espalhada, esparramada, falou: "Não, _________ (01:52:37) não pode fazer assim. Tem que ter um formador, não pode pegar padre _____ (01:52:44)". E aí então falou: "Não, vocês vão ter que se reunir ou vocês... ou então vão embora, se vocês não querem...". Alguns não quiseram, saíram e outros aceitaram. Mas aí conseguimos negociar casos não muito grande, né? Aí tentamos ainda uma casa alternativa com meia dúzia, o Padre Paulo ficou aqui. O Padre Paulo: "Ah, eu acompanho vocês". Mas também não durou um ano. Uns falavam: "Ah, porque o padre não fica com eles, eles ficam lá sozinhos, não sei o quê". Aí tivemos que vir aqui pra Itaquera, não é, na casa de Itaquera e terminamos aqui os estudos aqui nessa casa de Itaquera.
P1: E, padre, como que o...
R1: E eu falo demais.
P1: Não, você fala ____________ (01:53:26). Como é que foi o ______________ a pastoral, né?
R1: A Pastoral Afro?
P1: ______________ (01:53:34) Jardim ngela?
R1: Jardim ngela, isso aí é normal na formação da gente, ou seja, você é padre, você tem que estar também num trabalho concreto, ativo. Então, onde você vai, você vai passar... tem... depende da diocese, depende da congregação, você tem os vários estágios, então uma coisa mais simples primeiro, talvez vai trabalhar com a catequese, depois uma coisa um pouco mais, de mais responsabilidade. Vão dando as responsabilidades aos poucos pra você, né? Até você poder receber as ordens. A gente chama de ordens menores. Apesar que, hoje em dia, isso daí ficou um pouco ultrapassado, que é você poder ler na missa, o leitorato, o ________ 01:54:16) serviço, ajudar no altar e tudo mais, mas isso os coroinhas já fazem hoje em dia, então quase não tem mais sentido, mas continua, é importante. Então, você vai ter uma gradação de responsabilidade, de acompanhar, você vai participar das reuniões com o pessoal, você vai fazer isso, fazer aquilo, então vão dando algumas responsabilidades aos poucos. Então, faz parte da nossa formação, não é, pra você ser iniciado um pouquinho nos trabalhos pastorais. E tem grupos que você deve participar. Tem grupos que já participavam da sua vida de cristão mesmo, não é, já vinha, mas aí você também às vezes tem responsabilidade, você vai coordenar, você tem que preparar a reunião, você tem que estudar, você tem que estudar o tema, tem que aprofundar, levar alguma coisa ___________ (01:54:55) alguma coisa. E, nessa minha formação também, eu tive muita ajuda das religiosas. Ter essa freira lá de São Vicente marcou muito a minha formação, a Irmã Dolores, que era espanhola, não é? Muito culta, muito inteligente. Depois aqui, quando eu vim pra São Miguel, depois que eu fiquei um ano lá na Penha, depois quando teve essa mudança, eu vim e fiquei trabalhando aqui na Favela Maria Luiza Americano, com uma freira missionária comboniana, uma italiana.
P1: ____________ (01:55:36)?
R1: Foi. São Vicente é uma grande favela, não é? Mas não... mas nós temos características um pouco diferentes, né? Aí vim com essa freira aí, que me ajudou muito, muito, muito. Ela: "Tem que respeitar o povo, tem que ouvir o povo, sentar com as pessoas". Muito também... muito presente, fazia Teologia também, estudamos tudo e ela...
P1: __ (01:56:03)?
R1: Essa caminhada conjunta com as pessoas, né? Igreja se faz em conjunto, né? Nós somos igreja, eles também são igreja. São como nós, receberam batismo, são nossos irmãos. Então, temos que falar, temos que transmitir, não é? Temos que ajudar. Então, aprendi muito, muito, muito, muito, muito. A religiosidade do povo, a fé desse povo, né? É impressionante. É impressionante. Então, você aprende muita coisa, muita coisa. É um pessoal resistente, é um pessoal que, na fé, enfrenta as coisas, né? Os desafios. Então, tive esse auxílio, muito essa presença dessas religiosas, foi bastante interessante. Nós tínhamos também um trabalho muito integrado, né? Os padres, as freiras, trabalhavam juntos. Essa época muitas freiras deixaram o convento, também tivemos um pouco isso, um êxodo das freiras, que saíram do convento, pra trabalhar direto com o povo, ao invés de ficar trabalhando com escola, com hospital, também tivemos muito isso. Ao invés de ficar fechada no convento, muitas freiras quiseram sair. A gente chama de irmãs engajadas, inseridas, a gente chamava naquela época. Hoje diminuiu, tivemos um retrocesso. Muitas irmãs deixaram, abandonaram, não é? Mas muitas vinham à periferia ficar junto com eles, na vida do povo, trabalhando com o povo, organizando, sentando com o povo, rezando com o povo. Então, tivemos uma participação bastante grande nesse sentido. Então, quando eu vim pra cá, primeiro lugar fui trabalhar nessa Favela Maria Luiza Americano, fiquei um tempinho aí, depois fiquei aqui na Cidade Líder, trabalhando na Cidade Líder, esse período da nossa formação e aqui, convivendo aqui na casa de Itaquera, com o pessoal de Itaquera, né, os seminaristas aqui de Itaquera. Mas você tinha perguntado...
P1: ______________ (01:58:19).
R1: Ah, sim. Tá. Desculpa. Quando estava aqui e... na verdade, na faculdade já... contato com a pastoral, né?
P1: Isso. Contato...
R1: Então, quando eu vim aqui pra... como seminarista ainda, não é? Eu vim aqui ajudar na paróquia... nem era paróquia, na verdade, Cristo Redentor, na Cidade Líder, onde eu trabalhava nessa Favela Maria Luiza Americano. Nós tínhamos ali um diácono que era negro, batista. Vale a pena vocês procurarem um pouquinho sobre a vida do Padre Batista. Já é falecido, né? Ele ficou um pouco lá na Praça da Sé. Tinha um vozeirão, então Dom Paulo o levou pra _______ (01:59:30) os cânticos na Praça da Sé, na missa da Sé. E eu fui pra ajudá-lo, nessa comunidade. E ele tinha começado já alguma coisa ali, uma reflexão a respeito da questão da negritude. Não tínhamos esse vocabulário ainda, não se falava em empoderamento. Mas começou-se uma discussão a respeito disso. Veio... tinha um rapaz também, um estudante negro da USP, que já tinha uma reflexão um pouco mais avançada a respeito e ele vinha pra debater com a gente, pra discutir com a gente. E eu participava, comecei a participar desses encontros todos. E Dom Batista um dia chegou assim, falou pra mim... ele tinha um jeitão todo especial: "É, você não disfarça não, viu? Não disfarça, não. Com esse cabelo e com esse beiço, você é negro também, viu? Você tem que participar". Depois... antes ainda, uma coisa que me chamou a atenção, quando eu saí do seminário, lá do Verbo Divino, eu estava naquele período que eu estava fora do seminário, eu fui pra diocese com o meu padre lá de São Vicente, que me levou pro seminário, a primeira pergunta que ele fez, quando soube que eu tinha saído do seminário, ele falou assim: "Ah, você saiu? Você foi mandado embora por ser negro?". Achei estranhíssimo. Nunca ninguém tinha me perguntado isso, não é? Então, ele me via já como negro e, pra mim, era muito estranho, sobretudo, os documentos, sobretudo, os documentos, alistamento do Exército, essas coisas, inscrição na faculdade: pardo, pardo. Falei: “Mas que porcaria, o que é pardo? Pardo... conheço papel pardo”. Pardo é uma coisa, assim, pra mim, até abjeta, sabe? Uma coisa... que me lembra ele, não é? Falei: "Não, nós somos de origem negra, nós somos...”. Apesar que nunca tínhamos essa discussão em casa, mas isso também me fez refletir um pouco a respeito disso. Já também, na faculdade, nós tínhamos iniciado essa reflexão. Estávamos justamente no período chamado de Teologia da Libertação, não sei se vocês já ouviram falar e eu tive contato com um negro. Na verdade, nem é católico, né? De um metodista, de um teólogo metodista chamado... acho que é James Cone. Não sei se vocês já ouviram falar também, James Cone e ele escreveu a Teologia Negra. E isso me despertou, me fez entender uma série... e na época também tinha um livro chamado Deus Negro, foi escrito no Brasil, não me lembro agora o nome do escritor e onde ele coloca também a questão de Deus ser negro. Deus se identifica conosco. Não é o Deus distante. Então, já um pouco dessa reflexão, a Teologia da Libertação, do Deus libertador, do Deus que vem ao encontro do seu povo, não um Deus distante, o Altíssimo lá nas alturas, distante, que não participa de nada, um Deus que fica só olhando. Não, um Deus que vem ao encontro, que assume a nossa vida, assume as nossas questões. Então, a partir daí, também comecei a participar um pouco mais dessas discussões, refletir. Mas esse livro me despertou bastante, me ajudou muito: Teologia Negra, do Cone e começava também, na igreja, essa reflexão também, né? Já tinham surgido... eram os APNs que a gente chamava, Agentes Pastorais Negros. Antes disso tinha um outro grupo, que agora não me recordo, que já tinha o Movimento Negro, mas fora da igreja e muito mais violento, muito mais forte. Tinha o MNU, Movimento Negro Unificado, que é um pessoal bem: "Vamos pra luta, vamos pra cima, vamos... o negro vai tomar o poder e vai...". Né? Então, tinha toda essa questão de uma reação um pouco mais de violência, a gente não podia achar que a coisa vai se transformar, vai mudar, assim, aos poucos, devagar, só na base do diálogo e tudo mais, mas que temos que enfrentar, que ir pra luta, ir pra cima. Então, tinha os movimentos mais radicais, mas o pessoal já tinha feito uma caminhada, influenciado também por movimentos negros que vieram dos Estados Unidos, depois teve todo o movimento que veio da África do Sul, a reação ao apartheid também, né, já começava a ecoar por aqui, então o levante do povo negro assumindo já o seu lugar e tudo mais, a reação à opressão, a toda essa violência que sofria. E eu tinha também já uma observação a respeito disso e isso era uma coisa que eu tinha uma sensibilidade em relação a essa questão, não é? Lembrava desse meu bisavô - agora volta... voltava à memória, né - naquela choupana, praticamente abandonado, sem nada, sem recurso nenhum. Mesmo outras pessoas que a gente tinha contato, pessoas em São Vicente que a gente observava, sempre eram as pessoas que viviam nas piores condições. Então, isso sempre me despertou a sensibilidade em relação a essa questão e, aos poucos também, a partir dessa fala do Batista - que a gente fala "Padre” Batista, depois se tornou padre. Mas o certo é que ele era diácono, né? Não era padre ainda não - "Você é negro também. Não adianta ficar aí disfarçando, né, olha o seu cabelo, olha o seu beiço. Você é negro também, as suas características". E a gente participando dessas discussões, é que a gente foi tomando um pouco esse partido e essa consciência. E na faculdade mesmo nós começamos a reunir alguns jovens, alguns... eram pouquíssimos também seminaristas negros, né, uns não queriam saber de participar, discutir. Começamos a levar essa discussão na Faculdade de Teologia, começamos a montar esse grupo. Apareceu um professor negro muito bom, inteligentíssimo, Padre Toninho, talvez vocês já tenham ouvido falar dele também. Também é outra figura importantíssima dentro da Igreja Católica, do Movimento Negro, a Pastoral Afro. Se vocês puderem fazer um levantamento, uma pesquisa, já tem vários estudos. Inclusive tem... acabou de ser defendida uma tese, acho que é no sul, pessoal de Porto Alegre, a respeito do Padre Toninho, não é? E um homem, assim, muito simples, mas muito inteligente, muito inteligente, com uma ___________ (02:07:10) rápida e que incentivou, começou a motivar. E aí começamos, então, toda essa organização. Mesmo lá - eu estou me lembrando agora - no tempo da Filosofia, já lá no Jardim ngela, tinha uma freira negra que morava... que passava por lá, não é? E isso também nos ajudou a... ela ajudava a questionar também um pouquinho essa questão: por que temos poucos negros na hierarquia da Igreja? Temos poucos padres negros, bispos negros, freiras negras? Então, isso também começou a despertar em nós essa preocupação, né? "O quanto que somos na Igreja? Por que somos poucos? Será que não temos a mesma capacidade? Será que negro não tem essa espiritualidade?". Então, a partir daí que a gente foi se envolvendo. E aí surge então um grupo dos Agentes Pastorais Negros e aí conhecemos esse grupo de Agentes Pastorais Negros, já fazia esse trabalho e um pouco a recuperação, o resgate da cultura negra. Como eu falei, não se usava o termo "empoderamento", mas era isso que se fazia: "Vamos assumir nossas cores. Nós gostamos de coisas coloridas, não temos que ter vergonha por causa disso". Então, recuperar os trajes. O... a questão, a discussão sobre o cabelo, não é? Tanto que, nessa época, a turma um pouquinho mais radical, alisar cabelo era condenação, era uma negação de tudo. Então, o pessoal ia firme em quem... os negros que alisavam o cabelo, que procuravam... sabe, tirar as características naturais, né? Então vinham com tudo. Depois... um pouco do reflexo do Movimento Black Power, né? Os americanos assumiram o cabelo e tudo mais. Então, era um sinal, né, de você assumir a sua identidade. Começamos por aí. Depois formamos esse grupo dentro da igreja, começamos a participar dos APNs, dos Agentes Pastorais Negros, então você tinha já um grupo já maior pra refletir, pra discutir. As questões também já estavam avançadas, mesmo na Teologia, junto com essa Teologia da Libertação, que a Teologia da Libertação nos faz reconhecer que Deus se identifica com o seu povo, não é? E começamos a ter encontros da cidade, depois do estado, depois do Brasil. Como eu falei, esses encontros foram crescendo bastante. Geralmente, eles aconteciam aqui em São Paulo, quando foram crescendo demais, onde nós vimos a necessidade de pegar e distribuir um pouquinho isso daí. Então, sugerimos que as irmãs se reunissem, as freiras, os __ (02:10:16) religiosos, né, porque nós temos freiras, temos freis, tem os irmãos, os religiosos, os padres, os bispos e os negros também pudessem se reunir, também vinham pros nossos encontros e os negros, muitas vezes, não tinham a voz, não tinha a palavra, não tinha espaço quase para... era... e era um momento muito, muito, muito rico, muito fértil, de descoberta, então todo mundo quer falar, todo mundo quer chorar, não é? Chorávamos tudo o que tínhamos sofrido. Era um espaço também um tanto de terapêutico, até. Terapêutico. Porque as pessoas nunca foram ouvidas, não tinham essa oportunidade. Então, muita descoberta, de terapia, de reações também bastante radicais e violentas até, não é, de lugares de querer ir pra luta, enfrentar e que temos que fazer assim. E até mesmo em relação à própria Igreja. Porque aí também você... toda uma revisão da História, daquilo que a Igreja também participou desse processo, do processo da escravidão, do processo da opressão. Ela foi conivente com isso. "Então, temos que fazer reflexão a partir da nossa própria casa. Não adianta a gente falar dos outros. Nós temos que olhar a nossa situação. Isso aconteceu com a nossa gente, então vamos ter que pegar, não é e voltar atrás". Tanto que nós tivemos algumas celebrações. Por exemplo: tínhamos umas irmãs portuguesas, freiras portuguesas que trabalhavam aqui na nossa diocese que, numa celebração pública, né, foram pedir perdão pros negros e tudo mais. Então, a gente estava num caminho de entendimento, ainda não tinha clareza a respeito das coisas e das discussões, então achava que bastava isso, como beijar os pés dos representantes negros que estavam presentes. Então, tiveram reações assim, das mais variadas. Que é uma descoberta, nós estávamos descobrindo. Era uma coisa totalmente nova, não é? Essa discussão, essa revisão da história, da história geral e da história da Igreja. Então, foi um momento muito interessante, momento certo nesse sentido que eu digo, né?
P1: _____________ (02:12:39)?
R1: Então, surgiu um pouquinho depois. Primeiro tivemos os grandes encontros dos APNs, Agentes Pastorais Negros, onde reunia todo mundo. Tinha agente da pastoral. A gente discutia um pouquinho. Tinha agente da pastoral. Todo mundo que está envolvido na pastoral, que faz pastoral direto, né, as lideranças das comunidades, nós tínhamos muitas lideranças nas comunidades, tinham as pequenas comunidades onde nem todas tinham padre direto pra estar acompanhando, eram os próprios negros que levavam adiante, que animavam as comunidades, que ajudavam as comunidades, se reuniam com o povo. Então, falamos: “Todos somos agentes: padres, freiras, os irmãos e os negros todos, todos juntos”. Então depois, como foi crescendo, foi se avolumando esses encontros, até questão de espaço físico, você não tinha suficiente, então a gente resolveu, separar os grupos um pouco. Aí que surgiu. Tinha o grupo dos religiosos, chama de __________ (02:13:36), não é, os religiosos negros, então reunia as freiras... os religiosos, na igreja a gente tem uma terminologia específica pra falar daqueles que consagraram a sua vida. Que não são padres, junto com as freiras, né, mas consagraram a sua vida também a Deus. Não é? Então, faz os votos da pobreza, da obediência, da castidade. Vive os votos, não é? E vivem em comunidades. Então, você tem freis, você tem irmãos, nós chamamos de irmãos. Então, essa terminologia. Então, os grupos religiosos é isso daí: as irmãs e aqueles que fizeram a consagração, que fizeram os votos de pobreza, obediência e castidade. E depois fizemos, então, separado, os diáconos, padres e bispos negros. Nós criamos até um instituto, tem registro e tudo mais, chama-se IMA, Instituto Mariana, que surgiu da missa de Dom Elder, missa famosa, não sei se vocês já ouviram falar, Missa dos Quilombos, a Missa dos Quilombos. Até esses dias, eu recebi um vídeo de uma parte da missa, que foi usada no teatro também, muito bonita, muito bonita. E essa missa aí foi um marco também muito grande, essa Missa dos Quilombos. Foi uma coisa que veio pra fortalecer, não é? E incentivar a nossa luta. E depois o grupo dos negros, não é? Que queriam também se reunir, também querem dar a sua palavra, não ficar só esperando, dependendo da palavra do padre, da freira. Mas sempre caminhávamos com as coordenações interligadas, juntos. Tínhamos encontros, então, da coordenação dos negros, dos bispos, dos padres, das freiras e sempre tínhamos o contato, estávamos sempre discutindo junto. Depois nós temos as questões históricas, não é? Uma série de problemas que aconteceram no caminho e isso foi esfriando, infelizmente. Nós perdemos muito. Discussões, debates, entendimento, compreensão da causa, né, da luta. Tivemos, por exemplo, algumas religiosas, até, algumas freiras, que acabaram adotando as religiões de matriz africana, deixaram o... a vida religiosa consagrada, para engajar. Então, tivemos algumas coisas assim. E problemas que tem muito em movimentos, nesses grupos, né? Essas separações. Então, perdemos muito, muito mesmo. Mesmo entre nós, padres também, nós éramos um grupo bem mais forte. Hoje somos um grupo bem reduzido. Bem reduzido. Mas tínhamos muita gente. Tinha padre que vinha do Maranhão, faziam lá vaquinha e tudo mais, pra poder vir participar dos nossos encontros e a gente procurava fazer... rodar o Brasil um pouco, pra estar mais próximo de um e de outro, facilitar, pra que tivéssemos a participação. Então, fomos pro norte, pro sul, fomos pro centro-oeste fazer os nossos encontros, onde também éramos acolhidos, porque também... é bom dizer isso, não é? Não é toda igreja que vê isso com simpatia. A história se repete também. A igreja não está fora da sociedade, então você tem bispos e padres que: “Aqui você não tem racismo. Isso não existe. E o que nós estamos fazendo é racismo às avessas”. Também temos um pouco dessa compressão equivocada dentro da Igreja. Então, não é que todos os padres apoiam, que todos os bispos apoiam. Aqui na nossa diocese mesmo também não temos, sabe, um apoio incondicional. Nós temos mais ou menos cem padres aqui na nossa diocese. Só na zona leste só, né? Leste... a gente chama de Leste 2, que é da Penha pra cá. Porque tem a zona leste ainda a parte do Tatuapé, Carrão, até a Mooca, ali tudo é zona leste. Então, nós estamos do lado de cá, a nossa diocese pega só essa parte de cá, mais ou menos cem paróquias, mais de cem padres. Mas nem todos apoiam, nem todos entendem, nem todos participam, acham que isso é besteira, populismo, uma série de coisas, que não é por aí o caminho, que estamos criando um outro tipo de preconceito, de racismo e tudo mais, né? É a tal história um pouco da Magalu aí, né, Magazine Luiza, né? Pessoal __________ (02:18:19) que isso é preconceito, isso é racismo, né? Porque os brancos estão sendo colocados fora da seleção de trainee. Pelo amor de Deus, né? Então, você... a gente viveu a história, quem viveu essa situação, que sabe, que sabe, não é? Então, a gente tem caminhado, tem feito um pouco isso. E temos grupos, em alguns lugares, algumas paróquias, não é, que se reúnem e tem outros lugares que o pessoal está muito mais ativo, é muito mais participativo, tem uma proximidade menor. Agora mesmo, recebi hoje um zap de um padre aqui do interior de São Paulo, onde ele foi chamado pela prefeitura pra participar do fórum, não é, contra a questão ____________ (2:19:23) religiosa. Então, tem lugares onde os padres têm uma participação dentro dos_________ (02:19:33) municipais, dos órgãos municipais, têm atividade, têm ação e são convidados, são convocados, são respeitados, são considerados naquela cidade. Tem cidades menores, onde você pode articular melhor com o Poder Público, então onde você tem uma presença e uma ação, uma atividade municipal bastante forte, onde a Pastoral Afro está presente, está participando e tem uma presença bastante reconhecida e respeitada.
P2: ___________________ (02:20:03)?
R1: Uhum. Rito _____________ (02:20:15) a gente não adota, não é? Porque precisa conhecer um pouco melhor e é próprio da cultura já africana, né? Agora, a participação do negro... o negro sempre esteve presente na Igreja, só que esteve presente de uma forma, assim, bastante desconsiderada, não é? A Igreja dos Homens Pretos, lá no Centro da cidade de São Paulo, foi criada justamente em um lugar afastado da Sé, porque os negros não podiam participar na Sé, né? Quando eles iam, eles tinham que ficar em pé, lá no fundo. Então, eles foram fazer a igreja deles fora do Centro da cidade, que ficou no Centro também, no final, né? Ficou no Centro. E a maioria das igrejas, nos municípios onde tem Igreja do Rosário dos Homens Pretos, a maioria surgiu por causa disso: por causa da participação dos negros, que não era considerado, só ficavam... e mesmo nós sempre tivemos presentes na igreja. As irmandades, quase todas as antigas irmandades eram conduzidas pelos negros, organizadas pelos negros. Então, sempre tivemos presente. As rezas, não é, tradicionais da igreja, o Ofício de Nossa Senhora, sempre foram conduzidos... essa espiritualidade, mantida pelas pessoas negras. Sempre estiveram. Mas assim, tiveram de uma forma subalterna, desconsiderada, não é? Quando começamos com essa discussão, muitos - e até hoje ainda, né - tiveram dificuldade. Não se identificaram com isso. Acham que isso é besteira, muitos não se reconhecem como negros, infelizmente, muitos não se reconhecem, não é? Então, pra você ter um certo reconhecimento, um certo status: "Então eu vou me passar a deixar moreninho e tudo mais. Então, eu fico um pouquinho dentro de um ambiente que... onde as pessoas se consideram, eu consigo passar. Se eu assumir, de fato, as minhas questões: negro, explorado, que viveu sempre numa situação de subalternidade, o que é que vão fazer? Eu vou criar problema. Então, melhor faz de conta”. Então teve muita dificuldade das pessoas... a gente chama de assumir a negritude, tivemos muita dificuldade. Muita dificuldade. E é interessante. Por parte de pessoas brancas, muitos tiveram... acho que teve às vezes muito mais aceitação do que com as pessoas negras mesmo, pretas, né? Muitas tiveram mais dificuldade com... nessas famílias. Uma vergonha que, de tal forma isso foi colocado, isso foi incutido, que as pessoas têm uma dificuldade muito grande, não é? Embora também vemos pessoas brancas, às vezes, passa um pouquinho a questão de uma espécie de um folclore, uma coisa assim meia folclórica. Mas você tem um pessoal que, de fato, acolhe, apoia, que reconhece, né? E que está criando um jeito novo de ver, uma mentalidade nova. Mas tivemos dificuldades e ainda temos, ainda hoje, né? A missa agora da Festa de Nossa Senhora Aparecida. Esse ano falamos: "Nós temos que focar de novo nessa realidade. Com tudo isso que aconteceu, temos que falar, temos que ressaltar a figura do negro". Então, nós colocamos na procissão, levando o tema: "Então vamos pegar uma família negra” - porque a Novena de Aparecida fala sobre a família e a palavra – “onde ela vai estar se destacando, participando". Foi difícil arrumar famílias negras que se dispusessem a participar. Então, nesse momento, depois que levaram o Evangeliário e o padre: "Vamos pegar famílias negras para, na hora do ofertório, também acolher. Vamos colocá-los em um momento de evidência na celebração". Foi difícil. Não foi fácil. As pessoas não querem aparecer, têm vergonha. "Aparecer" no sentido de se expor, né? Então, temos dificuldades. Por outro lado, temos um grupo bastante firme, um grupo pequeno, são grupos pequenos, né, não dá pra se iludir, não, tanto que eu digo que a gente tem que trabalhar com os pés no chão. Muitas vezes, nesse momento, a gente faz coisas assim como se estivéssemos com um apoio grande, todo mundo tivesse engajado. É mentira, é mentira. Mas eu creio que a gente está vendo os frutos hoje em dia, não é? Pode parecer que foi tempo perdido, que foram coisas, assim... mas você vê, hoje nós temos uma juventude negra que, sabe, assume, que vai, que faz, não está nem dando bola, preocupada, não é? Com o que os outros vão achar, o que vão dizer, que vão... e estão avançando no espaço, estão tomando os espaços. São nossos também. São nossos. Então, eu fico muito contente com esse pessoal que, sabe, vai e mete a cara, que não tem vergonha, né? Não tem vergonha. E mesmo nas famílias, isso daí tem uma repercussão nas famílias também. Os pais, os avós também vão entrando aos pouquinhos. Mas eu acho que isso tudo é fruto de todo esse movimento. Parecia uma coisa muito pequena, que não vai dar em nada, não é? Um pouquinho da igreja, dos movimentos na sociedade. Acho que vai somando, vai somando. É isso que eu digo: “Olha, se não dá hoje pra discutir a sociedade, tem que entrar na pauta da sociedade a discussão sobre o racismo, sobre a negritude”. Não dá pra você ter uma discussão hoje sem levar em consideração a população negra. Não dá, sabe? E a questão da visibilidade é importante. Ela é importante. Assumir os espaços. E é uma luta do... do gigante, não é? Contra o gigante. Mas que eu acho que vai dando frutos, vai dando frutos. Assinamos petições e eram assinadas, pra que tivesse mais negros nos meios de comunicação; a questão das cotas e tudo mais, isso é fruto de muita luta. Foi somando um pouquinho aqui, um pouquinho lá, reações aqui, reações lá. Não foi só um grupo que conseguiu isso, né? E eu credito isso muito à pastoral também, à Pastoral Afro, à Pastoral Afro. Eu acho que tivemos muitas lideranças que saíram da pastoral, muita gente boa. Agora mesmo, no tempo da pandemia, eu digo assim pro meu pessoal: "Eu não dou conta de ver tantas lives que aparecem todo dia". Né? E você vê cada destaque negro! Doutoras na discussão, debates, né? E um pessoal intelectual, um pessoal muito bom, gente muito boa, artistas e tudo mais, negros, que você nem imaginava que tinha tanta gente assim, preparada, gente que fala, com... sabe? Com uma formação muito boa, não é? Com um conhecimento, uma profundidade. Você fica bobo. Quantas personalidades negras nós temos, né, que estavam ocultos e a gente não sabia? E do Brasil inteiro você vê, gente do sul discutindo com o pessoal lá do norte, nordeste, não é? E um pessoal com muito conteúdo, com muita consciência. Então, a gente fica contente quando vê. É fruto de trabalho de tantos anos, não é? Eu estou nessa caminhada mais de 30 anos. Né? Então, a gente fica muito contente de ver isso, né? Eu dei aula no estado 15 anos e eu sempre tinha essa preocupação: dos alunos negros, eu vou exigir mais deles. Eles passaram mal comigo, coitados. Passaram mal. "É isso que vocês vão enfrentar". E eu dizia pra uns: "Vocês vão ter que provar que são melhores. Não precisa provar nada pra ninguém, o importante é que você saiba que você tem capacidade e você pode, você pode mais. Você pode ir pra um seminário melhor, você pode se preparar melhor isso daqui, você pode fazer, você tem condições, sim". Então, eu sempre incentivei nesse sentido, não... cobrando mais, pedindo mais, não é? Porque eu sei que vai ser... lá fora vai ser porrada. “Então, não tem que ficar alisando muito não, você tem que ir e vai ser cobrado, você vai enfrentar esse mundo aí e vai ____________ (02:30:00)". E tivemos alunos muito bons, muito bons, gente muito boa. Me surpreendi, molecada surpreendi. Apertava, cobrava e eles respondiam. E eu lembro de alguns alunos muito bons. E a nossa escola era aqui no centro de Itaquera, eu sempre dei aula no período da manhã, né? Tem alunos até hoje que me detestam, não podem me ver pintados, nem disfarçado. Eles descobrem que sou eu, eles saem correndo. A maioria - era um grupo muito grande - de descendentes de japoneses, né, você tem a colônia japonesa, então... e depois, não digo agora. Tínhamos, no início, o vestibulinho, que era uma escola muito concorrida. Então, era uma seleção bastante brava. Então, quem conseguia entrar, a maioria? Eram poucos negros que tinham, mas a gente fazia questão de que eles acompanhassem junto com os outros também, porque a japonesada, já viu como é que é, né? Então, fazíamos questão que eles acompanhassem, porque vai ser assim lá fora, né? A gente também cobrava, exigia bastante, aí depois também eles pudessem desejar e ter oportunidade de ter uma classificaçã.
P1: E padre, ____________ (02:31:28)?
R1: Falar um pouquinho sobre... o pessoal deixou a maior parte... eu falo assim, meu Deus do céu, o que é isso? Nem eu aguento, gente. Como vocês me deixam esse tempo todo falando? Pelo amor de Deus. Deixasse os outros padres falarem um pouco mais, colocassem mais dos outros padres. Ficou um tempão lá eu falando.
P1: Não, mas você fala bem. Eu queria te perguntar assim, como é que você percebeu o racismo?
R1: Não, não foi nem percebeu. Eu acho que é tão evidente, é tão claro, não é? E eu gosto muito de trabalhar com números, com estatística. Eu sempre peço ao nosso pessoal, nos nossos encontros ___________ (02:32:18), a coisa, assim, escandalosa, ela aflora nos números. Quer dizer... tá, começando por nós mesmos. Quantos padres negros nós somos na Igreja? Quantos por cento da população é negra? Quantos padres negros nós somos? Quantos padres negros assumem que são negros? É mais grave ainda. Porque muitos acham que não. Muitos acham que não. Não é? Depois, quantos de nós estamos na universidade? Universidade pública. Pior ainda. Né? Quantos médicos você já passou? Quantos médicos negros lhe atenderam? Não é? Então, é uma... o pessoal chama de racismo cultural, que é uma história que a gente já conhece um pouco, né? Agora se aprofundou também nessa reflexão nos últimos anos. Então, basta olhar pros números, não é? Quanto se ganha em funções iguais, semelhantes, até iguais mesmo, a diferença de salário. Não é? É tão evidente, assim, é uma coisa que eu acho tão óbvia, que não dá nem... não tem nem por onde você negar. Não tem nem por onde você negar. Outro dia estava até conversando com o pessoal: o ano retrasado, não sei porque me chamou a atenção, não sei se foi que estava indo no hospital aqui próximo à Radial e estava tendo um ensaio da escola de samba, ali perto da São Judas, da faculdade, né, embaixo do viaduto. Aí fiquei pensando: “Interessante, ali de Itaquera era embaixo do viaduto, aqui embaixo do viaduto”. Eu fui numa outra, embaixo do viaduto também. Então, são os guetos que confinaram a gente? "Onde você pode se expressar? Você pode ficar aí, aí é o seu lugar. Você não saia daí". Então, são coisas assim, que às vezes a gente não percebe, não... não é? E dizer: "Aí é o seu lugar, você não pode ir além disso. Você tem que ficar por aí". Então, é tão escandalosa, é tão evidente, pra mim pelo menos, né, que eu fico bobo quando começam as discussões de que não tem racismo, de que isso é invencionice nossa, que é... como o pessoal fala? _________ (02:35:12). Então, eu acho que basta ver números. Pega estatística. Já que você não quer... acha que isso é vitimismo ou coisa parecida, mimimi, não é? Pegue números. Vamos pegar números e vamos verificar, não é? Então, onde estão os negros? Onde moram os negros? Quanto ganham os negros? Quantos estão no Morumbi? Quantos estão nos Jardins? Não é? Dos cargos no Congresso e tudo mais? ____________ (02:35:54)? E a gente não está pedindo favor, nem está pedindo, sabe, uma chance. Não. É direito. É direito. Então, temos que avançar muito ainda, tem muita coisa... avançamos bastante e eu acredito muito nessa nova geração, que vai metendo a cara, não fica, sabe, pedindo chance, como se fosse assim uma... como se diz?... um favor que estão... não é favor nada, gente. Não é favor nada. Não é? E outra coisa que eu penso muito é a questão da educação. Isso vai, acho, que dar a virada é por aí, é na educação, né? Então, tem a questão... a discussão das cotas, e tudo mais, pra mim também é uma coisa assim tão... algo tão absurdo assim. É questão de oportunidade, é questão de oportunidade, né? Você dar oportunidade. Aquilo que, de fato, devia ser um direito... que é um direito, mas nos foi negado, foi negado e aí você vai ver um pouco, né, o nosso povo negro tomando os espaços com muita propriedade, com muita capacidade, não é? E você tem um pouquinho mais, talvez, dessa expressão do nosso pessoal negro, talvez na Bahia, está mais concentrado talvez em Salvador, né? Que a população negra acho que 99.9%, não é? Então, você tem nas universidades, nos diversos cargos públicos e tudo mais, você tem gente exercendo isso com muita competência. Não por favor, não por dó, que é horrível isso, não é? Mas por competência, muita competência. É questão de você ter as oportunidades, é questão de você ter as oportunidades, para que você possa também tomar consciência dos fatos. "Ah, mas não sei o que, que isso é paternalismo". Nada. Nada. Paternalismo, paternalismo. Você não tem oportunidade. Como você vai colocar um filho numa escola particular boa, se você não tem... está vindo de um círculo vicioso, né, onde você não pode ter um salário bom e tudo mais pra poder... como vamos romper isso? Então, é necessário nesse momento. É necessário. Essas cotas são necessárias, são necessárias pra reverter esse quadro, né e a gente pode ter a possibilidade de que todos possam também se expressar, demonstrar as suas condições, as suas capacidades. Então...
P1: ____________ (02:39:16) dificuldade um pouco mais clara ___________ (02:39:28)?
R1: É, você fica numa corda bamba, né? Como disse o meu padre lá, onde eu saí: "Ah, então por que você era negro? Mandaram você embora do seminário porque você era negro?". Porque lá era de alemães, né, o seminário. E tem outros que: "Não, você não é negro, não. Você não está se metendo nisso, não sei o quê". Né? Não dá pra negar, são raízes da gente, né? E nós falamos também, até aqui Dom Paulo, quando nos apoiou, abriu as portas pra nós fazermos o primeiro encontro dos padres e bispos, né, na verdade, nós nem pedimos licença pra ele, nem comunicamos pro cardeal, que era o mínimo que a gente podia ter feito. Ele falou: "Vocês não me falaram nada, não sei o quê". Então, demos o título pra ele de negro honorário. Negro honorário. Né? E outros também, que naquela época a gente chamava de simpatizantes. São aqueles que apoiam a causa, que iam... um pouco também um termo já ultrapassado, não é? Vivemos todos nós e eu sou um... tem que lutar também contra o racismo, não é? Tem que ser antirracista. Então, a gente ficou sempre, um pouco, nessa situação. Então, alguns acham que é bem estranho, porque você está junto na pastoral e apoiando e tudo mais e outros que vem e falam: "Bom, você é negro". Reconhecem. Eu me sinto tranquilo, não é? Eu me sinto muito tranquilo e me sinto muito bem. E me sinto muito bem, não é? Junto com o nosso pessoal, participando, as nossas missas da pastoral, né? É uma delícia. Então, é uma delícia celebrar isso junto.
P1: Tem algo da sua história que você não contou e gostaria de deixar registrado?
R1: Que eu não contei?
P1: ________ (02:41:35).
R1: O que eu não contei, não é pra contar. Não, eu acho que um pouco desse trabalho da Pastoral Afro, que eu acho que é muito importante, que tem que ser respeitado, valorizado. É uma riqueza pra nossa igreja. Nós enriquecemos a nossa igreja com esse trabalho. Estamos ajudando a igreja a se converter, com esse trabalho. Ajudando a igreja se converter, sabe? Ela reconhecer o que foi feito e também ela assumir, se colocar naquele... onde... devemos ir onde Jesus estaria. Jesus nos enviou pra estarmos no mesmo lugar onde Jesus estaria. Não é? Justamente nesse meio. Um médico é pra quem precisa de Jesus. Então, justamente é naqueles que estão sendo explorados, aqueles que estão sendo oprimidos, esquecidos, abandonados, é que devemos lutar. Essa foi a minha... quando eu, de fato, assumi a pastoral, a assumi, é uma das questões que me pegavam, me importunavam muito isso: "Onde eu devo estar como padre, como cristão? Onde eu devo exercer o meu ministério? Onde Jesus estaria". Eu me perguntava isso: "Onde Jesus estaria?". Com os mais pobres. Entre os mais pobres, quem são os mais pobres, dos mais pobres? Quem são os mais abandonados, dos mais abandonados? Isso há 30 anos, mais de 30 anos atrás, eu me perguntava dessa forma, quando eu comecei o meu ministério como padre: "A quem eu vou me dedicar meu ministério? Eu sou padre pastor. Sou padre pastor". Tanto que eu digo sempre... às vezes tem gente: "Ah, vocês escolhem onde vocês querem ir? Onde os padres querem ir?". Não, o bispo que manda, de certa forma, mas você pode também discutir, falar: "Não, olha, eu gostaria de ter essa oportunidade". Não é assim uma imposição também. Mas eu digo: "Olha, eu vou pra onde me mandar. Eu sou padre pra onde precisa". Não é? Mas tenho também a minha preferência, tenho também a minha preferência. Então, eu tenho que ter esse olhar entre os pobres. Falei: "Quem são os mais pobres?". São os negros. São os negros. Não é? Então, é aí que eu devo estar, onde Jesus estaria. Justamente ao lado daqueles... junto com aqueles que estão nessa sociedade, né, são os mais abandonados, mais explorados. E penso um pouco toda essa história da gente. Mesmo minha mãe, como eu falei no início, né, que ela tinha essa questão: "Ah, eu não vou casar com uma pessoa mais negra do que eu, não sei o quê". Não é? Então, quer dizer, ela experimentou, ela viveu isso. Mesmo criada na família de italianos, né, ela viveu isso e com certeza sofreu muito. Outra época, outro discurso, mas ela também foi sempre muito altiva nesse sentido de que a gente tinha que levantar a cabeça, que a gente tinha que... é interessante - eu estou me prolongando, emendando as histórias - nós tínhamos uma família negra na nossa rua, eles eram batistas, da Igreja Batista e eles, de vez em quando iam pro culto deles, todos muito bem arrumados, muito bem arrumados. Assim, eles passavam na rua, parece que o pessoal, todo mundo parava, ficava em silêncio. Era um desfile eles indo pra igreja. Eles sempre com a cabeça muito levantada, não é? Não... que eu estudei com um rapaz dessa família, né? Sempre a cabeça levantada. Eu admirava muito. Na minha adolescência ainda, né? Na minha infância, adolescentes, que eles moravam praticamente todos... nessa época eles moravam na nossa rua, sempre moraram na nossa rua. E admirava muito isso, né? Aquela atitude... mesmo a expressão do corpo, não é? De gente que sabe da sua história, sabe o quanto apanhou, o quanto... e continuava apanhando, mas não se dobravam. Eles __________ (02:46:04) pro culto, voltavam e parece que a rua era até um silêncio pra vê-los desfilarem. Então, isso tem tudo a ver com a história da gente, com essa situação toda que foi vivida.
P1: E como foi pra você contar sua história aqui, hoje?
R1: É interessante revisitar um monte de espaços, que a gente às vezes não para pra pensar, pra... numa correria, numa agitação tão grande, que a gente às vezes não tem essa oportunidade, não é? Valeu a pena. Embora, talvez, fizesse diferente, mas valeu a pena.
P1: _____________ (02:46:48) vale a pena?
R1: Vale, vale muito.
P1: ______________ (02:46:51).
R1: Vale muito a pena.
P1: Então, _____________ (02:46:56).
R1: Eu agradeço. Embora eu volte a repetir: eu não acho que eu tinha grande história pra colocar em museu nenhum, não é? Depois também não tenho idade de museu. Mas, enfim, se a gente pode colaborar, se a gente pode ajudar em alguma coisa, pode acrescentar, a gente pode... acho que tem muita gente interessante que pode falar muito melhor da questão negra e tudo mais, né? Eu vejo uma deficiência muito grande em mim na questão do discurso do aprofundamento da causa. Mas a gente está junto, eu estou junto e apoio, o pessoal sabe que pode contar comigo na pastoral. Eles querem me colocar: "Ah, o padre é o coordenador". Não, não sou coordenador de nada, o bispo não me delegou nada, mas a gente acha que tem que levar em frente e que tem que estar junto, então a gente vai fazendo, né? Não dá pra você ficar esperando que alguém venha. Não. Alguém tem que fazer, então vamos fazer, vamos em frente. Nós acreditamos na causa, estamos envolvidos, então a gente vai em frente e vai levando.
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