CSP
Depoimento de Francisco Antônio Cavalcante de Menezes (Padre Tula)
Entrevistado por Eliete Pereira
Caucaia, 29/05/2014
CSP_HV003_Francisco Antônio Cavalcante de Menezes (Padre Tula)
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Ana Carolina
P/1 – Padre Tula, boa tarde.
R – Boa tarde.
P/1 – Antes de a gente começar, eu gostaria que o senhor dissesse o nome completo do senhor.
R – Tudo bem. Francisco Antônio Cavalcante de Menezes.
P/1 –Padre Tula, vamos retomar então, o local que o senhor nasceu?
R – Eu nasci aqui nessa cidade de Caucaia.
P/1 – Que dia e ano?
R – Dia 8 de novembro de 1950, às seis horas da noite.
P/1 – Padre Tula, o senhor estava contando que o senhor nasceu aqui.
R – É. Realmente eu nasci.
P/1 – Nessa casa.
R – Eu nasci nessa casa, nesse terreno. Meus pais vieram pra Caucaia em 1940 e aqui fincaram residência e começaram a constituir a família. E os filhos nasceram em Fortaleza, mas na minha vez não deu tempo, eu tive que nascer aqui em Caucaia bem nessa casa, nesse lugar. Eu sempre digo que os meus pais enterraram o meu umbigo aqui nessa terra, daqui eu saio, daqui ninguém me tira.
P/1 – Padre Tula, qual é o nome dos pais do senhor?
R – Meu pai era Romeu de Castro Menezes e minha mãe Maria Cavalcante de Menezes, conhecida como Jandira.
P/1 – E o nome dos irmãos do senhor?
R – Bom, tinha cinco irmãos. Era Marcelo, Pedro Paulo, Rita de Cássia, Francisco Antônio, que sou eu, e Francisca Cavalcante de Menezes, a irmã mais nova.
P/1 –E o que os seus pais faziam?
R – Meu pai era militar. Ele chegou até o posto de coronel e minha mãe era doméstica, do lar.
P/1 – O seu pai era do exército?
R – Não.
P/1 – Da marinha?
R – Era da polícia militar do Ceará.
P/1 – Ah, polícia militar. E como que era o seu pai quando vocês eram pequenos?
R – Meu pai eu posso dizer que era um homem muito bom, amável, mas também um homem de muita energia com os filhos. Ele era um pai carinhoso, mas na hora de agir com fortaleza ele agia e a gente tinha que obedecer. Como no passado a família foi edificada para a gente obedecer. Já hoje a família é diferente. Hoje nesse mundo que nós vivemos nós educamos os nossos filhos para ter responsabilidade. Eu acredito ser mais difícil hoje educar a família, nos dias de hoje, do que no passado. No passado a gente, como se diz na linguagem do nordeste, a gente era educado com pirão e tabefe. Era apanhando e ao mesmo tempo comendo o pão de cada dia. Mas mesmo assim, ele tinha força, mas era um pai amoroso demais, como também a mamãe.
P/1 – E como era a sua mãe?
R – A mamãe era sempre aquela criatura de uma mãe que gosta de mimar os filhos, sobretudo os mais novos. Ela tinha uma predileção pelos dois caçulas, eu e a mais nova. Mas não poupava a maneira de falar forte para nos trazer um legado muito importante na nossa educação. A gente deve tudo na nossa vida hoje graças a essa presença amorosa, afetiva e também de força na educação para colocar a gente nos bons costumes e na moral mesmo.
P/1 – O senhor comentou antes que o senhor nasceu aqui e que um pouco a ferrovia tem...
R – Perfeitamente. É uma história interessante.
P/1 – Conta pra gente.
R – Pois bem. Os meus avós pais da minha mãe, logo que a mamãe veio morar em Caucaia ela só trazia um filho, o filho mais velho, inclusive morreu há dois anos. E quando a mamãe ia ter os filhos a mãe dela pedia para ter os filhos em Fortaleza, porque naquela época Caucaia era conhecida como uma cidade de gente muito valente, belicoso. Até dizia numa música que matava um num dia e deixava dois amarrados pra morrer no outro dia. Aí minha vó tinha uma cisma contra Caucaia. Quando a mãe dava pra descansar ela ia pra Fortaleza, aí nasciam os filhos em Fortaleza. Na minha época, quando a mãe estava pra descansar, naquela época como todo interior do Ceará sempre tem um carro que faz todo o movimento, carrega mulher parida, carrega defunto, carrega tudo. Faz o serviço de tudo. Meu pai foi atrás desse carro e era mais ou menos dez pras seis da noite, a mãe sofrendo já e quando foi aqui ao lado, onde nós estamos, aqui passa a ferrovia, a Maria Fumaça vinha chegando seis horas aqui parar na estação, deu um apito muito grande, aí mamãe tomou um susto, aí saiu a cabeça. Quando papai chegou ele disse: “Bora, vamos embora.” “Não, passou a cabeça, o corpo passa”. Aí eu tive que nascer em Caucaia. Nasci nessa terra aqui, nasci nessa casa. Uma história interessante, difícil de acreditar, mas foi verdade. Nasci com cinco quilos e 900 gramas.
P/1 – Nossa. E seus pais moravam em Fortaleza então?
R – Não. Moravam aqui.
P/1 – Moravam aqui?
R – Morava aqui já desde 40.
P/1 – Mas sempre nesse terreno.
R – Sempre nesse terreno.
P/1 – Mas eles são de Caucaia?
R – Não. O meu pai a família dele é do interior do Ceará, de Boa Viagem, família Vieira, da família da mãe dele. E o pai dele é de uma família ilustre de major Facundo de Menezes, que tem até uma rua aqui em Fortaleza, foi um grande político interventor no Estado do Ceará na história política do Estado do Ceará. O pai dele era irmão do major Facundo de Menezes. Agora mamãe era de família de Sobral, dos Frota de Sobral, tem até o livro. E a mãe dela era da serra do Baturité, família Silveira. Mas Cavalcante... Menezes deu papai a mamãe.
P/1 – E como que foi a infância?
R – Bom, a minha infância, como a de uma criança naquela época, foi uma infância muito ao lado dos pais e também da família. Papai tinha uma capacidade muito grande de nos dar uma educação que era impossível a gente buscar outra convivência com outras pessoas. Ele trazia as pessoas aqui, desse lugar que nós estamos aqui desse aqui, ele fez até um campo de futebol e as pessoas vinham pra cá. Porque diminuiu, as pessoas vinham pra cá...
P/1 – Padre Tula, o senhor estava falando que aqui tinha até um campo de futebol nesse terreno.
R – Meu pai fez um campo de futebol, porque a gente gostava muito de brincar de futebol. Às vezes a gente ia brincar na rua, brincar nos vizinhos e teimava porque não deixava, quando a gente chegava os couros tinha que esquentar com a peia.
P/1 – Vocês levavam a peia?
R – Peia mesmo. Puxava as orelhas, batia, mas depois quando era de noite ele colocava no colo, ia cariciar e tal, passava a gente ficar com raiva dele.
P/1 – Você se lembra de alguma estripulia que você já fez?
R – Lembro-me demais. Lembro que uma vez aqui, essa região aqui, esse lado aqui tinha uma casa antiga aqui e gostava de guardar coisa, nós chamamos de caterva, de coisa usada pra aproveitar depois. Eu e a minha irmã saímos pra caçar calango de baladeira, isso era uma e meia, eu tinha problema de garganta, vivia doente com febre alta, aí quando papai chegou, ele sempre chegava cinco horas, mas nesse dia ele chegou às três horas, ele perguntou: “Jandira, cadê o Chico Antônio?”. Comigo. Ela disse: “Tá lá pelo quintal, pelo sol quente”. Aí quando ele chegou aqui me viu com a baladeira e minha irmã também, eu levei uma surra de baladeira.
P/1 – Eita.
R – “Vá pra casa, meu caro”. E outra vez foi soltando pipa, raia na rua, eu pensei que também ia chegar mais tarde que ele me pegou, aí puxou pelas orelhas, levou-me pra dentro de casa puxando pelas orelhas. Nem por isso eu tenho raiva dele, guardo muita saudade dele com carinho, que ele usava da força, mas depois ele acariciava a gente. E como pequeno ele sempre tinha mania nas férias de nos levar nas férias do final do ano para as praias, e nas férias do meio do ano para uma fazenda no sertão, pra gente ver essas duas realidades. Aí logo quando eu completei 11 anos a gente despertou pra vocação para o seminário, o meu irmão já estava no seminário, eu fui também. Estudei, fiz os meus cursos lá e sempre vinha pra casa.
P/1 – Antes de a gente chegar aí na vocação, você comentou que soltava pipa e também tinha a brincadeira da baladeira.
R – Certo. Certo.
P/1 – Que no sul a gente chama de estilingue, não é?
R – Ah, é estilingue?
P/1 – Isso. Que mais? Quais brincadeiras existiam também?
R – Também a gente brincava com, não sei se lá no sul tem, uns ferrinhos no chão. Fazia um triângulo e cavava o buraco, ia puxando, ia cercando a pessoa com o ferrinho. Se ele errasse a gente fechava. Depois de bila, cabiçulinha, aquilo lá é cabiçulinha, com três buracos a gente jogava bila, trocando carteirinha de cigarro, que fazia espécie de dinheiro. Era com carteirinha de cigarro era dinheiro. O Hollywood valia 20 mil réis, naquela época, o Continental valia dez mil réis, o cigarro Gold valia dois mil réis e o outro... Como era, meu Deus? Esqueci. Um da carteira amarela queimada. Esqueci. Não lembro mais, não. Então trocava dinheiro com umas coisas, brincava assim sem muita coisa. E futebol também era a brincadeira preferida da gente aqui, a gente começava a jogar futebol e tal, ser um time, a gente fazia vários times aqui, fazia torneio aqui dentro desse quintal e toda a vizinhança vinha pra cá. Era o ponto de apoio. Papai também tinha um clube que ele gostava, ele tinha um conjunto que nós podemos falar depois sobre isso.
P/1 – Ah, pode contar agora. Ele tinha um...
R – Papai era um músico.
P/1 – O que ele tocava?
R – Papai tocava violão, sanfona, piano, todos os instrumentos. Ele era músico, compositor, cantava, seresteiro. Ele foi seresteiro em Fortaleza muito tempo quando era novo. A seresta dele era com violão, um saco de rapadura e um saco de bolacha cantando, não tinha bebida, não tinha nada, ele com os amigos dele. Então ele casou-se a primeira vez, ficou viúvo, com seis meses casou-se com a minha mãe. Ele era casado duas vezes. Então ele...
P/1 – Ele chegou a ter filhos desse primeiro casamento?
R – Chegou. Dois filhos. Teve um casal de filhos. Já cantava na ideia com a mamãe e convidou mãe pra casar, porque já gostava dela. Logo papai foi ser frade, mas como o pai dele morreu só tinham dez irmãos, só ele de homem e nove irmãs, aí ele teve que deixar o convento da cidade pra cuidar da família. Mas, no entanto, ele teve dois filhos padres. Não foi frade, mas teve dois filhos padres. Bom, ele era compositor, cantor e ele fez um conjunto e tinha um clube aqui ao lado, onde são essas duas casas que tem ao lado aqui era um clube, Diamante Clube. Ele quando chegou aqui em Caucaia foi a primeira pessoa que montou uma rádio, rádio espalhada, radiadora, se vocês no sul conhecem isso. Radiadora espalhada no município de Caucaia aqui na sede, porque Caucaia era muito pequena nessa época, 1940, 42. Então ele espalhou de fazer programação, o pessoal vinha pra cá e congregava toda a juventude aqui nesse clube. Inclusive na época, o papai muito católico, ele fez um altar aqui na casa, depois eu mostro a vocês, e o vigário da época brigou com o papai, por que como é que você faz um altar e tem um clube perto? Naquele tempo a igreja uma mentalidade muito arcaica. E ele era uma pessoa que já tinha uma visão diferente, já talvez de hoje, de ver o divertimento pra juventude e ao mesmo tempo a espiritualidade. Aí ele disse: “Não. Não é digno de entrar um padre na sua casa”. Não é digno de entrar mais tem dois padres, saíram dois. Não entrou um, mas saem dois.
P/1 – Mas vocês já estavam no seminário nessa época da briga?
R – Não. Ainda não. Ainda não. Eu entrei no seminário em 1962.
P/1 – A gente vai pra essa história. Antes assim, o senhor se lembra de alguma composição, de alguma música que o seu pai fez?
R – Lembro demais. Lembro muitas e muitas e muitas.
P/1 – Tem alguma que você pode cantar agora pra gente?
R – Deixa-me ver aqui. Bom, ele me ensinou uma... A primeira melodia eu tinha o que? Eu tinha cinco anos de idade ele me ensinou uma melodia, ele me sentava aqui no colo, colocava um violão, aí ele cantava assim: “Dizem que eu sou muito feio, além de feio ruim, é porque eu sou bandoleiro, e o bandoleiro é assim, é porque sou bandoleiro, e o bandoleiro é assim. Todos me guardam rancor, não há quem goste de mim, é porque eu sou bandoleiro...”. E assim vai.
P/1 – Ah, legal.
R – Foi a primeira música que eu aprendi, ele me ensinou a cantar. Ele colocava pra embalar a gente, a gente aprendia, eu gravei essa música. Vê, essa música tem o que? Eu tenho uns 63 já de idade, então foi 1955, 56 ele me ensinou essas músicas.
P/1 – E você aprendeu a tocar algum instrumento?
R – Aprendi a tocar um pouquinho de viola que eu repentista um pouco, e eu mexo um pouquinho com teclado.
P/1 – Você aprendeu com o seu pai?
R – Não. Aprendi porque os vi tocarem, comecei a mexer, aqui todo mundo toca. Todos os filhos tocam. Só tem três vivos, os dois primeiros morreram, os outros são compositores também, os dois, só as duas meninas que não compõem, mas elas tocam acordeão e tocam piano também.
P/1 – E você comentou que você também tem uns CDs gravados.
R – Tenho. Eu tenho 16 CDs gravados. Religioso, sertanejo, a gente vai variando no estilo.
P/1 – E, vamos dizer, essa veia artística da música foi paralela a sua vocação?
R – Foi paralelo, mas teve um entrave seguinte, porque mamãe também era música. Era professora de piano, ela lia toda partitura, tudo, tudo, tudo. Ela cantava, tinha a voz bonita. Então a gente nasceu nesse ambiente onde a música florescia, a poesia também, que eu sou poeta, o papai era poeta, floresceu todo esse ambiente. Tudo serviu para a gente nascer nesse jardim florido da arte e da cultura.
P/1 – Vocês faziam sarau em casa?
R – Fazíamos. Reunia aqui, convidava o povo, fazia, cantava, todo mundo cantava, eu cantava, minhas irmãs cantavam, os vizinhos cantavam. Mamãe ensinou muita gente a cantar e a tocar piano. Muita gente hoje pode contar em Caucaia, a história passou pelas mãos da mamãe pra tocar piano. Uns caminharam na música, outros não ligaram importância. Inclusive o último que ela ensinou foi o meu sobrinho, o neto dela, que ela ensinou ele tocar maravilhosamente o piano, teclado, é um músico fora de sério, mora em Fortaleza. Pois bem, como eu ia falando, então nesse ambiente musical ele tinha um conjunto, nós nascemos com essa... A gente só poderia ter essa tendência pela música. A poesia aflora assim na minha cabeça por quê? Porque a gente vive num ambiente, a gente é produto do meio, não tem essa história? Aí pronto. Foi isso.
P/1 – E você também é poeta então?
R – Sou poeta, sim.
P/1 – E você se lembra das suas primeiras poesias?
R – Ih, não lembro assim. Eu nunca... Tem uma coisa difícil na minha vida que eu não decoro muito minhas poesias. Eu escrevo, então tenho muito mais de mil poesias.
P/1 – Mas você começou a escrever no tempo da escola?
R – Pra falar a verdade poesia eu comecei a escrever quando papai morreu.
P/1 – Por quê?
R – Seguinte, porque a gente sentiu muita falta. E como cobrir essa lacuna eu tive que, com a minha espiritualidade, com a minha fé, eu tive que procurar um meio de eu me apegar e não esquecer, mas me conformar e ao mesmo tempo aprender a conviver com a ausência dele. Então a inspiração do que ele me ensinou, a tradição de tudo que ele deixou, o legado, eu comecei a escrever. Primeiro eu fiz um CD com músicas só em homenagem a ele. Inclusive eu me lembro de uma música: “Meu velho pai...” dez anos “Meu velho pai há dez anos foi embora, deixou saudade e ainda hoje eu choro. Meu velho pai, meu herói, meu amigo, trago lembranças que ainda trago aqui comigo”. Uma música que eu fiz com o meu irmão falando dele. “Meu pai, meu irmão, meu amigo. Meu pai, tu me ensinastes a cantar. Meu pai tua voz tão macia sede nostalgia me ensinaste a pregar”. Aí por aí se vai. Então isso aí começou a despertar.
P/1 – E quando que ele morreu?
R – 1984. Ele estava tocando violão e eu tocando cavaquinho aqui em casa, aí eu tinha que sair pra cuidar de umas coisas do imposto de renda dele, aí fui a Fortaleza. Quando eu estava em Fortaleza, recebi o telefonema que ele tinha passado mal e estava no hospital, já com a banda morta e depois teve um AVC e faleceu. Ele morreu fazendo aquilo que gosta, tocando. E eu estava tocando com ele no cavaquinho, ele no violão. A gente fazia uma música lá. E daí eu comecei a... Aí estourou. Parece que foi o estopim que deu pra eu começar. Aí pronto. Aí não parei. E todo dia eu faço uma poesia. Todo dia eu faço uma poesia.
P/1 – E qual o tema, geralmente?
R – Depende da ocasião. Por exemplo, antes de ontem deu uma chuva aqui, eu tava sem nada, eu tava sentado aqui, aí veio aquela chuva caindo forte, relâmpago, trovão, aí me veio falar “A chuva”. “Bate forte no telhado a chuva que cai no céu...”. Aí lá se vai. Vem inspiração, por exemplo, um momento de raiva, um aborrecimento, eu extravaso na poesia. Uma visita inesperada. Tudo pra mim gera poesia. Uma viagem que eu vou, uma pregação que eu faço, uma palavra de um amigo, aí eu guardo aquela frase num pedaço de... Às vezes até no guardanapo eu escrevo assim, aí guardo, trago pra casa, começo a escrever e construir, num instante eu faço.
P/1 – E o senhor tava falando que o senhor é cordelista também.
R – Sou cordelista.
P/1 – Qual a diferença então o cordel e a poesia assim?
R – A poesia... É praticamente a mesma coisa. . A gente tava em que, hein?
P/1 – Eu perguntei pro senhor da diferença entre a poesia e o cordel.
R – Sim, a diferença. Não, praticamente... O cordel é composto de sete sílabas ou de oito sílabas. São versos. E a poesia tem vários estilos, tem o soneto, tem decassílabo, tem várias coisas, mas praticamente é da mesma família. Só que o cordel se trata de uma coisa mais popular que vem das raízes do violeiro, do cantador popular. É uma coisa que fala mais do coração... Ele é mais cantado. É mais cantado porque ele entra mais no ouvido com facilidade como se fosse contando uma história. Como eu estava te falando, agora no momento eu estou construindo a história da ferrovia, que é essa ferrovia aqui do norte. Parando em cada estação. Então eu vou colhendo do povo como você está colhendo algumas informações minha, eu vou colhendo do povo como era a chegada do trem, o que é que se vendia. Aí daquilo ali que o povo vai me dizendo eu vou construindo os versos, como se eu tivesse andando no trem. Hoje no ontem da história apontando para o futuro. Pra ver se reconstitui a ferrovia. Depois eu faço toda a linha. Então isso aí faz com que a gente vá descobrindo que um povo sem memória é um povo fadado ao fracasso sem sucesso. Por isso eu louvo esse trabalho de vocês. Vocês estão resgatando a memória. Então a memória é fundamental. Alguns pensadores, historiadores dizem que história não tem nada a ver com memória. Não, mas o que faz a história é a memória. Se a gente não tiver memória como é que nós vamos fazer a história? Não, mas a gente faz a história presente. Não. A história presente vai ser passado e vai ser presente, vai ser futuro. Então a memória que vai dando o reforço pra gente reconstruir o nosso passado, mergulhar no fundo do poço e descobrir as nossas raízes. Por quê? Você perguntou: “Por que você é poeta?”. As minhas raízes. Eu nasci, lá no passado o meu pai não era poeta, era cantor, era isso? Então eu sofro influência direta. É uma história, é uma memória. Então essa memória eu levo uma bandeira para os outros, para os meus sobrinhos, para o meu pessoal e tal. Vou levando para Caucaia também uma memória que eu não quero que apague. Eu vou passar, mas ela vai continuar para os que vão ver a história que nós contamos nesse chão aqui, as dificuldades que nós passamos e as alegrias que nós vivemos.
P/1 – E o Cordel, vocês faziam também em casa?
R – Não. De jeito nenhum. Sabe por que eu aprendia fazer o cordel, gostei do cordel? Porque eu comecei 1988 eu fazia mais soneto, mas em 88 eu comecei a fazer um programa de viola, que eu sou radialista também. Eu comecei a fazer um programa de viola e sofri influência do violeiro, com a viola na mão, terecotecotecoteco, aí eu comecei a entrar aqui no ouvido afinado, afinado, aí pronto. Eu peguei o ritmo e tal e comecei a fazer o cordel também. Foi influência também. A gente começa a viver o dia a dia das pessoas aí as coisas mudam na gente.
P/1 – E esse programa de rádio era da mesma rádio do seu pai?
R – Não. Já tinha acabado. Era radio já moderno do tempo de agora, de 1988. Eu trabalhei 25 anos como radialista. Nós estamos aonde?
P/1 – Padre Tula, a gente vai voltar um pouco, assim, a gente vai voltar pra... O senhor tava falando da experiência do senhor como radialista.
R – Sim.
P/1 – Só que a gente vai voltar um pouco na escola, quando o senhor começou a estudar, se o senhor tem algum tipo de lembrança relacionada a escola. O senhor falou muito da família, do ambiente familiar, desse caldo cultura. Você nasceu numa família de músicos.
R – Artistas...
P/1 – O seu pai era do meio militar, mas ao mesmo tempo tinha poesia, tinha música ali permeando o contexto de vocês.
R – Sim. Certo. Isso mesmo.
P/1 – E a escola? Qual a escola que o senhor estudou?
R – Pronto.
P/1 – Quais as lembranças que o senhor tem da escola?
R – Tenho muitas lembranças. Para lhe falar a verdade eu comecei a estudar numa escola particular. Não foi escola pública nem escola de grande vulto, de nome na cidade de Caucaia. Eu estudei com uma professora que ensinava do primeiro ano, alfabetização primeiro ano, até o quarto ano. Naquela época era o quarto ano, aí tinha o exame de admissão. Então a escola era aquela história da gente ter aquele livro e um caderno. Usava-se o lápis. Não se usava caneta e a borracha. Então na escola a gente tinha aquele estilo muito duro. Por exemplo, se não aprendesse a lição, estendia a mão para a palmatória. Caramba, a tabuada que não sabia, a conta de somar, de diminuir, cada erro que desse era chibatada na mão. Lá eu lembro que na minha escola primária tinha uma senhora que ela não tinha palmatória, ela tinha uma régua preta e todo mundo tinha medo dessa régua. O nome dessa régua era Joaninha. Ela dizia assim olha: “Quem não souber da lição, a Joaninha vai atuar nas mãos de vocês”.
P/1 – Era de madeira?
R – Era de madeira. E era melada assim com um pouco de giz pra deslizar na mão da gente, que ela batia ela fazia assim deslizando. Aí a gente fazia tudo pra não levar a Joaninha nas mãos. Mas mesmo assim a gente escapulia. Mas mesmo assim, mesmo com essa correção, com essa pressão a gente aprendeu. Porque todo menino é travesso, não gosta de estudar, aquela coisa, e quando chegava em casa nós tínhamos cobrança da mamãe. Quando a gente chegava em casa a gente não rebolava a bolsa como hoje os alunos fazem, não. Mãe pegava a bolsa: “Vem para os deveres. Vamos ver aqui”. Se não fizesse só saía pra aula no dia se desse os deveres.
P/1 – Ela acompanhava então?
R – A mãe acompanhava a gente. Tranquilamente. Aí depois quando fiz o exame de admissão entrei no seminário. E no seminário eu lembro que nos primeiros anos era adolescente, assim muito voltado a jogo, futebol e o meu irmão morava comigo no seminário também e uma vez o padre disse na frente dos mais de 200 seminaristas: “Pedro Paulo, cuide de seu irmão que ele não quer estudar, ele é um preguiçoso. Eu vou colocar ele de castigo”.
P/1 – E era verdade isso?
R – Era verdade. Aí eu fiquei com muita vergonha. Muita vergonha na frente de todo mundo e o pessoal começou a mangar de mim e tal, aí a partir daí eu comecei a criar vergonha na cara, como se diz, comecei a pensar que eu deveria estudar. Por quê? Porque de dois em dois domingos a gente vinha pra casa visitar os pais, e eu fiquei dois domingos preso no seminário fazendo cópia e comecei a chorar: “Não. Eu tenho que estudar pra poder ir pra casa com o meu irmão”. O meu irmão ia, eu ficava.
P/1 – Mas, padre, a opção pro seminário foi uma opção sua ou foram os seus pais?
R – Foi uma opção minha, mas não assim muito clara de ser padre, porque ninguém vai.
P/1 – Mas o que passava pela sua cabeça na época?
R – Eu acredito que foi a formação religiosa que a mãe me deu, papai também. Era muito de igreja, a gente ficava no... Eles cantando no cordel e a gente ficava sentadinho ali vendo missa, tudo. Fui coroinha e os padres viviam aqui em casa. Então isso teve influência também. Aí eu fui. Mas não com aquela definição clara: “Eu vou ser padre”. Eu fui. E assim, aquele ambiente religioso. Só depois que eu fui me descobrindo. Quer dizer, nessa época eu saí do seminário com 16 anos, aí fui fazer as universidades. Aí eu namorei, aí eu voltei de novo pro seminário, deu vontade, e eu fui chamado e voltei. Aí quando estava no seminário eu passei no curso de Teologia, quando estava faltando dois anos eu resolvi sair porque eu não me dava muito com o tipo de relacionamento, um relacionamento muito... Eu não falava muito bem, o meu coração achava que era melhor a gente viver mais fora, ser mais liberal. Eu sempre tenho essa ideia liberal de trabalhar nas massas, trabalhar com povo e tal. Aí eu saí do seminário e o bispo não me ordenou quando eu terminei meus estudos. Três anos depois foi que ele me ordenou padre, disse que ninguém colocava a mão no fogo por mim, que eu não sabia de nada, não sei o que.
P/1 – Você fez o seminário aqui?
R – Foi aqui em Fortaleza.
P/1 – Em Fortaleza?
R – Foi. Foi sim.
P/1 – Antes de a gente entrar já aí nessa, vamos dizer, nessa determinação de seguir aí a...
R – Foi quando foi que deu o ponto alto, não é isso que você quer saber?
P/1 – Isso. Antes de a gente entrar nessa parte eu gostaria que você comentasse dos namoros. Você falou que namorou. Você se apaixonou por alguma menina, tem alguma...
R – Não. Apaixonado, não. Mas assim aquelas coisas de jovem naquela época. Que hoje, eu acredito que hoje é diferente. Hoje a paixão bate mais forte. Naquela época era aquela coisa de amizade e tal. Uma troca de carícia, um beijo aqui e tal. Mas não tinha o que a gente tem hoje. Eu não sei se pode dizer, mas eu vou dizer.
P/1 – Pode.
R – Hoje em dia a gente… naquela linguagem mais popular hoje, o namoro já vão as vias de fato. Você sabe o que é.
P/1 – Sim. Sim.
R – Hoje o pessoal já tem uma vida mais íntima. O primeiro dia, segundo dia de namoro já tem uma vida mais íntima.
P/1 – Mas eu digo a paixão mesmo, a primeira pessoa que o senhor se apaixonou...
R – Tive. Tive uma pessoa que inclusive eu fui o responsável, eu fiz o casamento dela, entendeu? Eu estava já na Filosofia e também na História, ela é minha aluna, minha colega. Nós fizemos vestibular juntos e a gente sempre fazia trabalho junto e tal, ia pra casa e criou-se assim uma afetividade muito grande. Eu não podia dizer que é namoro, não sei se é namoro. E aí pronto. Acabou-se e tal. Aí depois conheci outra pessoa também que é do mesmo estilo, mas aí depois eu vi que Deus estava me chamando pra outra coisa. Quando foi num belo dia eu tinha o que? Três anos de padre, quatro anos, ela me procurou pra fazer o casamento dela. Aí eu me lembro que no casamento eu disse: “O que é que eu vou dizer desse casamento? Bom, eu vou dizer pra vocês, eu a conheço muito bem, pode casar, é uma pessoa muito boa e tal”. Pra mim foi uma coisa muito importante. Não houve choque. Houve assim uma alegria de a ver novamente e com o esposo casando, que eu não era o escolhido pra ela. Mas eu estou com 35 anos de vida sacerdotal e não estou arrependido ainda, não.
P/1 – Agora, a gente chegou a comentar antes de começar a registrar a entrevista, da Teologia da Libertação, não é?
R – Foi.
P/1 – O senhor teve contato com as ideias da Teologia da Libertação em Fortaleza?
R – Realmente. Eu comecei aqui por volta de 1967, eu era seminarista ainda, acompanhava muito um padre do regional nordeste um, que ele viajava muito lá pra Crateús, pra Dom Fragoso, que era um dos baluartes dessa história das CEBs, das Comunidades Eclesiais de Base. Tinha um trabalho de ver o evangelho e a vida, de lutar pelos direitos dos trabalhadores e também eu comecei a acompanhar aquelas reuniões e comecei a gostar. Também foi na época do auge de Puebla, da grande conferência de Medellín, de Puebla, que eu lia muito, interessava-me muito e achava bem que a igreja estava caminhando o rumo certo. Acho que ela estava sendo fiel a proposta de seu fundador. Jesus Cristo deu predileção aos pobres, ele ia ao encontro das pessoas, ele queria resgatar as pessoas, tirar as pessoas excluídas das situações que estavam. Como hoje a gente já deu uma luz, o papa Francisco está com uma luz aí. Eu acho que está contrariando muitos setores da igreja, tá dando uma luz muito boa no túnel do tempo, mostrar que a igreja deve ir ao povo e não o povo ir à igreja, em primeiro lugar. Não é encher os templos, mas a igreja ir às pessoas nos templos vivos da natureza, onde o povo está na sua situação de vida, no seu sofrimento, na sua dor. A igreja ser porta-voz da esperança desse povo. Então, essas ideias afloraram muito em mim nos idos de 1969, 70 e eu fui ordenado em cima dessa proposta. Eu persegui até hoje essa proposta. Se bem que, quem pensa dessa maneira diferente é muito excluído da igreja. Porque a igreja hoje tem uma visão diferente, está mais na linha da carismática, daquela coisa do louvor, quer dizer, não penetra nos problemas sociais, na vida do povo, no âmago, nas questões que o povo tem mais necessidade. A igreja parece que está na periferia só voando, voando, remediando e não resolve com uma proposta mais profética, libertadora, de querer dar logo os sinais dos tempos para o mundo em que nós vivemos. Esse mundo globalizando onde o individualismo impera, nós temos que criar uma sociedade mais participativa e a igreja tem um papel fundamental nessa questão.
P/1 – Padre Tula, como que as Comunidades Eclesiais de Base e a Teologia da Libertação repercutiam aqui na região?
R – Em Caucaia.
P/1 – Em Caucaia.
R – Muito bem, essa pergunta. Olha, quando eu me ordenei em 1979, em Caucaia, até eu conto um pouquinho no meu livro, que não publiquei ainda, era uma terra onde predominava o poder político dos coronéis. Vereador mandava em igreja, vereador mandava nisso. Tudo dizia: “Os padres são como que marionetes”. Então naquela época eu surgi como uma opção diferente. Eu comecei a pensar diferente, por causa disso eu fui ameaçado de morte umas quatro ou cinco vezes, cheguei quase a morrer, pistoleiro e tal, por quê? Porque eu pensava diferente.
P/1 – E como que o senhor... E que pensamento diferente era esse?
R – Pensamento diferente que eu comecei a levar o evangelho contextualizando na vida. Por que você sofre? Por que você é assim? Que tipo de política nós temos aqui? Você vive assim, é oprimido, marginalizado pelo tipo de política, de situação social. Então comecei a colocar a proposta de Jesus Cristo e o evangelho e a vida dele, fazer o paralelo, a fé e a vida. Então eles começaram fazer essa reflexão comigo e o pessoal começou a acreditar uma esperança de uma nova vida. Os políticos que dominavam na época tinham raiva de mim, porque diz que eu tinha a língua grande, porque eu falava, porque não era pra fazer isso. Porque o pessoal começava a se libertar, pessoal começava a querer construir a sua identidade, a sua história. Como hoje nós temos o que? Nós temos em Caucaia 12 assentamentos. Esses 12 assentamentos na zona rural foi o fruto do nosso trabalho, dessa reflexão. Tiveram 13 assentamentos que houve pistoleiros, nós levávamos comida pra outro canto escondido de noite pros pobres que estavam assentados. E lá eles ganharam a terra e estão vivendo. Não tão bem, mas estão vivendo. Mas pelo menos a terra é deles. Então hoje eu sinto felicidade do sofrimento, do suor, às vezes até do sangue derramado, porque aquela proposta não ficou ao léu, ela ficou gravada no coração do povo. Agora, falta alguém que dê prosseguimento. Eu parei, não pude ir mais, estou aposentado. Mas a proposta da igreja hoje ninguém sabe, não está nessa linha. Mas o papa Francisco deu sinal verde já para o Leonardo Boff, Clodovis Boff, essa turma todinha pra dialogar com ele, chamar pra conversar, porque a proposta dele está clara na igreja.
P/1 – E, Padre Tula, naquela época que o senhor está falando aí, 79...
R – Era uma época de ditadura horrível.
P/1 – Exato. Então como esse contexto da ditadura influenciava também, por exemplo, o poder local? O senhor falou assim que tinha os vereadores aqui. Esses vereadores pertenciam ao quê? Qual era a classe econômica que eles pertenciam assim? Quem eram essas pessoas?
R – Variadas classes, mas eles tudo eram marionetes. Os chefes políticos, o poder em Caucaia sempre foi alternado. Nunca chegou a repetir o prefeito de um mesmo mandato, só agora o doutor Washington, é o único. Mas o poder alternado, um ano eram os Correias, outro ano da família Pontes da Rocha. Correias, família Pontes da Rocha. Era assim. Era alternado o poder. Então quando um estava fraco o outro se fortalecia com grupos, ia pro outro lado. E os vereadores eram marionetes deles, faziam o que eles queriam e quando a gente surgiu com essa proposta, claro que mexeu com a...
P/1 – E essas famílias eram proprietárias de terra aqui?
R – Não. As famílias não eram proprietárias, eram posseiros. Eles que eram os donos das terras. Então, eu comecei a trabalhar em cima disso e eles começaram a se libertar. Por exemplo, a juventude não queria mais viver daquele jeito, que os pais queriam obrigar os jovens a votar naquele vereador, aí o jovem: “Não. Nós não aceitamos”. Nós começamos a trabalhar a juventude e a juventude começou a se libertar. A juventude do meio popular, a juventude do meio rural, começou a mudar essa ideia. Então isso floresceu, que foi a alma da paróquia do sertão que eu trabalhei foi a juventude, que eles começaram a assimilar. Os jovens tinham cede de liberdade, de justiça, que não admitiam o pai e a mãe viver naquela situação de sujeição. “Não é isso mesmo. Não é isso mesmo, não. Nós temos que caminhar pra frente”. E a proposta que nós levamos do evangelho mexeu com as estruturas. Nós conseguimos libertar cinco igrejas que eram monopólio de vereadores. Eles que faziam a festa, eles que tomavam conta do dinheiro, aí eu comecei a quebrar os grilhões, grilhões, quebrar até que consegui libertar. Tá tudo libertado.
P/1 – O senhor foi pároco de qual igreja primeiro?
R – Bom, eu vou lhe contar um pouco a minha vida sacerdotal. Eu tenho 35 anos de padre. Eu primeiro fui quatro anos cooperador, o vigário paroquial aqui de Caucaia. Tinha um vigário, mas eu era o cooperador. Esse padre que trabalhou comigo tinha menos visão. A paróquia na época tinha 30 comunidades. Não. Tinha 28 comunidades. Aí com o nosso trabalho de CEBs passou a ter 70 comunidades. Nós começamos descentralizar o povo das igrejas dominadas para celebrar debaixo de cajueiro, nas calçadas dos grupos, pra começar a formar comunidades libertadas lá do prédio que era o símbolo da dominação. A religião era o símbolo do poder, da dominação. Então nós tínhamos que libertar a religião do poder. Colocar essas duas coisas, o poder e a religião. A religião não pode ser fruto do poder. Na época, antes também, o político carregava o padre pra celebrar missa, o padre tinha que tomar café na casa do político. Primeira vez que eu cheguei lá pra celebrar num lugar: “O café lá em casa.” “Vou não. Vou tomar café lá na casa de uma pessoa por lá.” “Não. Você tem que ir lá.” “Não. Vou na casa da pessoa que eu já cumprimentei aqui”. Aí foi uma confusão por causa disso. Começou. Entendeu? Então eles viviam dessa maneira oprimindo o povo. Eu comecei com essa proposta, aí foi mudando. Então os padres anteriormente não assimilaram e nós começamos a quebrar essas coisas, aí depois eu fui transferido. Transferiram-me pra Antônio Bezerra, periferia. Lá é um padre que morava lá há 35 anos. Muito ligado ao poder, nós começamos a descentralizar também.
P/1 – Bezerra é um bairro de Caucaia?
R – Antônio Bezerra. Logo depois de Caucaia. Trabalhava nas favelas. Eu comecei a trabalhar nas favelas, nos cortiços, onde estava o povo pobre, miserável, aí foi outro trauma, porque eu descentralizei. Aí o povo começou a ter vez. Veio uma fábrica que eu cuidava das castanheiras mostrando os direitos delas, eu intervim com o dono da fábrica, mas o povo se libertou e conseguiu um salário justo com o trabalho que nós fizemos de igreja. Depois foi a época que morreu o meu pai, eu tive que sair pra morar com a minha mãe, que ela morava sozinha, aí eu passei três anos fora, aí eu assumi a paróquia do Capuã. Aqui só a região do sertão e serra de Caucaia. Quando eu peguei tinha 22 comunidades. Quando eu saí em 2009 tinha...
P/1 – E como que acontecia essa mudança? Como que o senhor era convidado pra se tornar o pároco daquela igreja?
R – O bispo. Eu era pra ser o vigário daqui quando o padre aqui saiu. Eu tinha direito de sucessão, mas houve uma permuta dos políticos: “Coloca ele pra fora pra longe”. Aí o bispo trocou pra Antônio Bezerra. Aí lá eu continuei o meu trabalho. Eu saí, vim pra cá, fiquei mais como capelão das irmãs, quando o padre adoeceu aqui ele me convidou pra assumir uma área do sertão e da serra. Era aquele lugar que eu já tinha andado há muitos anos. Eu comecei um trabalho lá e fundei a paróquia lá, passei lá 22 anos e saí em 2009. Aí fiquei...
P/1 – Por que o senhor saiu?
R – Eu saí porque eu não tinha mais saúde, tinha perdido o meu irmão, minha mãe, tudo perto um do outro. Meu irmão morreu de um acidente, aí eu perdi muito. Ele cantava comigo, fazia dupla. Aí morreu minha mãe com dois anos, depois morreu outro irmão, aí pronto. Eu fiquei muito penalizado, assim sem condição, daí veio esse câncer de tireoide, eu pedi o bispo pra me retirar e ficar mais disponível. Eu sou capelão, de vez em quando dou uma ajuda ao padre aqui, mas com aquela mesma visão, pregação do mesmo jeito, não muda. Eu sei que causa mal estar pra muita gente, mas eu faço um pouco a diferença, eu não sou igual. O importante é ser diferente, não é ser igual. Ser igual não tem graça. Fazendo a diferença que é bom.
P/1 – Tá certo. Padre Tula, como que surgiu esse nome Tula?
R – Muito bem. É uma história engraçada. Seguinte, quando eu tinha três anos de idade o meu irmão, esse que faleceu que era padre também, ele cuidava de mim, colocava no braço pra aqui, pra acolá e aqui em casa tinha uma cachorra, o nome da cachorra era Tulipa. Essa cachorra gostava muito de estar perto de mim, eu brincava com essa cachorra. Aí Tulipa, Tulipa, Tulipa, Tulinha, aí começaram a me chamar de Tulinha, depois Tula quando eu cresci, aí ficou Tula até hoje. Quem perguntar quem é Francisco Antônio ninguém sabe. Se você disser o padre Tula todo mundo sabe.
P/1 – Você acabou adotando o apelido então?
R – Eu fiquei. Eu gosto que chama esse nome, eu gosto do nome Tula, eu assino por Tula. Eu não assino documento oficial. Mas onde eu assino coloco padre Tula, padre Tula, eu coloco, porque é conhecido por esse nome e ficou pra sempre.
P/1 – Tá certo. Agora, padre Tula, uma curiosidade assim, o senhor falou que teve acesso às ideias da Teologia da Libertação, o conteúdo de Puebla. Havia todo um contexto de contestação também.
R – Perfeitamente.
P/1 – Da igreja católica.
R – Demais. Demais.
P/1 – Um contexto também de ditadura, mas o senhor lembra a primeira vez que o senhor, ou com quem o senhor teve contato que falou e comentou dessas ideias que eram tão, vamos dizer, diferentes dentro da igreja? Você lembra?
R – Lembro. Lembro.
P/1 – Você pode contar pra gente um pouco?
R – Lembro. Foi uma viagem que eu fiz, como eu estava falando, pra Crateús. Eu lembro a data com certeza. Foi no dia primeiro de maio de 1970. Estava havendo lá o dia do trabalho. Eu fui com o coordenador pastoral do regional nordeste um, hoje ele saiu da igreja, ele casou-se, mas ele coordenava. Então ele foi lá a um encontro de trabalhadores com Dom Fragoso e eu muito novo ainda, eu participei. Eu tinha o que? Eu tinha 20 anos. Aí eu ouvi aquelas ideias, eu fiquei entusiasmado, vi uma maneira nova de encarar a proposta do evangelho, a igreja. Então achei aquilo ali me tocou o coração, eu comecei a ler determinados livros sobre aquele assunto e trouxe aquela ideia porque eu vivi nessa terra e só vivi opressão aqui. É como Moisés. “Deus ouviu o clamor do teu povo e veio Moisés para libertar”. Eu encarnei muito isso. Lembro-me quando o bispo disse isso lá na pregação para os trabalhadores: “Ouvi o clamor do teu povo, vim para libertar”. Moisés disse que veio, tu vais dizer isso: “Ouvi o clamor do teu povo, vim para libertar”. Aí eu tomei aquela proposta para aqui, para a minha terra. Que realmente era um povo dominado, povo bom, mas dominado. Então Deus está me chamando pra levar essa mensagem pra levar lá pra Caucaia, pra minha terra.
P/1 – Padre Tula, o senhor estava falando então assim como o senhor entrou em contato com as ideias da Teologia da Libertação. O senhor falou que foi lá pro encontro em Crateús.
R – Crateús. Foi.
P/1 – E lá o senhor começou a perceber que existiam ideias que lhe tocavam porque tinham realidade aqui.
R – É. Uma nova maneira de ver a igreja, a proposta de Jesus Cristo.
P/1 – Agora, como que era a comunidade naquela época? Padre Tula, o senhor estava comentando assim que o senhor ficou tocado pelas ideias da Teologia da Libertação, porque um pouco fazia pensar as pessoas e a realidade das pessoas em Caucaia que seria justamente a região que o senhor está. Como era a realidade dessas pessoas? Como era Caucaia naquela época?
R –Bom, naquela época comparando aos dias de hoje, Caucaia vivia um atraso econômico, político e social muito grande. Eu como filho da terra, claro, consciente dessa realidade, não poderia ficar de forma alguma alheio a essa situação. Eu não podia compactuar com esse pensamento, inclusive nós tínhamos intelectuais em Caucaia que se excluíam de pensar, de refletir essa realidade com medo, não sei, ou então acomodados por qualquer motivo, não enfrentavam a proposta de cara. E por causa dessas minhas ideias eu tentei, comecei a refletir devagarinho com algumas pessoas, comentar com algumas religiosas, com colegas sacerdotes, com seminaristas, que era viável a gente começar a fazer um trabalho de reconhecimento e de reconstituição da nossa história para poder despertar o novo modelo de vida. Uma proposta de vida nova pra Caucaia. Então foi na época que eu comecei a me interessar pela história de Caucaia. Fui buscar desde as raízes, como foi a nossa colonização, como foi a proposta da igreja vir de Portugal com aquela empreitada de fazer valer a força do colonizador, a igreja ligada ao estado, ao poder e não poderia mais ser, em muitos cantos já havia esse aspecto de libertar o povo, a igreja tinha que ter uma proposta nessa linha. Então comecei a refletir com algumas pessoas, mais havia uma resistência muito grande. Porque naturalmente todos tinham algum cargo político, a família tinha um cargo político, era diretor, era não sei o que, e às vezes a gente ia fazer uma reunião, ia pra uma missa, colocava uma pessoa pra gravar o que eu estava dizendo. Aí quando eu chegava em casa já sabia o que eu tinha dito na pregação tudinho. Quer dizer, eu ia pra uma comunidade falar uma coisa, aí lá já sabiam o que eu tinha dito. Aonde eu chegava em Caucaia já sabiam o que eu tinha dito. Gravavam, passavam tudo. Quer dizer, eu era teleguiado. Inclusive até polícia federal andou olhando, vendo meu estilo de vida proposto. Meu irmão foi preso. Meu irmão passou dois dias na polícia federal aqui de Fortaleza.
P/1 – O que era padre?
R – O que era padre também porque ele também tinha essas ideias. Inclusive ele foi vigário de uma paróquia aqui lá no sertão e ele recebeu o Zé Rainha lá, que ele foi que fundou o assentamento maior do Ceará. Então na época que houve aquele crime no sul que atribuíram ao Zé Rainha, se não fosse o meu irmão, Zé Rainha não tinha sido absolvido, não. Porque no registro do livro de tombo da igreja ele registrava tudo: “Presença do Zé Rainha no dia tal, hora tal aqui na minha casa”. Aí levaram o documento, levaram o livro com a cópia pra mostrar que ele não estava no dia do crime lá. Ele estava era em Madalena com o meu irmão, entendeu? Ele também tinha essa proposta, o meu irmão.
P/1 – Qual o nome do irmão do senhor?
R – Padre Pedro Paulo.
P1 – Padre Pedro Paulo.
R – Pedro Paulo.
P/1 – E assim, o senhor está falando aqui já de um evento mais atual do Movimento Sem Terra...
R – Pronto. Já era do Movimento Sem Terra.
P/1 – E assim, houve uma mobilização de uma luta social pela terra por parte da população aqui da região?
R – Aqui um pouco. Um pouco. Não tão forte, mas os que vieram de outros municípios vizinhos, eles entraram aqui em Caucaia, absorveram essa proposta e nós começamos a fazer esse trabalho de agrupamento, de entrada na terra devoluta. E até nessa luta adquirir a posse da terra. Nós conseguimos ainda na época umas oito fazendas. Três foram muito duras, as outras foram mais amigáveis. Até eu conversava com os fazendeiros, aí não tinha produção, ele liberava, passava pro Incra, mas três fazendas foram muito difíceis.
P/1 – Houve conflito?
R – Conflitos...
P/1 – O senhor foi ameaçado?
R – Fui ameaçado demais. Quiseram me pegar não sei quantas vezes com pistoleiros. Mas graças a Deus estou vivo contando a história.
P/1 – O senhor tem alguma história que o senhor foi quase às vias de fato, de eles assim...
R – Fui. Fui.
P/1 – Conta pra gente assim essa...
R – Dia 28 de novembro de 1992. Numa capela aqui, que eu prefiro omitir o nome, em Caucaia. Era muito dominada e eu cheguei lá, já estava preparado o esquema da abertura da festa, o pistoleiro preparado pra me matar, porque eles queriam dominar a festa, queriam mandar na festa. Mas na felicidade Deus me ajudou que nesse dia eu fui com a minha mãe. A minha mãe estava comigo, então eles respeitaram, mas mesmo assim perseguiram o meu carro, eu entrei em outras estradas e eles passaram direto, eu saí lá na frente de outras veredas, que eu conhecia todas as veredas pra fugir. Nesse dia me livrei da morte.
P/1 – E o senhor tinha certeza que eram pra matar o senhor?
R – Tinha certeza absoluta. Puxou aqui na minha camisa com revólver na mão, uma pistola.
P/1 – Eles te ameaçaram então?
R – Ameaçaram sim.
P/1 – Agora, padre Tula, eu tenho uma curiosidade. O pai do senhor era militar, e o que o pai do senhor pensava dessas ideias do senhor e do irmão?
R – Bom, papai não chegou a ter acesso muito, não, mas ele como militar deixava a gente livre. Nesse ponto aí era importante. Inclusive quando era mais novo ele queria, ele tinha uma pessoa muito amiga, chefe político em Caucaia, ele queria que nós votássemos nesse chefe político. “Pai, ninguém vota, não, pai”. Que eu conhecia quem era a peça. Aí eu e o meu irmão fomos contra.
P/1 – Vocês enfrentaram?
R – Nós não quisemos votar nele, não era padre ainda, não. Aí os outros ainda votaram, depois nós fomos libertando, libertando, libertando até que ele disse: “Vocês querem ser… façam o que querem”.
P/1 – A gente estava falando do pai do senhor.
R – Ah, do meu pai, que ele não aceitava as ideias da gente. De princípio, por exemplo, no primeiro ano de padre já tinha essas ideias, ele ficou um pouco receoso, mas ele disse: “Vocês são livres, vocês pensem do jeito que vocês quiserem. Aguentem as consequências da missão”. Ele era um militar, mas aquele militar. Ele era um militar muito tranquilo, passivo, um espírito cristão muito forte e ele entendia perfeitamente essa proposta da gente, o ideal da gente, que é o ideal de liberdade, de uma igreja diferente. Talvez ele sofreu muito com isso, uma igreja muito ligada ao poder, então quando ele viu os filhos pulando essa coisa, talvez ele a primeira vez deve ter ficado receoso, mas ele viu que era um ideal. Sendo um ideal ele não podia barrar o ideal dos filhos. Era um ideal que ia realizar a nossa vida. Porque na medida em que você tem uma ideia e é tolhido da ideia de fazer aquilo, então você fica de mãos e os pés amarrados e perde a identidade. Se você identifica com aquilo você tem que levar até o fim aquela identidade. Porque se mudar de identidade você também perde a sua personalidade. Quer dizer, a gente tem que ter uma cara, sua cara é essa, o seu pensamento é esse, sua filosofia é essa, se você muda você é bipolar. Você não pode ser bipolar. Então se você é bipolar você não tem identidade, você perdeu a sua identidade. Então a gente tem que ter uma característica, um discurso nessa linha aqui. Então se você sair daqui todo mundo já conhece: “Não, você está saindo da sua linha”. Todo mundo vai conhecer, então todo mundo conhece o meu discurso, é dessa linha aqui. Entendeu como é?
P/1 – Padre Tula, o senhor estava comentando um pouco dessa pesquisa que o senhor fez também da história do município. A cidade assim, o município o senhor falou assim que existe um atraso muito grande então.
R – É. Na época.
P/1 – Social, político.
R – Econômico.
P/1 – E econômico. Mas o senhor, como o senhor descreve assim, por exemplo, o que se produzia aqui na cidade? Como que essa população vivia?
R – Muito bem. Olha, na época, nos primórdios, era muito a indústria da cera de Carnaúba e também agricultura familiar hortifrutigranjeiros nas serras e praticamente o povo da cidade vivia de emprego em prefeitura e aposentadoria. Indústria até os idos de, vamos dizer assim, de 2008, 2007, indústria praticamente inexiste. Talvez umas duas ou três indústrias. Hoje nós já temos o que? Mais de 200, 300 indústrias. Tem o Pecém estourando aí. O mercado de trabalho abrindo-se cada vez mais. Mesmo com esse mercado de trabalho há uma dívida social grande, mas por outro lado o custo benefício é maior. Porque todo progresso traz uma dívida social, mas cabe aos governos equacionar essa dívida social com o mercado de trabalho. Se o mercado de trabalho muda a oferta de mão de obra, também deve haver recursos pra poder criar mecanismo que gere uma situação de vida mais saudável pras pessoas. Entendeu como é? Quer dizer, é um processo assim que acompanha uma coisa a outra. Então Caucaia sofreu muito com isso. Só nos últimos anos que veio a mudar. Então o povo vivia amoitado, vivia oprimido, marginalizado. Era bucha de canhão nas mãos dos políticos, eles faziam o que queriam.
P/1 – Havia uma migração também muito forte? As pessoas saiam daqui?
R – No interior os jovens iam muito morar em Fortaleza. Por quê? Porque não aceitavam a sujeição, como eu falei a pouco. Muitos jovens, eu fazia o grupo de jovem, com pouco tempo, um ano, dois anos, acabava-se. Eu: “Cadê Fulano de tal?” “Foi embora. Casou, foi embora pra Fortaleza”. Por quê? Porque não queria viver aquela situação de miséria, de opressão, os pais estavam acostumados, acostumados e acomodados, ficavam e eles iam embora para Fortaleza, para cidades periféricas e tal. Mas com o advento do Pecém mudou muito.
P/1 – A gente vai falar sobre o Pecém mais adiante, mas antes eu queria que o senhor entrasse, também comentasse com a gente como historiador...
R – Historiador. Muito bem.
P/1 – Que o senhor também pesquisou sobre essa vida, por exemplo, social das pessoas. O lazer, o que as pessoas faziam aqui em Caucaia, na região?
R – Bom, lazer tinha a praia, com muita dificuldade porque não tinha estradas muito boas. O lazer praticamente não existia. Tinha o futebol. Futebol era o lazer da época. Muito. Muito futebol, todo mundo ia pro futebol, corrida de cavalo, não é? Jogo de baralho que era muito difundido, sinuca, essas coisas todas. Aqueles que tinham lazer no clube, tinha uma festa num clube principal aqui da cidade, tinha uma festa ou então no tempo que tinha o clube do meu pai vinha às festas da gente e pronto. Quer dizer, é uma cidade muito pequena, muito reduzida. Você entra em Caucaia hoje, um panorama estrutural da cidade, ela conserva os mesmos moldes do passado. Quer dizer, hoje a gente sofre porque a cidade tudo acontece no centro. É como se fosse, eu digo no meu livro, que Caucaia ainda se compara a aldeia de 1600 e pouco, porque tudo quer fazer no centro. No centro era a igreja, era a escola, é a cadeia, era o cemitério, porque tiraram o cemitério. Mas tudo era aqui, então tudo era feito em torno da aldeia. Então hoje o povo não se admite, por exemplo, estirar o comércio, estirar as indústrias para a periferia da cidade. Por quê? Porque o pessoal sofre daquela mentalidade de fazer tudo no centro, acomodado. Então o centro fica cheio. Você veio por aqui, viu como é difícil, mesmo que haja sinais. Quer dizer, a desorganização urbana é grande demais, sobretudo na época de fluxo, sábado e domingo, sábado principalmente de feira, então é uma desorganização por quê? Porque falta uma estrutura, o povo não foi educado, tem que ser educado no presente para o futuro para ter essa mentalidade de vida urbana. O pessoal... Quer dizer, o urbano no rural. Hoje existe esse processo que os historiadores falam muito, os sociólogos, processo de conurbação. Quer dizer, quer queira ou não a cidade está sendo engolida por uma nova cidade que vai surgindo ao redor da cidade antiga. Você vê isso muito claramente em Caucaia. Com as vias de acesso, as rodovias, então está havendo esse processo de conurbação. Os conjuntos habitacionais, os prédios de moradia, pousadas. Mas mesmo assim ainda se concentram no centro as coisas, no centro muito. Comércio, o mercado, são frutas e... E não tem aquela mentalidade de abrir o espaço.
P/1 – Bom, o senhor estava falando da transformação urbana de Caucaia.
R – Sim. Urbana. Pois bem, então há um esforço muito grande da atual administração, mas há uma, como é digo, não é rejeição, há uma ideia muito firmada do povo em querer continuar nessa estrutura arcaica. Não vê a cidade de uma maneira mais ampla, que está crescendo. Quer queira ou não a cidade vai crescer, o porto Pecém a gente fala já, já. Tá aí, então ela cresce inexoravelmente. Ela vai crescer. Independente da vontade do povo ela vai crescer, não tenha dúvida. Mas historicamente... Isso aí tudo por conta da história. Caucaia começou nessa aldeia, a igreja, o poder e tal, um comerciozinho pequeno, todo mundo trabalhava em Fortaleza. Caucaia era cidade dormitório. Pessoal trabalhava em Fortaleza, ia no trem, ia no ônibus, chegava em Caucaia, era lugar de todo mundo ir dormir.
P/1 – E o trem era um trem de transporte de matéria prima ou também de pessoas?
R – Não. Tinha o trem suburbano. Tinha o trem suburbano e essa história eu estou contando também. Então o trem suburbano deixou de existir em 1988, o que ia pra Crateús, pra Sobral. Aí depois entrou o Metrofor que fez esse trem de metrô de superfície, que é o VLT. Então ele faz transporte de Caucaia a Fortaleza. Continua levando gente. Mas naquela época o trem o trem era pra dormir, que não tinha vida noturna. Hoje Caucaia mudou. Por quê? Porque ela tem um shopping, ela tem vida noturna. De uns dez anos pra cá modificou muito, mas anteriormente aqui era um cemitério de noite.
P/1 – Padre Tula, e as festas? Havia festas populares aqui?
R – Festas populares. Principalmente o povo ia pras festas de padroeiros, que era um momento de congraçamento, traziam bandas, o povo ia pras quermesses. Era um momento também de socialização.
P/1 – Qual o padroeiro daqui de Caucaia?
R – Aqui é Nossa Senhora dos Prazeres.
P/1 – E qual é o período assim?
R – Período é de cinco de agosto a 15 de agosto.
P/1 – Como eram essas festas? Eram quermesses?
R – Novenas, quermesses, parques. Motivações, shows. Agora está um pouco mais moderno. Mas o povo gostava daquelas quermesses, de coisinhas que antigamente tinha… de laçar carteira, de fazer… como é? Aquela pesca que tinha no coisa. Aquelas coisas. Hoje não existe mais isso, hoje é uma diversão mais sofisticada, com um parque altamente sofisticado. Hoje o povo já quer uma coisa, um lazer mais diferenciado. É diferente do passado. Tudo muda.
P/1 – Agora, padre Tula,o senhor tinha comentado da missa do vaqueiro.
R – Sim.
P/1 – Como que é essa missa do vaqueiro?
R – Muito bem. Eu há mais de 26 anos abracei essa proposta porque eu vi muito o sertão e o meu irmão também. Particularmente a gente pode dizer que quem introduziu a sanfona, o instrumento sanfona dentro da igreja fomos nós dois. Fomos nós dois. Foi mil lá vai, não sei quando foi, não. Então foi um, tramou um negócio, uma coisa horrível pra igreja. “Não pode. Sanfona é instrumento de forró, não sei o que”. Aí nós fomos dando a sanfona, meu irmão começou a fazer missa da padroeira lá da terra que ele trabalhou. Aí em homenagem aos violeiros, em homenagem aos vaqueiros, trazia tudinho, tudo encourado. Aí fazia a missa.
P/1 – Como o senhor aprendeu a tocar a sanfona? Porque o senhor falou do piano, falou do violão...
R – Não. Sanfona só faço mexer um pouquinho, não toco ela completa, não.
P/1 – Pois é, mas como o senhor teve contato com a sanfona?
R – Em casa com papai, mamãe. Meu irmão mais velho que morreu tocava sanfona muito bem. Era sanfoneiro mesmo. Mas eu só faço dedilhar uma coisinha ali pra fazer as músicas. Então aí o meu irmão: “Tula, vamos fazer umas músicas pra missa do vaqueiro?”. Tudinho, a entrada, tudo dentro da liturgia. Aí vamos. Aí começamos a montar, fizemos a missa do vaqueiro, fizemos no CD. Aí toda missa de vaqueiro, nós somos convidados, mas nós somos perseguidos por causa disso. Ai, me tiraram. Porque eu falo, faço a missa todinha ela no verso, no amor e cantada.
P/1 – Como começa? Descreve pra gente como é a missa do vaqueiro assim. Primeiro o período. Há um período?
R – A primeira coisa. A primeira missa do vaqueiro faz-se uma cavalgada. Sai de um canto, sempre é ligada a festa do padroeiro da igreja, que eu não faço sem ser ligação com o padre lá. Vem a cavalgada e eles chegam no local onde vai ser a missa. E lá quando eles chegam tem a acolhida, a gente canta uma música, musicasinha de vaqueiro, aí dá o toque do berrante. Aquele toque, aquele sinal que vai começar a celebração. Então vem um vaqueiro, ele sobre no palanque, aí ele toca o berrante mais ou menos assim, uns dois minutos pra criar aquele clima de pacto, de silêncio e de espiritualidade. Que também é espiritualidade, espiritualidade cultural, na terra, dos problemas deles, a dificuldade do couro, do chocalho e tudo. Aí quando vai aquilo, aí começa a sanfona tocando, zabumba, triângulo, aí a gente começa a cantar o canto da entrada.
P/1 – E qual é o canto da entrada? Você pode cantar pra gente?
R – Me lembrar...
P/1 – Você lembra?
R – “O bom vaqueiro canta aboio e canção, vai pela estrada carregando o seu sofrer, trabalha firme na missão lhe confiada, fazendo sempre o patrão enriquecer”. O resto agora esqueci. Para aí. Para aí.
P/1 – Não tem problema.
R – “O bom vaqueiro tem cultura e tradição, aboia o gado e não larga o seu gibão. O bom vaqueiro tem cultura e tradição, aboia o gado e não larga o seu gibão”. E vai.
P/1 – Legal. Vocês que compuseram?
R – Nós. Letra e música.
P/1 – Aí depois dessa música, dessa cantoria?
R – Aí eu faço, dependendo do tema da festa e também da situação, eu faço uma acolhida de repente. Eu crio na hora, entendeu? Aí faço os versos, dependendo da situação.
P/1 – Com o violão também?
R – Não. Eu não pego porque eu to celebrando e o sanfoneiro está ali, a viola, o zabumba, tudo, ali é todo um conjunto, é uma banda completa. Aí eu faço aquele repente, aí convido o povo para o perdão. Vem um vaqueiro que vai pedir o perdão das coisas que ele fez de errado, não cuidou do gado, que maltratou o gado, que deixou o gado correr pra outras mangas. Ele diz em aboio. No fim, que três vaqueiros fazem isso, eu canto o canto penitencial: “Senhor, tende piedade do vaqueiro do sertão. Não cuidando do seu gado, matando a plantação”. Por aí se vai. A gente canta e o povo canta também. Depois eu convido o povo para o glória, o glória do vaqueiro que expressa a natureza, o gado, expressa a vida dele, a família, a sua espiritualidade, religiosidade. Depois tem a entrada da palavra. A Bíblia vem nas mãos de um vaqueiro montado num cavalo. Vem de longe com ela e a gente vem cantando, ele vai entrando no meio dos vaqueiros, aí ele passa a bíblia para os vaqueiros, vai passando de mão em mão, até chegar ao altar a gente vai cantando. A gente vai cantando assim: “Lá vem, lá vem, lá vem a palavra de Deus. Lá vem, lá vem carregada pelos filhos seus”. Aí vai. Depois o padre recebe a palavra, lê a palavra, aclama a palavra de Deus, tem um cantozinho também que eu não lembro agora. Aí o momento importante é na hora da homilia. A homilia é baseada geralmente no evangelho do bom pastor, de João. E Jesus disse: “Eu sou bom pastor e tal...”. Então eu pego o evangelho, eu transformo o evangelho na linguagem do nordeste. O Jesus diz eu sou bom pastor, eu digo: “Eu sou o bom vaqueiro, o bom vaqueiro dá a vida pela sua vaca, pelo seu boi...” Ainda vem pelas ovelhas. Lá no Jesus era ovelha, mas aqui é vaca, é boi, é garrote. Aí vou transformando. Aí o mercenário a gente usa outra expressão, aquele que é derrubador de boi, que não cuida do gado e tal. No fim a gente faz uma pregação colocando a importância do vaqueiro na cultura, da sua espiritualidade, sobretudo da sua fé. Ele que atravessa essa caatinga do sertão com muita dificuldade pra ganhar o pão de cada dia. Muitos morrem por causa disso. E aí continua a missa com ofertório. Um ofertório interessante porque eu vou cantar na música, eu não sei decorada aqui agora, eu tenho depois a letra, eles vão trazendo cada coisa eu vou cantando. Traz as esporas, traz a cela, traz o cavalo, traz as esporas, traz o chapéu, traz o chocalho, traz o berrante. Todos os utensílios do vaqueiro eles colocam no altar, lá do altar, aí um vaqueiro canta em versos as coisas que vão entrando. Cada um. Chinelo, as esporas, as perneiras, o gibão. Tudo. Aí quando eles terminam de cantar ele me entrega o gibão, eu estou vestido de roupa de padre, ele me coloca o gibão, vamos continuar a celebração. O peitoril e me vestem. Aí eu continuo a missa também, a oração toda em aboio eu cantando, quando chega no momento dos mortos, que a gente reza pelos mortos a missa, a gente faz homenagem do vaqueiro morto. A gente canta aquela música do Luiz Gonzaga “A morte do vaqueiro”. Não sei se vocês conhecem.
P/1 – Não. Canta pra gente.
R – “Lengo, lengo, tengo, lengo, tengo. Eh gado, eeeeeeeeee… Bom vaqueiro nordestino, morre sem deixar tostão...”. Aí vai. Vai cantando, isso causa um clima muito de espiritualidade e os vaqueiros sentem muito, muitos deles choram nessa hora. É uma emoção muito grande. Aí vem o Pai Nosso e no final tem as homenagens que a gente faz, canta algumas toadas novas que a gente procurou criar pra ele, dependendo do tema. Termina com uma canção, a dispersão dos vaqueiros, aí tem uma grande festa pra eles, a gente continua cantando música do Luiz Gonzaga pra eles, forró. Eu continuo cantando, outro cantou também. A gente faz lá uma hora de forró com eles, eles comendo e a gente cantando forró. Essa é a festa do sertão. Muita gente, muitos padres acham que isso não é... É fé e cultura. Fé e cultura, dois juntos.
P/1 – Padre Tula, vocês que criaram então a missa do vaqueiro.
R – Fomos. Criamos. Foi.
P/1 – Quando que vocês criaram isso? O senhor lembra?
R – Olha, havia uma missa em Serrita daquele vaqueiro Jacó, o Jacó que morreu. Logo depois eu fui lá ver a experiência, aí aqui no Ceará eu lancei. Fomos nós.
P/1 – E quando o senhor fez a primeira vez como que foi assim?
R – A primeira vez, eu posso dizer a você, foi em Canindé. Foi assim muito... Como é que eu diria a palavra, meu Deus? Assim muito retraído.
P/1 – Foi tímida?
R – Tímida. Pronto. A palavra é essa. Por quê? Com medo de haver quebra das estruturas eclesiásticas. Quer dizer, como encarar a cultura, toda a história minha, que eu já lhe contei, do meu pai, da minha mãe, de música, de festa, de clube, de dança, de comunicação, está impregnada em mim. Então eu via a igreja sob esse aspecto. Colocar a enculturação do evangelho. Acho que a palavra forte é essa, enculturar o evangelho. Inclusive o documento de Aparecida os bispos falaram disso, mas talvez não levaram muito em conta isso. Eles não sabem o que é enculturação do evangelho ainda, não. Muita gente não sabe o que é isso. Enculturação do evangelho é não sair da linha da igreja, mas também não perder de vista a cultura do povo. Existe isso aqui. Então evangelizar dentro da estrutura do povo, dentro do seu método de vida. Por exemplo, tem a missa sertaneja que eu também celebro, é só com música do Luiz Gonzaga, com fogueira, é ao redor de uma fogueira, a gente faz o compadre, comadre. Na hora do abraço da paz, vamos passar a fogueira. A missa é passando a fogueira. Todo mundo é compadre, comadre, padrinho, madrinha: “Santo Antônio me disse, São Pedro mandou, mandou você meu compadre, o que você mandou?”. É assim por diante. Então a gente sofre muito isso com esse tipo de evangelização, acham que eu estou acabando com as coisas. Ainda mais o povo gosta. Por quê? Porque fala da sua cultura. A igreja vai lá onde ele está. A igreja não vai trazer uma coisa romana, latina. Traz a língua deles, a linguagem deles, é a fogueira, o fogueiro, é adivinhação, é a bacia d’água para passar, aquelas tradições que unia as famílias. Nós perdemos muito isso, como eu dizia há pouco, quando um povo perde a sua memória tá fadado ao fracasso. Se a gente vai buscar as origens lá, como é que eu vou querer unidade, pessoas que respeitam uma a outra, esse clima de violência, esse individualismo da internet, todo mundo quer ficar no seu sozinho, ninguém se comunica mais. Então essas coisas juntam as pessoas. Eu fazia muito isso e o povo gostava muito. Inclusive numa comunidade aqui, que eu não digo o nome, o povo era muito brigão, morria muita gente. Todo mundo ia pra missa a faca, de faca no cós. Aí eu comecei, falei: “Gente, coloca a sua faca no telhado. Faça isso não”. Aí um já tirava. Eu comecei a inventar a fogueira, missa de vaqueiro, missa de sertanejo com fogueira. Hoje não morre mais ninguém lá. Todo mundo se entende. Então o nó da questão está aí, muita coisa que a gente pode refletir em cima dessa proposta. Eu não desanimo, não.
P/1 – Padre Tula, quando a gente fala de saber tradicional, assim daqui da região, o que o senhor pode me dizer além dessa cultura do vaqueiro, do sertão, o que o senhor pode aí elencar como característica?
R – Tem contadores de histórias, muitas pessoas. Rezadeiras que tem que rezam. Pessoas, por exemplo, que eu não diria assim, por exemplo, são capazes de quando as pessoas morrem vão lá, ficam de sentinela rezando. Aquele espírito de solidariedade na dor, no sofrimento. Por exemplo, o simples fazer um chá, como uma vez eu vi, tinha uma casa lá do assentamento, tinha uma senhora doente, a mulher saiu de casa, do serviço dela, e foi fazer o chá pra dar a sua vizinha. Onde é que se vê isso na cidade? Onde é que se vê isso no mundo de hoje? Às vezes, a pessoa está gritando, chorando de uma dor, a pessoa coloca algodão nos ouvidos pra não ouvir a dor do seu irmão. Então essas coisas nós devemos descobrir como elemento, é simples, mas elemento dinamizador de uma história que a gente tem que resgatar pro povo ter mais credibilidade um no outro, acabar com essa rincha, esse revanchismo. Por quê? Porque falta unidade entre nós, um espírito mais de comunhão, de participação, de levar a vida nas suas tradições, nas suas origens, descobrir o espírito familiar. Como eu falava esse programa de fogueira, rodear, é fundamental.
P/1 – Que hoje não existe mais?
R – Não existe. Às vezes quando eu… “bora, passar na fogueira”. De propósito. Aí o povo: “É mesmo, padre. É bom. É bom passar”. Pode criar isso. Tem padre que não quer nem saber de misturar. Não mistura uma coisa com a outra. Não. A gente tem que enculturar, tem que celebrar na cultura do povo.
P/1 – Padre Tula, e como o senhor vê essas transformações que surgiram com as obras do Pecém?
R – Bom, é um assunto assim muito sério. Primeiro lugar, o Pecém, eu dizia a pouco, ele trouxe muito avanço. Muito avanço. Mas como eu disse, a gente sabe que todo desenvolvimento, todo avanço que existe, existe uma dívida social. Por quê? Porque mexe com pessoas, mexe com estruturas, mexe com comportamento, mexe com o habitat. Pessoas que, por exemplo, viveram a vida toda, seus ancestrais, avós, bisavós, pais, mães, naquela terra, naquele quadrado, naquela casa antiga e se vê na situação de sair pra morar noutro canto. Quer dizer, há uma quebra de estrutura muito forte na sensibilidade das pessoas. Eu acredito. Mas eu acredito... “Não, mas é para o progresso”. É para o progresso, mas como equacionar o progresso com essas dívidas, com esses problemas? Como preparar o povo? Acredito, eu não sei, não foi muito bem preparado. Talvez tenha havido reuniões na época, tudinho, mas devia ter sido preparada uma longa caminhada, mostrar o alcance, o tamanho desta obra. Porque a tendência é aumentar, a gente sabe disso muito bem. Eu acho que daqui a dez, 20 anos, presume-se, não sei, são histórias que se contam, outro Pecém vai ser maior que o porto de Suape e quiçá do porto de Santos. Estão falando. Não sei se isso chega a… Por quê? Por causa de todos os empreendimentos que foram alocados nessa região. Então é isso aí. A vida do povo culturalmente vai mudar. O impacto vai ser grande. Por quê? Porque pessoas com outra índole, pessoas com outra conversa, pessoas com outra língua, com outros costumes vem...
P/1 – O senhor pode continuar então.
R – Pois bem, esse impacto muito grande do Pecém quer mexer com a vida de muitas pessoas que tinham uma tradição de vida, tinham um padrão cultural e depois vai atrair pessoa de outros lugares, do sul do país, de todos lugares. Com outros costumes, com outra língua, com outras tradições, com comportamentos diferentes, que talvez não tenha aquela familiaridade de lutar com as pessoas da mesma região. O Brasil é um país continente. A gente pode ver vocês que são de outra região, quer dizer, a cultura do nordeste, embora nós estejamos num país globalizado, a cultura do nordeste tem a sua característica. A do sul tem outra. O comportamento, a maneira de falar, de agir, eu que já viajei por aí sei perfeitamente. Então isso vai causar certo impacto. A gente tem que preparar essas pessoas também que vêm como assimilar a cultura dessa gente, da nossa cultura, entendeu? Quer dizer, estrangeiros, nós estamos agora com uma boa quantidade de coreanos que vieram pra trabalhar na siderúrgica. Então eles estão formando uma verdadeira cidade, estão colocando placas com a língua deles. Então isso vai criar uma confusão mental. Quer dizer, eles que têm que se adaptar ao habitat aqui nosso. Claro trabalhando aqui. Não somos nós que temos que nos adaptar a eles que vêm. Então nós estamos no nordeste, aqui então os nomes dos bares, das pousadas tem que ser o nome daqui. Agora, se eles vêm trabalhar aqui, no mercado de trabalho está oferecendo mercado de trabalho pra eles, então eles tinham que se adaptar um pouco a nossa cultura. Onde eu vejo grande perigo de se formar outro país aqui de estrangeiros.
P/1 – Então o senhor vê que o impacto das obras do Pecém assim, as dívidas sociais que o senhor comentou aí, estão relacionadas a esse contato com uma cultura estrangeira?
R – Também, mas também pelo deslocamento do habitat. Por exemplo, de uma área onde morava zona rural, hoje vai ter o que? Dez mil casas pra trabalhadores da siderúrgica. Esse pessoal vai para o canto onde eles não moravam. Como se adaptar a isso? Não é uma dívida social muito grande? Será que tem os mesmos, aquelas coisas que tem água, luz, comunicação, estrada pra eles viverem como viviam lá? Tinha a mesma familiaridade, aquele espírito de união, de coleguismo? Porque quando muda de lugar, você pode perguntar, quando você muda de lugar, até mesmo quando você vai dormir num canto numa outra rede, você precisa de muito tempo pra se ajeitar aqui minhas costas nessa rede, nessa cama pra eu dormir. Então o cara que sai do seu habitat, quantos vão morar em outro canto, leva muito tempo pra poder se aclimatar com a nova situação. Então não estou dizendo que o Pecém é um mal. É um bem, abriu-se pra Caucaia, houve o desenvolvimento de Caucaia, Caucaia cresceu graças ao advento do Pecém. Agora, a gente tem que trabalhar mais essas questões que são prioritárias, são urgentes, culturais, as raízes culturais do povo, quer dizer, o comportamento social, a socialização. Como trabalhar em cima dos meios de comunicação social, que é uma velocidade muito grande, essas pessoas para o advento do progresso maior. Você entendeu? É a grande preocupação que eu reflito sobre isso.
P/1 – Agora fazendo aí um exercício de imaginação, como o senhor pensa o futuro de Caucaia agora com essa obra, essa grande obra?
R – Eu penso é um pé aqui, outro acolá.
P/1 – Mas como o senhor imagina o futuro daqui de Caucaia?
R – Eu imagino Caucaia daqui há mais tardar dez, 15 anos, uma grande cidade do Brasil. Nós vamos extrapolar muito com esse advento do Pecém. Nós estamos com o que? Com dez anos praticamente, vamos dizer mais, dez anos, e nós já tivemos um crescimento assustador, não é? Quer dizer, a tendência nos dez, 20 anos, a população deve triplicar. Pra você ter uma ideia, há sete anos, eu que tenho os dados todinhos, a população de Caucaia era o que? Era 190 mil habitantes. Hoje já temos 350 mil habitantes. Coloca isso aí dez anos, quanto é que nós vamos ter? Vamos ter acima absurdo. Três vezes mais, 900 lá se vai. Então o crescimento é bom, mas repito, como será Caucaia? Eu vou ver velho, se Deus quiser. Eu quero ver uma Caucaia progredindo, mas que se respeite a identidade do cidadão, a sua história, sua estrutura. Que haja mecanismos fortes para trabalhar essas diferenças que vai haver, essa pluralidade de ideias. Por exemplo, vai ser uma nova cidade, um novo campo, quer dizer, quem parou no tempo e no espaço, as famílias que moram na serra de Caucaia, se não entrar como eu estou entrando conhecendo, ele não vai acompanhar esse progresso. Nós temos que acompanhar como? Nos interessando e tal. Por que está acontecendo isso? Por que está mudando? O perfil econômico de Caucaia mudou, por que mudou? Será que está mudando o perfil social, político? As novas ideias de política estão vendo Caucaia numa visão assim diferente, mais humana, com uma vida mais digna? Que haja assim um espírito de solidariedade.
P/1 – Padre Tula, e assim, como eu perguntei pro senhor sobre esse futuro. E como o senhor vê esse presente com relação ao passado, relacionado ao impacto da obra do Pecém? Como mudou a rotina, por exemplo, de Caucaia?
R – Pronto. Muito bem. A pergunta foi muito boa. É o seguinte, olha, Caucaia em si vivia só de aposentadoria e de emprego de prefeitura. Nos últimos anos, com o advento do Pecém, hoje praticamente nós estamos o desemprego zero. Só não trabalha quem não busca e se... Como é que chama? E se prepara. Por exemplo, eu quando trabalhei no sertão, tinha umas comunidades como hoje são atingidas pelo porto Pecém, Primavera, Cauípe, eu sempre dizia pros jovens: “Jovens, estudem, pelo amor de Deus, que daqui a dez anos tem mercado de trabalho, vocês não sabem nada, não estão preparados”. E eu dizia. Toda missa eu dizia, toda missa eu dizia: “Aí vem emprego”. Aí quando eu saí da paróquia, ontem mesmo eu conversei com uma criatura colocando gasolina, trabalhando num posto de gasolina, uma bombeira, uma moça nova, bonita. Aí ela chegou pra mim: “Padre, bem que o senhor dizia, padre. A gente não estudou...”. Nós estávamos falando do?
P/2 – Você estava falando da mulher que trabalhava no posto.
R – Pronto. Sim. Então é no posto. Então ela me disse: “Padre, bem que o senhor dizia há uns anos se a gente não estudasse, não se preparasse, a gente ia ficar com esse empregozinho fraco.”. Eu disse: “Pois é, minha filha.” “É, padre, agora eu estou estudando. Agora que eu estou estudando porque eu quero encontrar mercado de trabalho”. Ela já falou essa linguagem, uma mulher do campo. Quer dizer que houve uma assimilação pela própria linguagem que estão usando, ela não falou emprego, antigamente falava emprego, trabalho. Não. Mercado de trabalho. Achei até interessante, o mercado de trabalho. “E nós temos que competir com muita gente, eu estou estudando pra ver se chego a melhorar a minha vida só agora. Se eu tivesse ouvido o que o senhor disse...”. Quer dizer, eu sempre preparei o povo nesse sentido. Então tem que trabalhar o povo, pegar oportunidade e trabalhar o povo para o futuro. Nós somos, como se diz assim, criadores de opiniões. Se nós temos uma visão a gente tem que criar uma opinião, tem que orientar o povo nesse sentido.
P/1 – Padre Tula, o senhor como um representante religioso aqui da comunidade e também como um historiador, como uma pessoa sensível a essas transformações sociais, o senhor observa também medos relacionados ao progresso e a própria obra do Pecém? Medo da população.
R – Não. Olha, eu já ouvi algumas pessoas mais antigas que ficam assim lá e cá. Mas hoje a mentalidade de cinco anos pra cá já mudou um pouco. Pelo contrário, as pessoas já veem isso com bons olhos, principalmente os jovens que veem espaço de mercado de trabalho, opção de vida, de crescer. Então são aquelas pessoas também mais céticas, que também têm uma visão muito radical e não admitem. Apesar de eu ter bastante idade já e ter uma visão, eu admito como uma oportunidade que todos nós temos que manter acesa essa chama da habilidade humana do trabalho. Nós fomos feitos pra trabalhar, fomos feitas para comer o pão com o suor do rosto e não o pão que o diabo amassou.
P/1 – Padre Tula, e o senhor acompanhou alguma comunidade que teve que sair porque a região onde elas estavam situadas foi impactada diretamente pela obra?
R – Acompanhei sim. Sim. Era um grupo de 15 famílias.
P/1 – Qual o nome da localidade?
R – Era Fazenda Axixá, que justamente vai passar a ferrovia transnordestina, que pega justamente no eixo que vai para o Pecém. Ela vem do sul do Ceará e vai cortando o Ceará por dentro e sai no município de Caucaia lá na estrada que sai pro Cauipe, o trilho. Então eram 15 famílias. Eles saíram desse lugar e foram morar num assentamento.
P/1 – Qual o nome do assentamento?
R – Capim Grosso.
P/1 – Capim Grosso.
R – É. Foram morar numa parte do Capim Grosso. Então muitos deles ficaram, mas outros deles vieram-se embora, foram morar aqui na cidade, foram morar em Fortaleza porque perderam a identidade com o lugar, com a terra, sofreram muito. Umas senhoras ficaram doentes, uma senhora ficou um pouco perturbada com isso, com essa mudança da casinha dela e tal. E ainda nem fizeram nada, está tudo lá e nem fizeram nada da ferrovia ainda. Está o terreno lá.
P/1 – As casas ainda estão lá ou não?
R – Algumas estão, outras não estão mais, derrubaram.
P/1 – O senhor tinha comentado antes também de uns assentamentos que o senhor ajudou, acompanhou. Esses assentamentos estavam relacionados aí a uma espécie, vamos dizer, de reforma agrária?
R – Reforma agrária, sim. Como Incra.
P/1 – Foi o Incra. Em que época que foi isso?
R – Quando eu assumi a região já havia dois assentamentos fundados pelo Incra, eram fazendas devolutas, aí esses assentamentos floresceram na época, deixa eu ver, 93 começou a surgir também com as ideias que a gente ia levando e tal, do Movimento Sem Terra, que a gente era envolvido com isso também. Aí começaram a surgir os assentamentos e tem 11 atualmente na zona rural, os assentamentos. Mas...
P/1 – Como estão esses assentamentos hoje?
R – Nós temos 11 assentamentos na zona rural e a maioria deles fui eu que acompanhei e atualmente eu não sei como estão, porque é muito difícil também essa história de assentamento.
P/1 – Por que é difícil?
R – Seguinte, geralmente são pessoas que saem de outros lugares para morar, com costume diferente, uns querem trabalhar, uns querem viver em comunidade, outros não querem, querem vida só. No assentamento tem o trabalho coletivo e tem o trabalho individual. Uns não querem ir pro coletivo, só querem ir pro individual, não partilham muitas vezes as coisas. Eu sofri muito evangelizando porque eu falava muito da partilha, a vida em comum, vocês estão na mesma terra, a terra é de vocês, então vocês têm que aprender a viver em comunidade, embora tenha diferença, tem o jeito de ser. Mas é muito difícil, porque às vezes eles vão fazer... Estão no assentamento, mas vão fazer trabalho noutra terra, que não é o assentamento, trabalho de terceiros. Vão ser posseiros de novo. Eu mostrava, se vocês quiserem liberdade na terra, com açude, com tudo e agora não querem tomar conta da terra, não querem produzir? Querem ser posseiros. Então era muito difícil nesse sentido, mas que eles tinham terra pra viver... Os que querem produzir vivem muito bem.
P/1 – E o que eles produzem?
R – Agricultura familiar. Piscicultura, quando tem um açude bota a criação de peixe em cativeiro. São os dois principais. Broca de terra.
P/1 – Assim, quando a gente pensa...
R – Verdura, hortifrutigranjeiro.
P/1 – Ah, hortifrutigranjeiro.
R – Também.
P/1 – Mandioca é plantada também?
R – Mandioca. Alguns plantam, outros não. Fazem farinhada. Lembrei eu estive agora num assentamento que é lá em Caucaia, é lá em Itarema, eu dou assistência de três em três meses, eu celebro lá, eu acompanho. E lá, a farinha de lá produzida vem toda para o Pão de Açúcar. Vai buscar lá. É produzida pelos trabalhadores. Tem farinhada de janeiro a dezembro.
P/1 – Então já existe aí uma comercialização dessa produção?
R – Existe. Eles são bem organizados. Claro que existem as falhas, a droga tá em todo canto, existe lá também, mas existe muito crescimento.
P/3 – Padre Tula, o senhor estava falando também da questão das drogas.
R – Sim.
P/3 – Existe esse problema aqui no município?
R – Demais.
P/3 – Ah é?
R – Demais. Demais. É um problema seriíssimo, como é em todo canto. Então como trabalhar essa situação é uma faca de dois gumes. A gente tem que ouvir, acolher essas pessoas e também eu acho que o poder público também, examinar onde são as causas, não as consequências. Que hoje se multiplica muito as casas de reabilitação. Reabilitar, reabilitar. Enquanto você reabilita aqui 40, surgem mais cem. Por quê? Porque se não atacar o chefe do narcotráfico, então você não consegue. Você tem que combater o mal na raiz, arrancar a raiz, senão continua ramificando. E isso tem gente envolvida, gente grande, com poder político, poder econômico, e isso envolve uma gama de fatores que dá dinheiro a muita gente, dá emprego a muita gente. E quem perde com isso são os adolescentes. Morrem. Hoje nós estamos com a criminalidade no Ceará, a segunda cidade o Brasil. Então por quê? A polícia vai resolver? Mas o que fazer? Tem que pensar numa política social que venha atacar diretamente essa questão.
P/1 – Mas a Caucaia que seria a segunda cidade mais violenta, ou seria o estado?
R – Não. Não. Não. Fortaleza, Ceará.
P/1 – Ah, Fortaleza.
R – O Ceará. O Ceará. Violento. Caucaia tem muita. Nós temos muitas casas de recuperação. Mas eu me questiono muito, recuperar, enquanto se recupera, você tá recuperando um aqui, mas aquele que perdeu o freguês, quando ele voltar, sair da recuperação ele... Porque perdeu o freguês. É um mecanismo muito difícil e precisa tratar com muito cuidado, criar políticas sociais, lazer, quadra de esporte. Investir mais nisso. Investir numa educação profissionalizante, de dois tempos, de três tempos. Investir também na família. A igreja também tem que trabalhar a família. Porque hoje em dia a gente vê igreja muito nesse negócio de oba oba, multidão. É show, é louvor, passou... Tem que atacar as comunidades, pequenos grupos, conversar, juntar dez pessoas, 20 pessoas, vamos estudar esse problema. Jovem, vamos questionar isso aqui, por que acontece isso? Conscientizar os jovens e eles se descobrirem. É uma política social. O Governo ajudando nesse sentido e fomentar, e a igreja também entrar nessa jogada, não ficar alheia e não ficar acomodada diante do clamor que está aí. Não ficar só no louvor, tem que partir para uma ação mais concreta de ir lá às periferias, de assistir essas famílias, de conversar, dialogar, dar uma palavra, acompanhar e aí por diante. É muito complicado. Muito complicado. Todo o Brasil tá assim. Mas tem saída. Tem saída.
P/1 – Agora, padre Tula, assim, o senhor vê uma diferença, dado esse contexto aí de crescimento das classes C e D no Brasil, de acesso também a outros equipamentos sociais também aqui em Caucaia, aqui no município? Assim, antes quando o senhor tava ali no início, com a Teologia da Libertação, trabalhando com os grupos, onde o senhor colocou o contexto difícil aqui, de certo atraso social, econômico. Há uma diferença hoje em Caucaia nesse sentido, nesse aspecto, de certo aumento de poder aquisitivo da população? Ou não?
R – Não, a gente vê que mudou um pouco o poder aquisitivo, eu posso dizer. Existe pobreza, eu não posso negar. A gente sabe que com os últimos empreendimentos do Governo Federal, Bolsa Família, muita gente se arranjou um pouco mais. Também criou o mercado de trabalho. Mas hoje a realidade é muito conflitiva. Hoje já não é mais tanto a questão do passado, do poder. Hoje é outro poder que está por aí. É outra esfera do poder, é uma dominação, o aspecto da própria droga, que vai acima do poder estabelecido. Talvez os poderes públicos estejam olhando muito de longe, não estão olhando mais de perto. Olha a coisa como tal. Se bem que hoje o governo tá mais aberto, nesses últimos anos nós tivemos uma quebra aqui no sistema do governo de Caucaia, de ditadura, hoje tá mais aberto. E essa abertura eu pensei, a gente pensa que a juventude ia se abrir mais pra ver um horizonte mais aberto, menos sombrio. Pelo contrário, tá levando a juventude muito pra droga. Quando não é a droga, é se isolar num movimento pentecostal de louvor, de fuga da realidade. O grande problema é esse, aqui está. Quer dizer, é fugir da realidade. Por isso que eu digo que em voga a Teologia da Libertação hoje, levada em… ela iria ajudar muito ao jovem ter uma reflexão em cima da realidade deles. Por quê? Porque eu não sou contra a renovação carismática, eu respeito, mas a renovação carismática tira muito a pessoa da sua realidade, começa a pensar num Deus, no Jesus bonzinho, misericordioso. Mas aquele discurso de Jesus que contestava o poder estabelecido da época, que contestava os fariseus, chamava de víbora, raça de víbora, mentirosa, então aquilo não entra mais, porque eles acham, pensam que é um Jesus bonzinho. Jesus chá de laranja, nem faz mal, nem faz bem. Então tem que ter um Jesus contestador, Jesus libertador. Aquele Jesus que encarnou o novo Moisés. Então acredito que hoje se reconsiderar essa reflexão nova, retomando a Teologia da Libertação, nova na igreja hoje, nós teríamos a libertação de muitas amarras que estão por aí. Ninguém vai libertar só com oração, não. Tem que libertar com ação transformadora.
P/1 – Mas, padre Tula, assim, vendo outro contexto também do crescimento das igrejas evangélicas, eu não sei se houve esse crescimento, se repercutiu aqui também em Caucaia.
R – Eu não tenho dúvida.
P/1 – De que forma repercutiu? Se a gente tem um contexto de uma Teologia da Libertação que foi muito forte nos anos 80, nos anos 90, e que hoje já não tem aquela presença como tinha.
R – Não.
P/1 – E aquela organização também nas comunidades eclesiásticas de base.
R – Sim.
P/1 – Como o senhor vê também esse crescimento das igrejas evangélicas?
R – Eu tenho acompanhado. Inclusive eu faço um diálogo muito bom com as igrejas, principalmente aquelas que têm um pensamento mais aberto, colocando mais a realidade. Mas houve um crescimento, sem dúvida. E também houve um crescimento desses movimentos da igreja católica de caráter pentecostal. É nessa história que eu to dizendo. A igreja católica e as igrejas evangélicas, elas enveredaram por um caminho pentecostal, que é justamente a fuga da realidade, é remediar pela oração, é remediar pelo louvor. Quer dizer, não penetra na coisa e vai libertar a pessoa daquela realidade. Quer dizer, iluminar a palavra de Deus à realidade. Por que isso? O que Jesus fez? Vamos tomar, por exemplo, quando estavam os vendedores do tempo, o que foi que Jesus fez? Meteu o chicote, teve coragem, foi lá com energia. Quem imagina o Jesus forte? Não, imagina lá o Jesus no sacrário, que perdoa. Mas também ele deu chicotada, ele falou forte, ele chamou e disse. Então nós precisamos ter uma posição mais enérgica. Não é fugir pra ficar numa boa: “Não, eu to louvando ao senhor, eu to numa boa, pronto”. E a realidade fica passando. E aí os poderes econômicos, os magnatas do mundo moderno acham bom esse tipo de fé, por quê? Porque não questiona, porque não contesta as ações que levam essas dívidas sociais que o Pecém traz. Não que a gente: “Não, não.” “Não, eu fui falar isso” “Não, padre, não tem nada a ver com a nossa pregação aqui, não” “Não tem? Pecém, você tá aqui você tá aqui, meu filho. Eu fui celebrar uma vez lá. Tem. Está mudando a fisionomia, o panorama da identidade de vocês moradores daqui. Você não assimila isso, não?”. Então a igreja tem essa obrigação, pelo mistério da sua missão, de fazer com que seja esclarecida à luz do evangelho essa realidade conflitante. É um grande problema isso aí, a dicotomia entre as coisas.
P/1 – Agora, padre Tula, quando a gente vai fazer algumas entrevistas em comunidades indígenas, e fizemos hoje de manhã em uma comunidade quilombola. Essas organizações em torno de identidades étnicas é um movimento recente aqui na região?
R – Sem dúvida. Dos quilombolas é um movimento recente, mas já existiam alguns ensaios, não institucionalizados.
P/1 – Eu perguntei para o senhor como o senhor observava essa emergência de comunidades em torno de identidades étnicas.
R – Foi. Isso mesmo.
P/1 – O senhor pode continuar?
R – Bom, o movimento quilombola, institucionalmente, em Caucaia começou de uns tempos para cá. Através da própria secretaria aqui de política de Caucaia, eles começaram a refletir um sociólogo com algumas comunidades que tinham uma fisionomia, um jeito de viver a sua vida diferente. Muito aproximado. Seriam esses negros que vieram pra Caucaia em 1825, eles fugidos da Fortaleza, do Posto da Draga, eles subiram a Serra da Rajada e se alojaram lá e ficaram nas senzalas. Eles vieram pra fugir da escravidão e acabaram sendo escravizados na senzala pela família dos Pereira, do João Pereira. E eles fundaram Tucunduba, a cidade, e desceram, foram à Serra do Juá, que também tem outra comunidade quilombola lá, e outros quilombolas que vieram de Uruburetama, de Cemoaba, que os que moram no Capuã. Então tem uma identificação realmente com o quilombola, dos negros, os primeiros negros que vieram pra Caucaia, em 1825. Então eles estão se organizando, estão resgatando a sua cultura, os costumes, as comidas, as tradições, pra se fortalecerem e mostrarem a sua autonomia também. Eles viviam muito de espécie, então descobriram a sua autonomia e talvez esses farão um processo de socialização maior pra ele também e para aqueles que estão ao seu redor. Então é muito importante esse movimento. Eles estão surgindo no Cercadão também. São movimentos que surgiram a partir dessa vinda dos negros para o Ceará, em 1825.
P/1 – E das comunidades indígenas? Tem os tapebas aqui e os anacés.
R – Bom, eu tenho que dizer que os índios que deram origem a Caucaia foram os anacés, os cariris e os potiguaras. E os... Tem mais outro. E os tremembés. Agora, a comunidade de tapeba é resquícios de mistura já de etnias, que na época da dispersão dos índios do Ceará, na perseguição, eles se alojaram em determinados cantos, houve certa mistura com outras etnias, aí estabeleceram essa etnia tapeba. Mas quem deu origem a Caucaia, basicamente, potiguara, tremembés, anacés e cariris. Tapeba é resultado de processo de miscigenação, de muitos séculos na frente. Aí surgiu isso aí.
P/1 – Padre Tula, agora a gente já tá encaminhando para o encerramento da nossa entrevista, mas antes eu gostaria de saber como o senhor foi fazer a trajetória acadêmica do senhor. Assim, o senhor cursou o ensino superior, o senhor falou que foi...
R – Filosofia. Fiz História, Geografia e Teologia.
P/1 – Onde o senhor estudou? Em Fortaleza?
R – Eu estudei Filosofia na Faculdade do Estado do Ceará, na faculdade estadual. Eu estudei na Faculdade de Filosofia no Estado do Ceará, fiz lá História e Geografia. E Teologia eu fiz no Seminário da Prainha, e Filosofia também.
P/1 – E a escolha pelo curso de História e Geografia?
R – Muito bem. Eu vou dizer o que foi. Eu não gostava de História.
P/1 – Por quê?
R – Eu vou dizer. Não gostava de História. No segundo ano ginasial eu não gostava de História e o professor padre me reprovou. Reprovou-me em História: “Você vai fazer segunda época”. Naquela época tinha história de segunda época. Eu comecei a estudar, naquela época tinha que estudar História da Idade Antiga e Idade Média. Aí o padre: “Você vai estudar pra fazer a prova e você passar”. Aí eu estudei mesmo pra valer, praticamente decorei tudo, sabia de data, sabia de tudo. Daí eu comecei a gostar da História. Comecei a gostar da História. E também, uma coisa que me chamou muita atenção, quando eu tinha 15 anos, eu viajei com meu pai pra Sobral e lá ele me levou a uma reunião e tinha uma pessoa muito antiga, uma senhora, contando histórias. Era é contador de histórias. E na televisão aqui no Ceará, a primeira televisão, tinha um programa O contador de histórias, caiu a sopa no mel. Eu comecei ouvir esse programa e comecei me interessar pela História. Daí fui, fui, aí vou fazer vestibular de História. Como Geografia é uma ciência ligada à História, eu aproveitei e fiz a Geografia também. E no seminário, a Filosofia e a Teologia.
P/1 – E no curso de História e Geografia, você teve que apresentar uma monografia final.
R – Apresentei a monografia.
P/1 – E qual foi o tema?
R – Foi sobre Caucaia. E também em Teologia eu fiz também uma monografia, mas não sobre Caucaia, não, foi sobre... Aí que foi uma grande bomba na minha vida. Eu vou contar a primeira.
P/1 – Conte.
R – Foi sobre Caucaia, alguns aspectos assim, sociais, políticos, econômicos, que inclusive na época não tinha computador, era só a Olivetti. A gente batia aqui, tinha que apagar quando errava. E eu, a gente botava sempre um papel aqui, botava o carbono, não sei se você alcançou isso, o carbono, e outro papel para a segunda via. Como eu não fiz a segunda via, eu entreguei meu trabalho sozinho. Aí tinha todas essas críticas sobre o poder político em Caucaia, eu entreguei ao professor o meu trabalho. Realmente na época eu tirei dez, mas esse trabalho desapareceu, deu fim na faculdade. Bom, a minha monografia na Teologia foi sobre esse tema da Teologia da Libertação, religiosidade popular, que eu gosto muito. Eu explorei, na época, artistas da história como o beato Zé Lourenço, do Caldeirão, o homem lá do Canudos, como é o nome dele?
P/1 – Antônio Conselheiro.
R – Antônio Conselheiro. E explorei o padre Cícero também, a religiosidade como um momento importante para a libertação do povo pobre, que a minha ideia era essa, era a Teologia da Libertação. Quando eu fui apresentar a tese, a banca examinadora disse que eu tava reprovado porque eu defendi o padre Cícero.
P/1 – Por que o padre Cícero é esse...
R – Porque o padre Cícero tinha sido excomungado. Aí a igreja, como eu defendo... “Não, você defendeu o padre Cícero, tá reprovado.” Eu tive que fazer prova de toda Teologia de novo do bispo pra me ordenar. Passei três anos depois. Quando foi com cinco anos depois que eu me ordenei, veio um bispo para o Crato e ele tá reabilitando o padre Cícero.
P/1 – Olha só.
R – Aí eu disse: “To desolado. Aquele que eu defendi agora tá...”. É porque eu sempre gostei dessa história de ver a religiosidade. Inclusive eu tive uma discussão muito séria agora semana passada com um padre, que ele disse que religiosidade popular não tinha espiritualidade. Eu disse: “Olha, tem, por quê? Porque é a espiritualidade que parte das coisas do povo, da sua terra, do seu negócio, da sua vida, do seu sofrimento, da sua dor, da sua luta”. É uma espiritualidade diferente, mais encarnada, mais real, não fantasiosa, que vem do alto. Não, é um Deus presente, aliado do povo.
P/1 – Eu vou fazer uma pergunta para o senhor que não tem a ver com o roteiro, mas é uma curiosidade assim, já que eu to conversando com um teólogo. Qual seria a diferença entre mística, espiritualidade e religiosidade.
R – Muito bem. A religiosidade tem a mística, a mística é a maneira que você expressa a sua fé. E a espiritualidade envolve toda a mística que você faz da sua vida. A espiritualidade é a sua vida interior e também a sua vida exterior. Por exemplo, você pode através de um gesto concreto, de uma ajuda, de uma luta por alguém, ter uma espiritualidade. A espiritualidade é uma fé encarnada, é a maneira como você faz a sua mística. Por exemplo, os homens que vivem nos mosteiros, a mística dele é viver recuado. A mística dele é viver ali recuado, a espiritualidade dele é sozinho, recuado como monge. Já a espiritualidade de alguém pode ser constituída de cultura, de fé, toda uma espiritualidade envolvida com os meios que envolvem o relacionamento da pessoa com Deus e o mundo e a realidade que o rodeia. É o modo como se faz a fé na vida, é a espiritualidade. Como o monge faz a fé na vida dele, na espiritualidade dele? Como um sacerdote envolvido com o povo, religioso inserido como Madre Teresa de Calcutá? Como a lá de Salvador, como é o nome dela? Esqueci o nome dela.
P/1 – É irmã Dulce.
R – A irmã Dulce fazia no meio dos favelados. “Ah, mas ela não tava em espiritualidade, não, que ela não tava na igreja rezando.” Não, a espiritualidade dela é encarnada. A mística dela era ver o Deus, o Cristo no rosto do sofrido, do deprimido, do excluído da sociedade. Aquilo ali, a mística dela sentia realizada, fazendo a mística olhando o rosto de Cristo no servo sofredor que estava ali nos Alagados. Se algum vê o rosto de Cristo só no sacrário, na exposição do santíssimo, querendo botar a mão, ela viu o próprio corpo de Cristo no rosto daquele irmão sofrido. É uma espiritualidade encarnada, é diferente. É uma mística diferente. E a religiosidade é a expressão, que a gente diz, de ver aquilo que não é infantil, que mais simples que um povo que não tem cultura, praticamente não tem cultura, às vezes não tem, expressa a sua fé através de uma caminhada, de uma romaria, de uma religiosidade popular, de tantas ladainhas, dessas crendices que existem no mundo. Rezadeiras que acreditam, vão rezar numa pedra. Então são religiosidades que a gente tem que trabalhar isso aí. Foi o tema do meu estudo, foi esse. A religiosidade sendo fruto... A religiosidade é instrumento para a libertação do povo. A gente sabendo instrumentalizar aquela religiosidade faz o povo descobrir novos horizontes de vida. O tema foi esse. A tese foi essa, defender isso aí. Aí eu coloquei padre Cícero. Padre Cícero quando vinha pra fazer lamparina, que você ganha dinheiro, ele mandava o povo trabalhar, reza, mas trabalha. “Não mate mais nem roube mais.” É assim que ele fazia.
P/1 – O senhor falou o nome de um personagem religioso antes do Antônio Conselheiro, qual o nome dele?
R – Beato Zé Lourenço, no Caldeirão. Era uma comunidade que tem no Crato, organizada e que foi destruída pelo Governo.
P/1 – Isso foi em que período?
R – Os anos? Foi no século XIX.
P/1 – Foi no século XIX?
R – Século XIX. Lá ainda tem Canindé tem um caldeirão, a capela, onde eles formaram uma sociedade igual. Ele mesmo plantava, comia, não existia briga entre eles. Aí o Governo destruiu achando que era o Comunismo. Era bom conhecer um pouco disso aí. Depois você olha pra conhecer mais profundamente isso aí. É o exemplo de comunidade no século XIX, comunidade eclesial de base naquela época.
P/1 – Interessante.
R – Que não era a terminologia de hoje, mas era uma comunidade onde o pessoal... Como o Antônio Conselheiro queria fazer lá no Canudos, uma comunidade onde todos eram comuns, todos juntos. Mas o governo não aceitou porque achava que aquilo ali era ir contra as ordens do governo republicano.
P/1 – Padre Tula, o senhor publicou livros então.
R – É. Eu publiquei vários livros sobre Mariologia, Nossa Senhora. E também publiquei um livro que fala a história do meu irmão, toda a sua trajetória e um livro da fé e devoção do povo de Caucaia.
P/1 – Então o senhor estava falando dos livros do senhor.
R – Ah, do meu livro. Pronto. Então o outro livro foi 250 anos de fé e devoção, porque Caucaia completou 250 anos. E a vida religiosa de Caucaia está ligada a vida de criação do município, 1759. Antes tivemos só missões jesuíticas aqui e deu-se também a construção da igreja em 1741. Aí eu conto toda a história até o ano de 2010, da espiritualidade, como surgiram as capelas, os padres, como é que... A devoção a Nossa Senhora. Tudo isso aí eu escrevi nesse livro.
P/1 – No total são quantos livros que o senhor publicou?
R – Eu tenho oito livros, mas tem pra publicar ainda seis livros. Mas importante que pra publicar um livro hoje ó, é difícil.
P/1 – Sim. Padre Tula, a gente já está encerrando, antes de a gente já ir pro final, o senhor estava comentando que conhece a dona Josefa.
R – Se for essa que vocês estão atrás eu conheço.
P/1 – Que o senhor conheceu, ela cuidava dessa fazenda que vocês visitavam?
R – Da fazenda. A gente ia pra lá eu tinha o que? Eu tinha 13 anos, 12 anos, a gente era menino travesso, eu e minha irmã. A gente queria roubar as rapaduras pra comer, aí a gente abria a porta de um caixão que tinha tudo, aí quando ela via, ela corria, ela não alcançava, a gente se escondia, fechava a tampa do caixão, ficava lá dentro com a rapadura até ela ir embora pra ir embora e levar a rapadura também.
P/1 – Mas como que tinha um caixão lá?
R – Não. Caixão grande, desses grandes de interior. No Ceará eles fazem um caixão um depósito bem grande aí colocam dentro farinha, goma, rapadura, pra poder...
P/1 – Guardar.
R – Guardar e não mofar.
P/1 – Tá certo.
R – Aí a gente entrava, ela também, a gente tirava a rapadura dela, da dona Josefa. Era engraçada ela. Ela fumava um cachimbo, a gente sentia logo o cheiro do cachimbo. Se for essa... Eu acho que é ela. Que é a mãe do Zé de lá de…
P/1 – Pois é, a gente vai descobrir.
R – Pois é. Tomar um suco agora? Ou tem mais alguma coisa?
P/1 – O senhor quer parar? Eu já vou...
R – Não. Eu digo, o que é a última coisa? Vamos lá.
P/1 – Agora, padre Tula, qual o sonho que o senhor tem hoje?
R – Sonho? Bom, a vida da gente só tem graça quando tem utopias e quando a gente alimenta as utopias da gente, a gente tem sentido a vida. Se a gente perde a busca de sentido da nossa existência, então a vida vai perdendo o seu sentido também. Então nós temos que todos os dias alimentar as utopias. Eu penso em ter saúde, penso em escrever muito, eu penso em fazer muito bem ao povo pela minha missão sacerdotal embora reduzido, anunciar com amor, com muita paixão esse Jesus Cristo, que eu acredito. E sonho, sobretudo, um sonho decantado de muitos anos é ver uma sociedade mais igual, mais justa, mais fraterna, onde as pessoas se respeitem mais, onde haja esse espírito de comunhão, de partilha. Onde as pessoas deixem de ser menos gananciosas, onde haja menos distância entre os que têm mais e os que nada tem. São sonhos decantados por mim. Sonho também, por exemplo, um dia a ferrovia voltar a carregar passageiros no Ceará. É meu sonho. Esse trabalho que eu estou fazendo agora das estações é um apelo ao Governo Estadual, Governo Federal pra ver se volta o trem ferroviário porque não está falando tanto em progresso, então o transporte das massas. Por que cortar? Tenho um sonho de ver a minha vida realizada um dia, quando terminar e dizer: “Combati um bom combate, terminei minha carreira, resta agora me encontrar com o Senhor, a felicidade”. Ter saúde para lutar muito pela vida e ter esse espírito sempre jovial, companheiro pra poder acolher as pessoas com carinho.
P/1 – Tá certo. Padre Tula, a gente já está encerrando, antes eu queria perguntar um pouco sobre esse terreno aqui que o senhor mora, onde o senhor praticamente nasceu.
R – Nasci.
P/1 – Hoje aqui mora só o senhor, moram outras pessoas?
R – Não. Aqui é o seguinte: aqui nós ficamos três irmãos, eu solteiro, claro, sou padre, e as minhas duas irmãs, uma casada, mas o marido deixou e ela veio morar na nossa companhia. Então veio morar aqui uma filha dela com o esposo dela e na outra parte, reparti minha casa no meio agora mesmo, está em construção, vai morar outro sobrinho. A gente precisa de mais apoio, a gente vai ficando um pouco mais velho, precisa dos mais novos darem um apoio a gente aqui. Mas é uma casa que a gente vive bem, tranquilo, amizade, respeito um clima, cada um no seu lugar. Quando um tá sofrendo a gente acode, quando está sorrindo a gente sorri também. Eu acho que a gente tem que criar esse espírito. Agora, claro, cada um dentro das suas conveniências e dentro do seu... Cada qual no seu cada qual. Na sua, como é que chama? Conveniência, não. Na sua privacidade. Cada um na sua privacidade, na hora de se encontrar se encontra, conversa e tal.
P/1 – O senhor falou que gosta muito dessa parte aqui.
R – Gosto muito. Gosto porque na minha infância brinquei de bola aqui. Se eu fechar os olhos aqui eu me lembro das bolas que eu corri aqui com os meus irmãos, com os meus amigos. Esse pé de mangueira aqui tem uma história também, aquele cajueiro também ali é muito antigo. Aquele pé de jenipapo ali, quando a mãe chegou aqui em 1940 já existia. Aí mora um sobrinho meu, que era a casa do meu irmão, mora o sobrinho, o filho dele. Então um quadrado aqui a gente é verdadeira família. É um verdadeiro, como é que chama? Condomínio.
P/1 – Padre Tula, a mãe do senhor faleceu há muito tempo?
R – Tá com cinco anos vai completar amanhã. E meu irmão sete anos, o que era padre. E o outro está com um ano e seis meses. Morreram os três assim bem pertinho um do outro. A mãe morreu mais por consequência do falecimento do meu irmão, que foi num acidente, aí ela foi enfraquecendo.
P/1 – Quantos anos que ela tinha?
R – Noventa e oito.
P/1 – Era uma jovem.
R – Era, mas ela era lúcida, era uma pessoa... Eu vou mostrar aqui, só pra você ter uma ideia, no dia das mães. Ela estava no hospital e no dia das mães, dia 10 de maio, ela veio pra casa. Quando foi no dia 27 de maio ela voltou pro hospital e morreu no dia 30. Antes dela morrer, no dia das mães: “Mamãe, como é que tá?”. Ela fez isso aí.
P/1 – Bonita.
R – Aí ela fez ela assim. Ainda fez assim.
P/1 – Bem bonita ela.
R – Aí depois um pouco tempo ela foi e morreu.
P/1 – Agora, padre Tula, o que o senhor sentiu contando essa história?
R – Eu? Eu me senti muito bem porque me fez pensar mais no meu passado, meu passado, na minha vida, na minha infância. Podia ter recordado mais coisa, mas o essencial a gente procurou pra colocar nesse documentário. A gente se sente ao mesmo tempo valorizado e esse testemunho serve para as pessoas que vão ouvir, um testemunho de alguém pode influenciar, quer queira ou não, em alguém ouvindo essas histórias. A maneira que eu falei. A minha fé, sobretudo a minha fé. O acreditar na vida, na existência de uma sociedade diferente. Sei lá, eu acho que isso foi uma oportunidade muito gratificante porque eu fui capaz de externar meus pensamentos, minhas ideias para outras pessoas ouvirem e terem assim como, não diria como manancial de conhecimento, mas como referencial de vida, uma pessoa que tem um referencial de vida. Todos nós devemos ter um referencial de vida e passar esse referencial para alguém. É uma oportunidade que teve porque a gente mergulhou lá no fundo da nossa identidade. Isso é muito bom porque, como eu dizia há pouco a você, a gente tem que ter uma identidade, tem que ter uma cara. Tem que mostrar uma personalidade, o que é, ninguém pode ser duas caras, não. A gente tem que ser muito sincero com a gente, dizer aquilo que pensa, que sente e isso eu acho importante no dia de hoje porque a gente vê que as pessoas estão muito assim, de uma hora pra outra mudam de comportamento, de cara, não é o que é. Eu acho que as raízes da gente nós temos que levar em conta. Uma vez uma pessoa me contou uma história, ele morava aqui no Ceará, aqui em Caucaia, ele foi embora pra São Paulo. Passou uns cinco anos, dez anos aí de repente ele chegou na casa do pai dele no sertão, fazendinha pequena. Eu perguntei: “Mas por que tu veio embora? Tu não tá lá tão bem?” “Não. Vim-me embora. Eu vim buscar um pouco das minhas raízes, da minha cultura que eu estava perdido. Eu estava sem identidade. Tinha identidade no meu bolso, mas eu estava sem identidade. Estava perdido naquela multidão de São Paulo e eu vim beber um pouco da minha fonte onde eu nasci, do leito mugido da vaca que eu tirava, do cheiro de curral que eu sentia, das cabras que eu corria”. Pô, achei interessante isso, aí eu escrevi uma poesia, não lembro como é. Quer dizer, aí o que isso me trouxe? A gente tem que buscar de vez em quando as nossas raízes para recompor a nossa identidade. Porque num mundo muito globalizado, doido, corre-corre, a gente acaba perdendo um pouco da identidade da gente. Então a gente tem que voltar. “O que é que eu era? Vou buscar minha história. Vou buscar minha história pra chegar e me encontrar novamente porque é que eu estou aqui”. Então acho isso aí fundamental. E serve também para quem vai ler ou ouvir esse documentário. Pode enriquecer com outras coisas, podia conversar muito mais, mas o essencial.
P/1 – O senhor gostaria de comentar mais alguma coisa? Falar alguma história, alguma lembrança que o senhor tenha aqui da região?
R – Não. Eu tenho umas histórias que estão no livro que foi da época que mataram um chefe político aqui em Caucaia.
P/1 – Qual era o nome dele?
R – Juaci Sampaio Pontes. É o nome da rua ali. Ele é um líder, foi prefeito duas vezes.
P/1 – Foi quando que ele foi assassinado?
R – Ele foi assassinado em 1981. Ele era muito meu amigo e ele era muito identificado com as minhas ideias. E ele ia ser prefeito novamente, e as forças do atraso de Caucaia tramaram a morte dele. E tramaram não só a morte dele, mas tinha três pessoas pra morrer, era ele, eu e mais outro. Mas como não me encontraram no lugar que eu tava celebrando, aí não perpetraram e mataram-no.
P/1 – Como que foi o assassinato dele?
R – Foi a traição total. Chamaram-no assim pra uma coisa, pra vender um terreno que não era de vender terreno, era pra matar. Aí pronto. São coisas que marcaram muito minha vida. Eu era padre novo, foi o maior enterro que Caucaia teve. Foi uma coisa absurda, o pessoal carregando nos braços, chorando. Uma coisa tremenda mesmo, porque era um homem muito popular. Era prefeito não de gabinete, prefeito do meio do povo, andar na rua, na feira, tomar café, não tinha segurança, não tinha nada. Ele pegava enxada, trabalha, era assim. Eu fui professor dos filhos dele tudinho. Era uma pessoa muito boa, muito humano. São coisas assim que eu me lembro. E também na minha vida pastoral o que me marcou muito até hoje essa história da gente pensar diferente. A estrutura da igreja hoje aí a gente é muito excluído. Mas nem por isso eu tenho medo. Nem por isso eu vou fugir daquilo que eu sou. Eu mantenho a minha marca. Eu faço a diferença. Mesmo que alguém venha dizer contra mim, mas eu tenho que ser eu, tenho que manter a personalidade. Ser eu e acabou. Aguentando as consequências da missão que Deus me chamou. Mas estou feliz. Tranquilo.
P/1 – Tá certo.
R – Deus abençoe a todos.
P/1 – Padre, em nome do Museu da Pessoa nós agradecemos a sua história.
R – Tá bom.
P/1 – Obrigada.
R – Esteja à vontade, viu?
Recolher