Memória da Literatura Infanto-Juvenil
Depoimento de Michele Iacocca
Entrevistado por Thiago Majolo e Eduardo Barros
São Paulo, 30/04/2008
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista MLIJ_HV005
Transcrito por Michelle de Oliveira Alencar
Revisado por Genivaldo Cavalcanti Filho
P/1 – A gente vai começar, Michele. Primeiro gostaria que você dissesse o seu nome completo, o local e a data de nascimento.
R – O nome completo é Michele Iacocca. E eu nasci numa cidade chamada San Marco dei Cavoti, no sul da Itália, na província de Benevento. A Itália é dividida em regiões e as regiões são divididas em províncias; a região seria uma espécie de Estado aqui. E cada província também tem várias capitais. No caso, a minha província, o local onde eu nasci, é a Campagna, cuja a capital é Nápoles. E depois tem outro, tem Salerno, Benevento, Avellino...
Benevento é uma província. E San Marco, a minha cidadezinha, que é uma cidade medieval de 3.500 habitantes, aliás, ultimamente tem atingido 3.507. Eu nasci nessa cidade, que é uma cidade bem medieval. Eu vivi a infância nessa cidade. A cultura da cidade, toda a economia da cidade, toda a estrutura da cidade, ela era bem medieval mesmo. Quer dizer, ela vinha disso também, mas também tinha a ver um pouco com o fim da Segunda Guerra, então ainda existia economia de troca na cidade, existia o arauto, que é a primeira coisa que ele dava.
O arauto era um sujeito, empregado da prefeitura mesmo, só que ele tinha efetivamente aquele casacão que nem os arautos antigos, um casacão até quase os pés, tocava o trompete. E era um negócio engraçado, porque primeiro ele dava a cotação dos ovos - na realidade, o ovo era moeda corrente, de certa forma, porque a economia era toda à base de troca, tudo era feito por lá mesmo. Mesmo, por exemplo, o ceramista que vendia panelas, jarros… Essas coisas, normalmente, eram feitas, eram trocadas como mercadoria, tipo grão, trigo, milho, feijão. E tinha um valor...
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Depoimento de Michele Iacocca
Entrevistado por Thiago Majolo e Eduardo Barros
São Paulo, 30/04/2008
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista MLIJ_HV005
Transcrito por Michelle de Oliveira Alencar
Revisado por Genivaldo Cavalcanti Filho
P/1 – A gente vai começar, Michele. Primeiro gostaria que você dissesse o seu nome completo, o local e a data de nascimento.
R – O nome completo é Michele Iacocca. E eu nasci numa cidade chamada San Marco dei Cavoti, no sul da Itália, na província de Benevento. A Itália é dividida em regiões e as regiões são divididas em províncias; a região seria uma espécie de Estado aqui. E cada província também tem várias capitais. No caso, a minha província, o local onde eu nasci, é a Campagna, cuja a capital é Nápoles. E depois tem outro, tem Salerno, Benevento, Avellino...
Benevento é uma província. E San Marco, a minha cidadezinha, que é uma cidade medieval de 3.500 habitantes, aliás, ultimamente tem atingido 3.507. Eu nasci nessa cidade, que é uma cidade bem medieval. Eu vivi a infância nessa cidade. A cultura da cidade, toda a economia da cidade, toda a estrutura da cidade, ela era bem medieval mesmo. Quer dizer, ela vinha disso também, mas também tinha a ver um pouco com o fim da Segunda Guerra, então ainda existia economia de troca na cidade, existia o arauto, que é a primeira coisa que ele dava.
O arauto era um sujeito, empregado da prefeitura mesmo, só que ele tinha efetivamente aquele casacão que nem os arautos antigos, um casacão até quase os pés, tocava o trompete. E era um negócio engraçado, porque primeiro ele dava a cotação dos ovos - na realidade, o ovo era moeda corrente, de certa forma, porque a economia era toda à base de troca, tudo era feito por lá mesmo. Mesmo, por exemplo, o ceramista que vendia panelas, jarros… Essas coisas, normalmente, eram feitas, eram trocadas como mercadoria, tipo grão, trigo, milho, feijão. E tinha um valor mesmo: você comprava uma jarra, valia tantas vezes cheia de trigo, tantas vezes cheia de milho, tantas vezes cheia de feijão. E a própria jarra, [quando] era feita, tinha uma espécie de cerimonial: ela era apoiada no chão, em cima de um lenço, de uma toalha; ela era cheia até escorrer, depois era aparada com a mão, então era a medida certa. Aquela dose... Esvaziava a jarra, você ficava com a jarra; tudo que estava dentro você guardava e o pagamento era o próprio, era isso.
Era incrível, porque tinha toda a estrutura do jornal mesmo, sabe? Porque depois ele dava os decretos da prefeitura. Até tinhas coisas engraçadas, por exemplo: tem a praça do mercado, que é fora dos antigos muros da cidade. Tinha um carvalho que está lá até hoje, um carvalho secular. Mas era um lugar assim... Também nessa praça tinha uma cantina onde todos os lenhadores, todo mundo ia comer. Eles bebiam bastante, tomavam vinho, mais de cinco litros, então todo mundo ia fazer xixi em volta do carvalho, até que um dia saiu efetivamente o decreto da prefeitura, e ele cantava o decreto que era proibido mijar embaixo do carvalho, sotto la quercia, senão pagava a multa e até podia ser preso.
Depois ele dava as notícias da igreja: batizados, casamentos, os que nasceram. E depois ele tinha até uma bolsa de empregos, dava quem estava precisando de quem para ajudar na colheita, essas coisas. No fim, quando ele ia aos lugares estratégicos da cidade e tocava o trompete o pessoal saía na rua mesmo pra ouvir. De vez em quando, alguém dava um copo de vinho pra ele tomar, então quando ele estava legal vinha a parte social da coisa, eram fofocas mesmo. Era incrível, porque era uma espécie de repentista também, o cara.
Era um mundo, efetivamente, nessa época que… Claro que acabou lá também, mas a minha cidade tinha exatamente isso; eu vivi isso, essa condição medieval mesmo. A própria casa do meu avô, o pai da minha mãe, funcionava quase como um pequeno castelo.
Meu avô era camponês, mas camponês mesmo. Ele tinha até um quê de religioso nesse sentido, ele gostava daquilo e tinha uma série de rituais. Quando voltava do campo, toda noite… Esse meu avô tinha um sapato, que era uma sola grossa com pregos de ferro embaixo. Toda noite, a primeira coisa que ele fazia era cuidar do sapato. Ele limpava todinho, punha na lareira pra secar. Durante o ano, preparava banho para o sapato sem sal - ele espalmava o sapato e deixava o calor do fogo absorver. Depois que tinha secado toda a umidade, ele espalmava e aí ele deixava lá pra vestir, pra usar no dia seguinte. Um dia, eu perguntei há quantos anos ele tinha, porque eu sempre via esse sapato. Ele disse que tinha esse sapato há uns trinta anos, mas todo dia ele cuidava do sapato, na volta do campo.
A casa dele funcionava quase como um pequeno castelo. Ele tinha uma cozinha, era uma cozinha grande; aquelas escadas de madeira, aquelas grandonas, que subiam pros andares de cima. Praticamente, a parte de baixo da escada era um depósito. Eu brincava, de criança, lá porque tinha saca de trigo, de fava, de milho amontoados. A gente se escondia literalmente, subia nas sacas de trigo. Ele tinha uma lareira grande, do lado esquerdo era o trapiche e do lado direito era o forno, então ali ele fazia o pão, o azeite, o vinho, fazia tudo dentro de casa. A minha avó tecia. E durante o inverno, quando não tinha trabalho no campo, ele fazia todas as coisas da casa: ele fazia cadeiras, fazia celas, fazia sapatos. Ele tinha uma série de ganchos do lado da lareira, que servia pra - ele fazia as vassouras de casa também - puxar assim, ele amarrava uma corda e dava pra fazer o feixe, pra amarrar; depois ele amarrava com ramo de salgueiro preparado, que ele deixava de molho. E isso eu acompanhei o tempo todo, quer dizer, vivi isso na realidade.
Mesmo quando faziam pão - porque o pão lá era feito -, era aquele pão grande que fazem até hoje, e era feito praticamente para durar o mês inteiro. E eles tinham um forno muito grande, então, quando era feito o pão, era feito pra umas três famílias, normalmente, porque era pra filha - pra própria filha, que era a minha tia -, e até pra uma vizinha que estava lá.
Isso também pra mim foi uma coisa muito marcante, pelo seguinte: as mulheres se punham a fazer a massa de madrugada, depois tinha que deixar fermentar a massa. Enquanto isso, iam preparando o forno, e quando elas chegavam, chegava a minha tia com os meus primos, a vizinha, com os filhos dela, sabe o que eles faziam? Meu avô já tinha levantado pra ir pro campo. A minha avó, minha tia já tinha levantado pra fazer a massa. Eles jogavam todos nós na mesma cama, na cama grande. São aquelas camas medievais, elas são realmente bem particulares. São aquelas camas enormes e, normalmente, elas têm três ou quatro colchões: o primeiro, embaixo, é de folha de milho, depois tem outro, de folhas mais delicadas, depois tem outro de lã e o outro de pena, de pluma de ganso, mais de plumas. E têm todos aqueles aros dos lados porque eles, quando a mulher prepara a cama - isso também é um trabalho, acho que vale a pena contar -, eles usam uma forquilha de madeira, uma forquilha mesmo de madeira comprida, mais ou menos da largura da própria cama, que depois elas guardam atrás da cabeceira encaixada. Elas fazem o seguinte: levantam todos os colchões, aí enfiam aquela forquilha dentro pra mexer em tudo, depois elas batem e fica tudo fofinho, e fazem isso com todos os colchões.
E também elas usam aquela forquilha pra fazer a própria cama - vão pondo lençol, cobertor em cima. Fazem a mesma coisa, pra não ter que dar a volta porque a cama fica bem alta, sabem que não dá pra puxar, pra arrumar. Elas, com uma mão, seguram uma parte do lençol e com a outra, com a própria forquilha, enrola e vai, e aí estica a parte. Na realidade, quando você deita numa cama dessa, parece que está deitado numa nuvem, sabe? A cama fica extremamente macia, extremamente fofa, e é enorme, altíssima, né?
Nessa coisa do pão, eles jogavam todo mundo, vinham todas as crianças nessa cama. Vinham e tacavam as crianças, ficavam todas assim; às vezes entravam oito, dez crianças na cama. Aí ninguém dormia mais. Mas nós ficávamos esperando, porque a primeira experimentação do forno era com bonecos de massa, aí faziam bichos, cavalos, cachorrinhos, gatinhos. E tinha até… Faziam, às vezes, com mel em cima e tinha até uma boneca que elas punham um ovo na barriga - mulher grávida, estava literalmente com o ovo na barriga.
Cozinhavam esses bonecos só para a primeira experimentação do forno. É lógico, vinha aquele cheiro de lá de baixo, e aí o que acontecia? Todos nós escada abaixo, pra ganhar o boneco que eles faziam pra nós, pras crianças também.
Outra coisa que pra mim foi muito marcante, fez parte da minha experiência pessoal e me lembro muito - isso me ajudou muito realmente tanto a fazer, a criar histórias, como na ilustração - [é] que nós tínhamos um contador de história. Isso é a coisa mais incrível que eu já vi na minha vida, porque ele era um sujeito meio doidão, mas ele morava fora dos muros da cidade. A cidade tem os muros antigos, era cidade medieval mesmo; pra fora dos muros é praça do mercado, onde efetivamente teve feira, todo mundo igualzinho tinha na Idade Média; o pessoal vai lá fazer as trocas, os escambos. Agora, é lógico, agora está circulando mais dinheiro, mas na minha época você não via dinheiro nunca, tanto que sempre todos fazíamos os nossos brinquedos - isso também eu vou falar um pouco, éramos nós mesmos que fazíamos, nós nunca ganhávamos. Não tinha nem costume, nem se pensava em ganhar brinquedo, toda a minha infância. E tem umas coisas que eram geniais, de curtição mesmo.
Mas eu estava falando do contador de história. Esse sujeito, ele era um pastor de ovelhas e morava num casebre de madeira - de madeira, não, de pedra - fora da cidade, uns duzentos, trezentos metros. Saía [da cidade], já era campo, um pouco mais, uns 500 metros. Tinha um carvalho enorme na frente e aquilo era como se fosse um pouco o mundo dele, porque era onde ele morava. Depois tinha muito campo em volta e as ovelhas dele pastavam nesse campo mesmo.
Ele era um tremendo contador de histórias. Mais tarde, eu vi que às vezes tinha uma história das “Mil e Uma Noites” mesmo, outra do “Decameron”, umas histórias que depois eu li e outras, mas ele vinha de uma tradição oral também. E era um negócio impressionante porque ele era tudo, ele tocava flautinha… Na realidade, ele ia contando a história e ia se tornando o próprio protagonista da história. Ele interpretava a história, tocava a música da história. Ele interagia com a gente de uma forma incrível. Por exemplo, tinha uma história tétrica, do irmão que esganou o outro irmão. Acho que até existem versões dessa [história], do irmão que matou o outro irmão, ele o enterra e depois nasce um bambu. Um vento batia no bambu e o vento virava palavras que contavam a história de como ele tinha matado o próprio irmão. Era uma das histórias que ele contava. Quando ele falava que o irmão… Na hora que o irmão degolava o outro, ele literalmente pulava em cima da gente com a faca de verdade, ele tinha uma faca e botava a gente pra correr. Vinha o susto, a gente dava risada.
Outro negócio: ele tinha uma habilidade… Tinha outra história, que era do grãozinho-de-bico. Era uma personagem que era pequenininha, do tamanho de um grão-de-bico, uma história que ele curtia muito e nós também. Nós éramos quinze, vinte em volta dele, íamos vê-lo dia de domingo. A gente saía da missa e nosso programa era ir lá, ficar em volta dele e ele contava essas histórias. Essa do grãozinho-do-bico é que ele achava mais engraçada, eu sempre achei surpreendente como é que ele conseguia fazer isso. Ele contava que o grãozinho-de-bico, numa certa altura, entrava no ânus do rei. E provocava as situações mais ridículas e constrangedoras, porque, de repente, o rei estava comendo na mesa e ele mexia lá e “pum”, o rei soltava um pum, aí todo mundo ficava assim... De repente, ele estava com a rainha, com o embaixador da França, ele também vinha essa coisa. O incrível é que ele conseguia fazer: na hora que ele contava que o rei soltava um, ele soltava igual, ele mandava um soco na barriga e “pum”. Todos em volta dele tentavam e não conseguiam! Você imagina, virava uma brincadeira! E era um negócio super engraçado. Isso foi outra coisa da minha infância que a gente viveu, eu e toda a turminha que é um pouco a minha geração, nós vivemos essa realidade.
Estava falando do negócio dos brinquedos também, né? Fora os que já tinham pião, depois apareceram as bolinhas de gude, as tampinhas de cerveja e refrigerante que nós fazíamos, tínhamos bolado. A cidade, ela é toda… As ruas da cidade, a maioria delas, na parte do centro, são ruas de um metro e pouco. E tem outro, quando a parte que contorna a cidade, que tem aquelas muretas de pedra, mais ou menos desta largura. Nós fazíamos em cima dessas muretas uma espécie de corrida, um circuito de corrida de carro, e a habilidade estava exatamente em não deixar cair do lado de fora. Mesmo na curva você tinha que mandar aquilo sempre em cima; se caísse, tinha que voltar ao ponto de partida. É lógico, quem ficava campeão pegava as das outras e aí a gente enchia de cimento, enchia de terra para balancear, pra equilibrar a chapinha, a tampinha. Cada um tinha a sua, preparava a sua. Era um negócio incrível, cada um preparava do jeito dele pra ter o peso certo, porque se você dava a tacada, ela ia, então não podia pular pra fora; tinha que dar a tacada certa na tampinha porque ela dançava.
Outro brinquedo incrível, que a gente ia criando e ia fazendo, era uma coisa que era um tubo de… Não era um tubo, era uma planta que tem um miolo mole que parece isopor - tem por aqui também. Ela era usada pra fazer vassoura, na realidade. A gente cortava um pedaço daquilo, tirava o miolo e virava um canudo. Depois, com outro pedaço de madeira, fazia um encaixe que entrava, mas só que ia até certo ponto, até certo... Porque tinha a manilha, que não deixava entrar bem fundo. Fazíamos uma espingarda com isso: com a estopa, punha num buraco e empurrava com esse pedaço de madeira. Ela ficava engatilhada até um determinado ponto. Quando punha o outro também, o ar comprimido de um empurrava o primeiro e ficava no lugar. E nós fazíamos guerra com isso. Tinha um alcance de trinta, quarenta metros, dava um estouro mesmo, “pow”! Fazia a gente… Punha na barriga, dava um impulso e aquilo partia. E quando a gente fazia isso, fazia guerra mesmo: a gente andava com uma latinha com suco de amora amarrada aqui, então quando punha a bala lá, a gente punha no suco de amora, porque na hora que batesse no cara, ficava a marca, ele não podia falar: “Não, não me pegou!”, ou alguma coisa nesse sentido. A gente mesmo fazia; tinha uns marceneiros, mas a maioria das coisas éramos nós.
A cidade era mais ou menos no alto e tem um rio que desce do lado, depois tem um rio que desce e cruza com esse, mais embaixo. Depois desse rio, vai um maior que chega até um rio grande, que é o que já vai pro mar. Esse rio também pra nós era uma festa, digamos. E nós andávamos em turmas de dez, quinze, vinte, que variava de uma idade de doze a treze anos até os quatro ou cinco.
Os menininhos que vinham atrás da gente eram chamados de caganigno, eram os caganignos, eles vinham atrás da gente. Eles estavam sempre juntos e tinham uns que eram bem invocados, eles seguravam mesmo. Nós íamos nadar basicamente num lugar que era uma cachoeira que não dava pé em lugar nenhum, era o nosso aprendizado. A água vinha da cachoeirona, tinha uma saída e do lado de cá tinha várias pedras, então era você pular de uma pedra a outra, às vezes de uma distância de um metro e meio, dois. Ia indo, até chegar lá. E assim aprendia a nadar. O cara que tivesse ganhado o diploma era o que dava a volta toda na lagoa, passava embaixo da cachoeira, também nadava. Quando eram crianças pequenas, a gente tacava.
Uma vez eu contei… Tem uma história [em] que estava o Ziraldo, a Zélia - conta pro Ziraldo, o Ziraldo lembra dessa história. Tinha um menininho que se chamava Giovanni, Giovaninho. O apelido dele era fagioletta - feijãozinho, né? Ele incorporou o apelido e ainda não sabia falar direito, então quando perguntavam a ele: “Como você se chama?”, ele falava: “ciagioletto”, falava fagioletta errado. Mas ele era super invocado e fazia tudo: ele mergulhava, a gente tinha que tirá-lo da água pra ele não se afogar, sabe? Ele não tinha a mínima censura, nenhuma, não tinha medo de nada. O que o grande fazia, ele queria fazer e fazia, com os dois braços se jogava na água, eu morria de ir.
Tinha uma coisa que era uma característica bem peculiar, pela própria posição da cidade. Quando estávamos lá embaixo na cachoeira, as mães, certa hora do dia, ficavam chamando e da cidade se ouvia que elas saíam na janela. Gritavam atrás da gente, onde estávamos dava pra ouvir, porque estávamos lá no fundo do vale, dava pra ouvir tal e qual. Um dia, a mãe chamou esse Giovanni. Ele estava lá, todo empolgado, nadando com a gente e mãe dele: “Giovanni!”, lá de cima. Aí o menino sumiu e foi embora, né? Depois de uns quase vinte minutos, nós o vimos lá na ponta da cachoeira. Acho que ele pegou toda a encosta do outro lado e subiu até lá em cima. Ele virou em direção à cidade e gritou, olhando assim... Falou, falando pra mãe: “Mamma, vaffanculo!”
P/1 – Qual a idade dele na época?
P/2 – E sua relação com os pais?
R – Minha relação com os pais é um tanto particular, porque a minha mãe morreu quando eu tinha quatro anos. Meu pai era militar; nesse período, ele ficou na Albânia, na Grécia, no norte da África e no fim na ilha de Filicudi, que é do arquipélago Eólias, daquelas ilhas da Sicília. Aliás, ele teve uma experiência muito parecida com o… Você viu o filme “Mediterrâneo”? Muito parecida, porque eles o puseram naquela ilha da guerra, quase no fim da guerra; uma patrulha de cinco pra ocupar a ilha, porque a ilha era italiana. E depois que terminou a guerra os deixaram lá; não trouxeram de volta, deixaram como quartel mesmo. Ele ficou lá até acho que 52, mais ou menos. Ficaram os cinco, acho que se relacionavam com o pessoal de lá mesmo. Tinha comida boa, azeite bom, vinho bom, peixe à vontade. Na realidade, o que eles faziam era desenhar o tempo todo, então...
Conheci o meu pai aqui no Brasil, porque em 52 ele me pôs num colégio de padre e veio pro Brasil. Ele se demitiu do Exército, veio pro Brasil e me pôs num colégio de padre. Nesse colégio eu tive uma experiência muito engraçada.
P/2 – O colégio lá na sua cidade?
R – Numa outra cidade, chamada Madalena - minha cidade é San Marco -, é uma cidade que fica a oitenta quilômetros de lá. E ele veio pro Brasil. Foi nesse período, porque depois que a minha mãe morreu, eu fiquei com uma tia um tempo - na realidade, ela é irmã da minha avó. Ela tinha um marido prisioneiro na África do Norte, era prisioneiro dos ingleses. Quando o marido dela voltou, eles emigraram pra Argentina, aí eu fiquei um pouco com a mãe do meu pai, aí meu pai me levou pra esse colégio. Só que eu não fiquei nem um ano nesse colégio, porque foi assim: era um colégio de carmelitas, um colégio muito rígido, sabe? Na verdade, os meninos desse colégio eram preparados para serem padres. Quer dizer, os carmelitas são os da clausura.
Logo que nós entramos no primeiro... A primeira coisa que eles falavam, deram três regras básicas: que não podia falar alto, não podia falar palavrão e agressão física. E eles deram medalhas. Era assim: você ficava com a medalha e tinha que passar a medalha adiante. A medalha de bronze era pra quem falasse alto, a medalha de prata pra quem falasse palavrão e a medalha de ouro pra quem agredisse, brigasse fisicamente, essas coisas. E tinha que falar sempre sussurrado, baixinho mesmo.
Mesmo quando a gente estava no pátio do convento, que falavam um com o outro, lá tinham o costume de não se falar de lado, não sei por que. Um ficava na frente do outro, então, quando iam andando, [faziam] assim, pra lá e pra cá. Quando você falava, ele ia andando de ré até chegar à parede, aí você vinha, voltava de ré e ele andando de frente. Essas coisas, mas sempre baixinho, baixinho.
Deram essas três medalhas e quando eles rezavam depois do jantar, tinha uma hora na sala tipo recreio. Quem ficasse com a medalha era punido no dia seguinte. Desde a punição do recreio, quer dizer, ficar sem recreio, até ficar a pão e água - enquanto os outros ficavam comendo nas mesas, bonitinhos, no refeitório, você ficava de joelhos no meio do refeitório com um piresinho, um copo de água e uma fatia de pão. E era uma coisa assim, era mais a humilhação, na verdade.
O que aconteceu com essa história de medalha, que eu não sei por que, porque eu vinha assim de uma... Poderia ser um pouco selvagem na época, porque eu vivia sozinho, entendeu? Não sei por que, a primeira coisa que me ocorreu… Não fiz nem [por] pensar em sacanear a coisa, mas eu ficava com as três medalhas pra mim o dia inteiro. Deixava todo mundo falar o que quisesse, não passava pra ninguém. Porque, logo no começo, achei um puta de um negócio. Você imagina na hora do recreio, o cara o tempo todo te enchendo o saco. Você estava lá com a medalha. Se você falava alto: “Toma uma medalha porque você falou alto.” O outro: “Toma, você falou palavrão, toma a medalha.” Virava uma… Aí, não sei por que eu falava: “Vou ficar com essas medalhas pra ninguém encher o saco.” Só que depois [tinha] a vergonha grande que eu tinha que passar com as medalhas.
Tinha o cara que era, basicamente, o puxa-saco de padre, tinha um que era porcão, cuspia, tinha o outro, que era efetivamente o agressivo. Então eu chegava em um - me lembro até que chamava Pepino. Eu chegava pra ele e falava: “Pepino, você é um puta de um puxa-saco!” Aí ele falava baixinho no meu ouvido: “Para, Iacocca” - era chamado pelo sobrenome. Aí eu insistia, insistia, até que uma hora: “Para!!!” (gritando) Eu falava: “Você falou.” Aí eu chegava pro outro, que era esse gordo porcão - se chamava Mário, aí eu falava assim: “Sua mãe transou com dois...”, imagina, e uma hora ele chegava: “Filho da puta é você!” Dava outra medalha. Aí chegava pro outro, um cara que se chamava… O sobrenome dele era calabrês. Eu cutucava assim, batia atrás dele no pé: “Tum tum tum”, pra ele chegar e eu falar: “Desculpe.” Aí eu ia: “tum tum tum”. Falava: “Desculpe, foi sem querer.” Uma hora ele vinha com tudo em cima de mim, falava: “Toma a medalha, é agressão física.” A coisa funcionava um pouquinho, logicamente, funcionava uns dias. A partir daí eles começaram a perceber, e aí, lógico, me botaram a pão e água, botaram a primeira vez e começou aquela espécie de perseguição.
Ora, tinha umas coisas lá que, eu nem sei, mesmo na época me soavam esquisitas, por exemplo: os padres no salão às vezes chamavam a gente com o nome de santo, santa. Eu não estava lá, não sabia… De um lado, eu não sabia como regular pra poder agradar e no fim, eu mal tinha dez anos. E do outro lado eu percebia que aquilo não tinha muito a ver.
Mas aí aconteceu um negócio: tinha um menino, esse era piradinho mesmo. Um dia nós estávamos na aula de matemática, e ele, acho que tava a fim de soltar um pum. Tentou segurar, coitado, e saiu aquele fiapo, sabe, aquele “fii”. Imagina, ele ficou vermelho que nem um pimentão, todo mundo olhando pra ele. E o puxa-saco: “Ah, foi ele!” Tava na cara que tinha sido ele, a escola inteira percebeu que foi ele. E o professor, que era um padre, mas sabe aquele padre nojento? Ele fez aquela cara de nojo e saiu da sala. E aí o botaram a pão e água, o coitado. Eu já tinha ido algumas vezes, não tava nem aí; a coisa não me pegou nem a primeira vez, cheguei assim: “Tudo bem, tranquilo.” Mas ele levou a mal, ele se sentiu humilhado. Ele estava lá, de joelhos, no meio do refeitório.
Nosso refeitório, pra vocês terem ideia, era aquele refeitório em “U”, sabe? Na parte da frente tinha todos os padres, desde o reitor do convento. Do lado de cá eram todos os noviços, os que iam se ordenar, e do lado de cá éramos nós, uns quarenta, quase cinquenta. Então eram aquelas três mesonas imensas. Agora, se comia muito bem, porque quanta comida! Só que tinha sempre quem ia buscar a comida, todo mundo se revezava, nisso era absolutamente democrática. Até o reitor pegava e servia a mesa, cada vez um, todo mundo.
Também tinha a mesma coisa: quando se comia, ninguém podia falar, mas quando alguém estava lá no meio, e eu dizia: “Você tava lá no meio”, e tinha três mesonas em volta de você, você de joelhos no meio, com todo mundo comendo... Eles eram sacanas mesmo nesse sentido: quando viam que o cara se irritava, eles reforçavam a coisa, aí é que o cara estava com permissão pra falar. Ele batia com a faca no copo dele, era o sinal que podia se falar, pra quê? Pra encher o saco do coitado! Tinha o padre que falava: “Ah, esta sopa está uma delícia! Pena que tem alguém que não possa saborear!” E o menino chorava, pingava lágrimas assim, e eu ficava com pena.
Mas aí, um dia, ele… Ele, por causa disso, começou a se ligar a mim. Ele ficou tão sentido com essa história do padre, achou que era sacanagem que o padre fez com ele, que nunca deveria ter colocado ele a pão e água por causa disso, que foi sem querer, escapou. Um dia, ele chegou pra mim e falou assim: “Hoje vai ser a minha vez de servir na mesa. Presta atenção.” Eu: “Tudo bem!”
De fato, ele foi. Fui olhando: ele pegou o prato, na hora de pegar o prato da sopa do padre ele estava com o dedão enfiado na sopa do padre. O padre, a mesma coisa: fez cara de nojo e saiu da mesa. E ele, todo feliz da vida. Depois veio falar comigo: “Você percebeu?” Eu falei: “É claro, eu vi.” Falou: “Tava com o dedão enfiado na sopa dele. Você nem sabe, meti o dedão.” Você imagina o que tinha no dedão, né?
Virou uma guerra com ele, sabe? Ficou assim, nossa senhora!
Um dia, nós estávamos jogando bocha. Meu parceiro era o padre, que também era o nosso instrutor. Era o que dava aula de matemática, mas era o que tomava conta, se chamava padre Felice - [em português] padre Félix. Esse menino era o meu adversário e ele jogava bem bocha e pingue-pongue - aliás, antes disso, teve outro episódio com ele também, com o puxa-saco, o Pepino. Um dia, o Pepino estava levando, e tinha aquela risadinha dele, sabe aquelas risadinhas de puxa-saco, “nhéééééééé”. Então ele mandava a bola, aquela bola que vai rasteira e difícil de pegar, aquela que passa. E ele falava: “Pega esta”, “pá”, me mandava. Ele tentava pegar a bola e ia pro beleléu. Ele foi ficando puto, até que numa ele estava perdendo; na hora que o cara mandou a bola, ele pegou a bola com a mão, deu em cima do menino e tacou a bola na boca dele: conseguiu porque o outro estava de boca aberta. Ele meteu a bola na boca do cara. E pra tirar, rapaz? Nossa, a bola ficou entalada na boca. Nessa também, ele foi a pão e água.
Mas essa história da bocha foi o seguinte: ele também jogava bem, encostou a bocha no bolinho e deu aquela risada pra mim. Eu tinha duas alternativas, porque a gente jogava só quatro bochas: ficar com as duas bochas na mão ou dar aquela pancada seca, que a sua [bola] bate seca, a dele vai pro beleléu e a sua fica no lugar, ou você tenta aproximar da outra tal e qual pra ver se consegue fazer um ponto, que são quatro bochas pra cada time de dois, cada um joga com duas bochas.
Eu estava com as minhas duas bochas na mão, falei pro padre: “Eu vou bochar, vou tentar essa jogada de bater.” O padre falou: “Não, não tente que você não vai conseguir.” Eu falei: “Eu vou!. “Não, não vai!” “Não, eu consigo!” Aí mandei e não consegui, a bola foi pro espaço. Aí o padre gritou no meu ouvido, falou assim: “Eu falei que você não ia conseguir!” Eu estava olhando a minha bola indo pro espaço, e quando você joga a bola, automaticamente passa a outra bola pra mão direita. O padre gritou no meu ouvido: “Eu falei que você não ia conseguir.” Eu falei: “Puta!” “Paf”, taquei a bola e acertei o dedão do padre. Acertei o dedão sem querer, nem olhei, na hora que eu joguei a bola no chão. O padre deu um berro, mas um berro! Tudo bem, ficou por isso mesmo, me botaram também, perdi o recreio. No dia seguinte, o menino chega pra mim e começou a falar comigo: “Você viu o berro que o padre...” Eu falei: “Claro que eu vi, fui eu que...” “Você achou o berro dele normal?” Eu falei: “Pô, eu acertei o dedão dele, que estava de sandália” Sabe sandália de padre? Uma bochada em cima do dedão dele. Ele falou “Não, mas eu acho que ele não é normal”, assim mesmo. “Você não acha que ele está possuído?” Aí eu falei: “Bom, e daí?” Deixei por isso mesmo.
Mas no colégio tinha um… No convento tinha um padre que era deste tamanhinho, diziam que tinha mais de cem anos. Estava meio gagazinho, meio caquético, mas ele tinha fama de santo: dizem que quando era moço ele tinha sido bandido, tipo cangaceiro, brigante, sabe? Depois, ele havia se convertido, então tinha toda aquela fama de santo naquele convento. Eu comecei a ver o menino com o padre, nesse jeito de andar, conversando, “tatatá tatatá”, pra lá e pra cá, conversando com o padreco e eu lá falava: “O que ele tem tanto que falar, conversar lá com o padre?” Um dia, ele chega pra mim e fala: “Eu conversei com o padre Augustinho. Ele me explicou direitinho como é que faz o exorcismo.” Então a mesma coisa, encerrou o assunto.
Uma noite ele chegou pra mim, ele me chamou. Sabe o que ele tinha feito? Ele tinha pegado um daqueles manuscritos na biblioteca do convento, tinha ido à oficina onde consertavam as estátuas. Tinha uma estátua do Santo Antônio [em] que ele está com o pé em cima de uma caveira que é o diabo; ele arrancou a caveira da estátua - a estátua estava consertada [antes]. Pegou dois castiçais, aí me chamou, me mostrou tudo aquilo e falou assim: “Vamos lá.” Eu também levei na brincadeira. Sabe o que ele fez? Ele botou os dois castiçais, pegou o livro, abriu o livro na mão, botou aquele símbolo em cima do livro, os dois castiçais na frente, pra exorcizar o padre. Chegamos perto da cama do padre - ele dormia no nosso dormitório, não acordava porque ele tomava conta da gente, mas ele acordou um pouco antes da gente chegar nele, estava andando ao encontro. Putz, mas o escândalo que ele fez! Evidente, a molecada toda acordou. Todo mundo começou aquela coisa de um jogar o travesseiro no outro, pulando em cima, aquela algazarra toda típica.
Começou a vir padre. Os padres entravam no dormitório, encostavam aqui, de um lado e do outro da porta e ficavam com a mão dentro das mangas. Formaram aqueles dois semicírculos. Aí a coisa começou a acalmar, sabe, os meninos começaram a silenciar. Imagina a gente, como é que ficou. Não sei por que o expulsaram, não expulsaram a mim. Chamaram os pais, mandaram ele embora.
Ele ficou triste, chorava. E ele me deixou de herança, na hora em que foi embora, o lenço - ele tinha um lenço azul de bolinha branca, que ele ficava fazendo micagem quando o padre rezava a missa. A gente achava que era uma sacanagem dele, porque ele fazia o seguinte: nós acordávamos às quatro horas da manhã, tinha que se preparar, fazer tudo, e às 5 horas tinha a missa, toda manhã. A gente tinha que ouvir sempre a missa de joelhos, aprendia a servir missa em latim, aquela coisa toda. Enquanto o padre levantava o cálice, ele embrulhava aquele bendito lenço e imitava o padre - lógico, todo mundo ria.
O padre, sabe o que ele fazia? Ele parava a missa, se despia inteirinho, tirava todos os paramentos, e ia na sacristia. Ficava sentado, um silêncio absoluto, aí voltava, se vestia tudo de novo e continuava a missa. A gente falava: “Para com isso, meu!” Mas ele era assim. Quando foi embora, os pais dele vieram buscar, ele deixou o lenço pra mim, me deixou um sapato - só o pé esquerdo, sem ter andado com o pé direito, e me deixou uma caixa de bombom.
Sabe que depois que ele foi embora, pra mim, perdeu a graça lá dentro? Aí eu também decidi: vou embora, do mesmo jeito.
Sabe o que que eu fiz um dia? Nós fazíamos um passeio toda quinta-feira. Era um passeio de 35 quilômetros; saíamos às cinco horas da manhã e ficávamos andando até as 5 horas da tarde sem parar. Até o lanche a gente comia andando, toda quinta-feira. E num desses passeios eu fui numa delegacia, falei que eu tinha me perdido e mandei me levarem de volta pra casa, pra casa da minha avó. Eles me levaram. Depois [que] eu cheguei lá, falei pra minha avó: “Não quero voltar lá, de jeito nenhum.” Coitada da minha avó, não sei o que passou na cabeça dela. Ela falou assim: “Tá legal, não vou te mandar de volta.” Ela não me mandou de volta e tudo bem. Então ficou por isso mesmo e não voltei mais pro convento.
Depois disso, ela morreu também, e eu fiquei sozinho. Acho que foi o melhor período da minha vida, pra falar a verdade. Eu andei bastante, depois morei uns anos em Benevento, onde estudei. E aí conheci um tipo de esquema pra mim, que fazia no verão: eu trabalhava em bar, cervejaria, sorveteria, pra segurar um dinheiro pra me sustentar durante o inverno e poder continuar estudando. Às vezes não dava mesmo. Mas durante o inverno também podia, às vezes, trabalhar de lanterninha no cinema, e às vezes com marceneiro, às vezes com alfaiate. Então dava sempre pra equilibrar um pouco as coisas.
P/2 – E o seu pai no Brasil, nessa época?
R – O meu pai no Brasil. Meu pai, praticamente… Quase não tinha, a gente se correspondia muito pouco. Eu só voltei a me corresponder com ele quando quis ir embora porque depois desse período eu consegui estudar, fiz até o clássico. Depois eu arranjei um belíssimo emprego na reforma agrária, na área de engenharia civil. Foi aí que depois de uns três anos que eu estava lá - e olha que eu estava numa boa, porque eu comecei como desenhista. Fazia desenho em cálculo de casa, que se chamava o cúbico métrico estimativo. Era tudo calculado por metro cúbico, desde areia até tijolo, pedra, ferro; era um tipo de cálculo onde não tinha desperdício, era um cálculo feito pro projeto ser aprovado. Quando estava trabalhando nisso, depois de um período… Depois que eu parei de fazer, foi contratado outro sujeito pra fazer o que eu fazia e o meu chefe, engenheiro, começou a me levar com ele pra trabalho mais executivo. Estava na boa, ganhando bem, mas de repente me deu vontade realmente de conhecer o mundo mesmo, uma coisa até meio romântica.
P/1 – Michele, só uma coisa. O senhor desenhava desde pequeno?
R – Não.
P/2 – Como é que começa essa história?
R – Desenhava assim… Sabe o que eu fazia? Grande, mas não tão bem-feito... Mais malfeito, mas eu fazia um pouco o que o Gepp e o Maia faziam no Jornal da Tarde, lembra, um tempo atrás. Eu desenhava cena de futebol na classe pra encher o saco dos colegas. Desenhava como o cara tinha marcado o gol, como não tinha marcado, quando ganhava. Eram essas coisas que eu fazia, mas comecei a desenhar aqui mesmo na [Editora] Abril, comecei a fazer cartum mesmo, logo de cara. Não sei, por que não estava preocupado com desenho, mas isso veio um pouco da vontade, porque na Itália eu escrevia, escrevia. Tem um período que escrevi uns contos que nunca editei, evidentemente. Quando eu vim pra cá até tem umas coisas razoáveis, mas quando vim pra cá a própria dificuldade que eu tinha de falar português me levou pro cartum e pra ilustração. Agora não, agora estou escrevendo, fazendo livros meus com textos que vão ser editados, mas nesse período foi um período da adolescência, digamos… Foi uma coisa muito legal, uma experiência muito rica, porque conheci muita gente, aconteceu muita coisa. Não foi nada de muito complicado, muito difícil, é… Médio. Implicava em outras coisas, por exemplo: implicava, às vezes, em solidão, implicava, às vezes, em falta de grana, mas à falta de grana já estava acostumado. Tinha vez que até jogava baralho pra ganhar livro e caderno; apostava gibi, figurinha, essas tampinhas. Mas isso porque eu me dei conta, pra mim ficou muito claro que eu tinha que estudar, sabe? Que o único caminho que eu tinha pela frente era efetivamente estudar.
Eu fui a Benevento, que era capital da província, e fiquei lá, morando. Era o bairro mais antigo. Por outro lado, Benevento é uma cidade de quatro mil anos, era colônia grega. A lenda diz que foi fundada por Diomedes, que era aquele amigo do Ulisses. Então, uma cidade… Realmente, ela tem a parte grega, a parte romana, a parte normanda, a parte bizantina, que é a cúria. E é uma cidade que sempre foi importante, mesmo na época de Roma, onde teve as grandes batalhas, onde o Aníbal foi derrotado, onde Pirro foi derrotado, onde os normandos expulsaram na batalha, chamada Batalha de Benevento mesmo, expulsaram os árabes do sul da Itália. Depois houve também os normandos pelo Felipe II, então é uma cidade muito importante. Ela está no caminho que era o caminho do Oriente mesmo, porque está no caminho entre Roma e Brindisi, e Brindisi era a saída pro Oriente dos romanos. Essa cidade é exatamente no meio do caminho, onde tem o arco do imperador Trajano, onde tem a estátua do Júlio César, aquela, a original. Onde tem um dos castelos mais bonitos dos vikings dos normandos. E onde tem uma réplica da Catedral de Santa Sofia de Constantinopla, porque, numa ocasião, a corte de Bizantina, quando brigando, estava sendo atacada pelo Império Otomano, a corte Bizantina se refugiou em Benevento. Ficou oitenta anos lá, e até os papas ficaram cinquenta anos numa ocasião, na Idade Média.
Tinha isso, uma cidade [em] que eu estudava no anfiteatro. Era um anfiteatro muito preservado, tinha até as temporadas de verão que faziam cenas ainda, as tragédias gregas lá. Isso tudo pra mim teve muito… Por outro lado, me deu uma riqueza muito grande, me deu um lance de vida, de experiência de vida, de vontade. Por incrível que pareça, em vez de eu me sentir um coitadinho, muito pelo contrário, sabe? Dava uma sensação de luz mesmo essa coisa toda; me fascinava, de certa forma, poder ter essa experiência. Morei, por exemplo, na casa de uma prostituta durante um ano e pouco, sabe? Eu nunca tive nada com ela e nem com nenhuma das prostitutas que estavam, mas eu ficava num canto que tinha só a minha cama e meus dois criados-mudos eram os meus livros, eu tinha livro de monte.
Teve uma fase que eu tinha livro de monte, sabe por quê? Porque eu fiz acordo com o jornaleiro, que era jornaleiro e livreiro. Eu ia entregar o jornal pros assinantes toda manhã e ele me dava livros em troca. Livros que eram encalhe, porque, na época, o cara não precisava devolver o livro inteiro, devolvia só a testada do livro. Ele tirava aquilo e devolvia pra editora, porque o livro, teoricamente, era pra ser picado e queimado, até pra evitar custo de correio, aquela coisa toda de devolução. Ele me dava esses livros, né? E aprendi a ler, quer dizer, peguei o gosto pela leitura. Foi uma paixão muito cedo - na verdade, foi com treze, quatorze anos. Hemingway, Vandelli, lia, lia.
Também tinha gente que me orientava. Eu sempre conheci gente legal; falo desde professores legais até, numa ocasião, o padre, que era o padre motoqueiro, um padre comunista, extremamente culto. Esse padre me dava umas dicas das melhores coisas. Então foi um período que vai dos doze aos dezoito anos de idade - onze, doze anos, dezoito anos pra mim foi um período maravilhoso. Tanto no sentido de sobrevivência, porque eu, durante o verão, juntava a molecada… Coincidia com a época da colheita do trigo e o camponês não tinha tempo de colher. A gente colhia, enchia as cestas, rachava o dinheiro com o camponês, vendia com ele na cidade. Depois rachava o dinheiro entre nós. Às vezes, efetivamente, ajudava a trabalhar no campo, sabe?
Pra mim, foi um período muito rico. Depois eu voltei e me empreguei lá, aí depois eu quis vir embora. Eu fui ver no globo mesmo qual era o antípoda da Itália: era a Nova Zelândia. Fiz tudo pra ir pra Nova Zelândia, fiz a demanda, tudo. Aí me chegou um contrato de trabalho pra ir cortar madeira no meio do mato, a não sei quantos quilômetros do centro habitado. Nossa! Eu fiquei fascinado com a ideia, me senti um John Wayne. Achei que... Vou lá, fico dois meses trabalhando, depois pego a grana, tomo todas e como todas, sabe aquelas coisas? Fantasiei isso pra cacete.
Paralelo a isso, tinha o negócio do [serviço] militar. Quando fui me alistar a primeira vez, eu estava dois quilos abaixo do peso mínimo. Só que, em vez de me dispensarem, me deram o papel com o carimbo escrito “a ser revisto”. Aí tinha que voltar de seis em seis meses, me apresentar pra me pesar até os 25 anos, pra ver se eu engordava os benditos dois quilos. Imagina! Eu andava de bicicleta, nadava, fazia o diabo, comia duas vezes por dia, tudo para não engordar os benditos dois quilos.
Ao mesmo tempo, pensei no meu pai aqui. Sabia que o meu pai estava aqui no Brasil e pensei: se aquela coisa da Nova Zelândia demorar muito, eu vou pro Brasil, porque aqui eu podia vir a hora que eu quisesse. Eu me dei um prazo - lá é tudo burocrático, tinha que ir ao consulado. A demanda que eu fiz foi na de imigração mesmo, sabe, de emigração e imigração lá. E foi, efetivamente, tinha que esperar ser chamado mesmo. E me dei um prazo: “Se de tal período até tal período não me chamarem, eu vou pro Brasil.” E foi o que eu fiz, falei e fui pro Brasil.
Ainda aconteceu uma coincidência engraçada, porque quando o meu pai me pôs no nesse colégio, ele me levou e ele estava com uma namorada. E aí, quando eu decidi vir pro Brasil, fui ao consulado de Nápoles pra ver o negócio do visto. Eu encontrei um sujeito lá, um cara baixinho que perguntou pra mim se eu era agente de turismo. Eu falei: “Não, tô querendo ir pro Brasil.” Ele bateu na barriga e falou: “Estou com o Brasil na barriga porque eu tomo café o dia inteiro.” Aí engatou papo comigo. Durante o tempo o cara foi se enturmando, foi falando: “Eu ando muito chateado ultimamente, porque a minha filha Angelina está namorando um babà al rum.”
O baba é um doce fofinho, feito com rum; uma espécie de papo de anjo, sabe? Vem dentro de um copo, ele vai pra fora e come com chantilly. Ele é muito gostoso, é esponjado e bem molhado de rum. E o cara chega pra mim e fala: “A minha filha está namorando um babà al rum.” Eu não entendia mesmo, quer dizer, ela era meio louquinha, sabe aquela coisa? Mas aí ele pegou e falou assim: “Porque o fulano chega na minha casa toda a noite” - o cara era halterofilista - “ele chega lá na minha casa falando ‘Boa noite, Dom Archangelo’. Boa noite! O cara é bicha”, falou. Aí ele falou: “Mas outra noite eu deixei os dois sozinhos na sala e fiquei lá de butuca, de olho. Você sabe que o cara não encostou nem um dedo na menina? Nada! E aí, o que eu fiz? Dei um pé dentro da sala, falando: “Não quero veado aqui dentro.” Botei o cara pra fora.” Ele falava assim: “Agora, a menina chora. Você choraria por um cara desses?”
Nessa me lembrei do nome dele, você vê que coisa incrível. É Archangelo, porque Archangelo é um nome que você guarda. E me lembrei, exatamente nesse dia que me levaram pro colégio, que essa namorada do meu pai estava conversando e falando da família dela. Me lembrei do nome dele, que era cunhado dela, ele era casado com uma irmã dela. A irmã dela, uma tal de Rosa, era casada com um tal chamado Archangelo. Aí eu falei pra ele: “Por acaso a sua mulher se chama Rosa?” Ele falou: “É.” Falei: “Ela tem uma irmã chamada Luísa?” Ele falou: “É.” Era ela, a própria namorada do meu pai. Ele ficou todo assim e me levou lá na casa dele. Eles não se viam também fazia mais de dez anos. Perguntou como é que… Falei: “Ah, meu pai tá no Brasil.” Ele falou: “Ah, me dá o endereço.” Eu dei o endereço, eles se escreveram, casaram por procuração e ela veio comigo pra cá. Ela veio comigo, aí [teve] uma filha que nasceu aqui, Feliciana, a outra irmã. Morreram os dois agora, ficaram juntos o resto da vida.
P/2 – Eles há dez anos não se viam?
R – É, mais de dez anos. Uns doze, treze anos que eles não se viam.
P/2 – Nossa! E conta um pouco mais pra gente sobre essa sua vinda pra cá.
R – Bom, quando vim pra cá, eu vim nesse sentido: eu vim pro Brasil. Vim eu, ela e trouxe o meu irmão também, o pai do Tiago, ele quis vir também. O meu irmão é filho de outra mãe, meu pai casou depois com a mãe dele, mas a mãe dele morreu muito cedo, porque foi naquele período depois da guerra, que teve uma epidemia de tifo. E ele tem uma história, porque o meu pai, na verdade, raptou a mãe do meu irmão, aquelas histórias da época. Ele a queria, mas quando foi pedi-la em casamento o pai dela falou que tinha que casar a primeira filha. Sabe aquelas coisas do sul da Itália, que não podia namorar a mais nova? Ela era a mais nova, tinha que ser a mais velha. Eu não sei o que ele propôs, ele falou: “Tá legal! Então vou namorar a mais velha.” Mas ele ficava lá, namorando a mais nova. E numa certa hora pegou um sujeito lá... Tipo, um cara que tem uma história muito engraçada também. Raptaram a menina, depois o pai dela foi atrás dele, mas nessas alturas eles acabaram casando. Mas ela morreu cedo também.
Ele [meu irmão] estava com os avós dele. Ele quis vir, eu falei: “Então vamos!” Viemos nós três: eu, ele e essa mulher do meu pai. Aí eu cheguei aqui, fui trabalhar num... Cheguei aqui em 63. Fui trabalhar num escritório de engenharia, por causa dessa experiência que eu tinha na Itália, quando estava sendo feito o Edifício Itália, construindo. E eu fazia isso por... Eu trabalhava por produção nesse escritório, e eu fazia, desenhava as vigas. Claro, você tinha uma orientação: cada andar tinha uma determinada espessura, determinado tipo de ferro. Mas a gente fazia o cálculo da viga, do peso dela, e ia desenhando, projetando viga por viga, era por metro linear. A gente trabalhava aqueles rolos de vegetal, vinha puxando, puxando e desenhando.
Pô, eu trabalhava pra cacete. Quando comecei a descobrir que a gente ganhava por mês um pouco mais do que o salário mínimo - o salário mínimo era vinte mil cruzeiros e a gente ganhava 28, trinta, por aí. Quer dizer, vinte, trinta por cento a mais do que o salário mínimo. E aí eu, ingênuo nessa coisa.
Aliás, isso foi engraçado porque quando teve a bendita revolução, eu não estava nem entendendo o que estava acontecendo, porque a primeira coisa que eu pensei [é] que fosse uma coisa assim tipo Pancho Villa mesmo, sabe? Não sei por que razão, mas tinha gente dando tiro por aí, aquela coisa toda. Eu já estava em São Paulo, não era tanto absurdo. Mas aí eu perguntava pro pessoal que trabalhava comigo e ninguém sabia de nada, depois eu saía na rua e via aquela passeata daquela da família, daquelas mulheres, sabe? Uma porção de senhoras pela ordem. Eu achei esquisito, sabe? Mas demorei pra entender que era golpe de Estado, que era um golpe militar.
Foi nesse período, logo em seguida que chamei o pessoal vivamente e vi que todo mundo estava ganhando pouco. Então eu falei: “Por que a gente não faz um abaixo-assinado e pede, por que não aumenta?” Afinal de contas... Juntos, eles eram três sócios nesse escritório, funcionários, os desenhistas. Tinha um engenheiro, só que era japonês, o restante era tudo desenhista. Eles estavam fazendo paralelo com o que ele estava fazendo, um prédio pra eles na Praça Vilaboim mesmo, sabe? É um daqueles prédios da esquina com a Rua Piauí, na praça. A gente foi visitar numa ocasião.
Pô, os caras em cima de vinte sujeitos. Estão construindo o prédio deles, eles podiam pagar um pouquinho mais. E aí eu fui, né? Perguntei pra todo mundo: “Vamos fazer um abaixo-assinado?” Todo mundo topou na boa. Aí a gente fez e eu encabecei o negócio.
Eu não sabia nem escrever direito; peguei um amigo, um deles que se chamava José de Anchieta, pra me ajudar a redigir a carta. Ele me ajudou efetivamente e eu fui lá e mostrei. Eu mesmo fui lá, peguei a carta na boa, sabe, absolutamente conciliatório. No dia seguinte, pé na bunda. Me chamaram e me mandaram embora direto, ainda com ameaça: falaram que eu não tinha direito a nada, se eu falasse alguma coisa ia ser um subversivo, porque tinha esse papo. É claro, na hora me chateei pra cacete, achei sacanagem, mas aí que virou tudo pra mim.
Foi muito bem ter acontecido isso porque eu tive que me virar um pouco. Acabei sendo até balconista - balconista, não, vitrinista das Lojas Marisa, durante dois meses. depois eu conheci o Bigande, que morreu recentemente. O Bigande, não sei se você sabe, era aquele que fazia charge no Estadão antes da Ilke. Ele era um sujeito que tinha vindo da Itália, a Cinzano o trouxe pra cá pra ser diretor de arte da Cinzano aqui no Brasil. Depois ele foi trabalhar numa agência de publicidade na [Rua] Sete de Abril, perto de onde era a TV Tupi na época, que todo mundo falava que era Sonrisal. Ligava pra lá: “Agência de Sonrisal”. Ele era um cara incrível, tinha estudado no Centro Experimental de Cinematografia de Roma junto com o Fellini e com o Antonioni, só que ele fez cenografia. Esse cara tinha uma habilidade pra desenho que era um negócio espantoso.
Ele fazia desde aqueles desenhos, aqueles cenários cenários pintados que serviam pra filmar mesmo pra você, do real até tudo quanto era tipo de desenho. O cara ganhava prêmios em cartaz de Bienal, fazia cartaz pra Bienal pro mundo inteiro: fazia pra Hungria, pra... E aqui também, muitos dos cartazes da Bienal aqui de São Paulo eram dele. Na hora do almoço, ele fazia de memória pra dar de presente… Fazia umas vinte, 25 aquarelas de paisagem, de rua, da cidade, simultaneamente. Ele fazia numa hora, pegava as tintas e fazia “tchá tchá”, manchando tudo. Tudo isso pra dar cartão de visita, coisa assim.
Ele tinha uma habilidade pra desenho que é um negócio extraordinário. E ele é um cara totalmente hipocondríaco. Andava sempre vestido de terno. Sempre, todo santo dia ele usava um guarda-chuva. E toda vez que a gente dava a mão pra ele, ele entrava em pânico. Ele tinha no bolso do paletó aquela garrafinha de bebum, só que tinha álcool, aí ele se escondia num canto e ia “chhuuu”, dava uma esfregada na mão e aí ficava sossegado.
Ele era mesmo doidão. Mas ele, de certa forma, me levou lá. Depois eu fui pro estúdio Ricardo Conti, que era um cara que na época usava o aerógrafo. Ele que fazia aqueles carros, eram tudo italianos, esses caras. Ele fazia aqueles carros, o carro seccionado, desenhado todas as engrenagens. Aquilo era tudo feito no aerógrafo, parecia foto hiperrealista, sabe?
Quando eu fiquei no estúdio dele um período, ele estava fazendo um painel. Foi a primeira… Foi quando ainda ia ser inaugurado o primeiro supermercado, que eu acho que era o Peg-Pag. Ele fez um painel da parede inteira, como se fosse uma fotografia do supermercado, com todos os produtos que você via até lá no fundo, a latinha de ervilha com a marca, com os artigos. O desenho dele era muito mais do que a fotografia, porque a fotografia não alcançava o que ele alcançava com o desenho. E o cara era incrível.
Na época, ele tinha umas regras de equipamento, tinha aquela coisa pra mascarar tudo. Era um trabalho do cão, tinha que ter um saco pra fazer aquilo e era tudo no aerógrafo, tudo mascarado, tudo feito. Então eu fiquei um período também no estúdio dele, o Bigande me levou pra lá.
P/2 – Mas como você… É Bigande?
R – É.
P/2 – Como você o conheceu?
R – O Bigande eu conheci nessa Servial, a agência de publicidade. Um dia, eu fui lá. Ele estava, fiquei conversando com ele, aí depois ele falou: “Ah, quer ficar um tempinho aqui?” Eu fiquei, depois ele me apresentou pro Ricardo Conti.
P/2 – Entendi.
R – Aí foi o seguinte: eu preparei um portfólio. Na realidade, nesse período que eu fiquei, entrei, eu não recebia nada, foi uma espécie de treino meu. Eu preparei um portfólio, aí fui me candidatar como assistente de arte numa agência lá mesmo na Sete de Abril, que era a EPP, Empresa Paulista de Propaganda. O diretor de arte era um argentino, eu brigava o tempo todo que fiquei lá com ele. Esse argentino, ele tinha bolado o logo, aqueles bonequinhos da TV Tupi - não sei se vocês lembram daquele indiozinho que tinha aquelas anteninhas. Ele achava aquilo o máximo. Mas ele era um cara quadradão, sabe?
Era a época que a gente discutia cinema. A época realmente de ouro, que a gente falava de Antonioni, da década de 1960. Entre 64 e 68, em 68 eu já estava na Abril. Mas com esse cara também aprendi um pouco o jeito de fazer a coisa.
Depois tinha uma agência chamada Denison, não sei se existe ainda. [Uma] agência de propaganda que na época era Denison, era Thompson, antes da DPZ, dessas agências. Eles montaram uma agência bem grande e ela montou uma espécie de filial pra atender a conta de lotes de automóveis. Aí também começou essa coisa, porque começou a indústria depois de Juscelino: a Volkswagen, a Ford começaram a fabricar. A gente começou a abrir negócio de loja de carro, concessionária de carro, então a Denison fez uma filial pra atender esse mercado. Fui lá me candidatar e me pegaram como chefe de arte. Eu até lembro os valores - está certo que também tinha um pouco de inflação, mas não era tanto. Eu, por exemplo, no escritório de engenharia estava ganhando 28 mil reais. Quando fui contratado por essa agência, eu fui contratado por 920, depois da Abril foi pra 30.200. Então foi sempre um puta de um salto, nesse sentido foi legal. Foi até bom que aconteceu isso.
P/2 – E como você chegou à Abril?
R – À Abril não cheguei. Foi um amigo meu que tinha conhecido - se chama Alexandre, já morreu - ele trabalhava [lá]. Nessa agência eu cheguei a conhecer o Hernani Donato, que está ainda agora na Melhoramentos, e conheci um outro chamado ngelo Pizarro, que trabalhava na Abril no departamento de promoções femininas. Era lá na [Rua] João Adolfo, sabe onde é o hotel Cambridge? Naquele prédio da esquina, a Abril era lá.
O ngelo Pizarro já tinha me falado se eu queria trabalhar na Abril uma vez, mas quem me chamou mesmo pra trabalhar foi esse Alexandre. Saiu um cara e falou se eu queria ir pra lá. Fui nesse tempo pro departamento de promoções femininas, aí trabalhei com o Luís Carlos. Depois, com esse pessoal, pintou um monte de coisa porque depois de lá fui contratado pela [revista] Manequim, depois fui pra revista Intervalo, que era da Jovem Guarda, a que o pessoal… Esse pessoal, quando começaram a convencer todos eles, eles nunca entraram: o Gil, a Bethânia, aqueles meninos, até a época do Roberto Carlos e a turminha.
Eu fiz traduções na época do italiano pra músicas da Martinha, do Nilton César… No que eu estava lá, eles vendiam. Quer dizer, era o começo; no começo, eles ficavam muito na redação. A Cinira Arruda era repórter, até o Silvio Santos [me] convidou pra ser júri, mas foi a Cinira no meu lugar. Fui diretor de arte do programa Flávio Cavalcanti durante três semanas ou quatro. Depois não quis tocar, essas coisas não me interessam. Mas isso assim, tipo freelancer, porque nessa época eu trabalhava na Abril como emprego. Trabalhava até 72, aí comecei a fazer cartum. Eu me demiti e continuei fazendo isso mesmo, fazendo cartum. Depois fui pra ilustração infantil.
P/2 – A impressão que dá, de você contando da sua trajetória profissional, é que o desenho entrou na sua vida pelo lado técnico. Como que foi esse... Porque você foi desenhando vigas, pro lado de engenharia, aí depois você foi caindo pro lado mais da publicidade, não é isso? E como foi esse salto dessas áreas, do desenho pro cartum?
R – Digamos que, de um lado, foi casual, porque foi quando eu estava trabalhando na editora Abril. Foi o seguinte: as revistas, principalmente a revista Claudia, na época, quando ela era montada... Bom, vocês devem saber: agora é feito tudo no computador. Na época, era feita… Por exemplo, as tiras de texto eram todas estampadas. Botava vestido colado, tinha o espaço da foto, tangia no prisma pra prismar. E muitas vezes era feita a produção de texto...
R – E nessa época, então, eu comecei a fazer assim, a bolar pequenos cartuns exatamente para preencher esse espaço. Ele gostava e ia me publicando. Aí isso me levou pro primeiro livro, pra Eva. Eu pensei, falei: “Pô, isso aqui é assim, vou bolar uma personagem pra revista Claudia.” Depois, quando eu bolei a Eva, ela me veio imediatamente em forma de livro. Não sei se alguém ouviu falar, porque a Eva foi na editora Ática. Mas ela foi uma edição superpremiada.
P/2 – Fala um pouco aí.
P/1 – Conta um pouco.
R – A Eva, ela é a Eva mesmo, a primeira mulher. Eu criei aquele universo que era ela, uma serpente, o marido e todo aquele universo que circunda, o bicho, incluindo Deus. E aquela glosa do mundo já feito.
A proposta do livro, de certa forma, foi a seguinte: todo humor que estava sendo feito, todo humor que até hoje está sendo feito é o humor de comportamento, quer dizer, existem estereótipos, personagem-estereótipo. Eu escolhi fazer exatamente... Digamos, anular um pouco o terceiro elemento, que seria o seguinte: no humor de comportamento o cara quer fazer do leitor um cúmplice do que ele está falando. Ele está falando de uma terceira pessoa, não sou nem eu nem você, mas estou falando de outro cara, sabe? Por exemplo, o próprio Angeli faz isso.
O Angeli é ótimo, ele realmente tem uma tremenda de uma linguagem, tem um sentido crítico maravilhoso, mas você vê como ele é obrigado a trocar de personagem o tempo todo, por quê? Porque são personagens fixos, que têm uma determinada característica. Ele usa, varia as personagens exatamente pra fazer a crítica - basicamente, uma crítica social, não diria de comportamento. Eu, quando pensei na Eva, eu quis anular, digamos, dialogar com o próprio leitor, provocar diretamente o leitor. Falei: “Não, não é...” Tanto que a Eva não tem padrão de comportamento, ela é um ser. E feminino porque, na realidade, ela é a perplexidade, ela é “a-ânima”, não é o ânimo. Já fiz, por exemplo, humor pra executivo, por exemplo, na revista Exame, eu fazia a última página da revista Exame. O humor de executivo também é assim, é humor de comportamento.
Com a Eva eu quis fazer exatamente isso, tanto que ela tem crise de identidade, ela quer se liberar. O livro começa assim, ela dando de cara com o Adão. A primeira frase que ela fala é: “Chato, quando gente já nasce casada!” Tem uma série de situações que levam pra isso.
Desde a primeira coisa entrou a serpente. É a serpente que empurra a maçã pra ela, porque ela vê que ela é descontente, ela fala assim: “Pô!” Vê que aquela vida sempre a mesma coisa, e ela é totalmente libertária. Ela questiona, questiona a si mesma, questiona o mundo em que ela vive, o ambiente em que ela vive, o próprio marido, que é o Adão. O Adão é o conformista, é o cara que está lá tranquilo, que fala: “Ah, mas aqui tá tudo pronto, tá tudo organizado. Você está se queixando do quê?” De alguma maneira, é uma coisa que não vai. E a serpente aproveita pra chegar lá com a maçã pra ela, a maçã é a saída daquilo. Vira pra ela e faz a pergunta óbvia, fala pra serpente: “Mas quem você é?” Aí ela fica assim...
A serpente vai pra Deus e fala assim: “Bom, mas afinal o que eu sou?” Deus já está de saco cheio deles todos, aí fala pra ela assim: “Pô, para com isso que você tem uma missão a cumprir, que é dar a maçã pra ela.” Aí ela responde pra Deus: “Obrigada, o senhor me salvou de mim mesma.” A própria serpente fala: “Quer dizer que eu sou uma missionária”, quer dizer, ela entra também.
Numa ocasião, ela vai perguntar pra Deus e fala assim: “Você que me fez.” E Deus responde: “Não, foi a última coisa que eu fiz.” Fala assim: “O senhor podia ter me explicado, pelo menos, como eu sou feita”, e aí Deus responde: “Honestamente, eu até tinha pensado nisso, mas já era domingo.” Sabe, tem toda essa coisa.
Depois tem outra coisa: ela encontra todos os bichos, ela se questiona por intermédio dos bichos. Exatamente dentro desse mundo, que está todo feito, que começa a se tornar sufocante. É o mundo, assim. Ao mesmo tempo, ela quer sair disso e é evidente que não consegue, tanto que a própria capa do livro que eu fiz é uma história, como se fosse quadrinhos. Tem a linguagem do cartum, são piadas que vão se subseguindo, uma na outra. A própria capa, o quadrinho que tem em volta dela, é em relevo, mas tem a mesma cor da capa, é branco. Eu desenhei o quadrinho. É quase como uma prisão invisível, quer dizer, ser libertária é uma coisa, a liberdade é outra coisa. A liberdade não é uma coisa simples, não é fácil de assumir, porque você tem que assumir todos os riscos da liberdade. E ao mesmo tempo, a partir disso fui fazer a mesma coisa, uma análise do mundo mesmo, do que nos circunda, porque vinha bichos...
Eu chegava até a fazer histórias, onde, por exemplo, o humor [era] mais de contexto, não era um humor de situação. Por exemplo, uma hora ela começa um diálogo com uma formiga. A formiga é aquela que andava sempre, uma hora a formiga fala assim: “Eu nunca esqueço o dia que eu saí da minha fila e entrei numa outra fila pensando que fosse a minha e acabei num outro formigueiro pensando que fosse o meu.” Ela fala: “Quando você se deu conta disso?” E ela fala: “Nunca, eu tô lá até hoje!” Um pouco surrealista, mas faz todo sentido. Outro sentido, sabe, e tem humor. Você vê, mesmo que não tenha, é como se fosse outra lógica, mais pra uma lógica do absurdo. E é a mesma coisa. Esse livro depois termina com ela não assumindo, não aceitando a maçã de jeito nenhum. Termina [com] a serpente dando a maçã, ela pega e joga fora. A Eva joga fora e ela [a serpente] atira uma pedrada na cabeça dela. A própria serpente se enche dela e o livro termina assim.
O livro surpreendeu todo mundo: a [revista] Veja deu reportagem, a Folha fez um texto pro Jornal da Tarde e teve uns críticos aí que foi… Foi eleito o melhor livro do ano em 74, teve uns críticos aí. Depois foi editado - foi um editor português que editou - na França, em Portugal. Isso de certa forma me deu outros rumos; aí sim eu comecei realmente a fazer cartum. Vivi da imprensa durante muito tempo. Fiz trabalho pra Veja, fazia charge, trabalhei também pra Versos, fazia... Fiz várias coisas, uma vez até na revista Estados, fiz uma história de dez páginas. Até depois chegar… No fim da década de 1970 também entrou um pouco essa coisa do infantil, que no começo eu não queria fazer, mas depois comecei a gostar.
P/2 – Como é que começou essa história com o universo infantil?
R – O infantil, eu fui convidado. A Regina Porto fez uma personagem chamada Serafina, que a Ática ia editar, e ela quis que fosse eu a ilustrar. Ficou uma coisa meio estranha, na verdade, porque eu achei… Eu nem me achava em condições, porque eu achava que pra criança tinha que... Pra adulto você pode brincar com isso, pode brincar com a inteligência, com a provocação. Com criança, tem que se depurar um pouco. Tem que se despir um pouco de certas pretensões, inclusive. Mas depois eu comecei a sacar umas coisas que me levaram também pra esse caminho, que gostei muito, por sinal.
Agora eu estou conseguindo, por exemplo, o lúdico na ilustração com criança. É o lúdico que às vezes está no próprio desenho, na própria brincadeira, no próprio jeito de desenhar, de fazer mesmo, de propor a ilustração, sabe? No fim, tem uma coisa que parece assim: edita-se agora… Nesse contexto parece estranha, mas eu incorporo mesmo essa ideia: eu vou muito nas escolas e incorporo um pouco a ideia de [que] quando eu estou desenhando pra criança, realmente é como se tivesse um monte de crianças em volta de mim dando palpite, e elas dão lançadas. E isso, na realidade, acontece nas escolas, mas eu imagino essa coisa acontecendo na minha mesa de trabalho. Isso vira um exercício bastante lúdico, bastante engraçado.
No ano passado estava no Salão do Livro - porque todo ano agora eu vou, este ano também. Aliás, este ano eu vou lançar dois livros. Estava no salão, participando daquele Painel dos Ilustradores, que é um painel que a gente desenha na hora. A gente fica com o microfone desenhando, fazem perguntas e a gente vai respondendo. Eu desenhei uma… É porque eu desenhei uma árvore com todos os galhos, pra lá e pra cá, tudo com fileiras de cigarras cantando, tudo como se fosse um show musical; embaixo eu desenhei uma plateia de formigas batendo palma. E fui falando isso, da linguagem do próprio desenho, de como o desenho pode contar uma história, de como essa história… O que você pode dizer com isso, porque eu estava interpretando a fábula da cigarra e da formiga desse jeito. Falei sobre o destino, falei: “Bom, o destino da cigarra é cantar, por que não dá pra respeitar isso? Por que a formiga, se o destino da cigarra é cantar, por que ela tem que se ferrar? Porque a antiga fábula da cigarra e da formiga é muito do espírito capitalista mesmo”, eu falando, “e o cara não, que tem que economizar, que tem isso, que tem aquilo. Aí depois chega o inverno, a cigarra se ferra, o outro, que guardou a comida, não se ferra”, quer dizer, é a obrigatoriedade do cara. Eu falei: “Por que a formiga, então, se o destino dela é esse mesmo? Por que ela não pode pagar e assistir a um show da cigarra, [já] que ela nasceu, foi feita pra cantar?” Como acontece agora, aqui na prancheta. Aí todo mundo, o pessoal… Nossa, tinha muito pai de criança que ficou batendo palma, sem dizer, mas ótimo. Por causa disso, a coisa descontraiu um pouco.
Numa certa altura, começaram a perguntar coisas assim, pessoais mesmo: a parte do sotaque que era italiano, perguntar como era na Itália e tudo o mais. Aí, de repente, chega um menino. Tinha uns dez anos de idade, na minha frente. Ele, me chamando de você, falou assim: “Por acaso você algum dia fez algum poema pra conquistar uma menina?” Assim mesmo. Olha que legal, né?
Na hora exatamente você pensa: “Bom, não tem nada a ver, ele está falando de outras coisas”, mas por que não também? Realmente, teve a minha fase de escrever poeminha. Eu tinha até um que falava do sol, do instante, do pôr do sol. É mais ou menos assim: “Eu tomo esse instante e reinscrevo.” Tem um instante assim: “Neste instante, a minha lenda volta. Eu tomo este instante e reinscrevo dentro dos teus olhos o meu romance.” Era esse o poeminha que eu fiz há muito tempo. Nossa, mas o menino ficou… Pelo próprio fato, eu podia ter falado: “Não vou escrever”, mas, de repente, pimba! Me veio esse poeminha, recitei pra ele na hora, o menino ficou feliz da vida porque ele se sentiu totalmente atendido. E por causa disso todo mundo levantou e começou a bater palma. Olha que coisa engraçada: que tipo de catarse que se cria numa coisa dessas, numa coisa de uma simplicidade total.
É um pouco isso que eu estava falando quando, de repente, eu passei a ilustrar pra criança, ou escrever alguma coisa assim. O que eu estava falando do se despir um pouco, de chegar nessa coisa um pouco mais natural. A vida é lúdica mesmo, a experiência é lúdica com criança, também tem muito disso. Mesmo enquanto eu falo, enquanto eu como, enquanto eu falo de mim, sempre vem como… Nunca chega como um trabalho, muito pelo contrário; chega muito mais no sentido da vida, no sentido da luminosidade da vida. A vida é realmente bonita porque ela é surpreendente, porque ela não vai se deter, porque ela está sempre te dizendo coisas novas - na verdade, você aprende a ler. Mas isso acontece muito com criança.
P/1 – Michele, hoje em dia, claro que você tem um jeito de desenhar, tem o seu traço, mas quando começa a desenhar pra criança você foi buscar esse traço, foi pesquisar com criança? Como você foi fazer isso?
R – Eu falo muito disso pra elas. Você sabe por quê? Porque a maioria das vezes elas são induzidas a desenhar o que já está desenhado, o desenho dos outros. A maioria, por exemplo, dos adolescentes, eles leem quadrinhos, então o cara quer desenhar um personagem do quadrinho; se ele consegue, mais ou menos, acha que ele está conseguindo desenhar. E tem um monte que mostra isso: “Eu desenho, eu gosto de desenhar.” É lógico que o desenho sai torto, o traço malfeito, mas eu falo pra ele assim: “Bom, seria a mesma coisa de eu querer falar com a sua voz. Por que não fala com a sua própria voz?” Aí eu explico um pouco o que é a voz: “É a naturalidade da coisa. Desenhar é você simplesmente se manifestar. Você gosta de lápis, é lápis.” Falo assim: “Agora, você tem que saber isso: o lápis, ele tem um determinado movimento, sabe, o teu traço é o teu lápis. Brinca com esse movimento, brinca com o lápis. Você está querendo desenhar igual ao Leonardo desenhava? Igual ao Michelangelo desenhava? Não, você tem que chegar lá um dia, mas saber o caminho que você tem que fazer. Você tem que desenhar com a mesma naturalidade que você fala, não interessa o que você está desenhando. O desenho bom é o seu desenho, pode ser um rabisco ou pode ser uma mancha. E depois você aprende a ler esse rabisco e a mancha, sabe?”
É a mesma coisa: eu estou falando com a minha voz. Se um dia eu quiser ser cantor lírico, estudo canto pra entender todo o negócio da caixa harmônica no meu corpo, até tirar todo o meu potencial da minha voz, até um dia eu me tornar um cantor lírico. Mas acontece que sempre eu vou cantar com a minha voz, eu nunca vou cantar com a voz do Pavarotti. É mais ou menos isso que eu explico. E explico exatamente… Quer dizer, o lúdico do ato de desenhar, independente do que está se desenhando. Se você gosta de pincel, usa pincel; se você gosta de dedo, usa dedo. Mas é isso, faz do desenho uma expressão natural. Depois você vai começar a entender o que você mesmo está fazendo, vai dar uma leitura do seu próprio desenho.
Quando eu comecei a desenhar, a fazer cartum, eu comecei desenhando o nada. O desenho da Eva, por exemplo: ele é todo um traço tremido, não desenho olho, nem nada porque eu queria dar a expressão física, porque quando ela se agitava, se chacoalhava toda. Quer dizer, eu fazia antes do Henfil um pouco o que o Henfil fez depois com o Fradinho, só que o Henfil fez isso de uma forma mais, digamos, conceitual, mais determinada. No caso da Eva, o meu traço era… Era um traço porque, inclusive, eu não sabia desenhar, sabe? Não tinha regra nenhuma pra desenhar. Mas isso me levou a um desenho muito mais orgânico, muito mais sensorial, tanto que saiu uma reportagem sobre a Eva numa revista, na revista Essa Gente. E ele considerou o meu desenho - sério mesmo, tá lá na reportagem - quase como um desenho de vanguarda. O texto diz assim: “Nós queremos falar desse tipo de desenho pra quem só acha que desenho brasileiro se limita a Ziraldo e Mauricio de Sousa.” Está escrito exatamente assim. Fala assim: “Mas é esse tipo de autor que, ciscando fora do semeado, costuma tocar a corda certa”, entendeu? Textualmente a reportagem dizia isso, escrita por um crítico. E falava exatamente da autenticidade do traço, de como o movimento do próprio traço é que dava o recado, dava a dica. Não fui eu que falei isso, falaram por conta deles.
Eu não estava sabendo. Quem me trouxe essa revista foi o Luciano Ramos, da TV Cultura. Ele achou essa revista e me trouxe. Estava lá a reportagem sobre, de três páginas. Estava escrito: “Michele é autor, autor e contra.” Autor contra, eu não sei por que, mas... Mas eles fizeram uma análise do livro e a partir daí fizeram a análise do traço.
Foi o meu primeiro livro, então tinha essa espontaneidade. Tive que fazer por necessidade, de certa forma, porque eu queria dizer coisas por meio do desenho ou do texto desse jeito. Essa espontaneidade é o que eu, de certa forma, até tento passar um pouco por experiência própria, um pouco porque eu realmente acredito nisso. É isso: você pega e vai da mesma maneira como você fala, sabe? O que dizer você aprende depois, o que tiver que dizer você diz, entendeu? Agora, tentar copiar um desenho qualquer, um quadrinho ou seja lá o que, não te leva pra lugar nenhum. Falo isso mesmo, falo assim: “Fatalmente, o desenho sai errado ou sai feio porque ele não é o seu desenho.” Você vê, eu mostro pra eles. “O traço está ruim por quê? A sua mão está pesada, você não está se sentindo à vontade, você está querendo entrar no eixo que não é o seu. Pô, solta a mão, brinca, certo? Faz círculo, quadrado, faz tudo que tiver na cabeça. Até figura você pode fazer, mas que seja a sua figura, né? Quer fazer um rosto, faça do teu jeito. Se um dia você achar que tem que ir pro quadrinho mesmo, aí você tem que ter regras, efetivamente, pra desenhar o rosto, o que você quiser dizer. Na verdade, as regras são pra lhe facilitar, não é mais, nem menos. Você pega, se você começa a descobrir que o rosto é feito com círculo, até aí, com umas proporções, isso lhe facilita; serve pra isso, pra lhe ajudar, não pra lhe encaixar, porque você está usando determinadas regras pra fazer um desenho e não [para] se condicionar a entrar numa outra coisa ou tentar imitar o desenho dos outros.”
É essa, no fim, a proposta. Eu sempre falo isso pras crianças e pras professoras também. Por que a professora também? Por exemplo, quando às vezes falo assim: “As crianças mostram, desenham a casinha sempre do mesmo jeito, com a fumacinha. Por que não perguntam pra criança como é a casa dela? Ela sente a casa dela? Não interessa como ela desenha a casa, não é isso. O que tem, pode até desenhar a cara, desenhar uma figura de que seja a do pai, do irmão. Ou fazer a casa torta do jeito que ele acha que é a casa dele, se a casa dele é favela, se a casa dele é palácio. Então porque condicionar a criança a sempre fazer aquela casinha?” Na verdade, a proposta é chegar na linguagem, na expressão: você ser você dizendo aquilo que quer dizer. É isso, e vale pra tudo: vale pra música, pra literatura, pra toda coisa, o importante é ser você com aquilo que você quer.
P/2 – Eu queria que você ilustrasse um pouco o seu desenvolvimento dentro desse nicho de ilustração infanto-juvenil a partir desse primeiro trabalho no fim da década de 1970. E depois, conta um pouquinho pra gente. Eu sei que são dezenas de livros depois disso, mas se puder fazer um panorama pra gente, destacando alguns, algumas parcerias, enfim.
R – Sim. Foi o seguinte: quando eu comecei a ilustrar efetivamente livro - fora o meu livro, que depois da “Eva” eu fiz o “Vacamundi” -, isso foi indo e por sinal foi tudo livro premiado. O “Vacamundi”, por exemplo, é um épico de um parasita que invade uma vaca pra colonizar e civilizar a vaca. Eu faço um pouco a alegoria do mundo, e ganhou o prêmio Clube de Criação, o Oscar dos publicitários, o prêmio que os Olivetto da vida ganham, essas coisas. Quando eu comecei a ilustrar livros efetivamente, comecei com uma coisa de sentir o texto. Você percebe, quando você percebe o texto, às vezes... E quando você conhece o autor, até um pouco mais. Mas quando você começa a ver o texto, você começa a perceber que tem texto nervoso, tem texto contemplativo, tem texto pausado, texto esquematizado, dá pra perceber isso direitinho. Quando faço um livro, eu organizo o livro, a ilustração, baseado nisso.
Por exemplo, tem texto que é musical. Quando eu ilustrei um livro do Joel Rufino dos Santos chamado “Marinho Marinheiro”, o texto era musical - toda a proposta do texto, sabe, aquela coisa das ondas do mar, dos peixes. Então eu o livro inteiro num movimento ondulatório, quase como se fosse… Eu desenhei até umas ondas do mar, como se fosse um pentagrama com as posições dos peixes. Isso pode parecer uma curtição minha particular, mas, na realidade, quando você lê o livro, folheia o livro, você vê que ele tem efetivamente uma sequência, visualmente ele te dá essa coisa, essa cadência. Na medida que você lê o texto, você vai percebendo na ilustração.
Tem, por exemplo, o texto mais ágil, até um texto meio neurótico mesmo, que é feito tudo de flechas, de coisas assim. Então eu tento fazer a ilustração desse jeito, às vezes enfio a ilustração no meio do texto. Adoro essa leitura meio assim, aquela coisa do... E é a mesma coisa quando [é um] texto contemplativo, aí eu vejo se, por exemplo, tem que fazer a ilustração na horizontal, fazer a ilustração na vertical, tem que fazer página sim, página não, que é uma coisa mais reflexiva. Isso eu faço, eu roteirizo mesmo. Faço pequenininhas pagininhas, eu olho, organizo, coisas desse tipo isso na ilustração. E aí desenho a partir disso.
Não é todo mundo que saca isso, o lado lúdico da brincadeira. Eu ilustrei um livro chamado “Juca Motorzinho”, que era um menino que brincava de ser carro o tempo todo. E a história diz que na escola a professora dava bronca, a diretora se incomodava, o pai, a mãe, porque ele na hora do jantar, “brrruuuu”, ele [era] sempre motorzinho. E na realidade... O que eu fiz? Entrei na própria brincadeira da personagem. Eu fiz o menino como se fosse aquele carrinho com as perninhas dele. E brinquei tudo com sinal de trânsito. Por exemplo, a diretora da escola era um guarda, vestida de guarda de trânsito com o apito. Quando tinha a hora do jantar, eu desenhei um posto de gasolina escrito “sopa comum”, outro “sopa vitaminada”. Quando os pais se reuniam, eu pus uma porta, e na frente da porta aquela barra de trânsito proibido, que ninguém podia entrar. Então brinquei com todos os sinais de trânsito. Eu, como ilustrador, entrei na brincadeira da personagem. Eu me coloquei.
De certa maneira, é isso, ou às vezes [é o caso] de interpretar as coisas. Eu ilustrei um livro de poemas do Elias José que tinha um poema que ele ficou surpreso. Ele me telefonou por causa dessa ilustração, porque está escrito assim: “Vamos embora, vou pegar o meu cavalo, tô indo”, se despedindo da namorada. E se repete aquela voz: “Vou lá, vou arriar o meu cavalo, vou-me embora...”. Sabe o que eu fiz? Eu desenhei um cavalo-de-pau, por quê? Porque no fim ele não vai embora, mas é só pra dar aquela ideia de movimento do vaivém, do sobe e desce, entendeu? Porque o poema me passa isso. Nossa, mas ele me ligou tão surpreendido! Falou assim: “Como é que você conseguiu? [É] como se tivesse pegado a alma do poema.” Falei: “Bom, mas é isso mesmo. A gente tenta captar esse tipo de coisa, sabe?” Normalmente é assim.
Por outro lado, foi efetivamente um aprendizado, porque eu penso bastante quando pego um texto efetivamente, tento sacar mesmo. Tanto que eu falei uma vez pra própria Ruth Rocha: “O ilustrador é o primeiro grande leitor de vocês.” Por quê? Porque tem que pegar realmente a alma da coisa. Depois isso eu vou levando pra… Eu estou fazendo [isso] pros meus livros atualmente, já tenho uns quatro ou cinco livros agora que estão saindo.
Você tem a Bambolina - não sei se vocês viram que virou peça, vai estrear no dia três de maio agora, depois de amanhã. Vai estrear no sábado. Fiz um outro. Nisso eu estou tentando experiências novas de linguagem mesmo, inclusive pra fazer as duas coisas - como o texto e a ilustração podem criar uma terceira coisa, quase que um neologismo que eu fiz. Uma coisa não funciona sem a outra, né? De certa forma, até um livrinho de… Vai sair agora pela editora Global, são versos curtinhos, mas eles criam outra - o texto e a ilustração, eles criam uma... Tem desde um que o cara corre, o outro cara corre pelado e aí ele pergunta o que aconteceu. O cara que corre responde assim: “É o progresso, tá tudo normal. É um conjunto residencial.” Tem o cara gordinho, peladinho [como se] fosse um prédio. Então isso é o desenho, [o texto] não diz, né? Como tem outra: “Como é distraída a minha avó Manoela, abre o armário no lugar da janela. Às vezes ela faz exatamente ao contrário, ela usa a janela no lugar do armário. Ela, por exemplo, outra noite, voltando da rua, pendurou o seu casaco num quarto de rua.” Então tem tudo, se constrói, se cria outra lógica. São coisas assim, experiências usando exatamente esse tipo de coisa - o desenho, o texto, até criar outro universo, onde um não funciona sem o outro. Pelo menos onde os dois se ilustram: assim, uma vez é o texto que ilustra a ilustração, outra vez é a ilustração que ilustra o texto, mas isso está sendo uma coisa bem legal.
P/1 – Michele, como é fazer esses livros, como você já fez alguns de só ilustração? E essa ilustração ter essa história implícita ali.
R – Vocês viram o livro que saiu da Bambolina? A Bambolina, eu fiz uma proposta: eu levei ao extremo, digamos, a proposta do ler para se ler. Eu quis fazer… Para propor a leitura, eu fiz um livro sem palavras, porque a história tem uma densidade dramática bastante grande e tem aquela coisa realmente do que é ler uma história dessas personagens. Tem, por exemplo, a menina egoísta que só está acostumada a receber. Ela recebe a boneca nova e joga a Bambolina fora, que é a boneca de pano. A boneca de pano, que é a boneca que você interage, é a boneca que te deixa à vontade, tem que te deixar ativo e não passivo. A boneca que você recebe pronta é a boneca metálica, aquela faz aquilo, ou a Barbie, que você tem que vestir com a roupa que ela te propõe, não te dá margem pra mais nada. E uma boneca de pano, não, ela vive de você, você se inibe com ela também. Então a história, ela tem um jogo assim, de personagens em volta, que é a menina egoísta, que é um mendigo que vira ganancioso. E os meninos de rua que a abandonam, eles mesmo são abandonados, acabam abandonando-a num contexto em que o medo é maior do que o próprio abandono. A história é isso, sabe, a história da Bambolina, desse livro que fala. Você leu o livro ou não?
P/1 – A boneca, né?
R – A menina briga com ela e de repente ela recebe uma boneca nova. Aí ela joga a Bambolina fora, a boneca de pano, fica com a boneca nova e a boneca nova só faz aquilo. Ela se enjoa, vai procurar a Bambolina, e a Bambolina não tá mais lá. Ela chora, é lógico, porque alguém catou, você jogou fora, não quis.
Quem catou é um mendigo, o mendigo o que faz? Fica numa esquina, agora ele começa a dançar com ela e todo mundo vai jogando moeda. Ele vê que está faturando com aquilo, aí o que ele faz? Ele vai comprar uma boneca, uma manequim vestida de noiva, e joga a Bambolina fora. Aí chuta ela, ela cai num mato. Com aquilo [o mendigo] comprou um fraque, uma cartola, pra dançar do mesmo jeito, mas perdeu a graça. Ele não está faturando como achou que ia faturar. A mesma coisa: vai procurar a Bambolina, a Bambolina não estava lá.
Quem tinha pegado era um menino de rua. O menino de rua leva pra menina. Os dois - os três, eles e a boneca estão embaixo do viaduto. Uma hora chega a polícia, aí eles fogem e deixam a boneca. Quando eles voltam, dão a volta, ela também não está mais lá.
Quem tinha pegado era a própria polícia. O cara leva a boneca na delegacia, mostra pro chefe, explica com balões onde tinha encontrado, aí o cara já aponta pra barriga dela: “Deve ter droga escondida lá dentro.” Abre a barriga dela e só sai pano colorido - nesse sentido: “O que tem dentro do ser humano? Droga mesmo? Vamos ver.” O que eles fazem? Jogam ela fora como se fosse um presunto, num terreno baldio. Ela fica largadona lá, começa a nascer o mato; praticamente, ela vai acabar, vai morrer. Quando fiz a história, primeiro tinha pensado em fazer a própria morte chegar lá, pra levá-la embora, mas eu não queria a saída mágica, sabe? Eu quis manter a história mensurável. Então transformei a morte no lixeiro. Seria aquele que ia lá pegá-la pra jogar definitivamente fora. Acontece que o lixeiro se comove; ele a vê, dá uma cutucadinha nela, dá uma limpada e a leva a um outro lugar, que é um bonequeiro, na realidade. Aí um cara a reestrutura, a recompõe, dá banho nela. E ela vira personagem de cinema. Ela praticamente encontra o destino dela, a identidade e o destino dela, que é ser boneca - ela não vai deixar de ser boneca - e vários personagens. Assim ela termina, exatamente, num teatrinho: as crianças batendo palma e ela fazendo reverência. Termina desse jeito a história, que é uma relação de troca, não tem mais aquela relação de uso.
Quando eu pensei na história, pensei exatamente nisso, de como ler. Primeiro tem a leitura externa: a menina egoísta, o outro ganancioso, as crianças com medo e a própria insensibilidade da polícia. Ao mesmo tempo, isso se [torna], de repente, num ato de amor, porque o lixeiro foi o único que não fez nada pra usar... Simplesmente foi altruísta. Ele não teve atitude egoísta, a salva efetivamente e a partir disso ela se reencontra. Então tem essa coisa [de] falar assim: Quem um dia na vida não se sentiu abandonado ou chutado, trocado por egoísmo, por medo, por interesse? Quem algum dia na vida não fez isso? De repente, ele abandonou alguém - chutou alguém, sei lá, é a mesma coisa -, por egoísmo, por interesse ou por medo.
Fala-se um pouco das relações, objetivamente. Como são as relações de hoje, como é a relação de troca com seres - aí mexe com o descartável. Mexe exatamente [com] isso: o interior da pessoa, quando abre literalmente a barriga dela. E depois tem a leitura, digamos assim, um pouco subjetiva, a partir da própria história da Bambolina. Quer dizer, quem um dia não sofreu esse processo, realmente, de solidão, de abandono? E de repente um ato, um ato mesmo que te… Um ato assim, que nem o ato do lixeiro mesmo, que te tira, te dá, te retoma, entendeu? Ou você se retoma, até ter consciência da própria vida, do próprio ser ou da própria identidade, eventualmente do próprio destino. Ela nasceu pra ser boneca, ela não nasceu pra se transformar numa borboleta ou um pássaro bonito, depois da morte, por isso eu quis manter a história no real. Então, o que no livro [é] sem palavras, você vê que ele tem toda uma estrutura, [uma] gramática, para ser lida mesmo.
Depois eu fiz outro sem palavra que vai sair agora também, no Rio, que se chama “Rabisco, a História de um Cachorrinho”. Isso é tudo sobre a linguagem do desenho, que é o seguinte: o menino faz um desenho de um cachorro daquele jeito todo tremidinho, todo feinho. Aí ele olha pro cachorro, põe na parede. De repente, o cachorro sai do papel e o procura. E aí o menino, quando vê aquele cachorro tão feio, não quer o cachorro. Aí o cachorrinho fica assim, o menino vai embora, e ele fica lá todo triste, então ele faz um caminho assim: ele sai, vai pra rua, no meio dos carros, passa por uma série de coisas. Pega chuva, fica no meio do lixo, fica embaixo de chuva, é perseguido por outros cachorros, é ridicularizado por um monte de meninos. Numa certa altura, ele vai perguntando e pergunta por um desenhista, que seria um pouco o criador e o autor da história. E, de fato, um fala que ele é louco, outro fala que não sabe... Até que uma criança o aponta e ele vai, ele realmente acha o desenhista. Sobe até o desenhista, e o que ele faz? No balão aparece um cachorro, aquele cachorro bonitão, e o desenhista faz o cachorro pra ele. Aí ele enrola, dá o cachorro desenhado e vai levando; pega o cachorro na boca e faz todo o caminho de volta, passa por tudo que tinha passado, volta pro menino, e dá esse cachorro pro menino - o menino do cachorro primeiro. Aí termina, lógico, ele com o cachorro na parede, o menino com o cachorrinho no colo, né? Então é a mesma coisa, toda aquela trajetória. Fala assim: “Pô, gosta de si, gosta daquilo e aquilo não se faz.”
P/2 – Bonito, muito bonito!
R – Esse vai sair já, já.
P/2 – Muito bonito.
R – Então essas são experiências que estou fazendo.
P/2 – Projetos novos, né?
R – É. E tem super aceitação, sabe? É incrível,porque mostra o pessoal aceitando na hora, não tem nem aquela de esperar o final.
P/1 – Eu estava pensando, essas histórias sem… Você contou a história inteira da Bambolina, mas na sua cabeça isso sai dessa maneira. Eu lembro que quando era pequeno eu via Eva Furnari e aí imaginava uma coisa que hoje, quando eu olho, não é nada daquilo. Você tem essa sensação ou já teve alguma experiência de alguma criança falar assim: “Nossa, eu...” Falar uma coisa que não tem nada a ver com a sua história, quando você bolou aquilo, dessa coisa gramatical implícita. Teve alguma experiência dessas já?
R – Bom, tem crianças que, por exemplo... Não, elas interpretam do jeito delas. Não sei de caso nenhum de... Não porque acho que não calhou de questionar, mas existe. As crianças, elas falam, interpretam muito. Muitas vezes, ela é muito pau a pau, quer dizer, primeiro as crianças não tem papas na língua, depois elas, muitas vezes, fazem a leitura de uma forma concreta, sabe? Por exemplo, no caso da Bambolina elas se comovem mesmo, se comovem com a história.
Fui pra Porto Alegre. Estive uma semana lá, fui até Torres, outras cidades; fui pra quatro cidades. E criança pequena de quatro, cinco anos, elas se comovem com a Bambolina, com desenho da boneca, elas se enternecem. Agora é evidente que... A proposta de leitura que eu faço, não espero sempre a resposta. Mesmo, por exemplo, professoras Quando eu pego um livro como a Bambolina, muitas vezes elas fazem aquela leitura objetiva mesmo, sabe? “Ah, que o cara...” Ela lê o livro e conta a história com palavras, exatamente como está desenhado: “O cara pegou a Bambolina e jogou a Bambolina lá fora.”
Muitas vezes, por exemplo… Aliás, aconteceu num colégio: quando eu comecei a falar dessa outra leitura, do significado das personagens, ela abriu o olho deste tamanho. E aí começaram a sacar o que que é a leitura, o que é ler efetivamente. Porque quando eu falo sobre ler, eu falo, normalmente, [é] de ler o que lhe circunda, quer dizer, ler o seu próprio contexto. Você está num determinado lugar, numa determinada casa, numa determinada família, numa cidade, num país - isso tudo é leitura. Se você sai daqui e encontra um cara caído no meio da rua é leitura que está acontecendo: por que esse cara está caído? Aí pode levar a tudo que você me dissesse: se o cara é indigente, se ele foi assassinado. E lhe leva a tentar compreender o mundo em que você vive, sabe? Por que o indigente está aí, por que o cara foi assassinado na sua porta? Por quê? Porque tem tudo um contexto, você chega aonde você quiser no seu país, até discutir o que você quiser. Pode discutir até o sistema político, social, mundial, a partir de uma coisa dessas. É essa leitura. Na medida em que você lê isso, na medida em que você vai e leva pra dentro de você, é evidente, isso vai levar para uma leitura maior de si mesmo, porque, claro, você lê objetivamente de um lado e emocionalmente do outro lado. É um pouco a proposta da Bambolina.
Com crianças eu nunca… Não aconteceu de fato, uma criança contestar alguma coisa. Mas é um pouco isso, um pouco a história que eu contei do livro. Tem uma criança que perguntou pra mim como é que eu consegui escrever tão bem assim - era letra impressa. Então eu imaginei o coitado, imagina o que ele deveria apagar, o que ele deveria preencher pra conseguir escrever... Como consegue escrever tão certinho?
Tem criança que pergunta se eu acredito em Deus, coisas desse tipo. Mas, ainda em relação ao desenho, é um pouco essa sensação que eu fico no geral, de criança dando palpite não no sentido de ler, porque ela tem a leitura concreta. Se você faz um cara, por exemplo, com quatro dedos, ele quer saber por que você fez com quatro dedos e não com cinco, se a mão tem cinco dedos. E eles fazem esse tipo de leitura, a leitura concreta mesmo do desenho. Você faz um cara de ponta-cabeça, um cara torto, um cara sempre… Então é evidente que é essa leitura que se espera.
Por outro lado, o fato que eu estava falando de incorporar as crianças, a ideia de crianças em volta de mim dando palpite, isso é uma coisa acontece, isso porque reflete um pouco o que eu sinto quando vou falar quando vou nas escolas. Quando falo de desenho, às vezes, com criança pequena, que eu fico tipo desenhando mesmo, aí eu fico, desenho, às vezes faço a carinha delas. Elas brincam com isso, sabe? Elas acham graça; aliás, não precisa nem ser tão parecido assim, mas só um detalhe me chama pra eles, aí eles acham graça e a coisa fica mais por aí.
P/1 – Então pra terminar, Michele, queria que você falasse qual a sensação de contar um pouco a história pra gente. Como é que foi?
R – Eu acho de um lado… No começo penso, você fala: “[O] que tem a ver, né?” De repente eu tô aqui contando a história da minha vida e que interesse isso tem? O interesse da… Por outro lado… Quer dizer, lógico que pra mim é legal, pra mim é uma coisa até um pouco catártica. Eu uso muito isso no meu trabalho, eu uso muito esse tipo de lembrança e até as histórias que eu vivi um pouco. Isso é de uma riqueza incrível, sabe? E comigo acho que acontece um pouco isso. Então, quando eu crio uma história, vem tudo isso junto: a minha história, as minhas lembranças, as histórias que aconteceram, que eu ouvi, as histórias que aconteceram com os outros e coisas assim. Então isso me dá toda uma...
É evidente que pra mim é bom, não sei se pra vocês é bom...
P/1 – Tá ótimo!
R - ...É interessante, bom pra minha imagem, mas eu gosto de ouvir também as histórias dos outros. Aliás, eu ouço bastante, e também me ajudam bastante.
P/1 – Tá bom, muito obrigada...
P/2 – Tem só... Tem algum episódio da sua vida, algum trabalho específico do qual você não tenha falado aqui e queria comentar? Você acha...
R – Eu acho que não, porque o primeiro foi esse da minha parte profissional, que eu trabalhei. Falei do primeiro livro, que é a “Eva”, falei destas últimas experiências, que estão sendo muito importantes pra mim. E o fato de ter falado um pouco... Não, acho que não.
Tem esse daí, tem... O o livro que eu estou fazendo agora, ele realmente, pra mim, está sendo uma experiência nova de linguagem e que está me levando, está me dando uma sensação de evolução muito grande. De um tempo pra cá, porque quando eu trabalhava, fazia parceria - eu fiz parceria tanto com a Cristina Porto na Serafina, como fiz muitos livros com a Liliana, que é a minha mulher, que faleceu em 2004 - era uma coisa, assim, me limitava bastante, me limitava porque... Claro, participava, é tudo trabalho de coautoria e tudo o mais, mas era uma coisa que sempre estava dentro de uma proposta pré-fixada, tinha pouco de experimental. Agora não. Agora, por exemplo, estou me permitindo experimentar de fato. Eu não sei até aonde vou, pode ser até que eu volte a fazer coisa pra adulto, mas eu quero chegar lá naturalmente.
O que está acontecendo agora é bem isso: é o quinto livro, estou fazendo e está dentro dessa busca, dessa proposta. Estou muito contente, inclusive, com o que estou fazendo agora, estou achando... Tanto o livro da Bambolina, como o do Rabisco e tem outro que se chama “O Mágico, um Rei e o Futuro do Rei”, que é outra experiência também, porque o tempo todo é sobre uma brincadeira de bolha de sabão.
O texto diz assim: “Um dia o mágico decidiu brincar de astrólogo.” Na realidade, o que aparece é um menino normal fazendo bolha de sabão. Depois, o livro é assim: “E criou o mundo, e criou o universo feito de astros e planetas.” E aí dizia: “Ia ser ótimo”, pensava o mágico, “assim eu vou ler o meu futuro nos meus astros e planetas.” Toda vez que batia um ventinho, aquilo tudo mudava de lugar. Ele disse: “Ótimo, assim eu começo tudo de novo!” E as bolhas vão se enchendo de mágica; cada bolha tem uma imagem, que são todas projeções.
Depois aparece outro menino, que é o truculento, outro menino, que é o puxa-saco, o baixinho. O texto diz assim: “O rei, que vinha passando, viu aquilo tudo e perguntou: ‘O que você está... O que o seu mágico...’” Ele fala assim: “Eu estou lendo o meu futuro nos outros planetas, e toda vez que sopra um ventinho, isso tudo muda de lugar e eu começo isso tudo de novo!” Aí de repente é uma cena parada, assim: os três e todo aquele universo cheio de imagens. E aí o cara se toca, o truculento; ele fala assim: “Mas o dono do futuro sou eu”, disse o rei, e chamou o guarda. Aí tem outra cena dele pulando, dizendo: “O guarda correu, o guarda agarrou, o guarda pegou.” Quando terminou o serviço, aí está tudo vazio, só as três figurinhas, e o cara com uma gota fala assim: “Aqui está o seu futuro, majestade. É só com uma gotinha.” Aí assim, “buá”, chorou o rei. Depois a cena, assim: “E agora, quem vai trazer de volta para o rei?” Aí: “O mágico emprestou a brincadeira para o rei.” E ele termina falando assim: “Um dia o rei decidiu brincar de astrólogo.”
P/2 – Muito, muito bonito. Qual a faixa etária?
R – Eu não me preocupo demais com faixa etária porque isso vale tanto para uma criança pequena como vale pra uma leitura mais filosófica.
P/2 – Pois é, exatamente.
R – Por exemplo, aquela coisa do futuro. Pô, o futuro é inconstante. São as imaginações, são as projeções que a gente faz sem ninguém ser dono do futuro do outro. ninguém é dono. O livro está todo trabalhado assim, todas aquelas imagens cinéticas, coisas assim, né?
P/2 – Acho que é isso. A gente queria agradecer muito, foi um prazer pra gente.
R – Pô, pra mim também, muito.
Memória da Literatura Infanto-Juvenil
Depoimento de Michele Iacocca
Entrevistado por Thiago Majolo e Eduardo Barros
São Paulo, 30/04/2008
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista MLIJ_HV005
Transcrito por Michelle de Oliveira Alencar
Revisado por Genivaldo Cavalcanti Filho
P/1 – A gente vai começar, Michele. Primeiro gostaria que você dissesse o seu nome completo, o local e a data de nascimento.
R – O nome completo é Michele Iacocca. E eu nasci numa cidade chamada San Marco dei Cavoti, no sul da Itália, na província de Benevento. A Itália é dividida em regiões e as regiões são divididas em províncias; a região seria uma espécie de Estado aqui. E cada província também tem várias capitais. No caso, a minha província, o local onde eu nasci, é a Campagna, cuja a capital é Nápoles. E depois tem outro, tem Salerno, Benevento, Avellino...
Benevento é uma província. E San Marco, a minha cidadezinha, que é uma cidade medieval de 3.500 habitantes, aliás, ultimamente tem atingido 3.507. Eu nasci nessa cidade, que é uma cidade bem medieval. Eu vivi a infância nessa cidade. A cultura da cidade, toda a economia da cidade, toda a estrutura da cidade, ela era bem medieval mesmo. Quer dizer, ela vinha disso também, mas também tinha a ver um pouco com o fim da Segunda Guerra, então ainda existia economia de troca na cidade, existia o arauto, que é a primeira coisa que ele dava.
O arauto era um sujeito, empregado da prefeitura mesmo, só que ele tinha efetivamente aquele casacão que nem os arautos antigos, um casacão até quase os pés, tocava o trompete. E era um negócio engraçado, porque primeiro ele dava a cotação dos ovos - na realidade, o ovo era moeda corrente, de certa forma, porque a economia era toda à base de troca, tudo era feito por lá mesmo. Mesmo, por exemplo, o ceramista que vendia panelas, jarros… Essas coisas, normalmente, eram feitas, eram trocadas como mercadoria, tipo grão, trigo, milho, feijão. E tinha um valor mesmo: você comprava uma jarra, valia tantas vezes cheia de trigo, tantas vezes cheia de milho, tantas vezes cheia de feijão. E a própria jarra, [quando] era feita, tinha uma espécie de cerimonial: ela era apoiada no chão, em cima de um lenço, de uma toalha; ela era cheia até escorrer, depois era aparada com a mão, então era a medida certa. Aquela dose... Esvaziava a jarra, você ficava com a jarra; tudo que estava dentro você guardava e o pagamento era o próprio, era isso.
Era incrível, porque tinha toda a estrutura do jornal mesmo, sabe? Porque depois ele dava os decretos da prefeitura. Até tinhas coisas engraçadas, por exemplo: tem a praça do mercado, que é fora dos antigos muros da cidade. Tinha um carvalho que está lá até hoje, um carvalho secular. Mas era um lugar assim... Também nessa praça tinha uma cantina onde todos os lenhadores, todo mundo ia comer. Eles bebiam bastante, tomavam vinho, mais de cinco litros, então todo mundo ia fazer xixi em volta do carvalho, até que um dia saiu efetivamente o decreto da prefeitura, e ele cantava o decreto que era proibido mijar embaixo do carvalho, sotto la quercia, senão pagava a multa e até podia ser preso.
Depois ele dava as notícias da igreja: batizados, casamentos, os que nasceram. E depois ele tinha até uma bolsa de empregos, dava quem estava precisando de quem para ajudar na colheita, essas coisas. No fim, quando ele ia aos lugares estratégicos da cidade e tocava o trompete o pessoal saía na rua mesmo pra ouvir. De vez em quando, alguém dava um copo de vinho pra ele tomar, então quando ele estava legal vinha a parte social da coisa, eram fofocas mesmo. Era incrível, porque era uma espécie de repentista também, o cara.
Era um mundo, efetivamente, nessa época que… Claro que acabou lá também, mas a minha cidade tinha exatamente isso; eu vivi isso, essa condição medieval mesmo. A própria casa do meu avô, o pai da minha mãe, funcionava quase como um pequeno castelo.
Meu avô era camponês, mas camponês mesmo. Ele tinha até um quê de religioso nesse sentido, ele gostava daquilo e tinha uma série de rituais. Quando voltava do campo, toda noite… Esse meu avô tinha um sapato, que era uma sola grossa com pregos de ferro embaixo. Toda noite, a primeira coisa que ele fazia era cuidar do sapato. Ele limpava todinho, punha na lareira pra secar. Durante o ano, preparava banho para o sapato sem sal - ele espalmava o sapato e deixava o calor do fogo absorver. Depois que tinha secado toda a umidade, ele espalmava e aí ele deixava lá pra vestir, pra usar no dia seguinte. Um dia, eu perguntei há quantos anos ele tinha, porque eu sempre via esse sapato. Ele disse que tinha esse sapato há uns trinta anos, mas todo dia ele cuidava do sapato, na volta do campo.
A casa dele funcionava quase como um pequeno castelo. Ele tinha uma cozinha, era uma cozinha grande; aquelas escadas de madeira, aquelas grandonas, que subiam pros andares de cima. Praticamente, a parte de baixo da escada era um depósito. Eu brincava, de criança, lá porque tinha saca de trigo, de fava, de milho amontoados. A gente se escondia literalmente, subia nas sacas de trigo. Ele tinha uma lareira grande, do lado esquerdo era o trapiche e do lado direito era o forno, então ali ele fazia o pão, o azeite, o vinho, fazia tudo dentro de casa. A minha avó tecia. E durante o inverno, quando não tinha trabalho no campo, ele fazia todas as coisas da casa: ele fazia cadeiras, fazia celas, fazia sapatos. Ele tinha uma série de ganchos do lado da lareira, que servia pra - ele fazia as vassouras de casa também - puxar assim, ele amarrava uma corda e dava pra fazer o feixe, pra amarrar; depois ele amarrava com ramo de salgueiro preparado, que ele deixava de molho. E isso eu acompanhei o tempo todo, quer dizer, vivi isso na realidade.
Mesmo quando faziam pão - porque o pão lá era feito -, era aquele pão grande que fazem até hoje, e era feito praticamente para durar o mês inteiro. E eles tinham um forno muito grande, então, quando era feito o pão, era feito pra umas três famílias, normalmente, porque era pra filha - pra própria filha, que era a minha tia -, e até pra uma vizinha que estava lá.
Isso também pra mim foi uma coisa muito marcante, pelo seguinte: as mulheres se punham a fazer a massa de madrugada, depois tinha que deixar fermentar a massa. Enquanto isso, iam preparando o forno, e quando elas chegavam, chegava a minha tia com os meus primos, a vizinha, com os filhos dela, sabe o que eles faziam? Meu avô já tinha levantado pra ir pro campo. A minha avó, minha tia já tinha levantado pra fazer a massa. Eles jogavam todos nós na mesma cama, na cama grande. São aquelas camas medievais, elas são realmente bem particulares. São aquelas camas enormes e, normalmente, elas têm três ou quatro colchões: o primeiro, embaixo, é de folha de milho, depois tem outro, de folhas mais delicadas, depois tem outro de lã e o outro de pena, de pluma de ganso, mais de plumas. E têm todos aqueles aros dos lados porque eles, quando a mulher prepara a cama - isso também é um trabalho, acho que vale a pena contar -, eles usam uma forquilha de madeira, uma forquilha mesmo de madeira comprida, mais ou menos da largura da própria cama, que depois elas guardam atrás da cabeceira encaixada. Elas fazem o seguinte: levantam todos os colchões, aí enfiam aquela forquilha dentro pra mexer em tudo, depois elas batem e fica tudo fofinho, e fazem isso com todos os colchões.
E também elas usam aquela forquilha pra fazer a própria cama - vão pondo lençol, cobertor em cima. Fazem a mesma coisa, pra não ter que dar a volta porque a cama fica bem alta, sabem que não dá pra puxar, pra arrumar. Elas, com uma mão, seguram uma parte do lençol e com a outra, com a própria forquilha, enrola e vai, e aí estica a parte. Na realidade, quando você deita numa cama dessa, parece que está deitado numa nuvem, sabe? A cama fica extremamente macia, extremamente fofa, e é enorme, altíssima, né?
Nessa coisa do pão, eles jogavam todo mundo, vinham todas as crianças nessa cama. Vinham e tacavam as crianças, ficavam todas assim; às vezes entravam oito, dez crianças na cama. Aí ninguém dormia mais. Mas nós ficávamos esperando, porque a primeira experimentação do forno era com bonecos de massa, aí faziam bichos, cavalos, cachorrinhos, gatinhos. E tinha até… Faziam, às vezes, com mel em cima e tinha até uma boneca que elas punham um ovo na barriga - mulher grávida, estava literalmente com o ovo na barriga.
Cozinhavam esses bonecos só para a primeira experimentação do forno. É lógico, vinha aquele cheiro de lá de baixo, e aí o que acontecia? Todos nós escada abaixo, pra ganhar o boneco que eles faziam pra nós, pras crianças também.
Outra coisa que pra mim foi muito marcante, fez parte da minha experiência pessoal e me lembro muito - isso me ajudou muito realmente tanto a fazer, a criar histórias, como na ilustração - [é] que nós tínhamos um contador de história. Isso é a coisa mais incrível que eu já vi na minha vida, porque ele era um sujeito meio doidão, mas ele morava fora dos muros da cidade. A cidade tem os muros antigos, era cidade medieval mesmo; pra fora dos muros é praça do mercado, onde efetivamente teve feira, todo mundo igualzinho tinha na Idade Média; o pessoal vai lá fazer as trocas, os escambos. Agora, é lógico, agora está circulando mais dinheiro, mas na minha época você não via dinheiro nunca, tanto que sempre todos fazíamos os nossos brinquedos - isso também eu vou falar um pouco, éramos nós mesmos que fazíamos, nós nunca ganhávamos. Não tinha nem costume, nem se pensava em ganhar brinquedo, toda a minha infância. E tem umas coisas que eram geniais, de curtição mesmo.
Mas eu estava falando do contador de história. Esse sujeito, ele era um pastor de ovelhas e morava num casebre de madeira - de madeira, não, de pedra - fora da cidade, uns duzentos, trezentos metros. Saía [da cidade], já era campo, um pouco mais, uns 500 metros. Tinha um carvalho enorme na frente e aquilo era como se fosse um pouco o mundo dele, porque era onde ele morava. Depois tinha muito campo em volta e as ovelhas dele pastavam nesse campo mesmo.
Ele era um tremendo contador de histórias. Mais tarde, eu vi que às vezes tinha uma história das “Mil e Uma Noites” mesmo, outra do “Decameron”, umas histórias que depois eu li e outras, mas ele vinha de uma tradição oral também. E era um negócio impressionante porque ele era tudo, ele tocava flautinha… Na realidade, ele ia contando a história e ia se tornando o próprio protagonista da história. Ele interpretava a história, tocava a música da história. Ele interagia com a gente de uma forma incrível. Por exemplo, tinha uma história tétrica, do irmão que esganou o outro irmão. Acho que até existem versões dessa [história], do irmão que matou o outro irmão, ele o enterra e depois nasce um bambu. Um vento batia no bambu e o vento virava palavras que contavam a história de como ele tinha matado o próprio irmão. Era uma das histórias que ele contava. Quando ele falava que o irmão… Na hora que o irmão degolava o outro, ele literalmente pulava em cima da gente com a faca de verdade, ele tinha uma faca e botava a gente pra correr. Vinha o susto, a gente dava risada.
Outro negócio: ele tinha uma habilidade… Tinha outra história, que era do grãozinho-de-bico. Era uma personagem que era pequenininha, do tamanho de um grão-de-bico, uma história que ele curtia muito e nós também. Nós éramos quinze, vinte em volta dele, íamos vê-lo dia de domingo. A gente saía da missa e nosso programa era ir lá, ficar em volta dele e ele contava essas histórias. Essa do grãozinho-do-bico é que ele achava mais engraçada, eu sempre achei surpreendente como é que ele conseguia fazer isso. Ele contava que o grãozinho-de-bico, numa certa altura, entrava no ânus do rei. E provocava as situações mais ridículas e constrangedoras, porque, de repente, o rei estava comendo na mesa e ele mexia lá e “pum”, o rei soltava um pum, aí todo mundo ficava assim... De repente, ele estava com a rainha, com o embaixador da França, ele também vinha essa coisa. O incrível é que ele conseguia fazer: na hora que ele contava que o rei soltava um, ele soltava igual, ele mandava um soco na barriga e “pum”. Todos em volta dele tentavam e não conseguiam! Você imagina, virava uma brincadeira! E era um negócio super engraçado. Isso foi outra coisa da minha infância que a gente viveu, eu e toda a turminha que é um pouco a minha geração, nós vivemos essa realidade.
Estava falando do negócio dos brinquedos também, né? Fora os que já tinham pião, depois apareceram as bolinhas de gude, as tampinhas de cerveja e refrigerante que nós fazíamos, tínhamos bolado. A cidade, ela é toda… As ruas da cidade, a maioria delas, na parte do centro, são ruas de um metro e pouco. E tem outro, quando a parte que contorna a cidade, que tem aquelas muretas de pedra, mais ou menos desta largura. Nós fazíamos em cima dessas muretas uma espécie de corrida, um circuito de corrida de carro, e a habilidade estava exatamente em não deixar cair do lado de fora. Mesmo na curva você tinha que mandar aquilo sempre em cima; se caísse, tinha que voltar ao ponto de partida. É lógico, quem ficava campeão pegava as das outras e aí a gente enchia de cimento, enchia de terra para balancear, pra equilibrar a chapinha, a tampinha. Cada um tinha a sua, preparava a sua. Era um negócio incrível, cada um preparava do jeito dele pra ter o peso certo, porque se você dava a tacada, ela ia, então não podia pular pra fora; tinha que dar a tacada certa na tampinha porque ela dançava.
Outro brinquedo incrível, que a gente ia criando e ia fazendo, era uma coisa que era um tubo de… Não era um tubo, era uma planta que tem um miolo mole que parece isopor - tem por aqui também. Ela era usada pra fazer vassoura, na realidade. A gente cortava um pedaço daquilo, tirava o miolo e virava um canudo. Depois, com outro pedaço de madeira, fazia um encaixe que entrava, mas só que ia até certo ponto, até certo... Porque tinha a manilha, que não deixava entrar bem fundo. Fazíamos uma espingarda com isso: com a estopa, punha num buraco e empurrava com esse pedaço de madeira. Ela ficava engatilhada até um determinado ponto. Quando punha o outro também, o ar comprimido de um empurrava o primeiro e ficava no lugar. E nós fazíamos guerra com isso. Tinha um alcance de trinta, quarenta metros, dava um estouro mesmo, “pow”! Fazia a gente… Punha na barriga, dava um impulso e aquilo partia. E quando a gente fazia isso, fazia guerra mesmo: a gente andava com uma latinha com suco de amora amarrada aqui, então quando punha a bala lá, a gente punha no suco de amora, porque na hora que batesse no cara, ficava a marca, ele não podia falar: “Não, não me pegou!”, ou alguma coisa nesse sentido. A gente mesmo fazia; tinha uns marceneiros, mas a maioria das coisas éramos nós.
A cidade era mais ou menos no alto e tem um rio que desce do lado, depois tem um rio que desce e cruza com esse, mais embaixo. Depois desse rio, vai um maior que chega até um rio grande, que é o que já vai pro mar. Esse rio também pra nós era uma festa, digamos. E nós andávamos em turmas de dez, quinze, vinte, que variava de uma idade de doze a treze anos até os quatro ou cinco.
Os menininhos que vinham atrás da gente eram chamados de caganigno, eram os caganignos, eles vinham atrás da gente. Eles estavam sempre juntos e tinham uns que eram bem invocados, eles seguravam mesmo. Nós íamos nadar basicamente num lugar que era uma cachoeira que não dava pé em lugar nenhum, era o nosso aprendizado. A água vinha da cachoeirona, tinha uma saída e do lado de cá tinha várias pedras, então era você pular de uma pedra a outra, às vezes de uma distância de um metro e meio, dois. Ia indo, até chegar lá. E assim aprendia a nadar. O cara que tivesse ganhado o diploma era o que dava a volta toda na lagoa, passava embaixo da cachoeira, também nadava. Quando eram crianças pequenas, a gente tacava.
Uma vez eu contei… Tem uma história [em] que estava o Ziraldo, a Zélia - conta pro Ziraldo, o Ziraldo lembra dessa história. Tinha um menininho que se chamava Giovanni, Giovaninho. O apelido dele era fagioletta - feijãozinho, né? Ele incorporou o apelido e ainda não sabia falar direito, então quando perguntavam a ele: “Como você se chama?”, ele falava: “ciagioletto”, falava fagioletta errado. Mas ele era super invocado e fazia tudo: ele mergulhava, a gente tinha que tirá-lo da água pra ele não se afogar, sabe? Ele não tinha a mínima censura, nenhuma, não tinha medo de nada. O que o grande fazia, ele queria fazer e fazia, com os dois braços se jogava na água, eu morria de ir.
Tinha uma coisa que era uma característica bem peculiar, pela própria posição da cidade. Quando estávamos lá embaixo na cachoeira, as mães, certa hora do dia, ficavam chamando e da cidade se ouvia que elas saíam na janela. Gritavam atrás da gente, onde estávamos dava pra ouvir, porque estávamos lá no fundo do vale, dava pra ouvir tal e qual. Um dia, a mãe chamou esse Giovanni. Ele estava lá, todo empolgado, nadando com a gente e mãe dele: “Giovanni!”, lá de cima. Aí o menino sumiu e foi embora, né? Depois de uns quase vinte minutos, nós o vimos lá na ponta da cachoeira. Acho que ele pegou toda a encosta do outro lado e subiu até lá em cima. Ele virou em direção à cidade e gritou, olhando assim... Falou, falando pra mãe: “Mamma, vaffanculo!”
P/1 – Qual a idade dele na época?
P/2 – E sua relação com os pais?
R – Minha relação com os pais é um tanto particular, porque a minha mãe morreu quando eu tinha quatro anos. Meu pai era militar; nesse período, ele ficou na Albânia, na Grécia, no norte da África e no fim na ilha de Filicudi, que é do arquipélago Eólias, daquelas ilhas da Sicília. Aliás, ele teve uma experiência muito parecida com o… Você viu o filme “Mediterrâneo”? Muito parecida, porque eles o puseram naquela ilha da guerra, quase no fim da guerra; uma patrulha de cinco pra ocupar a ilha, porque a ilha era italiana. E depois que terminou a guerra os deixaram lá; não trouxeram de volta, deixaram como quartel mesmo. Ele ficou lá até acho que 52, mais ou menos. Ficaram os cinco, acho que se relacionavam com o pessoal de lá mesmo. Tinha comida boa, azeite bom, vinho bom, peixe à vontade. Na realidade, o que eles faziam era desenhar o tempo todo, então...
Conheci o meu pai aqui no Brasil, porque em 52 ele me pôs num colégio de padre e veio pro Brasil. Ele se demitiu do Exército, veio pro Brasil e me pôs num colégio de padre. Nesse colégio eu tive uma experiência muito engraçada.
P/2 – O colégio lá na sua cidade?
R – Numa outra cidade, chamada Madalena - minha cidade é San Marco -, é uma cidade que fica a oitenta quilômetros de lá. E ele veio pro Brasil. Foi nesse período, porque depois que a minha mãe morreu, eu fiquei com uma tia um tempo - na realidade, ela é irmã da minha avó. Ela tinha um marido prisioneiro na África do Norte, era prisioneiro dos ingleses. Quando o marido dela voltou, eles emigraram pra Argentina, aí eu fiquei um pouco com a mãe do meu pai, aí meu pai me levou pra esse colégio. Só que eu não fiquei nem um ano nesse colégio, porque foi assim: era um colégio de carmelitas, um colégio muito rígido, sabe? Na verdade, os meninos desse colégio eram preparados para serem padres. Quer dizer, os carmelitas são os da clausura.
Logo que nós entramos no primeiro... A primeira coisa que eles falavam, deram três regras básicas: que não podia falar alto, não podia falar palavrão e agressão física. E eles deram medalhas. Era assim: você ficava com a medalha e tinha que passar a medalha adiante. A medalha de bronze era pra quem falasse alto, a medalha de prata pra quem falasse palavrão e a medalha de ouro pra quem agredisse, brigasse fisicamente, essas coisas. E tinha que falar sempre sussurrado, baixinho mesmo.
Mesmo quando a gente estava no pátio do convento, que falavam um com o outro, lá tinham o costume de não se falar de lado, não sei por que. Um ficava na frente do outro, então, quando iam andando, [faziam] assim, pra lá e pra cá. Quando você falava, ele ia andando de ré até chegar à parede, aí você vinha, voltava de ré e ele andando de frente. Essas coisas, mas sempre baixinho, baixinho.
Deram essas três medalhas e quando eles rezavam depois do jantar, tinha uma hora na sala tipo recreio. Quem ficasse com a medalha era punido no dia seguinte. Desde a punição do recreio, quer dizer, ficar sem recreio, até ficar a pão e água - enquanto os outros ficavam comendo nas mesas, bonitinhos, no refeitório, você ficava de joelhos no meio do refeitório com um piresinho, um copo de água e uma fatia de pão. E era uma coisa assim, era mais a humilhação, na verdade.
O que aconteceu com essa história de medalha, que eu não sei por que, porque eu vinha assim de uma... Poderia ser um pouco selvagem na época, porque eu vivia sozinho, entendeu? Não sei por que, a primeira coisa que me ocorreu… Não fiz nem [por] pensar em sacanear a coisa, mas eu ficava com as três medalhas pra mim o dia inteiro. Deixava todo mundo falar o que quisesse, não passava pra ninguém. Porque, logo no começo, achei um puta de um negócio. Você imagina na hora do recreio, o cara o tempo todo te enchendo o saco. Você estava lá com a medalha. Se você falava alto: “Toma uma medalha porque você falou alto.” O outro: “Toma, você falou palavrão, toma a medalha.” Virava uma… Aí, não sei por que eu falava: “Vou ficar com essas medalhas pra ninguém encher o saco.” Só que depois [tinha] a vergonha grande que eu tinha que passar com as medalhas.
Tinha o cara que era, basicamente, o puxa-saco de padre, tinha um que era porcão, cuspia, tinha o outro, que era efetivamente o agressivo. Então eu chegava em um - me lembro até que chamava Pepino. Eu chegava pra ele e falava: “Pepino, você é um puta de um puxa-saco!” Aí ele falava baixinho no meu ouvido: “Para, Iacocca” - era chamado pelo sobrenome. Aí eu insistia, insistia, até que uma hora: “Para!!!” (gritando) Eu falava: “Você falou.” Aí eu chegava pro outro, que era esse gordo porcão - se chamava Mário, aí eu falava assim: “Sua mãe transou com dois...”, imagina, e uma hora ele chegava: “Filho da puta é você!” Dava outra medalha. Aí chegava pro outro, um cara que se chamava… O sobrenome dele era calabrês. Eu cutucava assim, batia atrás dele no pé: “Tum tum tum”, pra ele chegar e eu falar: “Desculpe.” Aí eu ia: “tum tum tum”. Falava: “Desculpe, foi sem querer.” Uma hora ele vinha com tudo em cima de mim, falava: “Toma a medalha, é agressão física.” A coisa funcionava um pouquinho, logicamente, funcionava uns dias. A partir daí eles começaram a perceber, e aí, lógico, me botaram a pão e água, botaram a primeira vez e começou aquela espécie de perseguição.
Ora, tinha umas coisas lá que, eu nem sei, mesmo na época me soavam esquisitas, por exemplo: os padres no salão às vezes chamavam a gente com o nome de santo, santa. Eu não estava lá, não sabia… De um lado, eu não sabia como regular pra poder agradar e no fim, eu mal tinha dez anos. E do outro lado eu percebia que aquilo não tinha muito a ver.
Mas aí aconteceu um negócio: tinha um menino, esse era piradinho mesmo. Um dia nós estávamos na aula de matemática, e ele, acho que tava a fim de soltar um pum. Tentou segurar, coitado, e saiu aquele fiapo, sabe, aquele “fii”. Imagina, ele ficou vermelho que nem um pimentão, todo mundo olhando pra ele. E o puxa-saco: “Ah, foi ele!” Tava na cara que tinha sido ele, a escola inteira percebeu que foi ele. E o professor, que era um padre, mas sabe aquele padre nojento? Ele fez aquela cara de nojo e saiu da sala. E aí o botaram a pão e água, o coitado. Eu já tinha ido algumas vezes, não tava nem aí; a coisa não me pegou nem a primeira vez, cheguei assim: “Tudo bem, tranquilo.” Mas ele levou a mal, ele se sentiu humilhado. Ele estava lá, de joelhos, no meio do refeitório.
Nosso refeitório, pra vocês terem ideia, era aquele refeitório em “U”, sabe? Na parte da frente tinha todos os padres, desde o reitor do convento. Do lado de cá eram todos os noviços, os que iam se ordenar, e do lado de cá éramos nós, uns quarenta, quase cinquenta. Então eram aquelas três mesonas imensas. Agora, se comia muito bem, porque quanta comida! Só que tinha sempre quem ia buscar a comida, todo mundo se revezava, nisso era absolutamente democrática. Até o reitor pegava e servia a mesa, cada vez um, todo mundo.
Também tinha a mesma coisa: quando se comia, ninguém podia falar, mas quando alguém estava lá no meio, e eu dizia: “Você tava lá no meio”, e tinha três mesonas em volta de você, você de joelhos no meio, com todo mundo comendo... Eles eram sacanas mesmo nesse sentido: quando viam que o cara se irritava, eles reforçavam a coisa, aí é que o cara estava com permissão pra falar. Ele batia com a faca no copo dele, era o sinal que podia se falar, pra quê? Pra encher o saco do coitado! Tinha o padre que falava: “Ah, esta sopa está uma delícia! Pena que tem alguém que não possa saborear!” E o menino chorava, pingava lágrimas assim, e eu ficava com pena.
Mas aí, um dia, ele… Ele, por causa disso, começou a se ligar a mim. Ele ficou tão sentido com essa história do padre, achou que era sacanagem que o padre fez com ele, que nunca deveria ter colocado ele a pão e água por causa disso, que foi sem querer, escapou. Um dia, ele chegou pra mim e falou assim: “Hoje vai ser a minha vez de servir na mesa. Presta atenção.” Eu: “Tudo bem!”
De fato, ele foi. Fui olhando: ele pegou o prato, na hora de pegar o prato da sopa do padre ele estava com o dedão enfiado na sopa do padre. O padre, a mesma coisa: fez cara de nojo e saiu da mesa. E ele, todo feliz da vida. Depois veio falar comigo: “Você percebeu?” Eu falei: “É claro, eu vi.” Falou: “Tava com o dedão enfiado na sopa dele. Você nem sabe, meti o dedão.” Você imagina o que tinha no dedão, né?
Virou uma guerra com ele, sabe? Ficou assim, nossa senhora!
Um dia, nós estávamos jogando bocha. Meu parceiro era o padre, que também era o nosso instrutor. Era o que dava aula de matemática, mas era o que tomava conta, se chamava padre Felice - [em português] padre Félix. Esse menino era o meu adversário e ele jogava bem bocha e pingue-pongue - aliás, antes disso, teve outro episódio com ele também, com o puxa-saco, o Pepino. Um dia, o Pepino estava levando, e tinha aquela risadinha dele, sabe aquelas risadinhas de puxa-saco, “nhéééééééé”. Então ele mandava a bola, aquela bola que vai rasteira e difícil de pegar, aquela que passa. E ele falava: “Pega esta”, “pá”, me mandava. Ele tentava pegar a bola e ia pro beleléu. Ele foi ficando puto, até que numa ele estava perdendo; na hora que o cara mandou a bola, ele pegou a bola com a mão, deu em cima do menino e tacou a bola na boca dele: conseguiu porque o outro estava de boca aberta. Ele meteu a bola na boca do cara. E pra tirar, rapaz? Nossa, a bola ficou entalada na boca. Nessa também, ele foi a pão e água.
Mas essa história da bocha foi o seguinte: ele também jogava bem, encostou a bocha no bolinho e deu aquela risada pra mim. Eu tinha duas alternativas, porque a gente jogava só quatro bochas: ficar com as duas bochas na mão ou dar aquela pancada seca, que a sua [bola] bate seca, a dele vai pro beleléu e a sua fica no lugar, ou você tenta aproximar da outra tal e qual pra ver se consegue fazer um ponto, que são quatro bochas pra cada time de dois, cada um joga com duas bochas.
Eu estava com as minhas duas bochas na mão, falei pro padre: “Eu vou bochar, vou tentar essa jogada de bater.” O padre falou: “Não, não tente que você não vai conseguir.” Eu falei: “Eu vou!. “Não, não vai!” “Não, eu consigo!” Aí mandei e não consegui, a bola foi pro espaço. Aí o padre gritou no meu ouvido, falou assim: “Eu falei que você não ia conseguir!” Eu estava olhando a minha bola indo pro espaço, e quando você joga a bola, automaticamente passa a outra bola pra mão direita. O padre gritou no meu ouvido: “Eu falei que você não ia conseguir.” Eu falei: “Puta!” “Paf”, taquei a bola e acertei o dedão do padre. Acertei o dedão sem querer, nem olhei, na hora que eu joguei a bola no chão. O padre deu um berro, mas um berro! Tudo bem, ficou por isso mesmo, me botaram também, perdi o recreio. No dia seguinte, o menino chega pra mim e começou a falar comigo: “Você viu o berro que o padre...” Eu falei: “Claro que eu vi, fui eu que...” “Você achou o berro dele normal?” Eu falei: “Pô, eu acertei o dedão dele, que estava de sandália” Sabe sandália de padre? Uma bochada em cima do dedão dele. Ele falou “Não, mas eu acho que ele não é normal”, assim mesmo. “Você não acha que ele está possuído?” Aí eu falei: “Bom, e daí?” Deixei por isso mesmo.
Mas no colégio tinha um… No convento tinha um padre que era deste tamanhinho, diziam que tinha mais de cem anos. Estava meio gagazinho, meio caquético, mas ele tinha fama de santo: dizem que quando era moço ele tinha sido bandido, tipo cangaceiro, brigante, sabe? Depois, ele havia se convertido, então tinha toda aquela fama de santo naquele convento. Eu comecei a ver o menino com o padre, nesse jeito de andar, conversando, “tatatá tatatá”, pra lá e pra cá, conversando com o padreco e eu lá falava: “O que ele tem tanto que falar, conversar lá com o padre?” Um dia, ele chega pra mim e fala: “Eu conversei com o padre Augustinho. Ele me explicou direitinho como é que faz o exorcismo.” Então a mesma coisa, encerrou o assunto.
Uma noite ele chegou pra mim, ele me chamou. Sabe o que ele tinha feito? Ele tinha pegado um daqueles manuscritos na biblioteca do convento, tinha ido à oficina onde consertavam as estátuas. Tinha uma estátua do Santo Antônio [em] que ele está com o pé em cima de uma caveira que é o diabo; ele arrancou a caveira da estátua - a estátua estava consertada [antes]. Pegou dois castiçais, aí me chamou, me mostrou tudo aquilo e falou assim: “Vamos lá.” Eu também levei na brincadeira. Sabe o que ele fez? Ele botou os dois castiçais, pegou o livro, abriu o livro na mão, botou aquele símbolo em cima do livro, os dois castiçais na frente, pra exorcizar o padre. Chegamos perto da cama do padre - ele dormia no nosso dormitório, não acordava porque ele tomava conta da gente, mas ele acordou um pouco antes da gente chegar nele, estava andando ao encontro. Putz, mas o escândalo que ele fez! Evidente, a molecada toda acordou. Todo mundo começou aquela coisa de um jogar o travesseiro no outro, pulando em cima, aquela algazarra toda típica.
Começou a vir padre. Os padres entravam no dormitório, encostavam aqui, de um lado e do outro da porta e ficavam com a mão dentro das mangas. Formaram aqueles dois semicírculos. Aí a coisa começou a acalmar, sabe, os meninos começaram a silenciar. Imagina a gente, como é que ficou. Não sei por que o expulsaram, não expulsaram a mim. Chamaram os pais, mandaram ele embora.
Ele ficou triste, chorava. E ele me deixou de herança, na hora em que foi embora, o lenço - ele tinha um lenço azul de bolinha branca, que ele ficava fazendo micagem quando o padre rezava a missa. A gente achava que era uma sacanagem dele, porque ele fazia o seguinte: nós acordávamos às quatro horas da manhã, tinha que se preparar, fazer tudo, e às 5 horas tinha a missa, toda manhã. A gente tinha que ouvir sempre a missa de joelhos, aprendia a servir missa em latim, aquela coisa toda. Enquanto o padre levantava o cálice, ele embrulhava aquele bendito lenço e imitava o padre - lógico, todo mundo ria.
O padre, sabe o que ele fazia? Ele parava a missa, se despia inteirinho, tirava todos os paramentos, e ia na sacristia. Ficava sentado, um silêncio absoluto, aí voltava, se vestia tudo de novo e continuava a missa. A gente falava: “Para com isso, meu!” Mas ele era assim. Quando foi embora, os pais dele vieram buscar, ele deixou o lenço pra mim, me deixou um sapato - só o pé esquerdo, sem ter andado com o pé direito, e me deixou uma caixa de bombom.
Sabe que depois que ele foi embora, pra mim, perdeu a graça lá dentro? Aí eu também decidi: vou embora, do mesmo jeito.
Sabe o que que eu fiz um dia? Nós fazíamos um passeio toda quinta-feira. Era um passeio de 35 quilômetros; saíamos às cinco horas da manhã e ficávamos andando até as 5 horas da tarde sem parar. Até o lanche a gente comia andando, toda quinta-feira. E num desses passeios eu fui numa delegacia, falei que eu tinha me perdido e mandei me levarem de volta pra casa, pra casa da minha avó. Eles me levaram. Depois [que] eu cheguei lá, falei pra minha avó: “Não quero voltar lá, de jeito nenhum.” Coitada da minha avó, não sei o que passou na cabeça dela. Ela falou assim: “Tá legal, não vou te mandar de volta.” Ela não me mandou de volta e tudo bem. Então ficou por isso mesmo e não voltei mais pro convento.
Depois disso, ela morreu também, e eu fiquei sozinho. Acho que foi o melhor período da minha vida, pra falar a verdade. Eu andei bastante, depois morei uns anos em Benevento, onde estudei. E aí conheci um tipo de esquema pra mim, que fazia no verão: eu trabalhava em bar, cervejaria, sorveteria, pra segurar um dinheiro pra me sustentar durante o inverno e poder continuar estudando. Às vezes não dava mesmo. Mas durante o inverno também podia, às vezes, trabalhar de lanterninha no cinema, e às vezes com marceneiro, às vezes com alfaiate. Então dava sempre pra equilibrar um pouco as coisas.
P/2 – E o seu pai no Brasil, nessa época?
R – O meu pai no Brasil. Meu pai, praticamente… Quase não tinha, a gente se correspondia muito pouco. Eu só voltei a me corresponder com ele quando quis ir embora porque depois desse período eu consegui estudar, fiz até o clássico. Depois eu arranjei um belíssimo emprego na reforma agrária, na área de engenharia civil. Foi aí que depois de uns três anos que eu estava lá - e olha que eu estava numa boa, porque eu comecei como desenhista. Fazia desenho em cálculo de casa, que se chamava o cúbico métrico estimativo. Era tudo calculado por metro cúbico, desde areia até tijolo, pedra, ferro; era um tipo de cálculo onde não tinha desperdício, era um cálculo feito pro projeto ser aprovado. Quando estava trabalhando nisso, depois de um período… Depois que eu parei de fazer, foi contratado outro sujeito pra fazer o que eu fazia e o meu chefe, engenheiro, começou a me levar com ele pra trabalho mais executivo. Estava na boa, ganhando bem, mas de repente me deu vontade realmente de conhecer o mundo mesmo, uma coisa até meio romântica.
P/1 – Michele, só uma coisa. O senhor desenhava desde pequeno?
R – Não.
P/2 – Como é que começa essa história?
R – Desenhava assim… Sabe o que eu fazia? Grande, mas não tão bem-feito... Mais malfeito, mas eu fazia um pouco o que o Gepp e o Maia faziam no Jornal da Tarde, lembra, um tempo atrás. Eu desenhava cena de futebol na classe pra encher o saco dos colegas. Desenhava como o cara tinha marcado o gol, como não tinha marcado, quando ganhava. Eram essas coisas que eu fazia, mas comecei a desenhar aqui mesmo na [Editora] Abril, comecei a fazer cartum mesmo, logo de cara. Não sei, por que não estava preocupado com desenho, mas isso veio um pouco da vontade, porque na Itália eu escrevia, escrevia. Tem um período que escrevi uns contos que nunca editei, evidentemente. Quando eu vim pra cá até tem umas coisas razoáveis, mas quando vim pra cá a própria dificuldade que eu tinha de falar português me levou pro cartum e pra ilustração. Agora não, agora estou escrevendo, fazendo livros meus com textos que vão ser editados, mas nesse período foi um período da adolescência, digamos… Foi uma coisa muito legal, uma experiência muito rica, porque conheci muita gente, aconteceu muita coisa. Não foi nada de muito complicado, muito difícil, é… Médio. Implicava em outras coisas, por exemplo: implicava, às vezes, em solidão, implicava, às vezes, em falta de grana, mas à falta de grana já estava acostumado. Tinha vez que até jogava baralho pra ganhar livro e caderno; apostava gibi, figurinha, essas tampinhas. Mas isso porque eu me dei conta, pra mim ficou muito claro que eu tinha que estudar, sabe? Que o único caminho que eu tinha pela frente era efetivamente estudar.
Eu fui a Benevento, que era capital da província, e fiquei lá, morando. Era o bairro mais antigo. Por outro lado, Benevento é uma cidade de quatro mil anos, era colônia grega. A lenda diz que foi fundada por Diomedes, que era aquele amigo do Ulisses. Então, uma cidade… Realmente, ela tem a parte grega, a parte romana, a parte normanda, a parte bizantina, que é a cúria. E é uma cidade que sempre foi importante, mesmo na época de Roma, onde teve as grandes batalhas, onde o Aníbal foi derrotado, onde Pirro foi derrotado, onde os normandos expulsaram na batalha, chamada Batalha de Benevento mesmo, expulsaram os árabes do sul da Itália. Depois houve também os normandos pelo Felipe II, então é uma cidade muito importante. Ela está no caminho que era o caminho do Oriente mesmo, porque está no caminho entre Roma e Brindisi, e Brindisi era a saída pro Oriente dos romanos. Essa cidade é exatamente no meio do caminho, onde tem o arco do imperador Trajano, onde tem a estátua do Júlio César, aquela, a original. Onde tem um dos castelos mais bonitos dos vikings dos normandos. E onde tem uma réplica da Catedral de Santa Sofia de Constantinopla, porque, numa ocasião, a corte de Bizantina, quando brigando, estava sendo atacada pelo Império Otomano, a corte Bizantina se refugiou em Benevento. Ficou oitenta anos lá, e até os papas ficaram cinquenta anos numa ocasião, na Idade Média.
Tinha isso, uma cidade [em] que eu estudava no anfiteatro. Era um anfiteatro muito preservado, tinha até as temporadas de verão que faziam cenas ainda, as tragédias gregas lá. Isso tudo pra mim teve muito… Por outro lado, me deu uma riqueza muito grande, me deu um lance de vida, de experiência de vida, de vontade. Por incrível que pareça, em vez de eu me sentir um coitadinho, muito pelo contrário, sabe? Dava uma sensação de luz mesmo essa coisa toda; me fascinava, de certa forma, poder ter essa experiência. Morei, por exemplo, na casa de uma prostituta durante um ano e pouco, sabe? Eu nunca tive nada com ela e nem com nenhuma das prostitutas que estavam, mas eu ficava num canto que tinha só a minha cama e meus dois criados-mudos eram os meus livros, eu tinha livro de monte.
Teve uma fase que eu tinha livro de monte, sabe por quê? Porque eu fiz acordo com o jornaleiro, que era jornaleiro e livreiro. Eu ia entregar o jornal pros assinantes toda manhã e ele me dava livros em troca. Livros que eram encalhe, porque, na época, o cara não precisava devolver o livro inteiro, devolvia só a testada do livro. Ele tirava aquilo e devolvia pra editora, porque o livro, teoricamente, era pra ser picado e queimado, até pra evitar custo de correio, aquela coisa toda de devolução. Ele me dava esses livros, né? E aprendi a ler, quer dizer, peguei o gosto pela leitura. Foi uma paixão muito cedo - na verdade, foi com treze, quatorze anos. Hemingway, Vandelli, lia, lia.
Também tinha gente que me orientava. Eu sempre conheci gente legal; falo desde professores legais até, numa ocasião, o padre, que era o padre motoqueiro, um padre comunista, extremamente culto. Esse padre me dava umas dicas das melhores coisas. Então foi um período que vai dos doze aos dezoito anos de idade - onze, doze anos, dezoito anos pra mim foi um período maravilhoso. Tanto no sentido de sobrevivência, porque eu, durante o verão, juntava a molecada… Coincidia com a época da colheita do trigo e o camponês não tinha tempo de colher. A gente colhia, enchia as cestas, rachava o dinheiro com o camponês, vendia com ele na cidade. Depois rachava o dinheiro entre nós. Às vezes, efetivamente, ajudava a trabalhar no campo, sabe?
Pra mim, foi um período muito rico. Depois eu voltei e me empreguei lá, aí depois eu quis vir embora. Eu fui ver no globo mesmo qual era o antípoda da Itália: era a Nova Zelândia. Fiz tudo pra ir pra Nova Zelândia, fiz a demanda, tudo. Aí me chegou um contrato de trabalho pra ir cortar madeira no meio do mato, a não sei quantos quilômetros do centro habitado. Nossa! Eu fiquei fascinado com a ideia, me senti um John Wayne. Achei que... Vou lá, fico dois meses trabalhando, depois pego a grana, tomo todas e como todas, sabe aquelas coisas? Fantasiei isso pra cacete.
Paralelo a isso, tinha o negócio do [serviço] militar. Quando fui me alistar a primeira vez, eu estava dois quilos abaixo do peso mínimo. Só que, em vez de me dispensarem, me deram o papel com o carimbo escrito “a ser revisto”. Aí tinha que voltar de seis em seis meses, me apresentar pra me pesar até os 25 anos, pra ver se eu engordava os benditos dois quilos. Imagina! Eu andava de bicicleta, nadava, fazia o diabo, comia duas vezes por dia, tudo para não engordar os benditos dois quilos.
Ao mesmo tempo, pensei no meu pai aqui. Sabia que o meu pai estava aqui no Brasil e pensei: se aquela coisa da Nova Zelândia demorar muito, eu vou pro Brasil, porque aqui eu podia vir a hora que eu quisesse. Eu me dei um prazo - lá é tudo burocrático, tinha que ir ao consulado. A demanda que eu fiz foi na de imigração mesmo, sabe, de emigração e imigração lá. E foi, efetivamente, tinha que esperar ser chamado mesmo. E me dei um prazo: “Se de tal período até tal período não me chamarem, eu vou pro Brasil.” E foi o que eu fiz, falei e fui pro Brasil.
Ainda aconteceu uma coincidência engraçada, porque quando o meu pai me pôs no nesse colégio, ele me levou e ele estava com uma namorada. E aí, quando eu decidi vir pro Brasil, fui ao consulado de Nápoles pra ver o negócio do visto. Eu encontrei um sujeito lá, um cara baixinho que perguntou pra mim se eu era agente de turismo. Eu falei: “Não, tô querendo ir pro Brasil.” Ele bateu na barriga e falou: “Estou com o Brasil na barriga porque eu tomo café o dia inteiro.” Aí engatou papo comigo. Durante o tempo o cara foi se enturmando, foi falando: “Eu ando muito chateado ultimamente, porque a minha filha Angelina está namorando um babà al rum.”
O baba é um doce fofinho, feito com rum; uma espécie de papo de anjo, sabe? Vem dentro de um copo, ele vai pra fora e come com chantilly. Ele é muito gostoso, é esponjado e bem molhado de rum. E o cara chega pra mim e fala: “A minha filha está namorando um babà al rum.” Eu não entendia mesmo, quer dizer, ela era meio louquinha, sabe aquela coisa? Mas aí ele pegou e falou assim: “Porque o fulano chega na minha casa toda a noite” - o cara era halterofilista - “ele chega lá na minha casa falando ‘Boa noite, Dom Archangelo’. Boa noite! O cara é bicha”, falou. Aí ele falou: “Mas outra noite eu deixei os dois sozinhos na sala e fiquei lá de butuca, de olho. Você sabe que o cara não encostou nem um dedo na menina? Nada! E aí, o que eu fiz? Dei um pé dentro da sala, falando: “Não quero veado aqui dentro.” Botei o cara pra fora.” Ele falava assim: “Agora, a menina chora. Você choraria por um cara desses?”
Nessa me lembrei do nome dele, você vê que coisa incrível. É Archangelo, porque Archangelo é um nome que você guarda. E me lembrei, exatamente nesse dia que me levaram pro colégio, que essa namorada do meu pai estava conversando e falando da família dela. Me lembrei do nome dele, que era cunhado dela, ele era casado com uma irmã dela. A irmã dela, uma tal de Rosa, era casada com um tal chamado Archangelo. Aí eu falei pra ele: “Por acaso a sua mulher se chama Rosa?” Ele falou: “É.” Falei: “Ela tem uma irmã chamada Luísa?” Ele falou: “É.” Era ela, a própria namorada do meu pai. Ele ficou todo assim e me levou lá na casa dele. Eles não se viam também fazia mais de dez anos. Perguntou como é que… Falei: “Ah, meu pai tá no Brasil.” Ele falou: “Ah, me dá o endereço.” Eu dei o endereço, eles se escreveram, casaram por procuração e ela veio comigo pra cá. Ela veio comigo, aí [teve] uma filha que nasceu aqui, Feliciana, a outra irmã. Morreram os dois agora, ficaram juntos o resto da vida.
P/2 – Eles há dez anos não se viam?
R – É, mais de dez anos. Uns doze, treze anos que eles não se viam.
P/2 – Nossa! E conta um pouco mais pra gente sobre essa sua vinda pra cá.
R – Bom, quando vim pra cá, eu vim nesse sentido: eu vim pro Brasil. Vim eu, ela e trouxe o meu irmão também, o pai do Tiago, ele quis vir também. O meu irmão é filho de outra mãe, meu pai casou depois com a mãe dele, mas a mãe dele morreu muito cedo, porque foi naquele período depois da guerra, que teve uma epidemia de tifo. E ele tem uma história, porque o meu pai, na verdade, raptou a mãe do meu irmão, aquelas histórias da época. Ele a queria, mas quando foi pedi-la em casamento o pai dela falou que tinha que casar a primeira filha. Sabe aquelas coisas do sul da Itália, que não podia namorar a mais nova? Ela era a mais nova, tinha que ser a mais velha. Eu não sei o que ele propôs, ele falou: “Tá legal! Então vou namorar a mais velha.” Mas ele ficava lá, namorando a mais nova. E numa certa hora pegou um sujeito lá... Tipo, um cara que tem uma história muito engraçada também. Raptaram a menina, depois o pai dela foi atrás dele, mas nessas alturas eles acabaram casando. Mas ela morreu cedo também.
Ele [meu irmão] estava com os avós dele. Ele quis vir, eu falei: “Então vamos!” Viemos nós três: eu, ele e essa mulher do meu pai. Aí eu cheguei aqui, fui trabalhar num... Cheguei aqui em 63. Fui trabalhar num escritório de engenharia, por causa dessa experiência que eu tinha na Itália, quando estava sendo feito o Edifício Itália, construindo. E eu fazia isso por... Eu trabalhava por produção nesse escritório, e eu fazia, desenhava as vigas. Claro, você tinha uma orientação: cada andar tinha uma determinada espessura, determinado tipo de ferro. Mas a gente fazia o cálculo da viga, do peso dela, e ia desenhando, projetando viga por viga, era por metro linear. A gente trabalhava aqueles rolos de vegetal, vinha puxando, puxando e desenhando.
Pô, eu trabalhava pra cacete. Quando comecei a descobrir que a gente ganhava por mês um pouco mais do que o salário mínimo - o salário mínimo era vinte mil cruzeiros e a gente ganhava 28, trinta, por aí. Quer dizer, vinte, trinta por cento a mais do que o salário mínimo. E aí eu, ingênuo nessa coisa.
Aliás, isso foi engraçado porque quando teve a bendita revolução, eu não estava nem entendendo o que estava acontecendo, porque a primeira coisa que eu pensei [é] que fosse uma coisa assim tipo Pancho Villa mesmo, sabe? Não sei por que razão, mas tinha gente dando tiro por aí, aquela coisa toda. Eu já estava em São Paulo, não era tanto absurdo. Mas aí eu perguntava pro pessoal que trabalhava comigo e ninguém sabia de nada, depois eu saía na rua e via aquela passeata daquela da família, daquelas mulheres, sabe? Uma porção de senhoras pela ordem. Eu achei esquisito, sabe? Mas demorei pra entender que era golpe de Estado, que era um golpe militar.
Foi nesse período, logo em seguida que chamei o pessoal vivamente e vi que todo mundo estava ganhando pouco. Então eu falei: “Por que a gente não faz um abaixo-assinado e pede, por que não aumenta?” Afinal de contas... Juntos, eles eram três sócios nesse escritório, funcionários, os desenhistas. Tinha um engenheiro, só que era japonês, o restante era tudo desenhista. Eles estavam fazendo paralelo com o que ele estava fazendo, um prédio pra eles na Praça Vilaboim mesmo, sabe? É um daqueles prédios da esquina com a Rua Piauí, na praça. A gente foi visitar numa ocasião.
Pô, os caras em cima de vinte sujeitos. Estão construindo o prédio deles, eles podiam pagar um pouquinho mais. E aí eu fui, né? Perguntei pra todo mundo: “Vamos fazer um abaixo-assinado?” Todo mundo topou na boa. Aí a gente fez e eu encabecei o negócio.
Eu não sabia nem escrever direito; peguei um amigo, um deles que se chamava José de Anchieta, pra me ajudar a redigir a carta. Ele me ajudou efetivamente e eu fui lá e mostrei. Eu mesmo fui lá, peguei a carta na boa, sabe, absolutamente conciliatório. No dia seguinte, pé na bunda. Me chamaram e me mandaram embora direto, ainda com ameaça: falaram que eu não tinha direito a nada, se eu falasse alguma coisa ia ser um subversivo, porque tinha esse papo. É claro, na hora me chateei pra cacete, achei sacanagem, mas aí que virou tudo pra mim.
Foi muito bem ter acontecido isso porque eu tive que me virar um pouco. Acabei sendo até balconista - balconista, não, vitrinista das Lojas Marisa, durante dois meses. depois eu conheci o Bigande, que morreu recentemente. O Bigande, não sei se você sabe, era aquele que fazia charge no Estadão antes da Ilke. Ele era um sujeito que tinha vindo da Itália, a Cinzano o trouxe pra cá pra ser diretor de arte da Cinzano aqui no Brasil. Depois ele foi trabalhar numa agência de publicidade na [Rua] Sete de Abril, perto de onde era a TV Tupi na época, que todo mundo falava que era Sonrisal. Ligava pra lá: “Agência de Sonrisal”. Ele era um cara incrível, tinha estudado no Centro Experimental de Cinematografia de Roma junto com o Fellini e com o Antonioni, só que ele fez cenografia. Esse cara tinha uma habilidade pra desenho que era um negócio espantoso.
Ele fazia desde aqueles desenhos, aqueles cenários cenários pintados que serviam pra filmar mesmo pra você, do real até tudo quanto era tipo de desenho. O cara ganhava prêmios em cartaz de Bienal, fazia cartaz pra Bienal pro mundo inteiro: fazia pra Hungria, pra... E aqui também, muitos dos cartazes da Bienal aqui de São Paulo eram dele. Na hora do almoço, ele fazia de memória pra dar de presente… Fazia umas vinte, 25 aquarelas de paisagem, de rua, da cidade, simultaneamente. Ele fazia numa hora, pegava as tintas e fazia “tchá tchá”, manchando tudo. Tudo isso pra dar cartão de visita, coisa assim.
Ele tinha uma habilidade pra desenho que é um negócio extraordinário. E ele é um cara totalmente hipocondríaco. Andava sempre vestido de terno. Sempre, todo santo dia ele usava um guarda-chuva. E toda vez que a gente dava a mão pra ele, ele entrava em pânico. Ele tinha no bolso do paletó aquela garrafinha de bebum, só que tinha álcool, aí ele se escondia num canto e ia “chhuuu”, dava uma esfregada na mão e aí ficava sossegado.
Ele era mesmo doidão. Mas ele, de certa forma, me levou lá. Depois eu fui pro estúdio Ricardo Conti, que era um cara que na época usava o aerógrafo. Ele que fazia aqueles carros, eram tudo italianos, esses caras. Ele fazia aqueles carros, o carro seccionado, desenhado todas as engrenagens. Aquilo era tudo feito no aerógrafo, parecia foto hiperrealista, sabe?
Quando eu fiquei no estúdio dele um período, ele estava fazendo um painel. Foi a primeira… Foi quando ainda ia ser inaugurado o primeiro supermercado, que eu acho que era o Peg-Pag. Ele fez um painel da parede inteira, como se fosse uma fotografia do supermercado, com todos os produtos que você via até lá no fundo, a latinha de ervilha com a marca, com os artigos. O desenho dele era muito mais do que a fotografia, porque a fotografia não alcançava o que ele alcançava com o desenho. E o cara era incrível.
Na época, ele tinha umas regras de equipamento, tinha aquela coisa pra mascarar tudo. Era um trabalho do cão, tinha que ter um saco pra fazer aquilo e era tudo no aerógrafo, tudo mascarado, tudo feito. Então eu fiquei um período também no estúdio dele, o Bigande me levou pra lá.
P/2 – Mas como você… É Bigande?
R – É.
P/2 – Como você o conheceu?
R – O Bigande eu conheci nessa Servial, a agência de publicidade. Um dia, eu fui lá. Ele estava, fiquei conversando com ele, aí depois ele falou: “Ah, quer ficar um tempinho aqui?” Eu fiquei, depois ele me apresentou pro Ricardo Conti.
P/2 – Entendi.
R – Aí foi o seguinte: eu preparei um portfólio. Na realidade, nesse período que eu fiquei, entrei, eu não recebia nada, foi uma espécie de treino meu. Eu preparei um portfólio, aí fui me candidatar como assistente de arte numa agência lá mesmo na Sete de Abril, que era a EPP, Empresa Paulista de Propaganda. O diretor de arte era um argentino, eu brigava o tempo todo que fiquei lá com ele. Esse argentino, ele tinha bolado o logo, aqueles bonequinhos da TV Tupi - não sei se vocês lembram daquele indiozinho que tinha aquelas anteninhas. Ele achava aquilo o máximo. Mas ele era um cara quadradão, sabe?
Era a época que a gente discutia cinema. A época realmente de ouro, que a gente falava de Antonioni, da década de 1960. Entre 64 e 68, em 68 eu já estava na Abril. Mas com esse cara também aprendi um pouco o jeito de fazer a coisa.
Depois tinha uma agência chamada Denison, não sei se existe ainda. [Uma] agência de propaganda que na época era Denison, era Thompson, antes da DPZ, dessas agências. Eles montaram uma agência bem grande e ela montou uma espécie de filial pra atender a conta de lotes de automóveis. Aí também começou essa coisa, porque começou a indústria depois de Juscelino: a Volkswagen, a Ford começaram a fabricar. A gente começou a abrir negócio de loja de carro, concessionária de carro, então a Denison fez uma filial pra atender esse mercado. Fui lá me candidatar e me pegaram como chefe de arte. Eu até lembro os valores - está certo que também tinha um pouco de inflação, mas não era tanto. Eu, por exemplo, no escritório de engenharia estava ganhando 28 mil reais. Quando fui contratado por essa agência, eu fui contratado por 920, depois da Abril foi pra 30.200. Então foi sempre um puta de um salto, nesse sentido foi legal. Foi até bom que aconteceu isso.
P/2 – E como você chegou à Abril?
R – À Abril não cheguei. Foi um amigo meu que tinha conhecido - se chama Alexandre, já morreu - ele trabalhava [lá]. Nessa agência eu cheguei a conhecer o Hernani Donato, que está ainda agora na Melhoramentos, e conheci um outro chamado ngelo Pizarro, que trabalhava na Abril no departamento de promoções femininas. Era lá na [Rua] João Adolfo, sabe onde é o hotel Cambridge? Naquele prédio da esquina, a Abril era lá.
O ngelo Pizarro já tinha me falado se eu queria trabalhar na Abril uma vez, mas quem me chamou mesmo pra trabalhar foi esse Alexandre. Saiu um cara e falou se eu queria ir pra lá. Fui nesse tempo pro departamento de promoções femininas, aí trabalhei com o Luís Carlos. Depois, com esse pessoal, pintou um monte de coisa porque depois de lá fui contratado pela [revista] Manequim, depois fui pra revista Intervalo, que era da Jovem Guarda, a que o pessoal… Esse pessoal, quando começaram a convencer todos eles, eles nunca entraram: o Gil, a Bethânia, aqueles meninos, até a época do Roberto Carlos e a turminha.
Eu fiz traduções na época do italiano pra músicas da Martinha, do Nilton César… No que eu estava lá, eles vendiam. Quer dizer, era o começo; no começo, eles ficavam muito na redação. A Cinira Arruda era repórter, até o Silvio Santos [me] convidou pra ser júri, mas foi a Cinira no meu lugar. Fui diretor de arte do programa Flávio Cavalcanti durante três semanas ou quatro. Depois não quis tocar, essas coisas não me interessam. Mas isso assim, tipo freelancer, porque nessa época eu trabalhava na Abril como emprego. Trabalhava até 72, aí comecei a fazer cartum. Eu me demiti e continuei fazendo isso mesmo, fazendo cartum. Depois fui pra ilustração infantil.
P/2 – A impressão que dá, de você contando da sua trajetória profissional, é que o desenho entrou na sua vida pelo lado técnico. Como que foi esse... Porque você foi desenhando vigas, pro lado de engenharia, aí depois você foi caindo pro lado mais da publicidade, não é isso? E como foi esse salto dessas áreas, do desenho pro cartum?
R – Digamos que, de um lado, foi casual, porque foi quando eu estava trabalhando na editora Abril. Foi o seguinte: as revistas, principalmente a revista Claudia, na época, quando ela era montada... Bom, vocês devem saber: agora é feito tudo no computador. Na época, era feita… Por exemplo, as tiras de texto eram todas estampadas. Botava vestido colado, tinha o espaço da foto, tangia no prisma pra prismar. E muitas vezes era feita a produção de texto...
R – E nessa época, então, eu comecei a fazer assim, a bolar pequenos cartuns exatamente para preencher esse espaço. Ele gostava e ia me publicando. Aí isso me levou pro primeiro livro, pra Eva. Eu pensei, falei: “Pô, isso aqui é assim, vou bolar uma personagem pra revista Claudia.” Depois, quando eu bolei a Eva, ela me veio imediatamente em forma de livro. Não sei se alguém ouviu falar, porque a Eva foi na editora Ática. Mas ela foi uma edição superpremiada.
P/2 – Fala um pouco aí.
P/1 – Conta um pouco.
R – A Eva, ela é a Eva mesmo, a primeira mulher. Eu criei aquele universo que era ela, uma serpente, o marido e todo aquele universo que circunda, o bicho, incluindo Deus. E aquela glosa do mundo já feito.
A proposta do livro, de certa forma, foi a seguinte: todo humor que estava sendo feito, todo humor que até hoje está sendo feito é o humor de comportamento, quer dizer, existem estereótipos, personagem-estereótipo. Eu escolhi fazer exatamente... Digamos, anular um pouco o terceiro elemento, que seria o seguinte: no humor de comportamento o cara quer fazer do leitor um cúmplice do que ele está falando. Ele está falando de uma terceira pessoa, não sou nem eu nem você, mas estou falando de outro cara, sabe? Por exemplo, o próprio Angeli faz isso.
O Angeli é ótimo, ele realmente tem uma tremenda de uma linguagem, tem um sentido crítico maravilhoso, mas você vê como ele é obrigado a trocar de personagem o tempo todo, por quê? Porque são personagens fixos, que têm uma determinada característica. Ele usa, varia as personagens exatamente pra fazer a crítica - basicamente, uma crítica social, não diria de comportamento. Eu, quando pensei na Eva, eu quis anular, digamos, dialogar com o próprio leitor, provocar diretamente o leitor. Falei: “Não, não é...” Tanto que a Eva não tem padrão de comportamento, ela é um ser. E feminino porque, na realidade, ela é a perplexidade, ela é “a-ânima”, não é o ânimo. Já fiz, por exemplo, humor pra executivo, por exemplo, na revista Exame, eu fazia a última página da revista Exame. O humor de executivo também é assim, é humor de comportamento.
Com a Eva eu quis fazer exatamente isso, tanto que ela tem crise de identidade, ela quer se liberar. O livro começa assim, ela dando de cara com o Adão. A primeira frase que ela fala é: “Chato, quando gente já nasce casada!” Tem uma série de situações que levam pra isso.
Desde a primeira coisa entrou a serpente. É a serpente que empurra a maçã pra ela, porque ela vê que ela é descontente, ela fala assim: “Pô!” Vê que aquela vida sempre a mesma coisa, e ela é totalmente libertária. Ela questiona, questiona a si mesma, questiona o mundo em que ela vive, o ambiente em que ela vive, o próprio marido, que é o Adão. O Adão é o conformista, é o cara que está lá tranquilo, que fala: “Ah, mas aqui tá tudo pronto, tá tudo organizado. Você está se queixando do quê?” De alguma maneira, é uma coisa que não vai. E a serpente aproveita pra chegar lá com a maçã pra ela, a maçã é a saída daquilo. Vira pra ela e faz a pergunta óbvia, fala pra serpente: “Mas quem você é?” Aí ela fica assim...
A serpente vai pra Deus e fala assim: “Bom, mas afinal o que eu sou?” Deus já está de saco cheio deles todos, aí fala pra ela assim: “Pô, para com isso que você tem uma missão a cumprir, que é dar a maçã pra ela.” Aí ela responde pra Deus: “Obrigada, o senhor me salvou de mim mesma.” A própria serpente fala: “Quer dizer que eu sou uma missionária”, quer dizer, ela entra também.
Numa ocasião, ela vai perguntar pra Deus e fala assim: “Você que me fez.” E Deus responde: “Não, foi a última coisa que eu fiz.” Fala assim: “O senhor podia ter me explicado, pelo menos, como eu sou feita”, e aí Deus responde: “Honestamente, eu até tinha pensado nisso, mas já era domingo.” Sabe, tem toda essa coisa.
Depois tem outra coisa: ela encontra todos os bichos, ela se questiona por intermédio dos bichos. Exatamente dentro desse mundo, que está todo feito, que começa a se tornar sufocante. É o mundo, assim. Ao mesmo tempo, ela quer sair disso e é evidente que não consegue, tanto que a própria capa do livro que eu fiz é uma história, como se fosse quadrinhos. Tem a linguagem do cartum, são piadas que vão se subseguindo, uma na outra. A própria capa, o quadrinho que tem em volta dela, é em relevo, mas tem a mesma cor da capa, é branco. Eu desenhei o quadrinho. É quase como uma prisão invisível, quer dizer, ser libertária é uma coisa, a liberdade é outra coisa. A liberdade não é uma coisa simples, não é fácil de assumir, porque você tem que assumir todos os riscos da liberdade. E ao mesmo tempo, a partir disso fui fazer a mesma coisa, uma análise do mundo mesmo, do que nos circunda, porque vinha bichos...
Eu chegava até a fazer histórias, onde, por exemplo, o humor [era] mais de contexto, não era um humor de situação. Por exemplo, uma hora ela começa um diálogo com uma formiga. A formiga é aquela que andava sempre, uma hora a formiga fala assim: “Eu nunca esqueço o dia que eu saí da minha fila e entrei numa outra fila pensando que fosse a minha e acabei num outro formigueiro pensando que fosse o meu.” Ela fala: “Quando você se deu conta disso?” E ela fala: “Nunca, eu tô lá até hoje!” Um pouco surrealista, mas faz todo sentido. Outro sentido, sabe, e tem humor. Você vê, mesmo que não tenha, é como se fosse outra lógica, mais pra uma lógica do absurdo. E é a mesma coisa. Esse livro depois termina com ela não assumindo, não aceitando a maçã de jeito nenhum. Termina [com] a serpente dando a maçã, ela pega e joga fora. A Eva joga fora e ela [a serpente] atira uma pedrada na cabeça dela. A própria serpente se enche dela e o livro termina assim.
O livro surpreendeu todo mundo: a [revista] Veja deu reportagem, a Folha fez um texto pro Jornal da Tarde e teve uns críticos aí que foi… Foi eleito o melhor livro do ano em 74, teve uns críticos aí. Depois foi editado - foi um editor português que editou - na França, em Portugal. Isso de certa forma me deu outros rumos; aí sim eu comecei realmente a fazer cartum. Vivi da imprensa durante muito tempo. Fiz trabalho pra Veja, fazia charge, trabalhei também pra Versos, fazia... Fiz várias coisas, uma vez até na revista Estados, fiz uma história de dez páginas. Até depois chegar… No fim da década de 1970 também entrou um pouco essa coisa do infantil, que no começo eu não queria fazer, mas depois comecei a gostar.
P/2 – Como é que começou essa história com o universo infantil?
R – O infantil, eu fui convidado. A Regina Porto fez uma personagem chamada Serafina, que a Ática ia editar, e ela quis que fosse eu a ilustrar. Ficou uma coisa meio estranha, na verdade, porque eu achei… Eu nem me achava em condições, porque eu achava que pra criança tinha que... Pra adulto você pode brincar com isso, pode brincar com a inteligência, com a provocação. Com criança, tem que se depurar um pouco. Tem que se despir um pouco de certas pretensões, inclusive. Mas depois eu comecei a sacar umas coisas que me levaram também pra esse caminho, que gostei muito, por sinal.
Agora eu estou conseguindo, por exemplo, o lúdico na ilustração com criança. É o lúdico que às vezes está no próprio desenho, na própria brincadeira, no próprio jeito de desenhar, de fazer mesmo, de propor a ilustração, sabe? No fim, tem uma coisa que parece assim: edita-se agora… Nesse contexto parece estranha, mas eu incorporo mesmo essa ideia: eu vou muito nas escolas e incorporo um pouco a ideia de [que] quando eu estou desenhando pra criança, realmente é como se tivesse um monte de crianças em volta de mim dando palpite, e elas dão lançadas. E isso, na realidade, acontece nas escolas, mas eu imagino essa coisa acontecendo na minha mesa de trabalho. Isso vira um exercício bastante lúdico, bastante engraçado.
No ano passado estava no Salão do Livro - porque todo ano agora eu vou, este ano também. Aliás, este ano eu vou lançar dois livros. Estava no salão, participando daquele Painel dos Ilustradores, que é um painel que a gente desenha na hora. A gente fica com o microfone desenhando, fazem perguntas e a gente vai respondendo. Eu desenhei uma… É porque eu desenhei uma árvore com todos os galhos, pra lá e pra cá, tudo com fileiras de cigarras cantando, tudo como se fosse um show musical; embaixo eu desenhei uma plateia de formigas batendo palma. E fui falando isso, da linguagem do próprio desenho, de como o desenho pode contar uma história, de como essa história… O que você pode dizer com isso, porque eu estava interpretando a fábula da cigarra e da formiga desse jeito. Falei sobre o destino, falei: “Bom, o destino da cigarra é cantar, por que não dá pra respeitar isso? Por que a formiga, se o destino da cigarra é cantar, por que ela tem que se ferrar? Porque a antiga fábula da cigarra e da formiga é muito do espírito capitalista mesmo”, eu falando, “e o cara não, que tem que economizar, que tem isso, que tem aquilo. Aí depois chega o inverno, a cigarra se ferra, o outro, que guardou a comida, não se ferra”, quer dizer, é a obrigatoriedade do cara. Eu falei: “Por que a formiga, então, se o destino dela é esse mesmo? Por que ela não pode pagar e assistir a um show da cigarra, [já] que ela nasceu, foi feita pra cantar?” Como acontece agora, aqui na prancheta. Aí todo mundo, o pessoal… Nossa, tinha muito pai de criança que ficou batendo palma, sem dizer, mas ótimo. Por causa disso, a coisa descontraiu um pouco.
Numa certa altura, começaram a perguntar coisas assim, pessoais mesmo: a parte do sotaque que era italiano, perguntar como era na Itália e tudo o mais. Aí, de repente, chega um menino. Tinha uns dez anos de idade, na minha frente. Ele, me chamando de você, falou assim: “Por acaso você algum dia fez algum poema pra conquistar uma menina?” Assim mesmo. Olha que legal, né?
Na hora exatamente você pensa: “Bom, não tem nada a ver, ele está falando de outras coisas”, mas por que não também? Realmente, teve a minha fase de escrever poeminha. Eu tinha até um que falava do sol, do instante, do pôr do sol. É mais ou menos assim: “Eu tomo esse instante e reinscrevo.” Tem um instante assim: “Neste instante, a minha lenda volta. Eu tomo este instante e reinscrevo dentro dos teus olhos o meu romance.” Era esse o poeminha que eu fiz há muito tempo. Nossa, mas o menino ficou… Pelo próprio fato, eu podia ter falado: “Não vou escrever”, mas, de repente, pimba! Me veio esse poeminha, recitei pra ele na hora, o menino ficou feliz da vida porque ele se sentiu totalmente atendido. E por causa disso todo mundo levantou e começou a bater palma. Olha que coisa engraçada: que tipo de catarse que se cria numa coisa dessas, numa coisa de uma simplicidade total.
É um pouco isso que eu estava falando quando, de repente, eu passei a ilustrar pra criança, ou escrever alguma coisa assim. O que eu estava falando do se despir um pouco, de chegar nessa coisa um pouco mais natural. A vida é lúdica mesmo, a experiência é lúdica com criança, também tem muito disso. Mesmo enquanto eu falo, enquanto eu como, enquanto eu falo de mim, sempre vem como… Nunca chega como um trabalho, muito pelo contrário; chega muito mais no sentido da vida, no sentido da luminosidade da vida. A vida é realmente bonita porque ela é surpreendente, porque ela não vai se deter, porque ela está sempre te dizendo coisas novas - na verdade, você aprende a ler. Mas isso acontece muito com criança.
P/1 – Michele, hoje em dia, claro que você tem um jeito de desenhar, tem o seu traço, mas quando começa a desenhar pra criança você foi buscar esse traço, foi pesquisar com criança? Como você foi fazer isso?
R – Eu falo muito disso pra elas. Você sabe por quê? Porque a maioria das vezes elas são induzidas a desenhar o que já está desenhado, o desenho dos outros. A maioria, por exemplo, dos adolescentes, eles leem quadrinhos, então o cara quer desenhar um personagem do quadrinho; se ele consegue, mais ou menos, acha que ele está conseguindo desenhar. E tem um monte que mostra isso: “Eu desenho, eu gosto de desenhar.” É lógico que o desenho sai torto, o traço malfeito, mas eu falo pra ele assim: “Bom, seria a mesma coisa de eu querer falar com a sua voz. Por que não fala com a sua própria voz?” Aí eu explico um pouco o que é a voz: “É a naturalidade da coisa. Desenhar é você simplesmente se manifestar. Você gosta de lápis, é lápis.” Falo assim: “Agora, você tem que saber isso: o lápis, ele tem um determinado movimento, sabe, o teu traço é o teu lápis. Brinca com esse movimento, brinca com o lápis. Você está querendo desenhar igual ao Leonardo desenhava? Igual ao Michelangelo desenhava? Não, você tem que chegar lá um dia, mas saber o caminho que você tem que fazer. Você tem que desenhar com a mesma naturalidade que você fala, não interessa o que você está desenhando. O desenho bom é o seu desenho, pode ser um rabisco ou pode ser uma mancha. E depois você aprende a ler esse rabisco e a mancha, sabe?”
É a mesma coisa: eu estou falando com a minha voz. Se um dia eu quiser ser cantor lírico, estudo canto pra entender todo o negócio da caixa harmônica no meu corpo, até tirar todo o meu potencial da minha voz, até um dia eu me tornar um cantor lírico. Mas acontece que sempre eu vou cantar com a minha voz, eu nunca vou cantar com a voz do Pavarotti. É mais ou menos isso que eu explico. E explico exatamente… Quer dizer, o lúdico do ato de desenhar, independente do que está se desenhando. Se você gosta de pincel, usa pincel; se você gosta de dedo, usa dedo. Mas é isso, faz do desenho uma expressão natural. Depois você vai começar a entender o que você mesmo está fazendo, vai dar uma leitura do seu próprio desenho.
Quando eu comecei a desenhar, a fazer cartum, eu comecei desenhando o nada. O desenho da Eva, por exemplo: ele é todo um traço tremido, não desenho olho, nem nada porque eu queria dar a expressão física, porque quando ela se agitava, se chacoalhava toda. Quer dizer, eu fazia antes do Henfil um pouco o que o Henfil fez depois com o Fradinho, só que o Henfil fez isso de uma forma mais, digamos, conceitual, mais determinada. No caso da Eva, o meu traço era… Era um traço porque, inclusive, eu não sabia desenhar, sabe? Não tinha regra nenhuma pra desenhar. Mas isso me levou a um desenho muito mais orgânico, muito mais sensorial, tanto que saiu uma reportagem sobre a Eva numa revista, na revista Essa Gente. E ele considerou o meu desenho - sério mesmo, tá lá na reportagem - quase como um desenho de vanguarda. O texto diz assim: “Nós queremos falar desse tipo de desenho pra quem só acha que desenho brasileiro se limita a Ziraldo e Mauricio de Sousa.” Está escrito exatamente assim. Fala assim: “Mas é esse tipo de autor que, ciscando fora do semeado, costuma tocar a corda certa”, entendeu? Textualmente a reportagem dizia isso, escrita por um crítico. E falava exatamente da autenticidade do traço, de como o movimento do próprio traço é que dava o recado, dava a dica. Não fui eu que falei isso, falaram por conta deles.
Eu não estava sabendo. Quem me trouxe essa revista foi o Luciano Ramos, da TV Cultura. Ele achou essa revista e me trouxe. Estava lá a reportagem sobre, de três páginas. Estava escrito: “Michele é autor, autor e contra.” Autor contra, eu não sei por que, mas... Mas eles fizeram uma análise do livro e a partir daí fizeram a análise do traço.
Foi o meu primeiro livro, então tinha essa espontaneidade. Tive que fazer por necessidade, de certa forma, porque eu queria dizer coisas por meio do desenho ou do texto desse jeito. Essa espontaneidade é o que eu, de certa forma, até tento passar um pouco por experiência própria, um pouco porque eu realmente acredito nisso. É isso: você pega e vai da mesma maneira como você fala, sabe? O que dizer você aprende depois, o que tiver que dizer você diz, entendeu? Agora, tentar copiar um desenho qualquer, um quadrinho ou seja lá o que, não te leva pra lugar nenhum. Falo isso mesmo, falo assim: “Fatalmente, o desenho sai errado ou sai feio porque ele não é o seu desenho.” Você vê, eu mostro pra eles. “O traço está ruim por quê? A sua mão está pesada, você não está se sentindo à vontade, você está querendo entrar no eixo que não é o seu. Pô, solta a mão, brinca, certo? Faz círculo, quadrado, faz tudo que tiver na cabeça. Até figura você pode fazer, mas que seja a sua figura, né? Quer fazer um rosto, faça do teu jeito. Se um dia você achar que tem que ir pro quadrinho mesmo, aí você tem que ter regras, efetivamente, pra desenhar o rosto, o que você quiser dizer. Na verdade, as regras são pra lhe facilitar, não é mais, nem menos. Você pega, se você começa a descobrir que o rosto é feito com círculo, até aí, com umas proporções, isso lhe facilita; serve pra isso, pra lhe ajudar, não pra lhe encaixar, porque você está usando determinadas regras pra fazer um desenho e não [para] se condicionar a entrar numa outra coisa ou tentar imitar o desenho dos outros.”
É essa, no fim, a proposta. Eu sempre falo isso pras crianças e pras professoras também. Por que a professora também? Por exemplo, quando às vezes falo assim: “As crianças mostram, desenham a casinha sempre do mesmo jeito, com a fumacinha. Por que não perguntam pra criança como é a casa dela? Ela sente a casa dela? Não interessa como ela desenha a casa, não é isso. O que tem, pode até desenhar a cara, desenhar uma figura de que seja a do pai, do irmão. Ou fazer a casa torta do jeito que ele acha que é a casa dele, se a casa dele é favela, se a casa dele é palácio. Então porque condicionar a criança a sempre fazer aquela casinha?” Na verdade, a proposta é chegar na linguagem, na expressão: você ser você dizendo aquilo que quer dizer. É isso, e vale pra tudo: vale pra música, pra literatura, pra toda coisa, o importante é ser você com aquilo que você quer.
P/2 – Eu queria que você ilustrasse um pouco o seu desenvolvimento dentro desse nicho de ilustração infanto-juvenil a partir desse primeiro trabalho no fim da década de 1970. E depois, conta um pouquinho pra gente. Eu sei que são dezenas de livros depois disso, mas se puder fazer um panorama pra gente, destacando alguns, algumas parcerias, enfim.
R – Sim. Foi o seguinte: quando eu comecei a ilustrar efetivamente livro - fora o meu livro, que depois da “Eva” eu fiz o “Vacamundi” -, isso foi indo e por sinal foi tudo livro premiado. O “Vacamundi”, por exemplo, é um épico de um parasita que invade uma vaca pra colonizar e civilizar a vaca. Eu faço um pouco a alegoria do mundo, e ganhou o prêmio Clube de Criação, o Oscar dos publicitários, o prêmio que os Olivetto da vida ganham, essas coisas. Quando eu comecei a ilustrar livros efetivamente, comecei com uma coisa de sentir o texto. Você percebe, quando você percebe o texto, às vezes... E quando você conhece o autor, até um pouco mais. Mas quando você começa a ver o texto, você começa a perceber que tem texto nervoso, tem texto contemplativo, tem texto pausado, texto esquematizado, dá pra perceber isso direitinho. Quando faço um livro, eu organizo o livro, a ilustração, baseado nisso.
Por exemplo, tem texto que é musical. Quando eu ilustrei um livro do Joel Rufino dos Santos chamado “Marinho Marinheiro”, o texto era musical - toda a proposta do texto, sabe, aquela coisa das ondas do mar, dos peixes. Então eu o livro inteiro num movimento ondulatório, quase como se fosse… Eu desenhei até umas ondas do mar, como se fosse um pentagrama com as posições dos peixes. Isso pode parecer uma curtição minha particular, mas, na realidade, quando você lê o livro, folheia o livro, você vê que ele tem efetivamente uma sequência, visualmente ele te dá essa coisa, essa cadência. Na medida que você lê o texto, você vai percebendo na ilustração.
Tem, por exemplo, o texto mais ágil, até um texto meio neurótico mesmo, que é feito tudo de flechas, de coisas assim. Então eu tento fazer a ilustração desse jeito, às vezes enfio a ilustração no meio do texto. Adoro essa leitura meio assim, aquela coisa do... E é a mesma coisa quando [é um] texto contemplativo, aí eu vejo se, por exemplo, tem que fazer a ilustração na horizontal, fazer a ilustração na vertical, tem que fazer página sim, página não, que é uma coisa mais reflexiva. Isso eu faço, eu roteirizo mesmo. Faço pequenininhas pagininhas, eu olho, organizo, coisas desse tipo isso na ilustração. E aí desenho a partir disso.
Não é todo mundo que saca isso, o lado lúdico da brincadeira. Eu ilustrei um livro chamado “Juca Motorzinho”, que era um menino que brincava de ser carro o tempo todo. E a história diz que na escola a professora dava bronca, a diretora se incomodava, o pai, a mãe, porque ele na hora do jantar, “brrruuuu”, ele [era] sempre motorzinho. E na realidade... O que eu fiz? Entrei na própria brincadeira da personagem. Eu fiz o menino como se fosse aquele carrinho com as perninhas dele. E brinquei tudo com sinal de trânsito. Por exemplo, a diretora da escola era um guarda, vestida de guarda de trânsito com o apito. Quando tinha a hora do jantar, eu desenhei um posto de gasolina escrito “sopa comum”, outro “sopa vitaminada”. Quando os pais se reuniam, eu pus uma porta, e na frente da porta aquela barra de trânsito proibido, que ninguém podia entrar. Então brinquei com todos os sinais de trânsito. Eu, como ilustrador, entrei na brincadeira da personagem. Eu me coloquei.
De certa maneira, é isso, ou às vezes [é o caso] de interpretar as coisas. Eu ilustrei um livro de poemas do Elias José que tinha um poema que ele ficou surpreso. Ele me telefonou por causa dessa ilustração, porque está escrito assim: “Vamos embora, vou pegar o meu cavalo, tô indo”, se despedindo da namorada. E se repete aquela voz: “Vou lá, vou arriar o meu cavalo, vou-me embora...”. Sabe o que eu fiz? Eu desenhei um cavalo-de-pau, por quê? Porque no fim ele não vai embora, mas é só pra dar aquela ideia de movimento do vaivém, do sobe e desce, entendeu? Porque o poema me passa isso. Nossa, mas ele me ligou tão surpreendido! Falou assim: “Como é que você conseguiu? [É] como se tivesse pegado a alma do poema.” Falei: “Bom, mas é isso mesmo. A gente tenta captar esse tipo de coisa, sabe?” Normalmente é assim.
Por outro lado, foi efetivamente um aprendizado, porque eu penso bastante quando pego um texto efetivamente, tento sacar mesmo. Tanto que eu falei uma vez pra própria Ruth Rocha: “O ilustrador é o primeiro grande leitor de vocês.” Por quê? Porque tem que pegar realmente a alma da coisa. Depois isso eu vou levando pra… Eu estou fazendo [isso] pros meus livros atualmente, já tenho uns quatro ou cinco livros agora que estão saindo.
Você tem a Bambolina - não sei se vocês viram que virou peça, vai estrear no dia três de maio agora, depois de amanhã. Vai estrear no sábado. Fiz um outro. Nisso eu estou tentando experiências novas de linguagem mesmo, inclusive pra fazer as duas coisas - como o texto e a ilustração podem criar uma terceira coisa, quase que um neologismo que eu fiz. Uma coisa não funciona sem a outra, né? De certa forma, até um livrinho de… Vai sair agora pela editora Global, são versos curtinhos, mas eles criam outra - o texto e a ilustração, eles criam uma... Tem desde um que o cara corre, o outro cara corre pelado e aí ele pergunta o que aconteceu. O cara que corre responde assim: “É o progresso, tá tudo normal. É um conjunto residencial.” Tem o cara gordinho, peladinho [como se] fosse um prédio. Então isso é o desenho, [o texto] não diz, né? Como tem outra: “Como é distraída a minha avó Manoela, abre o armário no lugar da janela. Às vezes ela faz exatamente ao contrário, ela usa a janela no lugar do armário. Ela, por exemplo, outra noite, voltando da rua, pendurou o seu casaco num quarto de rua.” Então tem tudo, se constrói, se cria outra lógica. São coisas assim, experiências usando exatamente esse tipo de coisa - o desenho, o texto, até criar outro universo, onde um não funciona sem o outro. Pelo menos onde os dois se ilustram: assim, uma vez é o texto que ilustra a ilustração, outra vez é a ilustração que ilustra o texto, mas isso está sendo uma coisa bem legal.
P/1 – Michele, como é fazer esses livros, como você já fez alguns de só ilustração? E essa ilustração ter essa história implícita ali.
R – Vocês viram o livro que saiu da Bambolina? A Bambolina, eu fiz uma proposta: eu levei ao extremo, digamos, a proposta do ler para se ler. Eu quis fazer… Para propor a leitura, eu fiz um livro sem palavras, porque a história tem uma densidade dramática bastante grande e tem aquela coisa realmente do que é ler uma história dessas personagens. Tem, por exemplo, a menina egoísta que só está acostumada a receber. Ela recebe a boneca nova e joga a Bambolina fora, que é a boneca de pano. A boneca de pano, que é a boneca que você interage, é a boneca que te deixa à vontade, tem que te deixar ativo e não passivo. A boneca que você recebe pronta é a boneca metálica, aquela faz aquilo, ou a Barbie, que você tem que vestir com a roupa que ela te propõe, não te dá margem pra mais nada. E uma boneca de pano, não, ela vive de você, você se inibe com ela também. Então a história, ela tem um jogo assim, de personagens em volta, que é a menina egoísta, que é um mendigo que vira ganancioso. E os meninos de rua que a abandonam, eles mesmo são abandonados, acabam abandonando-a num contexto em que o medo é maior do que o próprio abandono. A história é isso, sabe, a história da Bambolina, desse livro que fala. Você leu o livro ou não?
P/1 – A boneca, né?
R – A menina briga com ela e de repente ela recebe uma boneca nova. Aí ela joga a Bambolina fora, a boneca de pano, fica com a boneca nova e a boneca nova só faz aquilo. Ela se enjoa, vai procurar a Bambolina, e a Bambolina não tá mais lá. Ela chora, é lógico, porque alguém catou, você jogou fora, não quis.
Quem catou é um mendigo, o mendigo o que faz? Fica numa esquina, agora ele começa a dançar com ela e todo mundo vai jogando moeda. Ele vê que está faturando com aquilo, aí o que ele faz? Ele vai comprar uma boneca, uma manequim vestida de noiva, e joga a Bambolina fora. Aí chuta ela, ela cai num mato. Com aquilo [o mendigo] comprou um fraque, uma cartola, pra dançar do mesmo jeito, mas perdeu a graça. Ele não está faturando como achou que ia faturar. A mesma coisa: vai procurar a Bambolina, a Bambolina não estava lá.
Quem tinha pegado era um menino de rua. O menino de rua leva pra menina. Os dois - os três, eles e a boneca estão embaixo do viaduto. Uma hora chega a polícia, aí eles fogem e deixam a boneca. Quando eles voltam, dão a volta, ela também não está mais lá.
Quem tinha pegado era a própria polícia. O cara leva a boneca na delegacia, mostra pro chefe, explica com balões onde tinha encontrado, aí o cara já aponta pra barriga dela: “Deve ter droga escondida lá dentro.” Abre a barriga dela e só sai pano colorido - nesse sentido: “O que tem dentro do ser humano? Droga mesmo? Vamos ver.” O que eles fazem? Jogam ela fora como se fosse um presunto, num terreno baldio. Ela fica largadona lá, começa a nascer o mato; praticamente, ela vai acabar, vai morrer. Quando fiz a história, primeiro tinha pensado em fazer a própria morte chegar lá, pra levá-la embora, mas eu não queria a saída mágica, sabe? Eu quis manter a história mensurável. Então transformei a morte no lixeiro. Seria aquele que ia lá pegá-la pra jogar definitivamente fora. Acontece que o lixeiro se comove; ele a vê, dá uma cutucadinha nela, dá uma limpada e a leva a um outro lugar, que é um bonequeiro, na realidade. Aí um cara a reestrutura, a recompõe, dá banho nela. E ela vira personagem de cinema. Ela praticamente encontra o destino dela, a identidade e o destino dela, que é ser boneca - ela não vai deixar de ser boneca - e vários personagens. Assim ela termina, exatamente, num teatrinho: as crianças batendo palma e ela fazendo reverência. Termina desse jeito a história, que é uma relação de troca, não tem mais aquela relação de uso.
Quando eu pensei na história, pensei exatamente nisso, de como ler. Primeiro tem a leitura externa: a menina egoísta, o outro ganancioso, as crianças com medo e a própria insensibilidade da polícia. Ao mesmo tempo, isso se [torna], de repente, num ato de amor, porque o lixeiro foi o único que não fez nada pra usar... Simplesmente foi altruísta. Ele não teve atitude egoísta, a salva efetivamente e a partir disso ela se reencontra. Então tem essa coisa [de] falar assim: Quem um dia na vida não se sentiu abandonado ou chutado, trocado por egoísmo, por medo, por interesse? Quem algum dia na vida não fez isso? De repente, ele abandonou alguém - chutou alguém, sei lá, é a mesma coisa -, por egoísmo, por interesse ou por medo.
Fala-se um pouco das relações, objetivamente. Como são as relações de hoje, como é a relação de troca com seres - aí mexe com o descartável. Mexe exatamente [com] isso: o interior da pessoa, quando abre literalmente a barriga dela. E depois tem a leitura, digamos assim, um pouco subjetiva, a partir da própria história da Bambolina. Quer dizer, quem um dia não sofreu esse processo, realmente, de solidão, de abandono? E de repente um ato, um ato mesmo que te… Um ato assim, que nem o ato do lixeiro mesmo, que te tira, te dá, te retoma, entendeu? Ou você se retoma, até ter consciência da própria vida, do próprio ser ou da própria identidade, eventualmente do próprio destino. Ela nasceu pra ser boneca, ela não nasceu pra se transformar numa borboleta ou um pássaro bonito, depois da morte, por isso eu quis manter a história no real. Então, o que no livro [é] sem palavras, você vê que ele tem toda uma estrutura, [uma] gramática, para ser lida mesmo.
Depois eu fiz outro sem palavra que vai sair agora também, no Rio, que se chama “Rabisco, a História de um Cachorrinho”. Isso é tudo sobre a linguagem do desenho, que é o seguinte: o menino faz um desenho de um cachorro daquele jeito todo tremidinho, todo feinho. Aí ele olha pro cachorro, põe na parede. De repente, o cachorro sai do papel e o procura. E aí o menino, quando vê aquele cachorro tão feio, não quer o cachorro. Aí o cachorrinho fica assim, o menino vai embora, e ele fica lá todo triste, então ele faz um caminho assim: ele sai, vai pra rua, no meio dos carros, passa por uma série de coisas. Pega chuva, fica no meio do lixo, fica embaixo de chuva, é perseguido por outros cachorros, é ridicularizado por um monte de meninos. Numa certa altura, ele vai perguntando e pergunta por um desenhista, que seria um pouco o criador e o autor da história. E, de fato, um fala que ele é louco, outro fala que não sabe... Até que uma criança o aponta e ele vai, ele realmente acha o desenhista. Sobe até o desenhista, e o que ele faz? No balão aparece um cachorro, aquele cachorro bonitão, e o desenhista faz o cachorro pra ele. Aí ele enrola, dá o cachorro desenhado e vai levando; pega o cachorro na boca e faz todo o caminho de volta, passa por tudo que tinha passado, volta pro menino, e dá esse cachorro pro menino - o menino do cachorro primeiro. Aí termina, lógico, ele com o cachorro na parede, o menino com o cachorrinho no colo, né? Então é a mesma coisa, toda aquela trajetória. Fala assim: “Pô, gosta de si, gosta daquilo e aquilo não se faz.”
P/2 – Bonito, muito bonito!
R – Esse vai sair já, já.
P/2 – Muito bonito.
R – Então essas são experiências que estou fazendo.
P/2 – Projetos novos, né?
R – É. E tem super aceitação, sabe? É incrível,porque mostra o pessoal aceitando na hora, não tem nem aquela de esperar o final.
P/1 – Eu estava pensando, essas histórias sem… Você contou a história inteira da Bambolina, mas na sua cabeça isso sai dessa maneira. Eu lembro que quando era pequeno eu via Eva Furnari e aí imaginava uma coisa que hoje, quando eu olho, não é nada daquilo. Você tem essa sensação ou já teve alguma experiência de alguma criança falar assim: “Nossa, eu...” Falar uma coisa que não tem nada a ver com a sua história, quando você bolou aquilo, dessa coisa gramatical implícita. Teve alguma experiência dessas já?
R – Bom, tem crianças que, por exemplo... Não, elas interpretam do jeito delas. Não sei de caso nenhum de... Não porque acho que não calhou de questionar, mas existe. As crianças, elas falam, interpretam muito. Muitas vezes, ela é muito pau a pau, quer dizer, primeiro as crianças não tem papas na língua, depois elas, muitas vezes, fazem a leitura de uma forma concreta, sabe? Por exemplo, no caso da Bambolina elas se comovem mesmo, se comovem com a história.
Fui pra Porto Alegre. Estive uma semana lá, fui até Torres, outras cidades; fui pra quatro cidades. E criança pequena de quatro, cinco anos, elas se comovem com a Bambolina, com desenho da boneca, elas se enternecem. Agora é evidente que... A proposta de leitura que eu faço, não espero sempre a resposta. Mesmo, por exemplo, professoras Quando eu pego um livro como a Bambolina, muitas vezes elas fazem aquela leitura objetiva mesmo, sabe? “Ah, que o cara...” Ela lê o livro e conta a história com palavras, exatamente como está desenhado: “O cara pegou a Bambolina e jogou a Bambolina lá fora.”
Muitas vezes, por exemplo… Aliás, aconteceu num colégio: quando eu comecei a falar dessa outra leitura, do significado das personagens, ela abriu o olho deste tamanho. E aí começaram a sacar o que que é a leitura, o que é ler efetivamente. Porque quando eu falo sobre ler, eu falo, normalmente, [é] de ler o que lhe circunda, quer dizer, ler o seu próprio contexto. Você está num determinado lugar, numa determinada casa, numa determinada família, numa cidade, num país - isso tudo é leitura. Se você sai daqui e encontra um cara caído no meio da rua é leitura que está acontecendo: por que esse cara está caído? Aí pode levar a tudo que você me dissesse: se o cara é indigente, se ele foi assassinado. E lhe leva a tentar compreender o mundo em que você vive, sabe? Por que o indigente está aí, por que o cara foi assassinado na sua porta? Por quê? Porque tem tudo um contexto, você chega aonde você quiser no seu país, até discutir o que você quiser. Pode discutir até o sistema político, social, mundial, a partir de uma coisa dessas. É essa leitura. Na medida em que você lê isso, na medida em que você vai e leva pra dentro de você, é evidente, isso vai levar para uma leitura maior de si mesmo, porque, claro, você lê objetivamente de um lado e emocionalmente do outro lado. É um pouco a proposta da Bambolina.
Com crianças eu nunca… Não aconteceu de fato, uma criança contestar alguma coisa. Mas é um pouco isso, um pouco a história que eu contei do livro. Tem uma criança que perguntou pra mim como é que eu consegui escrever tão bem assim - era letra impressa. Então eu imaginei o coitado, imagina o que ele deveria apagar, o que ele deveria preencher pra conseguir escrever... Como consegue escrever tão certinho?
Tem criança que pergunta se eu acredito em Deus, coisas desse tipo. Mas, ainda em relação ao desenho, é um pouco essa sensação que eu fico no geral, de criança dando palpite não no sentido de ler, porque ela tem a leitura concreta. Se você faz um cara, por exemplo, com quatro dedos, ele quer saber por que você fez com quatro dedos e não com cinco, se a mão tem cinco dedos. E eles fazem esse tipo de leitura, a leitura concreta mesmo do desenho. Você faz um cara de ponta-cabeça, um cara torto, um cara sempre… Então é evidente que é essa leitura que se espera.
Por outro lado, o fato que eu estava falando de incorporar as crianças, a ideia de crianças em volta de mim dando palpite, isso é uma coisa acontece, isso porque reflete um pouco o que eu sinto quando vou falar quando vou nas escolas. Quando falo de desenho, às vezes, com criança pequena, que eu fico tipo desenhando mesmo, aí eu fico, desenho, às vezes faço a carinha delas. Elas brincam com isso, sabe? Elas acham graça; aliás, não precisa nem ser tão parecido assim, mas só um detalhe me chama pra eles, aí eles acham graça e a coisa fica mais por aí.
P/1 – Então pra terminar, Michele, queria que você falasse qual a sensação de contar um pouco a história pra gente. Como é que foi?
R – Eu acho de um lado… No começo penso, você fala: “[O] que tem a ver, né?” De repente eu tô aqui contando a história da minha vida e que interesse isso tem? O interesse da… Por outro lado… Quer dizer, lógico que pra mim é legal, pra mim é uma coisa até um pouco catártica. Eu uso muito isso no meu trabalho, eu uso muito esse tipo de lembrança e até as histórias que eu vivi um pouco. Isso é de uma riqueza incrível, sabe? E comigo acho que acontece um pouco isso. Então, quando eu crio uma história, vem tudo isso junto: a minha história, as minhas lembranças, as histórias que aconteceram, que eu ouvi, as histórias que aconteceram com os outros e coisas assim. Então isso me dá toda uma...
É evidente que pra mim é bom, não sei se pra vocês é bom...
P/1 – Tá ótimo!
R - ...É interessante, bom pra minha imagem, mas eu gosto de ouvir também as histórias dos outros. Aliás, eu ouço bastante, e também me ajudam bastante.
P/1 – Tá bom, muito obrigada...
P/2 – Tem só... Tem algum episódio da sua vida, algum trabalho específico do qual você não tenha falado aqui e queria comentar? Você acha...
R – Eu acho que não, porque o primeiro foi esse da minha parte profissional, que eu trabalhei. Falei do primeiro livro, que é a “Eva”, falei destas últimas experiências, que estão sendo muito importantes pra mim. E o fato de ter falado um pouco... Não, acho que não.
Tem esse daí, tem... O o livro que eu estou fazendo agora, ele realmente, pra mim, está sendo uma experiência nova de linguagem e que está me levando, está me dando uma sensação de evolução muito grande. De um tempo pra cá, porque quando eu trabalhava, fazia parceria - eu fiz parceria tanto com a Cristina Porto na Serafina, como fiz muitos livros com a Liliana, que é a minha mulher, que faleceu em 2004 - era uma coisa, assim, me limitava bastante, me limitava porque... Claro, participava, é tudo trabalho de coautoria e tudo o mais, mas era uma coisa que sempre estava dentro de uma proposta pré-fixada, tinha pouco de experimental. Agora não. Agora, por exemplo, estou me permitindo experimentar de fato. Eu não sei até aonde vou, pode ser até que eu volte a fazer coisa pra adulto, mas eu quero chegar lá naturalmente.
O que está acontecendo agora é bem isso: é o quinto livro, estou fazendo e está dentro dessa busca, dessa proposta. Estou muito contente, inclusive, com o que estou fazendo agora, estou achando... Tanto o livro da Bambolina, como o do Rabisco e tem outro que se chama “O Mágico, um Rei e o Futuro do Rei”, que é outra experiência também, porque o tempo todo é sobre uma brincadeira de bolha de sabão.
O texto diz assim: “Um dia o mágico decidiu brincar de astrólogo.” Na realidade, o que aparece é um menino normal fazendo bolha de sabão. Depois, o livro é assim: “E criou o mundo, e criou o universo feito de astros e planetas.” E aí dizia: “Ia ser ótimo”, pensava o mágico, “assim eu vou ler o meu futuro nos meus astros e planetas.” Toda vez que batia um ventinho, aquilo tudo mudava de lugar. Ele disse: “Ótimo, assim eu começo tudo de novo!” E as bolhas vão se enchendo de mágica; cada bolha tem uma imagem, que são todas projeções.
Depois aparece outro menino, que é o truculento, outro menino, que é o puxa-saco, o baixinho. O texto diz assim: “O rei, que vinha passando, viu aquilo tudo e perguntou: ‘O que você está... O que o seu mágico...’” Ele fala assim: “Eu estou lendo o meu futuro nos outros planetas, e toda vez que sopra um ventinho, isso tudo muda de lugar e eu começo isso tudo de novo!” Aí de repente é uma cena parada, assim: os três e todo aquele universo cheio de imagens. E aí o cara se toca, o truculento; ele fala assim: “Mas o dono do futuro sou eu”, disse o rei, e chamou o guarda. Aí tem outra cena dele pulando, dizendo: “O guarda correu, o guarda agarrou, o guarda pegou.” Quando terminou o serviço, aí está tudo vazio, só as três figurinhas, e o cara com uma gota fala assim: “Aqui está o seu futuro, majestade. É só com uma gotinha.” Aí assim, “buá”, chorou o rei. Depois a cena, assim: “E agora, quem vai trazer de volta para o rei?” Aí: “O mágico emprestou a brincadeira para o rei.” E ele termina falando assim: “Um dia o rei decidiu brincar de astrólogo.”
P/2 – Muito, muito bonito. Qual a faixa etária?
R – Eu não me preocupo demais com faixa etária porque isso vale tanto para uma criança pequena como vale pra uma leitura mais filosófica.
P/2 – Pois é, exatamente.
R – Por exemplo, aquela coisa do futuro. Pô, o futuro é inconstante. São as imaginações, são as projeções que a gente faz sem ninguém ser dono do futuro do outro. ninguém é dono. O livro está todo trabalhado assim, todas aquelas imagens cinéticas, coisas assim, né?
P/2 – Acho que é isso. A gente queria agradecer muito, foi um prazer pra gente.
R – Pô, pra mim também, muito.
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