P/1 – Então, Sâmia. Boa tarde!
R – Boa tarde!
P/1 – Queria começar a entrevista pedindo pra você falar o seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Meu nome completo é Sâmia Aparecida Victorio Rios. Eu nasci em São Paulo, no dia 7 de dezembro de 1963.
P/1 – E você podia falar o nome dos seus pais? E de onde que eles são?
R – Meu pai José Roberto Arantes Rios, também de São Paulo. A minha mãe Neide Vitória Rios, também de São Paulo.
P/1 – A família paulistana?
R – Paulistana.
P/1 – E os seus avós? Você chegou a conhecer os seus avós?
R – Conheci meus avós, eles foram muito importantes na minha vida. Meus avós paternos. O meu avô era mineiro. Meu avô Silvio era de São Lourenço e minha avó Susana é do interior de São Paulo – não sei bem a cidade, acho que Ribeirão Preto. E meus avós maternos, o meu avô Otavio, que ainda é vivo, é o único vivo, tem noventa anos, também do interior de São Paulo, filho de Italianos, de Matão. E a minha avó era italiana, de Campiglia dei Berici, que é uma cidade próxima a Vicenza e Padova, fica entre Padova e Vicenza. E os avós foram super importantes, porque quando os meus pais se separaram eu era muito pequena, e fiquei vivendo com os avós maternos. Mas a minha avó paterna é a pessoa que era bibliotecária. Então, meu amor pelos livros, eu compartilhei muito com essa avó, na infância. Com a minha mãe também um pouco, porque minha mãe gostava muito de ler, mas muito com essa avó, muito com essa avó. Então, hoje em dia eu acho que tudo que eu me construí como leitora, como editora e vim parar nessa profissão, meio por acaso, tem a ver com essa avó, com o que eu construí com essa avó, porque quando eu era criança os livros eram muito caros e poucos, não havia muitos livros, eram inacessíveis, mas ela, como trabalhava na biblioteca do Instituto do Coração, do InCor [Instituto do...
Continuar leituraP/1 – Então, Sâmia. Boa tarde!
R – Boa tarde!
P/1 – Queria começar a entrevista pedindo pra você falar o seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Meu nome completo é Sâmia Aparecida Victorio Rios. Eu nasci em São Paulo, no dia 7 de dezembro de 1963.
P/1 – E você podia falar o nome dos seus pais? E de onde que eles são?
R – Meu pai José Roberto Arantes Rios, também de São Paulo. A minha mãe Neide Vitória Rios, também de São Paulo.
P/1 – A família paulistana?
R – Paulistana.
P/1 – E os seus avós? Você chegou a conhecer os seus avós?
R – Conheci meus avós, eles foram muito importantes na minha vida. Meus avós paternos. O meu avô era mineiro. Meu avô Silvio era de São Lourenço e minha avó Susana é do interior de São Paulo – não sei bem a cidade, acho que Ribeirão Preto. E meus avós maternos, o meu avô Otavio, que ainda é vivo, é o único vivo, tem noventa anos, também do interior de São Paulo, filho de Italianos, de Matão. E a minha avó era italiana, de Campiglia dei Berici, que é uma cidade próxima a Vicenza e Padova, fica entre Padova e Vicenza. E os avós foram super importantes, porque quando os meus pais se separaram eu era muito pequena, e fiquei vivendo com os avós maternos. Mas a minha avó paterna é a pessoa que era bibliotecária. Então, meu amor pelos livros, eu compartilhei muito com essa avó, na infância. Com a minha mãe também um pouco, porque minha mãe gostava muito de ler, mas muito com essa avó, muito com essa avó. Então, hoje em dia eu acho que tudo que eu me construí como leitora, como editora e vim parar nessa profissão, meio por acaso, tem a ver com essa avó, com o que eu construí com essa avó, porque quando eu era criança os livros eram muito caros e poucos, não havia muitos livros, eram inacessíveis, mas ela, como trabalhava na biblioteca do Instituto do Coração, do InCor [Instituto do Coração]...
P/1 – Ah! Do InCor?
R – Ela tinha alguma coisa de literatura infantil lá. Então tudo que ela encontrava, ela trazia. E ela fazia também... Ela colecionava folhinha de São Paulo, mandava encadernar, porque eu era a única neta que gostava, os netos todos achavam assim: “Ah! A avó Susana é muito chata!...”, porque ela vinha com a história de livro e ninguém gostava muito. De nove netos, ninguém conseguia compartilhar com ela. E pra mim aquilo era uma delícia. Então muitas coisas quando eu ia fazer trabalhos de escola e minha mãe falava: “Liga pra avó Susana”. Chegava uma hora que eu já ligava, não precisava falar mais.
P/1 – E Sâmia, quais autores que ela trazia pra você quando criança que você chegou a conhecer por ela?
R – Monteiro Lobato, embora eu não tenha lido muita coisa do Monteiro Lobato, porque eu achava chato quando eu era criança. Era muita coisa assim... Eu lembro de um livro especificamente que não era muito conhecido dele, e que era um que estava perdido ali pela minha casa, que era Viagem ao Céu. E eu gostava muito daquilo. Viagem ao Céu! Como é que é isso? E assim, voltando um pouquinho no tempo, eu tinha muita curiosidade com as letras antes de entrar na escola, porque eu entrei tarde na escola, naquela época a gente não entrava cedo como as crianças entram hoje; eu entrei com seis anos, já no pré–primário, mas quando entrei já sabia ler, porque eu aprendi a ler sozinha.
P/1 – Ah! Você aprendeu a ler sozinha?
R – Porque eu tinha tanta curiosidade de saber o que estava dentro dos livros, o que aquelas letras estavam dizendo, em qualquer lugar que tinha algo escrito, que eu fui assim, perguntando que letra era essa, que letra era aquela pra minha mãe: “Ah! Essa com essa dá o quê? E com aquela?”. De repente eu estava lendo. Então quando eu entrei na escola eu já sabia ler e os colegas estavam em processo de alfabetização, e eu um pouco ajudava a professora. E era um prazer enorme isso, até eu sempre achei que fosse ser professora. Sempre imaginei isso. Eu gostava muito, sempre gostei muito. E de alguma maneira, hoje em dia, porque eu trabalho numa editora de livro escolar, de algum jeito eu segui aquele desejo lá de trás. De um jeito indireto. Trabalhar com livros que vão pra as escolas é um jeito.
P/1 – E você passou a infância em que bairro de São Paulo?
R – Na Pompéia. Essa avó paterna também morava na Pompéia. Eram casas próximas, então eu ia a pé pra casa da avó Susana.
P/1 – Conta como era a Pompéia nos anos 1960, 1970?
R – Hoje em dia tem muita tristeza de passar lá e ver aqueles montes de prédios, porque todas as referências da infância foram caindo. Era um bairro bem tranquilo. As pessoas se conheciam. Eram pessoas que moravam há muito tempo lá. As duas famílias da minha mãe e do meu pai moraram a vida inteira na Pompéia. Eles nasceram lá, cresceram lá, os amigos todos estavam por ali. Então, era um bairro bem familiar, era comunidade bem unida, as pessoas que se conheciam ajudavam. E havia mais casas e não tantos prédios. E eu acho que você tinha mais relação com a vizinhança; o vizinho era uma pessoa próxima, que nos prédios isso não acontece, você tem muitos vizinhos e não sabe nem quem é, que nome tem, que cara, o que faz. E tinha o sapateiro em frente, que a gente era amigo do sapateiro; tinha o cabeleireiro, que era um japonês que todo mundo ia... Então era assim, era tudo muito conhecido e seguro também.
P/1 – E que rua que era?
R – Eu morava na Cajaíba. E a minha avó Susana morava na Tavares Bastos. Então a Cajaíba era uma ladeira, não dava pra brincar na rua, isso era uma coisa difícil, porque tinha já movimento de carro, tal. E a Tavares Bastos também, mas era uma rua mais plana. Então brincar na rua já não é do meu tempo, brincar na rua é do tempo da minha mãe, não é do meu, mas era mais tranquilo, sem dúvida, do que hoje.
P/1 – E o que as crianças da sua rua brincavam?
R – Eu lembro da gente fazer um clubinho da rua. A gente tinha essa vontade de fazer um clubinho da rua. Aí tinha algum amigo que morava na Avenida Pompéia e que o quintal era muito grande. A casa estava ali na avenida, mas pra trás tinha um terreno enorme, com um quintal grande. E a gente construiu um barraquinho de madeira lá. E nem sei o que a gente fazia nesse clubinho. Tinha meninos e meninas e a gente levava coisas pra lá, sei lá, ou revistas, ou músicas, ou planejava passeios, que aí a mãe de alguém tinha que fazer levar ao zoológico. O meu passeio preferido era ir ao Museu do Ipiranga. Mas para o desespero do meu irmão e da minha mãe, porque eu era uma criança assim, tímida, sabe? Então eu acho que os livros, eu rapidamente descobri esse amigo nos livros, porque eu tinha um pouco de dificuldade de me entrosar, ou de me soltar, por exemplo, esse clubinho da rua eu ai atrás do meu irmão. Meu irmão é mais novo do que eu e ele é mais extrovertido, então eu sempre ia atrás dele. Eu era a irmã do Beto, depois que ia saber qual era o meu nome. Primeiro eu era a irmã do Beto. E os livros, eu tinha muita possibilidade de muita aventura sem ter que me expor, digamos assim, então pra mim era uma coisa, era muito confortável, eu gostava muito, era o que eu mais gostava de fazer. Eu preferia ler a fazer qualquer outra coisa, até brincar com amigos, porque ler é uma atividade solitária, depois você pode até compartilhar com os outros o que você leu, mas a atividade em si é solitária. Então, eu acho que tinha uma coisa que eu sentia de as pessoas acharem estranho. Pessoa esquisita que fica ali lendo, fica muito quieta. E na escola isso era uma vantagem, o fato de ler. Naquela época não havia muitos livros disponíveis como tem hoje, então nem sempre a escola tinha uma biblioteca que você pudesse frequentar. Eu estudava em escola pública.
P/1 – Na Pompéia mesmo?
R – Não. Ali no Sumaré. Numa escola que ainda existe, ela fica na Avenida Sumaré. No alto assim... Chama–se Escola Municipal Tenente José Maria Pinto Duarte. É, eu voltei nessa escola recentemente, estava aberta e eu entrei. Fiquei muito assustada, porque estava tudo fechado. O pátio é fechado com grade. Os muros são altos. E no meu tempo, imagina! O pátio era aberto, não tinha muro, era umas vigas assim, de concreto, você via pra fora. E eu achei tudo muito opressor ali, muito fechado. Tem portão pra subir as escadas pra sala de aula. Não era nada assim, e era uma escola muito boa. Então, por exemplo, na escola era uma vantagem isso de ler muito. Eu ganhei até uma vez um prêmio, que eu ganhei uma mini estantezinha com livros. E foi muito legal, eu adorei, porque eles faziam algum tipo de premiação pra escola pública e escola municipal. Então, o diretor indicava algum aluno, não sei, o melhor aluno da escola, alguma coisa assim, e ganhava esta estante cheia de livros, que foi a primeira vez que eu ganhei muitos livros de literatura, que eram livros da Ática, Série Vaga–lume, ou da Ediouro, assim, livrinhos de bolso da Ediouro, que tinha uma coleçãozinha grande de tradução de clássicos, Os meninos da Rua Paulo. Então, eu adorei esse prêmio, foi muito legal. Eu fiquei muito contente, embora a timidez, porque assim, eu nunca contei pra ninguém que eu ganhei esse prêmio.
P/1 – Ah, não?
R – Secreto. Assim, levei pra casa feliz da vida, aquele monte de livros, muito bom, mas assim, ninguém foi assistir. Não teve nada disso. Então eu estou contando tudo isso porque eu acho que tem tudo a ver em ser editor. É uma pessoa da sombra, editor. Então, está aqui falando, tudo bem, mas editora é uma pessoa da sombra. Olhando pra trás eu vejo que sempre fui uma pessoa meio da sombra. Assim, que é um lugar confortável. Para mim acho bom. É não ter a luz em cima de mim. Eu estou trabalhando pra promover, pra iluminar outras pessoas, não a minha pessoa. E eu acho que tudo isso tem a ver com esse perfil, de pessoa mais tímida, ou que gosta de ler, que tem essa preferência, porque eu não era boa em esportes, eu tentei, mas não era muito a minha praia. Então eu conseguia, assim, com esse perfil, eu conseguia ter amigos e tal, porque eu sempre ajudava na hora da dificuldade de estudar, alguma coisa assim.
P/1 – Sâmia, e como é que era a sua relação com a televisão?
R – Não gostava. Nunca gostei. Meu irmão era um viciado em TV, desde sempre. Eu gostava de algumas poucas coisas. Algumas poucas, assim, por exemplo, tinha: Sítio do pica–pau amarelo na TV, e aquele daquela época era muito fiel, eu acho que era adaptação da Tatiana Belinky, não sei, era muito fiel ao livro e gostava. Gostava da Feiticeira, Perdidos no Espaço, eu gostava de algumas dessas séries. Perdidos no Espaço ou mesmo A Família Adams. Mas assim, se fosse um no dia. Eu não tinha paciência de ficar várias horas sentada na frente da TV, assistindo um seriado atrás do outro. E não tenho até hoje. TV é uma coisa pra mim, assim, só se eu estiver sem nenhuma energia, cansadíssima, eu não consigo mais fazer nada na vida e eu sento na frente da televisão, por pouco tempo, porque me dá sono. E TV eu acho que é uma coisa que surgiu naquela época, nos fins dos anos 1960, 1970, 1980.
P/1 – Ela começou a se popularizar.
R – É.
P/1 – Então, eu me lembro de uma coisa com a TV. Quando surgiu a TV em cores que começou: “A programação vai agora ser em cores” e a minha TV não era em cores, mas eu enxerguei as cores quando ele falou que a programação ia ser em cores, eu falei: “Nossa! Ficou tudo colorido!”, para mim ficou. Enxerguei tudo em cores. Lembro bem disso.
P/1 – Aí foi em 1972?
R – É.
P/1 – E eu também esperei ansiosamente, mas eu não vi nada.
R – E aí eu agora lembrei, por causa disso eu lembrei que quando eu ainda não sabia ler, eu até trouxe aqui, o primeiro livro que eu ganhei foi esse aqui, que o livro está bem velhinho, de histórias.
P/1 – Ah! Jóias da literatura infantil.
R – É, ele tem aqui três histórias: A Bela Adormecida, A Sereiazinha e Chapeuzinho Vermelho. E aí eu não sabia ainda ler, e minha mãe lia pra mim. E ela leu essa história da Sereiazinha, que é a história da minha infância assim... Porque aqui não é a versão Disney. Aqui ela faz tudo, ela vende a alma para o diabo, pra bruxa, porque ela quer conquistar o amor do príncipe, pra ganhar as pernas, mas o custo disso é ficar sem a voz. Ela não consegue conquistar o amor do príncipe e vira espuma do mar. E isso pra mim, essa história... Eu ia pra praia e ficava olhando o mar, ficava: “Meu Deus! Olha ela lá, ela fez tudo certinho e virou espuma do mar. Ela fez tudo tão direitinho. Como assim?”. E eu fiquei com essa história minha vida inteira. E eu pedia pra minha mãe ler de novo, de novo, porque eu achava que ia mudar o fim. Em algum momento ela iria ler a história e o fim iria mudar. Ele não ia ser mais esse. Mas não mudava o fim. Aí eu lembro que quando saiu o filme da Disney, recentemente eu fui com uma amiga adulta, eu falei: “Olha, vamos assistir a história, mas essa historia é tristíssima, ela faz tudo direito, mas não consegue, e no fim ela se dá mal”. E na versão Disney, na minha surpresa, ela se deu bem. E eu fiquei feliz, assim, eu falei: Puxa! Deu tudo bem na Disney”. Eu sou um pouco contra a Disney de deixar tudo bonito.
P/1 – É. Eles suavizam muito.
R – Porque a vida da gente não é assim. Então, pra mim foi muito importante essa história.
P/1 – É, e o conto de fada não é assim também?
R – Não é assim, exatamente. Então eu acho que a Disney assassina os contos de fadas. Eu não sou muito favorável hoje em dia, mas mesmo não sendo favorável me deu uma felicidade extrema ver aquele fim, que eu quando criança queria ver, porque eu falava: “Mãe, não é possível o que ela fez”. Ela falou: “Desculpa, mas é o que está escrito aqui, é assim que está aqui a história. Você quer que eu mudo o fim? Eu mudo”, e eu: “Não”. Eu queria que estivesse escrito lá. Quero o fim diferente que era o justo, era o justo que ela conseguisse isso. Então, assim, esse livro eu não via a hora de eu poder ler, porque eu achava que minha mãe estava me enganando. Devia ter alguma coisa ali que ia melhorar a história. Então essa é uma história da infância. E depois, quando eu comecei a ler, eu devorava tudo, bula de remédio, tudo o que aparecia na frente. E o que tinha na minha casa? Eu tinha esse livro. E às vezes minha avó trazia coisas da biblioteca. E o que tinha na minha casa era fotonovela. Minha mãe adorava fotonovela: Grande Hotel.
P/1 – Grande Hotel.
R – Capricho, sei lá. Hoje em dia eu tenho vontade de procurar em sebo, pra ver como era, porque eu tenho a memória dos quadrinhos. Das fotonovelas eu lia também, todas as fotonovelas que tinha em casa, e Biblioteca das Moças, minha mãe tinha, que eram as Sabrinas de hoje. As Julias, Sabrinas. Esses romances bem açucarados com final feliz. Ela tinha lá Biblioteca das Moças também inteira que eu li também tudo. Tudo que aparecia ali, eu acabava lendo. E até ganhar esta estantezinha. E até tem um episódio muito interessante. A minha vida eu acho que é assim, ela sempre tem um livro atrás, não tem como. Quando eu tinha onze anos eu fui passar férias em Londrina com o meu avô, com os parentes dele lá. Não tinha criança. Era uma casa cheia de velhos. A irmã do meu avô, os filhos dela, tal. Mas tinha uma nora dessa irmã do meu avô que trabalhava em uma escola, no Colégio Marista de Londrina. Então, logo descobriu o que eu podia fazer. Ela falou: “Você quer ir comigo?”. Eram férias, a escola estava fechada, ela ia trabalhar. “Ah! Vai, eu quero!”. Tinha uma biblioteca, absurda, gigante. E eu passei as férias naquela biblioteca só pra mim. E na hora que eu vi aquilo eu falei: “Posso entrar?”; ela falou: “Pode”. Eu falei: “Eu preciso aproveitar e ler tudo o que eu puder, porque não vou poder levar nenhum livro daqui”. E passei as férias naquela biblioteca. Assim, lendo loucamente. E aí a irmã do meu avô: “Você vai ficar com problema na cabeça! Vai ficar meio doida. A pessoa que lê muito fica doida”. E aí eu menstruei pela primeira vez, sozinha na biblioteca. Eu e os livros. Eu acho muito legal isso. Eu adoro essa história. E assim, isso faz todo o sentido. Porque eu falei: “Gente, com quem eu vou compartilhar esse momento? Com os livros”. Porque, eu falei: “Nossa! Caramba!”. E aí eu não queria contar pra ninguém, eu sabia o que era aquilo. Já não estava no tempo de ninguém saber o que era isso. E aí contei, tinha que contar, porque alguém precisava me dar absorvente e tal. Fizeram aquele escândalo. Mas pra mim estava tudo certo. Aquele era o lugar certo pra aquilo acontecer, porque a maior intimidade eu sempre tive com os livros mesmos. Então era naquele lugar.
P/1 – E você se lembra de alguns desses livros que você teve contato lá?
R – Conde de Monte Cristo, eu acho que foi ali que eu li o livro, Os Meninos da Rua Paulo que eu não tinha lido inteiro, Moby Dick. Nossa! Eu fui pegando tudo o que eu pudesse ali, Júlio Verne. Eu fui devorando. Eu acho que já tinha livro da série Vaga-Lume, Éramos Seis, O caso da Borboleta Atíria, O Escaravelho do Diabo, A Ilha Perdida. E eu fui assim... Apesar de ter acabado as férias deixar aquela biblioteca pra trás, porque eu fiquei naquela fantasia de que eu era a dona daquela biblioteca... Naquele dia era só minha, eu podia entrar, pegar. E eu tinha o maior cuidado, a prima não ficava preocupada que eu ia deixar fora de lugar, alguma coisa assim. Então foi muito gostoso, foi uma experiência muito assim... Fantástica.
P/1 – Fantástica!
R – Foi muito boa. E eu me lembro nessa época de ter ganhado uma coleção completa do José de Alencar, eu adorava o José de Alencar. Aquelas descrições românticas, nossa! Eu lia aquilo com um prazer, que hoje eu não compreendo o quanto que eu tinha prazer com aquilo, mas era o máximo, porque era uma coleção toda encadernada, bonita. Era muito raro livro, você possuir o objeto livro, ter um seu. Hoje a editora que eu trabalho pertence ao grupo Abril, a Editora Abril que publicava em fascículos, e isso permitia... Eu trouxe também fascículos As fábulas encantadas, que a gente ia colecionando os fascículos e depois mandava encadernar. Eu achava fantásticas... Belíssimas.
P/1 – Coleção importada?
R – Acho que sim... Porque os fascículos eram encadernados semanalmente, eram caros, eram possíveis eventualmente. Eu achava lindíssimo, aqui, que eu lia, A Bela e a Fera, que bom que sobreviveu esse daqui, porque tinham outros e esse aqui sobreviveu também. Esse foi o primeiro livro ilustrado de encher os olhos: “Ah! Que coisa bela, bonito”. Porque eles não eram bonitos os livros, aquele lá que eu mostrei antes ele tinha duas cores, eventualmente uma ilustração colorida, quando aparecia uma dava uma felicidade, sempre tem uma ilustração colorida. Então a revista Recreio, que eu não tenho nenhuma guardada, mas a revista Recreio que foi onde surgiu Ruth Rocha, Ana Maria Machado, a própria Edy Lima. Eu também comprava de vez em quando, e a revista Recreio na época era essencialmente literária, era uma revista literária, mas tudo girava em torno do texto literário. E eu adorava também a revista Recreio e aquelas de disquinhos também, uns fascículos com disquinhos, que também tinham histórias com disquinhos. E aí, assim, tudo que mandavam ler na escola pra mim não tinha problema algum, eu lia com prazer. Tudo que mandasse ler, mesmo os livros didáticos de português, que tinham textos literários para interpretação. Eu gostava muito de poesia, de Cecília Meireles, de Henriqueta Lisboa. Então, como na época não era uma coisa possível, o que eu ia fazendo? Ia armazenando na minha cabeça: “Olha, quando eu crescer vou comprar um livro de poesia da Cecília Meireles, vou comprar um livro da Henriqueta Lisboa”. Então, era uma época que só tinha os fragmentos, do livro escolar. E eu lia as vacas todas de Edy Lima, eu sou da época das vacas, das primeiras vacas. Para minha felicidade eu vim encontrar a Edy Lima como editora na vida adulta, aí eu falei pra ela: “Nossa Edy, eu li as vacas todas, eu gostava muito das vacas e tal”. E a primeira vez que eu peguei um texto dela para editar, a minha criança de doze anos dentro de mim ficou assim: “Nossa, que responsabilidade mexer no texto da Edy Lima! Mas nossa, você não tem mais doze anos. Podemos mexer. Podemos mexer no texto da Edy Lima, porque já somos adultos e tal”, porque foi muito emocionante. E agora a gente se tornou amiga. E eu até trouxe também, José, aqui ela me emprestou a edição antiga da vaca, para eu matar a saudade. Eu trouxe uma delas. Porque agora eu comprei a vaca nova. A Vaca Voadora nova. Eu falei: “Ah, Edy, mas aquela edição da Melhoramentos, A Vaca Deslumbrada, A Vaca na Selva, A Vaca Proibida”. Ela disse: “Eu vou te emprestar para matar a saudade”. Só que está emprestada. Eu vou devolver para ela em algum momento. Então pra mim foi muito gratificante reencontrar a Edy como editora, depois de ter sido uma leitora na infância.
P/1 – As vantagens da profissão.
R – É muito, muito legal isso.
P/1 – Você entrou na escola e foi direcionando a sua carreira para que lado?
R – Pois é, não tinha a maior ideia do que fazer. Eu sabia o que eu gostava. Eu gostava muito de ler, eu gostava muito de Português. Então eu gostava muito de aprender línguas, a princípio inglês, eu estudava na Cultura Inglesa também. Eu tinha inglês na escola, eu sempre estudei, estudei até a oitava série, nessa escola municipal, e fiz o segundo grau na escola estadual. E a escola estadual era muito ruim, era muito ruim, era horrível. As aulas de literatura eram péssimas, eram horríveis. Aí eu fiquei um pouco desencantada, sabe? Porque eu senti uma injustiça, eu sempre fui tão boa aluna, mas meus pais não têm grana, e ainda no ensino médio minha mãe faleceu, eu tinha dezesseis anos. Daí eu achava tudo injusto, porque o que adiantava? Era a mesma história da sereiazinha assim: ser boa aluna, fazer tudo certinho e no final virar espuma. Vai parar na escola estadual. Eu não tinha ideia nenhuma. Eu acho que até esse fato de perder a mãe nesse momento, ficou uma coisa difícil, sem rumo, então eu me agarrei nas coisas que eu gostava. Eu falei: “Eu gosto disso, o que vou fazer com isso não tenho a maior ideia”. Então a primeira coisa eu quero ser professora, mas eu queria ser professora de escola pública, eu queria dar aula para gente carente, eu queria que meu trabalho tivesse um trabalho social. Aí eu fui dar umas aulas de reposição de uma escola bem de periferia da zona Norte, e ganhava uma miséria. Aí tinha um pouco de contato com os professores, tinha dezenove anos, nessa época. E aí eu falei do meu desejo de ser professora de escola pública: “Ah, não, pelo amor de Deus não faça isso”. Eu via, não tinha retaguarda nem de pai e nem de mãe. Então eu precisava de alguma coisa que me desse sobrevivência. Não dá para não ganhar dinheiro para sobreviver. Então eu falei: “Professora não vai dar, vou ter quer pensar em outra coisa”. Aí ficou um tempo essa história de secretaria, porque nesse momento a família ficava aflita também. Não eram filhas dele, mas eles precisam encaminhar de alguma maneira, porque estava ali. Então assim... Vai fazer concurso no Banco do Brasil, eu falei: “Banco pelo amor de Deus”. Então assim... Em um tempo eu trabalhei na Nossa Caixa como estagiária. Fui experimentar a tal do banco. Não dava, eram umas pessoas limitadas, a atividade era limitada, quem sabia fazer uma coisa, sabia só aquilo e mais nada. Se perguntasse alguma coisa fora daquilo, não era com ele: “Olha, fala com ele que isso é a parte dele”. Eu falei: “Poxa! Você já está há vinte anos aqui e não sabe nada fora do seu quadradinho, como assim?”. Eu falei: “Não vai dar”. Banco do Brasil é estatal, público, vai ser tão ruim quanto isso aqui. Então banco não é minha praia. Um tempo eu pensei em fazer isso lá. Com dezessete, dezoito, com a vida batendo na porta pensando no que fazer. O que eu queria fazer mesmo é Psicologia, mas não dava para fazer Psicologia, porque a USP [Universidade de São Paulo] era o dia inteiro, e eu só podia esperar na USP. Não pensava em outra possibilidade, porque não dava para pagar a faculdade. Então Psicologia está fora, porque é o dia inteiro, eu falei: “Vou fazer Letras. Eu gosto de ler, o que vou fazer com as Letras não tinha a menor ideia, mas eu vou pra lá, eu vou estudar Letras”. E aí eu escolhi uma língua. Aí escolhi o alemão, escolher alemão por quê? Porque eu achava a sonoridade bonita. Achava bonito o som do alemão, foi por isso que eu escolhi o alemão. Eu descobri que um bisavô era alemão. O pai dessa avó italiana era alemão da verdade, e na época do Império Austro-Húngaro, ele era porque quando um parente foi para a Itália, porque ele era tedesco. Agora entendi porque eu tive a maior facilidade de aprender alemão. Nunca foi difícil, porque eu só estava relembrando. Quando eu descobri que tinha esse bisavô alemão eu falei o certo, alguma coisa que já estava aqui dentro e eu já carrego aqui na bagagem de algum jeito. E ainda não sabia o que fazer da vida. E aí trabalhei no consultório médico, como secretária; aquela coisa, estudava, fazia USP de manhã, ia para o consultório à tarde, à noite duas vezes por semana fazia Cultura Inglesa, duas vezes por semana Instituto Goethe, e hoje eu olho para trás: como é que eu aguentava fazer tudo isso? Andando de ônibus, cruzando a cidade, uma loucura. E aí quando eu tinha uns 21 anos eu saí de casa; morava com os meus avós, fui morar com umas amigas, aqui na Vila Madalena.
P/1 – Aqui na Vila?
R – Na Rua Girassol, vim morar com umas amigas aqui. E assim, louca, porque ganhando nada, trabalhando no consultório. E aí eu ganhei a bolsa do Instituto Goethe para a Alemanha; quando eu fui estudar no Instituto Goethe, eu sabia que eles davam duas bolsas anualmente para os melhores alunos, e tinha uma condição: o cara tinha que comprovar que não tinha condição financeira, isso para mim estava tudo certo, eu estudava com bolsa lá. Então eu era aluna bolsista. Eu me enquadrava perfeitamente: eu não era descendente de alemães. Eu entrei e falei: “Eu vou ganhar essa bolsa”. Eu tinha uma certeza. “São duas, uma bolsa é minha. Quando chegar lá o momento vou levar”, e aí eu ganhei. E aí a mesma história de ganhar o instante, no dia de ganhar, o diretor do Instituto Goethe, me pedir: “Olha, a gente vai fazer uma festa aqui e vamos aproveitar pra entregar as bolsas. E você poderia subir, eu queria formalmente que as pessoas vissem que é uma pessoa de carne e osso, que ganham, que é verdade, é o amigo dele igual ele e tal”. Aí eu falei: “Eu vou ser honesta com o senhor. Eu não gosto dessa situação, mas tudo bem, se é por causa dos outros, para os outros verem, eu vou”. Eu não tenho a menor memória desse dia. Não tenho nenhuma memória de como eu cheguei lá, de como eu subi. Eu não guardei nada na memória, eu apaguei assim, eu tomei uma anestesia geral, e fui. Aí eu fui pra Alemanha, fiquei dois meses.
P/1 – Pra que cidade você foi?
R – Fui pra Bremen. Na hora de escolher, eu queria escolher Berlim, mas ainda eram as duas Alemanhas. E aí, quando eu olhei o mapa e eu vi Berlim, aquela ilha no meio da Alemanha oriental, eu fiquei meio claustrofóbica. Falei: “Meu Deus, deve ser esquisito esse negócio. É melhor eu escolher alguma aqui no ocidental”. E lá surgiu a oportunidade de ir a Berlim. Então eu conheci Berlim com muro, e tudo. Foi muito legal. Queria ter conhecido o teatro de Brecht, mas era muito opressivo, assim, o clima, o ar na Berlim oriental. Eu saí rapidamente assim.
P/1 – E você, os dois primeiros meses em Bremen viajando?
R – Bremen. Fiquei lá porque assim, eu não tinha dinheiro. Eu fui com a bolsa do Instituto Goethe exclusivamente com aquele dinheiro, porque assim, a família não tinha dinheiro pra me dar, pra eu ficar passeando. Eu ainda pude ir pra Paris, porque eu tinha uns amigos que moravam lá. Então eu fiquei um tempo em Paris. Foi muito legal. Esses amigos que moravam lá, o amigo era um professor de português e de francês, que foi morar lá com a família. Então foi muito legal o jeito que ele me apresentou a cidade. Foi muito assim... Ele fechava meus olhos pra mostrar, ele fazia uns caminhos, que eu abrisse os olhos e me desse de cara com a Torre Eiffel. Foi muito bacana. Foi muito legal. E foi no inverno, foi a primeira vez que eu fui pra Europa, e foi no alto inverno, foi janeiro e fevereiro. Então era aquele escuro, o dia não clareava. Aquele frio. Mas para mim, estava tudo bem, tudo certo. Aí que está essa história de pessoa esquisita. Eu nasci no Brasil, esse povo extrovertido, eu não sou extrovertida, eu não gosto de calor, eu não gosto de praia, e não sei sambar, eu não gosto de feijoada. Que pessoa mais fora de lugar. Eu gosto de inverno, eu gosto de frio, eu gosto daquela escuridão, para mim estava tudo certo. Assim, não tinha nenhum problema conhecer a Europa nesse momento. Estava bacana. Só que quando eu voltei, eu não tinha mais emprego, porque aí ficou uma situação. Eu não tinha mais emprego e eu estava fora de casa, aí eu falei: “Putz! Vou ter que voltar pra casa”. Daí as amigas que moravam comigo falaram: “Não, de jeito nenhum, você não vai voltar pra casa, a gente te ajuda”. E aí eu comecei, ficou, e eu falei: “Eu sou o quê?”. E falava assim: “Não, você acabou de voltar da Alemanha. Secretaria bilíngue. Vai procurar emprego na Volkswagen ou na Siemens, ou alguma coisa assim”. E eu falava: “Puxa vida!”, eu até fui sem convicção procurar.
P/1 – Você chegou a ir à Volks?
R – Comecei a recortar. Não cheguei a ir, mas comecei a recortar anúncios de secretárias, sem muita convicção. Eu falava: “Gente, eu não sou secretária. Eu não vou conseguir ser babá de homem grande. Não vai funcionar esse treco. Vai ser uma coisa esquisita!”. E aí eu fiquei meio “deprê”. Porque eu falei: “Como é que eu vou fazer isso?”. Até que um dia conversando com uma amiga, que estudava comigo ali no Goethe, estava essa história. E ela falou: “O que você estuda?”, eu falei: “Eu estudo Letras”. E ela trabalhava numa editora, na Hemus, ela trabalhava na Hemus, que é a Laura Bacellar. E aí ela falou: “Olha, vamos fazer uma coisa, eu estou precisando de uma revisora lá”. Ela era chefe de produção, numa editora pequena, tal. Ela falou: “Você não quer ir lá fazer um teste?”. E falei: “Oh!”; “Se eu não gostar do teste eu vou falar”; “Mas eu não sei a técnica lá”. Ela falou: “Não tem problema, se eu gostar do teste eu ensino a técnica, mas se eu não gostar eu vou ser honesta de falar, e a gente fica combinado desde já”; “Sem problemas”. E aí eu fiz o teste, ela gostou. E aí eu arrumei emprego como revisora. Aí veio uma situação de ganhar muito pouco, eu conseguia pagar as despesas da casa, porque dividíamos em quatro, e era tudo assim, muito contado. Se eu tomasse um café no boteco, não dava para eu pagar o ônibus. Sem brincadeira, sem exagero. Teve um dia que eu falei: “Eu vou tomar”, eu estava tão angustiada, tipo: o que eu vou fazer da minha vida? E estava adorando trabalhar como revisora, amando, assim, adorando. Eu lembro que a primeira coisa que eu peguei foi... A gente estava falando sobre filmes... Que naquela época eram filmes ainda, acetato com linotipo que era uma coisa que se você passasse o dedo, a tinta saía, tinha que tomar um cuidado pra manusear, e tinha um livro lá antigo, que estava com a ortografia ainda desatualizada e precisava raspar os acentos de “êste”, “êle”. Então eu tive que fazer isso, pegar filme por filme caçando acento e raspando com um estilete, a tinta dos acentinhos. Então foi uma das primeiras coisas que eu fiz. Eu estava adorando aquele trabalho, estava uma alegria. Às vezes eram uns livros assim, porque a linha editorial era meio confusa. Tinha os esotéricos que me agradavam, não tinha muito problema. Tinha uma linha de literatura juvenil, que era bacana. E tinha umas coisas assim, de Jesus. Tinha uns de autoajuda assim... Controle da mente. Umas coisas que eram assim, Deus me livre. E às vezes tinha uns livros jurídicos também, pelo meio. Tinha de tudo lá. Mas eu estava adorando. E aí um dia eu disse: “Puxa vida!”. Eu estava adorando e ganhando aquela miséria. Eu falei: “Eu vou a pé pra casa, mas eu preciso tomar um café no boteco e pensar na vida”. Parei no boteco pra tomar café, eu falei: “O que eu fazer? Eu quero ser secretária e ganhar um monte de dinheiro e ter uma vida financeira sossegada, ou eu quero fazer o que eu gosto e vou pagar o preço de ganhar pouco?”. Era bem isso, claramente. Eu falei: “Não. Eu pago o preço de fazer o que eu gosto!”. Foi assim, decisivo, eu lembro muito bem do boteco, da esquina, de ter sentado. Eu falei: “Eu vou fazer o que eu gosto e isso só pode dar certo”. Agora parece tudo muito ruim... E parece que dali pra frente, abriu assim, sabe? Começou a aparecer trabalhos de freelancer, começou a aparecer meios de ganhar mais dinheiro, fazendo aquilo. Começaram a aparecer. Fiz uma tradução de um teste de Psicologia, assim, pra uma amiga. Como é que era? Ela era psicanalista, eu acho que do Hospital das Clínicas. Indicou-me pra alguém, que tinha um teste americano. Aquelas coisas repetitivas, mas deste tamanho. Muito grande, que eu lembro disso, na verdade eu avancei no tempo, que memória é uma coisa complicada. A gente vai e volta.
P/1 – É, vai e volta. É verdade.
R – Mas tudo bem.
P/1 – Então Sâmia, a gente volta a perguntar do mercado de trabalho. Aí o que acontece?
R – Eu fiquei um tempo lá. Aprendi bastante, foi uma experiência muito rica essa da Hemus. E eu sou muito grata a Laura Bacellar, assim, sou extremamente grata, ela é minha amiga até hoje, é uma grande editora, a Laura; editora, tradutora, ghostwriter, autora. Ela é excelente assim, a Laura. E que teve essa paciência de me ensinar e que foi uma experiência rica, porque uma editora pequena é uma equipe minúscula; tinha a Laura que era a chefe de produção de tudo, então ela coordenava os trabalhos feitos fora de tradução, preparação de texto, o meu trabalho de revisora ali dentro, e depois com o tempo eu aprendi a fazer preparação de texto. Os caras da arte ela também que coordenava. Então era época, eu não vou lembrar o nome da máquina, aquelas que tinham as margaridinhas com os tipos?
P/1 – É IBM elétrica.
R – Então, era essa maquininha, que pra trocar a tipologia você tinha que por uma margaridinha dentro da máquina.
P/1 – Era a última tecnologia.
R – Era um máximo. Era um máximo. Só que era um “trampo”, que se você mudasse a tipologia na página, você falava, eu quero tipologia... E toda a vez tinha uma situação, eu quero uma tipologia outra. Putz! O cara tinha que tirar a margaridinha, por outra margaridinha, era o maior “trampo”. E era ainda arte final. E tinha um arte finalista, tinha esse cara que era o que compunha o texto, era o que fazia composição, que trabalhava na Composer, que era uma máquina. Tinha o arte finalista que diagramava o texto, porque o texto saía em papel impresso, ele colava numa base, que era uma cartolina, e cada emenda era uma tirinha que ele tinha que recortar com estilete, e se você emendasse o texto, eles queriam me matar, quando emendava.
P/1 – Aí ele recortava e colava.
R – É.
P/1 – Literalmente.
R – Literalmente. E aí você tinha que tomar um cuidado, porque aquela tinta manchava. Você não podia, é... Colar de qualquer jeito. Tinha um jeito certinho, bem assim pra colar, porque se não você podia manchar, borrar a linha de cima, borrar a linha de baixo, e aí tinha que imprimir tudo de novo, significava compor tudo de novo. Era bem difícil a vida. E ainda tinha, assim, filmes. Então, eu pude conhecer todo o processo de edição, produção. Era fantástico, estava tudo ali naquela salinha, com aquelas poucas pessoas. Foi uma experiência muito rica pra mim. Eu fiquei uns dois anos ali, até que foi ficando inviável economicamente. É porque para o dono da editora... Era uma editora familiar. Eram os donos. Eu era sempre assim: “Ah! Ela é jovenzinha, ela pode ganhar pouco. Tudo bem”, só que não dava. Eles sempre achavam que eu estava aprendendo. Eu cheguei uma hora que eu falei: “Max, eu não estou aprendendo. Eu já sei. Não estou mais aprendendo. Eu já sei muitas coisas e isso tem um valor no mercado”. Até que chegou uma hora que eu falei: “Bom. Não tem jeito. Eu vou ter que procurar outro lugar pra trabalhar”, embora eu adorasse o que eu fazia ali, adorasse ter aquilo tudo. Eu comecei a procurar. Eu fui primeiro na Ática. Eu entrei na Ática, olhei, eu não me vi trabalhando ali, era muito escuro, não sei. E aí eu conversei com o chefe da revisão, aí não sei. Achei também esquisito, achei tudo muito preso. Falei: “Ah! Não vai dar”. Nem fiz o teste, embora eu adorasse a Ática, os produtos, sempre fui leitora da Ática. A Ática é pioneira. Aí um dia eu encontrei uma amiga no ônibus e comentei com ela que eu estava procurando. Ela falou: “Ah! A Scipione está precisando de revisor. Ah! Vai lá fazer um teste!”. E eu fui lá à Scipione e gostei. A Scipione era mais descontraída, não tinha aquela coisa escura. E aí eu fiz o teste na Scipione e passei.
P/1 – Onde que era a Scipione?
R – Na Liberdade. A Hemus também. A Hemus era na Rua da Glória e a Scipione na Praça Carlos Gomes. Então passei muitos anos da minha vida ali na Liberdade. Uma delícia. E perto do centro. Nossa! Era uma delícia trabalhar ali. Muito bom.
P/1 – O que era a Scipione no período que você entrou lá?
R – Então, eu entrei na Scipione bem no começo dela, porque a Scipione é uma editora jovem, assim, perto dos outros pares dela, porque é uma editora de livro escolar. Ela tem 26 anos, enquanto, por exemplo, a Ática tem o dobro da idade, tem quarenta e poucos anos. E a Scipione nasceu como um apêndice da Ática. Era dos mesmos donos. Ela foi comprada do professor Scipione e pelo professor Anderson. É, pode ser que eu confunda alguns dados aqui na história, mas é mais ou menos isso.
P/1 – Não tem problema.
R – Quando o governo começou a fazer compras espetaculares de livros escolares, pra ter um CNPJ mais e poder escrever mais livros. Como o professor Scipione era pequeno, ele montou pra vender os livros dele, justamente. O professor Anderson comprou dele e começou a produzir livros pra vender para o governo. E aí foi crescendo o negócio. E começou a fazer outros... E até a literatura dentro da Scipione sempre foi também algo a reboque dos livros didáticos, diferentemente do que é na Ática, porque na Ática a literatura tem um peso igual. Eu acho que ela nasceu assim, com o mesmo peso. Na Scipione não. “Ah! Todo mundo faz, vamos fazer também”. Não dá tanto dinheiro, porque ela é uma coisa assim, foi um negócio feito pra dar muito dinheiro, porque essas vendas para o governo geram um volume muito, de assim, elas movimentam um volume de dinheiro absurdo, mais no passado do que hoje em dia. Ainda é um negócio muito bom, mas muito menos do que era no passado, porque tinham poucas pessoas disputando esse mercado. Poucas. Umas cinco. Então ela foi crescendo. E com a morte do professor Anderson, os herdeiros dividiram as duas editoras. Alguns herdeiros ficaram com a Ática, e outros com a Scipione. Então, no começo da Scipione a distribuição dos livros da Scipione e a comercialização eram feitas pela equipe da Ática. Ela não tinha uma equipe própria. Com a morte do professor Anderson e a divisão entre os herdeiros, ela ganhou uma equipe própria de divulgação e vendas, e distribuição própria. E aí ela cresceu loucamente, assim, em muito pouco tempo. Ficou muito grande. Então quando eu entrei era um negócio menor. Para mim foi muito estranho vindo da Hemus, daquele esquema de produção todo, eu vivia levando bronca, porque eu vivia fazendo coisas, falando: “Não. Isso não é você, é o fulano que faz. Não, você vai só até aqui. Isso aqui é fulano”, e aquilo era um pouco assim, se eu já estou vendo, por que eu não posso fazer? Eu achava meio burocrático. Era muito maior do que o lugar que eu vinha.
P/1 – E você continuava com o mesmo trabalho de revisora?
R – Eu era revisora. Em menos de um ano me tornei preparadora. E o grande detalhe: eu passei a trabalhar meio período e ganhar o dobro que eu ganhava na Hemus. Aí eu falei: “Oh! Dá pra viver disso”, olha que coisa boa. Que bom que eu fiz essa aposta lá trás, porque quando eu fiz a aposta lá trás eu comecei a pegar muito freelancer. Então eu pegava livros jurídicos, que era ó, era uma dureza, mas eu pegava livro jurídico pra fazer revisão. Paciência. E dava muito dinheiro. Ninguém queria fazer revisão de jurídico. Aí e o cara me convidou pra ser coordenadora do não sei o quê, coordenadora de... Eu falei: “Você enlouqueceu? Eu não entendo nada disso aqui. Como eu vou ser coordenadora disso aqui? Não dá. Não tem essa condição”. E aí eu ainda estava naquele momento de escolha. E, por exemplo, livro escolar, quando eu fui pra Scipione, eu falei: “Não, livro escolar? Eu não quero fazer livro escolar. É muito chato. Eu quero trabalhar com literatura. Eu não quero fazer livro escola”. Então eu achei que fosse ficar provisoriamente na Scipione, que dali eu ia pra um outro lugar, só que foram surgindo mais oportunidades ali dentro.
P/1 – Então você de revisora pra preparadora.
R – Em menos de um ano.
P/1 – O que é um preparador?
R – O preparador tem um pouco mais de autonomia, ele pega o livro em um estágio... Porque um revisor já pega o livro em provas, ele já passou pela edição, já passou por preparação e ele já está diagramado, você pode interferir muito pouco ali. Você está ali para olhar a forma, se tudo está ok na forma, e se a programação visual foi respeitada pela pessoa que diagramou, se está tudo certinho, não tem nada fora do lugar, se as figuras estão no lugar certo, se os títulos estão na tipologia diferente, cada está no seu peso. É essencialmente isso em si. E se você encontrar algum absurdo que passou pelas etapas anteriores, você aponta, mas você não pode canetar, você pode colocar a lápis ali. E, por favor, não coloque muita coisa, se não as pessoas se irritam lá, porque aí eu colocava um monte de coisa e aí falava: “Puxa, isso daqui já passou por edição e preparação, não é para você achar tanta coisa”. Que aí você arruma uma encrenca com os de trás, não, você não está respeitando o trabalho que foi feito. Então eu tive que reaprender muita coisa ali, porque como lá na Hemus éramos tudo nós mesmos ali, não tínhamos problemas, mas lá eu tive que me entender como instâncias diversas. E aí logo eu passei como preparadora. Preparadora, o que é? É o texto ainda não diagramado, ele ainda não está com programação visual, ele ainda está do jeito que veio do autor, passou pelo editor, na época era tudo em papel, datilografado.
P/1 – Conta mais o processo da época, porque ficou tão diferente.
R – Muito diferente, muito mais fácil. Mas na época a gente lutava com os autores para enviarem os textos datilografados, porque muitos queriam mandar manuscritos, a gente falava: “Não aceitamos originais, manuscritos”. Porque você tinha que entender a letra. Então vinha datilografado, a gente trabalhava na lauda. Então existia sempre uma lauda que a gente pedia para o autor fazer vinte linhas, com espaçamento duplo, porque a gente escrevia, fazia edição, preparação no espaço entre uma linha e outra, e nas margens, então era uma lauda que desejavelmente precisava ter um espaço nas margens, principalmente um espaço duplo, nem sempre vinha assim. Às vezes vinha uma coisa toda socada e você tinha que se virar ali, daquele jeito. Então o que a gente fazia muitas vezes? Dependendo do autor não tinha como você pedir: “Olha, a gente não quer assim, quer assado”. Isso implicava o cara ter que datilografar tudo de novo, impossível. Então a gente xerocava num espaço maior e fazia aquela rabisqueira, e tinha que se virar com aquela rabisqueira. E trabalhava a lápis, então, por exemplo, eu recebia o texto já todo rabiscado do editor, para fazer a preparação. A preparação hoje é você olhar se está justamente com a norma culta da língua portuguesa, e daí não é só ortografia, sintaxe, concordância etc., você pode encontrar incongruências, ou incongruências de estilo. Como eram livros didáticos informativos, você tem essa permissão pra mexer, pra interferir no texto, que é muito diferente de você trabalhar com literatura. Então dentro de uma editora de livros escolar, o que é que tinha? Tinha também literatura, mas era muito pouco. E no meu caso, como eu era muito detalhista, muito eficiente, o que é que vinha pra mim? Livro de química, com 300 páginas. Não vinha literatura pra mim. Lógico que não. Livro de matemática, livro de física, livro de contabilidade, às vezes eu falava: “Não tem como você às vezes refrescar um pouco a vida?”. Aí ele falava: “Não, mas você é muito boa”. De novo a sereiazinha, eu sou muito boa e viro espuma, entendeu? Meu Deus do céu... E aí assim, um belo dia depois... Entrei como revisora, virei preparadora em menos de um ano. Em menos de dois anos eu era assistente do chefe de revisão, o que significava uma coisa mais administrativa de ver o trabalho dos outros, não só o meu, mas ver o andamento dos trabalhos, o que foi, o que não foi, o que veio da arte, o que foi para o fornecedor e voltou os prazos. Já tinha essa... E aí ele virou editor de línguas e eu virei chefe da revisão. Então, menos de dois anos eu era chefe da revisão. E aí nesse tempo o que eu fazia para sobreviver? Porque era um desprazer enorme trabalhar com livro de química, eu fazia bem, eu até curtia aquela coisa de ficar vendo fórmula de química orgânica, via se estavam todos os “xizinhos” e bolinhas lá, mas eu queria uma coisa mais interessante, então eu fazia muitos freelancers de literatura para ter prazer, porque o prazer era esse, de trabalhar com textos literários ou outros textos mais interessantes do que um livro de química. Mas quando eu fui para a chefia de revisão, eu tinha uma chefia jovem, eu tinha 25 anos, não tinha nenhuma maturidade para aquilo, para administrar problemas entre as pessoas, de inveja etc. Foi bem difícil. Fiz bastante besteira e é com muito sofrimento que a gente acaba aprendendo, e era muito administrativo o cargo. E o que eu aproveitava para fazer? Porque era muito complicado isso que eu falei. Como a gente também tinha textos literários, eram menores. Você pega um livro de química de 370 páginas e um livro de literatura de 48. Só que o cara que está trabalhando ele não mudava o registro, ele saía metendo a mão no texto literário e aí eu falei: “Olha, não pode, isso aqui é uma outra coisa”. Antes de passar o trabalho eu sempre falava: “Olha, atenção”. Eu dava uma direcionada: “O livro é assim, ele está nessa situação, vai precisar que você preste atenção nisso, nisso e naquilo, está com problemas”. Porque na verdade eu já mandava... “Olha, isso aqui está com problemas, presta atenção nisso”. E no literário eles não conseguiam mudar o registro, e aí assim, o que eu fiz? Estava no meu poder de fazer, eu que distribuía o trabalho, eu fazia os de literatura. Eu falava: “Ah, não vai atrapalhar aqui o fluxo, deixa que eu faço”. Aí a minha vida ficou linda. Os contos de literatura vinham para mim.
P/1 – E o que eram os autores da Scipione na época?
R – Olha, a Scipione não tem muita tradição de literatura. Como a literatura sempre foi a reboque, qual que é o chefe do catálogo da Scipione? É a adaptação dos clássicos para crianças e jovens. A coleção Reencontro. Então assim, quem que adaptava? Tem até algumas adaptações feitas pela Ana Maria Machado, pelo Carlos Heitor Canir, tem livros de Edy Lima. Então eu trabalhei em alguns livros da Edy, ela tinha outra editora. E o que acontecia? Como não era muito valorizada a literatura dentro da editora, trocava muito de editor, tinha hora que não tinha editor, tem hora que não fazia literatura, era assim, qualquer nota, entendeu? E ele tem um histórico Frankenstein, sabe? De colcha de retalho mesmo, e cada um que chegava inventava uma coisa diferente, a única coisa que foi permanecendo foi a coleção Reencontro, que até hoje o carro chefe. E teve época que o editor didático editava literatura também, era assim. Muitos vinham e eu percebia que os textos vinham para preparar, por exemplo, direto do autor sem edição, nenhuma, nada, zero, tudo bem. Você tem que ter critério para editar literatura, não interferir muito no texto nem nada. Achar que você só passa por uma recorreção ortográfica não é verdade, até porque no nosso caso lá o livro vai para a escola e tem uma série de recomendações e critérios para a escola. Tem uma série de coisas que você tem que prestar atenção, porque se não ele não entra na escola. E muita coisa você vai negociar com o autor. Então eu fui me formando editora em um universo paralelo ali, sem ninguém perceber, e nem o chefe de revisão, porque tinha essa situação de toda hora trocar de editor. E alguns editores que vinham e que não faziam esse trabalho, sei lá, eram de outra época, sei lá... Tem esses problemas. Tá, então você conversa com o autor, eu converso. Então muitas vezes assim, era lindo, eu adorava aquilo.
P/1 – Você ia conversar com quem, por exemplo?
R – Eu acho que tinha que conversar, mas por escrito, com a Edy Lima, que eu me lembro bem. A Edy Lima era uma velha companheira, que era uma coisa difícil. Com a Edy não é assim que você vai mexendo no texto dela. Ela sabe cada vírgula que está ali, então se você for mudar uma vírgula você tem que saber explicar muito bem o porquê e negociar ali com ela, não é uma coisa simples, e com ela eu não tinha o contato, porque ela morava no Rio, isso tudo por escrito, cada coisinha que eu mudei no texto eu fiz tudo por escrito: “Olha, isso por causa disso, isso por daquilo, daquilo e daquilo”, para ver se ela aceitava ou não aceitava. E outros autores menos conhecidos que agora eu não vou lembrar o nome, porque a gente não tem tantos autores assim carimbados, o que é uma coisa para o bem e para o mal isso. Para o mal, porque é difícil a gente conseguir trazer autores, porque esses caras estão em todas as editoras. Então como é que você faz para seduzir um autor de renome e trazer para cá? Se ele pode ir para onde ele quiser, qualquer um quer, hoje em dia é muito complexo isso. Lá trás, nessa época em que eu fazia esse trabalho paralelo, eu acho que era menos, mas hoje você não tem só as escolares fazendo literatura infantil, você tem todo mundo, e todo ano entra mais gente. Tem gente que fazia literatura escolar, mas faz literatura infantil, e faz bem. E detalhe, eu acho que é uma concorrência desleal em certo sentido, porque essa gente está focada em literatura. A literatura dentro dessas casas não concorre com nada, com uma editora de livro escolar, não concorre uma didática. E é uma concorrência desleal, porque o didático é a prioridade número um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove e dez. Então isso não é uma coisa boa de trabalhar, em uma editora de livro escolar, fazendo literatura. É a coisa mais gostosa de fazer, mas para outro é a dificuldade de você conseguir espaço, investimento, olhares e tudo, porque o tempo inteiro você está disputando com gigantes ali. Então isso é complexo. Mas eu fui me formando assim. Como eu vi que eles trocavam toda hora, eu várias vezes falava para os editores: “Eu quero ser editora de literatura”. Mas teve uma época que... “Ninguém conhece você”; “Mas se vocês me derem uma chance, ninguém precisa me conhecer”. E teve uma época que isso foi uma coisa importante. O editor “x” teve uma época, não sei se nos anos 1970, isso foi uma coisa importante, o nome do editor, então eles alegavam isso, que eu não era uma editora conhecida e que eles iam trazer alguém de fora, que tinha um nome conhecido no mercado, que isso ia fazer vender os livros. Só sei que assim... Eu fiquei onze anos como chefe de revisão, sem conseguir nenhum espaço. Chegou uma hora que eu já tinha desistido, falei: “Ah, não vai rolar ou eu vou procurar em outro lugar”. No meio desse caminho eu fiz um curso de locução, eu vou trabalhar no rádio, fazer um curso de locução.
P/1 – Você fez curso de locução?
R – Fiz, eu vou trabalhar na TV, fazer locução de telejornal, sei lá... Ou fazer essas traduções, que estava contando na outra fita, chegou a aparecer uma tradução para fazer, de um teste psicológico gigante, repetitivo, chatíssimo, que me deu uma grana fantástica, que eu fui para a Europa nas férias, foi muito bom. Então eu ia fazendo essas coisas no paralelo que eu ia equilibrando meu tédio, de ficar fazendo aquilo, porque aquilo já não era mais desafio para mim, não tinha desafio, é muito complexo trabalho em editora em livro escolar, que os prazos são muitos apertados, o livro não pode ficar pronto a qualquer momento, ele tem um prazo determinado. E se for fora desse prazo você perde uma grana, que é muita grana, porque se você chegar atrasado na escola o concorrente já perdeu e você tem que ter, por exemplo, as quatro séries prontas, quintas, sétimas, oitavas. Você não pode ter a quinta e depois você entrega a sexta, não, ou você tem as quatro ou esqueça, você não tem nenhuma, então é uma coisa dura, muito dura, cada vez mais dura, que agora tem programa de governo e mercado privado e são as mesmas pessoas ali produzindo. Então é duríssimo. Eu acho que é um mercado que dá muito dinheiro, sempre tem trabalho, só que esfola as pessoas, esfola. As pessoas não têm tempo de respirar, não tem feriado, não tem sábado, não tem domingo, é uma loucura. Acho que a pessoa aguenta um tempo, e o duro que assim... Se você for ver as pessoas que trabalham nesse mercado elas ficam anos e anos assim. Você me vê, estou a 21. A gente não consegue sair, porque na verdade, por trás, você não está lá pela grana, você tem um comprometimento com a educação também, porque o tempo inteiro você está naquela loucura, prazo, mas nunca foge a minha cabeça a criança que vai usar aquele livro, isso vai para uma criança. Isso em algum momento vai parar na mão de uma criança. Então na hora que dá aquele desespero, você: “Não, vamos fazer o melhor possível, vamos fazer isso aqui ficar interessante, ficar bonito, porque isso vai parar na mão de uma criança”. Agora eu estou muito mais feliz desde 2000, porque quando surgiu essa oportunidade...
P/1 – Como é que aconteceu?
R – Foi muito interessante. Em 1998 nasceu minha filha e aí para mim foi muito bom, porque eu trabalhava na revisão, era meio período, eu tinha um tempo para ficar com ela e aí eu falei: “Puxa, e agora com um bebê, nunca mais eu vou conseguir. Com um bebê, eu sou mãe solteira, como é que eu vou conseguir agora com um bebê, me virar nos trinta, agora com um bebê, e eu, minha vida e tal, esquece, eu não vou mais atrás de nenhum sonho de ser editora de literatura, isso não vai acontecer”. Caiu do céu. Caiu do céu dentro da editora, assim... Porque surgiu uma oportunidade, eles resolveram criar um departamento separado só para literatura, não ficou mais misturado, um diretor separado. Na época era diretor, não era mais o cara que cuida do didático, chamam de paradidático, que é uma palavra horrorosa, eu sempre chamo de literatura que lá dentro chama paradidático, tudo que não é didático informativo também cabe aí. E aí apareceu essa oportunidade de ser editora, eu falei: “Ah”, quando não esperava mais. Eu falei: “Ah, não vai acontecer, e eu não vou correr mais atrás, porque agora eu não tenho mais mobilidade, e agora tem um bebê, não tem mais como eu fazer loucuras de jogar tudo para cima e tal”. E aí apareceu e eu fiquei muito feliz. Eu fiquei muito feliz mesmo. E aí eu até trouxe aqui na minha malinha...
P/1 – Ah! Essa mala está boa...
R – Minha malinha está boa... Ah, depois tem uma outra coisa... Ah, eu não trouxe... O primeiro livro que eu editei que era o Romeu e Julieta da Reencontro. Eu escolhi outro, mas eu vou mostrar do Reencontro Pollyana, que é uma adaptação Reencontro Pollyana. E aí a ilustração é feita com massinha, é bem bacana.
P/1 – Ah! Que ótimo, com massinha.
R – É muito legal.
P/1 – Quem que é a ilustradora, é a Luma, não?
R – Essa ilustradora não, é uma professora de Juiz de Fora, porque na época vão acontecendo umas coisas quando você está editando que é muito interessante. Esse autor que fez adaptação não é um autor conhecido... Ele é muito conhecido nas escolas.
P/1 – Júlio Emílio Braz.
R – Ele tem uma grande produção, ele escreve, ele já tem vários livros publicados, muito mais de cem livros publicados, ele vive de escrever e ele escreve para escola, para criança. Então encomendamos para ele a adaptação da Pollyana. E a gente estava: “Ah, como a gente vai escolher o tradutor? Como é que a gente vai fazer?”. Apareceu um original de uma professora de Juiz de Fora e ela já mandou um original de uma bruxinha, ilustrado, e era tudo com massinha, eu falei: “Nossa, que coisa fantástica, isso vai ficar bacana com a Pollyana”. E aí eu liguei para ela e disse: “Olha, nós não estamos interessados no seu original, mas estamos tão interessados na ilustração, você toparia ilustrar, igual você ilustrou, fez na bruxa?”. Ela falou: “Ah, topo”. E uma coisa inusitada, ela que arrumou fotógrafo, ela que estava em Juiz de Fora, mandava, fez tudo lá e mandou as fotos para cá, para depois poder diagramar, foi uma coisa um pouco complexa, mas foi bem legal.
P/1 – E esses foram uns dos primeiros então?
R – Esse foi um dos primeiros. E aí no começo... Então imagina... Eu peguei o quê? Quando sentei na cadeira de editor feliz da vida? O que você quer ser quando você crescer? Teve algum momento que você nunca teve clareza, fui indo assim... Mas em algum momento dentro desse plano eu falei: “Quando eu crescer eu quero ser editora de literatura infanto-juvenil”. Era isso que eu queria ser. Mas cada vez estava tão distante, que estava tão perto, mas parecia muito distante. Quando isso apareceu, foi uma coisa que eu falei: “Nossa, eu cheguei ao topo do mundo. Eu estou aqui com a cabeça batendo no céu”. Fiquei muito feliz, só que teve um trabalho árduo no começo, porque eu não peguei algo que vinha, eu peguei algo que... Eu fiz um trabalho arqueológico, porque fazia tempo que não tinha editor. E tinha coisa assim: contratada, que ainda não tinha sido publicada, coisa que estava lá para ser avaliada, enfim... Eu tive que fazer um trabalho de arqueologia que vinha da mão de muita gente, e tinha lá um plano já traçado que era para fazer para aquele ano, que outros fariam, e eu que peguei para fazer. O que eu pensei que tinha trazido, mas não trouxe, foi uma adaptação de Romeu e Julieta feita pela Renata Pallottini, para crianças. Foi muito bacana, e aí a gente escolheu um ilustrador que fez em madeira, ela ilustrou em tábuazinhas de madeira. Ficou lindo, com tábuazinhas de madeira, ficou uma coisa tão linda. E aí teve uma Bienal aqui em São Paulo, a gente expõe todas, e a Renata falou com o pessoal que estava lá. Falou de como foi o processo de fazer adaptações, que é um texto de teatro pra criança, em prosa. Foi muito bacana. Então a primeira experiência eu lembro, foi essa do Romeu e Julieta. Aí tinha tanta coisa para fazer, que estava tudo em minha mão. Escolher ilustrador, que eram todos pequenos, tinha um gerente. Tinha um chefe. Tinha uns colegas, um que trabalhava com livros estrangeiros, um outro que trabalhava com projetos especiais, mas o arroz com feijão estava na minha mão.
P/1 – Então conta pra quem não sabe... O que é o trabalho do dia-a-dia do editor?
R – Olha, a gente está sempre assim, pensando um pouco no futuro. Primeira coisa captar autores, ir atrás de autores, a gente recebe muita coisa pelo correio, mas disso tudo que a gente recebe pelo correio, aproveita-se muito pouco infelizmente, de montanhas de originais que chegam para nós. Nesse tempo que eu estou lá, de 2002 para cá, a gente não aproveitou dez dos que chegam. E a gente olha viu? A gente não joga tudo fora ou devolve tudo.
P/1 – Tem uma equipe que lê?
R – Tem. É uma equipe pequena. Eu lembro que quando eu era editora, porque hoje em dia eu sou gerente da área, mas quando eu era editora eu abria um por um, é, começava a ler, ou fazia uma leitura detalhada. Tem vezes que abria e já via que não dava. Eu falava: “Não, isso aqui não dá”. Já fechava, não ia até o fim porque não era o caso, que as pessoas enviam os originais, elas não têm ideia pra onde elas estão enviando. Então é uma editora de livro escolar, você tem que olhar antes pra onde você está mandando, o que essa gente publica? E aí manda um manual de engenharia, ou um livro de poesia. Livros de poesia daqueles assim, ou de história da vida chegam aos montes. Manuscrito, até hoje.
P/1 – Manuscrito?
R – Porque vem lá do sertão, do sei lá. E assim, é complicado, porque você vê que tem um sonho atrás daquilo. As pessoas têm tanta vontade de ser publicadas, de contar a história da vida, ou a história do amor que elas viveram, ou sei lá eu. E chegam montanhas de original mesmo. Muitos. Então, uns agora a gente tenta fazer uma triagem; daquilo que não tem nada a ver, a gente nem deixa ali na pilha pra avaliação, a gente já fala: “Olha! Não tem nada a ver com a nossa linha editorial”. Enfim. Então, isso é um trabalho. O outro é você ficar antenado indo atrás de pessoas, pessoas legais pra fazer. Eu, pessoalmente, tem gente que gosta, tem gente que trabalha encomendando original, eu não acredito nisso. Literatura, entendeu? Mesmo que esteja fazendo pra escola. “Ah! Escreve aí um livro sobre ética”. Teve uma época que era assim, tinha uns parâmetros curriculares nacionais. Era um tal de: “Você, escreve um livro sobre ética”. Eu: “Como assim?”. Sabe? Então, eu sempre, por exemplo, nessa minha vida eu tinha uns desejos assim. Então às vezes eu falo não. Queria tanto um livro que falasse de gravidez na adolescência e até me chegaram às mãos vários. E aí chegou um que eu falava: “Nossa! É esse! Esse aqui gostei, está redondinho, ele está pegando todos os pontos, o ponto de vista de cada um que está envolvido”. Porque não é só a menina e o menino, mas é a comunidade que eles estão inseridos. É a mãe de um, o pai do outro, a professora, o amigo. O que vai fazer, o que não vai fazer. E assim, estava redondinho sabe? Eu falei: “Nossa! Que delícia”. Então muitas vezes é uma coisa que parece que é assim, você planeja o desejo para o universo e acaba parecendo. Por incrível que pareça, acaba aparecendo. E outras vezes você vai atrás mesmo, você vai fazendo contato. Como? Indo em feiras, lançamentos de livros etc. Você tem que circular, você tem que circular, para as pessoas conhecerem você, saber quem você é. E aí um apresenta o outro, o outro que apresenta um. Porque é interessante esse universo, as pessoas também querem ser publicadas. E também assim, tem muita editora. Tem esperas nas editoras, então tem muita gente, em geral os autores mandam o mesmo original pra várias. E existe um período de espera de cinco anos num, dois anos no outro. Quem aceitar primeiro leva. E tem outros casos, por exemplo, eu já escutei de autores super amados: “Ah, não, não quero, já tem muita editora, não quero mais uma. Assim, não estou interessada em mais uma, porque fica muito espalhado”. Então assim, não é fácil você conseguir. Ir atrás de autores, esse é um trabalho do editor essencialmente. Você captar autor. Como diz, captação de autor. Então, por exemplo, hoje em dia é uma coisa fantástica que acontece, porque tem muitos eventos literários espalhados pelo país. E cada vez mais. Então quanto mais você puder ir a esses eventos, você vai encontrar as pessoas, os autores, os ilustradores. Um apresenta o outro pra você. Tem uma coisa assim que eu confesso, que pra mim, com esse meu perfil, não é muito simples fazer isso. Isso não é a parte boa pra mim, porque eu não gosto muito dessa coisa social, sabe? Eu não curto. Assim, ficar lá, e aí ficar sorrindo pra um, sorrindo pra outro, isso me cansa profundamente, é uma coisa exaustiva pra mim. Então hoje não faço mais tanto isso, porque como eu sou gerente da área, tenho uma editora que faz isso e faz muito bem. Assim, ela é excelente, a Maria Viana ela vai, ela não tem dificuldade pra fazer isso. Ela vai, faz muito bem. Mas pra mim essa era uma parte sofrida, eu ia, mas ah, como eu sofria. E só que assim, tinha um facilitador, porque, por exemplo, eu conhecia o Claudio Fragata, ele me apresentou a Fanny, daí me apresentou. E vai indo. E aí tudo bem. Porque pra mim assim, na hora que eu conheci e hoje ir ao lançamento do Lalau e da Laura é um prazer, porque eu já os conheço. E não porque eu tenho interesse de terceiro, não tenho nenhum interesse. Fui assistir a entrevista do Claudio Fragata porque eu gosto dele, sem nenhum interesse terceiro. Assim, pra mim ok, mas se eu vou e eu sei que eu tenho um interesse é muito difícil. Eu me sinto assim, muito mal, sabe? De fazer aquela coisa pra consegui alguma coisa.
P/1 – Entendi. Então a parte forte do trabalho é isso? A captação dos autores?
R – Forte. Muitos chegam, entendeu, José? Muita coisa chega de mão beijada. E aí são os presentes que vão aparecendo. A gente recentemente recebeu um presente, que eu não trouxe aqui infelizmente, da Ângela Lago. Um livro de poesias, que ela escolheu da Emily Dickinson e que fez a tradução.
P/1 – Ah! Eu tenho, é maravilhoso esse livro...
R – Maravilhoso. Aquilo caiu assim...
P/1 – Ela mandou pra você?
R – Ela mandou pra gente. Assim, teve uma história atrás. Mas esse ela mandou pra gente.
P/1 – É verdade. Esse livro é da Scipione.
R – Então assim, tem umas coisas que vão acontecendo, mas você precisa fazer um movimento. Assim, de algum jeito você vai tem que fazer um movimento de circular, por pouco que seja. E, depois que você já construiu uma relação, as pessoas vão mandando. “Ah! Esse aqui eu quero que seja pela Scipione”. E aí o porquê a relação é boa com a equipe que trabalha, que como eles podem escolher, ou porque assim tem mais espaço pra fazer, enfim. Aí são as razões que os autores vão poder te dizer. Mas a gente, assim... Óbvio, a gente tem uma exigência, e aí a gente vive também. Tem uma coisa que o editor vive numa encruzilhada, porque tem a minha exigência com a leitura. O que eu acho bom fazer? E o que é viável comercialmente? Nem sempre o que é viável comercialmente eu gosto de fazer, mas eu tenho que fazer. E isso assim, tem gente que faz isso sem muito sofrimento, tem gente que faz isso com muito sofrimento, que fica: “Nossa! A minha religião não permite fazer esse tipo de coisa”. Mas tem que fazer, e se a gente pensar que essas coisas que você não gosta que vendam um montão vão te possibilitar fazer uma coisa muito bacana, que é risco, que pode vir a dar certo. E aí fica menos sofrido. Mas a gente tem que estar sempre com esse olhar. Eu sobretudo, que gerenciou a equipe. A gente é meio orgânico. A gente tem uma equipe muito pequena, seis, oito pessoas. Então a gente faz tudo meio junto, não é tudo: “Ah, fulano faz isso, outro faz aquilo”. Então a gente monta o plano editorial meio junto. Um pouco indo atrás, um pouco das coisas que aparecem. Em muitos a gente capta em eventos literário. “Vai pra feira de Porto Alegre, conhecem lá um tanto de autores e já volta com um monte de original de lá. Vai para o salão do livro da Bienal no Rio, conhece um tanto de autores, e já volta com os originais de lá”. A gente sempre volta com coisas desses eventos. Então assim, por isso que tem que circular. “Vai pra Bienal de livro de Minas, volta com tantos contatos...”. Sempre surgem coisas. Por isso que a gente precisa se mexer, fazer essa social pra ir conhecer as pessoas.
P/1 – Então, Sâmia, você podia contar um pouquinho, como é que funciona o outro lado que é a chegada de um original até ele virar um livro?
R – Pois é, a gente, pra escolher os originais, a gente tenta, por exemplo. Primeiro, porque a gente tem um recurso limitado. A gente sabe quanto de investimento a gente tem naquele ano. Tem uma parte hoje em dia administrativa, fortíssima, que não tem nenhum glamour, que talvez em algum momento das vidas das empresas, das editoras tenha sido diferente, hoje em dia não. É uma coisa, eu acho de um modo geral, converso com colegas e em todas estão um pouco assim. Tem uma parte que é assim, isso é um negócio, que tem que dar dinheiro. Então vocês têm “x” de investimento pra esse ano. Quantos livros dão pra fazer? Tantos. E aí, então tá. Então a gente quer fazer um pouco, por exemplo, a gente sempre olha como é uma editora de livro escolar. A gente olha o Brasil. Então não podemos fazer só autor de Rio, São Paulo. Primeira coisa. “Ah, no ano passado a gente fez bastante gaúchos. Queremos mineiro esse ano. Queremos mineiros”. Que é muito difícil você conseguir autor de Goiânia, do Acre, do Amazonas, de Pernambuco. É difícil. Mas, por exemplo, esse ano a gente tem um cordelista que a gente conseguiu que é da Paraíba. Fantástico. Mas isso é raro. Então assim, a gente tenta distribuir, ter um máximo de diversidade de autores possível, pra não ter só autores paulistas. Isso é um dos critérios. Outro critério, eu também vou às feiras internacionais, também trago coisas de fora. Então eu sempre tento deixar uma porcentagem pequena de coisas de fora e privilegiar os autores nacionais, sobretudo no catálogo da Scipione, que houve uma época em que só se traduziu coisas. A gente ficou com um catálogo muito estrangeiro, com poucos autores nacionais. Então agora eu tento equilibrar isso, mas também tem uma porcentagem, sei lá, de 10%, do que a gente vai fazer é de coisa de fora, não necessariamente literatura, pode ser coisa informativa, por exemplo, texto de filosofia pra criança. Difícil arrumar um autor aqui, tem pronto lá fora, trás de fora. Exemplo. E eventualmente alguma coisa literária. E, sobretudo de literatura infantil, se pega textos austríacos ou alemães com ilustradores fantásticos. Coisas muito legais e que é bom trazer pra cá. Então depois que a gente escolheu quais são os títulos, a gente já sabe quanto dinheiro, começa com tanto dinheiro que eu tenho e que dá pra fazer. “Ah, dá pra fazer quarenta títulos? Ótimo”. O que a gente já tem na casa? Que a gente vai recebendo coisas, e vai captando e vai deixando meio: “Ah, isso aqui a gente quer publicar”, vai deixando tudo ali. E aí na hora que é pra fazer de verdade, pra valer, como a nossa equipe é pequena, a gente dá pra todo o mundo ler, pra todo mundo dá palpite. E aí todo mundo que trabalha com o texto, assim, as pessoas trabalham com arte, não necessariamente, mas aí quem trabalha com texto, e aí é o editor assistente, o editor, a revisora e eu, que sou a gerente... Aí todo mundo leu, todo mundo gostou, esse vai. Ou assim, às vezes um gostou, outro não gostou, ou tem ressalvas, eu falo: “Puxa! Esse aqui é tão legal, mas esse fim está meio estranho, ou está meio óbvio”. Às vezes o autor, você consegue negociar com ele. Fala: “Oh! É tão legal! Mas esse fim aqui está muito didático ou está muito assim, quadrado. Você não pode dar uma voada aqui nesse fim, ou fazer alguma coisa mais...”, tem autor que aceita. Porque a gente não vai propor isso a um autor que a gente... Que aí você já conhece os autores. Alguns são mais flexíveis, outros menos, mas o nosso processo é esse, passa pra todo o mundo e meio que todo mundo tem que gostar. A gente considera a opinião de todo mundo, dessas pessoas todas que leram. E aí assim, então vai. Só que depois que nós escolhemos, então são esses, eu separo um tanto também de literatura infantil, um tanto de literatura juvenil. E aí juvenil o que eu considero? De dez, onze anos pra frente, até dezoito. Bem, e infantil é de quatro até dez, onze. Porque tem uma coisa aí que se mescla, que fica um pouco aqui, um pouco ali. Tem uma transição que pega os dois. Tem alguns livros que a gente põe no catálogo infantil e põe no juvenil também, porque é o fim do infantil e o começo do juvenil.
P/1 – Porque é pré-adolescência.
R – Então tem coisas que a gente quer assim mesmo. Então a gente repete. Depois disso a gente montou, aí eu tenho que vender isso para a diretoria. Eu não tenho uma autonomia. Ah! É isso que eu quero fazer, pronto. Eu tenho que levar pra diretoria que é composta de um diretor geral, o diretor editorial, um diretor comercial e um diretor de marketing. E essa gente toda tem que achar legal. E essa gente toda não vai ler o original. Eu tenho que dar um. Eu falo: “Esse autor é renomado, não”. Mais esse tema, não mais eu tenho que levar alguma coisa, uma coisa. Eu tenho que fazer um resumo da ópera, daqueles sedutores, para caras comprarem a ideia. E aí a gente faz o quê? A gente faz um estudo de rentabilidade, aí sem essa parte administrativa, que é assim, não tem como fugir dela hoje. É melhor a gente que é editora aprender a fazer isso, se não vem um “nego” de marketing, senta lá e é ele que vai mandar. É. Então é melhor a gente aprender. Melhor aprender. Se não a coisa vai ficar muito mais chata. E o que a gente faz? Faz um estudo de rentabilidade com toda essa gente. Porque assim, quanto a gente vai gastar pra fazer? Quanto vai vender? Qual a projeção de venda disso? E qual é à margem de lucro que isso vai dar pra empresa? Grosso modo, vai? É uma coisa administrativa. Aí ok. Aprovou. Vamos fazer. Aí a gente sai correndo atrás dos autores, faz o contrato. A gente já deixa tudo mais ou menos conversado, que como a pessoa mandou pra mim, e para o outro e para o outro, se eu não falar pra ele que eu estou interessada, quando eu for falar ele vai falar: “Ah! Fulaninha já publicou”, e aí você: “Putz!”. Pra cobrir o buraco com outra coisa. Em geral a gente tem títulos em carteira, a gente nunca tem só aquilo que vai fazer, naquele ano. A gente tem algumas coisas já, que estão conversadas, porque se não, não dá. Você faz, por exemplo, eu estou trabalhando numa produção desse ano, mas eu já tenho coisas pra o próximo ano. Já tenho coisas ali separadas e, óbvio, vou ter que correr atrás de outras, mas eu já tenho umas tantas coisas ali. Porque a gente vai recebendo realmente muita coisa, através desses contatos. Aí então depois que escolheu... Começamos a trabalhar. Fizemos os contatos, tal. Aí cada autor é de um jeito. Tem autor, por exemplo, você vai trabalhar com literatura infantil e a ilustração é extremante importante, tem dupla que já vem juntos, Lalau e Laurabeatriz, é excelente quando funciona assim, porque, por exemplo, você tem muito ilustrador hoje em dia assim, não é praxe você pagar direito autoral pra ilustrador. Não é praxe, mas tem ilustrador, tem uns ilustradores super carimbados no Brasil, e que os caras não aceitam trabalhar sem ganhar direito autoral. Mas se a dupla não veio formada é muito complicado.
P/1 – Só com a dupla vindo formada.
R – É. Porque o autor não quer abrir mão do D.A. [Direito Autoral] dele para o ilustrador. A editora não tem como aumentar muito...
P/1 – Dobrar.
R – Não tem como. Fica inviável, comercialmente. E isso é um problema. Por isso que muita gente prefere trabalhar com estrangeiro, fica mais barato, é mais rentável pra editora.
P/1 – E muitos ilustradores estão virando autores também.
R – Muito. É excelente. Perfeito. Isso é bom, só que assim, tem uns que são bons autores e uns que, por exemplo, porque o cara vem da ilustração, vem da imagem, não necessariamente ele é bom com o texto; às vezes ele é humilde e você pode falar: “Olha! Mexa aqui, mexa aqui, mexe acolá”, e às vezes não, porque ele já é uma estrela como ilustrador e ele não aceita o seu palpite pra mexer no texto. E aí como a gente tem interesse em fazer, muitas vezes a gente sede: paciência. E vai vender, e vai dar certo, vai ser tudo bom. Só que a gente não fica com aquela felicidade. Você sabe que podia ficar melhor. É muito complicado isso, os autores, esses que são estrelas. Eles são as estrelas. Eu estou falando por mim, não estou falando por todos os editores do mundo. Mas eu, assim, tenho muita consciência no meu papel de editor, que eu estou lá pra promover a estrela que é o autor, que é o ilustrador, não eu. Eu sou do bastidor. Eu estou lá fazendo tudo acontecer pra ele brilhar. Se todos tivessem essa clareza, o trabalho seria mais tranquilo, mais fácil; mas muitos têm. Muitos têm essa consciência de quanto um livro é o trabalho de muitos. É o nome de um autor e de um ilustrador que vai lá, mas o trabalho é de tanta gente, tanta gente, tanta gente. E essa tanta gente não aparece, não precisa aparecer, tudo bem. É assim mesmo, só que a gente está lá pra isso. E tem autor que fica muito bravo, muito nervoso, não aceita interferência, é difícil de negociar. E tem muita coisa que às vezes interdita. Tem coisas, por exemplo, em nosso caso lá, tem alguma situação de que assim, por exemplo, se é um texto muito às vezes preconceituoso, às vezes não dá, se o cara não aceita, então a gente não faz, não vai rolar a parceria. É uma parceria, porque a gente tem o maior respeito com o texto, a gente não sai mudando tudo, a gente não sai metendo a mão no texto. A gente vai com o maior critério, maior respeito. Se a gente já escolheu o texto, é porque ele era bom, lá trás. E tem muitas coisas que você escolhe que você vê o potencial: “Nossa! Isso aqui é muito bom. Mas ele vai ter que mexer, aqui, ali, acolá”, e tem autores que aceitam e aí fica redondinho. É um trabalho que fica todo mundo feliz. O autor fica feliz, a gente fica feliz, porque fica um produto que agrada a todo mundo que trabalhou nele, mas é uma relação e é com cada um. José? Assim, é com cada a um. Não tem padrão. Você tem que conhecer aquela pessoa com quem você está trabalhando, que é o autor do texto. E às vezes você conhece fazendo. Às vezes dá umas brigas e você fala: “Nossa, e agora como é que eu conserto isso? Pra pessoa não se ofender, pra retomar, pra continuar o trabalho, pra terminar o livro...”. Assim, só que eu sempre acho na maioria dos casos, em quase 100% dos casos, quem tem que ceder é o editor. Ou então ele fala: “Olha! Não quero publicar!”. Eu estou sempre pronta pra ceder, mas em algumas situações não dá pra ceder. Nesses casos, por exemplo, você fala assim: “Não, isso aqui está preconceituoso, não é isso que a gente quer, a gente não quer, essa abordagem está equivocada. Aqui nesse trecho, isso aqui não”. E se a pessoa não abrir mão de jeito nenhum, a gente fala: “Puxa! Aqui não vai dar pra publicar. Vai ter que ser em outro lugar”, mas isso é exceção, em geral tudo vai bem, assim, porque as pessoas já estão acostumadas, já publicam já.
P/1 – Então, Sâmia, dizem na verdade que são muitas apostas. Na verdade é uma bolsa de valores.
R – Sim.
P/1 – É em parte o mercado e os leitores que decidem?
R – Exatamente. Eu acho que é o mercado e hoje em dia tem uma coisa nova que é o marketing. A campanha de marketing que a editora vai fazer, porque você pode ter um produto excelente, se ninguém souber que você tem ele fica lá secreto, lançamento secreto.
P/1 – Você diz hoje porque é um fenômeno mais recente o marketing para o livro infanto-juvenil?
R – Eu acho. Pelo menos o que eu vivo, do que eu vejo lá ao lado. Isso é bem recente, pelo menos nas escolares. Ou eu acho que mercado todo veio, assim, abateu-se sobre nós, o fenômeno do marketing, de uns poucos anos pra cá e é algo que ainda estamos aprendendo a lidar. É muito difícil a relação com as pessoas de marketing dentro de uma editora, que não necessariamente essas pessoas são leitoras. E aí dá muito assim, a gente sobe nos tamancos ali, fala: “Meu, você não pode divulgar. Isso aqui não é prego, não é sabonete, não é escova de dente, não é perfume. É produto cultural. Você tem que ter intimidade com ele, se não você não vai fazer direito. E pra ter intimidade você tem que ler, não tem outra saída”. Eu não vejo. Eles veem. Eles acham que vão olhar e falar: “Isso aqui yes! Vou por uma palavra de efeito aqui”, e você olha e fala: “Ih! Não é isso”, então é uma relação ainda difícil. Assim, é complicada. Eu acho também, essa é a minha opinião, muito pessoal, que tanto o departamento comercial, como o de marketing, os caras tem que ser leitores. Eles não são. Então a gente fica pensando aqueles sonhos, idealiza, e fala assim: “E se a gente fizer um clube do livro aqui dentro da empresa? E a gente se reunir uma vez a cada quinze dias? Sabe? A gente participar e ler com os caras”. Eu falo assim: “O que ele vai querer? O que ele vai ganhar com isso? Você tem que acenar com alguma coisinha. Que prêmio ele vai ganhar?”. Então isso é uma coisa. Isso não é na editora que eu trabalho, é em todas, em todas as editoras isso acontece.
P/1 – É uma tendência.
R – O cara dá uma olhada assim mais diagonal e fala: “Ah! Já sei. Vou fazer isso”. O editor fica ó, arrepiado quando vê, mas não é nada disso. Só que...
P/1 – Sâmia, falando das apostas. Quais apostas que deram certo?
R – Apostas que deram certo? Olha. É que assim, eu não vou te falar de nenhum grande fenômeno, por exemplo, lá dentro da editora as apostas que deram certo foi adaptação de clássicos pra criança, e um ou outro título. A gente tem lá os nossos bestsellers. É que deram certo. E aí a gente nem consegue identificar muito porque, a gente supõe que seja, sei lá, o tema, ou sei lá, a abordagem. Mas hoje em dia têm tantos, por exemplo, se é um livro que fala sobre preconceito, você vai ter tantos. Ou menos de gravidez na adolescência sempre você vai ter uns cem números de títulos sobre aquele tema. A gente ainda não consegue o marketing, ainda não desenvolveu ferramentas pra medir o sucesso ou o insucesso. Por que deu certo? Ah! Eles falam, eles chutam: “Ah, é autor renomado”, ponto. “É isso que dá certo, é isso que funciona”, mas, por exemplo, eu trouxe aqui dois casos que são sucesso.
P/1 – Ai, que ótimo.
R – Que não são autores renomados. Não necessariamente. Esse aqui da Mariana Caltabiano que é O Arca de Ninguém, que esse aqui a gente fez uma ilustração um pouco parecida com aquela de massinha, de biscuit. E esse aqui da Lô Galasso, que a personagem é cega. Esse livro foi um que chegou, ela trouxe pra mim, ela tinha publicado um livro quando ela não é uma escritora necessariamente, ela tem outras atividades. Ela escreveu alguns livros e um conosco. Ela escreveu um sobre ser mãe, que eu acho que ela publicou pela Ática. Agora ela relançou pra uma outra editora que eu não lembro. E em infantis ela tem um que é História Cabeluda, que fala de diversidade. Uma história com crianças que tem cabelos diferentes e tal. E esse aqui ela trouxe, ela falou: “Olha, escrevi um, mais eu quis trazer pra vocês, da Scipione”, eu li, me emocionei tanto, porque é uma história tão bonita, e essa história já virou filme, alguém pediu e fez uma curta metragem, que está concorrendo em festival, que a gente vai passar lá na editora amanhã. Ela vai levar o filme pra gente assistir lá amanhã, para o pessoal lá da editora. Ele já concorreu ao Jabuti, não ganhou, mas estava lá entre os dez.
P/1 – Ficou entre os dez?
R – Estava lá entre os dez, e vende muito bem, entendeu? Então tem coisas, acho que é o tema? Deve ser. Pode ser. E é uma abordagem muito delicada, porque as crianças ficam amigas e o menino não percebe que a menina é cega. Ele brinca com ela todo o dia, mas não percebe. E aí no dia que ele descobre ele fica muito bravo e vai tirar satisfação com ela: “Como? Como você não me fala?”. Ela falou: “E como você não percebeu? Você está todo o dia. Por que eu precisava te falar? Você enxerga e não viu?”. Eles ficam grandes amigos e aí eles brincam de ficar olhando... E a brincadeira deles é ficar olhando as figuras que as nuvens formavam no céu. Ele ia descrevendo pra ela. E ele começa... Como é que se diz? A esculpir pra ela, as formas que ele vê, pra ela conseguir ver com as mãos. Daí ela vira uma grande escultora. É uma graça a história, é muito linda. Não é piegas não, é assim, sabe? Não tem aqueles apelos óbvios e fáceis. Então, são autores que são super... Esse aqui também, da Mariana Caltabiano, tudo bem, ela trabalha no Iguinho no portal. Ela tem outros livros publicados, mas não é a principal atividade dela ser escritora, não é autora renomada. Vai muito bem. Entendeu? Então é como eu te falei, a gente não tem autor renomado. Tem um lado bom disso que você tem mais liberdade. Você não tem um compromisso. Porque tem um peso também, por exemplo, a Ática, que agora nós pertencemos ao grupo Abril, estamos dentro de uma unidade de negócio do grupo Abril, que é a Abril Educação, Ática e Scipione, comprou as duas. Então pertencemos, estamos ali lado a lado. Então a Ática tem uma outra situação, ela tem um compromisso com a marca, com o homem, com autores renomados e tal, que eu não sei se dá pra ela arriscar muito, com os autores? Até dá, mas eu me sinto com mais liberdade, até de publicar esses caras que fazem sucesso só na escola, que eu nunca vou poder escrever num prêmio que dificilmente ele vai ter chance.
P/1 – Me explica o que é essa diferença? O que é fazer sucesso só na escola, mas não poder ter chance num prêmio Jabuti, por exemplo?
R – Não necessariamente. Eu vou até falar baixo isso: não necessariamente tem qualidade quem faz sucesso na escola. Qualidade literária, muitas vezes não tem.
P/1 – Mas fazer sucesso na escola é ser adotado é isso?
R – Ser adotado. Os professores amam, adoram de paixão, as crianças são obrigadas a ler.
P/1 – Ah! Entendi.
R – É uma ficção. Ninguém vai negar ficção. Mas tem a qualidade literária questionada também. A gente mesmo, tem muita coisa, a gente que é assim todo esse compromisso com a literatura, tem coisas que você fala: “Puxa! Tudo bem, vou fazer isso aqui, porque isso aqui faz sucesso”, mas uma qualidade literária zero. Não tem. É uma ficção lá que o cara pegou uma fórmula de bolo, fez ali, funcionou. E o professor é o grande problema. O professor de um modo geral, não é leitor. Infelizmente.
P/1 – Esse é o grande problema.
R – Então. O que é assim, o sonho? Por onde a gente deveria começar? Queremos ter um país de leitores, formar leitores. A gente tem que começar pelo professor, pelos adultos, pelos pais. Como é que você vai fazer? Os pais são mais complicados. Professor está mais fácil, porque é uma gente que você já sabe onde está.
P/1 – Se o professor ler, e ler coisas de qualidade, os alunos vão receber essa influência.
R – Com certeza. Você sabe por quê? Eu acho que isso é leitor, eu acho que é por contagem. É uma coisa por contagem, que não contagia todo o mundo. Não adianta achar que o mundo vai gostar. Tem gente que não tem paciência, ficar sentado sozinho, dispor de um tempo pra ler. Às vezes não acontece. Só que assim, se você tem uma paixão, você consegue contagiar o outro. Se você não sabe do que estão falando, tem que fazer porque o currículo exige. O cara tem que prestar conta, lá no fim ele tem que ter dado “x” livros pra molecada ler. “Ai, que saco!”, ele dá o que o amigo dele já deu e funcionou. “Ah! Dei isso aqui e funcionou”, mas não que ele conheça o livro, que ele não tem tempo de ler, dá aula em 400 escolas. Enfim. Ele não tem uma formação literária. Isso se tivesse no curso que forma professor, já uma cadeira de literatura, seria fantástico. Eu fui fazer um curso assim, num centro de formação de professor. Lá da Escola da Vila. Centro de Estudos, que eles chamam, e é de formação de professor. Curso de literatura. Escrevi-me e fui lá, eu e um bando de professor. A moça que foi dar o curso, que era bibliotecária, uma mulher fantástica, como é que ela fez pra começar o curso? Ela deu um personagem literário, cada um ia ser um personagem literário. Sherazade, Miguilim. Eles não sabiam quem eram. Nem Sherazade.
P/1 – Nem Sherazade?
R – Nem Sherazade. Não sabiam. Ficou aquela coisa constrangedora. Ninguém sabia o próprio personagem, porque aí a gente tinha que se apresentar pelo personagem. “Eu sou Miguilim”, você tinha que falar. Você tinha que se apresentar como fosse. Não rolou porque ninguém sabia. Eu falei: “Meu Deus do céu”. Como é que esse cara vai contagiar alguém? Ele dá aquela coisa burocrática. Porque tem quê. Dá alguma coisa, pra molecada ler. E aí que entram essas coisas, que são coisas fáceis, que assim, tem aquela fórmula de bolo, topa uma aventura com criança... Blá-blá-blá... Que fala de preconceito, fala de drogas.
P/1 – De temas.
R – É.
P/2 – Gostaria que você lesse um pedacinho daquela história da sereia, já que foi bem influente pra você.
R – Ah! Um pedacinho dessa história? É uma ideia boa. Vamos ver se eu localizo um pedacinho dessa história... Eu vou ler a parte que eu abrir aqui. É quando ela vê o navio, ela tem um fascínio. Olha, é uma página bem colorida que é tão rara dentro do livro. Ah! Aqui é quando ela encontra o príncipe se afogando e se apaixona por ele. Mas aqui é quando ela está vendo, porque elas têm uma permissão pra ir olhar os humanos. E quando faz quinze anos. Então ela vai até lá. Aí ela pergunta pra avó, ela está conversando com a avó: “‘Por que nós também não temos alma, vovó? Como eu gostaria de ser humana e poder pensar numa vida futura’; ‘Deixa de bobagem minha filha. Somos muito mais felizes assim’. Sereiazinha calou–se, mas ficou matutando. ‘Se eu virar espuma, vovó?’, perguntou depois, ‘nunca mais poderei ver as flores? Não haverá um meio de eu adquirir uma alma imortal?’; ‘Não. Salvou-se uma criatura humana a amar tanto que punha você acima de seus próprios pais. Aí sua alma se repartiria com você, mas isso nunca acontecerá. Os homens se riem de nossas caldas, pra eles uma deformidade, preferem aquelas horríveis pernas, com que andam e se equilibram’”.
P/1 – Ah! Que história bonita.
R – É linda. É muito linda.
P/1 – Sâmia, agora estamos chegando ao final da entrevista, infelizmente.
R – Nossa! A gente já falou de um tudo aqui. Já falamos muita coisa.
P/1 – Então, você que está vivendo 24 horas por dia a literatura infanto-juvenil. E nas feiras, no exterior, entendendo o que se produz lá. Como é que você vê a literatura que a gente produz aqui no Brasil, comparada com que se produz fora?
R – Olha, eu tenho muita alegria com isso, sabe? Porque quando eu comecei a frequentar as feiras internacionais, a gente estava muito atrás, e isso não faz muito tempo. Isso na minha visão. E hoje eu acho que a gente não fica devendo nada pra ninguém. A gente está produzindo uma literatura de qualidade, não só qualidade literária, como qualidade gráfica. A gente não fica devendo nada para ninguém. Eu acho que a gente tem uma produção literária nacional de excelente qualidade. Eu espero e eu acho que isso vai acontecer em breve, que a gente comece a ser também vendedor de direito autoral nessas feiras. Já tem umas pequenas iniciativas, que a gente vê lá a Companhia das Letras com a banquinha dela vendendo direito autoral nas feiras. A gente não vai ver só comprador mais. Eu acho que em algum momento a gente vai começar a também a ser vendedor de direito autoral. A gente não vai lá só pra comprar, mas pra vender também. Eu digo isso com muita alegria, sabe? Porque eu acho que se eu estou há 21 anos na Scipione, foi esse tempo que cresceu tanto. E de pouco tempo, acho que nos últimos dez anos, eu acho que a literatura infanto-juvenil deu um salto; primeiro tem muita gente interessada em produzir. A concorrência ficou muito grande e é um mercado que está numa efervescência fantástica.
P/1 – E a literatura brasileira tem alguma característica especial?
R – Eu acho que é da cultura popular, que é da tradição oral. É o que nós identificamos. É o que identifica cada país. Lá fora também, você identifica pelo que tem de próprio ali, de cada lugar. Eu acho que a gente é muito rico, a cultura popular brasileira é muito rica, e isso tem aparecido nos livros. E eu acho que a gente, os brasileiros, a gente é um povo muito criativo e muito artístico. Então, por exemplo, nessa parte gráfica também, tanto de ilustração como das pessoas que trabalham com design, ou até com aqueles que pensam nos acabamentos, a editora de arte que trabalha lá comigo, que é Marisa Martini, é fantástica. Assim, ela tem umas ideias super criativas, a gente tem que até ficar cerceando um pouco a criatividade. Mas assim, eu acho que aparece muito isso na produção nacional. Muito dessa cultura eu acho que é exportável. O que tem de nosso, da cultura local. E cada região tem a sua. E olha o tamanho desse país, tem muita coisa que ainda não está posta em livro.
P/1 – Ah! Sem dúvida.
R – Tem muita coisa. Tem muita coisa ainda. E eu acho que isso é exportável, que o Brasil não é só samba, bunda, futebol. Tem muita coisa legal aqui. E eu acho que isso está crescendo num terreno bem fértil, que a gente tem aqui.
P/1 – Então, Thiago, tem mais alguma questão? Eu queria terminar com você contando a sua impressão de contar a sua história para o projeto Memórias da Literatura Infanto-Juvenil.
R – Olha, muito interessante, viu? No começo eu falava: “Nossa! Mas como é que você olha pra atrás assim e consegue fazer um resumo, ou sem esquecer as coisas fundamentais, importantes?”. Mas eu acho que na hora que você está falando o que veio era fundamental. É simples. Não é uma coisa. Porque tinha um lado meu que ficava angustiado: “Ai, meu Deus do céu! Vou esquecer um monte de coisa”. E depois eu falava assim: “Não, eu não tenho que estudar pra falar, porque eu vou falar de alguma coisa que está dentro de mim. Eu não tenho que me preparar pra falar. O que eu falar na hora é o que tem que ser dito, porque eu estou falando de alguma coisa que eu vivi, que está aqui nas células, no sangue”. Então, e cada vez mais eu acho que eu estou no lugar certo, fazendo o que eu tinha de fazer. Eu sou realmente muito feliz com a escolha, que a vida fez isso pra mim na verdade, que não foi bem eu que escolhi. Como eu não existia, então eu não tenho muito essa história, vou ser editora de literatura infantil. Eu acho que é um pouco a vida que escolhe.
P/1 – Sem dúvida. Então, Sâmia, em nome do Museu da Pessoa, agradecemos muito a sua disponibilidade.
R – Eu é que agradeço. Eu é que agradeço a vocês.
P/1 – E essa aula que você deu pra gente.
R – Ah! Eu espero que ajude, que contribua. Legal.
P/1 – Muito obrigado.
R – Eu é que agradeço. Obrigada vocês.
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