Projeto Memória nos Bairros
Depoimento de José Enes de Jesus
Entrevistado por Cláudia Leonor e Stella Franco
São Paulo, 19/09/2000
Código: MT_HV001
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Valéria Peixoto de Alencar
Revisado por Ligia Furlan
P/1 – Bom, vou pedir pro senhor repetir o nome completo do senhor...
R – José Enes de Jesus, é o meu nome.
P/1 – E aonde o senhor o nasceu?
R – Nasci em Nacip Raydan, Minas Gerais.
P/1 – E que dia?
R – 28 de outubro de 1952.
P/1 – E o nome dos seus pais?
R – Nome dos pais: José Dias de Almeida e Maria de Jesus, também nascidos em Minas Gerais.
P/1 – O senhor estava falando do nome da cidade, que é o nome de turco...
R – É, então, minha cidade de nascimento antes se chamava Bananal. Havia um médico na cidade vizinha, cidade chamada Santa Maria do Suaçuí, ele entrou na política e fez carreira, vereador, prefeito, deputado, e tinha perspectiva do governo de Minas. Como as intrigas políticas nos interiores são muito fortes, eles acabaram matando este político. Ele tinha levado pra cidade o correio, ajudado nas estradas... Então as autoridades da minha cidade fizeram uma homenagem póstuma, mudando o nome da cidade de Bananal para Nacip Raydan.
P/1 – E qual a profissão dos pais do senhor?
R – Meu pai era garimpeiro, trabalhava lá nas pedras preciosas, mais especificamente a malacacheta, que é aquela pedra que faz as resistências de ferro, que parece plástico, sai em bloco, que se vai trabalhando detalhamento, esses blocos. E a minha mãe era dona de casa, cuidou aí de 12 filhos.
P/1 – E como é que era a convivência da casa, assim? Descreve como era esse cotidiano, esses 12 irmãos...
R – Então, dois morreram pequenos, acho que com cinco e seis anos; depois ela teve dois mas perdeu, abortou. E a convivência era muito fraterna. No interior a gente tinha uma casa muito grande, quintal com frutas, um local que tinha muita gente, muitos vizinhos, tinha água do...
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Depoimento de José Enes de Jesus
Entrevistado por Cláudia Leonor e Stella Franco
São Paulo, 19/09/2000
Código: MT_HV001
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Valéria Peixoto de Alencar
Revisado por Ligia Furlan
P/1 – Bom, vou pedir pro senhor repetir o nome completo do senhor...
R – José Enes de Jesus, é o meu nome.
P/1 – E aonde o senhor o nasceu?
R – Nasci em Nacip Raydan, Minas Gerais.
P/1 – E que dia?
R – 28 de outubro de 1952.
P/1 – E o nome dos seus pais?
R – Nome dos pais: José Dias de Almeida e Maria de Jesus, também nascidos em Minas Gerais.
P/1 – O senhor estava falando do nome da cidade, que é o nome de turco...
R – É, então, minha cidade de nascimento antes se chamava Bananal. Havia um médico na cidade vizinha, cidade chamada Santa Maria do Suaçuí, ele entrou na política e fez carreira, vereador, prefeito, deputado, e tinha perspectiva do governo de Minas. Como as intrigas políticas nos interiores são muito fortes, eles acabaram matando este político. Ele tinha levado pra cidade o correio, ajudado nas estradas... Então as autoridades da minha cidade fizeram uma homenagem póstuma, mudando o nome da cidade de Bananal para Nacip Raydan.
P/1 – E qual a profissão dos pais do senhor?
R – Meu pai era garimpeiro, trabalhava lá nas pedras preciosas, mais especificamente a malacacheta, que é aquela pedra que faz as resistências de ferro, que parece plástico, sai em bloco, que se vai trabalhando detalhamento, esses blocos. E a minha mãe era dona de casa, cuidou aí de 12 filhos.
P/1 – E como é que era a convivência da casa, assim? Descreve como era esse cotidiano, esses 12 irmãos...
R – Então, dois morreram pequenos, acho que com cinco e seis anos; depois ela teve dois mas perdeu, abortou. E a convivência era muito fraterna. No interior a gente tinha uma casa muito grande, quintal com frutas, um local que tinha muita gente, muitos vizinhos, tinha água do rio. Era uma beleza, a convivência fraterna em casa. O mais velho... Geralmente o mais velho que pega um pouco mais das responsabilidades. Minha mãe saía pra fazer alguma coisa, era a gente que cuidava das outras crianças, por isso hoje eu não tenho dificuldade em fazer comida, lavar roupa, passar roupa, ajudar muito a minha mãe. Mas a convivência era fraterna, muito boa.
P/1 – E a vizinhança, como é que era?
R – A vizinhança também muito boa, a gente cresceu com muita amizade, e nós morávamos... De um lado morava minha avó, do outro lado morava uma vizinha que... Era tudo comadre, quase parente, porque meus tios, pelo menos dois tios, casou com a família vizinha, então era como família, e a terceira casa era da minha tia. Enato era todo mundo amizade, crescemos junto com os primos, amigos e familiares, uma convivência muito bonita. A gente percebe que as crianças nascidas nas grandes cidades não tiveram aquilo que nós tivemos, e por isso eu acho as dificuldades de muitas crianças da cidade, ou seja, nervosas, violentas, o primeiro brinquedo que a criança da cidade vê é a televisão, um revólver, quer dizer, não conhece como funciona a vida. Você andar a cavalo, você ver um boi, ver um cachorro, mexer com um gato, você ver as coisas nascerem, o feijão, o arroz, a frutas, “como é que isso dá?” Isto dá muitas informações que as nossas crianças do centro da cidade não têm.
P/1 – E as brincadeiras, vocês brincavam do quê?
R – De bola, nós jogávamos bola; brincávamos também de igreja, eu era o padre da turma (risos), chegava das missas, vinha lá a garotada e queria fazer o mesmo que aconteceu na igreja. Fazia missa, fazia procissão, então havia muita criatividade, era interessante.
P/1 – E vocês se vestiam?
R – Ah sim, eu vestia o saião da minha avó. Minha avó ficou viúva, geralmente as viúvas se vestiam de preto, pra nunca mais... Morria o marido... Então minha avó tinha um saião preto, batendo até aqui em baixo. Vestia aquele saiote... Porque naquele tempo os padres andavam de batina, aquelas batinas pretas e tal.
P/1 – E assim, a parte religiosa da família, como é que vocês participavam?
R – Minha avó era muito católica, minha avó andava as três cidades vizinhas ali – que geralmente são cidades uma perto da outra – que dava, mais ou menos, uma hora de viagem a pé, e ela corria tudo isso a pé.
P/1 – Que cidades eram?
R – Virgolândia, que é a cidade vizinha, que dá pra ir com 40 minutos a pé. As festas do padroeiro, ela não perdia nenhuma dessas festas. Do Divino, cidadezinha vizinha também, acho que uma meia hora, Divino, Minas Gerais, chamava Comércio do Divino. Ainda não é cidade, menorzinha do que a Virgolândia ou a minha cidade, e aqueles... Pequeno comércio, como é que se fala lá? Nós chamaríamos de bairro...
P/1 – Vila?
R - Vila, uma espécie de vila! Havia uma vila chamada Bom Sucesso, era lá que meu pai trabalhava. Havia Bom Sucesso de um lado e havia Serra do Macedo, era lá que meu pai trabalhava, lá tinha o garimpo de malacacheta, o garimpo de mica. Então essas vilas tinha uma igreja, o povo muito religioso. Fim de semana o povo ia pra igreja, não havia padre, padre era de ano em ano, mas havia um casal, uma pessoa que tomava conta da comunidade, que fazia oração, então minha avó puxava a gente um pouco pra religião, e eu, como neto mais velho... Não, não era o mais velho, mas era um dos, era eu e mais um outro, a gente começou a crescer e ela começou a puxar a gente, então onde ela ia ela estava no levando para as festas. Muito interessante, eu tenho a memória muito forte na convivência com a minha avó nesse período de religião, o conhecimento da religião, etc.
P/1 – E quantos anos o senhor tinha, mais ou menos, quando começou a ir a essas festas com a sua avó?
R – Acho que cinco, seis anos, por aí. E foi muito forte. Depois minha avó veio a falecer, acho que eu tinha uns nove anos, mas ficou marcado, isso fica na memória da gente, ela puxando a gente pra ir à celebrações. E era muito cedo, as missas naquele tempo eram seis horas. Como a minha mãe... Quer dizer, escadinha, minha mãe ficava com as meninas, ela pegava os mais velhos e depois ia pra igreja. Depois a minha tia, filha mais velha da minha avó, é que levou também muito a sério a questão da religião, a minha tia era rezadeira do local da vilinha onde nós morávamos, ela que rezava o terços naquelas casas, nas fazenda, Maria Tiradeira de Terço, Maria do Terço, está viva até hoje, está com 80 e poucos anos. Aí ela começa a levar também a gente, a gente já começa a ler, as vistas dela começam a ficar meio embaralhadas, a gente começou a aprender o ofício. Era um livrinho, a gente ficava perto dela lembrando ela. Não sei se vocês conhecem o ofício de Nossa Senhora, é longo, é longo, e coloca todos os títulos de Nossa Senhora, é uma espécie de ladainha, ladainha de Nossa Senhora, é muito interessante. Então tudo isso marcou a vida da gente, acho que a religião na família traz um caminho novo pra vida da gente, é referência, acho que a religião é referência para a vida da gente. A partir daí é que começa também esse falar de ser padre, talvez essa influência, talvez a identificação com o padre. O padre da minha cidade era um padre negro, um homem alto.
P/1 – Como é que ele chamava?
R – João Alvelino dos Reis, virou cônego, Cônego João Alvelino dos Reis, uma pessoa fantástica, um grande orador. Eu ficava impressionado, e mesmo pequeno já era impressionado com o estilo dele, amado por estas cidades vizinhas. Ele era pároco, a sede é Virgolândia, e ele corria todas essas cidades que eu disse pra você: São José de Safira... Havia uma outra cidade chamada Marilac, então Marilac, Virgolândia, a minha cidade _______________, esses comércios: Divino, Bom Sucesso, Serra do Macedo, Taperão, que é uma espécie de bairro, Empossado... Toda essa região era desse padre, e em muitos locais não tinha carro, era cavalo, ele andava a acavalo. Ele sofreu muito, a gente fica imaginando o que era ser padre numa região daquela. Não é diferente hoje porque (risos) são poucos padres ainda, o padre da cidade de Virgolandia faz todo esse trajeto também, com exceção de duas cidades, acho que Marilac e São José, que já têm padre, mas essa Virgolandia, Bom Sucesso, é todo esse mesmo padre que faz. Mas era interessante, o que movimentava as cidadezinhas pequenas, naquela época, era a festa, a igreja que era a atração principal da cidade. As festas do padroeiro, isso envolvia as cidades vizinhas, com leilão, com as procissões, com rei e rainha, “o rei e a rainha desse ano são fulano e ciclano”, então ele vai trabalhar toda a infraestrutura da festa, e cada uma das mais bonitas. A procissão com banda de música, com caboclinho... Não sei se vocês conhecem...
P/1 – O que é que é o caboclinho?
R – O caboclinho é uma espécie de reisados. Conhecem reisados? Então, caboclinho... Colocavam nas suas roupas penas de angola, de galinha – eu não sei como colocava –, nas calças, na camisa, e fazia um cocar. Eu ficava imaginando, acabou isso lá na minha região, quanta saudade... Porque isso acabou. Depois a gente, estudando antropologia, vai percebendo as origens culturais das cidades; tem algo com o indígenas, tem algo com o negro, e havia também congada.
P/1 – Mas junto com a procissão?
R – Junto com a procissão _________. Era muito interessante, começava a procissão, então vai a cruz, as velas, em seguida vai o povo acompanhando. Depois, mais no final vinha o rei e a rainha com a coroa. Vinham os anjos, depois vinha o santo, quer dizer o padroeiro da minha cidade, Nossa Senhora da Penha, toda enfeitada. Vinha banda de música e vinham os caboclinhos. Então revezava, uma oração, um canto, um toque dos caboclinhos e um toque da banda de música, isso é muito interessante. E na minha região o que chamava muito a atenção, além da festa do padroeiro, era a Semana Santa, feita por esse padre João. A semana santa era ímpar, atraía pessoas de diversos locais além das que moravam já em Valadares, que é a cidade maior, Comarca, ou Belo Horizonte, Rio [de Janeiro], São Paulo. Então todo mundo vivia – São Paulo, Rio, Belo Horizonte – em função da festa. Quer dizer, trabalhava para que as férias coincidissem com a Semana Santa. Impressionante, lotava a cidade, a cidade ficava cheia. E nós morávamos na saída da cidade, não era dentro, era na saída, e em frente à rua, à estrada que vai para Virgolandia. Então era interessante mesmo, nós trabalhávamos, juntávamos nosso dinheirinho pra naquele dia ter uma roupinha nova, calça, uma camisa, um chinelo. Não usava sapato, então chinelo, né? A gente almoçava e ficava na porta, aquela multidão na porta olhando as pessoas passarem, todo mundo de pé. Tirava os calçados... E a cidade lotava nos três dias finais, que são sexta, sábado e domingo. A locução do padre na Sexta-feira Santa era algo que fascinava, e o momento da descida de Jesus da cruz... Coisa impressionante, o padre falando naquele tom dramático. Eles fazem a Semana Santa ainda hoje, Ouro Preto... Você entra num clima forte, de luto, isso impressionava. A descida de Jesus da cruz, as figuras bíblicas acolhendo Jesus, colocando no esquife... Nossa. Depois a gente ficava impressionado, a gente era muito pequeno, a gente voltava pra casa impressionado (risos) pra dormir. Se vê Jesus morto, no esquife, ficava muito impressionado. Era muito interessante, isso marca a vida da gente.
P/1 – Padre Ennes, alguém da família incentivou o senhor a seguir, a se tornar padre? Como é que foi isso?
R – Eu falava: “Eu quero ser padre, eu quero ser padre” desde criança, eles falavam: “bobagem menino, deixa de bobagem, que ser padre.” Não sei o que eles pensavam, se é por causa da cor... Não, o padre era negro e é compadre dos meus pais, esse padre batizou um irmão meu, ele que batizou, era padrinho, então a gente não sabe por que eles não incentivaram, só falavam: “isso é bobagem”, e eu continuava fazendo as minhas missinhas pra garotada (risos). Era interessante. E isso nunca mais saiu da minha cabeça, passei a fase de adolescência, terminei o primário, já fui trabalhar nesse comércio, numa mercearia, mas é que ficava dentro da cabeça, e passei minha fase de adolescência, juventude, namorei, mas não encontrava alguém que me preenchia, estava sempre faltando alguma coisa, então vim pra São Paulo. A mesma coisa: tinha namorada, tinha amigos, mas faltava alguma coisa, havia um vazio, e nunca deixei de ir à missa, mesmo aqui. Geralmente as pessoas que saem da sua terra acabam perdendo um pouco seus laços religiosos, culturais; eu não, todo fim de semana tinha que ir pra uma missa, então frequentava muito Catedral da Sé, ou lá minha Paróquia de São Miguel, que hoje é a Catedral de São Miguel. Aí via, ficava ouvindo os sermões, etc. Já no segundo grau... É momento que a gente começa a questionar tudo, o papel da Igreja... Quer dizer, a Igreja com todas essas complicações que nós conhecemos, escravidão, inquisição, todas essas questões, você se questionava. Uma coisa é a Igreja que está nas mãos de homens e mulheres que são falhos, mas a Igreja tem algo divino que é Jesus estar guiando esta Igreja, apesar dos pesares, porque nós somos assim, santos e pecadores, e foi um cartaz que tinha na Catedral da Sé que me chamou a atenção: “quer ser padre?”. Dizia lá: terça, quarta e quinta, venha aos domingos nos horários ‘x’ frequentar o grupo vocacional. Eu fiquei namorando aquele cartaz uns dois anos (risos). Coragem falar pra alguém que iria ser padre. Não falava pra família, não falava pros amigos.
P/1 – Quantos anos o senhor tinha?
R – Ah, então, quando eu resolvi mesmo eu já tinha mais de 20, já feito, tinha mais de 20 anos. Então é complicado, se você [falar] para a família, a família vai dizer que é bobagem, se você fala com os amigos: “imagina, que é isso? Você é quadrado, carola, onde já se viu ser padre?” Eu criei coragem e fui lá conversar com o padre, contei que ia ser padre etc. O primeiro passo é você participar desse grupo vocacional, chamava GOV, Grupo de Opção Vocacional, daí fui neste grupo. As questões vão se encaixando, então o padre vai dizendo: “quem quer ser freira”, grupo grande, nós éramos meninos e meninas, então ele falava das diversas ordens religiosas. Você pode optar pra ser Jesus, franciscanos, dominicanos, etc., porque até então, na cabeça da gente, pensa que é tudo uma coisa só. Cada um tem o seu carisma, sua especificidade, então uma pessoa muito boa, padre Zezinho, era o nosso padre de orientação vocacional. Uma coisinha pequenininha, magrinha, que só tinha um pulmão. Era uma espiritualidade... Aquilo cativava muito a gente, as coisas foram se encaixando. Eu estava terminando já o segundo grau, e havia também terminado período vocacional, ficava um ano acompanhando esse grupo, ia lá e indicava, ele dizia, perguntava: “isso mesmo que você quer, você quer fazer essa experiência de seminário?”. Eu dizia que sim. Eu trabalhava, na época, porque vim para cá pra trabalhar. Família migrante, os migrantes, vieram primeiro os tios, veio meu irmão, irmão mais novo veio primeiro do que eu, porque eu já trabalhava: “Não, não quero ir pra São Paulo, eu quero ficar aqui”, também eu tinha medo, 18 anos não quero ser polícia, vou pra lá depois de 18 anos. Então eu deixei o trabalho. Aqui eu trabalhei em três, quatro firmas, por dez anos.
P/1 – O senhor trabalhou de quê?
R – Meu primeiro emprego foi ajudante geral.
P/1 – No bairro do Belém?
R – Bairro do Belém. Três meses ali, uma experiência, imagina, descer lá do mato, vir aqui... Complicadíssimo. Já acabou.
P/1 – Multfala?
R - É da família da Silvia Maluf, é uma fábrica muito grande que tinha ali de tecidos. Ali eu gostei muito, gostei muito de trabalhar ali, porque nós éramos tudo da mesma idade, era uma sala que nós trabalhávamos na revisão de tecidos, fizemos uma amizade muito grande. Éramos dez garotos e garotas, nossa senhora, nossa amizade ficou, e ainda dura até hoje. Tem duas dessas pessoas que a gente se encontra, a gente se fala... Foi uma família que a gente construiu ali.
P/1 – Que bairro ficava?
R – São Miguel, São Miguel Paulista.
P/1 – Perto de onde o senhor morava?
R – Isso, perto de onde eu morava, lá na Vila Jacuí. Foi um dos melhores trabalhos, fiquei três quatro anos, parece. Depois, meu último trabalho foi na York, com produto cirúrgico, eu era operador de máquina. Dali eu saí pro seminário, eu era ligado ao SIPA, ao Sindicato dos Químicos. Tinha uma pessoa lá muito crítica, falou “olha, você tem que entrar no sindicato, precisa olhar a situação do povo, do trabalhador”, então me levava nos cursos que havia no sindicato, de formação, política e conscientização. Foi muito interessante. Quando eu falei que ia sair pra ser padre, nossa, caíram de pau: “Como? Você é louco? O que é que você vai fazer na Igreja, rapaz? Você devia estudar, advogado, e vai ser padre?” Eu já falei na última semana de eu ir embora, então prestei vestibular no fim do ano, fui pro seminário e começamos o primeiro curso que é filosofia, por isso estou morando na Freguesia do Ó, o curso de filosofia a gente fez na Freguesia do Ó.
P/1 – Quando o senhor chegou a São Paulo, quando o senhor foi morara em São Miguel Paulista, que o senhor lembra das primeiras impressões de São Paulo, como é que era São Paulo na época que o senhor veio pra cá?
R – Então, a gente veio de ônibus, e a rodoviária ficava na Luz, aquela rodoviária cheia de... Era bem bonita, parece que mantêm aquele colorido; aquilo impressionava, era coisa nova. Quando eu vi aquela multidão de gente, falei: “mas meu tio, é assim todo dia? Não é só no domingo?” Porque pra nós, no interior, a festa no domingo, mas dia de semana tem essa multidão? Nós descemos ali no parque da Luz, lá tinha ônibus que passava na casa do meu tio. Então por ali começamos, fizemos uma viagem pra Aparecida... Depois que eu cheguei, acho que umas três semanas, minha família ia muito, todo ano ia pra Aparecida. Belíssima, a gente ouvia rádio, rádio Aparecida, então você encontrar aquele santuário, o padre Vitor. Depois desses quatro anos de teologia você passa pra ser tornar sacerdote, a ordenação, mas a gente esqueceu de algo, porque mesmo como seminarista, no fim de semana você tem trabalho, não é? Então meu primeiro trabalho foi no hospital de hansenianos, todo fim de semana, sábado e domingo, nós íamos. Era divido, um grupo ia para o Hansenianos, outro ia para a Santa Casa, outro grupo ia pra um asilo, outro ia pra cadeia, pra penitenciária, outro grupo para Febem [Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor], então nós éramos divididos nestas chamadas pastorais. Santa Casa, tinha o São Cristóvão, que tinha as freiras lá... Nós íamos ajudar a cuidar do paciente, a dar remédio, a conversar, a falar com Deus. Esse primeiro trabalho nosso era conhecer a realidade, o segundo trabalho já é com Igreja. Meu primeiro trabalho foi na Igreja Nossa Senhora da Boa Viagem, lá na saída da Dutra, que é região de Santana, ali eu fiquei um ano, trabalhei lá um ano. Depois, o último trabalho como seminarista, penúltimo – porque o último foi na Catedral da Sé –, eu trabalhei como seminarista e depois como padre, então ali eu trabalhava com o Padre Batista, especificamente na Capela Nossa Senhora da Boa Morte, porque a função do Padre Batista, na época, era essa, cuidar dessa Capela. Ele era vigário na Catedral da Sé e cada um dos vigários tinha um trabalho numa daquelas capelas que pertencem à Sé. Eu fui trabalhar com o Padre Batista na Igreja da Boa Morte, e lá estava iniciando o primeiro trabalho com crianças de rua. Ele montou um grupo de engraxates, mandou fazer caixas pra essas crianças, começou com o café, foi aumentando, apareceu dez, apareceu 30, e esse grupo se tornou notório na cidade de São Paulo. É um trabalho de referência, até então nunca havia tido na cidade de São Paulo um trabalho desse porte, cuidar das crianças da rua. Um trabalho muito bonito, aprendi muito com ele. Meu último trabalho como seminarista, que foi na Igreja São... Aí meu Deus do céu, um padre esquecer da Igreja (risos), sendo padre? Aquela Igreja que teve na rua dos Italianos, na Bela Vista, no Bom Retiro, Igreja... Mas então eu fui pra essa Igreja, depois eu vou lembrar.
P/1 – Na Bela Vista?
R – Não, no Bom Retiro, na rua dos Italianos. É um santo inglês.
P/2 – Isso foi em que ano?
R – Isso foi em 89, aliás 88, fui trabalhar lá em 88. De 88 até 89, em 89 eu me tornei padre lá. E meu primeiro trabalho, Santa Cecília, acho que eu já falei, né? Santa Cecília, Catedral Casaluce; na Catedral eu trabalhava, além de atender na Catedral e de ter missa na Catedral, o atendimento de confissão, o atendimento da missa e atendimento ao público em geral. Então Catedral era o seguinte, nós éramos quatro padres, então cada dia um atendia. Um ficava das oito até o meio-dia, eu ficava do meio-dia às cinco. Íamos revezando na missa, mas além dessas atribuições na Catedral você tinha um trabalho junto à Capela, e o meu trabalho era a Capela Santa Cruz dos Enforcados, na Liberdade.
P/1 – O que o senhor fazia lá?
R – Continuo até hoje.
P/1 – É?
R – Tem oito anos que eu estou lá, oito a nove anos já. Eu fui pra lá, comecei a celebrar, etc. Eles me designaram como capelão da Igreja Santa Cruz, então fiquei lá até a minha indicação para essa paróquia. Mas o novo capelão falou: “não, não e bom você sair daqui não, você tem que ficar, o povo gosta de você, uma missa, uma das mais concorridas”, que é a missa das 15 horas, na segunda feira. Então todas as segundas eu vou lá celebrar, às 15 horas.
P/1 – Por que é a missa mais concorrida?
R – Porque... Não sei, parece que já tem uma história, o povo sempre frequentar esta missa. A gente chega lá às 15 horas, o povo bate palma, o dia que a gente não vai... (risos), “é”, eu falei: “Gente, eu tenho muitos afazeres, não é?”
P/2 – Essa missa das 15 horas era tradição ou foi a partir da sua atuação lá?
R – Já era tradição, eles dizem que aumentou... Mas lá tem uma tradição: a primeira segunda-feira do mês é sempre mais concorrida do que as outras, mais cheia, primeira segunda feira do mês.
P/2 - O senhor tem ideia do porquê, dentro da história do bairro... Alguma coisa assim, que acontece?
R – A gente não tem muita, não tem muitos estudos nessa área não. Não sei.
P/2 - E qual é o perfil da comunidade lá?
R – Então, a comunidade comporta pessoas oriundas de diversos bairros. Você pede pra levantar a mão quem é de Santana, quem é de Itaquera, quem é de Santo Amaro, Guarulhos, então tem gente de todas as regiões da cidade de São Paulo, isso é tradição. A sua mãe já frequentava, o seu avô já frequentava, então é uma coisa interessantíssima. Eu dei uma entrevista, fiz um trabalho com a TV Sesc – a menina está até me devendo uma fita, ainda nem me trouxe –, e eu contei para ela um pouco essa história, porque há uma história, a comunidade está ali, ela tem uma história. Por que a primeira segunda feira do mês? Então o que eu tenho pesquisado, tenho encontrado, você não vê nada escrito, acho que a tradição é a seguinte: geralmente o dia dos mortos é dia dois de novembro, primeira segunda-feira, né? Tenho percebido um pouco isso. E dia dos mortos, então, Nossa Senhora, é lotado, lotado.
P/2 – Igreja da Boa Morte?
R – Não, Igreja de Santa Cruz dos Enforcados. A Boa Morte eu trabalhei, tem uma pesquisa, também sou mestrando... Eu tranquei meu mestrado, mas tenho todo esse trabalho de retomar.
P/2 – O senhor está pesquisando o que, na faculdade?
R – Eu trabalho com História da Igreja, e especificamente com a história dos negros no século XVIII, na cidade de São Paulo, nas Igrejas do centro de São Paulo. E aí entra a Boa Morte, porque naquele tempo o rio Tamanduateí era navegável, e os condenados vinham para serem mortos na Liberdade. A última forca de São Paulo... E eles passavam na Igreja da Boa Morte pra pedir uma boa morte, subiam para serem assassinados lá. E a Igreja Santa Cruz dos Enforcados é a última forca de São Paulo.
P/2 - Ah, que interessante. Quer dizer que eles passavam na Boa Morte pra pedir uma boa morte, pra ser enforcado?
R – E a história da Boa Morte... Aliás, da Santa Cruz, é justamente porque havia quatro condenados – acho que dois eram de Santos –, um chamava Chaguinhas... Mas a gente distribui uma historinha contando um pouco, resumindo, então naquele tempo esses quatro condenados, aos olhos do povo, estavam sendo mortos injustamente, e até o Feijó entrou nessa história (risos). Feijó foi pedir ao governador-geral de São Paulo que pudesse ter clemência, que eles na verdade não deviam ter clemência para com eles, e assim, Feijó foi e o governo não quis, então eles colocaram a primeira forca, pelo menos os dois, o Chaguinhas e o outro que eu não me lembro o nome, colocaram a forca e a forca arrebentou, não morreu; colocaram outra forca, também não morreu; aí estava passando um tropeiro, o laço desse tropeiro, amarrou, também arrebentou. Então existe toda uma mitologia sobre isso, e como caiu a terceira vez, eles acabaram de matar com espada. A partir de então começa a devoção a esses homens. Então fizeram lá o túmulo deles, já colocaram velas. Ficou, apareceu a capelinha, “não, eles morreram injustamente”. Então nasceu ali a Igreja dos Enforcados, primeiro a capelinha e depois a segunda, que é essa que está aí até hoje, que é do final do século passado. Agora, a segunda feira é na origem portuguesa, porque é o seguinte: cada dia é dia de um santo, e a segunda é das almas; terça de Santo Antônio; sábado Nossa Senhora e domingo senhor Jesus, o Bom Jesus. Na Bahia isso acontece diariamente, você vai na segunda-feira, tem uma Igreja específica, as Igrejas estão cheias; terça-feira no convento de Santo Antônio, a bênção do pão e de Santo Antônio. E é interessante Salvador, as pessoas vão primeiro pra missa, vão, assistem a missa, recebem a bênção, depois vêm pro Pelourinho, porque ali... O sagrado e o profano, muito interessante. As pessoas não vão pra dança antes de “a bênção de Santo Antônio”, e lá a igreja do Rosário dos Pretos fazem também a missa de terça-feira em honra de Santo Antônio, fica lotada também, fica muito cheia. E a Rosário dos Pretos, a festa do Pelourinho, então terminou a missa já vai pro samba, e todo mundo aguarda, não toca tambores antes de terminar a missa. É muito interessante, é um respeito... É interessante. Então é isso, a Igreja das Almas por causa da forca de São Paulo, Igreja da Santa Cruz dos Enforcados. Ali era um cemitério também, uma parte era forca, morria ali, dali mesmo enterra. O bairro da Liberdade era um cemitério, a capela existe até hoje, há uma capela do cemitério, que é aquela Nossa Senhora dos Aflitos, conhece? Você descia da Santa Cruz, primeira ruazinha, descendo a rua dos estudantes, a primeira ruazinha é uma rua sem saída, ela está lá, é muito visitada. Tem um trabalho também, tem um rapaz na PUC [Pontifícia Universidade Católica] que fez um trabalho sobre toda essa... Um mestrado dele, mestrado ou doutorado dele, muito interessante.
P/1 – O senhor reza a missa toda segunda-feira lá?
R – Toda a segunda-feira.
P/1 – Aí o senhor foi designado pra assumir a paróquia?
R – Isto.
P/1 – Quando foi isso?
R – Isto foi em fevereiro de 1993. Nós assumimos aqui a Paróquia Nossa Senhora de Casaluce, a gente ficou com medo, porque... Tradição italiana, e nós já tínhamos uma experiência não muito boa com um padre negro que veio trabalhar na São Genaro, o padre Batista, ele sofreu muita discriminação. O que segurou o padre Batista aí foi... Na época, o Cardeal de São Paulo... Fizeram um grupo que foram lá no Dom Paulo, Dom Paulo enfrentou, dizendo: “Vocês podem sair, vocês não são cristãos, saem vocês, ele fica.” Então Batista enfrentou todas as complicações, ele era um pouco mais... O temperamento dele ele era totalmente diferente do meu, ele enfrentava mesmo, ia até as últimas consequências, brigava mesmo. Eu tenho o temperamento mais tranquilo, levo tudo no diálogo, na diplomacia. Então ele ficou aí e passou a ser querido, toda comunidade que você vai, uns gostam outros não vão gostar, você não pode agradar a todo mundo, nem Jesus agradou, não é? Acabou sendo querido aí na São Genaro, ficou aí até a morte dele. Isso fica na tua cabeça: “Meu Deus, Casaluce qualquer questão”. Aí um padre que me aconselhou: “olha, eu estou com medo, etc.” Ele falou: “Não tenha medo, não se preocupe”. Então assumi, e aqui estamos. Explicitamente não vêm falar contigo, não vêm discutir. Hoje a gente sabe que algumas pessoas na época ficaram muito preocupadas: “um padre negro na nossa igreja”, mas isso foi, de certa maneira, superado. Porque a gente trabalha desde a época de seminário. Já no seminário, na década de 80, nós já frequentávamos um grupo de conscientização católicos negros, agente de pastorais negros. Fomos nós, a partir do seminário, e mais três padres... Um dos padres era o diretor da nossa faculdade, a faculdade onde forma os padres; ele era negro, então ele nos incentivou a formar um grupo de agentes de pastoral negros, foi naquela época que surgiram os agentes de pastorais negros, foi 1983, nasceu esse trabalho graças à força, ao incentivo de Dom Paulo, que sempre acolheu todos aqueles que são excluídos, são discriminados. Dom Paulo foi sempre esta alma boa de acolher, fazendo o papel de Jesus e de São Francisco, né? (risos). É isso, então a gente... Muito nítido, a gente sabe o que é discriminação, a gente sabe como combater essa discriminação, temos consciência de todas essas questões. Isso é muito bom, porque você tem a cabeça aberta, sabe trabalhar, sabe... Você tem que ter uma certa diplomacia em diversos momentos, a cada momento você tem que usar uma arma. Então por aí chegamos e aqui estamos.
P/1 – Como é que era o bairro naquela época? 93, né?
R – 93. Não sei se mudou muito de lá pra cá. Os prédios já existiam. Na verdade, a grande reclamação do antigo pároco foi que ele não conseguia fazer com que os novos moradores dos prédios participassem da comunidade, porque ele veio pra cá, não... Em que tudo aqui era italiano, a comunidade italiana ainda morava aqui.
P/1 – O senhor pode falar o nome dele, padre?
R – É Antônio Fusari, Padre Antônio Fusari. Ele ficou aqui de 72 até 93, ficou 20 e tantos anos aqui. Ele acompanhou os últimos migrantes de Itália, os descendentes italianos daqui desse bairro. Mas o que me chamava mais atenção: a partir do momento em que você vai entrando na vida da comunidade, você passa a conhecer a comunidade, as mamas recordarem o que era rua Caetano Pinto, o que era São Paulo, o que era o Brás dos velhos tempos. E a gente se enche de alegria e eles de tristeza, geralmente falam chorando: “Padre, acabou nosso bairro, isso aqui era uma beleza, essa rua era só italiano, era só amigos da gente, a gente entrava na casa de todo mundo, no fim de semana a gente trocava de comida, cada um fazia um prato, fazia um bolo, outro fazia uma panqueca”, etc. E todos trocavam, sentavam nas calçadas, ficavam cantando, ficavam lembrando da sua história lá da sua região de Nápoles. E havia as casas coletivas, aqueles becos, isso aqui também era... O padre foi comprando, mas era um beco com diversas casinhas, com diversas casinhas, e o metrô contribuiu para o desaparecimento da maioria dos italianos daqui. Toda essa faixa aqui eram residências de italianos, descendentes de italianos, então a história de que muitos morreram... Umas três famílias já me falaram: “minha avó, meu avô morreram de tanto desgosto”, porque saíram de onde...
P/1 – Da casa?
R – Da casa.
P/1 – Foram desapropriados?
R – Desapropriados, muita gente desapropriada. A estação do Brás parece que havia uma fábrica de macarrão, tem até uma pessoa que é parente antigo... Uma rotisserie que havia, as casas de tecidos, as casas de sapatos, havia muita gente.
P/2 – O senhor sabe pra onde que eles foram?
R – Mudaram pra diversos locais, muitos foram aqui pra Mooca, né?
P/2 – Não ficaram aqui no bairro.
R – Não, não ficaram aqui no bairro. Muitos deles saíram, foram pro bairro da Mooca, outros Santana. Tem algumas pessoas que na festa da padroeira – vêm muitos deles –, aparecem, muitos entram choram: “Madona de Casaluce, ó minha Madona, meu filho foi batizado aqui...” e começam a contar a história. Interessante, porque na verdade a capela era desse tamanhozinho, era daqui... Acho que era desse banco até lá.
P/2 - É mesmo?
R – Pequeníssima, e que ficou até 70. Em 70 o padre derrubou tudo, não deixou nada da antiga. Eles reclamam até hoje, não ficou nada, e ela é tão interessante, depois eu mostro. Ah, vocês viram o postal? Aquela do postal, isso. Então há uma reclamação: “Não ficou nada da antiga.”
P/1 – Mas ela, desde que foi fundada, até a década de 70, funcionou...
R – Funcionou, isto. E com todas as festas, né, na festa sempre fazia o altar aqui fora, o restaurante na rua e as barracas na rua, então sempre funcionou assim, como a capelinha.
P/1 – A festa ocorre quando?
R – Em maio, mês de maio, a partir do primeiro fim de semana de maio; vai até o último, o mês inteiro.
P/1 - O senhor trabalha bastante na organização dessa festa?
R – Sim, bastante. A gente coordena, a gente está aí junto com eles, fazendo força pra eles, animando, à procura de novos patrocinadores, etc. Então a gente “entrou dentro” da festa, porque não tem sentido, se você tem uma festa na Igreja e o padre fica fora... Eu cheguei aqui, falei “eu quero saber de tudo, como funciona... Quero saber de tudo, quero entender de tudo, quero aprender, mas quero também ajudar, não é? Também ensinaram algumas coisas que a gente sabe”. A gente aprende, a gente ensina, é um pouco isto. Então essa memória que os mais antigos têm do bairro é muito interessante, e é uma coisa bem familiar. Dizem que havia porteira na rua Caetano Pinto, havia uma porteira. Imagina, né? Passavam as pessoas gritando, o leite era vendido, tinha leite de cabrita, eles passavam com uma cabrita vendendo leite de cabrita. Depois começou a passar um com uma bicicleta, vendendo leite nos litros, que havia antigamente os litros, elite Paulista, etc. Então tem histórias muito interessantes, e falavam pra gente também, a gente foi confirmar isso historicamente, aqui eram italianos e do outro lado espanhóis, falava das briga... (risos)
P/1 – Ah, e aí, tinha briga?
R – Tinha, quando um queria namorar com o filho do outro...
P/2 – Não podia.
R – ‘Madona mia’, diz que a coisa ficava feia, mas não tinha jeito, quer dizer, se gostasse não segurava, casava, aparecia o menino, aí acabou: “é nona...” (risos), acabava tudo, virava tudo pizza. O filho, quer dizer, a criança, tem um valor muito forte na família italiana. A questão família para os descendentes de italianos é forte, o almoçar com a nona, com o nono é muito forte ainda. O molho, levantam cedo, seis horas da manhã pra colocar o molho pra cozinhar: “Ai padre, eu não posso vir amanhã, eu venho na missa no sábado porque a minha família, meus netos estão vindo pra almoçarem comigo”. É forte esse lado de família para o descendente de italiano, e a gente fica lembrando, isso me fez lembrar como nós vivíamos lá em Minas Gerais, que era também assim; quer dizer, os vizinhos, ninguém ficava sem ter o que comer, havia partilha. Chegava na minha casa a vizinha dizendo: “olha comadre, eu não tenho café hoje, eu não tenho arroz hoje...”, havia essa partilha. Ouvindo a memória desse povo a gente percebe que havia também essa partilha, essa amizade. Isso é muito bom, esses vínculos não podem ser perdidos. A família está desestruturada, eu acho, pela falta dessa solidariedade. A cidade grande, se você não tiver muito cuidado, se você não resguardar esses valores, essa memória, você acaba, de certa maneira, sem raízes, fica pra lá e pra cá. A subsistência da pessoa humana é sua memória, história, é a sua história; perdeu isso, você acaba ao léu. E aqui a gente acompanha, conhecemos os padres que fazem esse trabalho que é o povo de rua. A história do povo de rua nada mais é do que a pessoa que saiu de sua terra, que aqui chegou e não conseguiu emprego, não conseguiu nenhuma família além de seus próprios parentes (que?) não têm condição de aceitar, acaba ficando na rua. É isso, as pessoas perderam a sua identidade cultural, e aí o caminho é a droga, o caminho é a prostituição, o caminho é a violência. Então existe um trabalho muito bonito feito pelos padres que moram aqui.
P/1 - No Brás?
R – Moram aqui no Brás, tem um trabalho muito bonito, tem recuperado essas pessoas. Hoje existe uma equipe com assistente social, psicóloga, e que trabalha com esses que querem sair da rua. Se você quer sair da rua, eles vão lhe ajudar com condição, então é feito uma triagem e eles vão trabalhando essa pessoa uns quatro anos. Aqueles que querem voltar a trabalhar na terra são conduzidos até onde veio, então aquele que veio de uma região, plantava milho, plantava feijão, etc... Há uma história muito bonita de muitos que conseguiram sair da bebida, do álcool, da droga e voltaram a trabalhar, estão produzindo. Um trabalho bonito, estão indo pro interior de São Paulo, aí nessas ocupações do vale do Paranapanema, que hoje já estão... Muito bonito. É isso, acho que a perda da memória... A memória histórica é fundamental, perdeu, dançou. (risos).
P/1 – Padre, as pessoas que vêm assistir sua missa, aqui na Casaluce, elas são moradoras desse pedaço do bairro? Vem pessoas de outros lugares também, fora do bairro?
R – A maioria é daqui, dos prédios. A gente está conseguindo, Graças a Deus, trazer as pessoas dos prédios, então meu grande público vem desses prédios, mais as senhoras e senhores que já estão na terceira idade, que são descendentes, que são bisnetos, que são netos dos napolitanos. A maioria vem daqui, mas vem gente de outros bairros sim. Você tem um grupo de Itaquera, vem um grupo de São Miguel... Tem tradição porque participavam do Brás, ou participavam já daqui antigamente, quando moravam aqui. Porque tem gente daqui que mora em Itaquera também, São Miguel, muitos deles foram pra essa região.
P/2 – Como é a festa de maio? ___________?
R – A nossa festa tem na rua pelo menos umas 18 barracas com comidas típicas italianas, e esse pedaço daqui do salão até aqui, a outra esquina, depois da minha casa paroquial. Isto aqui se torna um restaurante ao ar livre. Aqui no fundo faz o palco com música italiana, as tarantelas, e aqui vira restaurante. As mesas e cadeiras ficam todas na rua... Fecha a rua, né, no sábado e domingo fica fechado, sábado a partir do meio-dia se fecha a rua. E a gente percebe que a festa tem aumentado, ela está aumentando. Porque a minha grande preocupação quando eu vim aqui, fiquei sabendo da história, fui olhar nos arquivos e vi que historicamente a Igreja tem quase cem anos... E ela não tem o marketing que tem uma Achiropita, que tem San Genaro, eu falei: “Mas por que isso, qual é a história?” Eu perguntava: “mas o que vocês estão fazendo aí que não conseguiram trabalhar o marketing desta festa?” Diziam eles que uma das questões foi justamente a parada, a igreja ficou fechada no período da Segunda Guerra Mundial, uns dois ou três anos, por causa da perseguição aos italianos na época da Segunda Guerra, isso aqui ficou fechado. Depois que reabriram, não retomaram, acho que não pegaram da comunicação, o grupo que estava não conseguia fazer essa ligação da festa com a comunicação, isso atrapalhou um pouco, diferentemente de San Genaro, de Achiropita. Você fala o nome, era estranho... Achiropita também é estranha e não é nosso (risos), então isso não cola, dizer que o nome não é conhecido. Quer dizer, quem é que se fez o nome da Achiropita conhecida? Um trabalho de marketing. Eu percebo que, graças a Deus, está aumentando, a gente tem trabalhado um pouco, tem incentivado o pessoal. Eu vou com eles, a gente vai na Rede Globo, a gente cava lá onde está o chefe... Pelo amor de Deus, vamos fazer algumas coisas. Graças a Deus tem aumentado todo ano, Bandeirantes, Cultura, Jornais, Folha, Estado, jornais do Bairro, então nós montamos uma infraestrutura com o jornalista, fazendo os release e indo atrás mesmo; rádios... Então a festa tem aumentado, tem sido mais conhecida.
P/1 – Me parece que essa festa é mais antiga do que as outras.
R – É mais antiga. A primeira festa italiana de São Paulo, a primeira, e perdeu para as outras.
P/1 – A parte religiosa da festa, como que ela é? O que acontece?
R – Certo. Então, durante o mês de maio a gente procura trazer todo sábado, geralmente no sábado, esporadicamente no domingo, padres diferentes, porque a gente monta um calendário de temas ligados a Nossa Senhora e também à nossa realidade, e a gente traz padres diferentes que venham celebrar conosco, que é uma maneira de fazer com que o povo possa ouvir outra voz. Esse ano nós tivemos... Como esse ano foi um ano ecumênico, a campanha da fraternidade, a Igreja trabalhou muito essa questão do ecumenismo. Trouxemos também um pastor que celebrou comigo a homilia, a locução foi dele. No final, no último domingo do mês a gente faz a procissão, que é uma procissão famosa, histórica também. Nós temos o quadro da procissão, que a Casaluce não tem imagem de gesso, pintura.
P/1 – Só pintura? Por quê?
R – Existe uma história... Quando ela apareceu na região de
Aversa, não é? Ela foi uma Nossa Senhora que apareceu... Apareceu num quadro aí. Não sei se você viu lá uma historiazinha que uma menina, uma senhora com uma criança passou na casa de um padre, num seminário, os padres diziam: “olha, aqui é um seminário, não pode entrar mulher”, pediu pra que ela fosse na casa das freiras, e lá na casa das freiras ela foi recebida, acolhida, dormiram lá ela, a senhora e a criança, e no outro dia as irmãs foram convidá-las para tomar o café, mas não encontrou mais ninguém, e encontrou um quadro na cama. Esta é a história de Nossa Senhora de Casaluce, um quadro com a mulher e com a criança. E a partir dali: “miraculo, miraculo, Madonna, Madonna de Casalucci”. Casaluce era um castelo, uma vila lá na região de Nápoles, por isso Casaluce, Nossa Senhora de Casaluce. A partir de então, com a vinda dos imigrantes pra cá, eles trazem uma réplica do quadro original lá da sua região, e há uma briga entre as duas vilas, Casaluce e Aversa, porque a Santa passou primeiro lá em Aversa, que é o seminário, e aí eles ficam reclamando: “Não, primeiro ela passou aqui, a Santa tem que ficar aqui também.” Isso deu briga, o rei teve que intervir, deu guerra. Napoleão, na época, dominou Nápoles também, aquele região. Napoleão, na época, entrou na confusão, porque... É do século XII, essa é do século XII. A partir de então, o rei, na época, falou: “olha, vai ficar seis meses em Casaluce e seis meses em Aversa pra acabar a confusão.” E é assim até hoje.
P/2 – Em Aversa ela deve ter o nome de Nossa Senhora de Aversa?
R – Não, Casaluce mesmo. Esse ficou por causa do significado, Casaluce, Casa da Luz, isso ficou muito forte. Eles fazem a festa deles lá em setembro, aqui também se fazia em setembro, mas era concorrente da San Genaro, aí mudou pra novembro, porque uma cidade lá faz em setembro e outra faz em novembro.
P/1 – E aqui no Brás mesmo tem mais uma festa italiana além dessa da Casaluce?
R – Mais três.
P/1 – No Brás? Quais são?
R – A São Vito, do outro lado; nós e San Genaro, do outro lado. Vocês têm que ir na San Genaro, que é agora, tem mais dois fins de semana. Porque é o bairro tradicional dos italianos, eles vieram pra cá, eles que deram vida a esse bairro nos tempos idos. O Museu do Imigrante também está aqui, do outro lado, então as três festas italianas, as quatro... Existem quatro festas italianas em São Paulo, são as mais famosas: São Vito, Casaluce, San Genaro e Achiropita, e três estão aqui; três no bairro do Brás e uma lá no Bixiga. Apesar de San Genaro não ser chamado de Brás, ele está aí, Brás, Mooca, é quase que tudo uma família só. Então é isso, a procissão... Deixa só eu contar um detalhe da procissão. Quando eu cheguei aqui, começaram a me contar: “olha padre, na época a festa pegava esta rua inteirinha, daqui até lá em baixo, até a Rangel Pestana, cheia de barraquinha”, e na procissão saía um estandarte... Nós temos um estandarte antigo que tem a Santa, que esse é original também, e temos o quadro que sai na procissão, o quadro é enfeitado. Ele fala: “Padre, a missa...”, terminava a missa às sete horas, às oito horas, e nós saíamos em procissão. A procissão ficava das sete da manha até às 16 horas, porque passava em todas as casas, e em cada casa eles espetavam um alfinetinho com uma nota, com um dinheirinho. Quando chegava cheio de notas ela passava em cada uma das cassa. Vinham bandas italianas, algumas peças trouxeram de banda da Itália pra tocar aqui, uma festa histórica, a procissão da Santa. E o quadro da santa é diferente daqui, esse foi um padre que mandou fazer, ele ficou um pouco mais claro. O povo reclama porque a santa é negra (risos). “O padre mandou fazer a santa muito branca, nós não gostamos”. Mas enfim, está... O importante é a procissão.
P/2 – Eu ia perguntar da atuação do senhor no Instituto do Negro, atual, né, pra gente não passar batido, mas não sei, se vocês quiserem falar mais alguma coisa...
R – Então, como eu trabalhei com Batista, Instituto do Negro Padre Batista...
P/2 – Lá na Sé?
R – Na Sé, por causa do padre Batista. Ele tinha esse trabalho com menor, e em 87, ele com um grupo de amigos e amigas criou esse Instituto do Negro, chamava Instituto do Negro apenas, pra tentar trazer os negros também pra Universidade, porque somos minoria em diversas instituições. Conforme vai subindo o negro vai desaparecendo; na base ele está lá, mas vai subindo, some o negro, porque não estuda, desaparece o negro. Ele criou esse Instituto justamente pra isso, [para que] nós tenhamos um quadro de irmãos e irmãs negros que possam atuar na sociedade; um médico negro, um advogado negro. Esse Instituto foi até 91, com a sua morte. Em 91 eu assumi, e a gente refez um pouco, mudamos um pouco a estrutura, então hoje nós temos 40 pessoas formadas; temos um médico, temos sete advogados, um jornalista, etc. E esse Instituto continua trabalhando. A filosofia do Instituto é fazer com que os que formaram pelo Instituto levem esta filosofia adiante, então os advogados, por exemplo, sete advogados, eles formaram um grupo de SOS Racismo, atendimento jurídico às vítimas de racismo, que hoje nós atendemos há três anos. Esse nosso trabalho foi assumido agora pela Procuradoria Geral do Estado. A Procuradoria hoje vai remunerar, está remunerando os nossos advogados para fazer esse trabalho. E por aí... Outro grupo trabalha com a questão educacional... Estamos aí, estamos trabalhando. No sábado... Aliás, na terça-feira que vem nós vamos fazer a festa de lançamento, vai ser um coquetel, estão convidadas, será no Sindicato dos Trabalhadores, ali na avenida Ipiranga, tem um cartaz lá no fundo, vocês dão uma olhadinha, e está caminhando, graças a Deus. Temos outro projeto com a Comunidade Solidária, que é um projeto de tranças étnicas, a Comunidade Solidária assumiu esse nosso projeto também.
P/2 – Tranças étnicas? O que é isso?
R – O projeto chama Fazendo a Cabeça. Interessante, fazendo a cabeça do povo negro, aquelas trancinhas, aqueles trabalhos, aqueles penteados. Então as pessoas – são 30 pessoas – de 16 a 24 anos que vão aprender essa profissão e vão poder montar o seu próprio negócio, além de aulas de cidadania e de conscientização da negritude. Está aí, estamos caminhando. Trabalhamos a questão da pastoral afro também; dentro do Instituo do Negro existe uma irmã que cuida desse nosso trabalho pastoral, ou seja, a liturgia inculturada que a Igreja tem falado desde a década de 60, que isso hoje graças a Deus está muito forte. Uma missa inculturada é o seguinte: é uma missa que entra os ritos, dentro do seu ritual entra aspectos da cultura afro-brasileira, o pandeiro, o berimbau, o atabaque, a roupa mais colorida, a dança, o gingado; nos momentos do ofertório se dança, os cantos são muito mais alegres, não é? Nós também estamos trabalhando isso. Fizemos aqui já, já tem quatro anos que a gente faz a missa afro aqui, faz no meu aniversário. Eles me deram de presente a primeira vez (risos), porque eu nunca misturei as coisas, eu tenho consciência, eu não preciso dizer que sou negro, preciso fazer as coisas, não “eu sou negro...”, aqui é minha realidade, é lugar de maioria, de brancos, descendente de italianos, portugueses, eu tenho que respeitar e quero que eles respeitem a minha cultura também. Então em 96 eles me deram, preparam tudo escondido uma missa afro pra mim. Convidou a irmã... Foi uma surpresa, foi muito bonito, todo ano no meu aniversário se faz uma missa afro.
P/1 – Que bonito! Que ano foi a primeira?
R – A primeira foi em 96.
P/2 – Belo presente.
R – Então faz todo ano, porque aqui em São Paulo nós temos na (Achiropita?), uma vez por mês, a missa afro, então nós nos revezamos, quando eu não posso, o padre de lá, padre Toninho, que é um padre negro também... Mas é isso, mensalmente existe essa missa afro, batismo afro, casamento afro, já virou tradição, especialmente no bairro do Bixiga. A gente tem essa ligação, a Igreja da Achiropita, a Igreja do Rosário dos Pretos, lá no Paissandu, a Igreja da Boa Morte, esses três referenciais pra celebração cultural.
P/2 – Mas na missa afro tem a comida afro?
R – Tem, todos eles ficam dançando, ficam batendo palma e tal e graças a Deus. Eu fiquei com muito medo: “gente, isso não vai ficar legal”. (risos) “Não padre, não vai. Padre, tem que fazer mais, padre, está muito bonita”, e eles sugeriram pra fazer mensal: “Uma vez por mês, padre, é muito bonito, é muito alegre, a gente não vê o tempo passar”. Agora a gente veio de um encontro latino-americano, afro-americano, fizemos o Oitavo Encontro de Pastoral Afro-americano, com 600 pessoas de toda América, Estados Unidos, Caribe, América Central e América do Sul, que foi muito bom e que está reforçando cada vez mais esse trabalho, que é João Paulo II... O papa tem dito, a Igreja tem que se abrir à inculturação, tem que se abrir às outras culturas, ela tem que oferecer Jesus Cristo, mas respeitando essas culturas, fazendo com que essas culturas participem também do reino que Jesus veio anunciar, e o encontro de Jesus com a cultura, se chama inculturação. Hoje, por isso meio corre-corre, a gente faz parte da articulação nacional, eu sou da Secretaria Nacional da Pastoral Afro-Brasil, na CNBB, querem me levar pra lá, então eu estou lutando pra não ir (risos).
P/1 – Por que o senhor teria que sair daqui? O senhor teria que ir pra onde?
R – Pra Brasília. Brasília é referência, a gente vai ficar morando, vai ficar andando. O trabalho é muito importante, é ficar andando o Brasil inteiro, animando os grupos de pastoral afro a nível Brasil. Mas eu estou enrolando eles há dois anos (risos). E vamos ver como é que a gente vai... Eu tenho até este fim de ano pra decidir. Olha que legal, que coisa boa. Talvez a palavra... Acho que ajuda um pouco mais, mais branda né, “afro”, porque entra todos os descentes, afrodescendentes.
P/1 – Padre Enes, acho que a gente está caminhando pro final.
R – Ah, não terminou ainda não?
P/1 – Duas últimas perguntas: qual o aspecto do bairro que o senhor mais gosta?
R – Do bairro do Brás? Eu acho que este estilo família, estilo família do bairro. Eu acho bonito, não sei se porque nasci numa cidade pequena e o aspecto família, vizinhança, comunidade marcou muito... Esse aspecto acho que é um dos mais importantes do bairro. Acho que outro aspecto é justamente a vontade de recuperar as tradições, a memória do bairro. Eu até faço parte de um grupo de revalorização do bairro do Brás, começou a se conversar um pouco sobre o resgate histórico dessa memória que é tão forte para a cidade de São Paulo. O Brás é muito importante para a história da cidade de São Paulo. Os grandes teatros, os grandes cinemas que havia aqui, a música, eu acho que esse aspecto da memória do bairro também é outro dado que me fascina. Então primeiro a família, aí família entendo religião, comunidade, comida (risos), não pode faltar la pasta da mama, mangia che te fa bene, todo esse trabalho de comida dos italianos me fascina muito também; então esse outro aspecto: memória, as casas antigas, etc. A gente conhece alguma história que já me contaram nessa casa, eu fico com essa memória, seria muito importante se a gente pudesse resgatar essa memória do bairro, a família e a própria história do bairro.
P/1 – E a última pergunta: como que o senhor gostaria que o bairro estivesse daqui a 50 anos? Novo tempo, como o senhor imagina?
R – Eu gostaria que ele voltasse... Que ele voltasse não, mas gostaria que o bairro estivesse com todas essas casas antigas restauradas, desde a Caetano Pinto, da Rangel Pestana, e que tivesse aqui um pouco mais de lazer, especialmente nessas duas ruas que nós não temos... Aliás, eu posso dizer tranquilamente do bairro pra cá que a gente não tem nada, não tem nada da Rangel Pestana pra cá, e da Rangel Pestana pra lá o que é que tem, também, a não ser as cantinas antigas, a Castelano e as outras cantinas que tem ali, que são antigas, históricas, do bairro? O que eu queria, na verdade, é que de lá pra cá fosse recuperado tudo, que nós ficássemos... Uma espécie de bairro do Bixiga, que à noite pudesse ser uma noite cultural, com música, com comidas típicas, com ruas de lazer, talvez sem movimento de carro, que a gente pudesse transitar, que houvesse então uma recuperação do bairro, fazendo com que ele pudesse voltar às suas origens, dando vida cultural a este bairro, que tinha uma vida cultural muito forte. É meu sonho, e que não tivesse tanta violência como nós temos percebido. Há pouco tempo perdemos um amigo, que é morador daqui há mais de 50 anos, dono da adega que tem aqui; foi assassinado, foi uma coisa horrorosa. O bairro está muito violento, muitos assaltos nas casas, nas padarias, nas rotisserias. O bairro está muito violento, o povo tem medo, fala: “Padre, eu não vou na missa à noite porque tenho medo”, tem medo de sair de casa por causa da violência, isso é muito triste, um bairro que tinha uma vida tão bonita... Então o meu sonho é que todas essas questões pudessem ser realizadas, e pra isso acho que nós temos que trabalhar, temos que nos organizarmos e lutarmos para que de fato este bairro tenha a sua memória histórica preservada.
P/1 – O senhor quer falar mais alguma coisa?
R – Por aí né? Acho que está... Acho que é por aí.
P/2 – Está joia, a gente agradece a entrevista.
P/1 - A ajuda do senhor foi muito bacana, muito obrigada.
R – Não a de quê. Estamos aí, não sei se era o que vocês queriam, mas...
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