Projeto Memória e Conflito
Depoimento de Tatiana Barile
Entrevistada por Virginia Toledo e Márcia Trezza
Código: PSC_HV019
São Paulo, 17/09/2018
Revisado por Fernanda Regina Ferreira
P/1 - Oi, Tatiana. Por favor, fala seu nome e o local e a data de nascimento.
R - Tatiana Barile, São Paulo. 15 de março de 1983.
P/1 - E fala o nome dos seus pais para gente.
R - Nomes completos? Eduardo Antônio Rufo Barile e Tamara Dunda Barile.
P/1 - Você tem irmãos? Quais são os nomes e idade deles?
R - Guilherme Barile, 38 anos, e Laura Barile, 30 anos.
P/1 - Conta um pouquinho mais dos seus pais para gente. Qual é o convívio que você tem hoje? Qual lembrança você tem deles na infância?
R - Meus pais são casados até hoje, moram na Mooca, que é onde eu nasci.
P/1 - Como você descreve?
R - Ai, que difícil. Enfim. Meus pais são... Meu pai é uma pessoa, ele trabalha com informática. Trabalha, a vida inteira, num emprego só. Ele tem uma empresa e a minha mãe, também, e ele gosta muito de tirar fotos e de música, enfim. Tem esse lado artístico, eu acho que ele tem. É uma pessoa mais introspectiva. A minha mãe é tradutora autônoma, trabalha há muitos anos, também. Não sei muito descrever meus pais.
P/1 - E quais as lembranças que você tem da sua infância junto deles, nos seus irmãos, no bairro que você cresceu?
R - Os meus pais são da região do ABC, de Santo André, São Caetano, por ali, e meu pai trabalhava no Clube Juventus, já há muitos anos, antes deles se casarem, aqui na Mooca, e aí, por isso, quando eles se casaram, eles foram morar lá, num prédio que é na rua do clube e eles moram lá até hoje. Eu morei lá muitos anos da minha vida e tinha muitas pessoas nesse prédio que moraram, lá, a vida inteira, assim. Eu tenho amigos de infância que eu tenho até hoje, que eu conheço até hoje, conheço de alguma forma. Meu irmão é mais velho e eu nasci e essa é uma história, porque meu irmão ficou muito mal quando eu nasci, quando a minha mãe ficou grávida. Ele ficou gago. E ele me odiava, muito.
P/1 - Que idade ele tinha?
R - Dois e meio.
P/1 - E como foi esse processo? Depois, ele entendeu que seria uma irmãzinha, que vocês seriam amigos?
R - Eu não sei. A lembrança que eu tenho é um pouco a história que me contam também. É que era muito difícil, assim, que ele não gostava, mas quando a gente era criança, brincávamos muito juntos. As lembranças que eu tenho de brincadeira, de imaginação, de criação era muito com meu irmão. Meu irmão e esses amiguinhos do prédio. Eu tenho uma amiga, que, na verdade, é a minha melhor amiga até hoje, que a gente se conhece desde dois anos de idade, assim, ou antes, mas sempre. Então, a gente brincava muito. Depois, na adolescência, era muito difícil a relação com ele. E, quando eu tinha uns quatro anos, eu pedia muito para minha mãe que eu queria ter uma irmãzinha. Muito. Eu pedia: "Mãe, eu quero uma irmãzinha. Eu chorava, eu pedia. Ela falava: “Não, eu vou te dar uma boneca” e tal, e eu queria uma irmãzinha. Eu pedia muito que eu queria uma irmãzinha, e a minha mãe já tinha dois filhos, e ela já tinha quase quarenta anos e engravidou sem querer, e a minha irmã nasceu três dias depois do meu aniversário. E aí, eu tinha certeza que era eu que pedi, eu que consegui ter uma irmãzinha. A gente se uniu muito. Eu e minha irmã, a gente é muito grudada e era meio contra o meu irmão. A minha defesa era essa dupla. Então, na adolescência, nós brigávamos muito, eu e meu irmão, ele brigava comigo, me xingava, enfim. E, depois, passou. Hoje em dia, a gente se dá super bem. Nós não somos super próximos, somos bem diferentes, mas quando eu saí da casa dos meus pais, que foi com vinte e seis anos, eu fui morar com ele. Eu morei com ele dois anos num apartamento e, depois, fui para outros lugares.
P/1 - E aí, como foi morar com ele?
R - Foi legal.
P/1 - Vocês já não brigavam mais?
R - Não, a gente não brigava, mas a gente não tinha relação, assim. Éramos bem distantes. Na verdade, nessa época, ele foi morar em São José do Rio Preto. Ele decidiu ir para lá, tinha uma namorada, foi estudar, e aí, quando ele foi para lá, deu essa vontade de aproximar, porque ele ficou muito distante. E aí a gente, acho que ficou mais próximo, até. Eu sempre quis sair de casa, desde criança. Eu queria morar sozinha. Sempre foi o objetivo da minha vida. E aí quando o meu irmão ia voltar para São Paulo, foi uma chance que eu achei. Ele tinha o apartamento todo montado, as coisas e tal, e eu vou morar com ele. Eu morei com ele dois anos. Depois, eu fui morar em outro lugar, com uma amiga e minha irmã. Depois, eu fui morar sozinha.
P/1 - Voltando um pouquinho.
P/2 - Eu ia só perguntar, quando você falou que ia morar com ele, se no começo, assim, teve uma reação, adaptação? Quando você foi morar com seu irmão? Você disse que vocês estavam distantes.
R - A gente não estava distante, assim, a gente nunca foi muito próximo. Nós nunca tivemos coisas em comum, nem de gosto musical, de amigos. Sempre foi um mundo muito diferente. Diferente da minha irmã que é muito mais parecida. Nós sempre fizemos muitas coisas juntas.
P/1 - Você falou um pouquinho da época que o seu pai, enfim, participava do Clube Juventus. Você chegou a participar? Você se envolveu? Como é que foi? Você ainda tem isso com você? Como que foi essa época?
R - Ah, muito, porque a gente morava na rua do clube, então, o clube era assim, a piscina, as festas, o carnaval, os bailes, enfim. Tinha muitas coisas e era uma coisa muito ali, da região, que todo mundo ia, então sempre foi uma coisa importante.
P/1 - Tem algum momento, alguma passagem que você lembra que te marcou, bastante?
R - Eu acho que tem a piscina, no verão. Acho que era um lugar de encontro, que todo mundo ia na piscina, enfim, encontrava todas as pessoas do prédio da escola, enfim. Da escola, não, porque eu nunca estudei na região, mas meus amigos do prédio tinham amigos da escola, então, tinha essa rede, dali. Eu acho que um momento bem marcante, também, foi na época da adolescência, os bailes de carnaval. Tinha o baile do Havaí, que era com a piscina aberta. Era o salão do Juventus e eles faziam uma ponte, assim que ligava na piscina, e enfim, todo mundo jogava na piscina, eram festas muito legais. Essa época da adolescência foi bem marcante.
P/1 - E na ua infância, ainda, você estudou em alguma escola da região? Você foi para outro lugar? Tinha essa brincadeira de rua, ainda que, geralmente, vivesse num bairro menor?
R - A gente tinha no prédio.
P/1 - No prédio?
R - No prédio. O prédio que a gente morava era um condomínio de dois prédios, tinha uma quadra no meio, e tinha muitos amigos. A gente brincava, muito assim, essas brincadeiras de bola, mesmo, ou de esconde-esconde, de corda, rio vermelho, esse tipo de brincadeira. Brincávamos muito no prédio.
P/1 - Como era rio vermelho?
R - Vocês sabem? Rio vermelho, eu não lembro muito bem, era assim: eram dois grupos e aí falava “queremos passar pelo rio vermelho”. Aí o outro grupo dizia “só se tiver a cor”. Que cor? Aí sei lá, falava uma cor, tipo, vermelho, verde, e quem tivesse a cor podia passar e quem não tivesse, tinha que passar correndo, porque a outra pessoa ia pegar. Era alguma coisa desse tipo, eu não lembro bem se era assim, mas tinham muitas brincadeiras, de corda, de esconde-esconde. Até a adolescência era muito divertido. A gente brincava muito no prédio.
P/1 - Você lembra-se de um dia que aconteceu uma coisa que ficou marcada em você? Ou de esconde-esconde ou de alguma outra situação?
R - Ah, tem várias. Deixa eu pensar um pouco. Teve um menino que morava no prédio atrás. Foi a lembrança que me veio. Mas o menino morava na casa do lado do prédio e nessa quadra que a gente tinha, era também uma passagem da garagem, então tinha tipo uma rampa, e aqui ficava um muro que a gente brincava, subia. Um dia, o menino caiu desse muro e ele ficou em coma. Foi um acidente super grave, enfim, lembrei disso.
P/1 - Sarou ele, depois?
R - Ele sarou. Ele se recuperou, nunca mais voltou no prédio. Ele falou “eu nunca mais volto nesse prédio”. Ele nunca mais... Teve um rompimento.
P/1 - Vocês não tinham medo de brincar nesse lugar?
R - Não, a gente não tinha.
P/1 - Vocês continuaram brincando lá?
R - Acho que sim.
P/1 - E durante as férias, vocês ficavam por ali, frequentavam clube ou iam viajar para algum lugar?
R - A gente viajava, também. Ficávamos muito lá, nas férias, muito no clube, muito no prédio. Essa minha amiga da vida inteira, a gente tem fotos juntas, com dois anos, e a gente brincava. A gente brincava de Barbie, de boneca, essas coisas em casa, assim, muitos brinquedos, bonecas. Nós compartilhávamos os brinquedos novos que a gente tinha e que a gente brincava juntas.
P/1 - Tinha boneca preferida?
R - Acho que teve muito essa época da Barbie, então, eu tinha casa da Barbie, ela tinha o carro da Barbie, cada uma tinha uma coisa e a gente montava a cidade inteira. Eu acho que tinha uma questão que eu estudava de manhã e ela estudava a tarde, e minha mãe não deixava eu ficar até tarde lá embaixo, então, isso sempre acabava, um pouco, com essa brincadeira. Eram um pouco difíceis esses horários.
P/1 - E a sua irmã, na sua época, ela já estava brincando com vocês?
R - A minha irmã...
P/1 - Ou era a sua bonequinha?
R - A minha irmã era a minha bonequinha. Ela era super minha bonequinha, assim. Têm fotos de eu dando mamadeira para ela. Eu amava muito. Ela era muito grudada em mim, então, quando ela era bebê, eu tinha uns cinco anos, então até...
P/1 - Qual é a diferença de idade?
R - Cinco anos. Então, eu tinha dez, ela tinha cinco. Ela sempre estava comigo nas brincadeiras. Eu lembro, uma vez, que a gente estava brincando de esconde-esconde, e a gente já era mais adolescente. E aí nós brincávamos de esconde-esconde e tinha os meninos e as meninas. Teve uma hora que nós fomos nos esconder e tinha uma escada do prédio e ficamos lá, conversando, os meninos e as meninas, adolescentes, e a minha irmã ficou chorando, desesperada, porque a gente não aparecia mais, porque a brincadeira era ficar lá, não era achar de verdade. Teve uma vez, também, que ela estava na balança, caiu e bateu o queixo no chão, assim. E a gente foi para o hospital. Foi super um evento.
P/1 - E era você que estava cuidando dela, nesse dia?
R - É. E eu tinha uma questão que, desde criança, com sete anos, foi a primeira vez que eu desmaiei, porque eu cortei o dedo no apontador de lápis e eu tinha isso, muito forte, assim, de desmaiar, de não poder ver.
P/1 - De ver sangue?
R - Ver sangue, ver gente doente, gente de carreira de rodas. Eu tinha muita aflição e até hoje, eu tenho, só que nesse dia, ela caiu com o queixo no chão, saía muito sangue. Ela fez um corte, assim. Saiu muito sangue. E eu fui a pessoa que peguei ela, que coloquei a gaze e não senti nada, porque eu tinha que ajudar ela, eu estava nesse lugar.
P/1 - Era a sua responsabilidade?
R - É.
P/1 - E tem mais algum momento, enfim, com seus pais, com seus irmãos? Vocês costumavam viajar, entrar todo mundo no carro, sair para passear ou era mais, aqui, mesmo?
R - A gente tinha uma casa em Caraguá, na praia, e era muito legal. A gente ia para praia e para Atibaia. Tinha um lugar que a gente ia lá ai, não lembro muito, mas era muito gostoso.
P/1 - Os dois lugares?
P/2 - O mar, assim, tinha uma coisa importante? Em relação ao mar?
R - Eu gosto muito de praia, também, sempre gostei. Tinha uma praia, lá em Caraguá, que chamava Tabatinga, tem ainda. E é uma praia que você anda quilômetros e a água fica, no máximo, pelo joelho. Ela é bem rasinha e tem uma areia preta. Acho que era a praia preferida, a gente amava. Era rasinha e tinha essa areia. A minha irmã chamava de praia da meleca pura. Acho que era isso que ela falava, que era areia preta, mole, molhada.
P/1 - Bom, fala um pouco, também, agora, da escola. Você contou um pouquinho que você tinha alguns amigos do condomínio, mas também, na escola, já estava se enturmando.
R - Eu entrei na escola muito novinha, assim, bebê. Eu não me lembro muito bem. Tinha uma escolinha que era da região. Chamava "Primeiros passos", mas que eu não tenho muita lembrança e acho que na primeira série, jardim, assim, com cinco, seis anos, eu fui para essa outra escola, que era, também, na região, e que eu fiquei só até a primeira série.
P/1 - E depois?
R - E aí eu fui para outra escola, que foi o Anglo Latino, que era uma escola na Aclimação, que eu fiquei até a quarta série, e, na quinta série, eu fui estudar no Bandeirantes. Eu fiquei lá até o final, até o terceiro colegial.
P/1 - Você tinha duas turmas, vamos dizer, a do condomínio e a da escola?
R - É.
P/1 - Você conseguia dividir o seu tempo?
R - Eu nunca estudei numa escola no bairro, mas, por exemplo, os meus amigos do prédio sim, então, tinha um grupo que era dos amigos deles.
P/1 - Que você se relacionava, também?
R - É.
P/1 - E do Anglo Latino, você tem alguma lembrança marcante?
R - Do Anglo?
P/1 - Se não tiver, também, a gente passa para outra.
P/2 - Outro momento, entrando na juventude.
R - O Anglo tinha umas coisas legais. Tinha muito esporte. Eu fazia. Eu era do vôlei, do basquete, eu treinava. Isso era muito legal. E tinha umas coisas legais, tipo feira de ciências, show de talentos, umas coisas assim que fazíamos. Eu lembro que, uma vez, na quarta série, nós ganhamos o melhor trabalho da feira de ciências, que foi um trabalho sobre minhocas. Foi muito legal de fazer.
P/1 - O que vocês fizeram?
R - Nós estudamos tudo sobre minhocas, fizemos um minhocário e aí nós sabíamos tudo de como funcionava a minhoca e como ela arejava a terra, então, o Anglo tinha essas partes, concursos de redação, tinha umas coisas legais. Eu lembro que a gente fazia uns livrinhos. Eu lembro que teve um livrinho que eu fiz, que era concurso de literatura. A gente fazia um livro, então, escrevia uma história, a gente mesmo fazia, com cartolina, a capa, desenho, e aí tem um livrinho que eu fiz que era a história da minha irmã, era contando essa história da irmãzinha. Acho que chamava "A irmãzinha que eu pedi". Acho que eu me achava muito poderosa com essa história, porque era um desejo muito grande e que minha mãe falava assim, que ela não, não queria engravidar, que ela tinha quarenta anos, que meu irmão falava “você está muito velha para ter filho”, e foi super mágico. Foi meio sem querer e no meu aniversário. Então, eu lembro que quando eu fui mudar de escola, no Bandeirantes, foi um momento que eu fiquei muito desesperada. A hora que eu ia mudar, eu fiquei com medo, fiquei chorando, mas meu irmão já estudava lá, porque o Bandeirantes era só...
P/1 - Qual idade você tinha?
R - Eu tinha dez. Onze, na quinta série, e o Bandeirantes era só a partir da quinta série, então, quando eu mudei para o Anglo, ele passou para o Bandeirantes direto, ele não passou pelo Anglo. O meu irmão já estudava lá e eu achava o máximo, porque não tinha uniforme, então, eu queria super estudar lá, basicamente por isso, porque não tinha uniforme.
P/1 - Quais matérias que você gostava, assim, que você se identificava mais? Tinha umas mais e outras menos?
R - Eu gostava de português, de artes muito, sempre; de matemática, e eu era muito boa aluna, assim, quando eu entrei na escola, até a oitava série. E aí eu comecei a ser uma má aluna.
P/1 - Por quê?
R - Eu acho que foi ficando cada vez mais difícil a escola. Difícil, assim, de não fazer sentido. E tinha essa coisa da escola, lá, que era divisão por nota, então, tinha a classe dos alunos CDFs, era um, dois, três quatro, cinco. Uma era classe das melhores notas e assim por diante, até a classe dos piores, dos burros. Tinha uma coisa, meio marcada, mas também era mais legal, era mais divertido, tinham as pessoas mais legais, enfim, tinham esses estigmas.
P/1 - E você estava em qual turma?
R - Estereótipos. Então, até o momento nas melhores e, depois, nas piores, mas eu tenho uma marca um pouco ruim desse processo de escola. Eu acho que isso foi muito importante na minha vida nas escolhas que eu fui fazendo. Eu tinha muito interesse em pensar a educação. Quando eu fui fazer faculdade, isso era uma coisa que me mobilizava muito, eu tinha muito interesse, estudava teorias de educação alternativas, que façam sentido, porque acho que o jeito que era e foi ficando cada vez mais rígido na coisa das caixinhas, da aula, depois, outra, enfim, os horários, o tempo que não é o tempo do corpo, do desejo. Eu acho que eu tinha outros desejos que, na escola, não tinha espaço para realizar.
P/1 - Você fazia alguma atividade fora da escola que te dava mais?
R - Com dezesseis anos, eu comecei a fazer capoeira, que é uma coisa bem importante na minha vida e, desde sempre foi. Acho que foi um espaço que eu amo e que também tem uma parte de grupo, de relações, e de música. Sempre estudei música. Sempre teve uma coisa dos meus pais. A minha mãe toca piano, ela sempre estudou, ela ama música e meu pai, também tinha banda, e desde criança, desde muito pequenos, a gente estuda música, três anos de idade, a gente fez aula de música, de artes, então, minha mãe tinha esse princípio de que ela achava que isso era importante para a vida, e a gente fazia, mas eu não gostava muito. Eu estudava piano, porque a gente estudava piano, e meu irmão, outra coisa, teclado, sei lá, guitarra, que era de menino.
P/1 - Seu pai tocava o quê? Você disse que não gostava muito de estudar piano, mas teve alguma coisa?
R - Eu gostava em alguns momentos e, em outros momentos, era obrigação. Eu tinha que ir.
P/1 - Teve algum momento ou alguma situação, assim, nas aulas de piano, que você lembra, ou que você fazia?
R - Quando a gente era pequenininho, fazíamos esse conservatório, que era na rua de casa, e aí têm umas filmagens da gente cantando, tocando. Eu lembro que era bem gostoso.
P/1 - Te dava prazer?
R - Sim.
P/1 - E, alguma vez, foi ruim? Alguma apresentação, que a lembrança não é tão boa?
R - Eu acho que sempre dava muito nervoso. É muito difícil apresentar, então, o piano, eu acho que eu não tenho nenhuma traumática, assim, mas eu lembro que dava muito nervoso. Eu estudava e na hora, errava, às vezes, por causa do nervoso.
P/1 - Você, em nenhum momento, pensou em seguir carreira artística? Nunca teve, enfim, uma área da música que te fizesse pensar?
R - Então, agora, na verdade, isso tem acontecido um pouco, não em carreira artística, mas eu sempre tive uma coisa muito forte com desenho. Eu sempre desenhei, bem, enfim, eu era a pessoa na escola que desenhava tudo, eu gostava muito de desenhar, gostava muito de pintar. E quando eu fui fazer vestibular e tudo, eu prestei a faculdade de artes e psicologia, e eu queria muito fazer as duas coisas. Eu já sabia. Eu lembro que eu escolhi muito tarde. No meio do terceiro colegial. Foi engraçado. Foi um dia, eu vou falar disso já, tudo bem. Quando eu era criança, eu dizia que eu queria ser médica obstetra, que eu queria fazer parto. Eu era apaixonada por isso e sou até hoje. Eu gosto muito de parto, enfim, estudo muito dessas coisas e eu tenho uma história que a minha tia-avó - irmã da minha avó - era parteira, e ela fez o meu parto, o do meu irmão, dos meus tios e, talvez, por isso, é uma coisa que me encanta muito, mas depois, com essa história de sangue, e tinha que estudar muito e era muito difícil fazer medicina e eu achava que não. Eu gostava muito mais, na verdade, de humanas, outras coisas, então, eu não lembro se eu pensei em fazer outras coisas, mas quando eu estava no colegial, eu fui fazer um dia de orientação vocacional em grupo, numa ONG. Era um dia que tinha apresentação de várias profissões e tinham algumas conversas para você ver sobre todas as profissões e eu lembro que, na roda, com a psicóloga não era nem apresentação sobre a profissão psicologia, mas era a psicóloga fazendo uma conversa com a gente e aí eu pensei "nossa, eu quero ser isso. É isso que eu quero ser." Naquele dia, eu falei "eu quero ser psicóloga", e, a partir daquele momento, com a psicóloga conversando com a gente, ficou decidido e foi isso, assim. E aí eu prestei as duas coisas. Eu prestei a faculdade de artes, nesse momento, muito mais com a parte de desenho, de ilustração. Isso era muito forte para mim, e foi sempre, na faculdade inteira. Eu sempre fazia cursos livres de desenho, de artes, de cor, e toda hora eu pensava que eu queria fazer essa faculdade de artes, na UNESP, que eu tinha prestado, que é em São Paulo. Eu lembro que, quando eu era criança e adolescente, eu tinha muitos diários. Eu tinha agendas que eu fazia muitos diários todo dia. Anotava coisas importantes. Eu lembro que teve um dia, eu devia ter uns dezessete anos, dezesseis, eu já era adolescente grande, assim, e eu lembro que eu estava no ônibus e entrou um menininho vendendo bala, e o menininho tinha um olhar brilhante, e eu fiquei muito emocionada. Ele olhou para mim e eu olhei para ele, e me lembro que escrevi nesse dia que eu queria trabalhar com crianças e com arte, que eu tinha tido uma... Como se diz, assim? Um momento de intercepção que era isso que eu queria fazer, só que isso era uma coisa que eu não lembrava. As coisas vão acontecendo e a gente vai percebendo que depois a gente entende que sempre foi. A gente sempre sentiu a mesma coisa. Às vezes, nós temos uma percepção, "nossa, eu acho que é isso". Eu já sabia isso desde sempre. E aí é isso, eu fui fazer psicologia, sempre até o final. No último ano da faculdade, eu comecei a fazer um curso preparatório para o vestibular de desenho, e aí, depois, quando eu ia prestar, eu pensei "não vou fazer outra faculdade de novo, todo dia, eu estou acabando uma faculdade". Também tinha uma angústia de terminar a faculdade e não saber o que fazer, então, vamos fazer outra faculdade. Eu sei que isso é uma coisa minha e que eu vou poder usar. Faz todo sentido na psicologia. Eu lembro que eu pensei que é isso, eu posso juntar a arte com a psicologia. E aí eu vendo essas minhas agendas, eu achei esse dia que eu tinha escrito isso, e eu falei "eu achei que eu tinha percebido isso agora, que eu tinha entendido que fazia sentido. Na verdade, já era uma coisa que eu achava desde sempre. Não era uma novidade." Mas a gente estava falando da música.
P/1 - Mas ainda na psicologia, você terminou a faculdade de psicologia e você conseguiu relacionar com a arte, em algum momento, o desenho?
R - Então, quando eu estava no quarto ano da faculdade, eu sempre tinha essa coisa de gostar muito de criança, de querer trabalhar com criança, mas eu não tinha tido experiência. Eu tinha feito alguns estágios, tinha feito algumas coisas, mas eu não tinha tido experiência. E aí eu estava na faculdade, eu vi um folder no CA do projeto Fazendo a minha história, e que era isso, "se inscreva para trabalhar com as crianças nos abrigos". E aí eu fiquei muito encantada. Eu falei "nossa, é isso que eu quero fazer". Eu achei incrível. E logo me chamaram, e eu comecei a ir ao abrigo e foi uma coisa que eu conheci, nesse momento, assim, essa realidade do acolhimento, que eu também não sabia muito como que era, porque as crianças iam para os abrigos, mas isso foi no quarto ano da faculdade, e eu já comecei a trabalhar no “Fazendo a minha história”. Eu ia uma vez por semana num abrigo na zona norte e trabalhava com dois adolescentes, um menino e uma menina, e a gente fazia leituras, fazia desenhos, a gente fazia a construção do álbum deles e foi muito encantador, assim. Eu aprendi muitas coisas, lá.
P/1 - E o desenho foi importante nesse encontro, nesse primeiro trabalho?
R - Eu acho que sim. Era um recurso, também, que a gente usava.
P/1 - Você tem guardado algumas coisas dessa época, dos desenhos que você fazia, desses primeiros que você fez com a criança?
R - Talvez. Não lembro bem.
P/1 - Teve algum que ainda está na sua memória, algum desenho que eles fizeram que foi revelador ou algum momento que você estava com eles e eles desenhando?
R - Não lembro.
R - Deve ter.
R - Depois, teve. Isso foi no quarto ano da faculdade. No quinto ano da faculdade, eu continuei no mesmo abrigo, com as mesmas crianças. Na verdade, trabalhando e eu me formei.
P/1 - Você era voluntária?
R - Eu era voluntária. E aí eu me formei em 2005. E aí, logo que eu me formei, fui chamada para trabalhar num projetinho que era ser colaboradora técnica, então, o instituto tinha sido fundado. Porque, quando eu comecei, era o projeto Fazendo a minha história, que era um projeto que acontecia nos abrigos, e aí, em 2005, teve a fundação no instituto que, na verdade, essa união dos projetos que aconteciam com a Cacá, a Renata, a Cau e a Lola, e aí virou um instituto com os programas, então, aí começou. E eu tinha acabado de me formar e a Cau me chamou para fazer esse projeto que foi um trabalho muito incrível, assim, desse momento de se formar, que a ideia era pensar um pouco, sistematizar mais um projeto, pensar o envolvimento dos educadores da casa, porque muitas coisas, a gente já vinha percebendo. Por exemplo, esse abrigo que eu trabalhava era um abrigo muito atrasado no sentido dos parâmetros atuais, então, era uma casa que era um homem que queria ajudar. Tinha uma casa, acolhia as crianças da rua, ainda muito desorganizado, muito assistencialista, muito como eram os parâmetros antigos, e lá, a gente se deparava muito com isso, então, a gente trabalhava com as histórias das crianças, mas as crianças lá, não tinham roupas individuais, era tudo de todo mundo, os educadores não trabalhavam as questões, então, a gente pensava muito na importância da formação dos educadores. E a ideia desse projeto piloto era a gente fazer algo com todas as crianças da casa por um ano e fazer, também, ações que pudessem envolver os educadores. E aí, eu fiquei muito feliz. Foi muito legal, assim, porque foi muito rápido, sabe? Eu me formei, fiquei um pouco, eu não sabia o que ia fazer, mas logo aconteceu isso e aí era eu, a Maíra e a Fê. Era um trio.
P/1 - A gente vai voltar nesse momento, depois. Eu perguntei para fazer a liga do desenho com a psicologia.
R - Sim, sim.
P/1 - Acho que a gente tem coisas lá para trás.
R - Tudo bem, tudo bem. Na verdade, eu estava falando da música.
P/1 - Enfim, as lembranças vão aparecendo. Mas voltando, então, para esse período de juventude. Fora da escola, o que você gostava de fazer nas horas livres?
R - Eu... deixa eu lembrar. Eu não lembro bem. Eu acho que até uns doze, treze anos, na infância, eu tinha essas atividades, aulas de piano, aulas de inglês, escola, prédio, que eu me lembre.
P/1 - E na sua juventude, assim?
R - E depois, eu falei que eu sempre quis sair de casa. Eu sempre quis fazer tudo sozinha. Eu queria muito ser livre. Eu comecei a andar de ônibus, aí eu lembro que eu ia e voltava de ônibus para casa, gostava muito de circular.
P/1 - Teve o Bandeirantes aí, na sua vida, a escola.
R - É. O Bandeirantes, da quinta série a oitava série era muito legal. Eu gostava muito de estudar lá. O que eu gostava? Sempre gostei de esportes. Eu jogava vôlei. Desde o Anglo até o Bandeirantes, eu jogava vôlei. Eu gostava dos professores, eu gostava dos projetos, das aulas, dos passeios. Tinha acampamento. Desde criança, a gente ia nesse acampamento de férias, de ficar temporada. Eu lembro que a primeira vez que eu fui, eu tinha sete anos e foi uma temporada, eu não lembro se eram doze dias, e eu lembro que eu fui e eu fiquei muito triste, muito. Eu chorava todos os dias com saudades da minha mãe. Foi muito ruim. E aí, depois, eu voltei, acho que com nove anos e foi muito legal. Foi divertido, enfim, mas eu lembro que eu não estava preparada para ir e lembro que...
P/1 - E os acampamentos eram com a escola?
R - Não. Com a escola, também. No Bandeirantes, tinha sempre, que era um final de semana. Era uma vez por ano, não lembro, mas tinha com a escola, que eu me lembro que era muito legal, que eram todos os amigos da escola, um final de semana. E na temporada, não era. Temporada, você se inscrevia, várias crianças de vários lugares e aí eram várias atividades. Você dorme nos quartos e aí tem esporte, teatro, várias atividades, gincanas.
P/1 - Eu sempre pergunto se, alguma vez, teve algum acampamento ou vocês aprontaram alguma coisa?
R - Não lembro.
P/1 - Ou teve alguma coisa difícil?
R - Teve essa vez que foi muito difícil, que eu lembro que chorava todos os dias. Eu fiquei com saudades da minha mãe todos os dias. Eu lembro que eu ia jantar e eu só chorava. Foi ruim.
P/1 - E a Tatiana já mais mocinha, doze, treze anos, o que você fazia, assim, na época de paquerar?
R - A gente ia às matinês que tinha. Eu não sei se existe isso ainda, mas na Mooca tinha o Moinho Santo Antônio, que era super famoso, tinha Krypton, tinham essas danceterias que tinham as matinês e que a gente eia super, eu e minhas amigas. Depois, logo...
P/1 - Conta um pouco como eram essas matinês para a gente que não conhece?
R - Eram baladinhas, assim, de música eletrônica. A gente se arrumava super e ia. Era domingo, das cinco às dez, era cedo. Tinham shows, também. Logo quando eu era criança, eu comecei a gostar de pagode, de axé e eu ia a vários shows.
P/1 - Quais bandas? Você lembra?
R - Lembro. Com doze, treze anos, era Exaltasamba, Katinguelê. Não lembro mais.
P/1 - Seus pais gostavam?
R - Não. Nada a ver.
P/1 - E as aulas de piano nessa época não existiam mais?
R - Existiam. Existia música clássica, mas eu era super pagodeira e, depois, eu era super do axé, de dançar axé, tipo É o Tchan. Eu comecei a ir para Porto Seguro, também. Com catorze anos foi a primeira vez que eu fui para Porto Seguro com as minhas amigas e aí era isso, era axé todo dia, e acho que foi a primeira viagem sozinha, talvez.
P/1 - Foi na formatura da escola?
R - Da oitava série, catorze anos, só que a gente não foi com a escola. Eu e umas amigas… era muito caro. Acho que nem tinha viagem, mas a gente organizou e fomos sozinhas.
P/1 - E o pai e a mãe deixaram?
R - Deixaram.
P/1 - Qual foi a sensação de estar viajando sozinha?
P/2 - Você sempre quis a questão da liberdade, que falava muito alto.
R - É, foi muito legal. E, a partir daí, eu comecei a viajar muito sozinha. Todo ano eu ia para Bahia de ônibus. Vinte e quatro horas de ônibus.
P/1 - Sozinha ou com as amigas, no caso?
R - Com as amigas. É. Nessa época da adolescência, que era o axé, esse momento, eu ia todo ano para Porto Seguro. Eu acho que desse ano, dos catorze, eu devo ter ido mais umas quatro vezes. Depois, passou.
P/1 - E depois qual foi o musical?
R - Depois, eu tive uma época de forrozeira, de ir ao forró, que era mais a época da faculdade, e depois eu virei sambista.
P/1 - A capoeira entrou em que momento, aí?
R - A capoeira, eu tinha dezesseis anos, e eu também sempre queria fazer capoeira, tinha essa coisa que eu tinha vontade de fazer, e eu comecei com dezesseis e faço até hoje.
P/1 - Como você descobriu a capoeira?
R - Não sei.
P/1 - Aquilo te encantou?
R - Não sei. Acho que foi em Porto Seguro, talvez. Não sei se outro lugar, mas lá tinha muito a capoeira. Acho que era lá.
P/1 - Quais outras viagens da juventude que te marcaram, assim?
R - Eu fiz um intercâmbio, acho que com catorze anos, também. Eu fiz intercâmbio no Canadá, fiquei um mês lá, com a escola. Era em julho. Um programa da escola que a gente ficava um mês na casa de uma família, estudando inglês. Foi bem legal.
P/1 - Essa foi uma das viagens?
R - É.
P/1 - Legal, por quê? Por que você achou legal?
R - Foi bem legal, porque eu não tenho histórias interessantes para contar.
P/1 - Não, mas assim, associação. Não precisa contar história. O que você curtiu?
R - Ah, é muito legal país diferente. Acho que sair da nossa realidade, língua diferente...
P/1 - A família?
R - A família não foi muito legal. A gente não manteve contato. Não foi muito legal, não.
P/1 - E não foi difícil, assim, chegar e a família não ser tão legal?
R - Ela não deixava eu sair. Tinham vários passeios que eram do grupo, mesmo, então, tinha dias que a gente ia para algum lugar depois da aula, e aí ela ficava reclamando que eu não voltava cedo. Foi difícil.
P/1 - E aí você ia mesmo assim?
R - Acho que sim. Mas tinham uns conflitos. É isso, tinham uns conflitos ali, difíceis.
P/1 - E como era brigar em outra língua? Você estava no Canadá.
R - Eu não lembro se eu briguei. Eu não lembro o que eu fiz.
P/1 - Mas alguma vez você deixou de ir ao passeio?
R - Não lembro. Acho que não. Mas eu lembro que eu não me senti tão bem, assim. Acho que tinham algumas questões difíceis, ali.
P/1 - Cada pessoa ficava numa casa?
R - Cada pessoa fica numa casa. É. Mas tinha um professor da escola que foi com a gente que acho que também ficava numa casa.
P/1 - Mas tinha esse apoio?
R - É. Que mais?
P/1 - E de amor? Que a Virgínia já perguntou. Namoradinho, primeiro. Às vezes, demorou um pouco, também.
R - Tinham vários. Acho que na época tinham vários casinhos, assim, várias situações.
P/1 - Não tinha um marcante?
R - Não, não tive um namorado.
P/1 - Você mais aproveitou mesmo?
R - É. E é isso. Eu gostava muito de viajar. Quando eu era adolescente, na faculdade mesmo, todo dinheiro que eu tinha, eu juntava para viajar para algum lugar e aí eu comecei a viajar sozinha. Acho que quando eu me formei mais, assim. Eu comecei a viajar sozinha para alguns, também.
P/1 - Formada no colegial?
R - Não, na faculdade.
P/1 - E como foi essa primeira viagem sozinha? Você lembra como foi?
R - Eu acho que foi... Deixa eu pensar se foi a primeira sozinha. Eu lembro que, quando eu me formei, eu fui para Salvador, que eu nunca tinha ido para Salvador. Eu tinha ido para Porto Seguro, para o sul da Bahia, para Caraíva, para outros lugares, e eu queria muito conhecer Salvador. Acho que tinha essa coisa de fazer capoeira. Eu fui quando eu me formei, fui sozinha para Salvador e eu fiquei um tempo lá, e é um lugar que eu amo, é o lugar que eu mais amo no Brasil, assim, que eu gostaria de morar. Várias vezes eu pensei morar lá.
P/1 - Por que você gosta muito de lá?
R - Eu gosto do mar, das praias, da energia da cidade, assim, da cultura, da história. Não sei explicar muito bem. Eu sei que é um lugar que eu gosto.
P/1 - Quando você chegou em Salvador, assim, você lembra da sua sensação, ou, pelo menos, em algum espaço de Salvador, você lembra da sua sensação ou da impressão?
P/2 - Ou alguma outra viagem que você tenha feito, também, que te marcou? Pelo que você fala, você gosta muito de viajar, então, você viajou com as amigas, sozinha, ou teve alguma que você falou não, agora, eu quero ir mais para longe, enfim, alguma que tenha, enfim… que aquela viagem tenha um pouquinho da Tatiana que é hoje, que participou da sua formação como pessoal, profissional, que seja.
P/1 - E também o que você não quiser contar, você não conta.
R - Sim. Eu acho que essas viagens para Salvador tinham um tanto de encontro comigo mesma. Eu sentia isso, de algum encontro comigo mesma, e acho que de pesquisas, e acho que várias coisas, assim, de projetos sociais que existem lá. Tem ao Pierre Verger, que é fotógrafo e em Salvador tem muitas coisas dele, a casa dele, e tem essa coisa dos negros, da escravidão, da capoeira, então, isso é uma coisa que me instiga muito e lá tem muito. A musicalidade, acho que a coisa da percussão, do que existe lá, que eu gosto, que também me traz inspiração, eu acho.
P/1 - A sensação é essa, inspiração?
R - É. Eu lembro que teve uma viagem que foi muito marcante, também. Eu acho que eu estava no fim da faculdade. Não, eu acho que foi depois. Em 2006, eu estava formada, e eu fui viajar com a minha irmã para Buenos Aires, e foi uma viagem que foi muito especial, assim. Foi a primeira vez que eu fui para lá e a gente foi visitar muitos museus, muitos parques e muitas coisas. Foi, assim, uma viagem que eu fiquei tão preenchida. A gente encontrou muitas coisas da Frida Kahlo. No Malba, que é o Museu de Arte Latino-Americana, tinha um quadro que eu fiquei muito emocionada, eu vi pela primeira vez, e outras exposições de rascunhos. A gente viu muitas coisas. Foi muito inspirador. Mexeu muito comigo.
P/1 - Você sempre fala da sua irmã com muito carinho, assim, inclusive falando de viagem com ela. Pelo visto, ela te apresenta bastante coisa. Conta mais um pouco da convivência que você tem com ela, enfim, de outros momentos que vocês passaram juntas, também?
R - Eu acho que a nossa relação foi se transformando muito na nossa história, porque acho que quando ela era pequenininha, ela era minha boneca. Ela odeia que eu fale isso, mas ela... É engraçado assim, que a minha irmã, eu acho que ela amadureceu muito rápido. Ela parece mais velha do que é, porque ela convivia com meus amigos, comigo, sempre. Então, a gente tem fotos de quando a gente tinha uns quinze anos, e aí nós tínhamos um grupo de amigas e fazíamos várias festas no prédio. A gente ia para vários lugares e ela ia comigo, com dez, então, ela já, muito rapidamente, fazia coisas que outras crianças não faziam e ela, também, gosta muito de arte, de música. A gente tem gostos muito parecidos, então, o primeiro show que ela foi, foi comigo. Foi no Parque do Ibirapuera. Acho que era do Arnaldo Antunes, que ela ficou super fã, então, tinham coisas assim, que a gente fazia juntas, muito.
P/1 - Tatiana, qual é a descendência da sua família?
R - A família do meu pai e da minha mãe são de imigrantes. Os meus bisavós dos dois lados são imigrantes. Da família do meu pai é da Itália, e da família da minha mãe da Rússia. A minha bisavó, da parte da minha mãe, eu conheci. Ela morreu, eu tinha quinze anos.
P/1 - E quais são as lembranças que você tem dela? Ela falava português?
R - Falava português com sotaque. Era bem velhinha. Ela tinha o cabelo branco, comprido, fazia uma trança, e a gente jogava baralho juntas. Eu ficava na casa dela, algumas vezes, e ela, também, cantava algumas musiquinhas russas para gente, tinha algumas coisas que ela fazia. Essa minha bisavó tem uma história familiar muito importante, que ela é mãe da minha avó e da minha tia-avó, que foi essa que fez meu parto, que, inclusive, ela chama Tatiana, que é o meu nome. É essa tia que fez o meu parto, e a minha bisavó, quando minha avó e minha tia-avó eram pequenininhas, o marido dela era músico e ele foi embora para viajar, para fazer um show, não sei se era na Argentina. Eu sei que ele ia fazer um dinheiro e voltar. E aí, ele não voltou. Ele foi, e a história que a gente sabe é que ele mandou uma carta pedindo dinheiro para voltar, e a minha bisavó que era uma pessoa dura, forte, assim, ela respondeu “do jeito que você foi, você volta”, e ele nunca mais voltou. E essa era uma história que era muito doída para minha avó. Para minha bisavó, imagino que também, mas a minha avó, a vida inteira... Acho que era uma espera eterna da hora que o pai ia voltar, que nunca se resolveu, então, a minha avó, acho que essa é uma história que sempre era falada, e tinha essa dor, assim. A minha tia-avó nunca se relacionou com ninguém. Todas as fotos que tinham desse bisavô eram queimadas. Tinha uma história muito mal resolvida, ali. O pai da minha mãe era russo, só que eu não conheci ele. Na verdade, eu só conheci a minha avó e a minha bisavó, da parte da minha mãe. Da parte do meu pai, a mãe dele morreu quando ele tinha doze anos, que também é uma história triste. E o pai morreu depois, mas antes da gente nascer, também, e aí a família dele, eu não sei muito, na verdade. Eu sei que é italiana, vieram, ali, para região de São Caetano, na verdade, e a família da minha mãe, da Rússia. O pai dela era russo e a minha bisavó não era russa, era Líbia, Arábia, Romênia, não sei dizer muito bem, também, mas essa região.
P/1 - Legal.
P/2 - E ficou na família, assim, os costumes? Você acha que, além disso, que você contou, teve mais alguma coisa? Da família italiana, da russa, de costume de vocês? Alguma coisa que vocês faziam ou fazem?
P/1 - Comida, talvez.
R - A minha bisavó fazia varenne, que a gente fazia junto com ela. Ela fazia a massa e a gente esticava, assim, na mesa, e fazia com o copo. A gente marcava e dobrava. Essa é uma lembrança com ela de fazer junto, e era muito gostoso.
P/1 - E alguém aprendeu a fazer? Alguém sabe fazer hoje da sua família?
R - Não. É muito fácil de fazer, eu acho. Até outro dia eu fui na casa da minha tia-avó, que é viva, ela tem oitenta e cinco anos. Eu fui lá, um dia, e ela ficou pegando os cadernos de receita. Tem muita coisa lá. Tem, inclusive, essa carta do bisavô, escrita em russa, e que está com a minha mãe, hoje. A gente nunca traduziu, não dá para entender nada, porque está manuscrita em russo, mas têm muitas pérolas, preciosidades históricas. E ela começou a pegar os cadernos de receita antigos, finha receita de varenne e eu peguei o caderno.
P/1 - E não fez?
R - Não fiz ainda, mas vou fazer.
P/1 - Era um sabor bom? Era gostoso?
R - É, era muito gostoso, ela fazia com queijo. Tem vários tipos. Têm uns que fazem com batata, mas o da minha bisavó, não, só o varenne, que era massa, e dentro era queijo.
P/1 - É assado ou frito?
R - É cozido, tipo macarrão. Tipo...
P/1 - Uma massa?
R - Um cappelletti, uma massa recheada.
P/1 - Me deu vontade.
R - Ela comia muito porco. Na casa da minha tia-avó tinha um forno à lenha, ela fazia. E todos eles morreram velhinhos, essa família do meu pai. Minha bisavó morreu com noventa e quatro, os pais dela morreram com quase cem anos, também, todos.
P/1 - Essa sua tia-avó, que ainda é viva, ela mora aqui, em São Paulo?
R - Mora.
P/1 - Você tem contato com ela ainda hoje?
R - Ela mora na casa que a minha bisavó morava.
P/1 - Que mora aqui?
R - É.
P/1 - Essa é a família da sua mãe?
R - Da família da minha mãe. A família do meu pai, que é a família italiana, é uma família que é maior, então, todas as tias casaram, tiveram filhos, que casaram e tiveram filhos. Eu tenho muitos primos, priminhos, enfim, e tem muita festa, então, toda hora tem festa de alguém, aniversário. É uma família que gosta de se reunir e fazer coisas juntos. E a família da minha mãe era menor, assim. Tinha minha avó, que a minha mãe tem dois irmãos, que não casaram e não tiveram filhas, e a minha tia-avó. Era só basicamente. E a minha avó morreu em 2010.
P/1 - E vocês eram as crianças da família?
R - É. Da parte da minha mãe éramos só nós.
P/1 - Muitos mimados?
R - Eu, meu irmão e a minha irmãzinha.
P/1 - As crianças.
R - A gente não ia muito, assim, na casa. Na verdade, a gente falou das brincadeiras com meu irmão. Nó íamos na casa da minha avó, e minha avó tinha uma casa muito legal, que era enorme, embaixo tinha um quintal, e aí tinha uma escada e no fundo tinha um quintal gigante, e a gente fazia umas coisas. Quando nós íamos na casa dela, nó brincávamos, chamávamos de ninho de passarinho. A gente fazia umas coisas com o sofá, assim, umas cabanas e, também, tinha um corredor gigante na casa dela e ela tinha uma bola de boliche, e aí a gente fazia um boliche, também, naquele corredor. Nós fazíamos várias brincadeiras. Era bem divertido ficar na casa da minha avó.
P/1 - Foram as lembranças que vocês tiveram de vocês três juntos, os irmãos juntos?
R - É.
P/1 - Legal. Vamos voltar um pouquinho agora para a Tatiana já na faculdade. Você contou um pouco para gente sobre a psicologia, que você fez esse trabalho voluntário, acabou se envolvendo. Conta um pouquinho mais, enfim. Você só fez esse trabalho voluntário durante toda a faculdade e aquilo ali te despertou mais vontade de estar nessa área que o instituto trabalha, ou você chegou a atuar em outras áreas? Não só com criança e adolescente.
R - Como eu falei, acho que eu sempre tinha essa questão da educação. Na verdade, a grande questão durante a faculdade era a educação. Na PUC (eu estudei na PUC), era assim, eu estava no terceiro ano, era um núcleo básico, todo mundo tinha as mesmas matérias, psicanálise, as teorias, e a partir do quarto ano, ficava mais prático e você escolhia muitas eletivas. Então na verdade aí era mais diferente, cada um ia escolhendo coisas que gostava mais, e eu sempre escolhia tudo de educação. E nessa época eu gostava muito de educação. Eu ficava estudando educação democrática, gostava de escola, que é uma coisa que hoje em dia não tenho vontade de trabalhar mais, mas é uma discussão que eu gosto muito, de pensar, por exemplo, o modelo escola. Eu estava contando que no colegial, a escola era muito ruim para mim. Não fazia nenhum sentido, eram milhões de aulas, eu decorava as coisas para fazer a prova, então esse sentido de prazer de aprendizado, não tinha. E acho que, pelo contrário, acho que me distanciava de mim mesma, dos meus desejos, do que eu queria fazer. E então eu fui fazendo muita coisa de educação, e os estágios você tem que fazer, de todas as áreas. Eu fiz estágio em creche; fiz um estágio por fora da escola também, que era acompanhamento de escola, tipo auxiliar de classe; fiz num hospital, Pérola Byington. Era um grupo de espera com mulheres que iam fazer um processo de inseminação artificial, fertilização. E lá no Pérola Byington é super referência. É muito caro fazer isso, então lá as mulheres que tinham dificuldade de engravidar passavam por um processo, e cada vez que você faz é tipo 25% de chances de dar certo. Então é um processo muito frustrante, são mulheres que já estão com problemas, e aí a gente chegava e fazia uma sala de espera. Na sala de espera a gente falava: “oi, tudo bem? A gente quer fazer um grupo, vocês querem participar?” Porque elas ficavam horas esperando. E nós fazíamos encontros pontuais na sala de espera, que era a minha experiência de saúde, porque nós teríamos que escolher saúde, educação, trabalho e clínica, que aí a gente já começava a atender na clínica da PUC.
P/1 - E você passou por todos esses?
R - É, a gente passava. No quarto ano é isso. No quarto ano nós fazíamos as quatro áreas, e no quinto ano você escolhia duas coisas. Aí eu escolhi o psicodrama, e o núcleo que a maioria das pessoas do instituto fez, que é psicoprofilaxia na infância, que era da Lurdinha, da Bel, que são as nossas professoras referência, que super também na constituição do instituto elas apoiaram e participaram, dando supervisão para a gente em vários momentos até hoje.
P/1 - Conta um pouquinho mais sobre o que é essa área.
R - É pensar assim, a profilaxia, o que a gente pode fazer na infância que ajuda num desenvolvimento saudável psicologicamente também. Então, a gente estudava a questão da vulnerabilidade, crianças em situação de vulnerabilidade, a questão do desenvolvimento, e que era na verdade muito relacionada, essa época eu já participava do Fazendo Minha História, então eu tinha essa inserção no abrigo, e o meu estágio nesse núcleo foi na penitenciária feminina do Butantã. Tinha uma área especial para mães que tinham bebês, e elas tinham a licença maternidade de quatro meses, que podem ficar com o bebê amamentando, mas aí o bebê depois de quatro meses tem que ir para a casa de alguém, de algum parente que tenha, ou para um abrigo, se não tivesse nenhum vínculo. Então, essa era a grande questão lá, que era: muitas nem queriam se vincular muito com o bebê. Ao mesmo tempo que é um período muito especial, e essa oportunidade de amamentar e de ter essa relação com o bebê que é para o bebê muito importante, para o desenvolvimento, tinha essa questão do investimento e dessa ruptura. E na realidade da prisão que é horrorosa. Não importa o que, tinham lá todos os casos, a maioria tráfico por situações de vulnerabilidade mesmo, as mulheres se envolvem em alguma situação, mas elas são tratadas como animais. Nenhuma humanização. Muito ruim mesmo. E aí a gente fazia esses grupos lá, nós começamos a fazer os álbuns dos bebês, que tinha muito a ver, na verdade eu acho que levava muito a experiência que eu tinha do Fazendo Minha História para lá, para registrar esse momento da mãe com o bebê, como uma marca importante, e para valorizar esse vínculo. Então, eu lembro que a gente fez umas coisas tipo de construir um chocalho, que elas faziam junto, coisas para fazer junto com o bebê. E aí eu já estava super nesse trabalho, mergulhada nessa questão da vulnerabilidade, que sempre foi um desejo, eu sempre gostei muito. Acho que tem uma questão de gosto, porque as pessoas às vezes falam: “mas você trabalha com violência, com coisas tão difíceis”. Eu nunca achei difícil. Eu sempre gostei muito. Por outro lado, eu lembro que tinha uma época na faculdade que tinha umas aulas… eu fiz uma vez uma matéria, que era Criança Doente, então era uma professora que trabalhava em hospital com crianças com câncer, a maioria das crianças morriam, e eu fazia aquelas aulas e eu chorava. Falava: “como alguém trabalha com isso? Que horror”, e tem gente que ama. Mas para mim, não consigo nem imaginar. Até por essa coisa de hospital, porque eu sempre tive essa aversão a doenças, machucados, sangue.
P/1 - E paralelo a isso você continuava no trabalho voluntário lá naquele abrigo que você contou um pouquinho?
R - É. Na verdade, eu fiquei lá no quarto e quinto ano da faculdade inteiros, e assim que eu me formei, eu já estava encerrando, e aí eu fui chamada para trabalhar nesse projeto piloto, que foi aqui em São Paulo, no Educandário Dom Duarte, lá no Raposo, no Fazendo Minha História. Aí eu fui chamada para trabalhar em outro projeto, em outro abrigo, com um grupo de crianças, e eu estava fazendo a formação em psicodrama. Aí, no quinto ano da faculdade eu fiz um núcleo de psicodrama, e o de crianças em vulnerabilidade, e quando eu me formei, eu engatei na formação em psicodrama.
P/1 - O que é o psicodrama?
R - O psicodrama é uma linha da psicologia, como existe a psicanálise e a fenomenologia comportamental, o psicodrama é uma linha que foi criada pelo Jacob Levy Moreno, que ele mistura um pouco com a questão de algumas técnicas com teatro, e na verdade a base é trabalhar espontaneidade e a criatividade, então ele diz que a gente nasce espontâneo e criativo, todos, e com a vida a gente vai perdendo isso. Ele chama das conservas culturais. Nós vamos repetindo as coisas como aprendemos que tem que ser, e vamos perdendo essa espontaneidade. Então, se tem uma situação diferente, a gente não tem uma resposta, porque a gente só aprendeu a ter respostas, e a ideia é resgatar a espontaneidade e a criatividade. E aí foi muito legal essa época, porque eu fazia isso, a formação em psicodrama, atendia na clínica da PUC, fazia esses grupos com as crianças, e eu comecei a trabalhar também num projeto da prefeitura com criança em situação de rua. Então, a gente fazia a abordagem nas crianças no viaduto da Doutor Arnaldo, enfim, era por região, então eu trabalhava na subprefeitura de Pinheiros e aí a gente ia abordar, tinha lá nossas regiões, e a gente chegava e abordava as crianças, e tentava visitar a família, tentava entender a história e encaminhar.
P/1 - Como voluntária ainda?
R - Não, aí foi um trabalho, que eu trabalhei pouco tempo, mas eu falo que parece que foi muito tempo, porque foi muito intenso o trabalho, e que também foi muito transformador. Eu não tinha ideia de que as crianças em situação de rua, a maioria são crianças que fugiram de casa. Não é que elas morem na rua, são da rua. Enfim, a gente não sabe. Mas aí eu conheci muita coisa também nesse trabalho. Logo que eu me formei, eu trabalhava nesse trabalho, eu comecei a trabalhar nos abrigos e nos projetos, e nas coisas do psicodrama, então foi um momento de muito aprendizado e de muita descoberta.
P/1 - Tem alguma história que está marcada?
R - Tem.
P/1 - Quer contar?
R - A gente ia na rua e ficava conhecendo. As crianças de rua são poucas. Você conhece, é a mesma criança, você encontra, você vai conhecendo. Tem os grupinhos, você vai entendendo que tem toda uma lógica de morar na rua que é muito divertido, tem uma liberdade, tem um tanto de um costume, mas são histórias muito sofridas. É muito difícil, são crianças que já vão ficando muito com uma proteção, uma defesa, então a gente ia pensando em construir um vínculo. Às vezes elas falavam o nome errado, ou elas falavam o endereço errado, porque a gente ia tentando perguntar o endereço, aí a gente ia fazer visitas domiciliares. Tinha um dia que nós íamos com a perua da prefeitura, e aí era assim, Cidade Tiradentes, eram uns lugares que eu também nunca tinha ido, conhecido, de muita vulnerabilidade. Umas casas sem parede, lugares muito ruins, e eu comecei a fazer uma proposta de trabalhar a história de vida. Também estava aqui no Instituto, e a gente fez toda uma organização de um grupo, e nós fazíamos com as crianças a linha da vida. Foi muito legal, porque é isso, é poder falar da história, o que a gente acredita muito, que a gente pode sofrer, viver, pensar, e abrir espaço para construir outras coisas. Então, a rua era tipo, eu desisto de viver, de construir, então era muito difícil para elas, por exemplo, ir para um abrigo. Elas não conseguiam viver em grupo, aceitar regras, vão ficando muito cristalizadas. Eu fiquei nesse trabalho na verdade quatro meses. Foi pouco, mas foi muito intenso, eu vivi muita coisa, mas a gente trabalhava seis horas por dia. Eu trabalhava todos os dias, seis horas, e mais um dia no final de semana, só que no final de semana eu fazia o psicodrama, então eu trabalhava de segunda a sexta. Sábado eu tinha a formação, e domingo eu trabalhava na prefeitura, por isso que eu fiquei quatro meses, não dava para suportar mais. E era muito intenso, mas a gente teve duas meninas, a Paola e a Greice, com quem ficamos muito vinculadas. Então, a gente ia fazendo esse trabalho de conversar, de construir um vínculo para podermos ajudar elas a resolver os conflitos, ou a família, quais as questões, para elas saírem da rua, esse era o objetivo. E a gente encaminhava as crianças para os abrigos, elas iam, tomavam banho, comiam, fugiam e voltavam para a rua. E essas meninas, a gente foi fazendo um trabalho muito aos poucos de conversar, de visitar a casa das famílias delas, que eram na Cidade Tiradentes. A gente foi para o hospital, teve um dia que ela quebrou o pé, alguma coisa assim. Aí a gente foi para o hospital, estávamos no hospital e ela deitou a cabeça no meu ombro e dormiu. Aí a menina que estava atrás de mim ficava me cutucando, porque tinham uns piolhos pulando, e dava para ver a pessoa desesperada. E aí, a gente fez todo um processo, nós íamos combinando coisas com elas, para elas voltarem para casa, só que eu já tinha decidido sair desse trabalho, porque eu não aguentava mais, porque era intenso e difícil, e aí eu sai. Só que a Paola tinha o meu celular, ela me ligava, e a gente manteve uma relação. Eu visitava ela, porque ela foi para casa, mas ela voltou para a rua, e ela virou uma pessoa na minha vida. Uma relação muito importante, e na verdade eu era a pessoa mais importante da vida dela. Ela ia, por exemplo, para a FEBEM e dava o meu telefone. Ligava polícia no meu celular. “A senhora conhece a Paola? Ela foi presa.” E por várias situações, ela ia em vários lugares, e dava o meu telefone. Ela me ligava várias vezes e falava: “vem me encontrar aqui na Praça Roosevelt?” Teve uma época em que ela morava lá. Eu ia encontrar. E aí eu levava ela em show do Palavra Cantada, comecei a levar ela em umas coisas. Teve uma vez que ela me convidou para ir num parquinho de diversões, aniversário dela. Então foram anos de convivência e que para mim era um pouco conflituoso, era um pouco difícil. Porque tinha um tanto de, nessa época de se formar, a gente tem essas regras de como a gente pode se comportar e quanto a gente pode se envolver no trabalho, então eu achava que não cabia, tinha esse conflito: “o que eu estou fazendo?” E ao mesmo tempo, eu entendia que aquilo era muito transformador para ela, e eu me doava muito, e entendia que eu podia mudar o mundo. Eu achava que ia resolver o problema, e que o que faltava era amor, faltava a relação e faltava amor, que isso podia transformar muito. Eu acho que podia transformar muita coisa, mas muitas coisas não. Porque são problemas muito complexos, e muito profundos, então a realidade da família dela, numa casa muito precária, num bairro que não tinha nada, mal tinha escola, não tinha biblioteca, não tinha lazer, não tinha nada. Então ela vira e mexe voltava para a rua, e ia presa. Eu lembro que ela me contava como era a voz de assalto. As crianças tinham isso: “a voz de assalto”, que era fazer uma voz. Enfim, então a gente ia tentando levar essas outras referências, de viver arte e cultura, e que isso poderia ser transformar. Por um lado eu mergulhava nisso, e eu queria me doar, queria que ela ficasse bem, e que a gente pudesse transformar várias coisas, e por outro, às vezes me sentia invadida, e sentia que ficava confusa com que relação era essa, porque eu não conseguia nem dar um nome. Não é uma relação que a gente tem. Não é minha amiga. Acho que ela me chamava de madrinha. E depois, tinham momentos em que ela aparecia e que a gente se encontrava, saía, passeava, fazia coisas, ela conheceu meus pais, então eu levei ela no Natal uma vez, na Avenida Paulista, tinha aquele monte de boneco, e ela tinha uma coisa de infância não vivida. Ela ficava muito encantada. Inclusive no show do Palavra Cantada ela já era adolescente, mas curtia muito, era super carente. Tinham momentos em que ela surgia, que me ligava, a gente se encontrava. Eu lembro que teve uma vez que era um sábado ou um domingo, não sei, e ela me ligou e falou: “Tati, vem me encontrar? Na Praça da República.” E eu falei: “Tá bom, eu vou.” E eu fui. Peguei um ônibus, saí de casa e fui. Ela não estava. Eu não encontrei ela. Depois eu falei: “como assim? E aí?” Ela ficou muito chocada, porque não achou que eu fosse mesmo. Ela não achava que eu ia fazer isso. E é isso, ela desvaloriza uma relação porque as pessoas também desvalorizam, então ninguém faria isso, de sair da casa e ir encontrar ela na Praça da República. E eu lembro que esse momento foi muito transformador. Ela se sentiu importante, amada, e na verdade a gente pensa isso hoje muito no programa de apadrinhamento, que isso é a coisa mais importante da vida, alguém que se preocupa com a gente, alguém que a gente pode contar. Então, tinham momentos em que ela aparecia mais, e momentos em que ela sumia, e que eu também, porque isso tomava uma energia da minha vida, e que nesse momento eu me doava completamente, mas eu também doava muito. Às vezes era isso, um final de semana eu ia sair com a Paola, e foi tomando uma proporção que era grande e também tinha um conflito, que eu falava: “eu preciso ter um limite”. Esse limite, eu não sabia qual era. Então no começo era sem, e depois eu fui entendendo que tinha que ter limite, porque também não dá para dar tanto, e aí ela às vezes sumia e eu falava: “tudo bem”. Às vezes ligava um policial dizendo: “a Paola foi presa”, e eu também, teve vezes em que falei: “olha, eu não sou a mãe da Paola”, eu entendia que eu também não podia fazer mais do que isso. Talvez eu pudesse, mas acho que tinha esse conflito de achar que tinha que ter um limite, e também tinha o conflito de que tomava muita energia na minha vida. Eu acho que isso no começo da minha profissão, isso que eu contei, de trabalhar quatro meses, era a minha vida inteira, e eu fui precisando equilibrar e dizer que outras coisas eu tenho. E aí a Paola morreu. Depois de um tempo...
P/1 - Quer parar um pouquinho?
R - Acho que já tinham dois irmãos dela que tinham morrido, assassinados. Então isso na periferia é uma coisa que é corriqueira. As mães perdem os filhos assassinados, questões de tráfico e questões de polícia que mata. E nessa época eu não estava próxima dela. Na verdade, eu soube que ela morreu, porque teve um dia em que eu falei alguma coisa e pensei: “a Paola, faz tempo que ela não me liga. Faz tempo que a Paola não aparece, ela deve estar presa”. Porque era isso o que acontecia. Ela ficava presa, aparecia, e aí a gente saia. E aí teve uma vez em que a gente se encontrou, ela tinha 18 anos. Eu a conheci quando ela tinha 12. Essa vez eu a encontrei, ela tinha 18 anos e tinha tido uma filha. Quando ela teve uma filha, ela teve a filha presa, ou ela estava na FEBEM, e depois ela fez 18 anos. Ela me contou que foi muito violento, que ela teve algemada, que não deram anestesia nenhuma, que ficou sofrendo para caramba. Ela me ligou e contou que tinha tido uma filha. A gente se encontrou, e ela estava super bem, estava super bonita, porque ela era raquítica. Na época da rua, ela era muito magra, cheirava cola, tinha tuberculose. Ela tinha a saúde muito comprometida, e estava super bem. Ela estava mais gordinha, estava com a filha, estava muito feliz. Ela falou: “agora eu quero trabalhar, quero ficar bem, eu quero cuidar da minha filha”. E aí um tempo depois eu pensei: “a Paola sumiu”, e eu lembro que ela tinha me adicionado no Facebook, e quando eu entrei no Facebook dela tinha uma mensagem, tipo essas mensagens para pessoas mortas: “espero que você esteja bem”. E eu fiquei muito mal, foi muito ruim. E eu não fiz nada. A mensagem não era tão óbvia de que ela tinha morrido, mas eu falei: “acho que a Paola morreu”. Só que eu não fiz nada, passou um tempão e depois de um tempão eu mandei uma mensagem para essa menina perguntando, e ela falou: “a Paola morreu”. Ela não quis falar muito sobre como foi. Eu imagino que tenha sido alguma questão de drogas, de tráfico, alguma questão do tipo, de dívidas.
P/1 - Ela continuou vivendo na rua o tempo todo?
R - Não. Eu acho que ela foi morar com a mãe lá na Cidade Tiradentes. Eu conheci a casa, a mãe, os irmãos. Tinha uma irmã que também estava na rua nessa época. Elas iam e voltavam, mas a Paola tinha uma mãe super preocupada com ela, uma mãe super sofrida, que tinha perdido acho que dois irmãos dela, que tinham morrido. Mas enfim, acho que esse começo da minha vida profissional… acho que foi esse mergulho.
P/1 - (inint) [01:24:50] só uma observação, que quando você teve essa experiência tão rica nesse sentido de viver mesmo essa situação das crianças, você falou que elas voltam para a rua, e tem uma certa liberdade, ou você falou, é divertido. Fala só um pouquinho disso, o que você observava.
R - Era um grupo, e é engraçado porque tem uma organização da rua, então eles chamam até mãe da rua. Tinha uma menininha na época, a Agatha, ela tinha oito anos, e eu lembro que eu tinha um priminho de oito anos, e eu ficava pensando. Ela era uma fofa. Eles tinham essa coisa da mãe da rua, então era alguém que cuidava. Quem cuida de quem, quem comandava. Era todo um grupo, podia ser até um estudo de grupos, de funcionamento. Como dormem, como eles se protegem, onde eles circulam… Mas tinha uma coisa de fazer festa, de ficar de madrugada circulando na rua. Só que quando você começava a perguntar as histórias e entender era só tragédia. Eu lembro uma vez de um menino que me contou que tinha matado o padrasto dele. Era um menino muito… não sei nem a palavra. São histórias muito difíceis. Essa Agatha, eu fui na casa da mãe dela também. Era no Itaim Paulista na Zona Leste. A mãe tinha dez filhos, e desempregada, morava num cômodo. E aí o que acontece? Ela põe as crianças para ir pedir dinheiro no farol, ou vender alguma coisa, e aí as crianças começam a encontrar outras crianças, e acabam não voltando para casa. Começam a cheirar cola, começam a conhecer. Então isso acontece muito. Acho que algumas crianças que fogem de casa... tinha a Greice que apanhava muito, tinha uma situação de violência em casa, então ela não ficava, e tinha essa outra situação de trabalho infantil que virava situação de rua. Tinha criança que ficava na rua vendendo e ganhava muito dinheiro, tipo dois mil reais por mês, no farol. E aí eles queriam comprar uma bicicleta, comprar um celular. Tinham várias realidades ali. Mas eu acho que o grupo da rua era um grupo de acolhimento deles, então era onde eles se sentiam acolhidos, se sentiam cuidados, onde eles podiam estar. Tenho vários registros desse momento, porque eu tinha esses conflitos do que eu posso, de até onde eu vou, de me doar demais. E eu lembro que logo depois que eu saí - e foi muito triste quando eu saí do trabalho - elas ficaram muito tristes. Ela me ligou um dia e falou: “Tati, vamos no Playcenter?” E eu fiquei: “meu Deus, não. Como assim? Qual é o meu papel?” Eu lembro que levei na minha terapia qual era o meu papel, e minha psicóloga falou: “isso é vida”. É uma relação que estava acontecendo.
P/1 - Vocês foram no Playcenter?
R - A gente não foi.
P/1 - Que relatos você tem...
R - Ah, acho que era disso, de pensar qual era o meu papel, o que eu posso fazer.
P/1 - E você registrou?
R - Eu acho que sim, eu vou procurar.
P/1 - Agora falando um pouquinho mais do trabalho, enfim, não tem nem como descolar, mas falando também do trabalho que você já desenvolvia no instituto, como foi nessa época? No comecinho, foi aqui que foi fundado de fato. Foram registrados os primeiros álbuns. Você continuou coordenando? Você ficou na linha de frente fazendo os álbuns com as crianças?
P/2 - Então eu vou pedir, porque você falou como você chegou, mas passou. Não sei se eu não registrei. Como ela chegou, ainda não tinha sido fundado, não é? (inint) [01:29:40]
R - É. Eu fazia esse trabalho nesse abrigo da Zona Norte, que eu comecei como voluntária, e era muito legal. Pode falar os nomes? Eu trabalhava com o Anderson e com a Viviane, que eram adolescentes de 14, por aí.
P/1 - Como você chegou lá? Nesse abrigo da Zona Norte.
R - Eu achei esse folder do instituto Fazendo História, e nessa época eu achava muito que eu queria trabalhar com crianças, com arte, mas eu não tinha nenhuma experiência, e eu precisava ter, eu queria viver experiências, e aí eu encontrei esse folder, e na hora eu me inscrevi e me chamaram. Falaram: “quer participar? Vamos conhecer então o abrigo.” Eu fiz uma visita e comecei. A gente tinha algumas reuniões, tinha uma pessoa que nos supervisionava, que foram algumas no começo. E aí, eu ia toda semana. Então, eu fazia o álbum com eles, a gente lia histórias, era muito legal. Eu lembro que eu tive várias experiências legais de trabalhar com a história de vida. Eu lembro que esse menino tinha uma irmã gêmea, mas só ele estava no abrigo. Ele era tipo rejeitado pela família. Nessa época, foi 2004, de lá para cá, tem muita diferença. Porque tem essa transformação dos serviços de acolhimento, então antigamente os orfanatos tinham uma visão mais assistencialista das crianças só estarem ali, e cuidarem, não ter trabalho com família. Nessa época não tinha. Esse menino, por exemplo, ele não devia estar lá. Porque o motivo de acolhimento é um motivo muito grave e não pode ser um conflito familiar. Isso a gente tem que resolver, não é motivo de acolhimento. Ele tinha uma irmã gêmea que morava com a família, e ele estava acolhido. Ele tinha uma raiva, batia em todo o mundo, quebrava tudo, que se descontrolava, e eu sempre gostei desse tipo, sempre foi dos meus preferidos. E foi muito legal com ele, porque ele se vinculou comigo. Eu lembro que teve um dia em que a gente leu uma história, era um livro de contos, e tinha um conto que falava disso. Eu não me lembro bem como era, mas era uma cobra, era sobre fazer uma coisa na raiva, e depois essa possibilidade de pensar, entender e acolher. Eu lembro que foi muito transformador, ele amou a história, e queria ler de novo, então ele começou a falar muitas coisas para mim. Foi muito legal o trabalho. Essa possibilidade de ter potência, caminhos, de ter lugar para elaborar... Então a gente conseguia. E era isso, esse menino que era muito difícil, que todo mundo não gostava de cuidar, não tinha essa simpatia por ele, essa possibilidade de cuidado, num abrigo que não tinha equipe técnica, não tinha trabalho com família. Era a lógica mais assistencialista, como eu contei. Era um homem rico que tinha uma casona e que falou: “vou cuidar das crianças”, então ele começou pegando as crianças ali no viaduto, levando para casa, era assim que ele funcionava. Até que em um momento, enquanto eu estava lá, esse senhor João, que era o dono do abrigo, morreu num acidente de carro de repente. Um dia seu João morreu, e foi difícil para todo o mundo, e meio que o abrigo acabou.
P/1 - Esse trabalho era individual, você e o adolescente?
R - É.
P/1 - E vocês tinham formação? Fala um pouquinho disso. Ou alguma orientação, supervisão, quando vocês começaram a trabalhar?
R - Sim. A gente tinha uma formação inicial, como é hoje. Acho que eram dois encontros na época. Era um encontro mais de apresentar, e um encontro dos livros e álbuns, como trabalhar com isso. Aí a gente tinha uma reunião uma vez por mês, que era com os voluntários que trabalhavam no mesmo abrigo, e a gente trocava experiências, contava, nós tínhamos uns encontros que eram muito legais, que eram os encontros... Não me lembro como chamava, mas eram encontros de temas que tem a ver. Então por exemplo, teve um dia que era sobre mediação de leitura. Era Capacitações "alguma coisa", mas a ideia era trazer conteúdos de arte, leitura, de coisas que pudessem ajudar no trabalho, mas que não era supervisão, então tinham esses encontros de formação.
P/1 - Nessa época o instituto estava se organizando, você era voluntária. Você foi convidada para participar dos projetos, como foi essa reorganização?
R - Eu lembro que teve um jantar em que eu fui. Minha mãe desde essa época amava o instituto.
P/1 - Como ela foi se chegando no instituto? Você que descobriu pelo folder.
R - Minha mãe achava lindo meu trabalho, ela gostava muito. Ela morria de medo de eu ir para a rua, ficava apavorada, mas achava maravilhoso. Eu ia contando para eles dessa realidade, que é muito desconhecida e que tem muitos mitos, esse medo. E aí, teve um jantar em que eu fui com meus pais e com minha irmã, que foi o lançamento do instituto que na verdade era um jantar para arrecadar alguns fundos também para começar os projetos, então nesse momento tinha o Fazendo Minha História. E a ideia era ter o contato, o ato vivo, e o Perspectivas. Que era a Lola, que seria o Perspectivas, a Renata o Contato, a Cacá o Ato Vivo, e a Cau fazendo o Minha História. Então, quatro psicólogas se juntaram, cada uma era um projeto, e a ideia era começar. Aí, começou aos poucos, na verdade. Eu lembro que fui fazer uma entrevista com a Renata, que era a coordenadora do contato.
P/1 - O contato era o quê?
R - O Contato é um programa do instituto que é de psicoterapia, então são pessoas que têm consultório e se disponibilizam para atender uma ou duas crianças do serviço de acolhimento. E eu tinha acabado de me formar, e acabado de abrir meu consultório, que eu abri logo que me formei. Então nessa época eu tinha consultório, e aí fui fazer essa entrevista para ser do Contato, que não tinha ainda. Eu fui a primeira terapeuta do Contato. Eu lembro que fui fazer uma entrevista com ela no consultório dela e que tinham algumas perguntas que ela fazia para selecionar as pessoas como tem até hoje. Então tinham algumas exigências, e ela perguntou para mim: “como você se imagina daqui a cinco anos? Ou dez anos?” Eu falei: “me imagino no consultório e trabalhando.” Na minha cabeça era no Fazendo História. Porque eu não estava trabalhando nessa época. Eu estava nesse projetinho de colaboradora técnica, que a gente fez um ano. E eu queria muito trabalhar no instituto. Então eu falei: “eu me imagino daqui cinco, dez anos, trabalhando no meu consultório, e com crianças em abrigos, em projetos, coisas assim”. Aí eu comecei a atender no Contato.
P/1 - Era voluntário o serviço?
R - É. Era no consultório, voluntariamente. Eu atendi muitas pessoas, atendi muitas crianças, e atendo até hoje. 12 anos. E lembro que nesse começo eu atendi muitos adolescentes. Então, eles ficavam pouco tempo e saíam. Tudo isso foram muitas experiências muito ricas. Eu aprendi muita coisa, de conhecer muitas histórias, de entender muito desse mundo. E essa primeira experiência, que foi como colaboradora técnica, que foi a primeira experiência que a gente foi chamada para trabalhar. A gente ganhava 300 reais, e ia duas vezes por semana. Eu trabalhava com oito crianças. Eram três, e a gente ia então toda semana trabalhar em encontros individuais com as crianças.
P/1 - Onde?
R - Num abrigo na Raposo Tavares.
P/1 - Qual o nome?
R - Educandário Dom Duarte. Um abrigo que fechou agora, não existe mais, mas era na verdade um orfanato. O Educandário Dom Duarte era um reformatório, e até a estrutura física deles era a de antigamente. Era afastado da Raposo, um lugar com piscina, com quadra, longe da comunidade, mas eles fizeram uma reforma em certo momento, porque era gigante, com 100 crianças, centenas de crianças, e eles fizeram uma reforma que viraram três casinhas com 20. Que era no reordenamento, então como um abrigo deve ser hoje. Essa experiência foi muito intensa também, foi muito legal. Nesses encontros individuais com as crianças, a gente fazia mil coisas. Entãoz tinham as crianças, minhas paixões. Tinha uma menininha, a Michele, que era a coisa mais fofa do mundo. Ela tinha uns quatro anos, e era muito fofa. A gente fazia muitas brincadeiras, e ia contando a história. E tinham uns casos mais desafiadores, que eram os mais difíceis de estar junto. Eu lembro um menino que só me atacava, mas também foi muito legal o trabalho.
P/1 - Como você foi trabalhando com ele e foi mudando, foi transformando?
R - Eu acho que nessa mesma perspectiva de continuar lá. Porque eu acho que essas crianças que sofreram rupturas, violências, elas têm muita dificuldade de se vincular de novo. Porque eu evito um vínculo importante? Porque eu não quero sofrer essa perda.
P/1 - Isso você sente com todas as crianças? Principalmente as que você trabalhou? Tem essa aversão, essa dificuldade no começo, tem essa dificuldade no começo porque ela subentende que aquilo ali vai ter um fim. Que é um fato, no caso, principalmente no contexto do acolhimento.
R - Acho que não são todas. Acho que cada criança tem uma forma de elaborar, de se colocar, mas têm esses comportamentos desafiadores.
P/1 - Esse menino?
R - É, eu estou lembrando de um na verdade. Que era um menino que era o mais difícil para mim. As outras crianças eram muito fofas, eu era super apaixonada, a gente fazia mil coisas. A gente ia aos poucos conseguindo falar de história, então tinham um grupo de irmãos nessa época, que eram oito irmãos que estavam acolhidos, e até foi uma história que a gente fez um livro sobre eles aqui no instituto. Uma publicação que era sobre história de vida e da entidade de proteção, que fala sobre a importância de a gente saber a verdade sobre a nossa história. Pode contar?
P/1 - Começa de novo.
R - Esse grupo de irmãos tinham sido acolhidos, os oito irmãos, porque a irmã mais velha era abusada sexualmente pelo pai, só que teve uma denúncia, o conselho tutelar foi na casa deles, e falou: “pessoal, vamos tomar um sorvete?” E aí eles entraram todos na perua, eles levaram os oito para esse abrigo na Raposo Tavares, e não falaram nada. Um ano depois a gente chega no abrigo para começar a trabalhar, então esses meninos estavam há um ano. A mais velha tinha 11, e o mais novo era um bebê, era uma escadinha, e eles não sabiam porque estavam lá, e eles estavam só querendo saber porquê, e voltar para casa. E ninguém conversou com eles, ninguém contou para eles. Eles só viveram isso: “vamos tomar um sorvete”. Foram lá, nunca mais viram a mãe, nunca mais viram ninguém. E eles tinham um silenciamento. Eles não falavam de história deles, não falavam nada, não falavam porque eles não sabiam, ou porque os mais velhos até sabiam, mas era um tabu muito grande, era uma violência, era alguma coisa que não podia ser falada, então ninguém falava. E falar de história com eles era muito difícil. Eu me lembro que um deles ficou seis meses lendo livros. Porque tinha uma parte que era ler o livro, e uma parte que era construir o álbum. Ele ficou seis meses lendo livros. Ele chegava e pegava dez livros, e a gente lia. Porque era difícil falar de história, fazer o álbum, então ele não queria fazer o álbum. E aí, nós fomos nessas percepções, então a gente tinha as nossas reuniões também. Cada parte dos irmãos estava com uma de nós, e nós íamos tentando entender, e nós fomos fazendo esse trabalho junto com o abrigo, de contar para essas crianças o que aconteceu, por que elas estavam lá. E aí a equipe fez alguns encontros de contar, de explicar, de entender. Porque o que a gente percebia? A gente fazia alguns encontros de 'o que eu vou ser quando crescer", "o que eu quero, o que eu gosto?". Eles eram crianças que não conseguiam falar de si, nem fazer nenhum projeto, porque se eu não sei nem onde estou e porque estou, como eu vou conseguir pensar qualquer outra coisa? Não dá para fazer planos se a gente não sabe onde está. Então, tem essa angústia de tentar saber o que aconteceu e porque eu estou aqui. E a gente tem que falar. Por mais difícil que seja, saber da história é libertador. Nós podemos lidar com isso, podemos ficar muito tristes e com raiva, mas nós podemos viver isso, e aí resolver e viver outra coisa. Então esse ano de trabalho foi muito importante. Eu saía de lá às vezes e parecia que tinha passado um caminhão em cima de mim, de energia e coisas que a gente escutava e vivia. Mas foi muito transformador. Foi tudo junto, essas histórias todas, nesse momento de se formar e de começar a viver muito, de ter muito essa coisa de querer transformar.
P/1 - Você falou de um menino, que você ia contar.
R - Esse menino era uma história que a mãe dele tinha acolhido ele desde bebê, e ele tinha outros irmãos que moravam com a mãe. E a gente brincava.
P/1 - A mãe dele tinha acolhido?
R - É.
P/1 - Quando você fala, a mãe dele acolheu ele, quer dizer...
R - Levou para o abrigo. Desde muito bebê, ele tinha morado no abrigo a vida inteira. Ele tinha tipo dez anos. E começou aos poucos a fazer uma brincadeira que a gente repetia todo encontro. Ele era um cachorro perdido, e se enrolava num tapete desses de EVA, e eu desenrolava e achava. Ele era um cachorro que estava perdido, e ele brincava disso toda vez. Então, ele começou de outras formas a trazer várias coisas importantes. E acho que o mais transformador era eu estar lá mesmo assim. Então eu lembro que tinha uma época em que ele ficava peidando no encontro. Ele fazia várias coisas que me incomodavam, e eu ia ali suportando. O vídeo do instituto, do Fazendo Minha História, foi um vídeo que a gente fez nesse abrigo, essas experiências. As crianças aparecem lá, e eu lembro que ele fala no vídeo: “o que é o mais legal no projeto?” “O mais legal é que ela me ajuda e que ela fica lá comigo.” E aí eu comecei a trabalhar num outro abrigo, num outro projetinho com as crianças em grupo. Eu fiquei dois anos em cada coisa. Fiquei dois anos como colaboradora voluntária, aí eu fui chamada para ser colaboradora técnica.
P/1 - Qual a diferença? O que era ser colaboradora técnica diferente de ser voluntária?
R - Eu recebia 300 reais.
P/1 - O trabalho era o mesmo?
R - Era mais ou menos. Era mais assim, a gente tinha mais. Então eu trabalhava acho que dez horas por semana, então era uma carga horária muito maior. A gente tinha reuniões, tinha supervisão. Era um trabalho mesmo. E depois eu virei coordenadora do Fazendo Minha História, dos voluntários. Então, eu comecei a fazer também a formação de voluntários, e comecei a ser eu a supervisora dos voluntários nesse momento.
P/1 - Nesse momento em que você era a formadora dos voluntários, você lembra de como você resolvia, o que você achava importante? Eu entendo que vocês tinham uma orientação, mas tinha alguma coisa sua, que você tinha aprendido, que você achava importante passar para eles?
R - Tinha essas experiências. Acho que isso é até hoje o que me faz ajudar as pessoas. Essas experiências de transformação, de ir entendendo, por exemplo, os ataques das crianças muitas vezes que são testes. Nós temos experiências exemplos que vão... são coisas que muitas vezes se repetem em muitas situações, são coisas comuns, eu acho que isso ajuda muito para compartilhar, para orientar essas pessoas.
P/1 - Como foi passar de voluntária, no caso você estava lá na Ponto, depois você que acabou coordenando todo mundo, enfim, tomando para si. Você fazia formação de voluntários dali em diante?
R - É. Foi muito difícil, eu tinha muita insegurança, nessa época eu não queria trabalhar com os adultos, eu não queria essa formação. Eu gostava de trabalhar com as crianças, eu era apaixonada pelas crianças, queria ficar trabalhando com elas e aí esse é outro lugar, tinha uma responsabilidade, eu tinha medo... neste momento não, na verdade, porque nesse momento dos voluntários, tudo bem, acho que fazer a formação para voluntária. Aí eu comecei a desenvolver outras habilidades de fazer trabalho em grupo, de falar para as pessoas, comecei a desenvolver essas habilidades. Foi isso, e aí eu só fui fazendo mais coisas. Nós começamos a fazer formação com os educadores, porque nós criamos nessa época um... Todo abrigo que a gente começava... o Fazendo Minha História, nós criamos seis encontros para os educadores, que era a importância de falar da história de vida, papel do educador, sobre o abrigo, porque nós entendíamos que trabalhávamos lá com a criança, mas o educador ia lá e falava: “ah, não fala disso, não pode falar” ou brigava com a criança, então, às vezes trabalhava em uma direção contrária ao que estávamos propondo.
Eu junto com a Bel, nós fizemos essa proposta de trabalhar com os educadores e começamos a fazer isso, começamos a fazer multiplicação do Fazendo Minha História para outros lugares, eu comecei a viajar. Lembro que o primeiro lugar que eu viajei foi para Apucarana, no interior do Paraná, acho que foi a primeira experiência que fizemos do Fazendo Minha História em outro lugar e nós pensamos como que iríamos fazer essa formação. Eu fui sozinha, e esqueci o meu celular em casa. Era uma época que ainda era, não sei, 2007, 2008 não tinha muito contato, mas eu lembro que foram muito legais essas viagens também, porque eu comecei a conhecer abrigos no Brasil inteiro. Nós fomos para o Maranhão. Tinham lugares que pareciam orfanatos do século passado, que as crianças comiam naquelas bandejas de metal, mas a realidade do serviço de acolhimento, isso que trabalhamos muito, que é a transformação. Hoje em dia temos um parâmetro, a lei, o Estatuto da Criança e do Adolescente que diz como que um abrigo deve ser, como são os direitos das crianças e dos adolescentes, o trabalho com as famílias e que os abrigos ainda têm uma marca muito forte do passado assistencialista de orfanato, da família pobre que não tem direito de ficar com a criança, tem muita coisa, a criança que é delinquente. Nós ainda vemos muitas marcas do passado se reproduzindo e eu fui aprendendo muito, conhecendo muito sobre essa realidade, nesse momento nós começamos a fazer formação, começamos a viajar, a multiplicar, a conhecer muito. Eu lembro de uma educadora lá em Apucarana, no Paraná, não era educadora ela era faxineira, lavava roupa e falava: “ai, são muito tristes essas histórias, eu falo para ele ‘menino, para de falar disso’, é muito triste” e nós íamos trabalhando isso, essa importância de todos os educadores poderem estar alinhados, porque a criança está ali contando e temos muito essa ideia, culturalmente, que as coisas difíceis é melhor não falar, melhor não tocarmos nesse assunto, melhor fingir que não aconteceu e vai passar, mas não vai passar, enquanto não elaborarmos isso, não vai passar. Eu fui fazendo sempre coisas assim, fui fazendo formação, viajando, um tempo nós coordenamos Fazendo Minha História juntas, eu e a Bel.
P/1 - Deixa eu te perguntar. Você se formou em que ano?
R - 2005.
P/1 - E aí já era 2009? Mais ou menos.
R - É, acho que sim.
P/1 - Fala o ano, porque senão não parece que eu perguntei.
R - Isso era em 2009 mais ou menos, acho que em 2008, 2009, nós começamos a fazer viagens e multiplicar o projeto para outros lugares.
P/1 - Você disse que começou a fazer formação dos educadores, não só dos voluntários? Você estava contando.
R - Isso. Acho que foi em 2008.
P/1 - Já existia o projeto de fazer formação de educadores?
R - Existia, mas era um projeto Perspectivas que fazia supervisão institucional em alguns abrigos, mas nós começamos a fazer uma formação mais direcionada para o Fazendo Minha História. Daí a formação para o abrigo que vai implantar o Fazendo Minha História. Os educadores têm que estar formados, entender o que é o Fazendo Minha História, o que é falar de história de vida, como falamos com história de vida no cotidiano… Porque o voluntário vai lá uma vez por semana uma hora, mas a criança na hora de comer, na hora do banho, na hora de ir para a escola vai falar para a educadora a história, ela vai fazer xixi na cama todo dia e nós temos que tentar entender o que é isso que ela está tentando dizer, ela não fala só com palavras, mas ela fala com comportamento.
P/1 - Qual a diferença do Perspectiva que era de formação, pelo que entendi, e do projeto que vocês formavam educadores para o Fazendo Minha História?
R - A formação no Fazendo Minha História era totalmente direcionada para o Fazendo Minha História, nós queríamos construir uma parceria com os educadores, que eles pudessem, por exemplo, ler histórias na rotina, que eles pudessem acolher as conversas das crianças, que eles pudessem ajudar os voluntários contando coisas importantes que aconteceram com a criança na semana. Se é um bebê, por exemplo, nasceu um dente, ele comeu mamão e aí o educador é que está acompanhando e que pode contar para o voluntário. Nessa época a formação era bem direcionada, acho que eram seis encontros pensando no projeto.
P/1 -: E o Perspectivas? Tinha formação?
R - Trabalhava supervisão, pensar os casos das crianças, pensar questões da Instituição, mas não relacionado com o projeto.
P/1 - Não relacionado com...
R - Com o Fazendo Minha História, com essa prática que tínhamos.
P/1 - Eu estou perguntando, porque faz parte da história do Fazendo Minha História, do Instituto e que você de alguma forma, mesmo não estando no Perspectiva, vai contar um pouco do que era, dessas diferenças, entendeu? Por isso que estou perguntando. O Perspectivas fazia formação também?
R - Eles faziam supervisão, eles faziam, por exemplo...
P/1 - Mas distribuía?
R - ...construção do projeto político pedagógico da casa, eles pensavam as discussões dos casos pensando as estratégias da casa a partir dos casos. Essa prática de conversar com o grupo de educadores “ah, esse fulaninho a história dele, qual é a dificuldade, o que podemos trabalhar…", construir estratégias para o trabalho de forma mais ampla, pensando na rotina e projeto da casa.
P/1 - Eu vou dar uma paradinha. Já contou bastante coisa, mas...
P/2 - Voltando para a estrutura do Instituto, que você já contou um pouco, você tinha passado pelo Fazendo Minha História e você passou por outros projetos também depois disso? Qual foi o seguinte?
R - Eu trabalhei dez anos no Fazendo Minha História e enquanto eu estava no Fazendo Minha História eu comecei a fazer formação de educadores. Porque em 2012 teve o Perspectivas que era o grupo que fazia a supervisão no Instituto, ele se desvencilhou, saiu do Instituto, teve uma separação, e o Instituto começou a pensar um novo programa que seria o programa Formação e começamos a fazer. Eu fazia, a Débora fazia, gente que trabalhava em outros programas pegava o processo de formação e fazia. Nós começamos a pensar na verdade uma formação para além da supervisão, que chegávamos e discutíamos os casos. Era pensar um pouco temas, formações mais direcionadas, temáticas que pudessem ajudar os educadores a estarem em um chão comum, por exemplo, entender o que é um abrigo, qual é o parâmetro hoje, o que é o Estatuto da Criança e do Adolescente. Porque muitas vezes chegamos em um abrigo e eles não entendem também, que hoje em dia nós temos, por exemplo, que trabalhar com a história de vida, tem que trabalhar com família. Começamos a montar esses módulos de formação, pensar as atividades, vídeos, temas e eu comecei a fazer a formação. Eu peguei um processo em Barueri, que foi muito desafiador, sempre são desafiadoras as coisas novas, na insegurança você fala “não sei fazer”, mas foi muito legal. Eu também fiz psicodrama, tinha essa coisa do grupo, de trabalhar atividades, foi desenvolvendo isso na verdade.
P/1 - Você falou que é desafiador e sempre acaba sendo legal. Tem alguma prática aqui que vem de você, ou daqui do Instituto que acaba fortalecendo e ajudando? Porque você falou que é desafiador, mas acaba dando certo, ou não? Acontece com você… entendeu o que eu quis perguntar? Se tem alguma forma de vocês se organizarem que ajuda a enfrentar o desafio ou não? O que acaba dando certo? Por que você acha que acaba dando certo? É melhor assim, de você pensar. Ou pode ser que também não...
R - Não sei responder.
P/1 - Então, pronto, só porque se tivesse nessa hora era bacana...
P/2 - Acho que a Márcia perguntou uma questão se em algum momento deu errado alguma coisa e se vocês falaram “nossa, então isso não é uma prática legal, vamos rever”.
R - Não lembro.
P/1 - Não tem uma coisa que marcou?
R - Não.
P/1 - Você começou a contar...
P/2 - Da formação.
P/1 - Isso, continua. Só precisava saber, mas pode continuar.
R - Eu comecei a fazer formação, comecei a fazer mais formação, outro e outro processo e comecei a coordenar o programa de formação, acho que foi em 2014, acho que ficou uns dois anos, algumas pessoas que entraram e saíram e eu virei a coordenadora da formação, e por um tempo eu ainda fiquei nas duas coisas, trabalhando no Fazendo Minha História e coordenando o projeto de formação, fazendo formação. Depois de um tempo, em 2015 eu virei psicóloga do serviço de família acolhedora. Nós começamos essa experiência, que é relativamente nova no Brasil. Em muitos lugares do mundo existe, é uma alternativa, uma modalidade de acolhimento que ao invés da criança ir para uma Instituição, ela vai para a casa de uma família, que é formada, é acompanhada para acolher temporariamente essa criança. Em 2015 nós tínhamos um programa que se chamava Palavra de Bebê, que trabalhava estratégias para o acolhimento de bebês nos abrigos, pensando no que o bebê precisa, de um ambiente estável, precisa de muito afeto, precisa de estímulo, e no abrigo muitas vezes isso é um desafio, então o Palavra de Bebê pensava essas estratégias de acolhimento, ateliês de música, de massagem, de leitura, construção do álbum, o que ajuda um bebê a se desenvolver melhor no contexto do acolhimento. Ao mesmo tempo, existia no mundo uma discussão, hoje em dia está muito em pauta, a questão da primeira infância, o que é a primeira infância, o que um bebê precisa, que é a fase mais importante da vida e que precisamos de muito estímulo para conseguir desenvolver adequadamente. Existia um movimento de não institucionalização de bebês, uma corrente que pensa, e tem muitas pesquisas. Tem uma pesquisa principal feita em Harvard por um grupo de pesquisadores que chegaram à conclusão que para cada ano institucionalizado, um bebê perde quatro meses do seu desenvolvimento, por melhor que seja a Instituição, porque tem questões da Instituição, por exemplo, turno dos educadores, cada hora é um que cuida, tem várias situações que acontecem, algumas vezes de violência e que para o bebê nessa fase da vida, pode ter danos irreversíveis. Então é um momento de construção de sinapses, de habilidades. Íamos sentindo que era um pouco contraditório ficarmos pensando estratégias para bebês em abrigos ao mesmo tempo que tem um movimento que diz que o bebê não tem abrigo, então tem um movimento principal que é a campanha Fale Por Mim, que é liderada pela UNICEF que luta pelo fim da institucionalização de bebês na América Latina e no Caribe. Optamos em 2015 por encerrar o Palavra de Bebê e iniciar o Família Acolhedora, que não existia em São Paulo até então e optamos por fazer o Família Acolhedora só com bebês. Nós decidimos por conta disso, por juntar com esse movimento, por priorizar o acolhimento de bebês. Eu comecei a ajudar muito nesse começo, eu faço isso sempre de ir me envolvendo com muitas coisas. Fui trabalhando nas palestras de apresentação, mesmo estando nos outros programas eu comecei a participar das palestras de apresentação, porque nós fizemos todo um processo de construir um programa inteiro, de pensar formação de família, divulgação, tudo, parceria com fórum, tudo para acontecer. Eu participei de todo esse processo de construção e virei a psicóloga do serviço, eu trabalhei por dois anos como psicóloga do serviço de Família Acolhedora, que foi muito importante, porque foi uma experiência de trabalhar diretamente com as famílias, de origem, que até em então trabalhávamos em parceria com os abrigos, mas não tinha essa experiência da equipe técnica. Quando um bebê chega, que não tem acontecido ainda, nós íamos investigar o caso, visitar a família, entender o motivo e tentar fazer os encaminhamentos, além das experiências com bebês.
P/1 - Você era psicóloga da família de origem da criança e não da família acolhedora?
R - Não. O serviço como um serviço de acolhimento tem uma equipe técnica, a coordenação, uma psicóloga e uma assistente social. A equipe técnica, essas três pessoas, têm o papel tanto de acompanhar a família acolhedora, fazer todo o processo de formação da família acolhedora, supervisão, visitar a família e acompanhar tudo que está acontecendo com o bebê, como acompanhar a família de origem. Tínhamos esses dois papéis de trabalhar. A ideia é que o bebê fique o menor tempo possível e que ele volte para a família dele, esse é o nosso primeiro plano, quando não é possível ele vai para a adoção...
P/1 - Essa equipe, Tati, é do Instituto?
R - É
P/1 - Esse trio é do Instituto?
R - Em 2015 nós inauguramos um serviço de Família Acolhedora, pela primeira vez. Nós sempre tivemos projetos que implantávamos em parceria com o serviço de acolhimento no Brasil todo, em São Paulo muitos, interior, em várias cidades. São abrigos que existem e funcionam com suas crianças e a gente implantava esses projetos, Fazendo Minha História, Contato, Grupo nosso, enfim, todas as metodologias que fomos criando para trabalhar com as crianças, e em 2015 viramos um serviço de acolhimento na modalidade de acolhimento familiar. O acolhimento familiar não é um projeto, é um serviço de acolhimento, mas em família acolhedora, uma modalidade diferente que é prevista no ECA hoje em dia como prioritária ao acolhimento institucional e principalmente na primeira infância. É prioridade para as crianças de 0 a 6, estarem em família acolhedora. Tem crescido muito no Brasil, tivemos um crescimento. Em 2014 tinha trezentos e poucos serviços e a cada ano foi crescendo cerca de cem serviços. Em 2016 já tinha quinhentos e poucos, porque como está na lei, o Ministério Público vem fazendo essa pressão para os Municípios implantarem Família Acolhedora.
P/1 - Deixa eu aproveitar e te perguntar, porque vai fazer parte dessa história. Quando vocês fazem parceria com os serviços, com os projetos que vocês têm, esses serviços têm uma relação com o Poder Público?
R - Sim.
P/1 - Os abrigos, o centro de acolhimento eles são um serviço. Qual a relação? Bem rapidinho.
R - Em São Paulo eles não são da Prefeitura, eles não são de gestão direta. Em São Paulo todos os serviços são conveniados à Prefeitura, então, a Prefeitura repassa uma verba e uma ONG “ah, quero ter um abrigo, então eu repasso a verba e você executa” e ela presta contas todo mês para Prefeitura, tem uma supervisão.
P/1 - Vocês fazem parceria diretamente com os centros de acolhimento, às vezes com Prefeitura? Só fala isso, para nós pensarmos um pouco a gestão.
R - Fazemos parcerias normalmente com o serviço de acolhimento. O serviço de acolhimento tem autonomia para fazer o projeto que ele quiser. Os serviços de acolhimentos conveniados à Prefeitura em São Paulo recebem uma verba mensal para fazer formação, muitos deles nos contratam para formação de educadores a partir dessa verba.
P/1 - Entendi. Quando o Instituto Fazendo Minha História cria esse serviço de Família Acolhedora, hoje ele é um serviço também em parceria com a Prefeitura, por exemplo?
R - Não, hoje em dia...
P/1 - Conta como que ele está funcionando.
R - Em São Paulo não existe ainda o Família Acolhedora, São Paulo está bem atrasado pensando com relação...
P/1 - Cidade ou Estado?
R - A cidade. No Estado, por exemplo, em Campinas tem um serviço de Família Acolhedora que existe há 20 anos, é nossa maior referência. Na nossa construção o Sapeca foi um serviço que nós nos inspiramos muito. Outros Municípios também executam e São Paulo ainda não executa. Temos feito conversas com a Prefeitura para mobilizar e tentar, nós queremos conveniar, porque não temos verba, nós não temos como seguir executando, então, fizemos muitas conversas com a Prefeitura tanto para pensar a política que a Prefeitura precisa executar a Família Acolhedora, como gostaríamos de conveniar para continuarmos o nosso trabalho.
P/1 - Como que foi formado isso? De forma autônoma, é um projeto? Só fala para mim bem rapidinho, como que vocês conseguem se constituir em um serviço independente do Poder Público.
R - Nós sempre funcionamos a partir de recursos diversos: doações de pessoas físicas, jurídicas, editais, nós escrevemos muitos editais de empresas, que recebemos uma verba para executar um projeto específico e escrevemos um edital para executar o Família Acolhedora e recebemos uma verba por dois anos.
P/1 - De quem?
R - Da Johnson & Johnson. Na verdade, eles já patrocinavam o nosso programa, o Palavra de Bebê, e nós escrevemos esse edital, continuamos por dois anos executando e ele encerrou, e continuamos com recursos próprios do Instituto.
P/1 - Você foi a psicóloga desse programa, você disse que agora é programa mais serviço...
R - É um serviço.
P/1 - É um serviço, isso. Dá para contar uma história bastante representativa desse período? Se tem alguma situação...
R - Deve ter, calma, com certeza, tem muitas.
P/1 - … ou de modo geral também, se você quer falar alguma que mostra bem a importância.
R - Eu acho que foi um aprendizado muito novo para mim no Família Acolhedora, eu trabalho com bebês, então, essa prática mesmo de cuidar dos bebês, de conversar com os bebês, de trocar fralda do bebê, de tudo isso. Nós levávamos os bebês de um lugar para outro, por exemplo, o bebê tinha visita da família, mas a família acolhedora não encontra a família de origem, era em um lugar específico. No primeiro ano do projeto não tínhamos essa sede, estávamos na sede antiga que não tinha o espaço. Nós utilizávamos o espaço do Crescer que fica lá no metrô Tiradentes. Fazíamos esse trâmite de pegar o bebê da família acolhedora, de levar no nosso carro para encontrar a família de origem... Tinha esse caminho com o bebê, de conversar com ele. Teve uma situação, por exemplo, de chegarmos lá com o bebê para visitar a mãe e a mãe não vem, tínhamos que lidar com essa situação e o trabalho com a família de origem. Acompanhamos de longe quando estamos no serviço de acolhimento, porque a equipe faz esse trabalho, nós acompanhamos o caso, mas não fazemos o contato direto com a família. Nós fizemos um trabalho muito transformador, eu acho. Transformador por quê? Porque tem esse estigma das famílias pobres, principalmente. Estamos na região central que é a região da cracolândia. A princípio já disseram para nós “aqui é adoção”, "esses bebês não têm condição nenhuma de voltar para a família", mas pela lei o nosso papel é em primeiro lugar esse bebê voltar para a família de origem, se não possível, em último caso ele vai para a adoção. Essas famílias são muito violentadas, então, são famílias que não tiveram acessos há muito recursos. Nós fomos fazendo um trabalho de trabalhar muito com as famílias, com todas elas, e nós conseguimos, por exemplo, em alguns casos que os bebês voltassem para a sua família de origem. Se não com a mãe, mas com a tia, com a avó. Nós fomos fazendo uma pesquisa de vínculos mesmo e conseguindo que eles fossem reinseridos nesse núcleo, e eu acho que essa valorização e essa escuta da família é muito difícil de fazer. Eu acho que uma história muito marcante para mim, foi uma mãe que tinha um diagnóstico de esquizofrenia, ela era moradora de rua e era o nono bebê dela, o nono filho e nenhum deles estava com ela. Ela não tinha essa condição de se cuidar e de cuidar de um bebê e sempre esses filhos eram tirados dela, provavelmente, de forma violenta, sem explicar. O que aconteceu foi que esse bebê veio para o acolhimento, - e acho que muitas vezes acontecem de nem falarem com a mãe com essa situação - e nós fizemos uma busca muito grande. A Sara, que é assistente social do projeto, também tinha isso muito como princípio: essa busca pelas mães, na rua, nos serviços. E nós conseguimos encontrar essa mãe. Por mais que soubéssemos que ela não poderia ficar com esse bebê, nós trabalhamos muito com ela, essas conversas para contar para ela porque não podia ficar com esse bebê, o que ela precisava, que ela não conseguia cuidar de coisas dela… Nós fomos fazendo vários encaminhamentos de saúde para ela, de cuidado, de explicar e ela mesma ia dizendo “puxa, eu não consigo cuidar dele”, foi entendendo que não tinha condições, que precisava de alguns cuidados e que não tinha condições de cuidar. Esse processo tanto para ela, que pode ser escutada, pode ser respeitada, pudemos contar para ela tudo que estava acontecendo e nós construímos o álbum do bebê com uma carta dela dizendo para ele que ela o amava muito, mas que não podia cuidar dele, que queria que ele fosse muito feliz e isso estava ali registrado. Isso, para os dois lados, é outra história, porque o bebê pode ter uma história “fui abandonado no hospital” ou essa história “a minha mãe não podia cuidar de mim, ela tem essa questão e está ali registrado”. Isso muda totalmente a vida da pessoa. Tanto para ela quanto para ele, é uma outra marca e acho que nós pensamos em um trabalho com família que possamos respeitar, valorizar e encaminhar. Nós começamos a resolver um problema, porque se só pegamos o bebê e vai tirando das famílias, eles vão tendo outros filhos e o problema está aí, não estamos resolvendo o problema, estamos lidando com a situação como está. Essa experiência de poder fazer um trabalho diferente com a família, foi uma experiência muito prática de como trabalhar e fazer valer, esse olhar atento e respeitoso com as famílias.
P/1 -: Tati...
R - Essa é uma história reveladora.
P/1 - … Você contando um pouco, nós entendemos que a sua vida e o Instituto basicamente são as mesmas vidas de um tempo para cá. Você veio junto dele, ele foi sendo construído e você também sendo construída com ele. O que você acha, você Tatiana hoje, que você tira dessa história, de todas essas histórias que você já contou que é uma boa parte da sua vida? Você já expôs aqui. O que você tira disso tudo? Para nós fazermos um balanço.
R - Eu acho que de fato eu cresci aqui, quando eu vou falando que era desafiador, por exemplo, era desafiador trabalhar com os adultos, era desafiador pensar a formação, era desafiador falar em público e fomos fazendo muitas formações e muitas palestras, enfim. Acho que eu fui muito acolhida e que eu fui podendo desenvolver habilidades, porque acho que tinha momentos que eu me sentia muito insegura e falava “puxa, não sei fazer, não sou boa” e eu acho que foi sempre tendo espaço, e diversas ações. Foi tendo espaço e eu fui mergulhando também, deixando acontecer muita coisa. Eu acho que eu cresci muito como profissional, como pessoa. Tive muitas experiências que me fizeram olhar o mundo de outra forma, acho que essas histórias que eu vou contando vão desmistificando coisas que eu não sabia, que eu vou aprendendo, que eu entendo mais da nossa realidade do Brasil, da desigualdade, do olhar que temos para as pessoas, do respeito, acho que a questão da história de vida. Eu começo contando a história da minha família, que tem uma história de um abandono, uma história que é muito difícil, que ninguém gosta muito de falar, que eu acho que de algum jeito isso também me faz querer falar, quer dizer que sim, nós precisamos falar disso, história é história, não dá para mudar, mas podemos falar, elaborar e entender que têm coisas boas e têm coisas que não são boas, como todo mundo na vida. Me perdi, acho que é isso, acho que é tudo isso, na verdade. Acho que é esse crescimento pessoal, profissional, acho que essas descobertas incríveis, acho que é as possibilidades de transformação e que é também uma transformação pessoal...
P/1 - Tem alguma coisa mais, Márcia?
P/2 - Tem muitas (inint) [02:21:09]. Tem que já ir encerrando. Estou pensando de tudo que você foi falando, contando. Quanto mais você vai falando, mais vamos percebendo a história do Instituto. Aquela pergunta que eu fiz: o que você acha que ajuda você a enfrentar os desafios? Agora você falou.
R - Eu tinha pensando isso àquela hora, é que eu não consegui elaborar, mas eu acho que é isso.
P/1 - Mas é isso. Agora...
R - Eu fui muito acolhida, tinha... não quero falar isso.
P/1 - Puxa vida, agora...
R - Acho que é isso sim, eu fui acolhida, eu era muito insegura em alguns momentos, mas sempre foi tendo espaço. É a marca do Instituto, de acolher as pessoas e de poder entender o que cada um tem de melhor, o que cada um pode oferecer, eu acho que nós fazemos isso, eu me senti assim e eu acho que nós fazemos isso com as pessoas.
P/1 - Eu já lembrei o que queria perguntar. Você falou que vocês vão conhecendo as histórias e vão percebendo a forma de ir resolvendo, acolhendo, tudo isso que você já falou. Você falou que vai vendo como que a desigualdade vai provocando várias situações e quando você se relaciona com as mães, primeiro com adolescente, agora com bebê, quando você se relaciona com as mães ou com a família, qual que seria um desafio realmente grande? Que você acha que realmente é um desafio. Dá para achar um? O mais...
R - Eu acho que um desafio grande, gigante são as drogas, em muitos casos isso é uma batalha bem dura, nós vamos fazendo muitas estratégias e muitas tentativas, mas quando tem a questão do uso de drogas muito constante, às vezes é muito difícil sair. Nós fomos vivendo algumas situações dessa dificuldade de conseguir sair mesmo...
P/1 - ...da dependência.
R - ...da dependência. Acho que outro desafio é a falta de serviços que acontecem e funcionam bem, as políticas públicas. Como eu estou contando desses lugares que não têm escola, biblioteca, saúde, hospital, nada. Na verdade, às vezes tem uma limitação mesmo dos encaminhamentos possíveis, do serviço que existe.
P/1 - Que tem que compor com o que vocês fazem?
R - Exatamente, até nessas questões do uso de drogas, são políticas que não funcionam, que talvez se tivéssemos um suporte, um apoio, encaminhamentos possíveis, fosse outra história.
P/2 - Eu estou perguntando, porque tem o trabalho de vocês e tem uma rede social em que como o trabalho de vocês se relacionam com essa estrutura social.
P/1 - Você, como um balanço, entende que de dez anos, doze anos que você está no Instituto, pouco mais até, como você vê de uma evolução, não sei se eu chamaria de evolução, mas de uma melhoria dessa rede? Ou você sente que as coisas às vezes melhoram, as vezes pioram? Acabam patinando, porque de fato não se mexe na estrutura. Como você sente por já ter esse histórico trabalhando nisso? Até desde antes do Instituto, das outras experiências que você teve.
R - Eu acho que tem uma lógica que permanece, de julgamento das famílias pobres, de culpabilização, isso é muito cruel. Eu fico muito indignada quando vamos fazendo ações que as pessoas colocam a família no lugar da abusadora, da violenta, da que não consegue, isso é muito forte. Eu sinto, como eu estava contando, essa mudança do reordenamento que é a base do nosso trabalho e hoje em dia eu trabalho só na formação. Eu tive essas experiências todas do Fazendo Minha História, do Família Acolhedora, hoje em dia eu coordeno o programa de formação, que o nosso objetivo é melhorar a qualidade de atendimento no serviço de acolhimento com encontros de formação, de supervisão, pré-educadores, técnicos, profissionais que estão nos abrigos. Eu acho que mudou muita coisa, nós temos 15 anos, acho que tem tido também muitos… Precisa acontecer. Nós temos o plano nacional que diz como os abrigos devem funcionar, as orientações, nós caminhamos no sentido de os abrigos terem uma estrutura de acordo, acho que todos têm, em São Paulo pelo menos, ter a equipe técnica, os educadores, o trabalho com as famílias. Tivemos muitas medidas que foram sendo tomadas que foram fazendo as coisas acontecerem na prática, mas ainda temos um olhar equivocado muitas vezes, que é esse olhar da criança “coitadinha, carente, está ali não tem família, a família é violenta”, são estigmas que permanecem enraizados em tudo que fazemos, muitas vezes coloca a criança e a família nesse lugar da coitadinha e da que não pode, da que não tem. Até em mudanças, acho que vai acontecendo aos poucos, mas tem uma lógica de não interesse, de não investimento na assistência, eu fico pensando que se tivesse um projeto, dinheiro e investimento nós poderíamos caminhar muito mais.
P/1 - Você falou que faz 15 anos do que?
R - Faz 15 anos da minha experiência, do meu trabalho nessa área.
P/1 - Muito bom. Qual é o seu maior sonho hoje? Ou um sonho.
R - Continuar. Eu acho que eu não tenho nenhum sonho que seja muito fora do que eu já faço, é poder crescer, poder continuar fazendo, poder transformar os olhares das pessoas.
P/1 - É um sonho bonito.
P/2 - Eu tenho esse também. Nós vamos terminar. Nós queremos perguntar para você como que você se sentiu contando essa história para nós? Como que...
P/1 - Te surpreendeu?
P/2 - ...se sentiu à vontade?
R - Eu me senti, acho que no começo, antes, eu fiquei pensando que eu não sou boa de contar história, que eu sou prolixa e que não tenho histórias interessantes, acho que têm coisas que eu não lembro também, da infância, não sei, conto as coisas meio picotadas, porque eu não consigo contar muito bem, mas acho que foi fluindo.
P/1 - Com certeza, depois você vai ouvir quanta coisa você contou. Você se sentiu à vontade?
R - Senti, super...
P/1 - Isso é uma avaliação, para nós é importante.
R - … foi ótimo.
P/2 - Gostou da nossa condução? Tem mais alguma coisa que você queira falar, Tati?
P/1 - Acho que não.
P/2 - Que não perguntamos.
R - Eu acho que fiquei até surpresa de como costura muito, minha história com o Instituto, de fato é muito uma coisa só.
R - Eu acho que esse momento é o momento mais marcante da hora de me formar, de muita intensidade, de muita coisa, foi caminhando muito junto com tudo isso.
P/1 - É bem intenso, bem rico o processo. Parabéns.
R - Obrigada.
P/1 - Obrigada.
[02:30:02]
Recolher