PCSH_HV_750_SANDRA_LESSA
ENTREVISTA DA SANDRA LESSA
ENTREVISTADA POR JONAS SAMAÚMA E KAREN WORCMAN
SÃO PAULO, 17 DE ABRIL DE 2019
PROJETO AFINADORES DE OUVIDO
PROGRAMA CONTE SUA HISTÓRIA
PCSH 00750
TRANSCRITORA SELMA PAIVA
P/1 – Querida, eu queria começar você me contando, se puder, essa imagem, onde você foi. Se puder.
R – A primeira imagem creio que seja a primeira memória que eu tenho. É um lugar muito, muito escuro e eu era muito, muito pequena. Um bebê. E eu estava em um lugar bem quente, confortável, acho que até a sensação de alguma roupa bem apertadinha, dessas de bebê e era tudo muito escuro e eu recordo de uma voz que disse pra mim: “Agora vai começar sua infância. Tudo que você sabe, você vai ter que esquecer, pra começar o novo”. Veio um clarão e eu sinto que ali começou as minhas lembranças mais memoráveis. Essa é a primeira recordação que eu tenho.
P/1 – E você lembra dessa voz que estava dizendo isso?
R – Lembro.
P/1 – E você entendeu?
R – Lembro exatamente disso, dessa voz e eu abrindo os olhos e tendo a sensação de que agora, outras lembranças viriam. Essa foi uma memória que me acompanhou durante muitos anos na infância. Eu sempre recordava disso. Não foi algo que eu cheguei e falei pra minha mãe, até porque eu tenho a sensação de ser muito bebê e isso ficou muito tranquilo, sabe? Era uma coisa que estava tranquila dentro de mim e, às vezes, eu acordava de manhã, quando eu era criança e falava: “O que eu tenho pra aprender hoje?” e aí eu observava coisas que eu aprendia naquele dia. Uma coisa que eu via nova, alguma informação que chegava sobre a vida e eu falava: “Ahhhhh, era disso que aquela voz falava!”
P/1 – Me conta um pouco mais, então, das suas primeiras lembranças, ainda de bebê? Você tem outras lembranças nesse momento?
R – Eu lembro de coisas assim de muito, muito prazer de estar viva, sempre foi uma coisa muito prazerosa pra mim. E eu tinha dois irmãos mais velhos e a gente brincava muito e, de muito pequenininha, eu lembro que eu gostava de ficar perto da terra e das coisas pequenas que tinha na terra: plantas, sempre gostei muito de planta, de terra, de mexer nessas coisas, de animais. E eu lembro de, também, muito pequena, quando eu ganhei um conjuntinho de flanela, de roupa, era uma noite de inverno e era aniversário de um dos meus irmãos e eu era muito cotorrucha assim, e aí minha mãe tinha feito brigadeiro e eu fiquei roubando todos os brigadeiros, que não me resultou em nenhuma dor de barriga, foi ótimo, foi tudo tranquilo. (risos) Essa era uma segunda imagem, assim, de muito pequenininha. Eu estou falando das coisas mais remotas, assim, bem antigas, mesmo. E eu tenho pouquíssimas fotografias que possam me ajudar a lembrar, assim, dessa época, porque eu sou a terceira filha. Então, minha mãe estava em um momento muito enlouquecida de trabalho, mil coisas. Então, meu irmão tem muitas fotos, que é o mais velho, a minha irmã do meio tem meio e eu tenho umas três, de bebê, mesmo, de colo. Uma que eu estou no colo da minha avó Lurdes e outra que eu estou bem junto com os meus irmãos, assim e aí a imagem me ajuda a recordar desse dia, assim, que eles estão, cada um, puxando a minha mão no berço, assim, tentando dizer: “É minha irmã, é minha irmã”. (risos)
P/1 – Me conta um pouco, assim, da sua família. Quem era, o nome do seu pai, da sua mãe...
R – O meu pai chama Djalma Domingos Lessa e minha mãe Herondina Conceição Urizzi Lessa. Eu tive essa coisa de ter meus pais com nomes diferentes: Djalma, que não é um nome tão comum, como Herondina.
P/1 – Por que eles tinham esses nomes? Eles eram de onde?
R – O meu pai, a família dele, mais que eu conheci, minha bisavó, meu avô e minha avó, eram de Penápolis. Bem longe, no interior de São Paulo e aí eles foram, mudaram pra São José dos Campos. É uma família muito pobre de lá e os meus avós paternos tiveram cinco filhos e meu pai era o único homem da família, na época, quando eles estavam em Penápolis. Depois de muitos anos nasceu meu tio mais novo. E o meu avô tinha uma questão com o alcoolismo, então ele bebia muito, ficava muito agressivo e isso fez com que ele gerasse muita dívida familiar e o meu pai, desde muito pequenininho, seis anos de idade, já trabalhava, fazendo tudo que podia. Tem uma das coisas que ele fazia, que ele conta pra mim: ele colhia algodão e ele fala que ele lembra dessa sensação do dedo ficar furadinho porque o algodão vem com umas coisas espinhudas, a planta. E ele começou desde muito cedo pagar as dívidas da casa. Ele fala que outra coisa que ele fazia, quando ele não tinha nada pra fazer, não tinha de onde, onde tinha cavalo passando, ele ia - ele nem gosta muito dessa memória, mas eu acho linda essa memória -pegando estrume, pra poder fazer esterco e vender esterco.
P/1 – Em São José isso?
R – Em Penápolis isso. Aí meu avô chegou em um momento que ele fez uma dívida muito grande lá em Penápolis e eles tiveram que sair da cidade e meu pai ficou um tempo mais, já era mais jovem, trabalhou até tirar todas as dívidas da família e eles foram pra São José dos Campos, recomeçar uma vida nova. Nessa época o meu pai, não sei exatamente qual foi a ocasião, mas eles tiveram uma conversa, ele e o pai dele, meu avô, o vô Juca e ele fez uma promessa que ele nunca mais beberia e, de um dia para o outro, tal foi. Ele não colocou mais uma gota de álcool na boca e aí a vida da família toda deu uma renascida, assim, sabe, nessa época, lá. Foi nessa ocasião que ele conheceu a minha mãe.
P/1 – Então, seu pai, nessa época, já era grande, né?
R – Isso, quando isso tudo acontece. Ele teve toda sua infância e a sua juventude em Penápolis.
P/1 – E o seu avô, além de beber, trabalhava? Ele vivia de alguma coisa?
R – Meus dois avós tinham uma coisa, assim, com ferro velho, essa coisa de sucata e caminhões pequenos. Era, um pouco, o negócio dos dois. Assim que, inclusive, meu pai acaba conhecendo minha mãe, porque meu pai foi trabalhar para o meu avô materno, né?
P/1 – Me conta. Vamos lá!
R – Vamos lá! (risos) Eu queria, só, trazer da família do meu pai, o meu avô, a minha vó Lurdes, uma pessoa que pra mim era muito especial, que é a minha vovó Carolina, que era minha bisavó.
P/1 – Mãe dele?
R – Mãe da minha vó Lurdes, mas eles moravam todos juntos. Essa era a lembrança que eu tenho: a família do meu pai era um bloco e a da minha mãe era outro bloco. E a do meu pai tinha a vó Carolina, a vó Lola. Ela era conhecida por Lola porque diz ela que, antigamente, Lola era um nome de prostituta. Ela não era uma prostituta, mas foi uma mulher muito livre. Ela teve vários casamentos e todos os casamentos não foram bons pra ela e ela mandou embora todos os homens. Então, a vó Lurdes, que é filha dela, a mãe do meu pai, não conheceu o pai dela. E isso deu esse apelido pra vó Carolina, na verdade. Ela é vó Lola por conta disso e ela não tinha nenhum problema com isso.
P/1 – Isso em Penápolis?
R – Isso em Penápolis, é, pelas bandas de Penápolis. Eu não sei exatamente ali como foi, mas ela casou também com um índio, ela teve um filho com um índio, mas esse filho foi embora. Então, eu tenho um tio avô índio em algum lugar, que eu não sei muito bem onde está. E ela também adotou umas crianças. Teve uma família que ela foi adotando. Era uma mulher de cabelo bem enroladinho, meio grande, brava, só que muito, muito amorosa com a gente, assim. Então, essa é um pouco da família do meu pai.
P/1 – E quando eles mudaram pra São José, foram todos?
R – Foram todos. A família toda. Todo mundo.
P/1 – Inclusive os irmãos?
R – É, exatamente. E as minhas tias ficaram por perto e eles alugaram casa tudo meio pertinho, assim. Então, a hora de visitar a família do meu pai, era tudo, praticamente, uma rua só: a tia Eunice, a tia Rute, a minha avó e a vó Lola. Juntas.
P/1 – Então eles eram mais ou menos... descreve um pouco o que você lembra deles. Eram italianos...
R – Eles são de descendência portuguesa. É interessante porque já pesquisei, mas a família do meu pai é mais difícil de sair caldo, tem que ficar apertando, assim, pra entender. O que eu entendo é que eles são de família portuguesa e, segundo meu pai, o que ele sabe é que o avô dele veio de Portugal. E aí, quando ele chegou, ele já foi para o interior, trabalhar na roça. Então, ele nem esteve muito pelo porto de Santos ele já viajou e lá ele foi constituir família. Onde ele conheceu a minha vó. A história da minha vó Lola com os pais dela, isso já está bem perdida.
P/1 – Mas ela, essa sua vó que você achava interessante, o seu pai gostava dela? Todos gostavam?
R – A gente tinha essa coisa, chegava lá e meu pai falava assim: “Antes de qualquer coisa, beijo na vó Lola”. Eu lembro que eu brincava com meu pai e falava: “Pai, ter uma bisavó é que nem pinta no nariz, pouca gente tem, né?”. Porque eu sentia que era uma raridade ter uma bisavó, assim e ela sempre chegava lá, ela já estava bem velhinha, abraçava a gente, ela ficava contando várias histórias da vida dela, de quando ela tirou o chifre do boi com a mão, de que ela subia no coqueiro, tinha coqueiro alto pra pegar coco e ela que subia e eu achava o máximo aquela bisavó e ela falava assim pra mim: “Ixi, você vai ser artista. Você tem furo no queixo. Quem tem furo no queixo é artista”. Não sei exatamente de onde ela tirava essa história. Às vezes eu tenho vontade de falar: “Vó, deu certo, virei artista”. (risos) Naquela época nem imaginava isso. Então, essas são um pouco das lembranças, daquele cheiro da casa. Tinha uma coisa interessante, assim, porque a casa dos meus avós paternos tinha um clima um pouco mais pesado, eu sinto, assim. A televisão sempre ligada no Sílvio Santos e uma coisa que a criançada não curtia muito, mas os meus avós, meu avô Juca, que foi um homem um tanto agressor, inclusive com a minha vó, com a gente...
P/1 – Ele batia na sua vó?
R – Eu não tenho muito essa certeza, depois que a gente já existia, vamos dizer. Mas ele não era um homem muito carinhoso com ela. A gente percebia que era um relacionamento, assim, bem já morto, em algum lugar. Tanto que, quando ele faleceu, a minha vó teve os melhores momentos da vida dela, assim. Posso dizer isso. Mudou de religião, começou a viajar com um grupo de terceira idade... mas, conosco, eles sempre foram muito carinhosos. A gente chegava, era os netos. Então, é um pouco paradoxal esse jogo, mas eu lembro de sentir uma coisa, uma família mais pesada. Eu acho que toda a história deles também era mais pesada, né? A família da minha mãe era o oposto, era sempre uma festa.
P/1 – Vamos explorar só um pouquinho mais essa casa. Ela tinha cheiro de quê?
R – Então, ela tinha um cheiro, assim, meio de mofo. (risos)
P/1 - _________?
R – Me dava uma coisa, assim, parecia que tinha um peso, mesmo, na minha cabeça. Fazia assim: tum. A gente não podia falar tão alto ou brincar tanto. Era tudo meio na rua. Era uma coisa assim: ficar na frente da televisão. Tinha uma coisa assim meio densa.
P/1 – A televisão ficava onde?
R – Tinha um sofá bem grande, marrom, meio courvino, couro, não sei se era couro ou courvino e umas coisas bem grandonas, espetadas, do lado e aí tinha a televisão. A gente entrava, tinha uma janelona, o sofá, a televisão ficava exatamente aqui, assim, tinha aqui uma poltrona grande, outra de frente e a gente entrava. Essa era a casa de São José dos Campos, onde eles ficaram muito tempo. Logo tinha o quarto dos meus avós, uma cozinha grande, no fundo tinha um cachorro muito bravo e isso também me chamava a atenção porque a gente sempre gostou de animal e exatamente lá o cachorro era muito, muito bravo. A gente não conseguia chegar perto, assim. Então, tinha uma coisa meio austera no ambiente, assim, né? Eu percebia que minha vó tinha uma densidade, não tinha tanta soltura.
P/1 – Ela se vestia de preto?
R – Não. Mas podia ser. (risos) Sempre uma golinha muito fechada. Ela era bem magrinha, óculos, dentadura e era uma mão muito gelada e ela sempre fazia assim: “Vem aqui que a avó vai colocar lagartixa em você”. Ela pegava aquelas mãos, assim, a gente dava aqueles gritos. Mas era uma vó muito divertida com a gente. Eu sinto que os netos levaram muita leveza pra vida deles. Essa outra geração, né? Creio que deve ser muito dura a geração dela com as meninas, as filhas, um marido agressor, ainda três mulheres, né? Teve três filhas mulheres.
P/1 – E o seu pai?
R – Meu pai, depois teve o meu outro tio, que nasceu em São José dos Campos, tio Augusto e foi um tio que... essa é uma coisa muito doida, nada feliz, que meu avô estava bem quando morreu, já tinha uns 70 e poucos anos, ele morreu de acidente de carro na Dutra, com a caminhonete que a gente sempre o viu ter. A gente brincava nessa caminhonete. Teve um acidente feio e ele morreu de acidente de carro. Depois de alguns anos, passados mais ou menos uns seis anos, o meu tio Augusto morreu da mesma maneira. Era o tio mais novo, assim, nosso. Agora ele estaria com 50 e poucos anos. Foi um filho depois, que minha vó teve. E sempre me chamou a atenção nessa família, em que o masculino teve todas essas questões: os dois morreram de acidente de carro em anos próximos, né?
P/1 – E ele, pelo que você diz, era o homem da família?
R – É.
P/1 – Então, só antes de ______ pra casa da sua mãe, me conta um pouco dele, como ele era. O que você lembra dele quando criança? Tinha medo, amor? Como é que era?
R – Eu tive a sorte de ter, assim, uma família sempre com muito amor. Claro que ele era muito mais bravo que a minha mãe, ele tinha essa coisa de ser o pai da família. Então, algumas coisas tipo ele chegava, ligava a televisão, então ele que escolhia a televisão, as regras um pouco mais organizadas sempre foram dadas por ele. E ele foi criado nessa família, que é uma família com pouco dinheiro, então essa é uma coisa que acompanhou muito meu pai, sempre muito trabalhador e sempre comprou muita comida. Acho até porque ele passou muita fome, né? Então, todo dia, até hoje, se for em casa, meu pai chega com uma sacolinha de compras na mão. Todo dia ele traz alguma coisa. Ele adora.
P/1 – Pra casa dele?
R – É. Então, a nossa infância foi ver meu pai sempre chegar com comida. A gente era conhecido pelos vizinhos, assim. As crianças sempre queriam tomar lanche da tarde na minha casa.
P/1 – Era comida boa? Ele comia arroz, feijão... qual era...
P/1 – O meu pai é um curioso de culinária. Inclusive, ele é um grande cozinheiro. Então, ele sempre levava de tudo. Coisas da quitanda, porque é em Suzano, que depois eles se mudaram pra Suzano, depois a gente chega lá. Meus pais mudam pra Suzano, né? E lá tem muita quitanda, essas coisas de japonês, então ele sempre levava muita verdura, fruta e eu era a única filha que gostei, sempre, de verduras, frutas, essas coisas. Até doces, bolachas, essas coisas. Mas o nosso chocolate, mesmo que fosse grande, ele podia ter três guardados, mas sempre era um pra gente dividir entre todos os filhos. Então, tinha o momento da comunhão do chocolate. Segundo ele era pra gente aprender a dividir as coisas. Bom, ele foi um pai, assim, eu devo ter sido uma filha também mais desafiadora pra ele, porque eu sempre fui um tanto rebelde, então eu questionava muito. Questionava não poder falar, questionava não poder ter liberdade. Então, a gente sempre teve um determinado atrito. Acho que isso desde quando eu era criança, até mais velha. Até o momento que eu, enfim... lá pra frente a gente conta, mas teve uma reviravolta na nossa jornada, minha e do meu pai. E eu me lembro de duas coisas. Me lembro de muitas, mas duas marcam bem a minha infância com ele: uma que eu era bem pequena e saímos eu, minha mãe e a minha irmã e meu irmão, pra comprar roupa pra uma ocasião, um casamento, talvez. E a gente chegou lá, o meu irmão escolheu, minha irmã escolheu e eu falei: “Eu quero esse”. Aí minha mãe falou assim: “Esse é caro, esse não dá pra comprar. Só dá pra comprar esse”. Eu falei: “Esse eu não quero”. Aí ela falou: “Então qual que você quer?” e eu falei: “Eu não quero nada. Se não for esse, eu não quero nada”. Ela falou: “Então nós vamos embora. Você não quer nada, não quer nada”. Aí a gente voltou pra casa e aí meu pai falou: “Deixa eu ver os presentes das crianças. Cadê a da Sandra?” Aí ela: “Ela não quis nada, porque ela queria um muito caro”. E aí ele falou assim pra mim: “E por que você queria aquele?” e eu falei: “Porque ele era o mais bonito. E se não for esse, eu não quero nenhum”. Aí ele falou assim: “Então você vai lá comprar, porque você é uma pessoa que sabe o que quer”. Então, isso é uma coisa que me marca na relação com ele, né? Depois isso teve um preço, porque eu sempre quis aquilo que eu queria, né? (risos) E aí a nossa relação teve os seus atropelos. Mas ele tinha essa coisa de ser extremamente trabalhador, muito trabalhador.
P/1 – E aí ele trabalhava no ferro velho?
R – Não. Ele trabalhou com automóveis. Ele conseguiu um emprego em uma loja que vendia autopeças de carros, onde ele trabalhou. Ele foi aquele homem que começou trabalhando como servente e virou gerente, sabe? Que trabalhou anos na mesma empresa. Chamava Suave, lá em Suzano. E muito, muito honesto. Essa coisa, assim, de ter um nome limpo, isso sempre era uma coisa de dignidade na vida do meu pai, sabe? E o que ele gostava de fazer pra nós, onde a gente tinha uma relação mais pai, a minha mãe fazia um curso, ela estava fazendo Pedagogia, na época, era a faculdade dela, então às vezes ela saía à noite pra fazer aula. E aí era A festa porque ele montava uma lanchonete e fazia os pedidos, o que cada um vai querer comer. Aí ele ia lá e começava a cozinhar e fazia batata... a batata frita dele era inacreditável! Eu nem como mais, mas se um dia ele fizer, eu falo: “Pai, ___________”. A batata frita dele. Então, essa relação com alimento era uma coisa que nos unia de diversas maneiras. Eu acho que isso foi também uma maneira dele distribuir o pai amoroso, que ele tinha esse lado. E acho que foi isso: pra ele também não deve ter sido muito fácil ser meu pai, nesse momento da vida, porque, enfim, mulher, pra ele também era uma outra relação, ele teve esse pai, né? Então, também teve os seus desafios. Pra nós dois, acho que a gente aprendeu muito.
P/1 – Mas o que, dessa parte amorosa que você contou aí, eram as coisas que eram difíceis pra você, com ele?
R – Eu sentia que ele era um tanto autoritário. Sempre foi autoritário. Tinha que ser da maneira dele. E eu queria dialogar. Eu queria criar outras opções e essas outras opções não eram possíveis. E aí eu perguntava porque elas não eram possíveis. Ele dizia: “Porque eu sou seu pai e eu que mando”. E eu achava isso muito um absurdo. “Mas não é possível só porque você é meu pai, a gente não poder dialogar e criar uma outra possibilidade”. E ele ficava muito nervoso e a gente acabava discutindo e eu tinha um irmão, meu irmão mais velho, o Edu, que a gente chama, eu e minha irmã, de o irmão mais velho mais novo, porque ele deu muito trabalho pra nós e dá até hoje, coitado do meu irmão!
P/1 – Pra você?
R – Pra toda a família. Mas pra mim e pra minha irmã em especial, quando a gente era criança e, como ele era o homem e meu pai tinha essa cultura um pouco mais machista, então meu irmão que organizava a família toda, sabe? Então, se ele chegava e a gente estava assistindo um desenho e ele queria ver uma coisa outra, ele tinha o direito, só porque ele era homem, de mudar de canal. Ou ele tinha o direito de não lavar a louça, enquanto eu e minha irmã tínhamos a obrigação de lavar a louça. Então, isso tudo era uma coisa que, pra mim, nossa, eu queria quebrar a casa. E aí a gente discutia muito. Por conta disso. Mas pra você ver que eu acho muito bonito os paradoxos da vida: esse é o mesmo homem que colecionava discos...
P/1 – Seu pai?
R – É. E ele sabia que eu gostava de discos e então ele sempre comprava alguns discos que eram pra mim e pra ele. Ele escrevia: pertence a Sandra e Djalma. Então, isso era uma coisa que eu percebia que tinha algumas delicadezas que, às vezes, talvez, fosse difícil pra esse homem dizer, apresentar essas doçuras. E ele ia dando um jeito de apresentar nessas coisas. Ele gostava muito de música clássica e eu também. De criança. E ele achava raro uma criança gostar de música clássica. Então ele comprava Beethoven e fazia questão de dizer que era nosso. E aí meus irmãos ficavam morrendo de ciúmes por dois dias e depois eles esqueciam, porque eles não gostavam, também, de Beethoven. E eu sempre ouvia quando eles estavam na escola, porque a gente sempre estudou em turnos diferentes. Aí eu colocava no máximo volume e ficava dançando, assim. E meu pai sabia disso. Então, era o pai desse outro lado, assim. Ao mesmo tempo assim muito bravo, da sobrancelha grossa. A gente é muito parecido, fisicamente, até eu puxei muito mais ele e aí ele ficava com aquela cara, assim, com aqueles olhos verdes que ele tem. Muito bravo. A gente sempre pedia as coisas pra minha mãe e não pra ele. E, nos finais de semana, que a gente ia pras casas da família, visitar a família, no meio do caminho, a gente voltava por Guararema, pela estrada antiga, né, que liga São José dos Campos à Suzano, tinha um determinado lugar que provavelmente não deve ter mais, na estrada, que ele diz, que ele falava: “Aqui é o lugar onde os passarinhos cantam mais”. Então, ele sempre estacionava e ficava, agora, todo mundo em silêncio e a gente ficava ouvindo os passarinhos cantarem. E ficava muito _______. Adorava aquilo. Pra mim era um dos momentos muito mágicos: meu pai fala pra gente ouvir os passarinhos. Então, esses paradoxos foram sempre me pautando nessa relação paterna com ele, assim. (risos)
P/1 – Vamos pular pra sua mãe. A família dela. Vamos começar assim: como ele conheceu sua mãe? Você sabe?
R – Sei. Ele conheceu minha mãe porque, quando ele chegou em São José dos Campos, era um lugar pequeno o bairro, eu não lembro o nome do bairro onde minha mãe morava na ocasião e, como ele era um homem bonito, quando ele chegou, ele ficou meio famoso, as mulheres começaram a falar: “Chegou um homem novo, não sei o que, de Penápolis, tem um olho claro”. As mulheres começaram a paquerar. E a minha mãe sempre foi muito tímida e muito tranquila, muito sossegada. Já ela tinha umas primas que não eram. Então, uma prima dela começou a paquera-lo primeiro e aí ela fala de olhar pra ele a primeira vez, que meu pai adorava jogar sinuca e ele até tinha ganhado uns campeonatos de sinuca e ela fala que as duas passaram e a prima começou a dizer: “Olha, ele está ali, olha pra ele, é meu paquera” e começou a chamar de meu paquera. Ela olhou, assim, pra ele e nem deu bola, assim. Até porque ela achava que ele nunca ia olhar pra ela, porque ela era bem magrinha, mirrada e a prima dela toda ousada e, no final, ele super se interessou por ela. E, nesse meio tempo, ele foi trabalhar para o meu avô Joanin, que é o pai da minha mãe. Que era de uma outra situação social, outra história, super longa, enfim e ele tinha um ferro velho e ele trabalhava com pequenos caminhões, né, que era parecido com a outra história com meu outro avô e aí ele virou empregado desse meu avô. O que foi um complicador na vida deles, assim. Porque todo mundo achava que aquele homem bonito estava dando um golpe no baú porque ele estava namorando com uma moça, que tinha outras moças mais ousadas e tal e achavam que ele não gostava da minha mãe. O que, pra ele, era uma grande ofensa, assim. E isso veio a resultar, depois, na história do meu nascimento, toda essa situação.
P/1 – Antes de você nascer, me conta um pouquinho essa história do seu avô e da sua avó.
R – Conto. Essa é uma história que eu amo contar. Eu sinto que até o que eu sou é muito a voz ancestral dessa galera, assim. Dessa turma da minha mãe e das minhas avós. Eu sinto que a minha história começa com a história da minha bisavó Isaura. A minha bisavó Isaura foi uma mulher casada com um homem que, inclusive, eu trouxe umas coisinhas aqui. Uma delas, deixa eu ver onde está. Onde eu te pus, vovô? Aqui. Eis meu bisavô. Essa é a carteira de identidade dele. O nome dele era Leão Peixoto de Melo, o pai da minha avó. Como essa carteira veio parar comigo, o RG dele, eu não tenho a mínima ideia. Eu me lembro de ver, às vezes, na casa da minha avó. Talvez, até, em algum determinado momento, peguei pra mim, mas eu o guardo comigo. O meu bisavô era um homem extremamente agressivo e ele acorrentava a minha bisavó em casa. Ele era um fazendeiro de café do Vale do Paraíba, rico, bem rico e casou com minha bisavó Isaura e então era essa a vida dela.
P/1 – Ele acorrentava?
R – A acorrentava dentro de casa. A corrente dava pra ela chegar até a varanda. Mas no quintal ela não podia chegar.
P/1 – E você sabe por que ele fazia isso?
R – Não sei exatamente porquê. Se era ciúmes...
P/1 – Como você sabe?
R – Essa história chega por nós pela minha tia avó Gioconda, que foi uma tia que cuidou da minha mãe por muito tempo, foi presente, eu a conhecia, uma tia avó linda e ela lembra disso, né? Ela era uma criança, a filha dele. E o sonho dele era que ele tivesse um filho homem, junto com a minha bisavó Isaura, pra ser o herdeiro das terras e continuar com os negócios dele e ele tinha duas filhas mais velhas do que a minha avó Maria, que foi a tia Herondina, que minha mãe chama Herondina por conta dessa primeira filha deles.
P/1 – Esse é seu bisavô?
R – Esse é meu bisavô. Herondina, a Gioconda, que era essa minha tia avó e aí a minha bisavó engravidou com a expectativa de ser um menino, que ele queria e nasceu minha avó Maria. E aí, quando nasceu uma terceira menina, eles tiveram uma crise bastante violenta, eu não sei exatamente como foi essa crise, mas o que eu sei foi isso: uma briga muito feia e, nessa briga, a minha bisavó não suportou mais a situação e conseguiu que um cara que cuidava do dinheiro dele, era o contador dele, auxiliasse que ela fugisse de casa. Então, ela fala pra minha tia avó Gioconda que ela voltaria pra buscar as meninas, as filhas, assim que ela tivesse um tanto de estabilidade. E vai embora. Então, a vó Maria era um bebê.
P/1 – Ela leva?
R – Ela não leva. Ela fica na casa. Ela vai sem nenhuma das filhas. E o castigo que ele dá pra essa mulher que o abandona era, primeiro, dizer, ele espalha que houve uma traição, que ela o traiu e nunca mais deixa que ela se aproxime da família. Ele vai criando maneiras de fazer com que ela nunca mais veja as filhas. E ela nunca mais conseguiu ver. Ela não conheceu minha avó. Minha avó não conheceu a mãe. E essa foi uma história que percorreu muito tempo, assim, na minha vida.
P/1 – E elas foram criadas o quê? Por uma empregada?
R – Foram criadas por uma empregada negra, né? A tia Pedrina. Que se torna a mãe delas, a tia Pedrina. Eu me lembro de ir no enterro da tia Pedrina, inclusive.
P/1 – Elas a chamavam de mãe?
R – Não. Tia. Chamavam de tia. Acho que talvez, se a minha vó tivesse... mas é que já tinha muito forte a referência das mais velhas, ela já era tia Pedrina, né, nessa circunstância. Aí depois ele se casou com outra mulher e teve um filho homem, como ele queria, né? Enfim, a história dele vai até um determinado momento, aí minha vó vai crescendo sem a mãe e ouvindo essa história dele, que ela tinha abandonado e que tinha traído e então ela cresce com muita raiva da mãe e quando ela chega nos seus 16 anos, o meu bisavô Leão faz pra ela um pedido de que ela se case com outro fazendeiro rico, bem mais velho que ela, que era um amigo dele, enfim e aí a minha vó diz pra ele assim: “Bom, se for pra eu casar, então eu quero uma super festa. Se prepara”. Ele falou: “Claro, você vai casar”. Então ela manda fazer tudo que ela quer. Uma festa, com todas as comidas, com todas as bebidas. Ela chama toda galera, todos os amigos, as pessoas importantes e aí, no dia da festa – isso ela contava pra gente – primeiro ela curtiu toda a festa, aí chegou o momento solene, troca de alianças, aí ela fala assim, pega a aliança, olha para o cara e fala assim: “Isso daqui você coloca no dedo da primeira mulher que passar na rua, porque eu nunca vou vestir isso aqui”. Devolve a aliança pro cara.
P/1 – Na frente de todo mundo?
R – Na frente da festa.
P/1 – Nossa Senhora! ______ mais arretada!
R – Olha para o meu avô e diz assim: “E você, pai, não precisa me mandar embora, não, porque eu vou pelas minhas próprias pernas. A minha mala já está feita, não é você que vai me mandar embora. Eu vou, que fique claro, porque eu quero ir embora”. E vai embora. Então, ele foi abandonado pela minha bisa e pela filha dela. Ela vai embora de casa e aí ela se vê naquela situação: ela foi criada dentro de casa. Os professores que iam dentro da fazenda dar aula, não tinha escola, não tinha nada. Ela não sabia fazer nada. Ela sabia fazer bordado, nessa época. E aí ela vai em um hospital, que era de um médico, dono do hospital, amigo do pai dela, do meu bisavô, pedir emprego. E aí – ela também contava isso pra gente – o médico fala assim pra ela: “Eu não posso porque, se seu pai souber que você veio até aqui e eu te apoiei a sair de casa, ele vai brigar comigo”. Aí ela fala assim pra ele: “Você tem razão. Mas se eu sair daqui e acontecer uma coisa horrível comigo e eu me der muito mal e ele souber que antes disso eu passei aqui, te pedi ajuda e você disse não, a coisa vai ficar pior pra você”. Aí ele falou assim: “Bom, mas você não sabe fazer nada”. Ela falou: “É verdade. Bom, primeiro que eu aprendo rápido. Depois que eu sei fazer faxina”. Aí ela vira faxineira desse hospital. Ela era bem nova. 16 anos. E aí ela era muito esperta. A minha vó Maria era muito esperta. Tanto que o apelido dela era Quininha, de quina, que você bate e dói. Ela era uma mulher brava, né? Também acho que teve que ser brava, pra lidar com tudo que ela teve que lidar. E ela trabalha lá e vai aprendendo, aos poucos, a ser enfermeira. Porque na época eram mais as freiras que eram enfermeiras, do que realmente você ter um curso de Enfermagem, nos hospitais.
P/1 – E a gente está falando de onde, Sandra, que lugar do Vale do Paraíba?
R – Olha, eu não sei exatamente qual o lugar, mas toda vida dela foi... essa cidade de onde ela saiu, onde meu avô tinha a fazenda, não é em São José dos Campos, mas eu sei que é no Vale. Eu não sei exatamente qual era a cidade, mas era tudo ali pelo Vale, toda a vida dela foi pelo Vale. Até ela chegar em São José dos Campos, nessa época.
P/1 – Aí ela ficou sendo faxineira, treinando ser enfermeira, nesse hospital?
R – É.
P?1 – Muito tempo?
R – Ela ficou um bom tempo, até ela conhecer o meu avô lá, o que casou com ela. O meu avô teve duas mulheres. Então, quando ele chega lá, ele já era casado e foi levar a primeira esposa, que estava muito doente de uma doença terminal e ela foi enfermeira da esposa dele. E aí eles se apaixonaram. Então, enfim, ela aceitou a condição de ser a segunda esposa. Só que essa mulher não morreu. E não morreu tão cedo. Ela só faleceu, essa mulher, na verdade, depois que eu já tinha dez anos de idade. Então, eles fizeram um acordo: ele não conseguia... não sei como era essa questão, também, de divórcio, não era tão fácil e enfim, eu lembro do meu avô ter duas casas, duas famílias: uma que era em Mogi das Cruzes, onde ele tinha os negócios dele, inclusive ele quase montou uma empresa com o Henrique Eroles, que tem uma empresa bem grande lá em Mogi das Cruzes. Ele foi meio um fundador de Mogi. Muitas coisas de Mogi, tem uma rua com o nome dele, João Urizzi, a gente o chama de Joanin, mas o nome dele é João. E ela aceitou casar com ele e ela passa a viver em Guararema, que era uma cidade próxima, mas menor e ela se torna a outra. A segunda esposa. E aí minha mãe conta que ela sempre diz para os filhos: “A gente precisa se portar muito bem porque nós sempre seremos a segunda família e vocês são os filhos da outra. Então, vocês têm que ser impecáveis”. E ela, como tinha essa condição de ser a outra, começou a fazer uma série de exigências. Por exemplo: era uma pessoa que gostava de cultura. Então ela exigiu que ela tivesse uma escola e ela faz um curso e se torna professora e funda uma escola. Pra ter um bom ensino, pra garantir que os filhos dela tivessem um bom ensino. Aí eles têm os filhos, começam a nascer e um deles é o tio Toninho. Ele teve paralisia e então ele era cadeirante. E ela era apaixonada por cinema. Então, ela exigiu que eles montassem um cinema. E eles montaram um cinema. E aí a família toda trabalhava no cinema. Minha mãe trabalhava na bilheteria, os meus tios trabalhavam passando, rodando os negócios, aquela fitonas de filmes e o tio Toninho, o que é o mais genial, ficava na porta. E as pessoas e viam um cadeirante, davam esmola pra ele e ele pegava. Depois ele pegava minha mãe e ia comprar bala: “Mas de onde você tirou dinheiro?” e ele falava: “O pessoal olha pra mim tem dó, me dá dinheiro, ué! Estão me dando, eu estou aceitando” e ele pegava esmola na porta do cinema que era do pai dele. E aí, ela, a minha avó, decide também, a filha dele, minha avó Maria, decide montar um grupo de teatro e ela monta um grupo de teatro em São José dos Campos, que essa daqui é minha herança familiar. Eu já mostrei pra você, Jonas, isso? Aqui, depois que ela foi ficando velhinha, ela foi colocando um monte de coisa, mas isso é a ata do teatro São José Tadeu, que é o teatro dela, que ela tinha, né? Aqui a data de 1964. E aqui é o elenco dela. Olha que belezinha!
P/1 – Que lindo!
R – E a minha mãe está aqui, no elenco. Aqui é meu tio Fabrício, que fazia parte do elenco e a minha mãe.
P/1 – Fazia, mesmo?
R – Sim. Eles eram atores da companhia dela. E essa foto aqui, uma das que eu mais gosto, por que o que ela fazia? Meu avô emprestar os caminhões dele pra virar teatro. Então, esse era o palco deles. E aí eles viajavam por vários lugares em São José dos Campos, no Vale do Paraíba, com o teatro, que virava palco e essa foto eu acho linda porque é o caminhão do meu avô, o teatro da minha avó e a minha mãe em cena.
P/1 – Nossa! E ele não se importava com tudo isso?
R – Ele amava. Meu avô era um ser mais doce, doce. Ele era a ternura em pessoa. Chegava na casa dele, sempre tinha um copo de vinho e um pedacinho de pão que ele ficava molhando e comendo aquele pão com vinho. Lendo jornal todos os dias. Uma pessoa calma, tranquila, amorosa. Podia ter o problema que fosse, ele falava assim pra minha avó: “Véia, primeiro me dá um dente de alho, que dente de alho é remédio”. Ele tomava o dente de alho e falava: “Agora nós vamos dormir. Amanhã é dia e amanhã a gente resolve, porque sem a gente dormir a gente não resolve nada”. A vida dele sempre foi desse jeito. Ele era muito tranquilo. E na história dos dois, eu estava falando para o Jonas, aconteceu uma coisa curiosa: essa mulher, ele fez uma promessa à primeira mulher, que ele só casaria na igreja com a Maria, minha avó, depois que ela falecesse. Quando essa mulher morreu eu tinha dez anos de idade e meus primos, a família já estava completamente montada e aí nós fomos casá-los. Então, a gente fez o casamento dos meus avós e eu lembro até hoje da gente montando a minha vó de noiva. Ela não quis véu, não quis nada dessas coisas, mas a roupinha dela, passamos um pouco de maquiagem, a gente queria ver: “Vó, leva o buquê” e meu avô a esperando no altar e aí era toda a família, o padre disse umas palavras, nem lembro o que exatamente, mas era uma coisa super bonita, de estar casando dois idosos, que foi o primeiro casamento que ele fez, onde a família já estava ali, todo mundo, assistindo, né? Era o futuro já junto no presente do que estava acontecendo, assim.
P/1 – Ela, então, nunca mais voltou a falar com a família? Com o pai...
R – O pai dela morreu nos braços dela. Porque teve uma época que Getúlio teve uma questão no Brasil, que ele mandou queimar várias fazendas de café. Eu não lembro exatamente o que aconteceu, mas isso aconteceu com ele. E ele ficou pobre, perdeu tudo. E, quando ele perdeu tudo, ele perdeu inclusive os amigos, ele enlouqueceu. Ele começou a ficar meio maluco, assim. Acho que toda essa agressividade, também, do vô Leão já o levou, um pouco e ele começou a ter surtos, tal e aí sobrou o quê? A minha vó Maria. Foi lá, o recolheu e o levou pra morar em um fundo de quintal, onde ela morava. Então, o final da vida dele, foi ela cuidando dele até ele falecer. Que eu acho que também foi um gesto de perdão a toda essa história que ela teve com ele, né? E da minha vó, pra terminar essa história da minha vó com a minha bisa, quando eu fiquei mais velha, também sempre me incomodou muito essa coisa de ter uma mulher que, pra mim, era um castigo ter um fantasma. Falei: “Vocês transformaram a mulher em um fantasma. Nunca ninguém foi atrás dela. Esse é um castigo terrível. A gente precisa saber onde ela está, o que aconteceu” e aí eu e minha mãe, muito a meu pedido, começamos a tentar a correr atrás, a correr atrás e aí eu me lembro até hoje do dia em que a gente estava na sala da minha mãe e a gente tentando correr atrás dessa história, tocou o telefone e era uma amiga da minha mãe, enfim, que ligou e falou: “Heronda” – o nome da minha mãe, né? – “mas você não sabe o que aconteceu com sua avó? Então eu vou te contar: a sua vó foi morar em um circo, ela virou cantora de circo e o circo dela circulava pelo Vale do Paraíba”. Aí eu falei: “Não, gente, é muito maravilhoso” pra uma imagem minha, né, pensar em um teatro passando pelo Vale do Paraíba, da filha, da minha vó e a minha bisa, mãe dela, com um circo passando. Duas mulheres artistas que, de uma certa maneira, também, negaram a imposição de um masculino e foram pra arte e caminhar dessa maneira nômade e simples, porque era uma arte, acho que isso também marca muito minha vida, era simples. Um teatro de fundo de quintal, com toda beleza que tem nisso, da cultura popular ali pulsando e um circo também. Então, essa é a história que eu sinto que me conta muito, né? (risos)
P/1 – E aí, Sandra, saindo dessa história, vamos chegar nesse momento: você nasceu, aquele momento.
R – Eu queria contar a história do meu nascimento. Eu a acho muito interessante. Meus pais tinham dois filhos mais velhos e, curiosamente, eles são mais morenos do que eu. Curiosamente, porque tem motivo. (risos) Eles moravam em Suzano e meu pai, naquela coisa, trabalhador: “Eu vou mostrar que eu realmente sou trabalhador e que eu gosto da sua filha”, essas coisas, um homem honesto. Tiveram dois filhos, a coisa começou a apertar financeiramente e aí minha mãe começa a discutir com ele quem vai fazer a operação, você ou eu: “Tá bom, eu faço”. Ela marca a operação de trompas dela, porque ela não ia mais ter filhos. Estava marcada pra dia tal. Uma semana antes meu pai ganha na loteria. Bolada. Ficou tipo rico, de uma hora pra outra. E aí eles ficam tontos com essa informação. Começam a comemorar, comemorar, fazer festa, fazer festa, fazer festa, não vai fazer a operação, engravida de mim. Eu entro aí nessa história. E em nove meses eles perdem quase tudo que eles ganharam.
P/1 – É uma novela!
R – É uma novela. (risos) Por quê? Como essa coisa ficou muito forte pra ele, ele começou a emprestar dinheiro pra família, pagar umas coisas do meu avô, que estava com dívida na época, comprou uma casa em São José dos Campos que minha mãe tinha o sonho de voltar pra lá, a imobiliária roubou a casa deles. Eram novinhos, nunca tiveram dinheiro! Meu pai nunca teve dinheiro, assim. Enfim, quando eu nasci, eles tinham um carro. Foi o que sobrou pra eles. E eu nasci, pra surpresa deles, branca, branca, branca, os cabelinhos pixaim, enroladinhos na cabeça, muito pixainzinho, assim. Aí meu pai ficava passando a mão no meu cabelo e falava: “Está aqui o tesouro da loteria, olha. Todas as moedinhas vieram parar na cabeça da menina”. Então, a gente sempre brinca com essa história. Aí minha mãe deu pra ele o direito dele escolher meu nome, que é Sandra, por causa da Sandra Bréa, que era atriz. Meu pai gostava dela. Mas aí eu falo que eu já nasci com a sorte, que eu sou filha da sorte, já vim junto com a loteria. O meu caminho já foi sempre na sorte, assim.
P/1 – Tinha você e seus irmãos e eles eram mais morenos por algum motivo?
R – Então, não sei. Acho que eu puxei mais a família do meu pai, mesmo, que já era uma família mais loira. As minhas tias são mais loiras, assim. Mas a gente fala que é uma piada por causa desse negócio do ouro, do dinheiro, porque foi uma coisa assim, já nasci num contexto meio diferente, né? Desestabilizando um pouco a família. Rolou uma bolada de dinheiro, já perdeu todo o dinheiro, vai uma filha que é totalmente diferente, para os ciúmes do meu irmão.
P/1 – E aí? Vocês cresceram, então, em São José?
R – Em Suzano.
P/1 – Por quê? Você nasceu em São José?
R – Nasci em São José.
P/1 – O que aconteceu?
R – Porque meu pai conseguiu emprego lá, em um lugar.
P/1 – Nessa loja?
R – Nessa loja de carros, é. Então, a gente foi pra lá por conta disso. Com um desejo da minha mãe de talvez retornar a São José dos Campos. Mas isso nunca aconteceu. Eles super se adaptaram em Suzano. Moram na mesma casa desde que eu nasci. Eu nasci em São José dos Campos porque a gravidez da minha mãe foi meio complicada. Só por isso. Que eles já estavam estabilizados em Suzano.
P/1 – E aí? Me conta um pouco dessa sua infância, que foi começando em Suzano. Como é que foi essa primeira infância nessa sua casa? Me conta esse pedaço.
R – A infância foi maravilhosa. Foi um dos momentos mais gostosos da minha vida. Foi muito bom ser criança. Era uma criança muito criativa, muito lúdica. Sempre tinha... meu compromisso era com criar. Eu queria dançar. Eu nem gostava de caminhar. Só queria sair pulando e dançando, o tempo todo. Sempre nós tivemos uma ligação muito forte com a natureza. Até porque nós passávamos o final de semana sempre em Minas Gerais, onde meu tio tinha um sítio e esse sítio tinha um rio que passava dentro, tinha uma montanha, um rio e, no final, lá a pouquinhos metros, uma cachoeira. Então, isso, pra uma criança, ter um lugar que você possa ter esse contato e ainda mais uma criança lúdica, como eu era, aquilo era um mundo que eu adentrava, muito maravilhoso. Tinha uma certeza que eu tinha que, se eu não abraçasse todas as árvores, não cantasse pra todas as flores, elas não iam crescer. Eu sempre tinha um momento que eu saía, fugia e ficava cantando, uma por uma, fazendo cena, abraçando as árvores, inventando poesia pra elas e aquilo era muito lindo, assim. Por exemplo: nós, quando crianças, eu e a minha irmã Carla - a gente sempre foi muito unida, até hoje somos e o meu primo Adriano, a gente é da mesma idade, minha irmã é um pouquinho mais velha - a gente tinha o compromisso que era uma vez ao ano, no mínimo, tinha que sair às cinco da manhã e subir o morro pra ver o nascer do sol. E a gente era bem criança, assim. E a gente pegava as botas, ia, subia o morro que não era um morro muito fácil de subir, quando você chegava lá na ponta do morro, a gente ficava quietinho, em silêncio, só admirando o sol nascer. E não foi uma coisa que alguém nos ensinou, nos estimulou. Eu sinto que era uma coisa do próprio ambiente, que pulsava da beleza da natureza, da simplicidade, do cheiro, de ouvir aquele povo caboclo. Então, isso foi um presente, assim, na nossa vida. Tomar banho de chuva, sabe, rolar na areia. Eu lembro de chegar, assim, muito suja pra tomar banho. Um cheiro de terra no final do dia. Aí toma chá de erva cidreira antes de dormir, que a gente mesmo colhia. Essa infância foi muito permeada por esse lugar. Esse lugar, pra nós, o sítio do tio Vitor, foi um lugar muito amado e muito mágico pras crianças. Bom, aí tem o momento Suzano. Suzano é uma cidade que, na época, era bem de japoneses. Depois a zona leste foi crescendo e tomando mais conta de Suzano, né? Mas ela era um outro universo de São Paulo. Uma cidade pequena do interior, praticamente, quando eu morei lá. Tinha a escola. Era uma cidade onde a gente podia andar a pé. Tudo a gente fazia a pé. Então, ir pra escola, tudo era a pé. A escola era um lugar dificílimo pra mim. Eu nunca gostei da escola.
P/1 – Não?
R – Nunca. Eu só gostava de ir porque eu sempre amei amigos. Sempre me dei muito bem com grupos, com pessoas, sempre tive muitos amigos. Mas estudar era uma coisa que a pessoa podia me dizer o que fosse, ela podia falar na minha frente, eu não entendia. Eu não entendia nada da escola. Eu falava: “Esse lugar não é pra mim”. Eu não achava que era pra mim ir pra escola. (risos) E isso me fez descobrir algumas coisas.
P/1 – Mas você discutia isso? Tirava nota ruim? Como se dava na vida?
R – Eu me esforçava básico pra tirar o C, porque era A, B, C, né, D e E, pra que eu pudesse continuar e seguir, porque eu queria sair daquele lugar. Desde sempre.
P/1 – E na sua família, essa ideia que você tinha que ir bem ou mal existia ou tanto faz?
R – A minha mãe é professora. Então, tinha uma exigência a respeito disso, mas ao mesmo tempo a minha mãe é uma educadora. Ela conseguia perceber que eu não me adequava. Que era um lugar que meu espírito não tinha espaço. Ela percebia isso. Mas na época, em Suzano, não tinha outra opção. Eu tinha que passar por aquilo. Então, como mãe, ela me dava aquela forçada de falar: “Filha, vamos lá, vamos passar por isso”, mas ela sacava que não era muito o meu ambiente. E aí eu comecei a arranjar estratégias pra sobreviver, né, naquela situação. E um dia – eu me lembro até hoje desse dia – a gente tinha uma pedra que meu irmão, não sei porque cargas d’água, levou uma pedra pra casa, grande e aí minha mãe o mandou tirar a pedra, ele não tirou a pedra, foi tentar pegar a pedra, a pedra caiu no meu pé e eu quebrei o dedinho. Aí fomos lá pra Santa Casa de Suzano, onde eu conheci um mágico, que era o Doutor Stenio. Mágico. Fez meu pé ficar engessado. Quando eu cheguei na escola, eu descobri um milagre! Eu não precisava fazer nada com o pé engessado e, além do mais, eu comecei a fazer um teste: quando a professora ia fazer qualquer pergunta muito difícil e eu levantava a mão e falava: “Professora, eu tenho que ir no banheiro”, ela tinha que parar a aula ou chamar alguém ou me levar e aquilo intervinha na situação como um todo. Aí isso virou uma estratégia minha. Depois que eu tirei o gesso, passaram algumas semanas, eu machuquei o braço. Aí eu cheguei lá no Doutor Stenio, falei que estava com muita dor, ele gostava de mim, me enfaixou o braço. Aí virou o braço. Aí, depois, eu engessei o outro pé. E assim eu fui fingindo que eu me quebrava. Eu não me machuquei, não estava machucada.
P/1 – Mas ele fazia?
R – Fazia uma tala, na verdade. Eu fazia uma cena. Lá eu devia fazer cena. Eu devia fazer uma boa cena de atriz. Até o dia que eu me machuquei, fingi que me machuquei, aí ele chegou, foi genial, o Doutor Stenio, super querido. Ele falou assim pra minha mãe: “Mãe, fica aí que eu vou lá ajudar”. Porque tinha a salinha dele e tinha um lugar onde as enfermeiras que faziam as talas, né? Ele entrou, falou bem baixinho no meu ouvido, assim: “Essa foi a última vez, tá? A partir de agora, eu não te engesso mais”. A hora que eu olhei, assim, na cara dele, saquei que, na verdade, ele sabia que eu não estava machucada, né? Mas ele não contou pra minha mãe, não me expos. O achei muito genial, assim. Se eu encontrasse esse homem um dia ia falar: “Valeu, Doutor Stenio!”. Aí eu fui criando outras estratégias. Eu tinha um desafio comigo e era assim: hoje eu vou chegar na escola e vou dar um jeito de, na hora da chamada oral de tabuada... isso era uma coisa impossível para o meu ser! Qual era a minha estratégia? Desaparecer. Eu tinha que dar um jeito de mudar de carteira de uma maneira que ninguém percebesse que eu mudei de carteira. Menina, dava certo. Eu mudava de carteira, ninguém me pegava. Acho que sempre eu tive uma cara meio de boazinha, então esse tipo de artimanha, acho que o professor nem imaginava que eu ia fazer e aí eu ia tentando sempre dar um jeito de ir sobrevivendo nessa situação. Passava mal, arranjava encrenca com gente que não tinha encrenca, pra poder parar a aula. Essas coisas. O que eu descobri? Que eu era uma pessoa muito criativa, que eu tinha uma capacidade enorme de mentir, o que também acho que me tornou uma boa contadora de história, mas que eu tive que lidar com isso na adolescência, porque eu aprendi a mentir. Então, até eu entender que a mentira era uma coisa que eu poderia me dar mal ou que era uma coisa que eu poderia me enfiar em submundos mais difíceis, aí a vida que foi me ensinando também os limites da mentira.
P/1 – Tipo o quê? O que aconteceu na sua adolescência que você mentiu?
R – Por exemplo: menti para os pais na adolescência e menti porque eu queria, tinha uma coisa, uma questão com álcool na adolescência.
P1 – Gostava de beber?
R – Gostava de beber. Na verdade, não sei se eu gostava de beber. Eu gostava de ficar bêbada, pra poder sumir daquela situação, que era ser adolescente em Suzano.
P/1 – Me explica melhor. Por quê? Você cresceu lá e você tinha amigos.
R – Muitos amigos. Sempre, muitos amigos.
P/1 – E o que é? Quando você foi ficando adolescente, o que foi se transformando na sua vida?
R – Primeiro que eu fui virando mulher e isso foi um problema familiar, assim. Meu pai tinha muito, muito ciúmes; o meu irmão tinha muito ciúmes de mim e Suzano, não sei se é uma questão de Suzano ou uma questão comigo, mas eu fui extremamente assediada. Desde criança. Eu escapei por muito pouco de violência sexual. E isso foi me marcando bastante, né?
P/1 - ____________ homens?
R – Os homens mais velhos. Nunca foi com crianças ou adolescentes. Gente mais próxima da minha idade. Sempre com homens bem mais velhos. Eu lembro de muito pequeninha um homem parado, se masturbando na minha frente. Mas eu era muito pequena, brincando na rua. E isso foi uma coisa que ocorreu, assim, não tenho dedos pra contar quantas vezes. Era seguida na rua. Até um determinado momento em que realmente isso foi uma situação, na minha adolescência, onde foi uma tentativa mesmo de...
P/1 - ... estupro?
R – É. E foi uma tarde que eu estava indo na casa de uma amiga. Eu estava com 15 anos. E aí foi um momento que eu fiquei muito, muito nervosa e bati na pessoa. Ele veio pra cima de mim, já veio rasgando minha roupa.
P/1 – Na rua?
R – É, na rua. Cidade pequena, não tinha ninguém na rua naquele momento. Era de tarde. E aí a gente começou a brigar e eu fui pra cima dele, comecei a bater nele, ele começou a me bater e aí saiu ele pra um lado, ele desistiu, mas eu saí muito machucada, ele saiu machucado também, cheguei em casa com um sapato só, a roupa... situação, né? E aí foi um dos momentos que o meu rompimento com meu pai, aquele momento foi bem escuro assim entre nós dois, porque ele disse que a culpa era minha, básico.
P/1 – Seu pai disse isso?
R – É.
P/1 – Você chegou em casa assim... me conta a situação.
R – Eu cheguei em casa e meus pais não estavam, aí eu fui tomar banho e chorei muito e logo quando minha mãe chegou eu contei pra ela o que tinha acontecido e ela ficou... minha mãe, me acolheu, mas o que eu sentia era que ter uma mulher que crescia não era uma coisa fácil pra eles. Eles não sabiam muito como fazer com aquilo. Eu também apresentava um universo assim... eu acho que eu sempre tive, no melhor dos sentidos, uma sensualidade muito vital em mim, no meu corpo, no meu jeito e isso chamava muito a atenção das pessoas e eu acho que eles não sabiam muito o que fazer com aquilo. Então, entre me proteger e me dar espaço pra ser quem eu era, esse eixo foi uma coisa que foi muito difícil pra eles e eles erraram muito nesse lugar, porque estavam aprendendo. E quando meu pai chegou eu lembro que eu queria que ele me protegesse. Então, falar para o meu pai era como se dizer para o meu protetor o que tinha acontecido. E a reação...
P/1 – Você foi e falou?
R – Contei.
P/1 – Não ficou com vergonha?
R – Não. E ele disse, foi quando ele falou essa frase: “A culpa é sua porque você é loira, bunduda e peituda. Então, você precisa aprender a se comportar”. E aí eu lembro de ter falado pra ele: “Doeu mais do que o cara tentar me violentar”.
P/1 – Falou na hora?
R – E aí foi tipo faca no peito. Bom, a partir daí, eu comecei a me transformar bastante, assim, no meu processo de adolescer. Porque eu sentia que tinha uma coisa muito errada com o masculino. E logo na sequência teve um cara que começou a me seguir muito. Me seguia e ficava falando pornografias atrás de mim.
P1 – Mas você sabia quem eram essas pessoas?
R – Esse que tentou me agarrar, enfim, nunca soube. Nunca mais encontrei. Esse outro era uma pessoa que de vez em quando aparecia. Claro que se fosse hoje eu mandava à merda e acabou, mas eu era uma adolescente e aquilo era um mundo, muito, ainda, assustador pra mim, né? E esse foi uma pessoa que eu lembro essa cena, assim, foi interessante porque quem me defendeu, por fim, foi minha mãe. Eu estava com ela no carro, ela tinha um Fiat Uno... não era Uno, era aqueles 147 e ela estava indo pra escola e eu o vi passando. Eu lembro de um segundo, assim, porque eu fiquei olhando e falei: falo ou não falo? Falo ou não falo? Falei: “Mãe, é aquele cara que fica me seguindo”. Ela parou o carro no meio da rua e foi pra cima dele com tudo e o cara saiu tipo correndo da minha mãe, pequenininha, ela botou tipo onça botando o cara pra correr, assim. Eu nem lembro exatamente o que ela falou, mas eu lembro da situação, assim. Ficou todo mundo buzinando atrás, ela deixou o carro aberto, com a porta aberta e foi que nem uma onça pra cima do cara. Eu acho que essa foi uma situação que ela também estava com tudo isso acontecendo há muito tempo, acho que ela colocou toda aquela raiva em cima daquela pessoa, né? Nunca mais eu vi essa pessoa, esse homem. Ele desapareceu. Acho que foi uma coisa meio marcante na nossa trajetória. Mas, a partir daí, eu comecei a engordar muito e tudo que eu podia me enfear, eu me enfeava. (risos) Eu coloquei uma toalha na frente do espelho do meu quarto, eu falei: “Eu não quero, nunca mais, me ver” e comecei a engordar, engordar, engordar e usava roupas muito, muito largas, o cabelo eu deixei crescer o máximo que eu podia, pra poder me esconder e aí entrei em um período meio down total, adolescente, nada fazia sentido, deprezinha.
P/1 – E aí você começou a beber?
R – E aí eu comecei a beber. Tudo que eu podia escapar. Eu era tão louca que eu escondia uma garrafa de 51 na porta da minha casa e tomava meio litro antes de chegar na escola.
P/1 – De manhã?
R - De manhã. Sete da manhã.
P/1 – Você tinha quantos anos?
R – Dezessete anos. O último ano da escola. Nessa época. E eu só passei de ano porque eu fiz um acordo com uma amiga minha, a Flavinha, ela odiava tudo que era de Humanas e eu odiava tudo que era de Exatas, entendia um pouco de Humanas, que já era a época da Literatura, já me pegava mais e então eu fazia todas as provas de Humanas e ela fazia todas as provas de Exatas, a gente trocava as provas, terminava uma, ela fazia a outra, a gente passou de ano só por causa disso, se formou dessa maneira, juntas.
P/1 – Mas ninguém percebia que você bebia, que você estava...
R – Então, amor, eu tive um irmão muito pior que eu, na verdade. O meu irmão deu muito problema para os meus pais.
P/1 – Esse irmão mais velho?
R – Irmão mais velho. Problemas mais sérios, assim. Ele era muito agressivo, brigava muito na rua, usava drogas pesadas.
P/1 – Que tipo?
R – Lá, na época, eles tomavam muito remédio com álcool, né? Era isso que tomava muito em Suzano. Exatamente o resto eu não sei o quê. Mas isso fez com que ele desse tanto trabalho para os meus pais, tanto, que eles não tinham tempo pra olhar. A gente cresceu, eu e minha irmã, uma cuidando da outra. A primeira menstruação, o primeiro sutiã, isso tudo ficou totalmente de segunda, terceira porque ele foi um filho que tirou muita a atenção dos meus pais nesse lugar. E a gente tinha dó dos meus pais, por ver isso acontecer. Então, a gente tinha até piedade. Nem ficava pedindo muita coisa pra eles e a gente cuidava uma da outra, assim. Eu falava: “Você é minha irmãmãe” e ok, a gente se virava nesse quesito. Só que a Carla, que é a minha irmã mais velha, ela era minha irmã mais velha, mais nova. Porque ela sempre foi muito tímida, sempre (escalou?) muito, então eu era a primeira de tudo. A primeira a menstruar, a primeira a ter namorado, a primeira a querer sair de casa, a primeira a querer fazer faculdade. Ela sempre veio um pouco atrás de mim. Então, eu tive que ser muito desbravadora, pra enfrentar todos os rolés com meu pai e com os homens, pra poder ir descobrindo quem eu era, assim. Quem me tira, mesmo, do álcool, foi o teatro.
P/1 – Então você estava nessa: acordava, bebia, ia pra escola, voltava e bebia também? Bebia de noite?
R – Era isso. Bebia. Rebelde, mas rebelde! Eu queria beber e vomitar na casa de quem tinha dinheiro. Minha vida era essa. Eu queria fazer isso. Eu queria quebrar o mundo. Revolta, muita revolta.
P/1 – Mas tinha revolta do quê? Política, dos seus pais...
R – Política, dos meus pais. Eu tinha muito amor pelos meus pais, mas tinha revolta do jeito que eles me tratavam, o jeito que meu pai me tratava. Nossa! O jeito que os homens eram.
P/1 – Você não tinha namorado?
R – Nem pensar! Eu não queria homem nem chegando perto de mim.
P/1 – Mas nem namorada também?
R – Nunca. Não queria nada. Eu era assexuada. Neguei completamente sexualidade ou qualquer coisa nesse sentido. Aí via as minhas amigas lindas saindo. Nossa, não era pra mim. Eu queria sair pra ir em um barzinho onde eu ouvia Raul Seixas, pra ficar cantando músicas de revolta. Não, o Raul tem coisas lindas, mas eu escolhia as coisas mais nesse sentido, ficava ouvindo... ouvia muito Chico e o Caetano nesses momentos anos 60, paz, festivais, Elis Regina cantando. Eu ficava vibrando nisso. Eu gostava de desenhar e aí eu comecei a desenhar na parede das pessoas. As pessoas me contratavam, eu ficava desenhando, desenhava bem, desenhava nos bares. Eu lembro que o pessoal do bar me pagava com cachaça. Olha que rolé, cara! Eu vivi isso. A vida é muito louca, né? (risos) E Suzano era um lugar muito ruim pra adolescente jovem naquela época. Era horrível. Não tinha nada. Um teatro, um cinema, nada. Nada, nada. Um curso interessante, nada. Tinha droga, muita droga. Então a gente viu vários amigos morrendo de drogas.
P/1 - ____________?
R – Eu nasci em 78, 27 de janeiro de 78. Vamos fazer mais ou menos as contas? Eu estava com... era anos 90... 17 anos, 18 anos. Aí eu já estava com 18, saindo da... por aí.
P/2 – Como foi seu contato com as histórias que são importantes? Foi antes desse contato com o teatro, veio depois ou na sua adolescência você já se conectava?
R – Na minha adolescência eu não me conectava com nada. Só com a rebeldia. Depois, com o teatro, ele me reconectou com as histórias e qualquer coisa nesse sentido. Mas eu tive uma mãe contadora de histórias e uma vó contadora de histórias, que foi meu segundo objeto afetivo. Veja bem esse livro, a situação: cada ácaro aqui conta uma história. Esse livro é do Malba Tahan, um dos primeiros livros escritos sobre a arte de ler e de contar história. Ele era da minha vó, que contava histórias, que deu de presente – aí tem aqui as dedicatórias, né? À minha tia Rose, em 64, que curiosamente é o mesmo ano desse livro ata. 64 foi um trem, né? Depois ele fala sobre...
P/1 - ___________golpe militar.
R – Exatamente. Paradoxos da vida: golpe militar e tudo isso acontecendo, as poesias. Pequenas poesias que nos salvam, né? Depois ele pertenceu à minha mãe, só que ela não colocou a data. Porque a minha tia Rose não gostava muito de contar histórias e deu pra minha mãe de presente, porque era mais a minha mãe quem contava histórias. E aí a minha mãe me deu de presente, em 2004. A minha mãe é uma grande contadora de histórias.
P/1 – Ela contava pra você de noite, em casa?
R – Muito. Quase todas as noites ela contava história. Foi isso que me tornou uma contadora de história. E tinha uma coisa que ela adorava fazer, que era contar a história a luz de vela. Isso era demais pra gente! Então, a gente ficava esperando o momento em que a luz apagava ou que acabava a força ou que meu pai saía, que a gente ficava só com ela ou ela ligava aqueles slides e fazia placah, placah e ela só tinha um slide, que era do Patinho Feio, que eu achava bem legal porque eu me sentia muito Patinho Feio, às vezes. Por muito tempo. E aí ela fazia todas as vozes e a gente ficava vibrando naquele cinema. Era o mesmo, ela contou a mesma história durante anos, mas aquele ambiente que ela criava na casa, de luz apagada e ela contando as histórias, nossa, era uma mãe muito mágica! E ela contava histórias de Pedro Malasartes pra gente. A maioria das histórias que eu conheço de Pedro Malasartes foi ela que me contou, que era minha vó quem contava. E aí foi isso, eu fui crescendo com ela e minha mãe ______________ minha avó e também teve um grupo de teatro, mas dentro da escola, porque ela era professora, porque ela trabalhou um tempo com pré-escola. Então, quem me pôs em cena pela primeira vez foi minha mãe, pra fazer o personagem que ela não queria que eu fizesse o personagem principal, porque eu era a filha da professora e aí eu peguei um outro personagem e a gente contou a história do Cabra Cabrês, que era uma história que ela me contava, quando a gente era criança. Que tem uma parte da história que ela ficava assim: “Eu sou o Cabra Cabrês. Vá de reto, coelhinho, que de um eu faço três”. Então, era uma história que ela me contava e depois a gente fez em cena quando era pequenininha. E aí a gente sempre conta essa história lá porque aí a menina que ia fazer o personagem principal faltou no dia. E aí eu falei: “Mãe, eu sei fazer todas as falas, deixa eu fazer”. Aí tem uma foto minha vestida de coelhinho, fazendo o personagem. A gente conta essa história porque, na verdade, ela foi minha primeira diretora de teatro. Então, eu ouvia muita história durante toda a minha infância.
P/1 – E você lia também?
R – Amava ler. Histórias. Isso foi um presente que minha mãe deu pra gente: ela sempre estimulou muito a gente a ler. Tudo, tudo. A gente parava na banca de jornal: “O que você quer?” Sem nenhum juízo de valores. A gente gostava muito do Maurício de Sousa, mas qualquer coisa, tudo pra ela era estímulo pra gente ler.
P/1 – Mas e livros, vocês liam?
R – A coleção Vagalume inteira. Ah e eu amava uma coleção que eu não me lembro o nome, mas que ela comprou pra gente que falava dos animais do mundo inteiro. Então, contavam pequenas histórias e os desenhos, porque nem tinha fotografia ainda. Esse era um livro que a gente amava. Tinha uns outros que eram uns livros de conto de fadas e que ela falava pra mim se eu conseguia fazer música com os contos de fadas, ficava tentando rimar as músicas pra ela. E um pouco mais tarde a minha família teve uma questão muito forte, sempre foi muito forte a questão espiritual na minha casa, né? A gente teve o catolicismo e o Kardecismo, nos nossos fundamentos. E aí, nessa época da rebeldia, onde meu pai me fisgava? Com livros de esoterismo. Eu sempre gostei de perguntas ocultistas e esotéricas. Então ele assinou uma coleção esotérica, que é uma coleção bem básica, na verdade, mas tinha umas imagens lindas dos lugares místicos do mundo. Ali era um vínculo que eu tinha com ele, que a gente manteve. Então aí eu passei a ler coisas ocultistas e histórias mitológicas. Eu amava mitologia grega, gosto até hoje.
P/1 – Mas aí você ia no centro espírita também?
R – Muito. Era nossa direção. A gente amava ir no centro espírita. A gente amava.
P/1 – Na igreja também?
R – Na igreja eu não gostava muito. Porque eu achava muito parada a igreja. Desde criança eu falava: “Mãe, a gente fica lá parado muito tempo! São duas horas parado, ouvido uma pessoa falar! Eu não gosto disso”. No centro espírita tinha mais diversão porque tinha as incorporações, as pessoas chegavam contando histórias: “Porque eu vim do século passado...”. A gente ficava apostando. A gente tinha as datas dos mais antigos que incorporavam, eu e meus irmãos. “Esse aqui já conheceu Jesus Cristo, esse aqui foi rei”, a gente ficava nessas coisas de crianças, né? Eu lembro que a gente se divertia muito com essa coisa meio misteriosa que apresentava de uma pessoa incorporando o espírito. Isso é uma coisa muito comum na minha família. Meu pai era um cara muito ligado com isso e sempre muito ligado com as questões da morte. Ele sempre teve muita tranquilidade e sempre deixou claro pra nós que fazia parte de um estado da vida. Ele fez uma formação, mesmo, pra que a gente não tivesse medo de mortos e da morte. Então, ele sempre foi chamado pra fazer velório. Era uma das diversões que a gente tinha nesse quesito do meu pai, a gente ficava olhando pra cara dele naquele momento solene, mas eu lembro da sensação de chamarem meu pai toda vez que acontece uma morte por perto, da família e ele se colocava num lugar de sacerdote, mesmo. Ele nem era exatamente isso. Mas trazia as palavras mais corretas e eu lembro da sensação que tinha um cheiro no ar, diferente. Uma densidade diferente. Tinha a tristeza das pessoas, é claro que dava toda uma experiência ritual, mesmo, mas isso era forte pra mim também, ver esse outro lado do meu pai.
P/1 – Agora eu só queria fechar aquele ciclo que você estava bebendo, bebendo...
R – Sou tão a favor! Vamos parar de beber, né?
P/1 – Como foi que você encontrou o teatro, se não tinha nada em Suzano? O que aconteceu?
R – Eu fui pra Mogi das Cruzes, que era uma cidade do lado. E Mogi foi maravilhoso!
P/1 – Como você foi parar em Mogi das Cruzes?
R - Uma amiga me chamou e falou pra mim: “Sandra, tem curso de teatro aqui no Sesi de Mogi das Cruzes”. Aí ela me convenceu, a Lili. Minha amiga até hoje, inclusive. Ela me convenceu a ir. Eu vou falar uma coisa pra vocês: quando eu pus o pé no palco pela primeira vez, eu falei: “Já conheço isso aqui, já sei como faz”. Era muito, muito íntimo pra mim. Parecia que eu sabia de tudo de teatro, de uma hora pra outra. Desceu um download, blum. “Eu já sei, só preciso reaprender a fazer isso”.
P/1 – Você pensou assim?
R – Pensei isso. E aí eu me encontrei completamente, me apaixonei, mas de um jeito... eu sou uma pessoa movida a paixão, eu preciso de paixão, seja lá qual for a paixão e aí eu voltei a me apaixonar pela vida, porque eu estava muito sem paixão nenhuma na adolescência e isso me reconectou com o outro, com o meu corpo, com a paixão, com a fala. Era um espaço. Eu precisava muito me comunicar com o mundo, só que era uma comunicação, no teatro, organizada. Por um texto, um contexto. Aí virou minha vida. Para, um pouco, desespero dos meus pais, também. (risos) Porque eles queriam outra coisa pra mim, né? Principalmente meu pai. Meu pai queria que eu trabalhasse vendendo seguro, inicialmente. Me arranjou emprego, coitado, de vender seguro. Eu não vendi nenhum. Fiquei três meses trabalhando onde ele me arranjou esse emprego, só que tinha que ligar pra vender seguro de vida, você imagina. E aí, você ligava três horas da tarde, só os velhinhos que atendiam e você imagina que eu tinha que vender para o velhinho. A mulher começou a chorar no telefone e falou: “Eu vou morrer”. Eu falei: “Não, minha senhora, pelo amor de Deus, a senhora não vai morrer”. Foi uma situação. Não vendi nenhum seguro. Enfim, não deu certo esse negócio. Eu queria fazer teatro. Mas aí estava esse meu lado teimoso, ele também foi uma proteção, porque eu ia atrás. Eu falei: “Eu vou conseguir de qualquer jeito fazer teatro”. Aí eu comecei a fazer de tudo pra fazer teatro. Ia a pé pra Mogi, se precisasse. Dava um jeito de vender coisa pra pagar o ônibus e, por mais que meus pais, por um lado, estavam preocupados com o que eu estava escolhendo, eles achavam que era um sonho, né? No sentido ruim do sonho, porque sonho é uma coisa maravilhosa. Que era uma ilusão. É isso que eles achavam que era. Também foi um teste, que tudo bem, eu sinto que tudo bem isso com a vida, não tenho nenhum problema com isso hoje, porque isso me fez ser muito disciplinada. Eu não podia vacilar pra conseguir o que eu queria. Porque era isso que ia me tirar daquele lugar, daquele sertão seco que eu estava na minha vida.
P/1 – Você teve essa consciência?
R – Tive essa consciência plena. Olha que louco como as coisas mudam na vida! Eu me lembro exatamente do momento que eu comecei a estudar para o vestibular pra fazer teatro e eu comecei a estudar e comecei a gostar de estudar. Eu comecei a achar o máximo estudar! Eu queria aprender tudo. Por causa do teatro. E aí, conforme eu comecei a aprender, eu vi que eu era capaz de ser uma pessoa inteligente. E aquilo foi uma novidade pra mim. Eu falei: “Eu não acredito. Eu vou ser inteligente. É uma escolha ser inteligente”. Ué, mas eu sou mulher e mulher pode ser inteligente? Eu me fiz essa pergunta. E aí eu falei: “Mulher vai ser inteligente e eu vou estudar”. E aí a minha vida começou a mudar completamente. Meu círculo de amigos, da bebida, começou a ficar pra trás, porque a gente também não tinha mais ressonância, os papos eram outros e eu comecei a virar amiga do pessoal de teatro, que era um pessoal também que tinha a poesia, outras histórias, a vida, a arte, vir pra São Paulo, pegar trem. Aí eu já tinha 18 anos, pegava trem e vinha pra São Paulo quase todo dia fazer qualquer curso: oficina Mazzaropi, oficina Oswald de Andrade, eu me metia em tudo que podia. E aconteceu uma coisa, também, engraçada, que foi a minha grande estreia, né? Estreia, mesmo, de teatro. Que até então estava fazendo curso, tal e ia ter uma apresentação em uma oficina de inverno, em Mogi das Cruzes, no Teatro Municipal de Mogi das Cruzes. Velásquez o nome desse teatro. Eu lembro de todo esse espaço. Lembro de cada detalhe desse lugar, assim. O lugar, pra mim, era ir pra uma igreja. E aí a gente chegou assim lá e era uma oficina de inverno. O meu primeiro professor de teatro foi o Wilson Caetano, um grande amigo até hoje o Wilson, do Sesi e essa oficina quem deu foi outro professor. Eu fiz aula com o Silvionê Chaves e o Atílio Garret. E aí eles falaram: “Mano, você tem que fazer teatro”. “Tá. Então vamos fazer apresentação”. A gente criou uma cena pra fazer apresentação. Como era o final da oficina de inverno, tinha apresentação de capoeira, de dança, nãnãnã e de teatro. Milhares de pessoas no teatro, superlotado. E meus pais foram porque eu insisti muito pra eles irem. Aí eu lembro de estar na coxia e falar: “É agora, pé. Eu vou colocar você lá”. Era a primeira vez para um público. Aí eu lembro de falar: “Vó Maria, vem comigo” e tum, coloquei o pé. Na hora que eu coloquei o pé, eu senti na lateral aquelas pessoas, vruaaaaaa, aquela multidão. Eu juro pra vocês... minha vó falava uma coisa pra mim que é até bonita. Minha vó falava muitas coisas interessantes. Essa aqui, ela dizia: “Faça como se fosse o frescor da primeira vez, mas com a entrega da última”. Eu falei: “É assim que vai ser”. A minha vó era demais! A minha guardiãzona. E o público fez assim: uoooooooooooooool. Todo mundo ficou quieto. E quando eu terminei...
P/1 – Você fez o quê? O que era?
R – Era uma improvisação, que era uma coisa assim: a gente fazia uma cena, que era um drama e todo mundo ficava super tocado com o drama e entrava um diretor e falava: “Não, não, não. Isso está errado. Agora, um pouco mais dramático”. Aí a gente saía, entrava de cena e fazia tudo de novo, muito exageradamente dramático. Depois uma comédia, depois como se fosse uma criança. Era uma cena supersimples que a gente criou, mas o público amou. E aí tinha uma repórter nesse lugar que adorou o que eu fiz e no outro dia saiu uma matéria no jornal.
P/1 – Sobre você?
R – Eu cheguei em casa nesse dia, assim, esperando. 200 pessoas me aplaudiram, agora meus pais vão ter que entender que eu quero fazer teatro. Cheguei à noite, meus pais comendo, nem olharam para o lado. “Oi”. Eles: “Oi” “Então, vocês gostaram?” “Ah, é”. Meu pai ficou quieto, não respondeu e minha mãe falou assim: “Bastante que melhorar ainda, né, Sandra?” Eu juro pra vocês que eu fui pra cama totalmente decepcionada com aquele negócio. Passou uns dias, saiu essa matéria no jornal. E a pessoa do jornal me descrevia: uma atriz nãnãnã, nova, fez tal cena e foi a estrela da noite, não sei o que. Eu falei... um jornalzinho da cidade de Suzano, mas pra mim tinha tudo: “Olha, mãe, saiu no jornal”. Aí minha mãe pegou o jornal e falou assim: “Ah, Sandra, mas você também é muito metida, né? Você acha que ela está falando de você? Por que você acha que ela está falando de você? Não tem nem seu nome aqui”. Eu falei: “É, talvez não seja, né, mãe? Não, tá bom”. Aí fiquei de novo com isso. Passou uns três, quatro meses, a gente foi em um churrasco com meu pai e minha mãe, aí a repórter estava nesse lugar. Ela olha pra mim e fala: “Eu te conheço. Você é a menina do teatro. Eu escrevi sobre você.” na frente do meu pai e da minha mãe. “Valeu, galera, muito obrigada!”. Aí eles tiveram que admitir que, enfim, era uma coisa muito forte pra mim. A minha mãe foi mais abrindo...
P/2 – Seu pai?
R – Nunca. Quer dizer: demorou muito tempo, né? Depois, ele super, mas até então, até eu prestar vestibular, quando eu fui prestar o vestibular pra Artes Cênicas eu queria sair de casa, falei: “É minha oportunidade de sair de casa”. Tinha duas opções: eu prestei a Unesp, que eu queria fazer a Unesp e prestei um curso em Curitiba, Faculdade de Artes do Paraná e, quando eu estava indo para o Paraná, eu lembro que minha mãe estava passando na janela, meu pai estava saindo pra trabalhar e ela falou assim: “Bem, hoje a Sandra vai prestar o vestibular. Deixa o dinheiro pra ela pegar o ônibus”. Aí meu pai falou assim: “Eu não vou deixar dinheiro pra ela, porque eu não acredito nessa ilusão dela”. Só que eu ouvi. Ele nem sabe, até hoje eu nunca falei pra ele que eu o ouvi falando isso. Aí eu acordei com aquela cara, né, aí minha mãe falou: “Ah, seu pai deixou esse dinheiro aqui”. Ela não disse que deixou dinheiro dela pra eu pegar o ônibus. E eu passei nesse vestibular e fui morar - porque eu queria espaço, horizonte - em Curitiba pra fazer Artes Cênicas. E um tempo eu trabalhei com esse Silvionê e com o Atílio, que foram os professores que estavam comigo nessa jornada. Eles tinham um grupo de teatro profissional e eles me convidaram pra trabalhar com eles e então eles foram...
P/1 – Lá?
R – A gente viajou.
P/1 - ________ Curitiba?
R – Antes de ir pra Curitiba. Eu deixei esse grupo por conta da minha faculdade. Um tempo eu fiquei trabalhando pré-profissionalmente, ainda não tinha o DRT, mas a gente trabalhava nos colégios de São Paulo. Eu lembro até hoje de entrar em um colégio de São Paulo e falar: “Eu não acredito que isso é uma escola” porque aquelas escolas de São Paulo com piscina, com teatro! Eu falava: “Não é possível que existe isso no mundo!”. Então, eles que foram os meus professores e mestres do caminho, que me deram a mão aí na jornada. Deixei o grupo quando eu fui para Curitiba.
P/1 – Você mudou de cidade, foi fazer uma faculdade. Conta as coisas que foram acontecendo nesse momento. O que foi se transformando nesse momento da sua vida?
R – Nessa época eu tive um namorado. Foi meu primeiro namorado.
P/1 – Finalmente você se abriu para o mundo?
R – Com bastante dificuldade. Mas também arranjei... olha, vou falar isso agora porque ele está bem agora, mas era uma tranqueira na época. (risos). Puts, grilo, que tranqueira! O cara era errado. Ele tinha um bom coração. Mas era um cabeçudo. Ele usava drogas.
P/1 – De lá de Curitiba?
R – De Mogi das Cruzes. E, quando eu fui pra Curitiba, a minha mãe, eu sei bem, que só me deu um empurrãozinho pra ir porque ela falou: “Ela indo, ele não vai atrás, né?” e ela falava pra mim, eu lembro dela falar: “Sandra, nada pode atrapalhar o seu sonho, porque você é a única filha que entrou em uma faculdade, você conseguiu, depois de ter feito um colégio péssimo, uma escola péssima, você conseguiu passar em uma faculdade pública. Isso é quase um milagre. Você está realizando o seu sonho. Não deixe que nada te atrapalhe”. E eu lembro que eu olhei pra cara do meu pai no meio de uma briga, assim: ‘Porque não sei o que” e eu falei: “Pai, você não é um bom trabalhador? Então, pai, eu vou ser igual a você, só que eu vou trabalhar com o teatro, mas eu não vou descansar um segundo”. Acho que é sina, até hoje acontece isso: não descanso, fico trabalhando o tempo todo. Tenho que voltar a falar outra coisa com meu pai. (risos) E fui. E em Curitiba, né? Aquela terra fria, aquele povo muito diferente do que eu estava acostumada, uma cultura muito diferente de mim, a primeira vez que eu saí de casa e fui morar na casa de um senhor (risos) lá em um bairro, como é o nome daquele bairro? Esqueci o nome do bairro. Mas era bem longe da faculdade e era um fundo de uma casa que eles me colocaram. Os velhinhos estavam com a filha morando nos Estados Unidos e então eles meio que tentaram me adotar. Mas em um momento da minha vida que eu não queria absolutamente ser adotada por ninguém. Então, foi meio conflituoso meu início de jornada, lá, na cidade. E o que aconteceu de fato na universidade é que eu me transformei na melhor aluna. O meu caderno as pessoas pediam emprestado pra pegar matéria. E aquilo era uma coisa que era muito surreal pra mim. Como que antes eu era a pior das alunas e me transformei na melhor das alunas? O que hoje, entre as coisas que eu sou, eu também sou educadora e eu percebo o quanto é importante. Se a pessoa não está apaixonada pelo que eu estou dizendo, tem alguma coisa errada. E eu fico tentando investigar, até que eu encontre a paixão no aluno ou no educando. Porque foi muito chocante pra mim essa sensação de saber. E me apaixonei pelo estudo. Pelo conhecimento. E passei a entender que o direito ao conhecimento é uma das coisas mais importantes que um ser humano tem que ter. O bom conhecimento. Estava tudo certo, me adaptando, mas logo esse namorado foi atrás de mim, óbvio. (risos) Dava pra saber, né? E aí eu disse pra ele: “Você não pode vir atrás de mim, se for pra você ficar comigo, só por isso. Se você tiver algum motivo pra vir pra Curitiba, você vem e a gente vai se encontrar”. Super inocente. Óbvio que ele ia dizer pra mim que tinha mil motivos pra vir pra Curitiba. Ele arranjou que ele ia fazer faculdade de Música, mas ele não fez, enfim. Era uma outra realidade que ele vinha, do que eu. Eu vinha de uma realidade um tanto periférica, ele era mais ainda periférica. E com mais dificuldade de dinheiro. Ele trabalhava como marceneiro. Ele tocava violão, mas ele era marceneiro. Aí ele chegou lá, alugou um lugarzinho pra ele morar, muito pequenininho, começou a trabalhar como marceneiro e, de fato, quando ele chegou, a coisa começou a dar aquele entortada ali.
P/1 – Na sua vida?
R – Na minha vida. Eu não conseguia, ainda... era muito confuso, porque como ele era uma pessoa... ele tinha diabetes alta, tomava insulina, então ele precisava muito de ajuda e é muito fácil: primeiro relacionamento, mulher, confundir cuidar com filho... tanto que eu sinto que relacionamento, mesmo, sexual, nem foi uma coisa assim... era uma coisa maternal, ali, com ele. Enfim, ele se machucou, lá, na marcenaria, no dedo, só que ele tinha diabetes, diabetes não cicatriza, ele perdeu a ponta do dedo, ficou doente, perdeu o emprego, ficou sem dinheiro, foi morar comigo.
P/1 – Com os velhinhos?
R – Em outro lugar, que eu mudei, consegui mudar para um lugar mais próximo da faculdade, com a minha mãe me ajudando no aluguel e eu logo consegui um emprego lá, na Fundação Cultural de Curitiba, que foi o máximo. Lá eu comecei a trabalhar e entender o que era arte educação porque a gente trabalhava na Fundação Cultural, no Projeto Piá. Quando eu não estava na faculdade, eu estava aprendendo a dar aula de arte educação. E era um projeto lá que eles pagavam, davam uma bolsa. Então, conseguir esse emprego com essa bolsa já não era uma coisa fácil. Eu estava super bem, feliz que eu tinha conseguido. Então, eu tinha esse dinheirinho e o dinheiro da minha mãe me ajudava no aluguel. Era isso, uma vida de estudante. E aí aconteceu uma coisa assim, que ele estava muito mal e aí uma doida lá de Curitiba que tinha uma marcenaria que estava completamente já detonada, de uma hora pra outra fala pra ele que ele vai ser o gerente da marcenaria. Só que pra ele ser gerente da marcenaria, tinha que comprar o material. E precisava de um cheque pra comprar material. O Marcelo não tinha cheque. Porque ele tinha o nome sujo, toda uma história. Quem tinha cheque? Eu. Emprestei um talão de cheque pra ele, assinado, sem nenhum tipo de contrato. Essa mulher pegou esse talão de cheque e fez uma dívida no meu nome surreal e nunca me devolveu esse dinheiro, é óbvio. E aí eu entrei em uma fase terrível em Curitiba, porque a minha mãe nem sabia que o Marcelo tinha ido atrás de mim. Muito menos que meu nome estava sujo em Curitiba. E aí eu comecei a me sentir... esse lugar que eu falei da mentira, é uma coisa que me revisitou, de uma outra maneira muito negativada, porque eu não contei pra minha mãe, eu comecei a inventar história pra minha mãe, eu não tive coragem de dizer e aí aconteceu uma coisa, uma experiência muito, muito louca na minha vida, porque eu não tinha o que comer e não tinha mais dinheiro. O dinheiro que entrava, da Fundação Cultural e da minha mãe, pagava as contas do cheque sem fundo e eu tive que começar a ir no mercado com um outro talão de cheques que sobrou, dar um cheque sem fundos que eu já sabia que eu não ia conseguir pagar. Eu entrei no submundo. E a minha estima começou a ser detonada. Até um dia que minha mãe veio me visitar e percebeu o que estava acontecendo. Aí a gente conversou e aí... ai, eu lembro da minha mãe ficar muito, mas muito triste. É muito importante dizer isso porque às vezes, pra mim, eu sinto que me ver triste é uma coisa que o meu limite é muito maior, do que ver a minha mãe triste. Quando eu percebi o quanto... ela tem muito amor por mim, mas quando eu vi minha mãe realmente decepcionada comigo, aquilo foi um tapa na minha cara. Eu falei: “Chega, eu não quero isso pra mim” e quando eu falei ‘não quero isso pra mim’, de novo a minha vida fez vrum, eu me conectei com um cara chamado Renato Perré, que é um bonequeiro de Curitiba e ele falou: “Você vai fazer teatro de bonecos” e começou a me ensinar fazer teatro de bonecos e eu aprendi assim, olha, plic, de um dia pra outro. Eu peguei o boneco e falei: “Isso”. Ele falou: “Impressionante. Já sabe. Você vai começar a trabalhar comigo”. E aí tem um festival, em Curitiba, que chama Festival de Teatro de Bonecos de Curitiba, que é um festival superfamoso lá e o cara acreditou em mim, falou: “Você sabe fazer máscaras?”. Eu falei: “Sei”. Porque eu era petulante. Pra resolver a situação, falei ‘sei’. Nem que eu aprenda de uma hora pra outra, sei. E eu já tinha essa coisa das artes visuais, eu desenhava, ele falou: “Eu preciso de cinco máscaras indígenas para o Teatro Guaíra”. Eu falei: “Eu faço”. E aí ele me deu uma grana, coisa que eu não via há muito tempo, em dinheiro, porque era isso que tinha que resolver o problema, não era através de Banco e me contratou pra fazer máscaras para o festival e eu comecei a trabalhar de dia, de noite, de madrugada, sentindo que alguma coisa ali ia ser mudada. E fui trabalhar com ele como bonequeira no festival e eu estava trabalhando, ele falou assim pra mim: “Sandra, hoje é dia do seu trabalho, mas vai chegar uma companhia de São Paulo chamada Companhia Truques de Teatro de bonecos e eu quero que você veja essa companhia porque eu sei que você está querendo voltar pra São Paulo, porque a sua vida não está boa aqui e, se você voltar, você vai chegar em São Paulo e vai procurar o Henrique Seixas. E eu parei, era um momento que eu estava ganhando dinheiro, nem poderia, fui assistir o espetáculo, assisti o espetáculo O Senhor dos Sonhos e saí de lá: “Que lindo trabalho, muito lindo!”, super me conectei e aí, quando terminou, com esse dinheiro que eu ganhei, foi o dinheiro que eu encerrei o meu aluguel em Curitiba, me despedi do Marcelo...
P/1 – O deixou lá?
R – O deixei lá e fechei a minha vida. Fiquei com essa dívida alta no Banco, com a promessa dele que um dia ele pagaria e voltei pra São Paulo, pra recomeçar. Passou alguns meses...
P/1 – E a faculdade, terminou?
R – Tranquei a faculdade. Passaram alguns meses, eu fui atrás do Henrique. Fui fazer uma oficina com ele na Oswald de Andrade. Não, na Mazzaropi. E aí eu falei: “Eu vim aqui porque o Renato Perré mandou”. E ele falou: “Não acredito”. Contei a história pra ele e ele falou: “Que legal!”. No primeiro dia de oficina ele falou: “Você vai trabalhar comigo”. Eu falei: “Eu vou trabalhar com você. Tenho certeza absoluta. A gente vai trabalhar juntos”. Ele falou: “Vamos esperar somente a oportunidade. Assim que precisar de uma vaga no elenco, é sua”. Passou um ano, uma pessoa saiu e eu passei a trabalhar na Companhia Truques. Bom, nessa época, o Marcelo tinha voltado pra São Paulo e tinha ido atrás de mim. Chegou em uma situação que os meus pais falaram assim: “Chega. Você não vai ficar mais com esse traste por aí. Se é pra acontecer, se você não consegue se livrar disso, que seja dentro da nossa casa”. Eles fizeram um quarto pra eu morar com ele dentro da minha casa. Meu pai odiava esse homem, mas teve a manha de me colocar dentro, porque ele achava que pelo menos ele estava de olho e sabia que fome eu não passaria mais. Bom, primeiro festival da Companhia Truques que eu apareço, a primeira estreia com a Truques... quando eu entrei na Truques eu vi que a coisa, que a minha vida começou a mudar, mudar, mudar. Eu sentia que todas as transformações estavam por vir. Primeiro festival: Curitiba. A vida pegou e trauuuuu. Aí eu falei: “Não vou nem mandar mensagem para o Perré que eu estou indo”. Porque na época era só e-mail que a gente tinha, né? Cheguei lá com o espetáculo, estreou um espetáculo lá, aí eu encontrei o Perré e falei: “Voltei”. Ele falou: ”O que você está fazendo aqui?”. Eu falei: “Estou trabalhando na Truques. Você não falou pra mim que era pra eu ir atrás dele?” E a Truques é uma família pra mim. Eu amo o Henrique e a Verônica, são meus amigos imensos. Eu sinto que eles mudaram muito o rumo da minha vida. Comecei a ganhar dinheiro com teatro, conheci os melhores teatros de São Paulo, a gente visitou os melhores festivais do país, comecei a sair, viajar e aí o mundo começou a abrir, nesse festival, o primeiro festival, eu olho um homem vestido de São Jorge, em uma perna de pau e me apaixono completamente por São Jorge, viro devota na hora de São Jorge e enfim ele consegue matar o dragão do Marcelo. Na hora. Eu não conseguia ligar, pegar o telefone pra falar com o Marcelo, de tão apaixonada que eu fiquei por aquele homem. Eu nem conhecia. E, na época, ainda era casado esse homem, mas não tinha importância. Aquela paixão movimentou a minha vida e eu percebi que estava muito errado o que eu estava vivendo. Eu estava ganhando dinheiro, então eu aluguei um apartamento sozinha em São Paulo, na Bela Cintra, um apê que era uma delícia e comecei a mudar minha vida: ganhar dinheiro. E aí meu pai começou a acreditar que o teatro poderia dar certo, porque eu me tornei a filha que estava ganhando dinheiro, que estava viajando, conhecendo o Brasil, pagava um apartamento sozinha perto da Paulista e aí a nossa relação também começou a mudar.
P/1 – E o Marcelo?
R - Eu o cortei absolutamente da minha vida. Porque eu percebi que ele sempre dava um jeito de voltar. Então eu pedi, falei: “Olha, se você insistir em voltar comigo, eu não quero mais te ver”. E ele continuou insistindo, então eu mudei de casa, de endereço, de telefone, sumi, desapareci. Foi assim que a gente conseguiu desvencilhar. Essa história me revisita agora com ele o ano passado. Depois de 20 anos.
P/1 – Ele apareceu?
R – Quem apareceu na minha vida foi a esposa dele, começou a me seguir Instagram, Facebook, toda rede social que tinha, me detonando, começou a mandar e-mails nos meus trabalhos no hospital, completamente louca. Enciumada. Mas foi bom porque eu fui descobrir um advogado pra me ajudar porque a coisa estava muito intensa e aí eu fui atrás de um advogado e ele descobriu que era um perfil falso e descobrimos que era a esposa do Marcelo. Isso me fez conectar com a família dele e falar: “Olha, essa pessoa que eu descobri eu estava entrando em um processo judicial, mas eu prefiro não, porque eu sei que é família de vocês” e isso fez com que ele me dissesse coisas, pediu perdão por ela, ela era uma pessoa que estava desequilibrada, que estava passando por um processo depressivo muito forte e foi isso que aconteceu: ela olhou pra mim, olhou pras minhas fotos nas redes sociais, achou que eu era bem sucedida, bonita e ficou com ciúmes de um ex relacionamento do marido dela. Mas aí ele aproveitou a oportunidade e disse pra mim: “Eu preciso dizer que é importante que você tenha carinho pela minha família, porque eu tenho muito carinho, muita gratidão por tudo que você e sua família fez por mim. Vocês me deram casa, me deram comida, eu só fui fazer uma faculdade em Mogi, depois de anos atrás, porque a sua mãe falou que eu tinha que estudar. Então, a sua família, pra mim, tem que ser protegida”. E isso foi mágico porque vrummm, toda aquela história mal resolvida, naquilo, falei: “Foi, encaminhou, não temos mais nenhum tipo de coisas pra resolver”. Bom, teatro, Bela Cintra, Companhia Truques, estamos indo muito bem no teatro, a vida está muito bem com a família, a minha relação com meu pai eu chego em um momento que eu decido uma coisa. Pensei, com meu pai vai ser assim: tudo que ele falar que me desagrada, vai entrar, eu vou fingir que eu estou meditando e vai sair por aqui. E vou dar a ele funções de pai: “Pai, me ajuda a consertar alguma coisa?”. E ele sabe fazer. Aí ele vai e faz com amor e eu recebo o amor dele, vejo que ele é meu pai e está tudo certo. “Pai, me ajuda com uma nota fiscal?” e aí, a nossa relação começou a virar isso. Então, ele é uma das pessoas do qual ele fala alguns absurdos sobre a vida, absurdo pra mim e não pra ele e eu totalmente relativizo e só fico pensando: “Eu te amo, eu te amo, eu te amo. Você é meu pai. Eu te amo, eu te amo”. E, nesse momento, nós estamos numa relação que eu sou a filha que mais está afinada com ele. Porque os outros estão muito perto e ficam dizendo que ele tem que mudar, que ele tem que mudar. Ele é um senhor de 70 e poucos anos. Na vida dele, nesse momento, tem algumas ações e algumas impressões que ele tem sobre a vida que são essas e que, por amor, está tudo bem. Então, minha história com ele se resolve dessa maneira, assim.
P/1 – E você, como foi a sua revolução do teatro pra contação de história? O que foi que aconteceu?
R – É agora que tudo acontece. Estava muito bem, fazendo teatro de bonecos, tanãnã, ganhando dinheiro, até que um dia eu lembrei das histórias. E eu achei que eu deveria ser uma contadora de histórias. Porque eu queria poder comunicar com a palavra, e não só com o boneco, algo que batesse no meu coração. E as histórias batiam no meu coração, porque elas eram parte da minha formação. E eu sou extremamente apaixonada pela cultura do nosso país. Tinha feito o curso do Brincante, aqui no Instituto Brincante, dos formadores Brincantes e todo aquele universo do Brincante, da mitologia brasileira, bateu profundamente no meu coração e eu falei: “Eu quero contar a história do meu povo. As histórias que estão baseadas na cultura do meu povo”. Aí ia ter acho que um carnaval ou feriado e eu falei: “Eu vou pra São Luiz do Paraitinga, pra colher histórias, lendas de lá, que eu quero contar as lendas de São Luiz do Paraitinga”. E São Luiz é uma maravilha de lugar pra nós, porque meio que parou no tempo, ali. Aquela estrada que ligava ao Rio de Janeiro não existe mais, então ele ficou meio parado. Lá todas as culturas acontecem: afro, a cultura de Moçambique, muita coisa portuguesa...
P/2 – Como passou a ser uma contadora de história? Teve algum acontecimento ou foi um insight?
R – Nada. Foi um insight. Um download, assim. Eu quero contar... veio muito através dessa coisa de fazer contato com a cultura Brincante. A cultura do Brincante é muito a cultura do nordeste e isso ligou na coisa, relembrou a coisa do meu povo. Só que a minha formação naquele sítio que eu te contei era Minas Gerais, era o Vale do Paraíba. E o que tem no Vale? O Vale é riquíssimo de cultura e começou a vir muita coisa do nordeste, com Antônio Nóbrega, com esse povo, essas culturas, as danças. E o que tem aqui perto da gente, né? A minha cultura. Isso me fez voltar pra lá. Minas Gerais. Contação de histórias em Minas. Todo mineiro já é um tanto contador de história, né? Fui pra lá. Mas ainda não era Minas, São Luiz do Paraitinga tem uns bonecões, as danças, congado, tudo, né? Aí eu passei sete dias lá, ouvindo história de saci. Tem muita história de saci. Eu queria saber quem tinha visto saci. Tem a Associação do Sosaci lá. E fiquei lá curtindo aquilo tudo, maravilhada, não queria fazer mais nada. Meus amigos querendo ir pra cachoeira, namorar. Eu queria acordar e ouvir história. Que nem o Jonas. Enlouquecida, apaixonada por isso. Era assim. A gente tem mais uma coisa em comum, Jonas. Então eu acordava, tomava café e ia ouvir história. Todo mundo: “Ai, não, Sandra, de novo? Não, chega” e eu: “Não, gente, não está suficiente ainda, não sei o que, pesquisa” e encontrei um ser humano maravilhoso que eu não me lembro o nome dele, mas ele era um moço que nasceu em São Luiz do Paraitinga. Ele era um intelectual que estudava na USP e que amava a cidade dele. Então ele me grudou e falou: “Eu vou te mostrar todos os contadores de história desse lugar” e me levou. Eu conheci Geraldo Tartaruga lá. Uma casinha desse tamanhinho. Não tinha como entrar na casinha dele. Tinha que ficar na beira, de tão pobrezinho e ele fazia uns artesanatos na cabaça, uns presépios, umas coisas na cabaça e contava história. E ele me contou uma história maravilhosa, que é a do bichão, que eu adoro contar essa história do bichão e ele dizia: “Eu sou contador de história porque meu pai teve sete filhos e ninguém queria ouvi-lo e eu era o único filho que queria ouvir. Por isso eu sei contar”. Achei isso genial. E aí me apaixonei, tenho até hoje um caderninho com todos os contos, as gravações que, na época, era um gravadorzinho grande assim e tudo São Luiz do Paraitinga, São Luiz do Paraitinga. Sétimo dia. Sete é uma coisa, né? Os contos e os micos na vida da gente. Sétimo dia e ele fala assim pra mim: “Hoje você vai conhecer a Dona Adélia” “Tá bom”. “A Dona Adélia, moradora daqui a não sei quanto tempo, não sei o que”. Aí a gente foi em um lugarzinho lá, que era perto... tinha o Banco do Brasil, naquela ruazinha bem pequenininha, onde nem entra carro. Aí tinha uma doceria, onde a gente foi tomar um cafezinho com leite e comer uma torta de limão e aí a gente passa pra pegar a Dona Adélia, a Dona Adélia de cabelo bem branquinho, com um guarda chuvinha, mas toda linda, com uma roupa florida, um vestidinho florido. Estava meio gordinha, um cinto bem ajustado na cintura, um cintão largo, já veio gargalhando. Aí a gente entrou, começou a conversar e aí ficamos tentando tirar dela história de saci, de saci, nãnãnã, só que não saía. Aí ela começou a contar história dela, de vida dela. Aí fez assim tommm. Olhei pra trás, assim, fiquei quieta e ela começou a dizer e ela falou: “Pra você saber de mim, tem que saber que eu tive duas vidas em uma. Talvez você não conheça outra pessoa que teve duas vidas em uma. Pois anote meu nome: Adélia. Porque eu fui Adélia e também fui Lucia”. Eu falei: “Como assim?” Aí ela começou a contar que ela tinha ganhado de presente... ela sempre gostou de escrever bem, adorava desenhar as letras e aí ela ganhou um concurso na escola do primeiro caderno de caligrafia. Primeiro lugar: um caderno de caligrafia. E chegou na casa dela de presente um embrulho, que era um tecido vermelho de bolinhas brancas. E aí ela mandou fazer em uma costureira da mãe dela um vestido Três Marias, que é um vestido bem ajustado, que tem três saias. E ela falava assim pra mim: “E aí, quando você gira, você parece três mulheres vestidas em um vestido só”. O vestido fica pronto, ia ter um baile no lugar e ela fala assim pra mim: “E eu achei que era uma oportunidade de mostrar pras pessoas meu presente”. Só que ter um baile em São Luiz de Paraitinga naquela época era uma coisa rara. Não era assim que nem ter baile hoje. A gente está falando de muitos anos atrás. Um baile era um acontecimento. “Aí eu pedi pra ir para o meu pai, meu pai disse que não”. E aí ela começa a inventar várias maneiras: fala que vai lavar o cavalo com a carroça, não adianta; finge que está com febre e o pai fala: “Doença não vai pra baile nenhum”. Ela diz assim: “Eu fiz promessa pra Santa Maria Goretti, que ajuda os homens, os meninos e as moças, mas a santa não deu jeito. A santa é boa, meu pai que era muito ruim”. Enfim, chega no dia do baile e ela faz o que muita gente fez, tem uma frase ótima que ela fala assim: “Eu fui lá e falei: ‘Boa noite, pai, boa noite, mãe’ e meu pai virou pra mim achando que eu ia pedir, mas eu não queria pedir mais nada, não, porque o crime já estava na ideia”... no quarto, faz aquele amontoadinho, aí tem uma coisa linda que ela fala: “Visto meu vestido Três Marias e me olho no espelho. Engraçado, quando eu me olhei no espelho, eu vi outra pessoa e foi aí que me veio a ideia”. Ela pula a janela, pega uma roseirinha imaculada, coloca perto do cabelo pra dar mais ainda beleza nela e ela chega no lugar. E aí ela fala assim: “São Luiz do Paraitinga, naquela época era iluminado só por luz de lampião, que é uma luz que turva a vista da gente e a gente mais imagina do que vê e quando eu cheguei lá, as pessoas chegavam pra mim e diziam: ‘Como você está bonita, Adélia’. Ela dizia: ‘Muito obrigada! Mas eu não sou Adélia, não. Eu sou Lucia, a prima da Adélia’. A primeira pessoa acreditou, a segunda pessoa acreditou, no que a terceira pessoa acreditou, quem sou eu pra duvidar da língua dos outros? Passei a acreditar também”. E aí, como Lucia, ela vai fazendo tudo que ela tem vontade. E aí acontece que ela volta pra casa e, quando ela volta pra casa, ela tira o vestido, pendura ali perto da janela, os pais não ficam sabendo e ela fala assim pra mim: “Engraçado, menina, eu ficava olhando pra aquele objeto. Era como se aquele vestido tivesse o poder de me voltar para o baile novamente. Passa a situação e ela diz que depois ela fala assim: “Estava tudo certo, resolvido, se eu não tivesse a vontade de ir de novo no baile. Aí depois não precisava mais de baile, eu queria ir na praça. Aí era assim: o vestido Três Marias, janela e Lucia”. E ela só deixa de ser Lucia quando ela conhece o marido e ela fala assim pra mim: “Aí eu decidi casar como Adélia, porque achei que ia dar muito trabalho casar como Lucia”. E eu fui, assim, olhando pra cara daquela mulher, foi me dando um negócio interno que eu falei: “O que está acontecendo aqui?” Uma história de vida. E ela termina ainda me dando mais uma chave, que ela diz assim: “Mas eu estou vendo que você veio aqui ouvir histórias em São Luiz do Paraitinga, né? Não adianta se empolgar, não, viu? Porque depois que esse clarão de luz elétrica chegou, as histórias de São Luiz do Paraitinga nunca mais foram as mesmas”. Eu saí de lá transtornada. Cheguei em casa, comecei a escrever, a escrever, a escrever, falei: “Gente, ela me contou um mito, um conto, uma lenda, um conto de fadas, muito parecido com a história de Cinderela e ainda com essa chave da luz. Uma luz que, quando você entra pra ouvir uma história,parece que você tum, entra em um outro lugar, né? Um outro ambiente se faz. Pra que ela possa acontecer. E quando vem a luz elétrica, dá aquela cortada naquele ambiente da floresta mágico, mítico. O objeto que a transforma num outro ser. E depois, quando ela tira o objeto, ela consegue ver co, distância aquele objeto, como se aquilo tivesse a capacidade, a memória, e a levasse de novo a reviver”. Ela me deu muitas chaves naquele encontro. Aí eu falei: “Eu quero não é conto, eu quero contar história de vida”. E aí comecei. Mas eu não sabia ninguém que fazia isso. Era uma ideia que bateu na minha cabeça. Eu não conhecia nada sobre isso. A não ser que eu abri meu ouvido pra começar a ouvir histórias das pessoas. Eu ouvia tudo, tudo. Qualquer pessoa que passava na minha frente eu queria ouvir o que ela tinha pra me contar. E comecei a anotar no caderninho. Desde criança que me dizia frases que me interessavam, a olhares que me interessavam. Comecei a viver isso. E, bem de mansinho, eu comecei a apresentar essas histórias. Eu escrevi a história da Dona Adélia que chama-se O Vestido Três Marias e comecei a encenar essa história no sarauzinho, entre os amigos, essas coisas, né? Onde tinha oportunidade, tal. E as pessoas começaram a falar: “Nossa! O que você está fazendo?” Brilhou, assim, sabe? Porque estava muito no meu coração aquilo. Falei: “Estou contando histórias de vida. Agora eu sou contadora de história de vida. Inventei essa profissão. É isso que eu sou”. Só que a coisa começou a ficar muito grande dentro de mim, a paixão. E aí eu falei para o Henrique: “Eu vou ter que sair da Truques, porque eu vou ter que terminar a minha faculdade, que eu não terminei, em Curitiba, porque eu quero escrever o mestrado sobre isso e eu não tenho nem a faculdade. Então, eu vou ter que voltar pra casa da minha mãe, pra poder fazer uma faculdade, porque eu não tenho condições de pagar tudo isso e a Truques viaja muito e eu preciso estudar” e aí ele e a Verônica, super me abençoaram o caminho, me deram milhares de presentes, assim, pra que eu pudesse ir. A Verônica me deu, na época, tipo um Ipodzinho, era bem pequenininho, um gravador...
P/1 – Deixa eu me localizar: em 90 você estava...
R – Ixi, agora a gente já está em 2000. 99, 2000. Não. Porque eu voltei pra faculdade em 2007, por aí. 2005. 2006. Por aí. Aí eu meti mais uma coisa na minha cabeça: que não era qualquer curso que eu queria fazer. Eu queria fazer Comunicação das Artes do Corpo na PUC. Que lançou esse curso, ele era o máximo! Pensamento de Deleuze com astrofísica. Era uma coisa incrível! Os professores que criaram os cursos estavam dando aula naquela época e então eles estavam, assim, muito apaixonados por aquilo e eu falei: “Eu quero fazer esse curso”, que era um curso que começava ao meio dia e pouco, uma hora e ia até as seis da tarde. Enfim, quem trabalha? Eu não conseguia trabalhar, não conseguia fazer nada. Então, eu precisava de uma bolsa. Aí eu fui lá, o que eu saí com dinheiro da Truques, eu consegui pagar a primeira mensalidade. Falei: “Eu vou pagar a primeira mensalidade e eu vou conseguir uma bolsa”. Tá, só que eu não tinha nenhum perfil pra conseguir uma bolsa. Porque eu não tinha feito o Enem, não tinha nem como fazer mais, não era meu perfil, eu já tinha começado uma faculdade, enfim. Aí eu lembro que eu cheguei lá no negocinho que era de bolsa de estudo da PUC, me apresentei na fila, o cara pegou meu papel, leu tudo que eu tinha escrito, falaram dos meus pais e tal e ele falou assim pra mim: “Desculpa, mas você não vai conseguir. Você não tem a menor condição de uma bolsa na PUC”. Aí eu peguei o papel da mão dele e falei assim: “A gente vai começar de novo, tá? Eu vou te dizer mais uma vez o que eu vim fazer aqui: eu vou fazer esse curso e você vai conhecer a melhor aluna desse curso. Sou eu. Eu vou ter uma bolsa de estudo. Quem vai me dar essa bolsa é você”. Aí ele olhou pra trás e fez assim pra mim: “Espera um pouquinho”. Foi lá, pegou algum papel que eu não sei o que e falou: “Assina isso aqui”, aí eu assinei e era a minha bolsa de 50%. Ele me deu 50%. Ele falou assim: “Os outros 50% você vai conseguir pelo Fies e eu vou te dar todas de como conseguir mais o que eu não consigo e toda vez que você vier aqui, você vai vir falar direto comigo porque eu que vou assinar, até você se formar, sua bolsa de estudo”. E assim foi. Quando eu me formei fui lá, levei um presentinho pra ele, tipo ‘valeu’, levei ainda meu boletim e falei: “Pode ver, fui uma super aluna” e foi assim que eu consegui estudar e isso, pra mim, do direito do conhecimento... porque, em mim, eu senti a transformação do que o conhecimento faz com o ser humano. Então, isso bate muito, até hoje, em mim, sabe? É muito importante isso. E foi, o momento da PUC, em si, que a PUC tinha o Enem e tinha mais uma bolsa que eu não lembro qual era... Prouni. Prouni e o Enem, na época. E as cotas. Começaram a abrir, nessa época. E, no meio do curso, teve um corte enorme de bolsas e muitos amigos da periferia, negros, tiveram que sair do curso. E aquilo foi muito ruim. E, além de mexer completamente na vida da pessoa, na expectativa, nela não poder conhecer, isso era uma coisa terrível na vida de alguém. Teve mais uma coisa ruim para o curso: acabou a diversidade de pensamento do curso, porque ele fica elitizado. Nada contra as pessoas da elite. Só que se tem junto, outros tipos de pessoas, isso cria, para a arte, para o conhecimento, muito mais eficiente. E isso foi uma das coisas que deixou o curso mais pobre, pela diversidade de pessoas, né? Isso eu vi acontecer, no decorrer do curso. Nesse curso eu fiz a primeira aula com o Cassiano Sydow Quilici, que é um grande professor. Super intelectual. Terminou a primeira aula, eu fui falar com ele. Eu falei: “Cassiano, eu sou a Sandra, eu quero escrever um projeto sobre história de vida e você pode me orientar?”. Ele olhou pra mim e falou: “Posso. Eu me interesso por esse assunto. Você quer fazer uma iniciação científica? Porque você pode conseguir uma bolsa”. Eu falei: “Quero”. Tá, entregamos a iniciação científica, aceitaram a minha iniciação, comecei a escrever e a primeira coisa que eu escrevi foi Os Contos de Fadas e as Histórias de Vida, porque a Dona Adélia ainda estava muito presente na minha vida. E comecei a fazer essa associação, comecei a estudar o (prop?) e aí entrou um pouquinho da memória social nessa época, eu comecei a entender isso. E voltava da faculdade e ia pra faculdade de trem. E o trem é fantástico! Porque agora tem o celular, mas na época não tinha. E você fica - diferente de metrô e de ônibus, que tem uma saída - lá 40 minutos, 50 minutos, sentado na frente um do outro, mais próximo do que a gente está, em espaços mais próximos, parado, olhando. E aí eu entendi isso. Eu falei: “As pessoas não têm o que fazer e, por isso, elas conversam. Vou captar história de vida nesse lugar”. E aí o Cassiano começou a falar assim: “A gente vai estudar, então, uma coisa chamada As Pessoas em Estado de Entretenimento. A palavra entretenimento vem de entre momentos, estar entre. Está indo trabalhar, saindo do trabalho, essas coisas, indo estudar, mas aquele momento ela não está fazendo, ela só está indo e vindo. Então, a gente vai estudar história de vida em estados de entretenimento, que as pessoas estão mais dispostas possíveis de ouvir e de falar, né? E aí eu conheci o Tiozito, que é a segunda história de vida que faz um cataplaf na minha cabeça, que é um senhor que entra e me conta... ele era genial. É gente do nosso povo, muito disponível. Disponível pra falar, pra se comunicar. E ele tinha a poesia na boca, mas não era em rima. Ele via, tudo que ele via era poesia. Então, ele já começa a contar pra mim as coisas, fala: “Você tem os dois olhos?” Eu: “Como assim os dois olhos?” “O minúsculo e o maiúsculo?” Falei: “Não sei, como é?” Ele falou: “Eu vou te falar: o minúsculo é aquele olho bem pequenininho que a gente vê as coisas miúdas da terra: caminho de formiga, curva de rio. Sabe quando você pega uma folha de uma árvore, vira e tem um mapa? Só que eu não sei onde vai dar, vai ter que seguir. Já o olho maiúsculo é aquele olho que você olha lá pra cima e se lembra, esse céu aqui, agora, em cima da nossa cabeça, está carregado de estrela e atrás delas, minha filha, só o infinito”. Eu já fiquei olhando pra cara dele e falei: “Eu tenho que conversar com esse homem”. E ele me conta várias coisas, mas o recorte da vida dele que eu conto, que eu reescrevo, é que ele queria ser boiadeiro, como o pai dele, aí ele fica pedindo, pedindo, pra ser boiadeiro e muitas coisas acontecem, uma história meio longa, mas um dia ele estava morando no Vale do Ribeira com o pai dele, o pai dele vai entregar uma boiada ali por perto e aí ele pede pra ir junto, como de costume e ele fala que por um milagre o pai fala: “Vamos”. Aí ele fala que monta no cavalo, ele e o irmão dele, que o irmão dele chamava Armando Preto e ele já começa a fazer o grito do boiadeiro pra dar coragem e fala assim: “Minha filha, mas na verdade, mesmo, a gente não vê nada, viu, quando está guiando o boi. Sabe o que a gente vê quando guia boi?”. Falei: “Não. O que é, Zito?”. Ele fala: “É bunda de boi. Mas um mar de bundas de bois. É só o que a gente vê. Mas o que eu tentava mirar mesmo era meu pai lá na frente. Meu pai tinha um cabelinho branco, vou falar pra você: a cabeça do meu pai era a estrela do oriente. Eu mirava nela e seguia”. E aí ele vai contando que está chovendo muito, é um inverno muito chuvoso, o rio estava muito alto e chega em um momento da pequena floresta que eles estão atravessando que os bois não conseguem passar entre as árvores, que eles eram muito grandes, e aí o pai fala pra passar os bois na beira do rio, um por um. E eles já sabiam que era um assunto delicado, porque estava muito cheio de lama o barranco que beirava o rio. Eles vão passando e o destino faz que exatamente o cavalo do pai escorrega e ploooo, cai dentro do rio. E aí os meninos, os dois, na hora, se jogam dentro do rio pra salvar a vida do pai. Que era um rio de correnteza de semanas e aí ele tem uma coisa muito bonita que ele fala assim: “Eu não sei dizer como é que foi que, de repente, estava todo mundo fora da água. Quem é que tinha salvado a vida de quem?” E aí o pai sobe em um cavalo, não fala nada e continua a guiar os dois. E aí ele fica assustadíssimo, ele fala: “Estava com o corpo gelado de medo e gelado do rio e a gente segue meu pai e eu tinha certeza que meu pai ia bater na gente, porque ele estava muito bravo, fechou a cara”. E o pai vira o caminho e entra na casa de uns parentes, não vai entregar os bois, coloca os bois lá no quintal desses parentes e não fala nem bom dia, nem nada, pega no ombro dos meninos e vai levando sentido a praça pública, os dois. E aí ele diz assim: “Já sei. O pai vai bater na gente é na praça pública, pra todo mundo ver que a gente aprontou” e ele fala: “Mas meu pai passa da praça pública e entra em uma quermesse. Tinha ali um lugarzinho bem pequenininho, era uma venda, entra na venda e fala assim para o dono da venda: “O senhor me manda aqui duas calças longas, do tamanho desses atrevidos. A partir de hoje vocês dois são homens e homem que é homem, na minha família, não fica andando com canela à mostra”. E aí ele ganha a primeira calça longa. Aí ele começa a me contar que depois que ele ganhou a calça longa, ele conhece a primeira namorada que ele fez mulher e aí eu ouço: “Tum tum, estação Brás, desembarque pelo lado esquerdo do trem” e eu tinha que descer porque na época eu fazia uma baldeação ali pra ir pra Barra Funda e ir pra PUC e ele ia continuar até a Luz. E aí eu desci sem nem me despedir direito dele, fiquei com aquela sensação, assim, passou um senhor do meu lado e falou assim: “Gostei de ver a atenção que você deu para o moço ali dentro do trem”. Eu falei: “Moço, que atenção que eu dei? Esse homem me presenteou com um monte de poesia, que eu não sei nem o que fazer com isso”. E aí ele saiu de perto de mim e eu falei: “Tudo bem, está tudo certo”. Eu tinha que descer no Brás, tinha que trabalhar e, depois de tanta poesia, o destino do seu Tiozito, com certeza, era a estação da Luz. E essa foi a segunda história de vida mais completa, né, que eu escrevi. E aí eu entreguei, eu comecei a fazer a iniciação científica, nessa época que eu estava na iniciação científica, eu ouço dizer que existe um lugar chamado Museu da Pessoa. E eu falei: “Não é possível que existe um lugar chamado Museu da Pessoa. Como existe um lugar como esse?”. E aí eu vim aqui, conheci o Museu e conheci a Sônia. E fui falar com ela. Falei: “Como existe um lugar que chama Museu da Pessoa? Eu não estou acreditando nisso, é muita beleza”. E ela falou: “O que você faz?” Aí eu falei, era a minha profissão que eu tinha inventado: “Eu conto história de vida”. Ela falou: “Como existe alguém que conta história de vida? Olha, vai ter um evento daqui um tempo que vai ser o Dia Mundial da História de vida. Você não quer vir aqui contar umas histórias pra gente?” Eu falei: “Claro que eu quero!” e aí eu falei: “Gente, eu vou contar uma história no Museu da Pessoa”. Foi aquela coisa, assim. E aí eu contei a história da Dona Adélia, que eu falei: “Acho que que é bonito contar a primeira história de vida aqui” e aí aconteceu um encontro, eu falei: “Gente, eu nunca mais quero deixar esse lugar na minha vida! Eu presto serviço voluntário, o que for, eu preciso estar com essas pessoas que fazem isso”. Eu fiquei muito apaixonada! Comecei a ler tudo, comprei todos os livros editados pelo Museu, Memória Social, tudo que tinha, comecei a investigar e cheguei: “Cassiano, você acredita, existe esse lugar”. Ele falou: “Inclui na nossa bibliografia, vamos estudar tudo que tem, possível, no Museu da Pessoa”. E aí teve um outro evento, logo um pouco adiante, que até eu trouxe o livro aqui, que foi esse daqui e aí eu conheci, entre muitas histórias de mulheres, esse livro tem histórias lindíssimas, de muita resistência e o mais bonito é que ele tem muita resistência poética, né? São mulheres resistindo e resistindo na poesia da vida, né? Encontrando maneiras de abordar a vida de outras maneiras. E resistindo com o masculino, né? Que tem muita história falando disso, de como era com a família, com os homens. E aí eu conheci esse ser, que é a Vanete, na época, que já nos deixou nessa jornada, já está pra outra e aí a Sônia me disse: “Por que você não conta a história dela?” Provocadora. E eu falei: “Adoro provocação, Sônia, vou contar” e contei a história dela. E essa história é muito linda, assim. Eu me recordo desse momento em que a estratégia dela conseguir chamar as outras mulheres do campo, que ela monta uma rádio e começa a dizer, na rádio, o nome das outras pessoas, porque elas tinham muita vergonha, as mulheres do campo, elas nem conseguiam falar direito. Aí a Vanete fala no rádio: “E hoje eu queria agradecer a fulana de tal, que amanhã virá na nossa reunião: ‘Muito obrigada, fulana’”. E aí a fulana se sentia: “Opa, falaram meu nome na rádio” e vai na reunião. Então, essa estratégia maravilhosa, ficcional, que a vida vai entrecruzando a realidade com a ficção e utilizando a poesia pra chamar a realidade, pra se transformar, isso, pra mim, é muito lindo, faz parte do meu trabalho também de fazer isso e me liguei muito na Vanete nesse quesito. Aí eu cheguei aqui, a Vanete ficou, mas muito emocionada. Ela olhava pra mim, pegava no meu corpo e falava assim: “Menina, mas as contadoras de história são velhas e gordas. Como você não é velha e gorda e você é uma contadora de história?” E aí ela me fez isso daqui: “Para Sandra:
É muito lindo escutar histórias contadas por você, jovem e linda. (risos)
Beijos da Vanete”
A Sônia foi muito parceira, porque ela conseguiu captar também esse meu coração, né, eu tinha esse sonho e esse desejo. E aí ela começou a me chamar. Ela falou: “Sandra, vai ter outros eventos” e aí eu me lembro do evento onde a gente se conheceu, que foi a gente mais se conheceu, mais se conectou, foi no Sesc, Memórias do Comércio, do Sesc de Campinas.
P/1 - _______educativo?
R – Foi um educativo, será? Não lembro. Eu acho que foi Memórias do Comércio, que aí você falou pra mim: “Esse é um trabalho que tem a qualidade de ser apresentado em um Sesc”. Aí eu senti assim e falei: “Acho que a gente tem chão pra caminhar junto aqui ainda”. E logo veio o convite pra fazer o Memórias dos Brasileiros lá para o lado do Pará. E aquela foi uma viagem que eu estava realizando um sonho. O Museu foi antes, já tinha acontecido o ano inteiro e então eu só fui pra finalização. A Sônia, todo o pessoal foi antes, não lembro quem estava de formador, na época. Ah, estava a Márcia, a Marcinha, a Márcia Trevi. E aí eu fui me encontrar com eles lá, porque elas já estavam lá arrumando as coisas do Museu, eu viajei sozinha, parei em Santarém pra dormir a primeira noite e depois, no outro dia, ia pegar o barco, quatro horas barco, já era uma coisa que eu nunca passei na minha vida, me botaram em um hotel, à noite, cheguei no hotel e não sabia onde eu estava e eu adoro essa sensação de dormir em um lugar que eu não sei onde eu estou, porque quando amanhece, você: “Nossa, é aqui que eu dormi, né?” E aí eu abri a janela, de manhã, pra ver onde eu estava. Quando eu abri a janela, eu vi o rio Santarém na minha frente. Aquela imensidão. Falei: “fuuuuuuul. Sei lá, cara, mas isso aqui deve ser Deus”. E eu comecei a chorar de emoção de estar na frente de tanto rio, de chegar em um lugar que era como se eu reconhecesse em mim aquela cultura, aquele rio, mas ainda não tinha conhecimento daquilo. E o mais mágico ainda é que eu já conhecia as pessoas daquele lugar, porque eu já tinha recebido as histórias de vida deles, das pessoas, já tinha estudado e eu ia conta-las. Então, eu já conhecia aquele lugar. Mas pelas histórias das pessoas. Bastava eu ver a materialização daquilo que eu tinha criado na minha ficção interna. E aí toda a viagem, eu lembro que a gente pegou um barco muito louco. Você lembra daquele barco que era tipo uma lancha, que parecia que estava pegando um pássaro marrom? Fechado, com o ar condicionado altésimo, com uma tela enorme, passando Ivete Sangalo e todas as pessoas dentro assistindo em quatro horas de viagem e a Amazônia do meu lado. Eu falei: “Não é possível”. Aí tinha um pedaço muito pequenininho dos fumantes. Que só eram os homens que ficavam lá fora fumando. Eu falei: “Mas é aqui que eu vou passar essa viagem”. Aí os homens fumando, puxando papo e eu só olhando pra aquele rio, assim. Fiquei quatro horas fascinada por aquela viagem, olhando aquelas águas, assim, até tirei uma foto. Toda aquela água passando e eu, assim, nervosa, porque eu estava indo ao encontro das pessoas que eu já sabia quem era. E aí foi uma apresentação muito engraçada. Primeiro que foi uma situação engraçada que aconteceu, que eu estava em um hotelzinho lá, aí passou um volante, que é um carro que anuncia as coisas que vão acontecer na cidade no dia seguinte. Aí o volante dizia assim: “Amanhã grande apresentação do Museu da Pessoa na praça pública, com a atriz Sandra Lessa e, no domingo, não percam, a Mulher Melancia”. Aí eu olhei: “Sonia, vamos ter que diminuir o figurino porque comparar com a Mulher Melancia, não vai dar certo, né?” (risos) Essa comparação virou piada. Aí eu fui fazer a apresentação. E eram histórias lindíssimas, mas teve uma figura em especial, que é Pedro Marturano, contador de história, porque contador de história é bom de rio, pescador é melhor e do rio Amazonas é melhor ainda. Ele não consegue fazer outra coisa, a não ser contar história. Ele conta história em tudo. Tudo, tudo é história. E a história da vida dele é maravilhosa. E aí eu comecei a contar as histórias de vida dele e ele ficava assim: “Como ela sabe? Como ela sabe de mim? Mas como ela sabe?”. Ele batia na Sônia: “Quem contou isso pra ela? Como ela pode saber tanta história?” E aí, quando terminou, ele estava assim achando que eu era uma espécie de mágica: “De onde ela tirou tanta informação?” E aí ele sentou do meu lado e pôs a fazer competição: “Eu duvido que você sabe mais história do que eu sei”. Eu falei: “Então me conta uma”. Aí ele pá, contava, contava, contava e ele começou a contar muitas histórias. Aí ele falou assim pra mim: “Mas você sabe, eu não contei, que eu tenho duas profissões?” Eu falei: “Não”. “Sou pescador, mas eu também trabalho em eventos aqui na cidade”. Eu falei: “Que tipo de evento?” “Velório”. Eu falei: “Como assim velório?” “Toda vez que alguém morre, eles me contratam pra trabalhar no velório. O que eu faço? Conto história. No velório”. Eu falei: “Sério?”. Ele falou assim: “Aí tem a estratégia. Vou te contar a estratégia, porque você não mora comigo, então você não vai competir comigo. Só pra você eu posso contar a estratégia. A estratégia é assim: quando dá dez horas da noite eu conto uma história. Uma história boa, tal, interessante. Aí, quando chega lá 11 horas da noite, começa a dar aquele soninho no pessoal, eu conto uma história um pouco mais interessante. Aí, quando dá meia noite, eu deixo uma bem interessante. A hora que o café começa a acabar, às três da manhã, eu conto uma bem picante. Aí todo mundo fica acordado. Aí ele falou assim pra mim: “E você sabe que esses dias teve um velório, eu contei uma tão boa, menina, mas aquela é boa, viu? Não vou te contar agora, não. Mas aquela é boa demais. Eu estava bem do lado do morto, comecei a contar a história e todo mundo começou a rir. Aí eu olhei assim pro lado, não é que o morto também estava dando uma risadinha?”. Falei: “Genial” (risos). Era muito maravilhoso. E aquela situação, assim: tinha uma mesa com coxinha, refrigerante, aquela cara de solenidade dos interiores e ele, ali, quebrando todos os protocolos, com as suas histórias incríveis. Essa foi uma viagem muito importante pra mim, com o Museu da Pessoa. (risos) Depois tiveram outras incríveis. Apiaí também foi uma viagem muito linda. Na época eu tinha a Tania como parceira de narração de história, que era sanfoneira e ela fez bastante comigo também, foi uma parceira super legal nesse trajeto.
P/2 – Nesse processo eu queria que você contasse um pouco como foi a sua trajetória do ouvir. Como você ouvia a história de vida e, à medida que você foi aprofundando, o que foi desenvolvendo, o que foi mudando?
R – Eu quero só dizer uma coisa, antes de responder a pergunta sobre o ouvir, que eu sinto exatamente isso: toda vez que eu termino de contar a história de vida e, com esse processo de contar para a pessoa, que isso é muito específico. A pessoa ouvir a própria história ressignificada poeticamente, eu sinto que valeu. Se parar aqui, a minha encarnação está paga. Só por isso vale tudo. Eu tenho muita gratidão. Toda vez que eu saio, eu saio falando pra todos os anjos, Deus, seja lá quem for que me trouxe à Terra, muito obrigada. Eu peço só que aconteça mais vezes, porque essa é uma das coisas que me move na vida: a gratidão da bênção, mesmo, que são esses encontros. Ouvir é o que eu estudo. Ouvir, pra mim, essa palavra tem muitos significados, mas eu vou tentar dizê-la no sentido mais limpo, que é a cura. Eu sinto uma cura imensa no saber ouvir. Exatamente eu ia contar que quando eu terminei a minha faculdade, eu propus ao Cassiano que a gente fizesse um mestrado e ele me levou pra Unicamp, pra fazer esse mestrado. E aí é muito comum, como contadora de histórias, que você leia o texto O Narrador do Walter Benjamin e ele começa o texto dizendo: “Nós estamos carentes de contadores de histórias”. Quando eu li aquilo, eu falei: “Senhor Benjamin, eu amo a sua obra, mas o senhor está errado. Nós estamos carentes de ouvidores de histórias. Tem muitos contadores de histórias”. E eu falei: “Eu vou escrever sobre isso, sobre ouvir”. Inclusive, pra poder ressignificar, o meu mestrado leva uma frase dele, ele mesmo disse: “O narrador está em quem ouve”. E passei a criar uma dilatação de escuta e meios de poder escutar. Um: socialmente nós não estamos acostumados a escutar. A gente não é motivado, ensinado, estimulado a escutar. A gente é muito estimulado a dizer, a falar de si, né? Tem uma frase de uma das crianças que respondem aquele dicionário Casa de Estrelas, sabe? Do Jorge Navarro. Não é Jorge. É Narvajo, com certeza. Casa de Estrelas. Que ele vai perguntando pra várias pessoas o que é o universo e ele pergunta o que é um adulto. E aí uma criança responde: “Adulto é aquele ser que, antes de falar de qualquer coisa, fala de si primeiro”. Eu acho isso muito, mesmo, que a gente vai se tornando. E claro que a minha escuta é voltada para arte. Porque também é meu ambiente de estudo, foi por ali que eu fui ouvir. Então, eu já faço um estudo, quando eu entro em estado de escuta, eu tento ficar em estado de dilatação. Estado performático artístico. Fico tentando ouvir com todos os sentidos. Ouvir com meu coração, ouvir com meu cabelo, ouvir com os meus olhos, ouvir tudo que o outro tem pra me dizer. E vou tentando encontrar lugares em que o outro demonstra pra mim que ele se emocionou ou que é tocante pra ele ou porque é uma coisa que é significativa pra ele. E quando ele me diz alguma coisa que é significativa, eu tento reforçar, demonstro um interesse sobre aquilo que ele me disse, pra ver se ele me diz um pouco mais sobre aquilo e ele vai abrindo, abrindo, abrindo, abrindo e eu tento ficar falando o menos que eu posso. É até esquisito eu falar tanto hoje. (risos) Porque, em geral, quando eu falo sobre isso ou quando eu adentro o lugar da escuta da história de vida, é muito mais o ouvir. E aí eu fui criando - nem dá pra dizer de metodologia - mas uma maneira minha de ouvir o outro. Então, primeiro que é como eu me atrelo com o desconhecido. Eu saio na rua às vezes – na época do mestrado eu fazia muito esse estudo performático – e vou me encontrar com alguém que vai me contar uma história de vida e então, o que eu saio? Com nada? Com um guarda-chuva? Com um dinheiro pra tomar um café? Venho criando algumas estratégias que pudessem fazer com que o outro se interessasse em me ouvir. Alguma coisa tem em mim que as pessoas param pra contar as suas histórias de vida do nada. Eu não sei exatamente o quê. Acho que já vem escrito na nossa cara: “Ouço história de vida”, né? É incrível. Às vezes eu estou no banheiro, lavando a mão, alguém fala: “Nossa, sabe que meu marido hoje brigou comigo?” e começa a me contar. Eu só sorrio. A pessoa foi embora e já me deixou uma história. Acho que porque eu tenho um sincero interesse pelo outro. E talvez seja daí. Eu acho que isso muda a nossa qualidade de olhar, até. Você olha pra pessoa, já, de outra maneira, né? Sem julgamento. O julgamento destrói tudo, né? Você já está vendo coisas que, na verdade, não estão ali. Então, criar encontro é a primeira instância de poder ouvir. Quando um encontro é criado, eu sinto que um olhar e um sorriso generoso auxilia com que ele tenha uma pequena confiança em mim, pra poder falar: “Me interessei”. E aí começa um diálogo. Eu chamo de maneira dialogal, porque eu não tenho um começo, meio e fim, né? Eu vou brincando com aquilo que eu sinto: “Opa, aqui pegou, vamos parar por aqui”. Aí dilato aquilo e começa a dar um cron, cron, croquinho ali naquele momento. Na época do trem, por exemplo, tinha um senhor do meu lado, um homem que estava totalmente desestimulado, não queria falar de nada, eu falei: “Nossa, acho que não vai sair nenhuma história”. Tentei puxar daqui, puxar dali. Aí, daqui a pouco, ele falou assim: “No final de semana eu ando de moto”. Aí percebi que uma sobrancelha levantou diferente. Falei: “É a moto”. Aí, dali, comecei a puxar e ele começou a contar de como ele se sentia extremamente livre de pegar a Ayrton Sena. Ele faz isso de final de semana. Não sei se ainda faz. Mas a diversão dele é essa: chega sábado de manhã, ele pega a moto e roda a Ayrton Sena inteira, vai e volta, vai e volta, vai e volta, vai e volta. Ali estava a vida dele, na Ayrton Sena, de moto, vindo e voltando. Então, isso foi uma coisa que foi me abrindo. E os objetos, assim, quando a pessoa tem alguma coisinha, sabe, aquele negocinho ali, aquele objeto afetivo, que conta uma história e que ali abre toda uma situação. Agora, recentemente, estou fazendo parte de um projeto chamado Projeto Palco, a gente vai contar as memórias do Jaguaré. É inter geracional, então tem jovens, idosos. E uma senhora levou... eu falei pra levar coisas que elas gostavam, antigas e ela levou um lenço que era da avó dela, que morreu quando ela tinha 13 anos e a senhora tem 73 anos. E ela contou do lenço que a avó, quando deixou pra ela, ela herdou, tinha uma reza que eles faziam lá no nordeste, pra dizer quando a gente morre. E a avó fez a reza quando acordou e o anjo disse: “Você vai morrer hoje”. E ela falou: “Vou morrer hoje e eu preciso limpar a casa antes de eu morrer. Você vai me ajudar”. E ela falou: “Não, vó, a gente não vai morrer”. Ela falou: “Filha, eu vou morrer hoje. Você vai me ajudar a limpar a casa, porque eu quero morrer limpa”. E começou a fazer a faxina, faxina, faxina. Ela olhava pra cara da vó e via que a vó estava meio perturbada: “Vó, está aqui o sabão, vó” e a vó ia e voltava, aquela situação e naquela noite ela pôs a vela na mão da avó. Ela chamava de vó mãe. Então, o lenço era tesouro pra ela, assim como esse livro da minha vó é um tesouro pra mim. Essa é uma outra maneira, assim, que eu gosto muito de ouvir as histórias de vida. E aí resultou nesse trabalho junto com o Cassiano que, quando a gente foi no dia da minha... aconteceu uma coisa muito bonita também comigo, que essa paixão e o conhecimento, assim, pra mim é um pouco mágico, porque quando eu olho pra minha vida, assim: eu vim de Suzano, com um estudo terrível, sem muito estímulo de arte... parece que a vida foi me mostrando, eu acho que porque eu nasci da loteria, eu tive muita sorte. Então, eu sempre tive muita sorte nos encontros, sempre fui muito protegida, eu nunca passei efetivamente um perigo, até porque eu olho para o perigo bem de frente. E aí chegou um momento que eu estava no mestrado e estava quase terminando o mestrado e alguém me disse assim, a Carol, uma grande amiga, me disse: “Você está estudando quem?” Eu falei: “Eu estou estudando ___________ protocol, que é um trabalho que eles fazem com história de vida. Eles trabalham com história de vida. É um coletivo alemão que eles não trabalham com atores, eles só trabalham com os próprios narradores. Então, tem porteiro que faz o espetáculo, as costureiras, os donos da empresa. Eu fiquei um tempo estudando-os, escrevendo sobre eles. E usei o Lume, que é da Unicamp e trabalha com outro aspecto, que é o mímesi corpóreo. Você colocar dentro do teu corpo o outro. Aí eles falaram assim pra mim, a Carol falou: “Por que você não vai lá fazer um curso com eles fora do país?” Na hora eu fiz assim: “Será que eu posso fazer? Será que dá?” Aí eu bati lá na Unicamp e falei: “Se tiver um curso...”. Eles falaram: “Você está fazendo mestrado, a Unicamp pode te pagar”. Em duas semanas eu organizei uma ida para a Bélgica, com tudo pago, pela Unicamp e parte pelo governo. E aí, meu pai, né: “Minha filha vai pra Europa sozinha, pela primeira vez, ganhou uma bolsa”. Eu tinha uma bolsa da Fapesp, que eu consegui também. Então, tudo isso era novidade. Meu pai e minha mãe nem sabiam o que era Fapesp. Nem eu sabia o que era Fapesp. Foi meio que descobri sozinha, na minha vida. E aí eu fui terminar, fazer a minha última parte do mestrado lá, fazer um curso com (Stephan Cage?). Ele é esse artista que criou o _______protocol, um trabalho incrível que eles fazem, muito político, muito humano. É lindo. E ele fala português. Então, eu me comuniquei com ele tudo por português. Meu inglês é péssimo. Tive um nada de inglês. Eu não queria estudar inglês, não queria aprender inglês, porque eu era uma adolescente rebelde que achava que os Estados Unidos estavam vindo tomar conta do Brasil e inglês não era uma língua universal. E não vou falar inglês nunca. Isso resulta que, quando eu cheguei lá, eu não sabia falar inglês, cheguei no curso, primeira aula, ele vira pra mim e fala assim: “Então, Sandra, vai ser tudo em inglês. Tudo bem pra você, né?” Aí eu falei pra ele: “Não. Eu não falo inglês”. Ele olhou assim pra mim: “Como você não me disse antes? Se você falasse pra mim que você não fala inglês, eu ia dizer que você não podia fazer esse curso”. E eu falei: “E você acha que eu não falei por quê? Porque você ia fazer isso. E eu estou aqui. Espera, eu vou dizer uma coisa pra você: eu sou brasileira, eu vou fazer um super curso com você, eu vou dar um jeito, vou arranjar uma estratégia e você vai me aplaudir no final”. Eu sou ousada, né? Eu sou neta de Dona Quininha. Ele ficou assim olhando pra minha cara, super desconfiado, alemãozão, assim, nem riu. Ok, fizemos o curso e era um papo muito louco, eles fizeram um espetáculo muito louco depois com isso, eles estavam experimentando uma técnica de contar história de vida que era assim: eu tenho um celular, cada um tem um celular e eu conto quem eu sou através de uma gravação, eu me gravo, gravo parte do meu corpo, gravo os meus objetos, vou contando quem eu sou para um áudio, então: “Eu sou a Sandra” e a pergunta era: as armas no meu país. E eu contei a história do ataque do PCC em São Paulo, que isso resultou na polícia. Eu contei, falei um pouco do Carandiru e fui contando quem eu era. Enquanto estou fazendo isso, gravando a minha cena, você está gravando a sua história de vida, a carinha dela. Assim estamos todos nós. Cinco minutos, uma pequena cena desenhada no chão. Gravando, todo mundo grava. Terminou, pá, está gravado. Deixa o celular na mesa com a gravação, põe o fone de ouvido, cada um de nós e trocamos os celulares. E você entra no meu lugar e vai saber quem eu sou através daquilo que eu estou te contando no seu ouvido e das pistas que eu te deixei através da gravação. Então, você vai copiando todos os movimentos que o celular estava gravado. Complicadíssimo fazer isso. A ideia é ótima, mas pra descobrir como faz isso era super complicado. Mas aí, como eu era brasileira e não entendia inglês, eu comecei a colocar pistas pras pessoas entenderem o que eu queria que elas fizessem. Tipo: BR, siga essa seta. Comecei a fazer desenhos, imprimir coisas que, no fim, só por isso, deu certo porque, se fosse só na palavra, não tinha imagem suficiente pra pessoa. Chegou no final do curso, ele falou: “Você tinha razão. Você resolveu a parada. No final de tudo, você resolveu uma história”. Eu falei: “Está vendo? Eu falei pra você que ia resolver”. E aí foi uma viagem maravilhosa: pôr o pé na Europa, aquilo tudo. Aí aconteceram algumas coisas engraçadas no meio do caminho. Uma delas, está vendo, é minha sina e eu fui parar... o governo não pagou, pra mim, na época certa o dinheiro, então eu fui com o cartão de crédito da minha mãe emprestado, porque o governo, depois, ia pagar. Enfim, aí eu não pude ficar em um hotel, fiquei em um hostel na Bélgica, em Bruxelas, junto com uma pá de jovens bêbados, todos bêbados, o tempo todo. O que o jovem vai fazer na Bélgica? Beber. Lá tem cerveja pra caramba. Então, eles ficavam bêbados das seis da manhã às seis da manhã. E eu querendo estudar. Então, eu queria matar todos os jovens bêbados pra pagar o carma da minha juventude. Nossa Senhora! Sinceramente, teve um dia que eu tive que ajudar a menina. Pra tomar banho eu tive que passar por uma menina que estava completamente em coma, jogada no banheiro. Tive que ir lá chamar a dona do hotel e falar: “Olha”. Enfim, chegou um dia que eu falei: “Eu não aguento mais os jovens. Eu vou pra biblioteca estudar. Vou acordar cedo e vou pra biblioteca. Aí acordei, fui pra biblioteca, olhei pra um lado, olhei pro outro, tudo fechado. Tudo bem, daqui a pouquinho, sete da manhã, oito da manhã, tudo fechado, dez da manhã, tudo fechado. Era um dia de semana. Falei: “O que está acontecendo aqui?”. Uma sensação muito louca, porque eu não sabia de nada. Não tinha ninguém e tudo fechado. Daqui a pouco começam a aparecer umas pessoas com uns uniformes bem engraçados. Eu falei: “Onde elas estão indo?” Aí eu vi todo mundo entrando na igreja. Falei: “Ahh, feriado santo!”. Era feriado em Bruxelas, de algum dia santo. Falei: “Bom, a biblioteca não vai abrir, vou arranjar um café e vou ficar no café estudando, até a hora do curso”. Eu estava bem assim: não quero demonstrar que eu sou turista porque uma mulher sozinha na Europa que não fala... não tinha ninguém, só eu. Só que eu vi um passarinho pousando em um lugar lindo e falei: “Ah, que lindo!”. No feriado. Tirei a máquina pra tirar uma foto. Na hora que eu fiz isso me sacaram que eu era turista e um cara que estava lá tipo tentando pegar umas moedas no caminhão, pra fazer alguma coisa, começa a correr atrás de mim. E aí ele começa a correr assim: “Mademoiselle, mademoiselle” e no maior pau pra chegar até a mim. Eu falei: “Gente, eu não acredito que esse cara vai querer falar comigo, encher o saco, assaltar, pegar a câmera, um dinheiro, qualquer coisa assim”, mas o fato dele estar correndo atrás de mim pra qualquer uma dessas questões, me chamando de mademoiselle, eu não sabia se eu ria, porque um assaltante me chamou de mademoiselle, ou se eu fugia. Enfim, ele começou a me seguir, me seguir, aí eu virei numa rua e tinha um casalzinho de velhinhos que só falava holandês, um de mão dada com o outro e aí não tive dúvida: agarrei no velhinho e comecei a andar com ele. Ele começou a puxar meu braço, eu comecei a puxar o braço dele assim, a velhinha começou a olhar pra situação, o que está acontecendo? Aí o cara viu que eu estava acompanhada com o casal e foi embora, aí eu falei: “Perdão, perdão, perdão”. Fico imaginando o que passa na cabeça até hoje, desse casal, que não imagina bulhufas do que aconteceu. E, nessa viagem, aconteceu uma coisa interessante, que foi a última vez que eu tive algum problema com homem, de verdade, assim, nesse lugar que eu tinha na adolescência. Então, eu sinto que ela foi fechando algumas coisas da minha juventude, assim: essa coisa da bebida, que eu olhei pra aquilo totalmente por um outro foco da minha vida e aí chegou o último dia e eu fui conhecer Paris, fazer uma pequena viagem e estava em êxtase. Voltei pra Bruxelas e falei: “Eu não quero ficar mais em hostel, chega de hostel. Vou pegar um hotel, mesmo que seja muito baratinho, porque eu não aguento mais jovem bêbado”. Peguei um hotel por internet, cheguei no hotel com táxi. Cheguei lá, só tinha homem no hotel. Daí, tudo bem. O hotel era meio estranho, mas não tinha como sair dali mais, porque era meia noite, eu tinha fechado pela internet, era meu último dia, era a última noite. Ia voltar para o Brasil. Aí dormi, o quarto cheirando cigarro superforte, assim, um negócio meio estranho, uma energia densa, um cheiro forte, ok. Desci pra tomar o café da manhã e aí o cara que estava lá, que era o gerente do espaço, falava espanhol comigo, um grandão, assim. Ele veio servir o café da manhã. Na hora que ele veio servir, entrou um homem e, na hora que entrou o homem, ele fez assim: uuuuuuuuooo e serviu o homem primeiro. Aí entrou outro, ele serviu o outro homem e outro homem e ele foi servindo os homens e só tem eu de mulher nesse lugar. O que está acontecendo aqui? Aí comecei a olhar as fotos, comecei a sacar. Enfim, eu fui parar em um hotel de muçulmanos. Sozinha, eu de mulher. Aí falei: “Bom, eu vou embora daqui algumas horas. Ok. Eu vou dar uma volta, vou sair, vou passear, me despedir”. Fui pra lugares lindos, conhecer outra parte. Estava na primavera, estava linda Bruxelas. A hora que eu voltei, voltei pra tomar banho, na hora que eu saio do banho, quem está no meu quarto? O gerente. Ele vem pra cima de mim na minha cama. Eu de toalha. Falei: “Puts, agora fodeu”. Eu lembro que eu abaixei assim olhando pra minha mala e o que me passou pela cabeça é assim: “Como é que eu mato esse homem?” Foi a primeira coisa que me veio: como eu vou matar esse homem? E aí eu comecei a pedir força, assim, pra quem me protege, me ajuda. Eu levantei totalmente sem saber o que fazer, olhei nos fundos dos olhos dele e disse assim: “Você tem certeza que você vai fazer isso?”. Eu acho que eu falei com tanta força, ele deu um passo pra trás e falou: “Desculpa” e saiu do quarto. Aí eu fiz assim com as minhas malas vrummm, peguei qualquer roupa, em um segundo eu saí daquele hotel. E naquele dia eu encerrei o assunto de homens tentando fazer qualquer coisa comigo. Falei: “Está encerrada hoje essa história. Isso não vai mais acontecer comigo. Eu ando com segurança, eu olho dentro dos olhos, eu confio em mim, confio na minha força e não vai acontecer nada”. E, realmente, nunca mais aconteceu. Acho que foi uma viagem de resgate, de alguma maneira, assim e logo depois eu me formei na Unicamp.
P/1 – E agora você está fazendo o doutorado?
R – É, eu comecei a fazer o doutorado. Eu parei. Mas eu lembro do dia da banca da Unicamp, que estava o Cassiano e a banca que eu tinha escolhido e o Cassiano começou a falar do projeto: “Eu quero dizer desse projeto duas questões, porque a Sandra foi uma aluna que decidiu olhar para o outro, pra poder escrever um projeto que fale sobre a obra de arte e ela olhou para o outro sem o outro ter nenhuma qualidade específica e ela foi uma pessoa que atravessou trem, que saiu de Suzano e contou a minha história. E ele vivia me provocando pra eu contar a minha história e eu dizia: “Não, a minha história, não”. Um dia vou ligar pra ele e falar: “Cassiano, fui para o Museu da Pessoa hoje”. Meus pais estavam nesse dia e então eu lembro que esse dia foi um dos mais importantes da minha vida. Quando eu peguei meu projeto, meu diploma, eu andava na rua e falava: “Sandra Lessa, eu sei lá o que você fez, mas hoje eu estou orgulhosa de você”. Foi uma conquista muito grande pra mim, isso. E, nesse dia, a própria Fapesp, que eu tinha bolsa, tem a banca da Fapesp, a banca da Unicamp, as duas bancas me aprovaram com notas super boas e dando indicação pra uma continuidade no doutorado. Então, falei: “Beleza. Quando eu quiser entrar no doutorado, Unicamp e Fapesp, pá”. Aí eu fiquei um tempo, voltei a trabalhar em um lugar que eu já tinha trabalhado há um tempo, que é no Arte Espetáculo, um lugar onde a gente trabalha nos hospitais de São Paulo, contando histórias e é um lugar incrível. O trabalho de contar história no hospital é incrível. Primeiro que você entra assim, não tem nenhuma figura, como os Doutores da Alegria, que usam máscara do palhaço. Você entra com nada. Eu não uso nada, nada. Tem gente que leva objetos, música, qualquer coisa. Eu vou com a palavra. Acho que eu sou a única, lá, que não entra com nada. Faço esse exercício. O que eu tenho, no hospital, é a minha palavra. E aí você entra e não sabe quem você vai encontrar, como você vai encontrar, que idade ele tem, de onde vem, qual o gênero, a história que o carrega até ali, nada. Então, você entra em estado de performance. Completamente inesperado o jogo, metaestabilidade, situação, conexão e estado de presença. Se não tem isso, nem se arrisca a entrar no quarto. E é um lugar que a gente já atende no pronto-socorro da Santa Casa, no Graac, no hospital de crianças que tem aqui, o Darcy Vargas, que são crianças com doenças associadas, né? O câncer e mais alguma outra coisa. Doenças seríssimas. E agora estou trabalhando no HC, no Hospital das Clínicas, na geriatria, no transplante renal, na hemodiálise, com adultos. E é um lugar que eu amo fazer isso. E lá eu trabalho com história de vida. Lá agora eu estou fazendo um trabalho que eu convenci, depois de anos, o Arte Espetáculo fazer, que eu contei ao Jonas, que eu estou ouvindo a história das pessoas, escrevendo um livro sobre a história delas. Claro que olhando pra poesia da história e não pra fragilidade do que a levou até lá. Então, quando eu saí da faculdade, eu fui pra esse lugar, voltei lá para o Arte Espetáculo e falei: “Vou voltar para o doutorado”. Só que o Cassiano achou que ele estava muito tempo junto comigo, seria bom um outro olhar pra pesquisa. E aí eu passei, mas não tinha orientador. Aí teve uma orientadora, que é a Suzi Frankl, que estuda a memória há muito tempo, ela é bem senhora, é aposentada. Então, a relação com ela foi mais difícil. Porque ela não estava presente na universidade, eu tinha que ir na casa dela em Campinas. Era uma loucura. E aí o marido dela adoeceu, ela teve que mudar pra Bélgica e a gente não conseguia se falar. A Fapesp teve um corte de 80% e é claro que eles cortaram a área das artes, foi uma das primeiras a ser cortada, mesmo que eu tivesse uma indicação, eu não conseguia bolsa. Então eu não consegui associar a Unicamp com dinheiro. Falei: “Isso aqui está uma bagunça”. Perdi a paixão, fiquei sem foco. Sem paixão, não vai dar pra encarar um doutorado. Aí eu parei o doutorado e falei: “Vou aguardar, até bater na minha porta de novo” (risos) Já bateu algumas coisas, tipo vai fazer isso, vai fazer aquilo. Eu estou com muita vontade de estudar fora do país agora. Vamos ver se daqui uns anos – isso vai ficar gravado – quem sabe daqui uns anos eu posso verificar se deu certo isso ou não. (risos)
P/2 – Falando em fora do país, tem uma história que eu não queria deixar passar, de você contar da Frida Kahlo.
R – Olha, é verdade, Jonas. Então, teve uma época em que eu trabalhei em uma companhia chamada Estelar de teatro e que, na época, nós fizemos um espetáculo sobre a Frida, né? Era em cima da biografia da Frida Kahlo, mas falava mais do estado do criador, do artista que cria em cima de qualquer situação, da dor, como ela passou, ela enquanto mulher, artista, criadora, apaixonada e muito apaixonada pelo marido dela naquela circunstância. A gente criou esse espetáculo e o grupo conseguiu duas coisas - eu estou falando que eu tenho muita sorte – que a gente fosse fazer parte do espetáculo, um experimento do espetáculo em Berlim, junto com o Yuri (Ashman?), que é um diretor russo, que tem uma técnica específica, que os diretores da companhia estudavam. Então a gente foi lá, fez esse workshop e, na sequência, a gente foi para o México, apresentar o espetáculo em duas faculdades. A USP conseguiu isso porque a diretora e dramaturga começou a fazer o mestrado dela e a USP conseguiu que a gente fosse para uma universidade do México e depois para uma universidade de Mérida, que é uma cidade próxima ali. Quando a gente chegou lá pra apresentar o espetáculo, eles se encantaram com os brasileiros. Eles se encantam com os brasileiros. Brasileiro é um povo muito encantador. A gente estava com muito receio porque eu falei: “Gente, é uma loucura”. É como alguém do México fazer um espetáculo sobre o Pelé e mostrar pra gente. A gente vai falar: “O que você quer falar sobre o Pelé?”. Um mexicano, né? E a Frida lá não é um personagem histórico, antigo. A Frida está em todos os lugares. Qualquer boteco tem uma obra ou uma foto da Frida Kahlo. Só que eles entenderam que era uma homenagem brasileira à Frida, porque a gente colocou até maracatu dentro. Mais o lado artístico, mesmo. E aí, na primeira apresentação, eles adoraram e eu fiz uma cena que a gente terminava com isso e eu criei uma cena assim: a Frida só começa, definitivamente, ser uma artista por causa do acidente que ela teve, né? Que era um acidente em que, tal qual ela, ficção e realidade se misturam naquela obra de vida, vida/obra, ela estava com o namorado dela e, na hora do acidente, no bonde, um bonde que encontra com um ônibus, passa um ferro dentro do corpo dela, ela é atravessada por dentro, ela fica completamente nua naquele acidente, fica assim e alguém, algum artista na época, que fazia aqueles murais, era aquela época muralista do México, estava levando um pó de ouro para fazer algum mural. E esse pó de ouro cai em cima dela. Então, ela fica completamente ensanguentada, nua e cheia de ouro. E aí, as pessoas, quando foram socorrer, gritavam: “Salvem a bailarina, salvem a bailarina” e ela fica conhecida por bailarina, né, que era um estado artístico. E no hospital, ela que ia ser médica, estava começando a estudar pra ser médica, percebe que a vida dela ali, naquele estado corporal, seria uma artista. Então, a gente termina o espetáculo, eu fiz uma cena em que eu ficava nua, como ela e derramava um pouco de sangue e a gente fazia um samba, porque também tinha uma coisa brasileira e eu tomava um banho de purpurina, fazendo uma associação à celebração carnavalesca e ao nascimento da artista com pó de ouro, né? Aí a gente fez a primeira apresentação e aí uma pessoa foi ver e falou: “Vou levar vocês pra casa da Frida Kahlo, vou conseguir uma apresentação pra vocês dentro da casa dela, no Museu Frida Kahlo, na Casa Azul”. E aí a gente conseguiu e a gente foi fazer o espetáculo lá e, claro que quando eles viram, a quantidade de purpurina, a gente vai detonar o quintal da casa dela, porque a casa dela é o Museu e eu lembro de estar fazendo, jogando e fazendo aquilo, parecia que eu via vultos, eu via uns seres, passando umas mulheres com uns vestidos grandes, assim, era uma coisa muito louca. Aí, quando terminou assim, eu toda dourada, nua, na casa dela, eu fui tomar banho na casa dela. Tinha que tomar banho lá, tem que tomar banho, né? Aí eu tomei banho, me deu uma catarse de emoção, aquela água correndo, eu fiquei quietinha um tempo, só sentindo aquela água e chorando, chorando, chorando, agradecendo aquela força daquela mulher incrível atravessando. Parecia que eu estava sendo atravessada pelo atropelamento dela, aquele cano passando por mim, assim, naquele momento. Foi um momento lindíssimo. Esse espetáculo da Frida me deu alguns presentes. Esse, conhecer o México, fiquei completamente apaixonada. E um momento que a gente foi para o Chile fazer uma apresentação (risos) em um lugar aberto, com crianças, velhinhos, cachorros, uma coisa maluca. As crianças correndo, brincando, cachorro passando e uma hora eu ia tirar a roupa, né, porque era o final do espetáculo. Aí, na hora que eu tirei a roupa, todas as crianças que não estavam nem aí com o espetáculo, vruac: “Mira las tetas, mira lo culo”. Começaram, viraram fã, eles brincam. Ali eu poderia ser ‘la reina dos baixinhos’. Aí, quando terminou o espetáculo, tal, aquela tiração de sarro, vieram dois velhinhos, um casal de velhinhos: “Você que é a Sandra, né? Então, você vai tomar banho na nossa casa, tá? Porque não tem banheiro aqui”. Aí saiu eu nua, de dourado, pelas ruas do Chile, uma vilinha desse tamanho, entrando na casa dos parentes de não sei quem: “Oi, boa noite! Eu vim tomar banho”. (risos) Coisas assim da arte. Essa coisa do artista, que vai em qualquer lugar. Vai abrindo os caminhos, assim e marcando a nossa existência. O teatro é uma paixão maravilhosa na minha vida.
P/1 – Sandra, eu queria fazer uma pergunta de fechar um ciclo, ficou uma frase muito interessante na minha cabeça quando você começou a história, falando que tinha uma voz te dizendo: “Bom, agora você vai começar”. Você, hoje, olhando e até contando sua história, hoje, agora, e você várias vezes fala: “Eu reencaixei, eu redescobri”. Então, eu queria que você olhasse a sua história e, pensando, me dissesse qual a sua sensação da vida anterior, se teve, que tipos de reencontros você sentiu que teve ao longo da sua vida, né? Ou se você tem uma leitura sobre isso.
R – Eu sinto que está tudo certo, está tudo no caminho que tinha que encontrar. É como se houvesse mesmo um desenho estelar do destino. Mas ele é mais parecido com uma dança que eu sinto que eu fui convidada a dançar, a partir de cada passo, eu poderia ir descobrindo determinado encaixe. Algumas vezes eu não aceitei, por algum momento da vida, mas o meu impulso maior é dizer sim pra essa dança. E cada reencaixe disso vai fazendo sentido, reverberando essas vozes ancestrais, né? Essa voz que eu sinto que eu ouvi, na época me parecia mais uma voz espiritual, mesmo. Muito embora, nesse momento da minha vida, eu sou uma pessoa bem espiritualizada, sempre me meti em religiões, mas eu tenho dado menos nome àquilo que eu... então eu não sei exatamente se é um guia, um mentor, um anjo da guarda. Eu não estou me preocupando muito com os nomes. Eu sinto, claro, pra mim é impossível, diante de tudo isso que eu estou contando, eu não fazer uma associação à vida da minha bisavó, por exemplo. Quando a minha mãe me dizia, na infância: “Será que você não é a reencarnação da sua bisavó? São passos tão parecidos, em algum lugar. Perguntas que te mobilizam, como a mobilizaram”. Eu digo: “Não sei”. Até porque está tudo bem. Se for, espero estar continuando fazendo uma boa trajetória nesse sentido, mas o que me importa é observar onde isso me reencaixa e como é que eu consigo dar uma resposta, de alguma maneira, que essas vozes ancestrais não puderam naquela época. Então, eu sinto que esse é um pouco do jogo, sabe, desses reencaixes. É claro que a gente está falando do passado até aqui, né? E aí tem esse olhar horizonte prum futuro que vai se mostrando, demonstrando cada vez mais. Pensando nessa pergunta, de olhar para o passado, o reencaixe com a vida, que foram os passos que eu dei e pensando nos encaixes futuros, eu percebo que todo meu movimento e o meu pulso é um pulso que está ligado ao pulso de Eros. Sem esse pulso de Eros, que tem a ver com beleza, que tem a ver com vitalidade, que tem a ver com o feminino... não com o feminino, eu não sei o que é, eu não tenho muita pressa em saber o que é feminino, eu quero mais é viver, pra poder descobrir, mas isso tudo tem a ver com a paixão, né? Eu até falo que meu nome podia ser Sandra Paixão. Eu não me incomodaria. Porque, sem esse impulso, eu não poderia ir. Só tenho que me preocupar com isso: quando eu estou impulsionada a encontrar objetos de desejo que me façam ir, como quando eu encontrei com o Museu da Pessoa, quando eu me encontrei com a história de vida, quando eu me encontrei com o teatro, quando eu me encontrei com o trabalho no hospital, quando eu me encontrei com meu namorado atual, (risos) que aí é uma outra história, (risos) que também é uma ressignificação do que aconteceu. Isso tudo são coisas que vão me levando. Eu sou aquariana. Eu respondo de maneira bem metafórica, né? Não sei se eu consegui responder. (risos)
P/1 – Onde você está agora na vida? Você falou de passado, que a gente olhou bastante. Mas a gente sempre olha a partir de onde a gente olha, que a gente vai estar, né? Assim que a gente olha o passado. Onde acha que, olhando seu futuro, o que você quer e espera? Ou muito mais simplesmente, qual é o seu sonho?
R – (risos) Quando eu era criança minha mãe perguntava o que eu queria ser quando eu crescesse, eu dizia: “Ser livre. Se eu for livre, eu vou ter tudo”. Eu tenho muita dificuldade de dizer: “Eu quero ter uma casa”. Eu tenho dificuldade de dizer isso, né? Nesse momento, quando a gente está aqui, juntos, eu sinto todo meu passado do meu lado. Eu tenho uma sensação que está tudo aqui: uma sombra grande e a gente está com todo mundo aqui, do lado, sabe? E aí parece que a gente está assim: vocês estão na minha frente, mas tem um horizonte tipo vruum: “Pra onde vamos? Galera, qual vai ser?”, sabe? (risos) O que eu sinto é: eu estou com 41 anos, eu me sinto completamente jovem, eu sinto muita jovialidade. Até tem umas pessoas que falam: “Mas você está com 41, era bom você ter um plano de saúde”. Eu não tenho nada disso. Eu estou bem solta. Eu tenho muita confiança que está tudo certo. Eu não sei de onde vem exatamente isso. E aí eu penso: o futuro acho que vai ser divertido. Eu quero montar um espetáculo em um futuro, um tempo bem próximo, que tem a ver com a história da minha bisavó, da minha vó e sobre as entidades femininas que regem a espiritualidade da mitologia brasileira. Isso é uma coisa que eu quero fazer. Isso tem que ser agora. Prum futuro bem próximo. Eu quero fazer meu doutorado, possivelmente em Portugal, num curso que eu descobri lá. Quero passar um tempo viajando fora, quero continuar encontrando pessoas, que eu sinto que isso é o que me move. Ah, mas eu quero muitas outras coisas também. Ixi, eu quero bastante coisa! Eu sou muito apaixonada pela vida. Mas também vou dizer um trem aqui do futuro: o futuro, futuro, futuro, vai ser a morte, né? Sabe que eu escrevo poemas de vez em quando. Eu já falei pro Jonas isso e eu mostrei um pouco meus poemas pra ele. De todos os poemas que eu escrevo, 40, 50 é pra morte. Eu tenho muito apreço por ela. Tenho um jogo com ela. A sinto quase todos os dias do meu lado. Estou falando sério. Porque eu não desconsidero que eu vou morrer ou que nós vamos morrer e isso faz meu jogo ficar mais vivo. Eu tenho muito respeito pela vida, mas eu tenho certeza que a morte é uma coisa muito incrível. Tenho quase certeza que eu vou tipo falar... sabe quando você desce de paraquedas e fala: “Vamos de novo?”. Quase certeza que é isso. E espero que ela não me decepcione porque, se ela me decepcionar, eu vou puxar o cabelo dela e falar: “Me devolve pra vida, porque a vida é muito legal”.
P/1 – O que você sentiu, você que conta história, de contar a história da sua vida?
R – É bem esquisito. (risos) É que vocês são muito legais e eu fui relaxando, assim, mas eu comecei meio dura: “Porque a minha vó...”. É muito esquisito falar de mim.
P/1 – Mas o que você sente, sentiu? O que você está sentindo agora?
R – Agora, na verdade... olha, vou falar pra vocês: eu tenho uma coisa com a verdade que eu não sei mais se a verdade existe, né? (risos) Acho que, de fato, o que existe é afeto. Mas, nesse momento, é isso que eu estou sentindo: me deu um afeto. Me deu uma sensação de alegria de poder olhar pra memória. Tem uma sensação alegre, mesmo. É como se eu olhasse e falasse assim: eu sinto que eu conquistei coisas que eram importantes pra eu conquistar, que faziam parte das minhas perguntas de criança: o que eu gostaria de viver? Onde eu gostaria de estar com 41 anos? Eu acho que a vida me surpreendeu muito e eu também me surpreendi muito com a vida. É melhor do que eu poderia imaginar. O que eu consegui viver, olhar pra vida e falar: “Nossa, quanta coisa linda, quanta gente linda!” Tem um pequeno conto do Eduardo Galeano, que é mais ou menos assim, ele diz assim:
“Esse homem ou mulher está grávido de muita gente. Gente que lhe sai pelos poros. Assim dizem os índios navajos. O contador de história, aquele que conta a memória coletiva, está todo brotado de pessoinha”.
Eu sinto isso, assim, sabe? Parece que agora está um monte de gente aqui comigo, pela pele, pelo corpo. Essas pessoas todas que estão aqui com a gente. (risos) É muita história, gente. Tem muita, ainda, coisa pra contar por aí. (risos)
P/1 – Você quer dizer _________?
P/2 – Na verdade, pergunta mesmo, não. Eu queria ver se só contava uma história. Eu pensei em duas: da Vanete, que é bem conectada com a história de vida e a da __________. Não sei. Qual você sente, também. Porque vai ficar na sua história. Você poderia nos presentear contando alguma história de vida, assim, de cabo a rabo. Você contou várias, assim, __________.
R – Pode ser conto tradicional?
P/2 – Pode ser ao mesmo tempo?
R – Eu vou contar essa história porque eu sinto que ela move o meu trabalho com as histórias de vida. É uma história muito antiga e ela vem da cultura árabe. Os povos muçulmanos, povo árabe, por ali. E é uma história de boca. Hoje ela está escrita, mas é uma história contada e recontada, recontada pela tradição oral, que conta de quando estava sendo criado o mundo. Então, o mundo todo sendo criado, com todas as coisas maravilhosas que tem no mundo e é claro que depois que o mundo ficou maravilhoso, cheio de coisas incríveis, decidiu-se criar os moradores do mundo, que também eram tão incríveis como o mundo, mas sem as virtudes era impossível que o mundo permanecesse em pé. Ocorre que, nessa cultura, todo grande palácio ou império é apenas um símbolo de associação ao coração humano. E, nessa cultura e nessa história, quando criaram as coisas e foram criar, então, as virtudes, Deus, o criador, ou seja lá quem criou isso tudo, todo esse negócio, criou a verdade. E como Deus criador é um ser muito esperto, decidiu criar a verdade no corpo de uma mulher, óbvio e, como toda verdade, ela veio ao mundo nua e crua. Só podia ser assim, era verdade. Então, eis que caminhava a verdade, no mundo, por aí afora, buscando fazer perguntas por aí e conhecer as pessoas, principalmente aquelas que a verdade achava que tinha uma certa liderança nos povos. Era verdade, era uma virtude. Uma vez a verdade estava passando perto de um lugar onde tinha um grande império. Ela olhou aquele grande império, as pessoas obedeciam muito aquele grande sultão e aí, grande, grande, melhor que a verdade vá conversar com ele. Ela foi. E, quando ela chegou, nua e crua, no corpo de uma mulher, na frente daquele lugar, primeiro quem chegou foi o chefe dos guardas, seguido de todo batalhão atrás, cheio de armas, impedindo que ela entrasse, perguntando: “Quem é você? Quem é você?” Ela falou: “Calma, eu só gostaria de falar com o grande sultão. Será que eu posso entrar?” O chefe dos guardas perguntou: “Mas qual é o seu nome?” Ela disse: “Diz a ele que a verdade gostaria de falar com ele” “Espera um pouquinho, vou saber se você pode entrar” “Sultão, sultão, tem uma mulher querendo falar com o senhor aqui na porta” “Sim, as mulheres, às vezes, querem falar comigo, pedir aconselhamentos, problemas normais. Façam que ela entre” “Não, não, não, não. É melhor que o senhor saiba de uma coisa, antes dela entrar. Está completamente nua” “O que? Uma mulher nua no meu palácio?” “Não, não, mas isso não é o pior, tem coisa pior: o nome dela” “Qual é o nome dela?” “Verdade”. Rapaz, o sultão deu um pulo pra trás, falou: “Não. O que seria de mim? O que seria de você? E o que seria de todos nós, se a verdade entrasse agora por essa porta? Diga a ela que se vá e que, por segurança, fique uns três quilômetros de distância da entrada do meu castelo”. E a verdade foi mandada embora. Ela caminhou, mas quando esse criador, tudo, fez a verdade, as virtudes e fez a verdade no corpo de mulher e fez a mulher, ele também fez a obstinação. Aí eis ela, a obstinação. E ela queria entrar, pra conversar com o sultão. Ela ficou pensando em uma estratégia, como é que ela conseguiria fazer isso. Naquela noite ela viu que tinha saído pra caça uns caçadores e tinham voltado com um bicho grande. Ela foi chegando perto daquele lugar onde aquela caça estava ali, pegaram, arrancaram a pele daquele bicho, pegaram a carne e a pele ficou meio de lado, ela foi pegando aquela pele e vruuuuum, se vestiu com aquela pele ensanguentada. Logo de manhã, o sol se abrindo e ela voltou pra conversar com o sultão. A hora que ela chegou na porta, novamente o chefe dos guardas veio correndo e aquela multidão veio junto: “Quem é você? Quem é você? O que você quer?”, aquela confusão e ela meio que só com um olho, assim: “Bom dia, com licença, é que eu gostaria de conversar com o grande sultão, será que eu poderia entrar?” “Um momento, eu tenho que perguntar se você pode entrar”, meio desconfiado, olhando pra ela e disse: “Qual é seu nome?” Ela falou: “Diz pra ele que é a acusação” “Acusação?” Chegou e disse: “Sultão, sultão, outra mulher quer falar com o senhor” “Outra mulher? Mas o que tanto as mulheres querem comigo?” “Ah, isso eu não sei, sultão. Isso aí é com o senhor. O que eu posso dizer é outra coisa: é que essa é horrível, cheira a carne crua, parece que acabou de morrer, as moscas passam por ela, ela pinga sangue, é um horror, parece um beduíno velho e o nome dela é o pior” “Como é o nome dela?” “Acusação” Rapaz, se com a verdade ele deu um pulo, com acusação deu um salto mortal, ficou três quilômetros dali onde ele estava e disse: “Não, de jeito nenhum. O que seria de mim? O que seria de você? E o que seria de todos nós, se a acusação entrasse por aqui agora? Diga a ela que se vá e que ela fique quatro quilômetros da entrada do meu castelo”. O chefe dos guardas, que adorava receber uma boa ordem, foi daquele jeito: “Você não pode entrar. Você não é bem-vinda aqui. E que você fique seis quilômetros longe da entrada do castelo do grande sultão”. Saiu, mas ela estava obstinada e naquela noite ela ficou pensando. Era fim de tarde. Pensando no que ela ia fazer, quando ela viu que perto dela tinha um acampamento, que tinha umas mulheres acampadas por lá, estavam só entre elas, talvez naquela noite, mas estavam só entre elas. E elas conversavam entre si e se banhavam e ela foi chegando e, quando elas viram aquela mulher suja, perguntaram se ela não gostaria de tomar um banho, ficar perto delas e ali ela foi bem tratada, alimentada. Deram ouvido à verdade, deram palavra à verdade. Elas gostaram da verdade. E no outro dia de manhã a alimentaram com bom alimento, pentearam os cabelos dela, que eram bem longos, assim e decidiram brincar de colocar umas roupas nela, uns tecidos amarrados. O fato foi que a verdade foi ficando linda e perfumada. Tinha um óleo de rosas que só se usava ali naquele lugar. Ficou um espetáculo. Na verdade, ficou um espetáculo. Uma obra de arte. E aí, quando ela saiu de lá, estava pronta pra buscar novamente o sultão. Dessa vez, quando ela foi chegando perto da entrada do grande império ali do palácio, já foram abrindo os caminhos pra ela entrar. E o chefe dos guardas, dessa vez, precisava perguntar quem ela era, chegou já sorrindo, com delicadeza e disse: “Bom dia, bem-vinda! O que você quer?” E ela se apresentou: “Eu gostaria de falar com o grande sultão”. E ele disse: “E, por gentileza, é de praxe perguntar, a senhora me desculpe, mas eu preciso: qual é seu nome? Eu preciso saber se você pode entrar”. E ela disse: “Diga a ele que eu sou a fábula, a prima da poesia. Pergunte a ele se eu posso entrar”. Ele chegou e disse: “Sultão, sultão, outra mulher quer falar com o senhor”. Ele já ia sair correndo. “Não, não, não, mas é melhor que o senhor ouça: essa é belíssima. Quando ela fala, tem um tom na fala dela que faz as pessoas ficarem um pouco inebriadas. É um perfume perto dela que parece que a gente entra no mundo onírico dos sonhos. Ela, na verdade, é uma mulher que parece ser mágica” “E qual é o nome dela?”, perguntou o sultão. “O nome dela é fábula, a prima da poesia”. Quando o sultão ouviu isso, ele disse, sem pestanejar: “Que abram-se todas as janelas, que arrebentem-se todas as portas, porque eis que chegou o dia que a fábula, a prima da poesia, entrará no nosso castelo”. E desde essa época dizem que é assim: toda vez que a gente quiser que uma verdade entre no coração de alguém, a vista de fábula, coloque a magia da poesia que, com certeza, entrará muito melhor no coração, do que uma verdade nua, dura e crua. (risos)
P/2 – Podia só pedir mais uma?
RISOS
Recolher