Entrevista com Edna Maria dos Santos em 06/05/2022, no Rio de Janeiro. O encontro foi realizado presencialmente, no estúdio da TV UERJ.
Estavam presentes:
- Professora: Sônia Maria de Almeida Ignatiuk Wanderley
- Professora: Gisele Pereira Nicolau
Legenda da transcrição
E1: Entrevistador 1 (Sônia Maria de Almeida Ignatiuk Wanderley)
E2: Entrevistador 2 (Gisele Pereira Nicolau)
R: Entrevistada
Transcrito por Eduardo da Silva de Castilho e revisado por Yomara Feitosa Caetano de Oliveira.
Diálogo inicial entre Edna e Sônia sobre o desenvolvimento e métodos da entrevista explicando sobre o roteiro previamente enviado. Refletindo sobre a memória de quem é entrevistada, assim voltou-se para explicar os motivos da pesquisa do ensino de história da ABEH.
E1 – Podemos começar?
R – Podemos.
E1 – Então estamos aqui pra entrevistar a professora Edna, depois você vai dizer como você gostaria de ser chamada, teu nome completo. E eu me permito chamar de Edna porque a gente tem uma amizade que ultrapassa este espaço. É... a entrevista está acontecendo hoje no dia 06 de maio no estúdio da TV UERJ. Então vamos lá, Edna. A gente gostaria de começar com você dizendo seu nome completo, data e local de nascimento se você se sentir à vontade pra isso.
R – Fico, fico à vontade sem problema nenhum. Meu nome é Edna Maria dos Santos, né. É... eu nasci a 20 de março de 1946, portanto, recentemente, eu fiz 76 anos bem vividos, graças a Deus, né. É... e... morei...
E1 – Onde nasceu?
R – Onde eu nasci? Rio de Janeiro, eu sou carioca de 76 anos de vida, eu amo essa cidade com todos os seus problemas, as suas contradições, mas já andei por muitos lugares do mundo. Na época do grande Ezio de cordeiro, porque naquela época eu ia, né, levantar a possibilidade de convênio, grande parte dos convênios que estão aí foi feito na época do Ezio e eu e Teresa Turíbio criamos em vários lugares do mundo, América Latina, Europa, Ásia, inclusive, parcerias que eu não sei se perduram até hoje. Que a professora Teresa Turíbio também está aposentada, né, eu me aposentei no ano passado, né. Então eu sou carioca, aquela carioca da gema mesmo...
E1 – Você nasceu em que bairro?
R – Que briga pelo Rio de Janeiro.
E1 – Você nasceu em que bairro do rio?
R – Eu nasci na tijuca...
E1 – Você é tijucana?
R – E moro no Grajaú, eu sou de Tijuca e Grajaú, né...
E1 – A grande Tijuca.
R – Que é chamado a classe média que é conservadora... tudo mentira. Tem conservadores, mas... também tem muita gente avançada além do seu tempo, né. Então, eu sou tijucana, com muito orgulho, também. E já a quase quarenta e quarenta e seus anos do Grajaú.
E1 – Mora no Grajaú. Você gostaria de ser chamada de alguma maneira, em especial, não?
R – Edna, mesmo
E1 – Edna mesmo.
R – Sem formalidade.
E1 – Tá certo, Edna. Fala um pouco da tua família, né, do que você lembra das histórias familiares, do que que lembra?
R – Lembro, lembro de muitas. Uma delas que teve importância vital na minha vida pra ser historiadora e professora de história, né. Então... é... meu pai e minha mãe já faleceram, os dois, que foram importantíssimos, o seu Cláudio e a dona Cora, é... na minha vida, né. Por tudo o que eles passaram, pra gente, para as minhas irmãs, eu tenho mais duas irmãs, né. Passaram, principalmente ética. Passaram principalmente, o respeito pelas pessoas. Daí as dificuldades que eu tenho hoje com a tecnologia, com questões que só podem ser resolvidas online. Porque eu costumo dizer que eu sou de uma época, e eu sou pessoalmente, assim, quem me conhece, do ao vivo e a cores, né. Eu sou assim do abraço, do aperto de mão, do puxão de orelha, em muita gente. E, não sou muito chegada à tecnologia, né. É... então, a minha família, meus pais, meus avós, minha avó, minha avó Júlia, ela teve uma participação grande na minha vida porque nós morávamos com ela, ela morava com a gente, dizia meu pai, mas financeiramente ela que ganhava mais, então, e minha vó trabalhou até o ano em que morreu, né, ela morreu com 74 anos, ela trabalhava em Copacabana, né, trabalhava...
E1 – Ela fazia o que?
R – Ela... ela era... Trabalhava numa loja, que na época era especialista em criança, em roupa. Não me lembro mais bem o nome, mas na época era famosa, né, era loja de gente rica. E minha vó, Júlia, muito amiga das donas da loja, naquela época era muito comum o pessoal mais velho jogar um "biribazinho", mas sem dinheiro, sem nada, só pra distrair. E, a minha casa na Tijuca, na rua Jorge Los, tá lá a casa até hoje. Era uma casa alugada numa vila na tijuca. E, na parte de cima havia o quarto da minha avó e do meu tio, que morou com a gente praticamente até morrer, o tio Cândido. E, eu dormia na cama, cama imensa da minha avó. E a minha vó chegava, a primeira coisa que ela fazia, né, é dizia: não fale nada com o seu pai, porque ela caia. Ela tinha problema numa visão, aí eu passava arnica, não falava nada, né, então nós éramos muito amigas, além dessa relação de avó e neta, né. E minha vó, ela era... agora eu tenho uma netinha, uma sobrinha-neta que tem o nome dela, Júlia, e tem muito o temperamento dela. A gente até brinca que reencarnou nela, né, porque a minha avó era avançada pra aquela época. Então minha avó foi uma das primeiras a dizer uma coisa que me marcou muito e que eu acho que aceitei a ideia dela: - Se relacione com quem você quiser relacionar, mas não case. Vá viver primeiro a sua vida, vá fazer seu projeto de vida na área que você quiser fazer. Vá ser uma grande profissional, mas uma profissional que seja preocupada com os outros principalmente, como ela era. e eu, na verdade, eu segui isso. Quer dizer, minha avó Júlia gostava das danças ciganas. Me lembro até agora de uma pessoa que morreu aqui na UERJ, recentemente, uma grande amiga, trabalhamos juntas no PROEPER, no programa de várias religiões, que foi a professora Telma Rosina. Uma pessoa por quem toda uma vida eu tive uma grande admiração. Morreu com noventa, noventa e um anos, sem nunca deixar de trabalhar, só nestes dois últimos anos de pandemia. Então, minha avó era assim, gostava da dança cigana, dizia ela que, na trajetória dela, ela devia ter alguma relação com os ciganos que vinham lá do interior da Espanha. Minha avó nasceu em Portugal, mas veio pra cá com dois anos, então praticamente brasileira e ela foi muito importante pelas coisas muito novas pra época que ela me ensinou. Quer dizer, em termos de ensinamento meus pais foram importantes, mas ela é a primeira que eu coloco nessa importância e, junto a ela a irmã da minha mãe, minha tia Olga, e meu tio Vasconcelos. Minha tia Olga e meu tio Vasconcelos, quando eu era adolescente de doze, treze, catorze anos, muito curiosa que eu era, também muito rebelde, eu não aceitava “você tem que fazer”, não, por isso que eu sempre relacionei com os meus alunos a negociação. Porque ninguém tem que fazer nada, só tem que fazer aquilo que gosta, aquilo que primeiro, como dizia Paulo Freyre, passa pelos sentir: Não é “penso logo existo”, é “sinto, logo existo”. Então, as segundas pessoas muito importantes na minha vida pessoal e na minha trajetória, enquanto professora de história e historiadora, foi minha tia Olga e meu tio Vasconcelos. Na época eles já tinham carro, financeiramente tinham uma vida direita, e meu tio era alagoano. Então, ele tinha família em Alagoas, o pai dele tinha uma fazenda, mas não era uma fazenda chique do litoral, que é da cana-de-açúcar, é a fazenda do interior, a fazenda de pedra, a fazenda do gado. E, ninguém queria ir com eles, os outros sobrinhos, e eu adorava ir. nós íamos de carro, meu tio dirigindo, primeiro dia ele parava em Minas Gerais, depois seguia, parava em Salvador e, por último, chegava em Alagoas. E, nós não íamos para Maceió, porque essa fazenda de gado, essa fazenda de pedra, era no interior, numa cidade chamada Quebrangulo, quebra-ângulo, exatamente por causa dos tropeiros que paravam, tinham que trocar mercadorias. Então, nós íamos para Quebrangulo e pra fazenda que ficava lá pra dentro, não ficava no centrinho dessa cidade não. Ele era primo de Graciliano Ramos, então eu pude conhecer a viúva de Graciliano e Palmeira dos índios, é uma emoção que até hoje eu me lembro. Cheguei em Palmeira, vi aquela viúva, aquela senhora, que veio me contar histórias que ela viveu com o Graciliano. Então, com isso, nós andávamos por toda essa região do interior de Alagoas. E, aí eu conheci o engenho de carro de boi, quando a gente dá aula pros alunos e fala sobre isso, é diferente do que ter vivido isso. Eu vivi isso no engenho de carro de boi do Seu Zuza Limeira, eu nunca esqueci o nome do senhor. Então, nós víamos o gado rodando pra poder sair a garapa. E, visitei outros engenhos, aprendi ao vivo o que era banguê, um engenho que não serve mais pra nada, e ouvia as histórias. Eu sempre gostei da história do cotidiano, eu sempre gostei das vivências das pessoas. Por isso que também depois eu fui fazer educação, mestrado e doutorado. Então, nesse período eu vi toda uma história que se processava pra uma garota de treze, catorze, as várias vezes que eu fui catorze, quinze, dezesseis anos, dezessete anos. Aí eu trazia essas histórias. Eu fui aluna do Colégio Pedro II no ginásio que eu amo de paixão até hoje, e fiz depois o normal, o ensino normal, no Instituto Educação, que é outro espaço sagrado pra mim. A minha carreira eu comecei como professora primária, até depois na Universidade. E, aí a Sônia sabe como é diferente quem começa como professora primária, como professora do ensino básico, como é que você faz essa relação com a universidade. É bem diferente, é bem diferente, por exemplo, hoje, que as pessoas já saem diretamente com mestrado e doutorado pra dar aula na universidade. E, não teve toda uma carreira, toda uma trajetória. Então exatamente, foi vivendo a história. Pablo Neruda diz: “confesso que vivi”, eu digo pra vocês: confesso que vivi. E vivi muitas experiências tão maravilhosas, tão boas, que mesmo hoje com todos os problemas que a gente tem eu só posso ter amor pela vida, amor pelas pessoas, porque toda a minha trajetória foi uma trajetória sempre com a alegria na frente, ninguém pode viver sem alegria, com todas as tristezas que a gente passa na vida. Eu acho que a alegria tem que estar fundamental, nas pequeninas coisas, mas tem estar fundamental até pra você ter a sua história. Não é a história narrativa contada, como eu estou fazendo agora pra vocês, é a vivida. Não há nada que pague aquilo que a gente vive, seja de bom, seja de ruim. Então, o meu amor pela história é a importância que essas pessoas da minha família tiveram na minha vida. Porque me ensinaram história antes de eu fazer história, me ensinaram aquilo que uma grande professora que tive a professora Meller, dizia da diferença da registrone e da registrorum, uma coisa é aquela história que a gente que no possível e no impossível dela. Outra coisa é que você só pode contar, narrar essa história se você a viveu de alguma maneira. Então, eu quero dizer pra vocês que a minha família tem uma importância muito grande nesse amor que eu tenho pela história até hoje. Nesse amor que eu tenho até hoje pelas pessoas e nesse amor que eu tenho exatamente pelas classes populares, que aí é um outro lado que eu aprendi com o Paulo Freyre e o Darcy.
E1 – E você tem irmãos ou teve irmãos?
R – Tenho, tenho irmãs.
E1 – Irmãs?
R – Tenho até um irmão afetivo que é um irmão da Carmen, pessoa que eu moro há mais de quarenta anos, mas irmã mesmo de sangue. Eu tenho muitos irmãos sem ser de sangue, alguns deles dessa casa, como Tereza Turíbio, como a Dirce Sólis que é diretora do CCS, como Sônia, só essas duas primeiras eu conheço à cinquenta anos, eu tenho bodas de ouro de amizade com essas pessoas e outras. Professora Maria Aldice também aposentada da Universidade da Santa Úrsula. Então eu tenho de irmã mesmo de sangue as duas irmãs, três irmãs.
E1 – Quais são os nomes delas?
Edna – São duas aliás, Maria Helena dos Santos e Maria Cristina dos Santos Bastos, de nome de marido até ela estar viúva.
E1 – E seu pai e sua mãe, quais são os nomes?
R – O nome do meu pai era Cláudio Tito dos Santos e o da minha mãe Cora Domingues dos Santos.
E1 – Tito…
R – Tito!
E1 – Esse nome tem relação a ver com os historiadores aqui da UERJ, não né.
R – Não… (risos) tem um que eu era vice-diretora da história e o nome dele é Tito, a esposa dele é da UFRJ, na área da literatura. Até mexi com ele, porque eu era vice-diretora quando ele passou pra UERJ e entrou, ele é novo aqui dentro da universidade.
E1 – Você sabe onde seus pais se conheceram, se casaram?
R – Sei, meus pais se conheceram aqui no Rio de Janeiro, também os dois eram cariocas, ambos nascidos e criados aqui. Eu nasci numa casa que, por incrível que pareça, Sônia, existe até hoje, do mesmo jeitinho. Se vocês quiserem ver onde eu nasci, rua caul (?), tem no início da rua caul um prédio antigo assim, grande, como se fosse uma casa, mas é um prédio, eu nasci ali. E nasci de parteira. Eu já nasci ali no Engenho Novo, na rua caul, em casa e depois, logo em seguida, fomos morar na Tijuca. Papai era funcionário da marinha, mas não militar, funcionário civil, e minha mãe era dona de casa, naquela época, se trabalhasse fora, a mulher era tirada e tinha que trabalhar em casa mesmo. Então, mas meu pai e minha mãe só não chegaram a fazer cinquenta anos de casados porque papai morreu de câncer um ano antes, mas, aliás, toda minha família é assim, minhas tias e tios que já morreram, quase todos fizeram bodas de ouro, cinquenta anos de casados.
E1 – E você lembra da tua infância, a rua, o bairro, lembra de alguma coisa que tenha marcado essa época?
R – Lembro muito… bom, a minha rua tá lá. A vila Sinhá, chamada de vila Sinhá da rua dos Araújo, desceu a rua dos Araújo, é primeira rua à direita, é uma vila. A vila também continua lá, de vez em quando eu entro pra ver, pra lembrar a casa, era casa alugada, o proprietário se chamava Seu Ivo, mas que naquela época era comum o proprietário ficar muito amigo das pessoas que moravam ali. Então eu nasci ali, era uma vila, e essa vila eu pude fazer o que a criança não faz hoje, com raras exceções: brinquei de pique-bandeira, joguei bola-queimada, pra queimar a pessoa, joguei bola de gude, adorava jogar bola de gude, fazia coleção das bolinhas, principalmente do grandão, os meninos sabem, embora menina, mas eu adorava brincadeira dos meninos, achava mais inteligente, aquela coisa de pegar boneca… achava chatíssimo aquele negócio! Então eu jogava bola, futebol, eu jogava búlica, a bola de gude, corria pela avenida. Essa avenida você via lá no alto o Morro do Salgueiro, mas isso imagine, quase cinquenta anos atrás, quase não tinha casa. Papai era muito amigo de um sambista do Salgueiro, e nós íamos, eu e minhas irmãs, principalmente a outra irmã a Maria Helena, de bicicleta, subíamos o Morro do Salgueiro, lá de cima uma vista maravilhosa. Você olhava a Tijuca. Subíamos de bicicleta o Alto da Boa Vista, subíamos e descíamos de bicicleta. Então, eu tive uma infância, agradeço a Deus, maravilhosa. Uma infância sem distinção de gêneros jogavam as meninas. Hoje, agora, as meninas jogam bola, mas jogavam desde aquela época, e faziam gol, adorava jogar bola. Jogava também… fazíamos, também, jogos, onde botava-se uma corda e jogavam a bola pra lá, outra bola pra cá. Enfim, nós brincamos de bola, nós brincamos de pique, nós brincamos de bola de gude, nós jogamos pique-bandeira, enfim, brincamos de todas as brincadeiras que hoje as crianças não brincam, porque hoje as crianças estão brincando com essa porcaria (Edna aponta para sua mão), botando o dedinho ali desde que nasce, não vivem, não vivem.
E1 – E, escola? Edna.
R – Escola. Escola eu estudei, eu tive agora essa semana numa festa de uma grande amiga que fez sessenta e dois anos, ela ia fazer a festa nos sessenta, não pode por causa da pandemia. Sessenta e um continuou não podendo, agora nos sessenta e dois anos ela falou: dane-se! Eu vou fazer. Na casa dos açores. E, ela fez uma festa em que você tinha que ir de fantasia, mas fantasia de intelectuais, de escritores brasileiros, africanos, portugueses, todos os amigos dela. A Ida ela é professora aposentada da UFRJ e hoje dá aula em Coimbra, ela mora seis meses em Coimbra e seis meses aqui no Rio de Janeiro. Uma grande amiga. E aí nós fomos, eu fui vestida de Pepetela, botei o desenho do Pepe aqui (aponta para o tronco?), gosto muito desse escritor africano. A Carmen foi de Manuel Rui, o porquinho da vitória de Manuel Rui. O outro foi de Clarice Lispector. Olha, uma delícia, depois desses dois anos que ela não pôde fazer festa ela fez uma festa maravilhosa. E, na avenida Melo Matos, onde foi na casa dos Açores e foi ali que eu estudei. Eu estudei na escola Francisco Cabrita, escola pública, a vida inteira minha vida foi em escola pública. Por isso o tempo inteiro eu bato na tecla com os alunos: vocês têm que ser de escola pública, ajudar a escola pública a crescer. A escola é daquelas escolas antigas, não é nem da Fundação Mangabeira, é anterior, é de pedra, tá muito bonita escola. Numa época que a gente tinha médico, tinha dentista dentro da escola, uma alimentação maravilhosa. A escola tá lá acho que não funciona da mesma maneira como eu vivi ali, mas do ponto de vista de estética continua igual.
E1 – A escola onde eu estudei eu tinha médico, dentista, sazonais eles iam, aí a gente com a turma ia e tinha todas as vacinas, também, e não tinha essa de perguntar à mãe ou à família se vacinava: - Hoje é o dia de turma tal se vacinar, descia a turma inteira, vacina no braço e não era gotinha não.
R – Era injeção, injeção.
E1 – Isso aí.
R – Eu acho que talvez uma das coisas que fizeram com que a minha saúde até hoje, graças a Deus, seja boa, foi todo esse circuito que a gente viveu desde criança, sete, oito, nove anos.
E1 – Você disse que foi aluna do Pedro II também, né?
R – Fui, minha paixão…
E1 – Como é que foi? Foi no ginásio?
R – Eu fiz o ginásio no Colégio Pedro II no Maracangalha, na Tijuca. Eu adorava as brigas. Era época que o Pedro II da Tijuca brigava com a chatice do Colégio Militar. E, ó, corta aí pra não dar problema (risos). Então a gente adorava, as meninas, os meninos pegavam o bonde, o trilho do bonde e era uma “brigalhada” imensa. E nessa escola, no Colégio Pedro II da Tijuca à época quem era diretor era aquele, como é, César, esqueci o nome. Os inspetores se tornaram depois, os meus inspetores eu tenho a caderneta com a assinatura de amizade deles, eles se tornaram professores do Colégio Pedro II. Então, nós participamos da Festa da Primavera. Hoje eu não sei, eu acho que o Pedro II, eu tenho ex-alunos que são professores lá, continua muito bom também, mas na nossa época era incrível, era maravilhoso.
E1 – Você lembra de algum professor, alguma professora? Eram mais professores ou mais professoras?
R – Me lembro de vários. Tinha de história, o professor de história, como era o nome, acho que era Américo, não lembro bem, a professora de francês, também, que era muito boa, aliás, todos eles eram bons, todos eles eram bons. E a gente tinha os quatro anos inglês, francês e espanhol.
E1 – Ótimo… fora o latim.
R – Fora o latim, fora o grego, eu estou falando das línguas que até hoje continuam. E, na época era comum, papai não tinha dinheiro pra pagar, mas minha tia, essa que me levava pra Alagoas, tia Olga, ela me pagou a cultura inglesa. Eu fiz cinco anos de cultura inglesa além de quatro anos na escola pública, do francês, do espanhol e do inglês, fora português, fora grego, fora latim, enfim. Educação física, nós participávamos da festa da primavera da educação física, em setembro, levava no Maracanã a bicicleta toda florida. Aí eu fiz concurso no final do ginásio, meu pai dizia: minha filha pode acontecer alguma coisa; pra mim, era muito comum dos pais de antigamente, né? Meu pai era funcionário, mas era civil da marinha, não ganhava muito: minha filha vai pro instituto, você já sai ganhando, já se forma ganhando. Eu gostava de ensinar, muita gente até não gostava e acabou indo. Eu fiz o concurso pro instituto de educação, pra escola normal, era uma guerra, era uma guerra. E tem mais, eu passei em primeiro no Colégio de Aplicação da UERJ que eram trinta vagas e quase que as pessoas se estapeavam. A menina que passou depois de mim ficava atrás do meu pai: ah se ela for pro Pedro II, o senhor me dá a vaga? E aí eu dizia pro meu pai: pai, se eu passar no Pedro II, eu vou pro Pedro II. Porque eu também já amava o Pedro II. Figura histórica, eu lia os livros da época sobre a atuação dele, naquela época eu era até igual o nosso colega Afonso Carlos, que já morreu e era monarquista, eu queria, eu achava bonito aquilo tudo, diferente. Bom, e aí o instituto tinha se não me engano, na época eram trinta vagas só, uma coisa assim, e eu passei, em primeiros lugares, segundo, terceiro lugar. E, aí papai já estava com a roupa toda do aplicação com os livros, tudo isso, e deu pra pessoa que estava atrás de mim. Então o Pedro II no ginásio e o instituto daquela época, o Instituto de Educação, né, formação exatamente daquele que mais do que tudo que recebia, em termos de conhecimento, ele ia ser o educador. Porque há uma diferença. Infelizmente hoje muita gente esquece que além de você ser um teórico da história, um teórico da literatura, das ciências, você é um educador. E, passar pro Instituto de Educação isso me deu mais importância para eu estar ligada à educação, e foram, assim, eram três anos, se não me engano, maravilhosos.
E1 – Você lembra de alguma coisa dessa formação no Instituto de Educação ou dos professores ou do tipo de educação, é lógico, dentro daquele contexto, isso foi quando, anos sessenta?
R – Eu me formei no quarto centenário.
E1 – É, sessenta e quatro.
R – Eu tenho até aquele brochinho que eles deram do quarto centenário, professor anda, né. Bom, Instituto de Educação foi, também, outra paixão. Primeiro que o Instituto de Educação ele te dava um ensino mesmo diversificado em tudo. Eu ia para uma parte de música que tinha ali no Instituto de Educação, ao invés de ficar brigando, fazendo um monte de coisa dentro do colégio a gente ia para lá e ficava ouvindo música, música clássica, música popular brasileira. O Instituto era uma escola que, naquela época, tinha uma infraestrutura (...)
E1 – Isso era início dos anos sessenta?
R – Sessenta, exatamente. Eu me formei antes da dita revolução de sessenta e quatro. Eu me formei aí, foram quatro anos, sessenta, sessenta e um, sessenta e dois, sessenta e três, sessenta e quatro, que eu me formei. Bom, aí tinha uma infraestrutura, piscina, né? Tinha, agora esqueci o nome do professor. Sempre tive muito medo, minha relação com a água é uma coisa complicada, até quase que religiosa, sagrada, enfim. Então ele dizia: professora! (Edna se lembra do nome) - professor Silva, tem que vir aqui pra piscina, tem que aprender a nadar e não sei mais o que. Eu dizia que ia botar meu pezinho, mas não me habituava muito. Então eu ia para onde? Para os espaços onde eu podia aprender mais, a biblioteca maravilhosa e a parte relacionada da música. Então, a infraestrutura do Instituto de Educação era maravilhosa. Dá uma tristeza muito grande de a gente ver a trajetória dessas escolas normais, sem terem estímulos de governo, sem terem nada. Além disso, excelentes professores. Todos eles, não me lembro, assim, perci os nomes, mas tem outra coisa: você tinha uma biblioteca maravilhosa, mas você tinha que ter os livros. Pdf não existia, cópias e xerox também não. Então, o professor te dava aquela lista e dizia: esses três aqui você tem que ter. E quando ele dizia tem que ter, quando ele dizia: - eu vou começar segunda-feira que vem, a gente ia pra sala e ele dizia assim: Edna, seus livros? Julinho, seus livros? Cada um tinha que mostrar que comprou os livros, não tinha nenhuma outra forma. E, agradeço porque hoje tenho uma biblioteca de mais de cinco mil livros. A maioria desses livros eu comprei na universidade, sessenta e oito a setenta e um, quando eu me formei, mas já aí eu já comprava os livros, com dificuldade, com dificuldade. Meu pai não dava dinheiro, não tinha condições de estar dando, né? Então, a gente comprava estes livros aos pouquinhos e o que não comprava. Eu frequentei a Biblioteca Nacional anos e anos, eu pergunto aos meus alunos, agora não porque só estou dando na pós, mas na graduação, até dois mil e dezoito, eu perguntava: vem cá, foi à Biblioteca Nacional? - ih professora, não sei, eu moro longe, eu tenho problemas. Eu também tinha naquela época, mas a relação com o saber, até poucos anos atrás, era uma relação quase que sagrada. Eu tinha um amigo que já morreu que era do Colégio Pedro II, professor, e ele dizia o seguinte: Edna, o livro é alguma coisa tão sagrada que a gente tem que ter nas mãos. Chamava-se Raimundo Barbadinho Neto, professor do Colégio Pedro II já falecido há alguns anos. E, eu sinto isso. Há uma diferença, eu não leio livro, em pdf, na internet, eu não leio nada disso, até porque quando vem o livro eu vou atrás. Vou ver onde ele está e vou comprar para mim, porque pegar um livro é como você pegar um filho e pegar uma criança. É uma coisa de carinho, é uma coisa que você se sente bem, lendo. Eu tenho certeza, que a Sônia até gosta até do cheiro do livro. Sem falar que eu trabalhei seis anos no Arquivo Histórico da cidade do Rio de Janeiro. Então, a gente passa a ter, o Barbadinho: - Edna, a gente passa a ter um orgasmo com os livros. E, é verdade, o prazer, você tem uns conceitos importantes que é o conceito do prazer do texto. Então, o prazer do livro, pegar esse livro nas mãos, sentir aquele cheiro, às vezes até de mofo, daquela época daquela bolinha que a gente colocava pra não pegar doença os livros.
E1/E2 – Naftalina.
R – Quer dizer, tudo isso faz parte, realmente, de uma relação erótica, não é? Principalmente, todo mundo faz, mas quem faz história. Eu ainda vejo isso, essa relação de eroticidade com o livro, tanto que antes de eu me aposentar. Eu chamei alguns alunos que eu sabia que não tinham condições de comprar livros e eu tinha muita coisa repetida. O Washington que era o diretor da educação foi um, eu abri minha casa e disse: - sentem aí, tem um montão de livros aí no chão e vocês peguem, livros raros, se você pegar Braudel, pegar? Henry Irénée Marrou, do conhecimento histórico, quem tem esse livro hoje? Ninguém. Eu tinha tudo isso, mas também as pessoas que pegaram, eu sei que são jovens de quarenta e poucos anos que também tem essa relação sagrada com o livro. Quer dizer, quando vocês quiserem alguma coisa de livro, o Washington, diretor da educação aqui, era uma pessoa de conhecimento de arquivo histórico imenso, até porque fomos nós que organizamos muitos anos atrás, o arquivo histórico da cidade de Paraty, que estava enrolado em barbante com as traças querendo comer aquilo tudo. Na época eu não me lembro quem era o reitor daqui eu só disse o seguinte, era Ézio, se eu não me engano: Estou indo com o Washington que é meu aluno, que estava fazendo graduação de história aqui, nós vamos passar uma semana em Paraty, não é passeando não, vamos organizar o arquivo de lá. Foi Ézio, noventa e quatro acho que era Ézio, e o Ézio disse: - fique a semana toda lá e bote o nome da UERJ, lá em Paraty. Hoje, se Paraty tem o arquivo histórico organizado, foi a UERJ que organizou. Aliás, a UERJ, em história, já organizou muita coisa em muitos lugares do estado do Rio de Janeiro que não são falados. Outro exemplo, Lia Faria, que é da educação, o marido dela, já falecido, o Roberto, foi durante anos secretário da educação de Trajano de Moraes, a cidadezinha, o município de Trajano. Não sei se você sabe disso (aponta para Sônia), eu levei vinte alunos de história para lá. A UERJ pagou o transporte, o onibuzinho ficou lá a disposição, e ele pagou a nossa estadia e comida em um hotelzinho bem simples. E, nós organizamos hoje o prefeito de lá deve estar feliz, só que ele não sabe, fomos nós da UERJ que organizamos todos os arquivos que a educação de lá precisava.
E1 – Não é política de interiorização que a UERJ sempre teve, né?
Pausa no diálogo para arrumar microfone, e Edna tomou água.
E1 – Sabe o que eu vou pedir? Para você lembrar um pouquinho da sua juventude. Que ainda você falou, a juventude como você passou no Rio de Janeiro, já disse.
R - Toda vida, toda vida no Rio, viajando mesmo. (? 37:31)
E1 – Então, como é que você se divertia, sua vida afetiva?
R - Aquela época, vamos lá, aquela época era uma época de praia, aliás é uma das coisas que eu gosto.
E1 - Mesmo com medo da água?
R - Hã?
E1 - Mesmo com medo da água?
R - Beirinha, beirinha e canequinha, mas olhar o mar para mim é a melhor terapia do mundo. Embora, graças a Deus, eu nunca, o pessoal às vezes: você é E.T., só pode, nunca fez análise? Eu dizia: - não, nunca fiz análise, nunca fiz nenhum tipo de terapia, porque eu acho que a gente tem que estar aberto para a vida sem preconceitos, quando você está aberto para a vida sem preconceitos você não precisa de terapia, porque você tendo muitos amigos, a gente tem que ter amigos, não esses falsos amigos, eu tenho poucos amigos, mas os meus amigos a gente tem mais de quarenta anos de existência. É gente que você confia, é gente que você pode contar suas histórias públicas e não públicas e são pessoas que te acolhem. Hoje se fala muito do acolhimento, na minha juventude eu sempre fui alguém, eu morava na Tijuca, lá em cima perto da rua dos araújos, e na Praça Saens Penha tinha um grande cinema: O cinema Olinda, o cinema Olinda (cantando). Esse cinema Olinda que hoje virou um shopping lá quarenta e cinco. Nós alunos do Colégio Pedro II ou do Instituto, havia dias que tinham às vezes filmes interessantes. Também tinha Mazzaropi e a gente saia para ver. Então, a gente ia para lá, de uniforme, ninguém dizia que não podia, o porteirinho vagalume que ficava deixava, tudo detalhe. Então a gente ia, assistia, conversava, ainda tenho primos e primas que moram, desembargadores vivos ali perto da praça Saens Penha, também. Então era um tempo que era um tempo de liberdade, liberdade e acolhido, sem você estar preocupado com assaltos, com pobres crianças que vem com uma faca e te botam aqui (Edna aponta para a sua costela), não tinha isso. E tinha na praça Saens(?) Penha, na rua ali pertinho, tem uma... é a Vila Santo Afonso, parte traseira da Santo Afonso, onde tem o final da loja Americanas, ali tinha um prédio, tem um prédio e que jovens como eu, aí já fazendo universidade, tinham passado para a faculdade, eu passei para história, a Curi passou para psicologia, Aldir Blanc para medicina, Rotterdam para história. Era um grupo de jovens da Tijuca alguns ligados à música e outros ligados à poesia. Então você tinha no campo da música um Movimento Artístico Universitário: MAU, com Aldir Blanc, com Gonzaguinha, com Ivan Lins. A mulher, a primeira mulher, não sei qual mulher está hoje. Mas, a primeira mulher é a Lucinha, Lucinha fazia o Colégio Santa Úrsula. Eu já estava na Universidade, ela é mais nova que eu. Então tinha o grupo da música, mas tinha, também, o grupo da poesia os: ADVERSOS. Então, eu escrevia poesia, mas também escrevia música, participava dos festivais universitários. Tirei um quinto lugar, tem lá o trofeuzinho na minha casa. Então, esses jovens tijucanos não eram nada conservadores, nada, rigorosamente nada. Nós nos reuníamos na casa da Cúria, a mãe da Cúria fazia cafezinho para a gente, fazia suquinho. O Aldir acabou não continuando a medicina dele, porque o grande poeta de música que o Aldir foi e vai ser a vida inteira. Todos eles com um coração assim imenso. Então nós nos reuníamos ali, nós chegávamos em torno das oito da noite e acabava a conversa, o apo, a música, o dedilhar de música lá pelas duas, três da manhã. E, eu subia papai às vezes: não, eu vou buscar você, é muito tarde. Às vezes ele ia, mas eu subia a rua Carlos Vasconcelos até chegar lá em cima, problema nenhum. Eu sinto falta daquele silêncio daquela época. Tem um livro agora que saiu de um filósofo coreano, aliás ele tem vários livros, tem aqui na UERJ, esse é o último livro dele que é sobre a não coisa, e ele fala exatamente da potência da criatividade do silêncio, as pessoas hoje vivem nos ruídos, as pessoas vivem nos barulhos. Com isso você não vai ter nunca uma obra que demore cinco, seis, sete anos para você escrever. Porque o CNPq, a CAPES, sei lá mais o que diz que toda hora você tem que escrever texto. E, se você não escreve e não põe nesses órgãos de fomento, docentes e alunos também, porque até os alunos tem que botar, é como se nada existisse e realmente nada existe. Porque a criatividade do silêncio para a construção do conhecimento é fundamental. Eu preciso desse silêncio, agora eu posso ter mais, estou em casa mas mesmo quando estava aqui dentro da UERJ eu ia para um cantinho do meu laboratório. Porque eu dirigia aqui dois laboratórios, o LPPE e o outro que é sobre religiosidade, PROEPER. Então, a minha juventude foi uma juventude de muita criatividade, criatividade solitária, mas criatividade de pessoas que pensavam muito parecido, são pessoas que pensam nos outros.
E1 – Agora eu vou fazer uma pergunta que foge o roteiro as tem a ver...
R - Não, use o roteiro como quiser.
E1 - (risos) a sua geração viveu um momento no Brasil...
R - Terrível
E1 – ... que foi um momento significativo, num primeiro momento, que o Brasil acreditava, quer dizer, a segunda metade dos anos cinquenta, início dos anos sessenta foi uma fase que o Brasil acreditava que estava em um caminho que naquele momento se chamava desenvolvimento nacional. O nacionalismo tinha essa marca de diminuir as desigualdades. Você tinha muita gente boa pensando isso, pensando e tentando fazer isso politicamente, na música...
R – E muitos escritores, intelectuais que escreviam livros assim.
E1 – Exato, e ao mesmo tempo essa geração é marcada pelo sentido do coletivo, que você está falando aí, de um sentido que a minha geração, que é a posterior a sua, também pegou e segurou essa barra. Você falou em Aldir Blanc, falou em Lins, falou em Gonzaguinha, é claro. Você estava muito ligada, pelo o que eu vejo, a um grupo tijucano ligado às artes. Como é que você via essa relação política, artes nesse momento no Brasil e o que você sentiu em sessenta e quatro. Você estava terminando, o que a gente chamaria hoje de...
R – Sessenta e quatro eu estava acabando o normal, acabando o ensino normal. Essa minha geração que você fala, muitas pessoas, que não eram ligadas às artes, que não tinham, como diz Roland Barthes, o prazer das artes, o prazer do texto, como era esse grupo ao qual eu pertencia, pessoas amigas. Não estavam muito atentos ao que estava acontecendo não, gente com a minha idade naquela época não estava nem aí: o que é isso? Revolução... não estavam nem aí. Geralmente, as pessoas que eram muito ligadas ao afeto que o conhecimento se faz, principalmente através do afeto. Leiam, vários teóricos têm agora sobre isso, mas existe um muito importante que é Deluze. E, o que Deleuze fala nos seus estudos sobre essa construção do conhecimento, através do afeto. A professora Carmen Lúcia Tindó, uma das especialistas na área das africanas, que escreveu muito sobre isso. Então, veja bem, esse meu grupo, a gente já estava ligado, eu era do ensino normal e já passava para a universidade, porque quando eu passei para a universidade...
E1 - Você fez universidade...
R - Aí eu vou dizer por que eu fiz essa...
E1 - (risos)
R – Foi na época, nossa eu agradeço a Maria Yedda Linhares, porque eu passei para a UFRJ e passei porque na época o Santa Úrsula fazia prova, aquelas confusões todas. Não eram quem indica, passei no Santa Úrsula. Fui começar na UFRJ, Maria Yedda, minha professora na primeira aula, ela chegou e disse: - Edna, eu estou saindo do país. Aí eu comecei a me ligar mais das coisas ainda: Eu estou saindo do país, Darcy vai sair, você passou. Porque eu conversava muito com ela. Também para o Santa Úrsula. Eu falei: passei professora: - então vai para lá. Eu vou sair do país, Darcy vai sair. E foi me falando sobre a situação. E aí eu conheci no Santa Úrsula uma professora, que eu acho que te falei o nome agora, Maria Amélia de Souza, professora Amélia, que era professora de Introdução aos Estudos Históricos. Quando a Marieta me deu esse toque eu falei: eu vou lá me matricular no Santa Úrsula. Me matriculei. E, naquela época, quando você se matriculava, tinha sempre um professor, monitor, alguém que vinha te orientar o que você começava a fazer, e a professora Amélia. Ela disse, ela viajava muito, ia muito para a Louvain. A católica, a Universidade Católica, e disse: Edna fica aqui, a situação na UFRJ vai ficar insustentável. E aí, foi a melhor coisa que eu fiz na vida. Eu amo a UFRJ, depois fui fazer mestrado e doutorado lá, mas se eu não tivesse feito no Santa Úrsula ou eu teria morrido, com meu temperamento, ou não teria aprendido não porque não tinha professor. Então, Santa Úrsula estava naquilo que Maria Yedda me explicou, na teologia da libertação. Então, lá estava e davam aula, fugia muita gente que era perseguida, ia para lá, porque lá ninguém entrava, soldado nenhum entrava, então os irmãos Lochaider, Mauro Morelli, todos esses que eu vou dizer já morreram, de uma forma ou de outra, de velhice. Outro, que é muito importante Pedro Casaldáliga, eu conversei muito com o Pedro. E, outros, e professores, o marido da Dirce era filósofo, professor lá, o Sidnei Solis foi o primeiro presidente da ANPUH, Universidade do Rio de Janeiro, um dos primeiros. Então, toda a teologia da libertação estava na Universidade Santa Úrsula. Eu tive, olha, um ensino, enquanto as pessoas falam hoje, um monte de teóricos, eu aprendi em sessenta e oito. Sessenta e oito era o ato institucional. De sessenta e oito a setenta e um, eu pude ler o que queria, inclusive Marx, dentro da Universidade Santa Úrsula, lia tudo, tudo, Heidegger, da área da filosofia, tive excelentes professores em todas as áreas, todos eles, alguns até com grandes, e eu sou uma pessoa que eu posso dizer que sou religiosa. Eu acredito em Deus, eu acredito em Deus como grande energia que vai mover cada vez mais o mundo, entendeu? Acredito muito, como história, e sempre dizia, eu tinha... adorava ele, está lá em cima. Afonso Carlos. Afonso Carlos dizia: Edna, você é tão inteligente, como é que você vai fazer doutorado em educação? Eu falei, eu brincava com ele: a educação precisa de mim e eu preciso dela. Eu tenho que mudar a maneira como está a educação nesse país. Foi a outra melhor que eu fiz, porque foi com ela que eu fui me relacionar com Darcy Ribeiro e Paulo Freire. Eu acho que ter me relacionado com esses dois, você sabe, isso marcou a minha vida pro resto da vida.
E2 - Além dessas decisões, professora...
R - Não ouvi...
E2 - Além dessas decisões, como foram as suas escolhas no campo profissional que levaram a senhora ao ensino de história?
R – Uma eu já falei no início que era ter vivido a história com as viagens que eu fui com meus tios à Alagoas, que eu conheci uma série de engenhos, conversei com uma série de pessoas como a viúva do Graciliano Ramos, isso eu era garota, tinha quatorze, quinze, dezesseis anos, então isso foi uma das coisas. A segunda coisa, e essa foi a mais forte, porque aquela ideia do Neruda de: - confesso que eu vivi essa história, ninguém me contou, eu não fiz rerum gestarum eu não fiz regestae quer dizer, eu vivi aqui, eu senti em primeiro aquilo e a história entrou pelo meu coração, pela minha vida, por tudo. Hoje tá na moda falar em corpo, entrou pelo meu corpo em todos os sentidos. Mas não foi só isso, também no Colégio Pedro II, no ensino normal, eu também tive grandes professores que me falaram sobre história, mas, principalmente, em sessenta e oito, eu estava entrando para o primeiro ano da faculdade, da Universidade Santa Úrsula, tinha ouvido a professora Maria e, quem foi aluno dela, eu não preciso dizer quem foi, não é? Pessoa super. coerente em tudo e que me disse: olha, você é filha de um funcionário, não vai ter aula na UFRJ. E não tinha, fora gente que morria, quase todos os professores que puderam viajar saíram do país, e aí eu fui para uma universidade católica. Só que essa universidade católica na época, como eu acho que hoje com esse novo Papa ele está tentando dar essa guinada, mas não existe você querer viver aquilo que já foi vivido, então eram teólogos. Boff Fui aluna do Leonardo Boff, depois foi meu colega aqui na história nas ciências sociais no nono andar. Então, eram pessoas, porque para você gostar da história ou de história a primeira coisa é você gostar de gente, quem não gosta de gente não vai fazer história, na primeira fase da conversa quando aluno vem: ah eu não gosto disso, não gosto daquilo, muita gente. Eu digo: olha aqui, pode parar, vai fazer outra coisa. Porque a história, antes de mais nada, ela é social. A história é social. Hoje eu fico boba quando os alunos não querem fazer pesquisa na Baixada, não querem fazer pesquisa em outros lugares, estar em contato com o povo, como dizia o Darcy. Estar em contato com o povo, como dizia Paulo Freire. Porque em história a primeira coisa que você tem que fazer é aprender a ler o mundo. E, como está difícil ler o mundo hoje, e olha que a gente tem teoria, né e olha que a gente tem conhecimento, né, Sônia, mas como está difícil?! Então, tudo isso junto, e, no caso, sessenta e oito e os atos institucionais, aí eu disse: meu Deus do céu, mais do que nunca eu estou numa universidade que eu pagava como professora primária. Veja como é que eu ganhava em sessenta e oito como professora primária.
E1 - Então você continuava lá trabalhando e fazendo a faculdade?
R – Isso, isso. Eu continuava, não podia dar aula ainda porque não acabei a faculdade, não podia dar aula no antigo ginásio. Eu era professora primário. E eu tinha uma amiga, que tem cinquenta anos de amizade comigo a Maria Eudice, a Maria Eudice fazia história comigo em mil novecentos e sessenta e oito, e ela tinha um motorista. Porque o primeiro marido dela, ele já morreu a muitos anos, o professor Justo, era de Bangu. Era ligado à família Guilherme da Silveira, fábrica Bangu. A aula ia até meio dia e meio, mas se eu ficasse até meio dia e meio, eu não entrava meio-dia lá em Marechal Hermes para dar aula na escola primária de Marechal.
E1 – Qual era a escola?
R – Irineu Marinho. Olha que contradição (risos), o pai de tudo aí da Globo, era na época jornalista, o velho, o antigo. Eu dava aula nessa escola. Então a Maria Eudice ela deixava de assistir o último tempo, como eu, não podia assistir, para me deixar lá com o motorista para eu poder acabar meu curso, foram quatro anos assim, Sônia. Por isso que a Maria Eudice é amigona, uma pessoa realmente incrível.
E1 – E aí você tem então toda uma formação em história em um momento como esse no país, dentro de uma universidade, portanto num curso de história que tinha uma cara muito da resistência da igreja, pelo menos num setor da igreja que é da teologia da libertação...
R – Na época, sim, sim.
E1 – E o que fez você, então, desse caminho todo de história, num momento como esse, passar a decidir sobre o ensino de história?
R – Veja bem, de sessenta e oito eu me formo em mil novecentos e setenta e um, em setenta e dois eu já era professora universitária da Universidade de Santa Úrsula. Porque, às vezes até pela resistência necessária, eu sempre fui primeira aluna. Nessa época havia uma professora, acho que você conhece professora Laurinda, que era muito ligada à Maria Yedda, e a Laurinda precisa de alguém, porque aí era quem indicava mesmo. Como eu era primeira aluna, ela indicou meu nome para pegar turmas dela. Não sei nem se Laurinda está viva? Eu gostaria que ela estivesse, mas ela já deve estar com quase uns noventa, por aí. E, aí ela me passou algumas turmas, a universidade me fez o contrato e em mil novecentos e setenta e dois, ainda bem jovem. Eu era professora universitária, em uma universidade que eu concordava com muitas coisas que ela dizia. Isso influenciou muito a minha vida posterior, principalmente nessa área da religião, das religiosidades, etcetera. Então, com o diploma na mão, eu dava aula na Universidade Santa Úrsula. Por isso que eu já aposentei de lá a muitos anos, comecei muito jovem, e continuava a dar aulas no ensino médio, no ensino médio não, no ensino básico, já podendo dar... no antigo ginásio, como, era quinto ou oitavo, se eu não me engano, que a gente dava aula. E, aí veio uma época, década de oitenta, aí vamos continuar os estudos na história, continuava estudando, dando aula na universidade, dando aula de quinta à oitava. E, na década de oitenta todos sabem de todos os movimentos que o país teve de redemocratização. E, nessa nova fase de uma democracia veio, também, a política de governadores, pessoas que se candidatam, a ser governador. E, eu tinha duas escolas, eu dava aula na universidade e em duas escolas do município do Rio de Janeiro. Eu sou aposentada do município, também, e em uma dessas escolas começou a acontecer em oitenta e dois, oitenta e três, uma série de discussões do DEP da secretária daquela época, que era para discutir, o termo era: passar a limpo a educação, era um jornalzinho que foi a base de todo o pensamento de Darcy Ribeiro. Oitenta e três teve as eleições, se eu não me engano foi em oitenta e três, foram eleitos os governadores do Brasil todo. E, foi eleito o Leonel Brizola para ser governador aqui, do estado do Rio de Janeiro. E, esse primeiro momento, foi de uma discussão imensa nas escolas públicas, discussões diretas. Aonde apareceu o nome, vocês devem conhecer? Também se aposentou ano passado, como eu, aqui da UERJ, a professora Lia Faria. Nós fomos exatamente para um lugar aqui do estado do Rio de Janeiro, representantes escolhidos pelos seus pares em cada escola, aí foi como se fosse, assim, uma razia, eram primeiro quinhentos, sempre escolha direta, e ficaram cem professores e eu estava nesses cem professores. E, aí nós fomos para o famoso encontro de Mendes. A cidade de Mendes recebeu cem professores escolhidos democraticamente, diretamente, com as duas secretárias da época, Marieta Linhares, e era Vargas. E, fomos para lá analisar e discutir, eu tenho esse jornal: vamos passar a limpo a escola. Quem dera que isso tivesse hoje, seja quem for o governador, falar sobre escola, que não, e fala... se não se fala nem na universidade, quem dirá no ensino básico e médio, do jeito que está deteriorado. Aí ficamos lá, olha foi um dos melhores momentos da minha vida, você ouvir Darcy Ribeiro e Paulo Freire, os dois conversando e dizendo – Oi, Darcyzinho. - Oi, Paulinho, como é que está? Como é que vamos fazer? E aí todo mundo discutindo. Esses encontros depois foram realizados no hotel Bucsky, em Niterói, continuaram alguns, mas esse, o Encontro de Mendes... eu acho que foi a primeira vez que se teve um encontro para discutir educação no estado do Rio de Janeiro. E< a partir dali que vem a história que todo mundo conhece da criação e edificação dos centros integrados de educação pública, os CIEPs. É uma pena que depois foi eleito Moreira Franco, vou falar nome dessa coisa horrorosa, foi eleito para governador. Darcy se candidatou, perdeu, porque a classe média adora errar e votaram no Moreira Franco a grande maioria, aquela classe média elitista, que não gosta de gente, que não gosta de entender o que foi a história do Brasil, como dizia o Darcy, a escravidão brasileira, uma coisa terrível. Então, exatamente, o Darcy perde a eleição e o governador Moreira Franco que é eleito e aí acaba, tudo o que começou a existir acaba de uma forma geral. Eu faço pesquisa às vezes para ver, tem alguns ainda poucos que funcionam no estado do Rio de Janeiro, mas a maioria não tem mais, porque na época uma parte da elite brasileira dizia: Uma escola? Uma escola para dar café da manhã de manhã, para engordar porquinho? Intelectuais daqui, dessa universidade na época disseram isso, depois fizeram mea-culpa, mas disseram isso. Que dizer, toda a Europa, o mundo inteiro civilizado, desenvolvido, a criança entra as oito horas e só sai as cinco e tem as refeições dentro da escola também, mas, infelizmente, o processo desse projeto acabou. Então, parte da minha vida, da minha juventude, da minha idade mais velha foi lidada com educação, e aí eu vi que eu tinha que fazer mestrado, porque eu não queria fazer, achava: ah mestrado! Vou fazer o que com mestrado? Já faço no cotidiano. E fui fazer mestrado na UFRJ. Grandes amigos meus, grandes historiadores diziam, um deles era o Afonso: Edna, você vai fazer mestrado em educação? Na UFRJ? Em educação? Tem que ir para a história. Eu disse: Não, eu vou para a educação. Exatamente porque a gente tem que mexer naquilo que não está bom, aquilo que está ruim. A história não está ruim, tem você, como professora, e tantos outros. E aí eu fiz, fui para a UFRJ, fiz mestrado em educação, a minha dissertação até hoje, se eu publicar, ela é inédita, não vejo ninguém pesquisar sobre isso. A de doutorado não vejo mesmo. Às vezes eu tenho vontade, sabe, Sônia, de publicar, mas depois eu digo: Não, já passou o tempo. O nome da minha dissertação do doutorado na UFRJ é “Monstros, mistérios e encantamentos na educação brasileira”. Porque eu fui realmente pegar, na época, foi em noventa e um que eu defendi, eu fui pegar exatamente os monstros que existem por aí. O que falam sobre educação, principalmente onde as classes sociais mais baixas são questionadas, criticadas, isso sem falar do racismo, isso sem falar da intolerância, eu estou falando só conhecimento mesmo. Às vezes me dá vontade, às vezes eu tenho convite, mas eu acho que não é mais o momento e falava de sexualidade, também, no momento da escrita dessa tese de doutoramento.
E1 - Você falou da sua participação efetiva no Rio de Janeiro de um momento muito importante para o ensino, para a educação de uma maneira geral...
R – Dentro de governo mesmo, não é?
E1 – ... que foi esse início dos anos oitenta, de redemocratização, que o Brasil falava em redemocratização, em retorno ao estado de direito e importante, também, porque é o momento do surgimento, das primeiras discussões do surgimento de um campo que a gente chama de campo do ensino em história. E aí eu lembro que eu, que estava fazendo história nessa época, início dos anos oitenta. Eu estava fazendo história, a gente, quando queria discutir essas questões, a gente lia, pegava um livro de plano de aula organizado por esse grupo que a gente chamava do “azulzinho”, porque era um livro azul...
R – Sim, livros azuis, eu tenho coleção lá, se quiser ver.
E1 – Eu tenho ainda também esse livro...
R – Tem?
E1 – ... que era de plano, a proposta de um currículo novo para o ensino da escola básica.
R – É, um planejamento novo para essas escolas.
E1 – E aí você participou? Quem mais participou? Quais são as discussões que surgiam nesse momento, porque em vários estados essas mudanças curriculares aconteceram e você pode falar sobre o Rio de Janeiro.
R – Estive, estive presente em tudo, graças a Deus. Vamos por partes. Por exemplo, antes disso, eu participei, junto com Circe, que você entrevistou, com Elza Nadai, que, infelizmente, já está falecida a muitos anos. E, com o professor, que eu não consigo lembrar o nome dele, que era de Minas, nós fomos analisar os livros didáticos que eram uma droga, para não dizer outra coisa. Nós ficamos internados na Fundação João Pinheiro, nós quatro. Circe não te falou sobre isso?
E1 – Ainda não chegamos lá. (risos).
R – Ah, está certo. Lembra ela. Ficamos internados lá na Fundação João Pinheiro, em Minas, uma semana. Olha, livros didáticos, porque havia um setor do governo, eu acho que, não sei se tem, até hoje não tem nada mais, não é? Mas naquela tinha um setor do governo que era de livro didático, porque os professores escolhiam, recebiam na escola. Muito bem, ficamos uma semana lá, na Fundação João Pinheiro. Olha, nós lemos tantos livros de história, livros para primeira e quarta série e livros para quinta, oitava série. Eu só posso te dizer, porque foi... eu tenho um livrão desse tamanho (Edna gesticula o tamanho do livro). Se você quiser ler eu te empresto para você ler. Nesse livro a gente dizia o que devia ser usado, as estratégias, enfim, a importância do ato de ler, como dizia o Paulo, Paulo Freire, enfim. E, dessa montoeira de livros, eu me lembro que não chegou a cem os livros que nós referenciávamos. Diziam que esses livros o professor pode escolher... Nada foi feito. Continuaram a mandar para as escolas públicas do município do Rio de Janeiro os mesmos livros, sem nenhuma orientação do que a gente pediu que fizessem. Então, isso foi uma coisa muito complicada, sabe, porque à muitos anos atrás a gente viu a máfia. Melhorou um pouco agora, não é? Mas, a máfia dos livros didáticos. E, que é uma coisa muito complicada de você entrar e resolver, tanto que eu fui uma professora que nunca, nunca usei livro didático. Esses livros que as escolas tinham que escolher. Eu tirava textos de vários jornais importantes, eles liam comigo, discutiam, aliás o Colégio de Aplicação da UERJ sempre fez esse tipo de trabalho, eu nunca adotei, a palavra certa é essa, adotar um livro didático. Eu detesto. Eu dava para os meus alunos uma série de livros para eles irem escolhendo e aprenderem. Então, esse foi um momento. Agora vamos a outros momentos relacionados realmente. Por exemplo, o trabalho com os Centros Integrados de Educação Pública. Pelo menos, oitenta e três é o início, oitenta e quatro, oitenta e cinco, oitenta e seis, primeiro governo Brizola, nunca foi tão gratificante trabalhar nesse momento. Sem questões partidárias, até hoje eu não estou nem aí com questão de partido, para mim todos são uma porcaria e tudo muito igual. Então, em relação ao trabalho, se aquilo tivesse dado certo, continuado ia ser uma maravilha. Porque, como é que funcionava esse trabalho? Esse trabalho, ele funcionava toda semana, cada escola, cada CIEP, ele tinha dois, três coordenadores, na área da história, na área das ciências, na área da matemática e da língua portuguesa. Esses coordenadores vinham ao Brizolão de Ipanema, onde era o centro onde os coordenadores, ligados a Darcy Ribeiro ficavam, o chamado Brizolão de Ipanema. E, ali, esses professores, e nas escolas também, nos CIEPs aos quais eles pertenciam nós íamos lá. Por isso que eu conheço o estado do Rio de Janeiro na palma da minha mão. Então, esses professores faziam cursos, muitos aprendiam a ler, não sabiam nem ler direito, em qualquer área, e levavam o material que era produzido por eles, com a nossa orientação, para os lugares onde eles davam aula. Se vocês ainda pegarem para entrevistar esses resíduos de professores, que na época foram coordenadores de CIEP, e que passaram por esse processo. Vocês vão ver a diferença dos professores que hoje estão em sala de aula, a consciência crítica, o conhecimento, o interesse em pesquisa. E, durante quatro anos foi assim, então foi um trabalho de campo, um trabalho de mão dupla. Nós coordenadores, eu coordenadora de história, eu tenho até hoje muitos que daquela época participaram e que hoje são professores na Federal Rural, na UFRJ, enfim, e tinha também outros colegas, como Ana Monteiro, que você conhece muito bem, quer dizer, era um grupo... ninguém perguntava: ah, você é Brizola? Ninguém sabia nada disso, não interessava. O que interessava era a produção e a socialização de conhecimento, que é a minha maneira de pensar hoje, hoje eu escolho fulano para senador do, sei lá, partido tal, outro do não sei o que... eu não fico pensando, porque não há postura de partido político no Brasil. Se houve, em algum momento, acabou, não tem mais, quer dizer, a postura de partido político, de consciência de partido, de consciência de classe, como a gente aprendia nos bancos escolares, seja de Marx, seja de outros teóricos, não tem mais. Tanto que é fácil, o cara começa no PT, vai para o PDT, vai para o PSDB, vai sei lá para onde. Então... não fale em partido que não vale a pena. Então, exatamente naquele momento, o que interessava é pensar a história, ler e pensar a história e discutir a história, e era um ensino de história nos CIEPs o tempo inteiro assim.
E1 – Posso te fazer uma pergunta...
R – Pode.
E1 – ... que eu acho muito interessante para pensar isso. Hoje em dia, a gente faz uma crítica, agora já está até menor, mas ainda faz uma, ainda existe isso da pouca relação que existiu durante décadas entra a história, enquanto ciência acadêmica, e o seu ensino. A experiência que você está passando aqui para gente é uma experiência de professores ligados à escola básica pensando a produção de um campo, no Rio de Janeiro, que é o ensino de história. Qual a relação que existia, ou se existia, entre acadêmicos que você conheceu, naquele momento, e esses professores que, pelo que você está me dizendo, eram professores da escola básica...
R – Da escola, da escola.
E1 – ... eles que estavam pensando essa produção, como é que existia?
R – Junto com a gente, junto com a gente. Ah é que existia... vou te dizer alguns nomes daquela época. Circe era uma, mas não só ela, Elza Nadai muito. Elza Nadai, pena que tenha morrido porque era uma pessoa que podia dizer muito sobre a questão do ensino de história, em São Paulo. Mas você tem, por exemplo, você tem professores que também eram teóricos, Arno Wehling, por exemplo, você conheceu o Arno? Que falava muito sobre o ensino da história, administração, você tem um grupo que estava no estado, Ilmar Rohloff. Trabalhei muito com Ilmar Rohloff. Era um grupo que não era só do ensino da história, era da produção de um conhecimento que discutia a história. E, que discutia questões que a gente ia buscar na época, não sei se hoje isso é até dado do grupo dos Annales. Não dos Annales posteriores, mas nos iniciais, Marc Bloch, será que os alunos hoje conhecem Marc Bloch? Não sei, estou um pouco afastada disso: Henri-Irénée Marrou, será que conhecem? (Alfonson d’Blon) (1:16:25), é grupo dos Annales. Para que serve a história? Braudel, ler Braudel é fundamental. Um menino que faz história, uma menina, que nunca leu Braudel é muito complicado, ele vai ler Stuart Hall, que está na moda, Homi Bhabha que está na moda e não sei mais quem que está na moda, mas os fundadores, os fundamentos das várias gerações dos Annales. Se fala hoje muito em sexualidade, sem ninguém ler o Philippe Ariès como é que vai falar sobre sexualidade? Como é que vai falar o corpo que fala? Até hoje está na moda, toda hora eu vejo alunos de outros colegas dizer: não, porque agora é o corpo escrito negro. Muito cuidado, nós temos hoje vários, não hoje, nós já tínhamos na época do ensino de história, na década de cinquenta, na década de sessenta, gente que já discutia isso, já discutia isso. Memória, memória... Jacque Le Goff, Pierre Nora e tantos outros. Mas, hoje temos outros nomes que não dizem quem escreveu o primeiro, quem colocou... eu não vou dizer o nome, mas eu estava num congresso a anos atrás, já tem tempo, dez, quinze, anos. Estava numa sala de conferências da universidade, eu não vou dizer o nome da pessoa porque hoje ele é muito conhecido, naquela época não era tanto não, mas hoje o pessoal da educação de letras, então... amam. Eu sentadinha, quieta, ouvindo esse sujeito falar, e aí ele vai falar, estava falando sobre memória, sobre questão de Portugal etc., e aí ele coloca uma questão sobre memória, tem um historiador fabuloso que hoje não é nem falado que é Pierre Vilar, você conhece porque é da geração antiga, embora seja mais nova do que eu, e o camarada lá solta uma palavra sobre memória como se fosse dele, porque aquela plateia não ia conhecer Pierre Vilar. Eu quietinha, aí a Carmen me conhece e disse: você não vai levantar e falar nada, o homem é muito conhecido. Eu falei: vou. Eu me levantei, Sônia. Eu me levantei numa plateia de portugueses, a maioria, e de outros e disse: - professor, por favor, eu só gostaria de fazer ao senhor uma lembrança. Eu não vi e nem ouvi, em momento nenhum. O senhor falar em Pierre Vilar. Quando eu falei o nome dele, Sônia, ele ficou tão desalvorado, aí ele disse: - não, não, mas está na bibliografia, na minha bibliografia. Eu falei: ah que bom, porque esse conceito não é seu, assim mesmo. Esse conceito é de Pierre Vilar. E, acabou. Isso eu fiz quando eu tinha o que, hoje eu estou com setenta e seis, eu devia ter uns cinquenta e poucos, você já imaginou, não é, como é que eu era? Eu não admito, não admito que um conceito que foi trabalhado por algum historiador, algum antropólogo, então não fala, não diga que é seu, entendeu? Eu não admito isso, a falta de ética com os critérios de conhecimento. A minha geração, a sua, também a da dele, foi muito ligada nisso. Quer dizer, a questão da verdade, da Hermenêutica, da Heurística, eu não ouço nem mais falar hoje, acho que ninguém fala mais nada sobre isso. Mas, a minha geração, ela foi muito e é ética ainda. E foi uma situação constrangedora, eu vou te dizer no pé do ouvido que é, porque ele é muito querido aqui na UERJ.
E1 – Eu acho que até já sei quem é quem você colocou.
R – Eu nem quero saber da existência.
E1 – Mas acho que já sei. (risos) Fala.
E2 – Professora, retomando ao assunto dos CIEPs, como foi a experiência de pensar o ensino de história. A partir desse modelo de escola e pensar também as suas ações no ensino de história, os livros didáticos, enfim.
R - Não sei se você consegue ler o texto, o chamado, tem o livrinho azul que eu participei com (?). A nossa amiga, e tem o livrinho preto dos CIEPs, que é a bíblia... Porque... como é o teu nome?
E2 – Gisele.
R – Ah Gisele, agora que eu estou te vendo porque com esse negócio aqui na minha frente eu não estava vendo direito.
E2 - (risos)
R - Nós não sabíamos como fazer, aí que está a história. A grande descoberta foi essa, porque a gente não sabia como fazer, a gente teve que ler muito, a gente teve que estudar muito. Eu, a Margareth... era Margareth, Margareth Rago.
E1 – Margareth Rago.
R – A gente debateu muito com ela lá em São Paulo, também. A gente não sabia como fazer, não tinha alguma coisa dizendo, mas uma coisa a gente sabia...
E1 – Ana Maria Severino.
R – Ana Maria, isso, e outras pessoas que agora eu não estou lembrada. Ana Maria Monteiro e tantos. A gente não sabia como fazer, mas... Maria Bernadete, agora me lembrei, Berninha, a gente chamava de Berninha. Esses nomes estão no livro aí, no livro preto dos CIEPs. Então, a gente sentava e todos eram pessoas que deram aula, elas não caíram de paraquedas. Todas nós demos e dávamos aula ainda no ensino básico. Então a gente já vinha discutindo, tinha um grupo na secretária de estado onde estava Ilmar. Então, a gente já vinha discutindo coisas, com Ana Monteiro, a gente discutia muito. Então quando a gente sentou para escrever, a gente escreveu a partir de experiências da gente. Do dia a dia, do que dava certo e do que não dava certo, mas uma coisa a gente tinha certeza. É que a gente tinha, não podia ficar afastado dessas pessoas que estavam nos CIEPs, tinha que ser uma coordenação presencial. Estar ali todo dia, eles exercitarem a escrever textos, tinha que eles escreverem textos também, não eram só textos nossos ou textos de colegas nossos. Então, toda semana esses professores saíam dos seus CIEPs do estado do Rio de Janeiro e iam para o Brizolão, nós íamos para os CIEPs e discutíamos o ensino da história. Como é que tinha que ser dado esse ensino, que o aluno tinha que trabalhar suas emoções, que não se aprende com aquela visão positivista de história. Porque é uma época em que ainda a história era dada com nomes, com datas, com eventos então isso era pra ser cortado do mapa, era difícil para os professores, que estavam dando aula em Seropédica, em Campos, lá onde seja. Então, foi um trabalho de formiguinha, miudinho, a partir do concreto, a partir da experiência deles, a gente não jogava teoria nos professores, era uma relação prática, primeiro. Prática, teoria, teoria, prática, então foi uma experiência que eu aprendi muito e para mim era mais fácil porque, como professora, eu não usava livro didático, eu detestava livro didático. Aquilo me confinava igual a pandemia, me prendia e eu sou uma pessoa da liberdade, em todos os sentidos. Eu gosto de me sentir livre, pra errar, errei muito também, não tem problema, mas para ousar. Educação é ousadia, educação é você não ter medo de errar, mas também ter vontade de acertar, tanto que hoje em dia existem muitas coisas escritas sobre o medo, a principal sequela desses dois anos foi o medo, medo de viver, medo de amar, medo de sair às ruas. O que eu estou dizendo eu estou vendo em pessoas aí no dia a dia, falam primeiro em medos, e eu sempre converso com pessoas amigas e, enfim, com todo mundo enquanto eu estava dando aula mesmo aqui na graduação, agora só dou na pós, que o fundamental para o ser-humano é a alegria de viver. Não é o medo, sim, eu posso sair à rua, eu vou dar o meu exemplo, meu testemunho, eu posso sair e pegar a COVID, não peguei. Não peguei nem antes das vacinas. Nesses dois anos eu tive amigos, tive família, pessoas que tiveram e quem foi ajudar foi eu, ia na casa de uma das minhas irmãs, botava a comidinha, o mercado que eu fiz na porta, tocava e ela vinha abrir e aí depois ela me ligava: meu Deus, deixa, eu me viro, faço delivery. Não faz delivery porra nenhuma. Tem que ter o contato com as pessoas, se você também não tiver esse contato de longe vai ficar ruim da cabeça. Graças a Deus todas as pessoas que tiveram COVID não ficaram hoje com sequelas aqui, na cabeça (Edna aponta para sua cabeça), ao mesmo tempo que eu conheço muita gente que ficou. Então, eu dizia: tira o medo da sua vida, não tenha medo. Agora, não tenha medo, mas faça como eu, eu até para cá, guardei aqui no bolso, eu venho de máscara, mesmo que digam: não, pode andar sem máscara. Não vou andar, não vou andar. Eu ando com todo o ritual, saio de casa e não tomo café em lugar nenhum, vou tomar na minha casa. Aquele ritualzinho básico, foi com ele que eu vivi e pude ajudar muita gente. Veio a primeira dose da vacina “pah”, hoje eu já estou com quatro, agora mais difícil, tomei o segundo reforço agora.
E1 - É, eu vou tomar semana que vem.
R - Não, não deixa de tomar. Então veja bem, eu tenho horror a essa palavra negacionismo, em todos os sentidos, todas as formas e maneiras. As pessoas perdem tempo, eu sempre tive essa maneira de pensar, não é porque eu estou agora com esta idade, mas eu sempre tive essa maneira de pensar: eu não posso perder tempo de viver. A vida não é só dom de Deus, a vida é alguma coisa para ser vivida para ser vivida com coragem, mas com alegria, ponham na cabeça de vocês a alegria, o tempero, porque isso é fundamental para botar a gente pra frente, para fazer bem a você e fazer bem aos outros e não pagar psicanálise, não pagar análise, não pagar nada disso.
E1 - (risos) Edna, fala um pouquinho sobre como é que você, sendo professora da UERJ, quando é que você... você diz que começou a dar aula logo depois de formada na...
R – Setenta e... isso...
E3 – Santa Úrsula.
E1 – Santa Úrsula...
R – Santa Úrsula, setenta e um, setenta e dois já dava aula lá.
E1 – E aí quando chegou a UERJ e qual oi, como é que você cruzou aqui, estando na UERJ...
R – Eu não tinha ideia daqui.
E1 – É, e você dava aula nas duas.
R – Tudo, não só nelas, agora vem o outro lado da história. Eu vim para cá em oitenta e sete a convite de uma grande amiga, já falecida, Marilena Barbosa.
E1 – Marilena Barbosa.
R – E oitenta e nove eu fiz o concurso público e passei em primeiro lugar. Oitenta e nove eu já era professora efetiva da UERJ. E aí, eu tinha outros lugares que eu dava aula além do município, lugares, eu tenho tudo isso pronto, se você precisar algum dia montar algum um curso está tudo prontinho guardado. Eu montei o curso de história, bom, aqui o curso de história teve uma participação imensa minha, da Lenar e da Lúcia Bastos, de outras pessoas. Mas eu montei o curso de história na Faculdade de Valença, FAA, não sei nem como está hoje lá, montei o curso de história, em Macaé. Montar, quando eu digo montar o curso, é toda a infraestrutura do curso, eu tenho os projetos todinhos guardados, depois havia uma análise que o governo fazia, dava nota, enfim. Valença, Vassouras, Macaé, todos esses lugares eu montei todo o curso de graduação em história, e, em outros lugares do Brasil, eu dei orientações, me chamavam, eu ia lá, ficava uma semana, orientava: - olha, você tem que ver primeiro aqui os objetivos. Enfim, como é que se... isso foi muito importante.
E1 – E como é que você via aqui, durante o seu caminho aqui como professora e nesses cursos a relação com o ensino de história, entre a história, porque era cursos de bacharelado e licenciatura.
R – Sim, sim.
E1 – Mas e o ensino de história como é que você via? Falando nisso, pensando eu, aluna que fui na década de oitenta da UERJ, de oitenta a oitenta e três eu fui aluna da UERJ, e a gente não tinha ensino de história no curso de história, qualquer coisa para falar de ensino...
R – Era muito complicado.
E1 – Porque nem se falava em ensino de história, mas de educação, era lá no doze, na faculdade de educação.
R - É, educação é no doze, eu briguei...
E1 – Como é que você viu a situação aqui?
R – Olha, eu briguei muito para a educação ser no doze, porque o curso de história, logo no início, o aluno que entrava para fazer história, só da educação, se eu não me engano, isso já passou tanto tempo, ele tinha acho que umas dezoito ou vinte disciplinas que ele tem que fazer no décimo segundo andar, era muita disciplina, e nós começamos a montar aqui dentro da UERJ, nós que eu digo aí é reitoria etc., a chamar professores de vários espaços da universidade para ver como adequar a você ter na história mais disciplinas de história, porque, na verdade, eram mais disciplinas da educação, disciplinas, às vezes, desinteressantes. Quer dizer, então primeiro aqui dentro começou a se discutir o perfil, vamos dizer assim, do que deveria ser o curso de história, então...
E1 – E o ensino de história estava nesse perfil inicial?
R - Não, não estava, não tinha nada. Eu estou dizendo que a maioria era educação, eram disciplinas de educação, era não sei o que da educação, psicologia da educação, era um monte de coisa de educação. E aí começou a discussão. Eu me lembro que na época, também já morreu a diretora, é horrível você lembrar isso, não é? Das pessoas que já se foram. A Creuza (? 1:32:36), se lembra dela? Ela era diretora lá do IFCH, e a gente começou, Lenar, eu a pressionar, a Tereza Turíbio que brigava com ela demais, que a gente tinha que discutir, que não podia ser tinha, tinha que formar comissões e aí começaram a ser formadas comissões para a história ter um ensino, ter um perfil de história, porque não tinha, durante muito tempo não tinha não, era muito complicado. Mas a Lenar foi muito importante nesse processo, e foi importante não só na universidade, mas no colégio de aplicação também, o Colégio de Aplicação da UERJ ele mudou, mudou fundamentalmente, mudou, inclusive, nas práticas do cotidiano, mudou até na discussão do espaço físico para ser mais de discussão coletivo, porque aquela coisinha de botar uma cadeirinha, uma mesinha, uma coisa atrás da outra isso tem uma ideia política, atrás dessa arrumação, pode ser basteira, mas não é, quer dizer, o Colégio de Aplicação da UERJ botou logo a rodinha, na época me lembro que um que falava muito desse trabalho coletivo, Lauro de Oliveira Lima, a gente leu muito coisas que ele escrevia, algumas discutíveis mas outras bastantes interessantes. Então esse perfil de um ensino de história aqui na UERJ como a gente queria demorou muitos anos para ser implantado. Quando eu comecei a dar aula aqui, eu e Marilena Barbosa, não tinha perfil de ensino de história nenhum. E, em noventa e quatro foi importante a chegada, acho que foi em noventa e quatro o Cordeiro reitor, o Hesio Cordeiro, um grande amigo, ele é uma divisão entre o que era UERJ e o que passou a ser. A UERJ não tinha nem pesquisa, antes do reitor Hesio Cordeiro a UERJ não tinha pesquisa. Não era uma universidade de pesquisa, que fazia pesquisa, de investir em pesquisa, não era, era uma coisa mínima. Foi a partir daí que os laboratórios nas áreas das ciências humanas e sociais foram criados. O primeiro laboratório que eu criei exatamente se chamava, e hoje os colegas agora continuam, a professora Angela Roberti, que eu pedi pelo amor de Deus para ela continuar na coordenação, hoje tem o professor Flaviano e outros. Eu criei o laboratório de pesquisa de ensino de história. Esse laboratório foi o primeiro a fazer um convênio com a prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, do César Maia, eu fui lá. Aguentei meu estômago, bebi bastante água, mas fui lá falar com ele. Porque naquela época, você sabe disso, não é você que é amiga da Jaque Ventrapani, ou não? (Edna se refere a E3)
E2 – É, sim.
R – Pois é, a Jaque Ventrapani começou a trabalhar comigo, e a Jaque começou as questões da tecnologia, porque eu não gostava disso, mas mesmo assim eu fiz o primeiro CD sobre ensino de história e pedi que o César Maia botasse, na época eram mil cento e cinquenta escolas, e ele botou em cada escola da cidade do Rio de Janeiro gratuitamente. E aí nós continuamos com um lado da produção, do ensino da história...
E1 – Isso é década de noventa?
R – Noventa. Porque eu disse: olha, eu detesto tecnologia, mas tem que entrar nessa área. Então começamos a fazer CDs, começamos a publicar vídeos tudo sobre ensino. Um deles, na capa, tem Yasser Arafat, década de noventa... falando sobre questões relacionadas à Palestina. Hoje tem, além disso, depois, o LPPE entrou em podcasts, entrou em uma série de coisas hoje da chamada modernidade tecnológica.
E1 - Você tinha, você lembra se nesse momento, que eu lembro o LPPE porque o CAP participou nessa organização e eu já era professora. E aí você lembra se já existiam alunos que pensavam e participavam, qual era a demanda, como é que os alunos se integravam a essas questões.
R – Sim, muito, muito. O LPPE, hoje eu acho que tem menos, porque se é uma coisa interessante e também importante você tem um nome, todo mundo sabe que Sônia Vanderlei é uma grande estudiosa do ensino de história, como na época sabiam quem eu era. Então isso abre caminhos para bolsa, por mais que você mandasse pedindo bolsa de monitoria, bolsa de... como é o nome daquilo? Tem aqueles nomes de bolsa da UERJ...
E2: Iniciação científica... PIBIC?
E1: Iniciação científica, iniciação à docência.
R – Eu ganhava todas, todas, cinco bolsas. E os alunos, então, se credenciavam para participar das bolsas, a gente entrevistava, eles diziam o porquê estavam querendo participar... E, com isso saíram... uma das pessoas que se formou e infelizmente não está hoje, morreu em dois mil e vinte de COVID. Era um rapaz fez também, depois, doutorado aqui, foi nosso orientando e acho até que você conhece e logo no início da pandemia ele se candidatou a vereador do PSOL, não foi eleito...
E1 – Marcelo?
R – Marcelo Biar. Marcelo Biar é uma pessoa que até hoje eu tenho uma saudade, assim, enorme, um grande amigo, fui ao último aniversário dele, quando ele fez cinquenta anos. E, politicamente ele me contou tanta coisa que é complicado você acreditar... Mas olha, é um deles, eu me lembrei de Marcelo Biar, mas tem outros tantos que passaram pelo laboratório de hoje são professores, do Colégio Pedro II, de universidades, da federal rural tem vários, tem um que era maravilhoso, que também faleceu, de história, a filha dele acabou fazendo, a Júlia, acabou fazendo história aqui na UERJ, também. Então muitos dos ex-alunos do laboratório, ex-bolsistas, se tornaram grandes nomes na área do ensino de história.
E1 – E você lembra, participou ou lembra, nesse período todo, de alguma política ou proposta de extensão ligada ao ensino de história.
R – Algumas eu me lembro. A gente tem que falar a verdade, não é um nome que eu gosto muito, mas na época do Ricardo Vieira Alves teve vários... nós apresentávamos pelo laboratório, que dizer, o laboratório LPPE e depois o PROEPER, que a professora Telma participou, era a alma desse PROEPER, em muitos projetos. Todos esses projetos, de um laboratório e do outro, foram projetos extensionistas. Alguns desses projetos a gente ganhou até menção honrosa, prêmios e por aí vai. Na época do professor Ricardo, quando ele era reitor, muita parte extensionista, acho que a UERJ cresceu muito nessa parte. A UERJ é uma universidade que ela tem a cara da pesquisa, ela tem a cara do ensino, mas ela tem uma cara de sociabilidade, de extensibilidade imensa. Eu acho que esses dois anos, aliás, é uma pesquisa a se fazer, esses dois anos de pandemia quando a UERJ deixou de extensão. Praticamente deixou de extensão, a universidade fechada, extensão via online não é a mesma coisa, aqueles encontros que se tinha, todo anos, e que em dois anos não existiram, onde lá fora a UERJ mostra, através das suas diferentes áreas, os projetos dos seus alunos, seja da área das ciências humanas seja das outras áreas de conhecimento. Aliás, eu tenho uma grande preocupação, porque nesses dois anos online, principalmente, por mais que as pessoas fizessem lives e essa coisa toda, mas nesses dois anos é a ciência biológica, é a ciência física, é principalmente a ciência médica que apareceu, as ciências humanas e sociais se encolheram, porque, fechadas, confinadas, grande parte dos projetos das nossas áreas são os projetos de rua, são projetos que vão de encontro às comunidades, isso ficou fechado. Eu acho que vamos ter que discutir muito o papel das ciências humanas e sociais hoje, por mais que tenha, principalmente final de dois mil e vinte um para cá, tenha existido a solidariedade, as comunidades, uma participação maior fora do espaço interior das casas e das escolas de uma forma geral, mas as ciências humanas e sociais perderam muito. Porque a nossa área é uma área de vivência, é uma área de dia a dia, como diz um livro do Marcelo Biar que ele me deu, antes de morrer, é uma área do estar na rua. E, que nós não podemos estar na rua à dois anos, eu acho que é uma coisa que vamos ter que pensar.
E1 – Bom, vou falar um pouquinho... a gente está fechado, tá?
R – Ok, devo estar cansando vocês. (risos)
E1 – Eu queria falar um pouquinho sobre essa cara da Edna como cidadã, participando de instituições, participando de instituições, pensando politicamente dentro e fora dessa área, mas associações de classe, associações científicas e outras instituições.
R – Bom, participei de muitas associações cientificas, hoje restringi um pouco. A ANPUH, milhares de vezes, embora, mesmo antes da pandemia, eu vi uma ANPUH muito desgastada, não era... não podia ser aquela ANPUH de pelo menos dez anos atrás, eu comecei a me afastar. Porque a ANPUH era uma associação beligerante na defesa da história, era beligerante mesmo, brigava, brigava com governo se necessário... não é mais, não tem a ver com a pandemia, só, tem a ver com coisas anteriores. ANPED da educação, eu era da ANPED, também, cansei de ir lá para Caxambu, para São Lourenço, aqueles lugares... e, eu acho que depois de Darcy, depois de Paulo Freire, e de outros teóricos da educação que faleceram por outros motivos, quais são as personalidades singulares da educação hoje? Quais são? Muito poucas, quase nenhuma. ANPUH, ANPED essa eu participei direto, encontros, fui uma época, na época da Philomena Gebran, eu dirigia com a Philomena Gebran a ANPUH, em que a Marilena dizia que todos os sócios a gente levava na mão lá para Vassouras. Então, associações participei muito, muito mesmo, principalmente essas duas, da minha, da ANPUH e da ANPED... e de associações do pessoal de literatura, muitos também. Fala o que você queria perguntar.
E1 - Não, ela queria fazer uma pergunta.
E2 – Quais os principais desafios que o campo do ensino de história enfrentou, de que a senhora participou, e como foi?
R – Olha, os campos de ensino que a gente foi, as discussões, os desafios foram muitos. Desafios na época dos CIEPs, desafios na época das discussões de noventa para cá, noventa e quatro para cá, para discutir aqui dentro novos currículos, para discutir lá fora, onde eu montei os cursos de graduação em história, também, os currículos necessários e diversificados e diferentes, porque algumas coisas servem para todas as regiões, outras não, são muito específicas. O que precisa um aluno de história lá de Campos, por exemplo. É importante, ele precisa coisas que são comuns ao ensino da história aqui, mas coisas que são aplicáveis a campos, principalmente discutir bastante para tirar aqueles dois doidos que dirigiram, durante um certo tempo, o município de Campos. Então tem o geral e os específico, tem o geral e a especificidade, já começa por aí. Mas, Gisele, para mim, o mais importante dos desafios em relação à história, eu estou tendo que estudar muito, reaprendendo uma série de coisas, igual que eu me sentei para discutir como é que a gente ia dar história lá nos CIEPs, eu estou fazendo isso agora. Os desafios para a história hoje são muito mais complicados.
E1 – Como é que o ensino fica nisso, para você?
R - São muito mais complexos, porque, porque eu continuo achando a mesma coisa do que me levou a fazer história, capacidade crítica, conhecimento da sociedade, discussão crítica sobre o que está acontecendo no Brasil e no mundo, essas mesmas coisas que eu pensei quando entrei jovem, elas continuam presentes na minha vida. E, eu me pergunto hoje, para que serve a história? Pronunciei essa pergunta várias vezes. Hoje eu pergunto: para que serve a história? Você liga o seu televisor, você vê Ucrânia e Rússia. A Rússia, para a minha geração em sessenta e oito, era um país, era a União Soviética, não era nem a Rússia, mas era uma região onde você achava que podia discutir solidariedade orgânica de Gramsci, por exemplo. O que é essa Rússia hoje? Eu posso discutir, usando o conceito de Gramsci de solidariedade orgânica para a Rússia? Não sei. Eu não sei que história está pelos bastidores dessa guerra, eu sei que aí entra o capitalismo, entra o interesse americano, entra o interesse da Ucrânia de fazer parte da, exatamente, de uma nova Europa que se alastrou, que se alargou depois da queda do muro de Berlim, eu sei tudo isso, mas existem outras coisas mais. O que aparece na televisão é nada. Você tem que estudar antes da União Soviética para ver qual o interesse da Rússia em pegar todo o corredor do Sul e remontar ele para ela, são interesses de mercado. Mas, para o sujeito que não lê nada: mas a Rússia é comunista! Não é mais, quem disse que é? Não é, não é mais, entre outras coisas não é mais. Então veja bem, para que serve a história? Como é que eu vou ajudar o meu aluno, hoje, na pós. E hoje eu me especializei muito em história do continente africano, e aí complica mais, porque eu pego, por exemplo, eu fiz isso recentemente que me pediram, história de Angola. Uma Angola colonialista, que a metrópole portuguesa é que mandava, explorou, todas as lutas de liberdade, a formação de MPLA e a UNITA, num processo de independência, esperança, luz no fim do túnel... com a independência de Angola. Depois uma guerra entre irmãos, porque no fundo, no fundo é o poder que está em tudo, colonial ou não colonial, é o poder que está em tudo. E, depois de uma guerra interna entre MPLA e UNITA, você chega hoje, num período imenso de um presidente anterior em Angola, corrupto, hoje não sei como está, mas eu sei porque já fui lá várias vezes, que as escolas não dão comida às crianças, as crianças pobres não têm comida, as crianças pobres não têm tecnologia. Esses dois anos, então, devem ter sido uma coisa horrorosa. Quer dizer, a independência dos países, o socialismo, temos que discutir que socialismo é esse, para que serve a história, para que serve esse socialismo. Porque hoje, quem é Angola? Quem é Moçambique? Moçambique lá no Norte com uma guerra fraticida, constante. Cidade linda, Maputo, eu conheço, eu já fui lá. Eu não estou falando... eu fui à Maputo, Angola várias vezes. Gosto muito dessas regiões. Volto à minha pergunta anterior: para que serve a história? Para melhorar a vida das pessoas? O colonialismo não melhorou, mas também o socialismo não melhorou. O que eu faço? A minha geração, essa geração que aplaudiu de pé, porque eu fui lá, também, Fidel Castro. Em oitenta e seis, num congresso de educação, eu estava cumprimentando uma das grandes lideranças apaixonantes da minha vida, Fidel Castro. Volto a pergunta: para que serve a história? Para mim, a história tem que servir para ajudar a comunidade, para fazer a sociedade crescer, para fazer a sociedade não passar fome, para fazer a sociedade ter acesso à escola. Isto é real ou é virtual? Volto a questão. Isso é uma coisa que eu gostaria de ter tempo de discutir mais, porque quem fez história, o tempo inteiro, tinha essa questão agora: para que serve a história. A história positivista para você guardar datas, memórias antigas, fotos das grandes lideranças em todos os sentidos. Mas isso, para mim, não é história. Quer dizer, a história, antes de mais nada, ela não pode servir para fazer a guerra. Como dizia Yves Lacoste na sua tese de doutoramento, um geógrafo: a história não pode servir para fazer a guerra. E ela está aí servindo, seja de um lado, seja do outro, ela está aí servindo para isso. A história não pode servir para em 2022 as pessoas passarem fome, aqui e no mundo inteiro. Eu volto à questão.
E1 – E você, dentro dessa sua perspectiva, como é que você avalia, você falou da história, os professores de história, a formação deles e o papel deles hoje?
R – Eu, na verdade hoje, eu não sei como é que esses professores...
E1 – Você não continua mais trabalhando no campo, não é?
R – Não.
E1 – Então...
R – Eu me aposentei do município em noventa, me aposentei da UERJ no ano passado, mas continuo dando aula na pós.
E1 – Na pós em história?
R – Em história.
E1 – Mas você, hoje, mesmo não formando professores ou pensando a situação, como é que você vê os professores, o papel dos professores de história?
R – Eu continuo achando que o papel dos professores de história é fundamental, mas eu não vejo, vou te dizer o porquê, eu não vejo os professores, mesmo, de história estarem, lógico que uma parcela está, mas a grande maioria não está mais preocupada em fazer a história acontecer. Mesmo antes da pandemia, quando eu era vice-diretora, e fui durante oito anos vice-diretora daqui o que eu via eram muitos colegas toda hora pedindo para sair do país. Não era só para congresso, era para ficar não sei quantos meses em um lugar, outro e por aí vai. E eu assinava porque se eu não assinasse a Dirce me batia. Eu nunca tive medo de nada, não tenho. Eu falo na frente, eu não falo por trás de jeito nenhum, eu enfrento. E dei, dei muita saída de país a gente que eu achava que não merecia, capítulo antes da pandemia. Durante esses dois anos, os professores gostaram do virtual, e está complicado fazer gostar de novo do presencial. Agora mesmo eu conversei, antes de entrar aqui, com o (? 1:55:43), da educação, ele disse que ele está presente de segunda a sexta, porque senão a coisa degringola. Hoje, a história continua sendo importante, eu acho que mais importantes ainda do que todos os desafios pelos quais eu passei, pelos quais você passou. Está muito mais importante hoje. Porque hoje com a tecnologia, com o fato, acontecimento no momento em que ele acontece você vê pela televisão, globo, tragédia, você vê pela televisão, ou você tem primeiro um equilíbrio interior muito grande, e segundo um conhecimento, uma leitura muito grande, não é de virtualidade, de PDF, não, de pegar livro e ler: - ah, está saindo isso, vamos ver o que está dizendo. E, eu sempre, você sabe disso, o meu relacionamento com a história e a literatura, os meus amigos de letras da UFRJ sempre foram muito grandes. E, as minhas aulas, eu acho que as pessoas gostavam porque eu saia da história, entrava na literatura, entrava na antropologia, eu andava por todos os campos, que alias é esse o papel dos professores de quinta a oitava série, e mesmo na universidade. Em um dos momentos como vice-diretora, um colega que tinha entrado recentemente para a história... para a filosofia, não foi nem para a história, disse: - para a professora que era de filosofia, Dirce, que não ia dar aula porque ele passou para dar isto, vamos supor, história da África, vamos dizer o assunto, e que estão querendo que ele dê história das relações latino-americanas com a África, ele disse que não daria. A diretora ficou tão constrangida, eu só ouvindo... as vezes a pessoa é minha amiga, encontrei com ele recentemente numa festa, e aí ele disse: não vou dar não professora. Ele estava ainda naqueles anos... como é que se chama, quando um professor entra tem os três anos que ele tem que ser avaliado, vamos supor. Eu deixei ele falar, eu disse assim: professor fulano, presta atenção em uma coisa que eu vou lhe dizer, o senhor ainda está sendo avaliado, o senhor não tem meses que entrou para essa casa, para essa universidade, a gente está com um problema de professores – e ainda não havia entrado pandemia, dois dezenove – e o senhor vai dar essa aula, vai dar essa disciplina sim, a professora está precisando que você dê. – Não, não vou dar. – O senhor não vai dar? Então, eu vou agora imediatamente analisar o senhor, porque o senhor não está querendo dar e você vai assinar aqui. Cinco minutos ele mudou, deu a disciplina. Eu o encontrei em uma festa de uma amiga, também é amiga dele, ele olhou e disse: professora, a senhora não é brinquedo não – brincando comigo – não, mas a senhora estava certa. Eu acho que a gente tem que expandir, aprender outras coisas. Esses são episódios de uma coisa muito pequena, mas que não é pequena. Nunca que conhecimento da história, a leitura de livros sobre história, não só sobre história, de filósofos, sempre achei isso com os annales, eu aprendi, eu vivi isso, eu sempre li arqueologia, antropologia, sociologia, filosofia muito. Um professor de história não pode desconhecer filosofia, não tem como. Eu não sei como está hoje o ensino de história. Eu vou ter tempo para ver, vou ter tempo sem a obrigatoriedade, de estar tantas horas na sala de aula. Eu vou correr as escolas públicas assim que tudo for mais liberado por conta da pandemia, eu vou correr as escolas públicas, pelo menos da cidade do Rio de Janeiro, e vou dizer: o que está sendo dado em história? Como é que os alunos estão vindo. Já começa que o aluno não está indo as escolas, toda hora até mesmo essa televisão aí do jeito que está ela fala, ela mostra as escolas na cidade do Rio e no estado do Rio de Janeiro, os alunos não estão indo, eles não têm condições de transporte, o que era para ser dado com ônibus escolar não está sendo dado, livros e uma série de outras coisas. Então, eu posso imaginar como é que está sendo o ensino, não só o da história. Mas isso eu vou fazer, Sônia.
E2 – Professora, o que a senhora avalia que mais mudou em relação do ensino de história na escola desde o início da sua experiência profissional?
R – Deve ter mudado muito, deve ter mudado, deve ter mudado muito. Se a gente pegar só agora, esses dois, três últimos anos, minha nossa senhora. O ensino, faltam professores, não é só da história, faltam professores. Falta um espaço onde eles possam estar em uma biblioteca dentro da escola, as bibliotecas praticamente não existem dentro da escola. Alimentação, uma criança, um jovem, principalmente o nosso jovem... gente, no primeiro dia que eu dei aula, eu dou aula online por causa da Turíbio que é uma amiga minha, colega, que não pode realmente se movimentar, mas o ano que vem eu quero ver se eu vou dar meia mão no dia a dia porque eu gosto do ao vivo e a cores. Eu vi o restaurante da UERJ onze horas da manhã, só por isso vocês vão ver como é que está o ensino, não é só o de história não, vocês vão ver como é que está a situação do brasileiro, na cidade do Rio de Janeiro, cara. Onze horas da manhã os alunos da UERJ, de todas as áreas, saem, não ficam até meio dia... vamos analisar a realidade, vamos analisar o real, eles saem e entram em filas homéricas, muito maiores do que antes da pandemia. Empobreceu, a sociedade brasileira empobreceu, está passando fome. Vamos levar a sério as coisas, vamos discutir o real e não o virtual. Eu parei ao guarda que está lá embaixo do banco: - a senhora está olhando, não é professora, como aumentou, e dizem que a noite é pior. Ora, vamos falar de ensino, vamos falar de ensino de história hoje, se o mínimo essa garotada não tem. Grande parte desses alunos que entraram agora no presencial não viram nada esses dois anos. Eu conheço a cidade do Rio de Janeiro, eu conheço a baixada, eu não sou aquela professora que mora na Zona Sul e nunca atravessou o túnel, eu sou de estar nos lugares. Se você me perguntar: ah o linda? Sabe onde é, lá na baixada, sabe onde é? Sei. Nilópolis, sabe onde é? Sei. Nova Iguaçu e Caxias então de montão porque faltou uma universidade que eu ajudei muito, era aquela universidade lá de Caxias, também. Eu vou aos lugares. Olha, quando eu vi a UERJ onze da manhã com aquela meninada rodando em filas homéricas. Eu falei: meu deus, essa meninada está com fome. Como é que eu vou cobrar a leitura do Marc Bloch para esse menino, para esse menino que não come. Isso numa universidade, você já imaginou nos pequenos? Já imaginou de primeira à quarta série? Eles ficam intelectual discutindo na estratosfera. Não dá, não dá mesmo. Mas com tudo isso, eu acredito na história e acredito nessa juventude. Eles vão dar a volta por cima.
E1 – Se Deus quiser. Eu só queria agora, para fechar, voltar um pouco para a Edna, não apenas a Edna intelectual, além do trabalho. Você gosta de fazer o que? Hoje qual seria o seu maior sonho, que acho que um pouco você já falou. Você contar um pouco mais da sua história, qualquer coisa que você queira contar, qualquer coisa que você queira narrar.
R – Olha, primeiro, essa Edna, graças a Deus, está bem porque ela gosta muito de andar a pé.
E1 – (risos)
R – Sete quilômetros, quando eu dava aula na graduação, agora na pós é menos, eu vinha do Grajaú a pé, aí passava alguém de carro: quer carona? – não, eu vou a pé até lá. Três quilômetros e meio para vir do Grajaú e três e meio para voltar, sete quilômetros por dia. Isso me deu saúde. Por isso eu digo aos jovens: andem, não sejam sedentários. Esse me dá muito prazer até hoje. Segundo, cinema. Nesses dois anos de pandemia a gente tem livros de historiadores que sempre estudaram o cinema. Cinema, história, por exemplo, e outros. E, por causa de amigos da UFRJ, que tem inclusive um canal, por causa do continente africano que eu gosto muito. Tem um canal, se vocês quiserem entrar, chama-se: África Zoom. É um canal onde até os jovens que estagiaram aí etc. todos ligados ao cinema. E aí eu comecei a descobrir que o cinema africano, muitos filmes, são excelentes.
E1 – Excelentíssimos.
R – São excelentes. Filmes da África do Sul, filmes de Angola, Moçambique, então, é uma terra cheia de cineastas excelentes. Há um último filme de um jovem, eu acho que ainda pode ver no Youtube, não sei se acabou. Esse filme se chama Ar-Condicionada, em que ele faz um trabalho da história da tradição de Angola, e da África de uma forma geral, oralidade, aquelas coisas todas, papel das mulheres. Enfim, e ele traz para o urbano atual, ele mostra de um lado miticamente a caída de um prédio, e esses ar refrigerados começam a cair e ele vai mostrando o que é a Angola hoje. A queda de tudo isso. Menino jovem, Fradique, e que ganhou já prêmios, eu acho que ainda está no Youtube, e que vale a pena ver. Então, eu li muito sobre cinema, por isso que eu perguntei li muito de coisas que viraram filmes que estão em livros, é o caso do Marighella, li várias vezes aquele livro. Então, outra coisa que eu gosto muito é o cinema, mas vamos chamar de cinema, todo cinema é arte, mas acho que esse cinema...
E1 – Independente, independente.
R - ... que pegam muito a parte da história. Gosto muito, encontrar meus sobrinhos, netos...
E1 – Você não teve filhos, não é?
R – É, não tive filhos, mas tenho milhares de filhos. Fora os filhos das amigas que já estão hoje casados, com filhos, mais filhos por aí vai, gosto. Eu gosto muito de estar com os meus amigos. Esses dois anos, fui ao aniversário dos setenta e cinco da Lia Faria em dezembro, fomos no Maxim’s. Lia é minha amiga à anos, não só pelo trabalho que a gente fez com os CIEPs, Darcy Ribeiro etc. Mas, gosto muito, agora menos, bares e restaurantes. Uma amiga em especial, hoje já está aposentada a muito tempo, você conhece eu vou dizer o nome dela, se aposentou a mais de dez anos pela UFRJ e pela UERJ, Ana Moura. Ana Moura é minha amiga do tipo que, anos atrás, antes de pandemia, antes de tudo. A gente saia daqui, da época que ela deu aula aqui da UERJ, a gente para os bares de Vila Isabel, começava dez da noite e continuava até duas, e discutindo sabe o quê? Nietzsche. Ela discutindo Nietzsche porque é doida varrida e adora isso, e eu também que gosto. Quer dizer, a gente ficava discutindo Nietzsche, quem que discute Nietzsche num bar? Nós ficávamos discutindo e aprendendo, reaprendendo.
E1 – A nossa geração discutia, saia do cinema para discutir o filme.
R – O filme. Esses dois anos, eu acho que para mim a coisa pior foi essa perda do contato físico. A perda de estar com as pessoas. De estar com a disponibilidade do abraço. Há um livro sobre o abraço.
E1 - Você lembra de algum orientando seu que tenha trabalhado com ensino de história? Teve algum ou ficou no campo da história?
R – Ah me lembro, tem muita gente que trabalhou com ensino de história. O Biar, ele fez o doutorado, ele trabalhou com ensino de história e foi a Cuba para ver como era o ensino lá, o conceito de democracia, esse eu me lembro bem. Mas outros, vários alunos trabalharam com a questão do ensino. Posso até ver lá nos meus alfarrábios. O Biar eu me lembro muito por isso. E me lembro também... ai meu Deus como é o nome do outro, também foi a Cuba, fez doutorado aqui, que também mostrou as diferenças entre o ensino de história no socialismo e o ensino da história no sistema capitalista. E, chegou a algumas conclusões muito parecidas na época. Bom, tenho, tem muitos alunos que trabalharam o ensino da história, muitos que trabalharam educação, anarquista, por exemplo. O Rogério fez aqui, lembra do Rogério?
E1 – Lembro.
R – Eu participei da banca dele, anarquismo. Muitos, aliás, trabalharam anarquismo. Muitos trabalharam sobre conceito de classe, foi tirado do mapa.
E1 – Ficou démodé.
R - Démodé. Eu detesto essa palavra, está na moda, horrível isso.
E2 – O que a senhora achou de contar um pouquinho da sua história, da sua trajetória para gente na entrevista?
R – Olha, eu gostei muito. Primeiro por estar entre amigos, eu gosto muito de falar com as pessoas amigas, mas de contar oficialmente, vamos dizer assim. Porque, através de mim, da Circe, do... do que foi da PUC, que eu falei...
E1 – Ilmar.
R – Ilmar Rohloff é uma pessoa de uma riqueza imensa. Ilmar Rohloff trabalhou muito com a gente. Trabalhou muito com grupos no Estado, na época da Maria Yedda Linhares. Não sei como ele está, se está.
E1 – Ele está muito doente, mas está.
R – Ele tem uma história muito grande. Ana Maria Monteiro, da UFRJ, tem histórias comuns com a gente e tem histórias dela. Quer dizer, outra pessoa, assim, importantíssima na área da história. Então, eu acho que foi muito enriquecedor. Engraçado que eu não sou uma pessoa muito de falar assim, não, eu sou mais quieta, introvertida, embora pareça, que seja muito falante... sou dando aula, dando aula a sensação que tenho é de que eu estou num palco num teatro. Então, eu trago a plateia toda para cima do palco, e sempre gostei muito. Eu gosto de dar aula de história, eu estou no lugar certo, eu não faria outra coisa, embora, fiz música. Eu tenho troféu dado da medalha de criatividade teatral, Henriette Morineau. Vocês jovens não devem saber quem é, mas a Sônia sabe.
E1 - (risos) sei.
R – Henriette, madam Henriette Morineau, eu ganhei a medalha no meio de tantos colégios daquela época. Então, eu gostava muito da música, gosto até hoje, gostava muito de escrever poesia, meu primeiro livro não foi de história, foi da poesia. Gostava muito. O trabalho que eu tive com esses meus amigos, alguns que já morreram. Ivan foi para Portugal, está morando lá, não está mais aqui, e outros, que eu não vi mais, não vejo mais... isso foi muito importante, porque a Tijuca é considerada um bairro conservador. Em mil novecentos e setenta, em plena época do senhor Médici, nós falávamos de história, nós falávamos de crítica social.
E1 – E tinha o grupo da música, também, ligado à bossa nova...
R – E tinha a música, com o Ivan, Aldir... em plena ditadura.
E2 – Tinha Roberto Carlos.
E1 – Roberto Carlos.
E2 – Milton Nascimento...
R – Ah na Jovem guarda, sim, sim.
E1 – Milton Nascimento e...
E3 – Erasmo.
E1 – O síndico, o...
E3 – Tim Maia.
E1 – Tim Maia.
R – Tim Maia, Tim Maia. E depois nós saímos da casa da Curi, porque, década de setenta, coitada, ela ficava meio preocupada, o que é que a juventude toda está lá dentro falando, fazendo. E vínhamos aqui, para Jaceguai, era a casa de um psicanalista, como era o nome dele... agora esqueci, e que dava a casa para a gente discutir ali. Paulo Emílio, foi um grande poeta, um grande compositor, falava nessa experiência da rua Jaceguai. Mas no meio de tudo isso, em setenta e um eu me formo e vou optar mesmo pela história, mas nunca deixei de gostar, tenho vários prêmios, vários violõezinhos ganhos em circuito universitário de música. Está aí.
E1 – Que bom. Bom, eu queria agradecer muito à professora Edna, agora vou chamar de professora, com todo respeito a essa categoria que, infelizmente, está sendo tão vilipendiada no nosso país nos últimos anos. Então eu faço questão de chamá-la de professora Edna e agradecer muito. Para finalizar, eu vou dizer mais uma vez que nós estamos fazendo essa gravação para a pesquisa da ABEH, sobre memória das professoras e professores que fizeram o campo do ensino de história no Brasil. Sou Sônia Vanderlei e Gisele...
E2 – Nicolau.
E1 – Nicolau, que estamos aqui entrevistando a professora Edna, a quem a gente gostaria muito de agradecer. Agradecer à TV UERJ, a todos vocês por terem nos ajudado tecnicamente, a vencer essa batalha técnica, como diz a Edna. E pedir, Edna, por fim, que você falasse o que você quiser de despedida, mas também, por favor, expressar sua autorização o uso dessa entrevista gravada.
R – Bom, primeiro eu que quero agradecer, agradecer à professora Sônia, agradecer Gisele, a toda equipe. Eu sou uma assídua frequentadora da TV UERJ, gosto muito de muitos programas que são exibidos, até do conselho universitário que tem aquela guerra de falação eu assisto, para ver o que está acontecendo. Quero agradecer o pessoal da TV UERJ. E, lógico, que eu autorizo a publicação daquilo que foi falado agora, e dizer o prazer que me deu, porque eu acho que essa relação de memória e esquecimento eu não quero esquecer nada do que eu falei para vocês. Pelo contrário, eu quero afirmar essa memória, uma memória pessoal, mas uma memória muito solidária, com muita participação coletiva. Então, na verdade, eu quero agradecer a todos os colegas, todos os amigos, todos os alunos que estão presentes nessa minha fala. Obrigada.
(APLAUSOS)
Recolher