P/1 – Bom, Lucas, primeiro a gente queria te agradecer por ter tirado mais um pouquinho do seu tempo pra colaborar com o projeto e dar o seu depoimento de história de vida. Pra começar, eu queria que você falasse seu nome completo, a sua data de nascimento e o local em que você nasceu.
R – Meu nome é Lucas De Ross Welter, eu nasci em Antônio Prado, no Rio Grande do Sul, no dia 25 de março de 1977.
P/1 – E o nome dos teus pais?
R – Meu pai é José Paulo Welter e minha mãe Siley Maria De Ross Welter.
P/1 – Seus avós?
R – Ah, vamos ver. Do lado paterno é Clotilde Nodari Welter e Guilherme Germano Welter e, no lado materno, é Odila De Ross e Antônio De Ross.
P/1 – Conta para a gente a história dessa família.
R – A história dessa família? Vamos começar, por um lado, e, depois, pelo outro. Os meus avós paternos, o Guilherme Germano Welter e a Clotilde Nodari Welter, têm uma história um pouco estranha, porque no Rio Grande do Sul a gente tem várias etnias, é um Estado que foi basicamente colonizado por diferentes etnias, é um território do Brasil que sempre ficou entre Espanha e Portugal, uma hora pertencia à Espanha, outra hora, pertencia à Portugal, até que o governo resolveu tomar posse desse Estado e aí a forma de fazer isso foi enviando imigrantes pra colonizar o Estado, né? Sempre foi um Estado de imigração italiana, imigração alemã e várias outras etnias. Os alemães chegaram antes e se relacionavam com os alemães; os italianos com os italianos. Os alemães chegaram 50 anos antes e ficavam nos vales e os italianos tiveram que subir a serra porque já não tinha mais terras nos vales. E essa minha família paterna é um pouco diferente porque o meu avô é totalmente da colônia alemã e minha avó totalmente da colônia italiana. E era bastante incomum de isso acontecer, até porque as pessoas quase não falavam português naquela época, falavam só alemão ou italiano e os respectivos dialetos. E, assim, o meu vô meio que se desgarrou da colônia alemã, subiu a serra, em função de ter campo, fazenda, no lado de Vacaria (RS). Antônio Prado é a cidade próxima à Vacaria, próxima do campo, e então ele conheceu a minha avó. E aí depois teve vários filhos, alguns em Antônio Prado, alguns em Vacaria, e isso foi mais ou menos o que aconteceu. Do lado materno, os meus avós são de Caxias [do Sul] (RS). Ambos nasceram em Caxias, foram criados em Caxias do Sul e meus avós paternos também, depois de um tempo, se mudaram para Caxias porque é a grande cidade da região, né? Antônio Prado é uma cidade que tem hoje 12 a 13 mil habitantes, é uma cidade pequeninha, como todas essas cidades na serra. Então, meus pais não nasceram em Antônio Prado: meu pai nasceu em Vacaria e minha mãe nasceu em Caxias, porque as famílias já estavam deslocadas e, quando eles casaram, meu pai estava morando em Porto Alegre, minha mãe estava morando em Caxias. Eles iam morar em Porto Alegre e aí, meu pai recebeu uma proposta de trabalho em Antônio Prado e eles acharam uma boa ideia mudar pruma cidade pequena, ter filhos numa cidade pequena, aproveitar a vida de cidade pequena, mas sempre sabendo que a partir de quando a gente fosse completar, como filhos... Na época, ninguém sabia, mas a gente sabe que morar em cidade pequena tem um ciclo, especialmente quando os filhos completam 17, 18 anos, eles acabam saindo, vão estudar fora, eventualmente regressam, então foi mais ou menos assim a história. Os meus pais sempre muito envolvidos com política, se envolveram muito em atividades na cidade, na comunidade e acabaram criando raízes na cidade. Eu nasci em Antônio Prado, meu irmão nasceu em Antônio Prado – tenho mais um irmão que nasceu em Antônio Prado – e a gente foi ficando em Antônio Prado até que chegou a hora de sair (risos). Quando termina o segundo grau, o Ensino Médio, aí é hora de sair.
P/1 – E, Lucas, qual a ocupação dos seus pais? Você falou que são sempre muito envolvidos em política.
R – Ambos faleceram já, eram advogados. Aí normalmente o que acontece é: a gente está falando isso dos anos 70, mais ou menos, e em cidades pequenas, no interior do Estado, no Rio Grande do Sul, são serviços necessários, né? Tem que ter um advogado, tem que ter o médico, tem que ter, e como são cidades muito pequenas, nem todos os serviços estavam disponíveis. Os meus pais foram os primeiros advogados – quer dizer, não foram os primeiros, mas, na época, tinha um ou dois advogados na cidade. Era um momento propício para começar carreira, para começar a trabalhar nessa cidade. Meu pai foi para lá em função do candidato que ganhou a prefeitura na cidade, em 1971 ou alguma coisa, 1972, 1973, e precisava de um Secretário de Administração. [Ele] conhecia meu pai e o chamou para ser Secretário de Administração na Prefeitura. Minha mãe concordou com a ideia, achou que, de repente, seria interessante. E, aí, claro, a vida em cidade pequena não é muito fácil, especialmente nos anos 1970. Minha mãe comentava que, por exemplo, não se fazia pão todo dia: você ia à padaria e não tinha pão todo dia. Tinha pão dia sim, dia não. Tinha uma série de coisas, de serviços, que não eram muito disponíveis mas ela achou Antônio Prado uma boa ideia porque meu pai também naquela época tava oscilando com alguma coisa no Mato Grosso, então, para ela, Antônio Prado parecia uma boa ideia, comparado com alguma coisa no Mato Grosso, que ela não tinha a menor ideia do que seria. A ideia foi mais ou menos essa.
P/1 – E Lucas, conta um pouquinho pra gente: você conhece a história da tua família, você teve contato com esses avôs?
R – Eu não tive contato com os meus avós maternos. A minha mãe foi a última filha de cinco filhos, foi a mais jovem. Quando ela nasceu, os pais já estavam um pouquinho mais velhos, então, quando eu nasci, ambos já tinham falecido. E com os meus avós paternos é um pouco diferente: meu pai não era um dos primeiros, mas também não foi um dos últimos, tava no meio de um monte de filhos. Então, durante toda a minha infância, eu convivi com os meus avós paternos. Já moravam em Caxias, a gente ia passar finais de semana na casa deles ou, de vez em quando, passava o período de férias, foi isso. Eles já tinham uma idade bem avançada quando a gente começou a se relacionar, a interagir mais com eles.
P/1 – Como foi essa infância em Antônio Prado?
R – A infância em Antônio Prado foi muito boa porque é uma cidade pequena, realmente pequena – quando a gente fala pequena, as pessoas não têm muita noção do que é uma cidade pequena. Antônio Prado sempre teve uma população entre 12 e 13 mil habitantes, mas é uma cidade típica do interior do Rio Grande do Sul, ou seja: tem uma sede, a cidade, e tem toda uma área rural e metade da população vive na área rural e outra metade vive na sede. Então, no município vai ter 12, 13 mil pessoas e, na sede, vai ter 6, 7 mil pessoas morando. Isso significa que – exagerando um pouco – todo mundo conhece todo mundo. Só são dois ou três colégios que têm na cidade, todo mundo sabe o que todo mundo está fazendo, mas justamente por não ter uma série de coisas para fazer que são disponíveis em cidades grandes, não tem muita atividade nos finais de semana, a cidade acaba inventando uma série de atividades e as pessoas acabam inventando muitas atividades porque todo mundo tem que se ocupar. Então, surge muita coisa para fazer, surgem muitos clubes, muitas atividades extracurriculares, em termo de escola. Tem muita coisa para fazer em função das pessoas terem que se ocupar. É um privilégio passar ao menos a infância em uma cidade como essa porque você conhece muita gente, você se relaciona com muita gente e porque você ocupa o seu tempo, literalmente, com uma série de coisas produtivas que numa cidade grande já é um pouco mais complicado, porque você gasta muito tempo em trânsito, se deslocando, e aí você passa muito tempo em casa, né? Numa cidade pequena você nunca está em casa, porque você tem infinitas possibilidades na rua.
P/1 – Conta alguma delas para a gente.
R –Eu lembro que já desde muito jovem eu participava de várias atividades, por exemplo, ia para a escola de manhã e, à tarde, tinha grupo de escoteiros, cursos das mais diferentes coisas para fazer: teve uma primavera/verão que eu fiz um curso de empalhe em madeira. Eu fazia curso de desenho uma vez por semana, desenho, pintura, fazia curso de idiomas... Porque tudo isso acaba suprindo o teu espaço e, claro, você acaba também ficando com tempo em casa, né? Todo mundo se conhece, então acaba naquelas coisas de brincar em rua, ficar até tarde na rua, sempre aconteceu isso porque a cidade sempre foi muito segura em função de ser muita pouca gente e todo mundo conhecer todo mundo. Não tem problema de violência, de roubo, então, você tá livre, leve e solto. Você pode desaparecer depois do almoço e voltar para casa às 11 horas da noite que a cidade tá te observando, né? A cidade sabe o que está acontecendo, onde você está. Então, a infância foi muito nesse sentido. Claro, que sem internet, sem telefone (risos), sem as coisas que hoje são atividades que te deixam muito individualistas. Eram atividades que forçavam muito a gente a socializar. Ou você lia, uma atividade mais individual e aí dependia do estímulo que você tinha em casa com seus pais, ou você tinha que fazer amigos para ocupar seu tempo. Eu acho que a vida na cidade pequena teve isso também, todo mundo que mora em cidade pequena acabam virando pessoas muito sociáveis, porque é como a gente tem que interagir, uns com os outros.
P/1 – Qual que era a tua brincadeira preferida?
R – Acho que não tinha uma brincadeira preferida, tinham fases de brincadeiras preferidas, né? Acho que tanto eu quanto meu irmão, meus vizinhos, a gente meio que exagerava na quantidade de energia numa atividade específica e depois mudava. Tinha a época: “Agora vamos construir casa na árvore”, por exemplo, então, a gente construía verdadeiros condomínios em árvores durante um mês, dois meses, depois passava a graça. “Vamos fazer alguma outra coisa diferente, vamos construir carrinho de rolimã, carrinho lomba”, então, a gente construía uma frota inacreditável de carrinhos de lomba durante dois, três meses, depois achava alguma outra coisa para fazer e aí sempre foi. Claro, a gente morava também no limite entre a zona urbana e a zona rural. Onde terminava a rua, estava a nossa casa, depois era zona rural – considerada zona rural. A gente tinha campo, plantações, jardins ao redor de casa, então a gente sempre teve uma vida muito ativa. A gente sempre se quebrava, se cortava com muita frequência. Eu sou todo recortado, costurado, porque a gente teve uma infância muito ativa, construindo coisas. Teve uma época, por exemplo, tinha o milharal todo, o milho já tava seco e a gente construiu um labirinto inteiro dentro do milharal do vizinho – sem ele saber, é claro (risos). A gente passou uma semana construindo esse labirinto dentro do milharal. Antônio Prado também é na serra – não é montanha, montanha, porque a altitude é em torno de 700, 800 metros, não é realmente montanha – mas são várias colinas. A gente tinha uma grande colina ao lado de casa, então tinha toda essa área de agricultura dos meus vizinhos com o milharal, e a gente podia subir o morro. Quando, um dia, a gente tava em cima do morro, a gente viu: “Ah, que legal, vamos construir um labirinto aqui dentro”, daí a gente construiu um labirinto inteiro dentro do milharal sem ele saber (risos). Para ficar brincando, correndo atrás do outro, esse tipo de coisa.
P/1 – E Lucas, quais que são as suas memórias de família? Assim, vocês comemoraram o Natal, festas, você falou das idas à casa da sua avó? Fala um pouco dessa coisinha em família.
R – Enquanto os meus avós estavam vivos, foi sempre isso de passar o Natal com os avós, com os tios, com os primos e de juntar a família inteira. E como, na verdade, a família do meu pai tinha laços com Antônio Prado mas ninguém mais da família morava em Antônio Prado, exceto por uma tia minha, a gente tava meio isolado em termos de família. E era uma coisa que eu via muito com os meus amigos, né? Todos os meus amigos estavam com a família inteira, assim, de tios, avós, primos em Antônio Prado; e a gente estava completamente isolado porque a família toda tava em Caxias ou em outras cidades. Para encontrar a família, a gente tinha que se deslocar pra Caxias, por exemplo. Então essas atividades – Natal, Ano Novo, aniversários – eram atividades normalmente com a família. Em função de a gente não ter a família por perto o tempo todo, se aproveitava dessas atividades para fazer isso. Depois que os meus avós paternos faleceram, porque os maternos eu nem cheguei a conhecer, a gente meio que – se desconectou um pouco – começou a passar atividades em Antônio Prado, aí parte da família começou a visitar a gente mais em Antônio Prado também, e isso foi uma coisa que mudou depois.
P/1 – E vocês chegavam a viajar para outras cidades? Você chegou a conhecer, ainda na infância, outras cidades do Rio Grande do Sul?
R – Sim, sim. No Rio Grande do Sul, o ano escolar começa no final de fevereiro, começo de março – quando eu era criança, normalmente começava em março – e terminava no começo de dezembro, né? Um pouquinho diferente do resto do Brasil, fui aprender isso depois. Porque a gente acaba tendo um inverno longo e o verão é praticamente para aproveitar, então a gente não tem aula durante o verão justamente para poder aproveitar, brincar no verão, e concentrar o período de escola no inverno. A gente acaba começando um pouquinho mais tarde porque uma coisa que acontece também no Rio Grande do Sul é que, a partir do momento em que as pessoas têm um pouco mais de meios econômicos, constrói uma casa no litoral. A gente tem um litoral bastante extenso no Rio Grande do Sul, frio, mas é litoral, né? Como família, a gente sempre teve casa no litoral, então a gente acabava passando o mês de janeiro, fevereiro no litoral. É bastante comum ter essa migração no Rio Grande do Sul, até hoje, passado o período de festas – Natal até o Carnaval. O Rio Grande do Sul meio que se translada para o litoral. O litoral Norte do Estado, que é entre Tramandaí e Torres. Esse foi sempre um movimento bastante constante e o fato, é claro, de ter família em Caxias. A gente sempre se deslocou bastante e acabou conhecendo outras cidades do Estado também, passeando, conhecendo. É um Estado grande de certa forma. E aí, então, a rotina do verão era se deslocar pro litoral Norte e, às vezes, a Santa Catarina, dependendo do ano, do clima. Mais ou menos desse jeito.
P/1 – E, Lucas, conta pra gente as suas primeiras lembranças escolares.
R – Eu sempre gostei muito da escola (risos), então nunca tive grandes problemas de não querer ir à escola, eu adorava, sempre achei escola muito legal. Eu funcionei muito bem dentro do ambiente, gostava da escola, né? Não tive problemas em ir pra escola e sempre gostei muito do ambiente da escola. Sempre me envolvi também em tudo que a escola oferecia. Em tudo que a escola tinha disponível, eu acabei me envolvendo, acabei fazendo parte: clube de uma coisa, clube de outra, grêmio, todo tipo de atividade extracurricular que aparecia, porque eu gostava muito da escola. Também, de novo, numa cidade pequena é uma forma de ocupar o tempo, mas eu acho que também vem muito de incentivo dos pais. Nesse sentido, a minha mãe sempre foi uma pessoa que incentivou, sempre comprou muitos livros, sempre acompanhou a escola, trabalhos: “Ah, tem que fazer tema, tarefa de casa, vamos sentar juntos, vamos fazer”, sempre cobrou. Uma pessoa que sempre levou a educação muito a sério. Aí não foi uma opção, na verdade, era uma coisa que vem muito naturalmente, ir para a escola, frequentar a escola, ser um bom aluno e eu sempre gostei muito da escola. Tanto que, depois, acho que comecei a me envolver com o grêmio a partir da sexta série – agora já mudou tudo, né? –. Mas sexta série do Ensino Primário, depois na sétima série, oitava série, até que chegou uma hora em que eu virei presidente do grêmio e aí o que acontece: se você tá na escola, se você é presidente do grêmio e você tem toda a criatividade do mundo, você pode inventar o que você quiser. Então, foi exatamente isso que eu fiz: “O que mais a gente pode fazer aqui na escola? O que mais a gente pode fazer para ocupar o tempo das pessoas?”. E a gente começou a criar jornal, uma série de campanhas... Ou seja, eu ficava na escola de manhã, de tarde e de noite em função de inventar coisas e ter o que fazer na escola, ter liberdade para fazer essas coisas. Porque é outra coisa que acontece muito também em cidade pequena: embora a cidade inteira controle tudo o que acontece, todo mundo sabe o que acontece, mas você tem possibilidade de fazer o que você quiser, você traz o que você quiser e você vai ter sempre gente que vai ser adepta e as pessoas precisam se manter ocupadas. Isso é uma coisa que acontece muito, então a escola serviu um pouco para isso, como um grande laboratório para fazer coisas diferentes, que não eram tão usuais, né? Foi isso.
P/1 – E como que era a escola em Antônio Prado?
R – Eu estudei numa escola pública grande para uma cidade como Antônio Prado, tinha uns 800, 850 alunos. A gente tá falando de uma população de 12 mil, contando o interior todo da cidade. Mas uma escola muito tradicional, uma escola que hoje já tem quase cem anos, com excelentes professores, com professores muito comprometidos. De novo, quando você tá em uma cidade pequena, você não tem muitas opções, não tem muito para onde fugir, então você acaba frequentando os mesmos lugares com as mesmas pessoas, a comunidade tem que abraçar algumas dessas atividades que são importantes. Uma escola que sempre foi muito prestigiada, muito valorizada pela comunidade, muito abraçada pela comunidade sempre que teve alguma necessidade.
P/1 – E tinha alguma coisa que você queria ser ao crescer? Você já pensava?
R – Não, acho que eu nunca pensei muito naquilo que queria, acho que sempre foi uma coisa muito livre, muito cobrada: “Ah, tem que começar a pensar no que você gostaria, no que você não gostaria de fazer”. Em casa, nunca ninguém me cobrou, nunca comentou nada com relação a isso, mas quando a gente começa o Segundo Grau de Ensino Médio, é muita preparação para vestibular então fica aquela coisa: “Vestibular, vestibular”, então a gente tem que começar a pensar em alguma coisa. Acho que no primeiro ano do Ensino Médio, quando a gente começou a estudar Literatura Brasileira, uma das primeiras atividades que a gente fez foi aprender sobre diferenciar estilos literários. A professora deu uma atividade para a gente para relacionar com algumas coisas da comunidade para ver a evolução de estilo em esporte, em moda... E meu grupo de trabalho na época ganhou. A nossa atividade era para ver a evolução de estilo em arquitetura, sabe? “Bacana, mas eu não tenho a menor ideia do que é isso”. Antônio Prado é uma cidade que é patrimônio histórico no Brasil, por ter um conjunto em madeira da imigração italiana, um conjunto arquitetônico que não existe em nenhum outro lugar, são 48 edifícios tombados pelo patrimônio histórico, então, a arquitetura sempre foi parte da cidade, é claro, mas virou parte da vida das pessoas a partir do momento que a cidade foi tombada, isso foi em 1988. E eu entrei no Segundo Grau em 1991, ou seja, era o grande assunto da cidade ainda, falar sobre arquitetura: “Por que a gente tem esse patrimônio? Por que ele ainda existe na cidade etc.?”. Então eu conversei com alguns arquitetos que trabalhavam na cidade pra ver como funcionava o trabalho do arquiteto, pra ver como funcionava a diferenciação de estilo em Arquitetura e eu achei aquilo tudo muito bacana, especialmente porque eu já fazia curso de desenho e pintura durante bastante tempo, já tinha familiaridade com materiais de desenho, técnicas de desenho, e aí acompanhar o trabalho de arquitetos, coletar material, comparar estilos arquitetônicos sempre foi uma coisa que eu gostei muito e, depois daquilo, eu pensei: “Ah, gostaria de ser arquiteto, gostaria de estudar Arquitetura em função disso”. Conciliava muito os interesses que eu tinha. Depois, “Tá, quero ser arquiteto”. E aí nunca mais mudei de ideia. Foi isso que aconteceu.
P/1 – Lucas, deixa eu te perguntar uma coisa: você fez intercâmbio nesse período, então conta para a gente como é que veio essa ideia?
R – Como é que veio a AFS, né? Então, tá. Tem muito a ver com um pouco das histórias que eu contei. De novo, cidade pequena, a gente tem que procurar o que fazer, especialmente se você tem muita energia, muita criatividade, o que a cidade oferece nunca é suficiente. Isso foi na metade do Segundo Grau, na época o Ensino Médio era o primeiro, segundo e terceiro ano, eu já era presidente do grêmio, uma pessoa super conhecida na escola, me envolvia em tudo o que acontecia, e aí um dia a diretora – acho que foi em março de 1993, eu tava começando o segundo ano do Segundo Grau – me chama e diz assim: “Olha, a gente recebeu uma correspondência de um programa de intercâmbio, eu acho que você deveria fazer” “Ah, que ideia bacana, coisa interessante, vamos ver como é que funciona” “Aqui em Antônio Prado tem uma pessoa que já fez nos anos 1980, vou anotar o nome dela, vá conversar com ela, conversa em casa”. E eu cheguei em casa, minha família almoçava junto na hora do almoço, comentei com a minha mãe e disse: “Tem esse programa de intercâmbio, é AFS, num sei o que. O que você acha?” “Ah, AFS é American Field Service” “Deve ser, eu não tenho a menor ideia, só diz AFS aqui” “Porque se for American Field Service, pode fazer, pode ser sim” “Por que?” Porque quando ela tava no Segundo Grau, algumas colegas dela fizeram intercâmbio. A minha mãe estudou em Caxias, sempre teve um comitê muito ativo da AFS e essa correspondência tinha vindo do Comitê Caxias. Acho que o comitê tava muito ativo, né, eles queriam aumentar a abrangência do comitê que acho estava restrita só a Caxias, eles queriam abranger outras cidades da serra e então pegaram endereços de escolas de Segundo Grau e mandaram essa correspondência comunicando o período de abertura das inscrições para seleção do AFS. Naquela época, a organização tinha muito mais candidatos do que número de vagas disponíveis para viajar então tinha todo um processo de seleção dos candidatos e foi mais ou menos o que aconteceu. Aí conversei com essa pessoa, na época que a gente montou o comitê em Antônio Prado do AFS eu fui chegar nela também. Assim, ela ajudou muito e até hoje tá muito envolvida com o AFS e ajudou também no começo etc., conversei com ela, ela explicou como funcionava, ela tinha morado no Canadá com a AFS e até então eu tinha aquela ideia de mundo que era bastante restrita, o que a gente conhecia em termos de mundo era no máximo Paraguai, Argentina e Uruguai pela proximidade do Rio Grande do Sul com esses Estados. Era bastante insular ainda a minha visão de mundo. Depois eu disse: “Bom, então tá”. Cheguei em casa, a gente conversou, conversei com a minha mãe, a gente: “Tá, pode ser, não tem problema” e aí me inscrevi nesse processo de seleção, aconteceu em Caxias, então nos finais de semana eu tinha que ir de Antônio Prado, pegar um ônibus pra Caxias fazer o processo de seleção que foi de março até setembro. Uma vez a cada 40 dias tinha uma atividade e foi isso que foi acontecendo. Primeiro tinha uma prova escrita, reunião com os pais, depois tinham entrevistas em grupo, individuais, atividades e foi diminuindo o grupo que eu acho que na época tinha umas 110 pessoas, a gente terminou em 11 no final e foi mais ou menos isso que aconteceu. Então esses 11 foram selecionados pelo Comitê Caxias, mas não era todo mundo de Caxias. Tinha pessoas de Carlos Barbosa, de Flores da Cunha, outros de Antônio Prado, outras pessoas da serra porque na época Caxias do Sul tinha um presidente do Comitê bastante visionário, no sentido de: “Vamos expandir a organização”. No Rio Grande do Sul, na época, você tinha um comitê em Caxias, em Rio Grande, em Santa Maria, Pelotas e no Vale dos Sinos, que é São Leopoldo e Novo Hamburgo. “Essa ideia é maravilhosa, esse programa é maravilhoso, vamos começar a expandir”. Então, a melhor forma de expandir é procurar gente que viaje pelas cidades e aos pouquinhos a gente planta a semente lá. A ideia também de alguém de Antônio Prado foi um pouco isso, né? “Vamos abrir um comitê em Antônio Prado”. Isso foi mais ou menos, o processo de seleção terminou em setembro, outubro, aí o pessoal do comitê foi fazer uma entrevista com a minha família, em casa: “E aí, vocês topariam ser responsáveis pelo Comitê AFS em Antônio Prado? A gente gostaria de criar um comitê em Antônio Prado para vocês enviarem e receberem estudantes todos os anos, a cidade parece ser perfeita para esse tipo de coisa, vocês gostariam, topariam?”. E na época, minha mãe já envolvida com milhões de atividades, era vereadora na época, clube de mães... Uma série de atividades na comunidade, “Por que não? Mais uma coisa, acho que é bom para a cidade, acho que vai ajudar a cidade a entender que tem um mundo além da ponte”. Como eu estava falando: Antônio Prado fica na margem direita do rio das Antas e todas as grandes colônias italianas do Rio Grande do Sul ficam na margem esquerda do rio. Tinha um rio que era intransponível e sempre tinha uma balsa para cruzar esse rio. Antônio Prado sempre ficou muito isolada do mundo e do resto do Rio Grande do Sul em função de estar do outro lado do rio, onde o transporte não era muito fácil. E foi isso que levou também a cidade a virar patrimônio histórico: a partir do momento que as cidades foram evoluindo, foram se modernizando, os edifícios de madeira da colonização italiana foram sendo derrubados e foram sendo substituídos por edifícios mais modernos. Antônio Prado, por ter ficado meio que isolada do mundo, esses edifícios foram preservados. A partir do momento que uma ponte foi construída e não precisou mais de balsa sob o rio das Antas, acabou usando-se uma metáfora muito usada na cidade: “Tem um mundo depois da ponte”. Parece que a cidade só vive, só existe até a ponte, então era muito isso, a visão da minha mãe na época foi: “Olha, é uma excelente ideia de mostrar para a cidade que existe um mundo além da ponte”. A gente tá falando isso onde não existia internet ainda, antes disso, não existia telefone celular, o mundo era bem diferente do que a gente tem hoje em termos de acesso e comunicação. E aí ela disse: “Pode ser, não tem problema, o Lucas vai viajar ano que vem, enquanto o que a gente pode fazer, né?” “Tá bom, vocês podem começar a procurar uma família para hospedar um estudante. O próximo ciclo é em fevereiro do ano que vem” – seria fevereiro de 1994, procurei uma família –. “A gente procurou um estudante que queira vir para cá e vocês ficam como uma representação do Comitê Caxias, como um posto avançado do Comitê até ganhar um pouquinho mais de massa, ter algumas pessoas interessadas e poder virar comitê independente no futuro”. Quando foi dezembro, a gente procurou uma família que estava disposta a hospedar um estudante, em janeiro chegaram os papéis de uma estudante da Nova Zelândia, em fevereiro chega essa estudante e aí começa o processo de envio e hospedagem em Antônio Prado. A estudante chegou em fevereiro, eu viajaria em julho ou agosto, dependendo do país e foi mais ou menos esse o envolvimento com o AFS.
P/1 – Então o teu primeiro contato, na verdade, foi com alguém que chegou lá antes de você viajar?
R – Na verdade, a coisa já tava encaminhada, né? Foi essa correspondência que foi enviada para a escola – olha como isso é poderoso às vezes –, foi uma diretora que disse: “Ideia interessante, me deixa ver quais os alunos daqui da escola acho que poderiam participar desse tipo de programa” e foi a iniciativa dela de me chamar para uma conversa: “Olha, aqui, leva para casa, conversa com a mãe” e ter uma família que achou que a ideia era bacana também. Começou por aí. Depois, passar por um processo de seleção com mais uns 110 candidatos e sendo selecionado, fazendo parte do processo, avançando no processo e o Comitê na época, de Caxias, entender um pouco do papel que a minha família tinha na cidade e de ver nisso uma possibilidade de montar um comitê em Antônio Prado. Foi uma combinação de fatores que acabou funcionando muito bem e que, anos depois, trabalhando com a organização já profissionalmente, me dei conta que no mundo inteiro é assim, a forma como a organização se expande no mundo inteiro basicamente: você acha uma pessoa bem corajosa num determinado lugar, que tá disposta a viajar com a organização e, mais ou menos, quando essa pessoa volta, a gente tem a base para começar a construir o comitê ou um pedaço da organização naquela cidade.
P/1 – E como foi para Antônio Prado receber essa menina da Nova Zelândia? Quer dizer, o que aconteceu na cidade que conhecia todo mundo, ver que veio alguém do outro lado da ponte pra estar disposto a trocar, a experimentar a vida lá?
R – É, na verdade acho que a cidade ficou muito curiosa, né? “Como é que tá vindo um estudante de intercâmbio pra Antônio Prado? Isso aqui é uma cidade perdida, no meio do nada, e como é que tá vindo parar um estudante de intercâmbio na cidade?” A cidade ficou muito curiosa. Queria organizar milhões de atividades para esse estudante. Mas, como sempre, depois de dois ou três meses, vira rotina, ninguém mais está interessado, tinha que inventar uma coisa nova. Mas no começo todo mundo ficou muito curioso: “Quem é essa pessoa? Por que tá aqui? O que tá vindo fazer? Com quem tá morando? Mas família tá recebendo por quê?” Embora as cidades pequenas tenham uma tradição muito grande de fazer trabalho voluntário, isso já ultrapassava o limite do trabalho voluntário. Trabalho voluntário era muito associado com caridade, e a partir do momento que você tem uma organização que não tá necessariamente fazendo caridade, não tá fazendo assistência social, assistencialismo, em que as pessoas tão fazendo trabalho voluntário para que pessoas possam vir e ir, mudou muito, né? Isso saiu muito fora do esquema que já estava montado dentro da comunidade. Você tinha aquela estudante que passava na rua, todo mundo olhava, todo mundo sabia quem era, embora não tivesse a menor noção do que tivesse acontecendo com ela, todo mundo sabia: “Ah, aquela é a estudante de intercâmbio, ela é a intercambista, veio de tal lugar”. Todo mundo sabia de alguma coisa e, onde quer que ela fosse, centro de atenções. Por isso, para o estudante de intercâmbio é muito bacana passar por essa experiência também, de ser o centro do universo por alguns meses que seja, né? Especialmente para um adolescente, de 16, 17, 18 anos, ser o centro do universo, de uma cidade inteira, é uma experiência muito bacana. É uma coisa bem interessante. Foi mais ou menos como a cidade recebeu. E aí, é claro, isso ela chegou em fevereiro, em abril já tinha filas de famílias querendo: “Olha, quando vem o próximo? A gente pode ter um em casa? A gente pode hospedar?”. Isso virou uma coisa muito constante, tanto que em Antônio Prado nunca foi um problema hospedar estudante, sempre teve uma fila de famílias interessadas em hospedar. E o comitê existe desde essa época, desde 1994. Vinte anos já de envio, hospedagem, todos os semestres chegando estudantes.
P/1 – E ela se adaptou bem em Antônio Prado?
R – Se adaptou, acho que se adaptou. Interessante porque acho que era difícil também, né, porque eu lembro que ela vinha da Auckland, capital da Nova Zelândia, uma cidade que hoje tem um milhão e meio de habitantes, quase dois milhões de habitantes e aí você vai parar numa vila que tem na sede sete, oito mil pessoas. Isso é uma diferença muito grande. Mas ela se adaptou. É claro, ela achava tudo muito pequeno, às vezes, se incomodava com o fato de todo mundo conhecer ela e saber o que ela tava fazendo, o que, assim, para um adolescente é difícil. O adolescente sempre quer experimentar coisas novas, fazer coisas diferentes e, a partir do momento que você vive nessa bolha muito pequena em que você é observado por todos. O conceito de Big Brother na realidade foi inventado acho que em uma cidade pequena, você tem que ter muito cuidado com as coisas que você faz se você é uma figura pública, que era o caso dela, porque todo mundo vai ficar sabendo, vai comentar e tem toda a reputação da organização. Eu lembro que ela era muito cobrada: “Se você fizer alguma coisa errada, você pode afetar o futuro do programa na cidade etc. e tal, e aí vai.” Sempre fica aquela tensão entre um adolescente que quer fazer coisas diferentes, quer experimentar coisas diferentes, e uma cidade que tá controlando tudo o que esse adolescente tá fazendo.
P/1 – E agora conta para a gente como é que foi a tua ida, então, para onde que você foi também.
R – Naquela época, a visão que a gente tinha do AFS é que era uma coisa muito secreta, ninguém entendia como que funcionava os processos, a nível local, não se tinha muita autonomia para tomar algumas decisões, né? Então o comitê selecionava certo número de participantes, era dado um número para esse comitê: “Selecionem oito, dez, 12”, que esse número até hoje é conhecido como a matriz de envio. Eu lembro que, na época, no Comitê Caxias, acho que eram seis vagas e o Comitê decidiu selecionar duas vezes a matriz. Eles selecionaram 12 participantes, depois um participante desistiu, a gente terminou em 11 nesse processo. Alguns, cinco ou seis, receberam logo que terminou esse processo, novembro ou dezembro, a confirmação do país para onde eles iam e cinco – eu incluído nesse grupo – tínhamos que esperar uma segunda leva de países que seriam disponibilizados. Mas o Comitê era muito articulado e eles tinham um programa de preparação que era uma vez por mês, tinha um encontro todo sábado à tarde para falar sobre cultura, as etapas da experiência, como se preparar, o que fazer, como lidar nesse meio período de tempo, então a gente foi criando esse grupo que ficou junto desde o final da seleção até a hora de viajar, se encontrando uma vez por mês e, às vezes, passando todo um sábado juntos em preparação. E esses cinco que não tinham um país: “Virá a confirmação do país em determinado momento”, o que acabou acontecendo mais ou menos na Páscoa. Naquele ano, acho que foi no começo de abril. Nós cinco recebemos os países que faltavam e eu lembro que, na época, eu recebi um telefone do presidente do Comitê Caxias dizendo: “Olha, a gente tem duas opções de país para você, Itália ou Estados Unidos, mas não é Estados Unidos continental, é Porto Rico. Quer cinco minutos para falar com a mãe e ligar de volta para a gente?” (risos). Foi mais ou menos isso que aconteceu. Aí, assim, naquela época, pelo fato de morar em Antônio Prado, ser uma cidade de colonização italiana, todo mundo ter um vínculo direto com língua italiana, com a Itália, por alguma razão eu achei que Itália não seria algo muito diferente da realidade aonde eu já vivia. “Mas e aí? O que a gente conhece de Porto Rico? São Estados Unidos, mas não são Estados Unidos? A gente não conhece nada de Porto Rico” “Vamos arriscar?” “Vamos, vamos arriscar”. Liguei de volta: “Tá, gostaria de ir para Porto Rico”. Passado o susto inicial, de: “O que eu vou fazer em Porto Rico?” “Onde que fica isso?” “Como é?” Porque não é aquela coisa, não é um desses grandes países do mundo que todo mundo sabe onde é, onde todo mundo tem uma referência ou todo mundo já ouviu falar. É um desses lugares “mas onde fica isso mesmo?”, “Ah, é Costa Rica?” “Não, é Porto Rico”. E, então, desde esse processo de ter que educar as pessoas ao fato de eu ter que me educar: “Onde é que fica isso? Como é que funciona? Como é essa relação que eles têm com os Estados Unidos? Como é o clima? Aonde que eu vou morar lá?” Passa por todo esse processo e o AFS ajuda muito no sentindo coloca você em contato com outras pessoas que já passaram pela experiência, tinha um menino de Caxias que estava em Porto Rico naquele ano, já tinha uma referência de que era uma experiência bacana e, então, vai cumprindo a parte burocrática, que é o contrato com o AFS. Eu lembro que a minha mãe tinha que pagar mensalmente: “Vamos cuidar dessa parte burocrática, vamos começar a preparar essa viagem que agora realmente vai acontecer, porque agora você tem um país”. Depois, o AFS tem o período de orientação e aí você é colocado em contato com todas as pessoas no Estado que estavam indo viajar, a gente era em torno de 30, 35, eu acho, no Rio Grande do Sul na época, para os mais diversos países. E tinha, comigo, três gaúchos indo para Porto Rico: um outro menino do mesmo Comitê, de Caxias; e uma menina de Canela, ali em torno da serra, mas de outro comitê na região das Hortênsias, que é Gramado, Canela. A gente acabou ficando amigos, as famílias acabavam se encontrando pelo fato de ter essa experiência em comum prestes a acontecer. Isso tudo começou em abril e a gente foi viajar no começo de agosto de 1994.
P/1 – E como que foi a experiência?
R – A experiência foi muito boa e foi muito ruim ao mesmo tempo. Acho que toda experiência de intercâmbio tem aspectos muito positivos e tem aspectos difíceis de lidar. Mas é uma coisa que pouca gente fala, principalmente dos aspectos mais difíceis, porque tá no imaginário, especialmente do brasileiro, que fazer intercâmbio é a coisa mais legal do mundo e é realmente uma coisa muito legal. Mas é um período muito difícil, porque você tá saindo da adolescência, entrando na vida adulta, então tem todo um ritual de passagem, você tá numa situação estranha, com pessoas estranhas, numa família que, embora tenha algumas referências suas, que não é necessariamente a sua família e tudo isso ao mesmo tempo. É bastante difícil, né? O pessoal, normalmente, quando volta, esquece a parte que foi difícil, complicada, tudo que você teve que passar, e lembra só da parte legal porque tá muito no imaginário das pessoas. Comigo, na verdade, não foi muito diferente no intercâmbio do que era em casa, é a mesma coisa: eu caí numa escola muito grande, com 2800 alunos, só de Segundo Grau, High School, e não demorou muito para eu também ser um destaques da escola no sentido de se integrar com as pessoas que gostavam de coisas muito parecidas com as minhas, o fato de tirar notas boas, ser um bom aluno, ser reconhecido na escola como um bom aluno, então não demorou muito para eu simplesmente replicar aquela vida que eu tinha em casa numa escola no outro lado do mundo, em outro idioma, que foi o que eu acabei fazendo. Foi uma experiência incrível nesse sentido, né? De escola, de família, de fazer coisas diferentes mas, ao mesmo tempo, é algumas vezes muito solitária a experiência: você, na verdade, não tem amigos no começo, demora um pouco criar amizades, [há] uma série de situações que você não entende por que as coisas funcionam da forma como funcionam, então é um período bem desafiante. O fato de você ter que aprender uma língua, ser tratado como uma pessoa normal, um estudante normal que passou a vida inteira naquele lugar, não tem grandes diferenciações na hora. “Vamos pegar leve com ele porque ele é um estudante” não, eu fui tratado como um estudante normal: “Vai fazer prova como todo mundo, vai participar das atividades como todo mundo” e acho que isso foi bom porque ajudou muito no processo de integração com a escola. É uma coisa que até hoje eu sinto saudades porque foi um ano muito bacana nesse sentido, mas ao mesmo tempo foi difícil por essas questões, nem sempre as coisas são como a gente gostaria que fossem, como a gente imagina. A gente cria muita expectativa e acaba às vezes não concretizando essas expectativas.
P/1 – E a família, como é que era, a casa, enfim?
R – Eu fiquei meio naquela ansiedade, né: “Tem que vir os papéis da família”, “a família...” A família chegou no dia de viajar e eu não tinha recebido nenhuma confirmação onde, eu sabia o comitê para onde eu ia em Porto Rico, porque a gente imagina: “Numa ilha pequena não tem muito pra onde a gente ir, não”, tem bastante lugar para onde ir, né? Eu fui parar numa cidadezinha no sul da ilha, de 40 mil habitantes e eu não tinha nenhum papel de família. Eu sabia que ia para aquela cidade, mas como a gente já conhecia um pouco mais da organização, eu sabia que algumas coisas realmente aconteciam na última hora. A gente foi confiando muito na organização de que tudo estaria sob controle que, sim, eu ia ter uma família, tinha sido só uma falha de comunicação do correio ou alguma coisa que não levou e, realmente, a gente, naquela época, tinha que viajar de onde morava para o Rio de Janeiro, os embarques internacionais eram lá. Tinha uma orientação no Rio de Janeiro e depois a gente viajava com participantes do Brasil inteiro, em grupos, indo para os mesmos lugares pelos mesmos caminhos. E eu lembro que naquele dia era um grupo de Porto Rico e da Finlândia viajando juntos. Quando eu cheguei à orientação, foi no Instituto dos Arquitetos do Brasil – coincidência, né? Eu ainda queria fazer Arquitetura naquela época. E aí eles tinham os papéis da minha família, com quem eu ia morar e todos os dados, e eu tava indo para uma família com uma mãe, o marido e duas filhas, uma dois anos mais velha que eu e outra um ano mais nova. Começou o primeiro choque aí: “Eu, de uma família com um irmão, vou morar com duas irmãs”. “Como é que é morar com menina?” Eu não tinha a menor ideia. Cheguei na família, foi tudo legal, no começo é aquela coisa diferente, aí um mês depois a minha mãe e o marido da primeira família se divorciam. A vida continua, né? Dois meses e meio depois, a minha irmã mais velha se alistou no exército por um período de quatro anos, ou seja, ia sair de casa por quatro anos, então em questão de três meses, uma família que eram quatro pessoas e eu ficou reduzida a uma família da mãe, a irmã mais nova e eu. Mudou completamente. A coisa começou a ficar meio estranha dentro de casa, a minha mãe tava passando por várias crises, a filha mais velha saiu, pais se divorciando, então não era mais um ambiente propício, eu acho, para receber um estudante de intercâmbio dentro de casa. A gente meio que acordou que eu deveria trocar de família porque tava muito pesado, estressante para mim e para eles naquela situação. Aí eu troquei de família e fui morar com a família da bibliotecária da escola, ela já tava em idade de quase aposentadoria então era só ela e o marido em casa, os filhos já tinham crescido e ela já me conhecia da escola, disse: “Vem morar com a gente, terminar o ano com a gente” e aí eu passei os primeiros cinco meses com uma família e depois os outros seis meses com a outra família que foi excelente. A primeira família foi muito boa, a gente até hoje mantém contato, conversa e tudo e com a segunda família também foi muito bom porque realmente eles me viram naquela situação de desamparo, numa situação que precisa trocar de família então: “Vamos acolher bem” e foi exatamente o que eles fizeram comigo. Até hoje a gente conversa, mantém contato, eu visito eles... Eles já bem meio velhinhos agora, eles já eram naquela época, e eles estavam muito assim: “E agora, o que você quer fazer? O que nós vamos fazer com você? Traz seus amigos para jantar em casa”. Isso foi uma coisa muito bacana, eles gostavam muito de ter adolescentes em casa, gostavam muito de ter os meus amigos em casa. A casa acabou virando o centro das atenções, todo mundo ia lá para casa de uma forma ou de outra e eles gostavam muito de ter gente em casa, conversar, eram muito sociáveis. Foi isso.
P/1 – Lucas, você falou dos amigos. Quem foram os amigos que marcaram esse seu tempo de intercâmbio?
R – Eu acho que, como era uma escola muito grande, tinha diversas disciplinas, eu convivia com grupos muito diferentes dentro da escola. Agora a gente tá completando 20 anos de formatura, tem uma festa no final do mês, em dezembro. Aí vão ver quantas pessoas eles conseguem reunir. Eles me colocaram em alguns grupos dentro da escola, grupos avançados, Matemática Avançada, Inglês Avançado, Espanhol Avançado, pros estudantes que – não sei como faziam a divisão na época – já tinham um perfil mais acadêmico dentro da escola. E foi com essas pessoas que eu acabei me envolvendo, pessoas que gostavam muito de fazer serviço comunitário, gostavam de trabalhar com atividades voluntárias, eram bons academicamente, esses foram os meus grandes amigos. A gente gastava muito tempo, na verdade, fazendo trabalho de escola juntos, atividades para a escola juntos ou na comunidade. Então foi com essas pessoas que eu acabei me envolvendo. O que, de novo, de certa forma hoje, refletindo, eu repliquei muito a vida que eu tinha em Antônio Prado nessa cidadezinha perdida no interior de Porto Rico também. No sentido de estar envolvido com a comunidade, fazer serviços, estar envolvido em todo tipo de atividade extracurricular que a escola oferecia e ser bom aluno academicamente.
P/1 – E como que foi o seu retorno?
R – Eu acho que o retorno é difícil para todo mundo, né, porque uma coisa que a minha mãe falava muito é que ela admirava muito quem fazia intercâmbio porque você tem essa sua vida confortável, sua bolha, e aí você abre mão de tudo isso. Você constrói tudo de novo lá fora. Isso por si só já é um grande trabalho. Mas você constrói tudo isso sabendo que depois de um ano, você vai ter que deixar tudo para trás e voltar para casa e construir tudo de novo, ou seja, é uma sucessão de construções e destruições que tem que ter muita coragem para fazer. Porque você tá muito bem, muito confortável, então não é só uma vez que você tem que construir tudo do zero, mas é depois ter que voltar, abandonar, e construir em casa. Porque você amadureceu muito, você cresceu muito, viu muitas coisas diferentes e foi exposto a uma realidade muito diferente. E o pessoal em casa não necessariamente, ou avançou também, evoluiu também, mas por um caminho muito diferente do seu. E aí reconciliar esses dois mundos quando você volta é muito difícil, porque você está falando de A e as pessoas estão falando de B. Então os seus amigos, as pessoas que te conheciam, não vão necessariamente ser os seus amigos quando você voltar. O mundo mudou muito para ambos os grupos, para você e para o grupo que ficou. Você reencontrar o seu grupo, o seu espaço, é difícil. A gente acha que: “Ah, em uma semana, duas semanas vai estar tudo resolvido”. Não, é um processo de vários meses, né? E soma com isso o fato de a gente ter que terminar o Segundo Grau, terminar a escola, ou tinha que fazer cursinho para depois fazer vestibular. É uma série de coisas que na verdade você precisa de um espaço, um tempo, para colocar as ideias no lugar, mas o mundo tá te cobrando uma série de coisas, que você volte a ser a pessoa que você era, volte a pensar na escola e se preparar para o vestibular e aí é difícil. Eu acho que eu passei alguns meses sem saber direito para onde ir, o que fazer, como se relacionar e é nessas horas que o AFS funciona muito bem. Você tem um grupo de pessoas que ou já passou ou está passando por essa situação, então os seus amigos do AFS acabam virando os teus grandes amigos porque é gente que entende a situação que você tá passando, é algo que você acaba se envolvendo com a organização e acaba querendo “Como é que eu posso ajudar? O que é que eu posso fazer? Porque esse aqui parece que é um dos meus únicos refúgios onde as pessoas entendem pelo que eu estou passando”. Não todo mundo, é claro, o pessoal que gosta se sente mais à vontade e acaba fazendo serviço voluntário para o AFS, acaba se envolvendo com o AFS como uma forma de fazer uma desconstrução dessa própria experiência, buscar se readequar ou voltar a se integrar na sociedade. Aí chegou o final do ano, fiz o vestibular, queria passar em Arquitetura na Federal do Rio Grande do Sul. Eu quase passei, mas não passei, passei em particulares, mas não quis fazer: “Sou jovem, posso fazer mais um ano de cursinho e aí realmente passar na Federal do Rio Grande do Sul”. Eu sempre fui muito competitivo e a Federal, nos rankings, realmente é a melhor ou uma das melhores em Arquitetura do Brasil. “Bom, se eu tenho essa oportunidade toda, porque eu vou fazer numa particular quando eu estou a um ano de cursinho só disso?”. E aí, foi o que fiz. No ano seguinte, fiz cursinho e fiquei muito ativo, muito envolvido com o AFS porque tinha o cursinho de manhã e o meu mundo social, que era se envolver com o AFS. Eu sempre gostei, me senti muito à vontade com a organização, conhecia bastante dos processos, como a coisa funcionava, pelo fato de a gente já ter tentado montar um comitê em Antônio Prado antes mesmo de eu viajar. Do processo é: você vai, viaja, volta e depois você se integra a um comitê. Em função de Antônio Prado ser uma coisa nova, pro comitê, na época, ou para a organização, e a minha família ser a família de contato ou referência na cidade naquele momento, eu já estava envolvido, já conhecia processos na organização que ninguém na minha situação conhecia. Então, óbvio que quando eu voltei, já quis me envolver muito, e foi isso que acabou acontecendo. Eu voltei no ano de 1995, então todo o ano de 1996 eu ia para o cursinho de manhã e de tarde e finais de semana, estava envolvido com atividades do AFS.
P/1 – E que atividades eram essas? O que você fazia?
R – Bom, o que tava acontecendo na região naquela época: tem as atividades de preparação de estudantes que vão viajar; preparação e orientação dos estudantes que chegam ao Brasil e eu nunca fui muito chegado nessa parte toda, mas eu gostava muito da parte administrativa, de trabalhar com os voluntários da organização e aí, na época, a gente tinha um presidente do Comitê Caxias muito ativo. O AFS no Brasil foi organizado em regiões, acho que em 1993 que quebraram as cinco regiões do Brasil em dez regiões e o Rio Grande do Sul virou uma região. Era região Sul, que era Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, e em 1993 o Rio Grande do Sul virou a região Extremo Sul. Então tinha um diretor regional, que era voluntário, uma diretoria regional que supervisionava os trabalhos dos comitês e era uma época muito de: “Vamos abrir novos comitês”, por isso que Antônio Prado entrou nessa safra também, do mesmo jeito que entrou um comitê um pouquinho mais antigo, que era a região das Hortênsias, e aí aonde tinha um contato e algum disposto a abrir um comitê, se estaria abrindo um comitê. Então, uma estrutura que começou com cinco comitês, uns anos depois terminou com 22, 23 comitês, dado ao trabalho das pessoas que estavam na cabeça da região naquela época de: “Vamos expandir”. E eu entrei de paraquedas e me senti muito em casa nesse processo de: “Vamos expandir a organização no Rio Grande do Sul”. Claro, quando eu voltei do intercâmbio: “O Comitê é seu agora”, eu estava me sentindo assim: “Você é o presidente do Comitê, você tem que organizar e estruturar o Comitê”. Eu cheguei e no dia seguinte eu era presidente do Comitê. É uma coisa que era bastante hierárquica na época e você só chegaria a ser presidente do comitê depois de algum tempo, alguns anos, então desde muito jovem eu caí de cara na estrutura da organização e sempre muito curioso, com muita energia: “Como é que funciona?”. Queria aprender, queria entender como a coisa funcionava e aí sempre me envolvi nesse tipo de atividades, mais administrativas no sentido de coordenar voluntários, trazer voluntários para o comitê e acabei me envolvendo muito na parte administrativa da região. A região na época tinha um diretor regional, um diretor administrativo que era o vice-diretor e ele tinha a coordenação de envio, coordenação de hospedagem, aconselhamento, toda a parte para manter o intercâmbio funcionando. E esses cargos eram cargos eletivos, normalmente, os presidentes dos comitês se reuniam a cada seis meses e a cada dois anos fazia uma eleição para esse tipo de posto. E eu sempre tive muito interesse, sempre fiquei muito próximo, até que – isso foi em 1996 mesmo – o diretor regional da época disse: “Olha, eu já estou há quatro anos fazendo isso, está terminando o meu mandato, eu gostaria de sair e gostaria que você fosse o próximo diretor regional da região Extremo Sul” “Mas como é que funciona isso?” “A gente faz um grande acordo, uma espécie de consenso, de quem é o próximo diretor” o que, muito depois, eu fui entender, o Rio Grande do Sul ainda era muito polarizado, tudo era muito branco ou preto: Grêmio ou Internacional; Governo ou não-Governo. É um Estado por natureza muito polarizado que talvez tenha muito a ver com esse processo de: “É parte da Espanha, é parte de Portugal”, né? A partir do momento que você tem eleições num Estado muito polarizado, você tem uma divisão muito grande. A gente tem uma organização em que a ideia não é dividir, é somar, então eu sempre entendi isso: a gente teria que, nos dois anos que eu for diretor regional, buscar uma pessoa e cultivar essa pessoa para ser meu sucessor nos dois anos seguintes para evitar justamente ter um processo de eleição onde você saberia que a coisa iria se dividir e você teria ganhadores e perdedores. E o fato de ter perdedores ocasionaria que metade de organização se afastasse dela numa situação como essa. Então, eu aprendi isso dentro do AFS do Rio Grande do Sul, que a gente cultiva essa pessoa e, se for a pessoa certa, vai fazer a mesma coisa depois e vai manter a família toda unida. E aquilo era a escola que eu herdei, que eu também desenvolvi, e foi o que aconteceu. Eu fui eleito, por consenso, diretor regional e aí fiquei quatro anos e meio como diretor regional da Extremo Sul dando continuidade ao trabalho que eles já estavam fazendo na época que era expandir: “Vamos expandir no Estado”. Acho que em 1991, 1992, 1993 eram cinco comitês e já em 1998, 1999, eram 23 comitês que tinha no Estado. E aí a gente foi para lugares onde ninguém tinha ouvido falar do AFS antes, como Juí, Santa Rosa, Horizontina, Três de Maio, São Bórgia... A gente chegou a ter várias representações em lugares bem diferentes do Estado e sempre lutando: “Ah, Passo Fundo. Vamos tentar em Passo Fundo agora”. Isso ocupava bastante tempo porque todo mundo é voluntário, então, você tem que tirar tempo para escrever uma carta e mandar e a pessoa do outro lado responde àquela sua carta: “Sim, a gente gostaria”, a gente pega um ônibus, vai até Juí, conversa com aquela pessoa, vê se ela está disposta a levar adiante, a pessoa diz que sim; a gente volta, faz uma segunda, aí “pronto, agora você vai procurar uma ou duas famílias que queiram se juntar”, e você volta a Juí de novo, faz uma segunda entrevista, explica como é que funciona a organização, aí volta uma terceira vez: “Olha, a gente tem esse estudante aqui, você gostaria de procurar uma família?”, ao mesmo tempo em que eles têm que procurar candidatos. É um trabalho bem de formiguinha, exige bastante gente para coordenar tudo isso. E aí, é claro, os números vão subindo, porque se a gente já tinha 30 participantes de envio com cinco ou seis comitês, quando a gente chegou a ter 23 comitês, estávamos hospedando 60, 65 participantes por ano no Rio Grande do Sul e enviando esse mesmo número. Aí aumenta o número de orientações, acampamentos, de gente que você tem que administrar de cada cidade, acaba que cada comitê tem um presidente, uma estrutura, tem que se reunir duas vezes por ano, então você acaba se ocupando com a organização, acaba virando um trabalho em tempo integral se você quiser. Ao mesmo tempo, eu estava fazendo cursinho, chegou ao final de 1997, eu era diretor regional da organização, já tinha herdado aquela estrutura toda, tinha que levar adiante a coisa, e aí eu fiz vestibular, passei na Federal do Rio Grande do Sul, mas eu não sei se dei sorte ou azar porque a Universidade Federal do Rio Grande do Sul fazia um vestibular por ano e depois determina os 50 melhores. Dependendo do curso, os 50 melhores entram no primeiro semestre e os 50 que não são os melhores, vão entrar em agosto, no segundo semestre. E eu fiquei em 55 na época, então tinha 100 vagas e eu vou entrar em agosto. Eu disse: “Nossa, fiquei com seis meses para não fazer nada agora, posso de repente viajar, fazer alguma coisa... Não, vou cuidar do AFS”, e foi o que eu fiz. E cuidei durante seis meses, de forma bem intensiva, do AFS no Rio Grande do Sul. E aí, é claro, você tem mais pessoas da mesma idade, tem pessoas mais velhas, tem toda uma grande diversidade, mas você acaba descobrindo pessoas que estão numa mesma situação que você, que estão começando a universidade, que viajaram mais ou menos nos mesmos anos que estão passando, então o meu grupo de amigos acabou sendo o grupo de amigos do AFS. E até hoje tenho esses amigos que são amigos do AFS, que foi desse período que a gente administrou o AFS do Rio Grande do Sul juntos e que foi um período muito bacana. A coisa cresceu muito: muitos estudantes, muita gente indo viajar, muita gente diferente chegando na organização, a gente indo em cidades que jamais imaginou que pudesse ter intercâmbio funcionando...
P/1 – Lucas, deixa eu te fazer uma pergunta. Esse período que você tá falando é exatamente o período em que o AFS também está se reestruturando para se recuperar da dívida, tá tendo uma mudança de gestão, uma série de processos mudando. Como a base voluntária sentiu, em termos de capacitação, para vocês aumentarem esse fluxo que na verdade ajudou essa recuperação da dívida?
R – Excelente pergunta essa, porque, assim, ao mesmo tempo em que você lida com as questões regionais, na verdade o Rio Grande do Sul, o Estado, você lida também com as questões nacionais. O fato de você ser diretor regional na época te dava um assento permanente numa coisa que se chamava Diretoria Nacional, que tinha uma executiva diretoria nacional, eram cinco membros eleitos numa convenção nacional que acontecia uma vez por ano no Brasil, e cada diretor regional, um para cada uma das dez regiões, sentava nesse grande conselho nacional. A gente tinha que, duas vezes por ano, participar de uma reunião no Rio de Janeiro com esse conselho nacional, e é onde a gente tomava as decisões relacionadas com o futuro da organização de forma global para todo o Brasil. E o que era engraçado é que os problemas regionais eram muito diferentes dos problemas nacionais. Aconteceu que, logo quando eu voltei de intercâmbio, isso em 1995, eu cheguei em julho e em setembro já tinha uma Convenção Nacional e como eu era presidente de comitê, eu herdei o comitê, eu tinha direito a ir para essa Convenção Nacional. E essa Convenção foi em Jundiaí, no INCA, Instituto Cajamar em Jundiaí, e aí a gente foi apresentado com a notícia que o superintendente, diretor do país na época, tinha sido demitido, eles estavam contratando um superintendente novo, que a gente tinha essa dívida – ninguém sabia exatamente o tamanho da dívida, mas era um milhão de dólares ou alguma coisa por aí – a gente tinha que pagar, passou por um processo super traumático de demitir o superintendente da época e contratar um novo, que era um cara que, na nossa primeira impressão, era bem estranho: “nossa, da onde tiraram essa pessoa agora?” e então foi nessa Convenção Nacional, em Jundiaí, no INCA, que nos apresentam essas notícias: “Ah, a dívida continua, pra quem não sabia a gente tem uma dívida, se você já sabia ela continua, a gente demitiu o superintendente, a gente contratou um novo e agora vamos lidar com tudo isso”, e aí, claro, é um banho de água fria, porque a gente tem uma organização que tá doente, mas ao mesmo tempo eu não tinha a menor ideia de como aquilo ia afetar a minha vida, como ia impactar o meu trabalho, mudar a minha vida como Presidente de Comitê em Antônio Prado no Rio Grande do Sul. É isso, porque a organização sempre foi muito descentralizada no Brasil, pelo fato do Brasil ser muito grande. Desde que eu conheço a organização, ela sempre foi muito descentralizada, o Rio Grande do Sul sempre foi muito independente na forma de agir, fazer as coisas, então o fato de que a gente tinha uma dívida, que a organização tava doente, a gente não sabia qual era o impacto daquilo no dia a dia. Exceto que a gente, na época, não sabia como isso funcionava, mas tinha alguns tipos de repasse que eram feitos para fazer toda essa estrutura funcionar, já que a gente não tirava dinheiro do bolso, né? Tinha um fundo regional e a gente tirava dinheiro desse fundo para desenvolver atividades dentro do estado. Mas eu não tinha a menor ideia de como esse fundo era alimentado, como ele funcionava, qual era o grande problema da coisa toda. Fui aprender nos anos seguintes, já como membro da Diretoria Nacional, qual era o impacto de ter aquilo. Era porque a gente tava sempre buscando dinheiro no AFS Internacional para cobrir as despesas que a gente tinha com a promessa de pagar isso, então se a gente precisava de 500 mil dólares para operar o programa em um determinado ano, a gente pegaria aquele dinheiro na AFS Internacional, eles adiantariam esse dinheiro e a gente pagaria depois. E aí ficou um sistema meio que a gente tava vendendo programa do ano seguinte para pagar o programa desse ano, foi um sistema durante muito tempo que vigorou do “vender a janta para pagar o almoço”, então a gente tava vendendo programa do ano seguinte para pagar o programa desse ano, e aí, claro, nunca tinha dinheiro para fazer nada na organização. Então a Convenção Nacional era no Instituto Cajamar em Jundiaí, a gente dormia em beliches, tinha que levar lençol, toalha; a gente nunca tinha condições de ficar em hotéis de verdade, sempre ficava em albergues; sempre fazia todos os eventos da organização em lugares bastante simples, tentava economizar dinheiro de todas as formas possíveis, né? O que, de certa forma, foi uma coisa bacana também porque realmente só ficava quem realmente estava interessado em levar a organização adiante e isso foi bacana porque a gente aprendeu a viver com pouco dentro da organização, aprendeu a improvisar muito, a fazer arrecadação de fundos com algumas coisas, a gente aprendeu a ser muito zeloso com o caixa da organização com esse fundo regional que a gente tinha. Claro, isso com o tempo foi mudando porque depois esse Diretor que foi apresentado para a gente no Instituto Cajamar ficou dois anos e aí o Eduardo [Assed] foi contratado justamente com essa missão de reorganizar a casa. Porque o Klaus, esse diretor que ficou dois anos, fez uma grande limpeza na organização, reestruturou o escritório, e é claro que quem faz uma grande limpeza na organização não tem condições de ficar depois. Você vem, faz essa limpeza e depois sai. Aí o Eduardo veio, já pegou a coisa um pouquinho mais organizada, mas o trabalho do Eduardo foi estabilizar a organização nos anos seguintes, no sentido de eliminar a dívida, pagar toda, o que acabou acontecendo justamente com muita austeridade, de a gente pode cortar tudo o que é supérfluo, a Secretaria Executiva sempre funcionou com o mínimo de funcionários possíveis e a gente na época recebeu instruções para dar uma enxugada naquela estrutura toda que a gente tinha. “De 23 comitês, quantos realmente vocês têm que manter aberto? Realmente tem que mandar um estudante lá para o outro lado do Rio Grande do Sul? Pra Horizontina, que toda vez que fizerem uma orientação em Porto Alegre tem que pagar a passagem de ônibus?” Custa muito fazer isso, tem como vocês eliminarem isso?”. A gente disse: “Não (risos), porque tem alguns valores que são importantes para a gente. Deu o maior trabalho abrir, a gente teve que fazer várias viagens, as pessoas que vieram antes da gente fizeram isso, foram lá, dedicaram tempo e energia e a gente não vai fechar isso porque a gente não consegue pagar. A gente pode reduzir um pouco a atividade, pode modificar algumas coisas, mas a gente não vai perder pessoas no caminho em função de erros administrativos da organização no passado”. E a gente foi sempre muito duro com isso e eu acho que, nos anos todos que eu fiquei com Diretor Regional e como membro dessa executiva da Diretoria Nacional, foram anos de, assim, realmente: “O que é que o pessoal do Rio Grande do Sul tá aprontando agora? O que eles tão fazendo agora que eles não estão de acordo com o que a gente ta fazendo?”. E tem várias disputas, várias brigas internas, sempre numa boa, né, mas a gente sempre procurou defender as coisas em que a gente acreditava, alguns valores e isso gerou uma série de conflitos na organização, uma série de incidentes, uma série de acidentes também, né? Teve uma época que a gente tava arrecadando fundo para uma bolsa com base nas inscrições e, por alguma razão, a gente decidiu que a gente ia ser contra aquele fundo e aquela bolsa em particular. Então, a gente não repassou o dinheiro que a gente arrecadou para dar essa bolsa, que era uma bolsa nacional. Era uma bolsa pro Brasil inteiro que a gente ia dar com o dinheiro das inscrições dos participantes do ano seguinte. A gente ia arrecadar acho que 40 reais para pagar essa bolsa, tinha que repassar 20 pro escritório. Arrecadou os 40 e não passou os 20, né, a gente usou no fundo regional. E aí o Brasil inteiro ficou contra a gente porque “Onde já se viu?”, não sei o que, “Vocês não podem fazer isso, a gente combinou”, “A gente realmente não pode, mas a gente vai fazer”. E como o Rio Grande do Sul era a maior operação do AFS Brasil entre as regiões, era os maiores números de envio e hospedagem, a gente achava que tinha um certo poder de barganha porque a gente disse: “Bom, se vocês não concordarem, a gente não vai receber nenhum estudante no próximo ciclo”. Isso era, assim, 30% de todo o número de hospedagem do Brasil, todo mundo ia ter que assimilar isso. E aí deu lá aquela confusão grande, etc., e eu disse: “Tá bom, então a gente vai pagar a bolsa”. Reuniões secretas no quarto, vem alguém conversar com a gente, vem alguém mediar. Acontece, um monte de pós-adolescentes, com 21, 22 anos de idade, brincando de organização grande, era isso que acontecia. E acho que foi bom porque a gente aprendeu muito nessa história, mas então foi muito isso, né? Vinha uma pessoa, sentava no quarto com a gente: “Nossa, porque eles tão fazendo isso, o que vai acontecer?”. A situação foi essa. A gente fez: “A gente topa pagar a bolsa etc., a gente já tava calculando quando dinheiro a gente ia retirar do caixa regional” e aí eles incluíram a gente no sorteio, porque eram dez regiões e uma bolsa: “Vamos fazer um sorteio dessa bolsa, vamos ver quem leva”. Nós ganhamos a bolsa. Como a gente não queria a bolsa e a gente não queria ter que devolver esse dinheiro pro fundo, a gente vendeu essa bolsa para uma outra região. Quem levou foi a região Pantanal: “A gente compra, 2.500 reais, a gente paga esse dinheiro que vocês deveriam pagar, mas a gente fica com a bolsa na região Pantanal”, foi exatamente o que aconteceu. A gente terminando não pagando o que a gente queria, ficou bem com todo mundo e alguém que queria muito a bolsa, ganhou. Foram essas coisas que aconteciam muito regularmente e é por isso que na verdade foi muito bom esse período que a gente ficou envolvido, eu fiquei envolvido em termos de aprender, como é que o mundo funciona, como não funciona, até onde a gente pode ir... Acho que o AFS me ensinou muito nesse sentido de me mostrar o que pode ser feito, o que não pode ser feito, quando a gente tem que conversar, quando a gente pode ser firme nos valores da gente, quando a gente tem que escutar o outro para entender as principais diferenças e quando a gente tem que defender o nosso ponto de vista, né? Acho que foram os anos todos que fazer parte desse grupo me ensinou. E aí depois disso, o caminho natural na hierarquia era você ser presidente de Comitê, você faz parte da Diretoria Regional que te dá um assento nesse grande grupo de Diretoria Nacional e aí você se candidata a um desses cinco cargos executivos que é o Executivo da Diretoria Nacional, daqueles cinco membros eleitos pela Convenção Nacional. E aí eu me candidatei, fui eleito, fiquei quatro anos na Diretoria Executiva e aí depois terminou, né? Porque tem aquela coisa: “Para onde você vai agora?”. Ou você volta a ser voluntário do Comitê ou você não tem muito o que fazer dentro da organização agora, porque você já passou por todas as instâncias diferentes dentro da administração da organização, e aí é mais ou menos a hora de afastar, né? Ou você volta a fazer trabalho dentro do Comitê ou acaba se afastando. E aí eu já tava terminando a faculdade de Arquitetura nessa época, eu fui estudar nos Estados Unidos, terminar a faculdade, e coincidiu com o fato de terminar o meu mandato no Executivo da Diretoria Nacional, e aí acabei me afastando da organização depois. Depois, voltei como funcionário da organização, mas aí já foi um outro capitulo.
P/1 – Deixa eu só te fazer uma pergunta. Essa, na verdade, “carreira de voluntário”, que passa por todas essas etapas, ela demanda muito esforço e também muito tempo, né? Então fala um pouquinho dessas motivações de continuar e dessa ideia de estar no AFS fazendo faculdade, com a vida acontecendo ao mesmo tempo?
R –É, a minha mãe sempre falava: “O AFS é a cachaça do Lucas, não tem muito que fazer aí, né, ele gosta e vai continuar sempre envolvido, continuar sempre fazendo isso”. Acho que a primeira coisa que nos faz se aproximar do AFS tá relacionado que você precisa de um círculo social. Você acaba voltando muito diferente dos círculos sociais que você tinha, o AFS acaba te abrindo espaço para isso. Ou seja, você acaba se relacionando com pessoas que estão com os mesmos interesses que o seu num determinado período de tempo. E aí você acaba criando um círculo social. Você tá lá em função das relações que você desenvolveu, das relações que você vai desenvolver, e se você é uma pessoa bastante sociável, a organização te dá infinitas possibilidades de conhecer gente, de trabalhar com gente, então, relacionamentos, né? É uma das primeiras coisas que você tá. Até conhecer gente que tem muita afinidade com o que você tá fazendo, e não necessariamente porque vocês passaram pela mesma experiência, mas porque a partir de agora vocês tem interesses comuns em ser voluntários da organização. Acho que a outra coisa é que as tarefas são muito interessantes, né, porque a organização te permite fazer um monte de coisas. Você pode estar envolvido em questões muito operacionais, da organização, como trabalhar acompanhando estudantes em orientação; ou organizar acampamentos; ou organizar a chegada de estudante em aeroporto; ou questões logísticas... É a infinidade de trabalhos. Ou administrar o fundo regional, se você gosta de lidar com contabilidade, com dinheiro, você pode organizar esse fundo. Na época, a gente tinha infinitas possibilidades de trabalho para aprender algumas habilidades que seria o equivalente, talvez, se você fosse aprender num estágio, ou que talvez você fosse aprender muito na frente, numa carreira, quando que, aos 20 anos de idade, eu ia ter possibilidade de gerenciar um grupo de 23 presidentes de comitê de uma forma muito profissional, de ter que organizar uma reunião de final de semana, com agenda, montar uma proposta de trabalho, elaborar projetos...? A gente não tem esse tipo de experiência aos 20 anos de idade, né? Então o AFS me permitiu fazer tudo isso e até hoje permite que as pessoas possam fazer isso. E se você errar, você também não é muito punido, é um grande laboratório para você experimentar coisas se você tá a fim de experimentar. A gente, por exemplo, chegou num determinado momento que a pessoa que me sucedeu depois na Diretoria Regional disse: “Olha, Lucas, as pessoas esqueceram como é que se fazem as coisas, parece que teve uma troca muito grande de gente na região e a gente precisa, de alguma forma, voltar a ensinar as coisas a fazerem os procedimentos básicos”. Porque o AFS é uma organização assim: “Ah, eu sei fazer porque eu aprendi com não sei quem. Então, a minha função é ensinar o próximo da fila”. Eu me lembro de algumas situações em que eu era conselheiro, era pessoa de contato de um participante, e levava alguém que tava iniciando naquele trabalho, naquele cargo, para fazer aquilo comigo para a pessoa entender; ou a primeira vez que eu fui fazer uma entrevista de família, eu fui com alguém e só fui acompanhar, só fui assistir. As pessoas aprendiam as coisas na organização de uma forma bem orgânica: “Eu aprendi com você, que aprendeu com não sei quem”, fica aquela coisa sem fio, às vezes, mas era como as pessoas aprendiam as coisas. Chegou num determinado momento que todo mundo meio que saiu e entrou um pessoal novo e veio “Como é que a gente ensina as pessoas?” “Vamos começar a fazer treinamento”. Mas isso é uma coisa meio recente dentro da própria organização, a gente não tinha uma estrutura montada de treinamento, né? “Então tá, vamos começar a fazer treinamento. Como é que a gente faz treinamento? Como é que a gente treina pessoas?” E foi uma coisa que eu descobri em função do AFS, né? “Tá, agora precisamos treinar pessoas. Como é que é treinamento?” Aí já tinha internet, o mundo já era um pouquinho mais conectado: “Corre pra internet, compra um livro aqui, fala com o pessoal lá como é que monta um treinamento”. A gente começou a montar treinamentos, “Vamos treinar voluntários no que agora?” “Ah, treinar em gestão de projetos” “Alguém já fez gestão de projetos aqui?” “Não” “Então vamos aprender como é que faz gestão de projetos e aí vamos treinar todo mundo” “Ah, tem que descrever o processo de envio. Alguém já descreveu o processo?” “Não” “Vamos aprender a descrever o processo, vamos aprender a fazer revisão de processos”, então uma série de coisas que eu fui aprendendo e hoje são muito úteis na minha vida profissional vieram do AFS me dar oportunidade, deixar espaço para criar tudo isso. Relacionamentos, as atividades são superinteressantes, todas as atividades são desafiadoras, o próprio fato de você ser conselheiro, não tem experiência nenhuma para ser conselheiro e você tem um estudante na sua frente passando por problemas que talvez lembrem um pouco os problemas que você passou, como é que você ajuda essa pessoa, né? A primeira vez deve ser um desastre. A segunda vez é muito ruim. A terceira vez: “Ah, tá funcionando um pouquinho melhor”. Na quarta vez, você com um pouquinho de treino começa a ficar muito bom. Depois de dois ou três estudantes, você ficou muito bom naquilo. Essa possibilidade de você ficar muito bom em algo que você não sabia fazer, eu acho que é muito atrativo para as pessoas, acho que isso mantém as pessoas engajadas pelo fato de você desenvolver algumas habilidades que você nem sabia que podia fazer. E atividades que hoje são muito valorizadas no mercado, que qualquer pessoa deveria ter, isso de trabalhar com pessoas, trabalhar em equipe, gerenciar pessoas, aconselhar, ter algumas habilidades básicas de finanças, saber controlar o orçamento de uma região, então acho que isso contribuiu também. Tem outro lado, que eu acho que também ajuda muito, que é o lado da autoestima, né? Porque a partir do momento que você tá lá, que você tá coordenando um grupo de trabalho e que aquilo tá indo pra frente porque as pessoas reconhecem a organização como uma organização exitosa, todo mundo quer ser parte de uma organização que tá dando certo, então isso ajuda muito na sua autoestima como gestor daquele grupo de pessoas. Eu acho que a organização não é muito boa em reconhecer as pessoas pelo trabalho, pelas contribuições, acho que o AFS precisa aprender um pouco mais nesse sentido, mas a gente ganha muito reconhecimento em fazer a coisa funcionar, então eu acho que muita gente se mantém na organização pela sensação de dever cumprido: “Eu estou conseguindo levar a organização adiante, as pessoas estão interessadas em fazer parte dessa organização”, a questão da autoestima que é fato de as pessoas reconhecerem a organização como uma organização de sucesso, uma organização exitosa e quererem fazer parte dessa organização, isso aumenta muito a autoestima de quem está na verdade organizando as pessoas, controlando a organização, quem está naquele momento dirigindo a organização. E outro fator que está relacionado com o fato de poder impactar a vida das pessoas, né? Ou você poder ter influência na vida das pessoas e na vida da própria organização, aquilo de você, por exemplo, imaginar que você foi uma das pessoas que possibilitou que uma cidade como Antônio Prado pudesse ter acesso ao mundo todo que o AFS proporciona para a cidade é uma sensação muito boa, saber que você ta impactando a vida das pessoas de uma forma positiva, que você ta construindo, que você tá possibilitando que outras pessoas entrem em contato que, se não fossem dessa forma, jamais entrariam em contato. Isso tem todo um impacto muito positivo no mundo e, claro, reconhecer esse impacto é uma das razões que as pessoas continuam na organização.
P/1 – Lucas, eu já vou te perguntar desse pós-AFS, desse retorno, mas eu queria só que você falasse até uma coisa que você comentou no workshop, que é superimportante, essa mudança na Diretoria Nacional pro Conselho Diretor, se você puder falar um pouquinho sobre isso.
R – Claro. O que aconteceu foi o seguinte: depois de quatro anos na Diretoria Nacional e de ter experenciado aquela Diretoria, tendo vivido naquilo e ter entendido aquilo, a gente tinha a Diretoria que discutia assuntos muito operacionais: o número de estudantes que a gente vai hospedar, a cor da camiseta, tem que pagar isso, não tem que pagar não sei o que, e isso é muito bacana no primeiro ano, porque você vem daquela estrutura de comitê, em que você não tem acesso a informação, que as informações são decididas por você, mas da onde vem isso? O que paga isso? O que faz não sei o quê? E você de repente, é alçado a uma posição que você tá tomando aquelas decisões e tudo é muito legal no primeiro ano, no segundo ano, depois é muito repetitivo, é muito chato aquilo: “Por que a gente tem que decidir isso de novo? A gente não tinha decidido antes?” Mas as pessoas vão mudando, então tem que voltar tudo aquilo. E aí depois quando eu fui parar na Executiva da Diretoria Nacional, o que aconteceu foi que a gente tinha diferentes grupos de amigos dentro da organização, gente que a gente gostava mais, que a gente gostava menos, e pelo processo que a gente chegou nessa Executiva da Diretoria Nacional, chegaram pessoas de dois grupos diferentes, que a gente não necessariamente era grandes amigos na organização, mas a partir de então a gente teve que conviver e zelar pelo bem da organização. E, ao mesmo tempo, o AFS Internacional estava trocando de presidente na época e justamente o presidente que eles estavam trazendo era um presidente que tinha um pouco mais de experiência em governança corporativa e que a função seria profissionalizar os sistemas de governança da organização. E o que ele estava querendo fazer com o AFS Internacional funcionava 100% com o AFS Brasil, a gente estava na mesma situação, gostaria de talvez profissionalizar um pouco mais a governança corporativa da organização, até porque todos nós que estávamos na Executiva tínhamos passado por esse processo todo desde vir de comitê até chegar na Executiva e que já não era mais interessante também, né? A gente viu que daquele jeito a organização também não ia avançar muito mais no sentido de profissionalizar um pouco mais a gestão, trazer gente com outras formas de pensar a respeito de como a organização deveria funcionar no futuro porque a gente só estava trazendo gente criada dentro de casa e a gente vinha do comitê, com aquela forma de pensar, só conseguia pensar em envio e hospedagem, não era gente que vem de fora, que nunca participou da organização e poderia trazer algumas ideias diferentes. Ao mesmo tempo, a gente precisaria deixar o diretor, o superintendente, um pouco mais livres para criar, porque a gente tinha muito poder de decisão em função dessa estrutura nas mãos e muito do que o superintendente estava decidindo em termos de atividades operacionais da organização, em termos de administração da organização, tinha que passar por esses conselhos e sucessivas rodadas de consulta. Isso tava tomando muito tempo, não permitindo que a organização fosse ágil, então: “Como a gente dá uma profissionalizada nisso?” Veio esse presidente do AFS Internacional na época, fez um workshop com a gente, apresentou um modelo de gestão bastante diferente e que a gente tirava esse poder sobre decisões operativas desse Conselho e passava essas decisões para o superintendente. E ao mesmo tempo, o Conselho ficaria só com as decisões estratégicas da organização, como um grande conselho que trabalha com governança corporativa. E aí, claro, a gente saiu de um extremo e foi pro outro, o que normalmente acontece nesse tipo de processo é que você tem uma ruptura muito grande e a gente teve que se educar nesse processo, que aprender. Foi um processo todo de transição de mais ou menos quatro anos, o tempo todo que eu fiquei na Executiva da Diretoria Nacional foi nessa mudança. Hoje, assim, olhando um pouco para trás, acho que a gente foi a outro extremo demais: a gente tava num extremo totalmente operacional e foi num extremo de governança que alienou muito o conselho com relação a muito das coisas que se fazia na área de operações e o que se busca hoje é um equilíbrio entre esses dois modelos e aproximar um pouco mais. Foram quatro anos que não foram difíceis, mas eles também não foram fáceis, porque você tem uma organização muito acostumada a um modelo e você ta propondo para a organização uma troca de modelo. E, de novo, a gente tinha 24, 25 anos na época e ninguém tinha nunca passado, vivenciado uma mudança de gestão desse tamanho na organização. Como é que você convence as pessoas que esse caminho é melhor? Ou que essa forma de mudar é melhor? A gente tinha zero experiência de mudança organizacional. A gente planejou da melhor forma possível, as coisas foram meio que entrando algumas vezes pela goela abaixo, outras vezes mais consensuais. Um processo que a gente achou que ia fazer em dois anos, na verdade fez em quatro anos, e justamente quando eu saí da organização foi a eleição do Conselho Diretor novo, em que a gente tava mudando esse sistema de gestão, eliminando essa Diretoria Nacional, se criou um conselho consultivo com os diretores regionais. Ou seja, o que se acabou fazendo foi uma modernização da organização que acho que ainda está em curso, porque a gente tinha uma organização estrutura para um período pré-internet, que a gente fazia as coisas por correio, fax, então a região era dona de um aparelho de fax, era herdado pelo Diretor Regional junto com a região para poder mandar cartas e se corresponder de forma mais rápida, para uma organização para um mundo que hoje é completamente diferente, então a gente tinha toda uma estrutura organizacional que foi desenhada pro mundo pré-internet e uma vez que a coisa funciona, vira parte da cultura, e depois de muitos anos fazendo a mesma coisa e a coisa funcionando ainda, é óbvio que as pessoas tendem a replicar isso. Ninguém nunca pensou: “Pera aí, gente, isso aqui pode mudar, porque tem maneiras muito mais fáceis de fazer”, né? Hoje mesmo a função do Diretor Administrativo, que era como vice-diretor da região, a pessoa que se encarregava do caixa da região, não tem mais sentido nenhum, porque naquela época a gente tinha que ir ao banco fazer depósito em contas, né? Hoje faz tudo pela internet. O mundo mudou muito e a gestão da organização não acompanhou, essa primeira mudança de sair da Diretoria Nacional e entrar num Conselho Diretor foi uma primeira tentativa de profissionalizar e modernizar um pouco mais a gestão. É óbvio que isso não foi pensado com essa visão naquela época, porque a gente não conhece o mundo que vem depois, mas olhando para trás, hoje, conectando os pontos, é mais ou menos isso que aconteceu. Obviamente, não aconteceu em todos os estágios da organização, depois o AFS Brasil passou por algumas mudanças na área administrativa e algumas inconsistências muito grandes na área administrativa que acho que interrompeu muito esse processo, gerou uma série de desconfianças por parte do voluntariado com relação à administração da organização e esse processo acabou todo interrompido, se regrediu um pouco então uma pena que tenha acontecido mas, às vezes, é parte da organização. Eu acho que agora o que a gente precisa reinventar talvez é esse próprio modelo de funcionamento com regiões, comitês, o que funciona, o que não funciona, porque, de novo, esse sistema foi concebido no mundo pré-internet.
P/1 – Lucas, agora conta para a gente como é que foi esse seu afastamento e depois um pouquinho do desenrolar e do seu retorno.
R –O que acabou acontecendo foi assim: eu completei um ciclo dentro da organização de mais ou menos 9, 10 anos, em que eu passei por todas as posições voluntárias que era possível passar dentro da organização e me envolver em todas as instâncias possíveis de todas as formas possíveis, de estar muito presente dentro da organização. Chegou num determinado momento que já não tinha mais para onde ir, vendo a organização nesse modo linear, e tava coincidindo com o fato de eu estar nos Estados Unidos, terminando a faculdade etc. e aí foi meio a hora de eu me afastar. No ano seguinte, eu fui procurado pelo superintendente na época para montar um projeto de treinamento para voluntários na América do Sul, nos países do Cone Sul, que era Bolívia, Chile, Paraguai, Argentina e Brasil, para coordenar um projeto internacional de treinamentos, já como profissional, não trabalhando necessariamente pro AFS Brasil, AFS Paraguai, mas como um consultor externo montando esse processo de treinamento. Esse foi o meu vínculo com o AFS em 2005, 2006, foi basicamente o meu vínculo com a organização. Já não era mais voluntário da organização, mas fazia esse trabalho de, três vezes por ano, coordenar um treinamento internacional para a organização. E aí, depois, em 2006, esse trabalho que eu fiz na Região Cone Sul ficou conhecido mundialmente e eu fui chamado para ajudar na implementação do AFS na Índia, então eu fui para a Índia, trabalhei um pouco com o AFS na Índia, e ao mesmo tempo também fui chamado para fazer uma reorganização no AFS da República Dominicana. Eu fiquei três meses na República Dominicana como Diretor Nacional interino, fazendo uma limpeza, reorganizando as estruturas, fazendo a colocação de 60 estudantes que eles tinham. A República Dominicana vinha passando por uma série de crises, os diretores estavam ficando três ou quatro meses só, estava uma bagunça, então o meu trabalho foi reorganizar, conhecendo a organização do jeito que eu conhecia, conhecendo as estruturas da organização, foi reorganizar a base voluntária, os processos, reorganizar o escritório e contratar um diretor novo, que foi o que eu acabei fazendo. Terminado esse período, aí coincidiu um pouco com o trabalho que eu estava fazendo na Índia, o AFS Internacional estava se reestruturando e eles estavam criando um departamento de Consultoria interno e eles me chamaram: “A gente gostou muito do que você vem fazendo tanto em termos de treinamento, quanto na questão na Índia, quanto na República Dominicana, a gente tá criando um departamento que junta tudo isso na mesma área. Você gostaria de trabalhar conosco?” Eu disse: “sim, vamos ver o que acontece”. E foi aí que eu ingressei no AFS Internacional. Foi uma série de coincidências que foram acontecendo na mesma época.
P/1 – Conta da Índia! Quanto tempo que você ficou, esse impacto, é claro que a gente acaba, com internet, tudo isso, conhecendo um pouco de outras culturas, mas outra coisa é você estar de fato ali, em contato com eles. E para montar uma estrutura já conhecida por você, mas não por eles, como é que foi esse processo de implantação lá, de morar lá? O impacto cultural?
R – Eu acho que, para mim, foi a mesma coisa que foi abrir o Comitê em Horizontina, ou abrir o Comitê em Juí de certa forma. É aquela velha história: você conhece um grupo de pessoas entusiasmadas com a ideia da organização e aí: “Como é que a gente faz? Qual o próximo passo? Então, a gente agora virou comitê aqui, a gente começa, como é que é a estrutura? Como é que a gente funciona?”. Na época, a gente foi para a Índia porque o governo dos Estados Unidos reagiu de uma forma bem rápida aos atentados de 11 de Setembro, proporcionando bolsas para que estudantes de países onde uma parcela significativa da população fosse de origem muçulmana pudessem ir pros Estados Unidos através de um programa de High School. O AFS era o veículo ideal para esse tipo de iniciativa. Ou seja, o governo está lá: “A gente quer estudantes muçulmanos frequentando as nossas escolas de Segundo Grau para começar a cultivar aquilo que o AFS cultiva”. Aí o AFS e outras organizações foram convidados a organizar esses programas de intercâmbio. E aí, claro, a gente olhou para a nossa rede: “Onde a gente tá presente hoje que a maioria da população é muçulmana? Indonésia? Não a maioria. Tailândia, onde a população muçulmana é significativa, mas não é maioria. Onde é que a gente poderia ir que a gente não tem operações hoje e poderia ampliar a organização?” E foi assim que a gente foi parar na Índia, no Quênia e em alguns outros países, né? E aí, o que aconteceu na Índia foi que a gente já tinha passado por uns dois anos de seleção de participantes, imagina: “uma bolsa integral para fazer um ano de High School nos Estados Unidos”, isso tudo administrado pelos consulados americanos na Índia, então chegou a hora da gente desenvolver uma estrutura lá para levar o processo adiante. E foi aí que eu caí de paraquedas lá, sei lá: “A gente conhece um brasileiro que tem certa experiência em fazer isso e que pode ajudar a gente no começo montar a estrutura da Índia”. E foi isso que eu fui fazer, então, junto esse grupo de voluntários, agora o AFS Índia tá comemorando dez anos, a festa foi dois meses atrás, e eu ainda tinha uma foto desse primeiro evento que a gente fez em 2006, foi essa primeira reunião que a gente fez com os voluntários da Índia e tudo. E desde então, desde essa primeira incursão na Índia, eu acabei indo três, quatro vezes por ano para ficar entre uma semana e dois meses nos últimos dez anos. Foi mais ou menos isso que aconteceu. E, aos pouquinhos, claro, sempre buscando gente, as pessoas saindo, entrando, e hoje a gente tem uma operação bastante estável na Índia, em torno de 25 comitês, a gente envia e recebe 200 participantes por ano e tudo isso começou absolutamente do zero.
P/1 – E qual que foi o impacto cultural para você, de conhecer a Índia, de morar lá? Qual foi a sua primeira impressão do lugar? A parte mais pessoal.
R – Na verdade, fazendo esse trabalho que eu faço pro AFS Internacional, foi a oportunidade de a gente trabalhar em 46 diferentes, então, assim, eu já tive a oportunidade de morar em vários países, de passar muito tempo em vários países, então você acaba desenvolvendo uma série de habilidades ou destrezas que te permite chegar num país, fazer um levantamento de qual é a situação de onde você tem que trabalhar e você poder desempenhar e poder trabalhar logo em seguida. Voltando um pouquinho mais especificamente na Índia, a Índia, para mim, foi o primeiro grande choque depois de muitos anos em estar visitando uns pais, estar trabalhando com culturas bastante diferentes, porque é um desses extremos que a gente tem no mundo, comparado, é claro, sempre do posto de vista do Brasil, em termos de valores, de como as diferenças são percebidas, de confusão, organização, em termos de burocracia. Em todas as escalas diferentes de valores, são valores que chocam muito com os valores que a gente tem no Brasil, né, e são situação muito extremas. Então você conseguir adaptar você mesmo nessa situação e você mesmo conseguir trabalhar com pessoas nessa situação que trabalham com questões culturais, eu acho que foi um período de muito aprendizado, chegar a ter situações assim que diz: “Eu não entendo como as coisas funcionam nesse país e nunca vou entender”, porque realmente são diferentes níveis, diferentes layers de funcionamento que a gente tem que acabar acessando que só depois de muitos anos a gente acaba descobrindo como as coisas funcionam, até coisas que às vezes são um pouco mais simples como o calor que faz na Índia, que não é uma temperatura que a gente conseguia trabalhar muito facilmente. Acho que da minha trajetória profissional toda com o AFS, os meus maiores sucessos, mas os meus maiores fracassos também foram todos na Índia. Épocas que você diz: “Nossa, agora vai funcionar, vai dar tudo certo”, e épocas que vem: “Nossa, agora vai dar tudo errado”. No segundo ano, quando a gente começou a hospedar na Índia, por exemplo, a gente ia recebendo nove participantes para hospedar na Índia, todos vindo pela primeira vez, todo mundo ansioso: “Como é que vai ser? Como é que a gente procura família?”. Ensinar as pessoas do zero, de novo, o mesmo processo em Horizontina, em Juí... “Como é que começa do zero isso?”, a mesma coisa: “Vamos receber participantes, tem que procurar uma família” “Como é que a gente busca família? Como é que a gente fala do AFS? Como é que a gente convence uma família a hospedar? Quando chega, o que a gente faz com esse participante?”. E aí chegaram os nove, desses nove, seis voltaram antes do final do programa porque o país é difícil, a experiência foi difícil, a gente ainda não estava totalmente preparado para hospedar participantes na Índia, então saiu tudo fora do controle mas, ao mesmo tempo, tudo absolutamente controlado em termos de processos. Foi uma experiência muito interessante esse período todo de trabalho na Índia que não acabou.
P/1 – E Lucas, seguindo a tua trajetória um pouquinho, fala um pouquinho do teu trabalho hoje...
R – Hoje, eu sou encarregado de várias áreas dentro da organização, no AFS Internacional, que o AFS Internacional na verdade coordena e faz políticas para toda a rede, então tem estratégias e políticas para toda a rede. Eu sou encarregado de desenvolvimento de voluntários, de toda a estratégia para desenvolvimento de voluntários na rede. Nós temos 50 mil voluntários ativos em 60 organizações em 59 países hoje e o departamento que eu gerencio se encarrega de montar estratégias para o desenvolvimento desses voluntários nos países. A gente tem uma série de programas, de iniciativas e os países usam, adotam ou trabalham com a gente no desenvolvimento dessas iniciativas. Por exemplo, uma dessas áreas que a gente trabalha é Desenvolvimento de Liderança, “O Lucas, lá, presidente de Antônio Prado, como é que a gente desenvolve ele para ele poder chegar na Diretoria Regional?” O que aconteceu comigo foi de forma muito orgânica, talvez porque eu quisesse fazer isso na época, porque as condições que se apresentaram me permitiram que eu chegasse onde eu cheguei, mas isso não acontece com todo mundo, né? “Como é que a gente faz?”, ou: “Como é que a gente se assegura que o presidente do Comitê Antônio Prado tenha chance de se desenvolver dentro da organização?”. A gente tem todo um programa de treinamento, de desenvolvimento de lideranças que a gente está fazendo para permitir que o Lucas, lá no Comitê Antônio Prado, possa fazer parte disso e possa ser um melhor presidente de comitê. Esse é um dos grandes programas que a gente gerencia no AFS Internacional que os países podem usar também. A gente é responsável nesse departamento também por estruturar a carreira voluntária dentro da organização, como é que numa quinta-feira de manhã você acorda e decide ser voluntário do AFS até o momento que você vai se desligar 10, 15, 20 anos depois: “Como funciona essa carreia toda dentro da organização?”. Isso é parte do meu trabalho também, coordenar e articular essa carreira dentro da organização. Diferentes etapas, como é que funciona todo o processo de se vincular, como é que funciona o processo de você estar dentro da organização, treinamento, aprendizagem, até o processo que você se desvincula da organização. Essa é uma das áreas. Outra área que eu me encarrego está relacionada com o apoio aos países, né? Quando os países passam por experiências de crise, por exemplo, quando o Brasil passou pelo processo todo de ter uma dívida e ter prestar esse acompanhamento e consultoria, é um processo que hoje eu me encarregaria. Ser o consultor que ajuda o Brasil a atravessar esse processo de crise, como a gente tem todo ano alguma organização enfrentando dificuldades. Mas não é só isso: quando uma organização quer mudar algum processo, quer inovar, quer transformar a maneira que uma experiência acontece, também é parte do meu trabalho assessorar a organização e construir um processo de inovação, de mudança dentro da organização. São basicamente essas três coisas: apoio aos países em momento de dificuldade, apoio aos países durante esse processo de inovação, de melhoria de processo, de inovação, de busca de melhores resultados e a parte toda de desenvolvimento de voluntário, de coordenação e desenvolvimento mesmo.
P/1 – Você mencionou o seu mestrado. Se pudesse falar para a gente um pouquinho como surgiu essa ideia?
R – É, isso foi uma coisa interessante também porque numa dessas experiências que eu tive com a organização, a Austrália estava passando por uma crise muito grande, a gente estava com uma Diretora nova que não estava dando os resultados que a organização estava esperando e aí eles me convidaram para passar seis meses na Austrália. Então eu fui para ficar no escritório, acompanhar a operação do escritório, ver o que estava funcionando e o que não estava. O que era o meu trabalho, o que eu fazia regulamente com a organização, né? Aí depois desses seis meses, a gente decidiu demitir essa diretora que a gente tinha na Austrália e eles me pediram para ficar mais seis meses para acompanhar a transição do processo, fazer o que eu já tinha feito na República Dominicana, ou que eu já tinha feito em outros países, aí eu fiquei. Seis meses depois, quando já estava na hora: “Bom, um ano, agora já está na hora de ir embora” “Não, fica mais seis meses, a gente está contratando um Diretor novo agora, você ajuda na transição etc.” Fiquei mais seis meses. Ou seja, aquelas seis meses iniciais terminaram sendo um período de dois anos. “Bom, agora está na hora de eu retomar a minha vida já, né? Tá na hora de voltar para casa”. Mas eu disse assim: “Como é que eu volto para casa? Acolheram-me tão bem aqui, funcionou tudo tão bem, é um país maravilhoso, ninguém vai embora da Austrália. Como é que eu vou embora da Austrália?” Então eu pensei: “Vou estudar. É a desculpa perfeita para não ir embora da Austrália. Vamos voltar para a escola. Muito bem, o que eu quero estudar agora? Vamos fazer um mestrado agora”. Eu queria fazer um mestrado na área de Desenvolvimento Organizacional, que era a área que eu trabalhava e que eu já tinha muito conhecimento prático, já tinha lido algumas coisas, mas eu queria de certa forma um reconhecimento formal daquele conhecimento prático que eu tinha, então eu disse: “Vamos fazer mestrado”. Escolhi algumas escolas, terminei indo parar na Inglaterra e aí, logo no começo do mestrado, eu sempre disse: “Olha, eu gostaria que a minha dissertação fosse vinculada com o AFS de alguma forma, porque eu acho que, em termos de processo organizacional – meu mestrado era em Desenvolvimento Organizacional –, eu gostaria de pesquisar minha própria organização”. Aí a escola me desencorajou: “Ah, vai pesquisar qualquer outra organização, porque depois vai ter muita possibilidade de fazer isso dentro do AFS depois” “É, mas depois a gente não tem tempo etc.” “Tá bom, vamos. O que você quer pesquisar dentro do AFS?” “Olha, não tenho a menor ideia, mas eu gostaria de pesquisar alguma coisa relacionada com estruturas, porque desde que eu comecei, lá em Antônio Prado, com toda aquela possibilidade de fazer coisas no Rio Grande do Sul, depois no AFS Brasil, sempre fui muito vinculado com a questão de estruturas, né? Como é que funciona estrutura, por que é que tem estrutura, como é que isso funciona etc.?” Aí meu orientador que disse assim: “Lucas, isso é muito chato” “Muito chato mesmo, né?” “Pense em alguma outra coisa”. E aí eu não consegui pensar em alguma outra coisa, mas eu continuei indo para frente, até que um dia – e realmente aconteceu desse jeito – eu estava sentado na praia, conversando com uns amigos justamente sobre comportamento, eram amigos psicólogos, e eles estavam comentando sobre essa distinção entre porque as pessoas fazem alguma coisa e porque elas continuam fazendo aquela mesma coisa. As razões pelas quais as pessoas começam ou desenvolvem um comportamento não são necessariamente as razões pelas quais elas continuam tendo aquele comportamento depois de um período de tempo. E é um recorte comportamental, behaviorista, e aí na hora eu cheguei pro AFS: “Então quer dizer que as razões pelas quais as pessoas começam a fazer trabalho voluntário podem não ser as mesmas razões pelas quais elas continuam trabalho voluntário” “Sim, teoricamente faz sentido, se você aplicar o behaviorismo”, aí a gente estava na praia, eu corri para a internet, fiquei três horas na internet fazendo a revisão de bibliografia, buscando se alguém já tinha escrito sobre isso e descobri que ninguém nunca tinha escrito sobre isso, que ninguém nunca tinha feito essa diferenciação específica entre o porquê que você começa a fazer trabalho voluntário e porque você continua. Todos os estudos que tinham sido publicados estavam relacionados com porque as pessoas fazem trabalho voluntário e os poucos estudos em retenção de voluntário, que é essa diferença, porque você começa e porque você se retém, eram só relacionados com demografia, com questões demográficas, e não com as razões pelas quais elas continuavam. “Acho que eu descobri algo interessante, algo novo”, e aí então eu fiz toda a pesquisa de campo, isso na Nova Zelândia, porque é um dos países que está sendo mais afetado pelas mudanças que acontecem na área de intercâmbio cultural em função de intercâmbio cultural ter virado um produto nos últimos anos. Quando o AFS começou a fazer programa de intercâmbio eram só duas ou três organizações e o que a gente fazia era muito especifico, muito especial no sentido de: “Eu estou te levando para outro país, estou te deixando em Antônio Prado para você entender como Antônio Prado funciona, para você aprender o idioma e para quando você voltar para casa, você voltar tendo desenvolvido mais empatia pelo fato das pessoas terem valores diferentes ou pelo fato das pessoas se comportarem de forma diferente. Espero que você aplique isso no resto da sua vida toda vez que você se encontrar numa situação que os valores são diferentes do seu.” A ideia por trás do intercâmbio é essa, é que você está gerando empatia nas pessoas para entender que o mundo pode funcionar de forma diferente da forma como você conhece o mundo, e claro, isso não pode ser feito necessariamente numa semana. Poder, pode, a gente tem formas de fazer isso, mas isso requer um grande período de tempo, requer muita reflexão e é isso que a organização faz. Aí, claro, nos últimos anos, especialmente no Brasil, a gente tem uma necessidade muito grande de aprender inglês, de se expor a outras culturas porque o Brasil é muito grande, e pelo fato de ser muito grande, é muito insular. A gente, por exemplo, era difícil para a gente escutar música latino-americana no Brasil 20 anos atrás, pouca gente fazia isso, porque a gente como país tinha uma produção muito grande, então pelo fato de ser muito grande, a gente presta só muita atenção na gente. Isso tem mudado muito nos últimos, e, claro, se desenvolveu todo um grande mercado de intercâmbio ou de estudar no exterior que não existia quando eu fiz intercâmbio, quando as gerações antes de mim fizeram intercâmbio. E um dos países mais afetados por essa transformação toda no mercado é a Nova Zelândia, porque a Nova Zelândia tem um sistema educacional muito bom, é uma população minúscula, são três milhões e meio, quatro milhões de habitantes no país inteiro, tem em torno de 350 escolas de Ensino Médio e tem um sistema educacional reconhecido como um dos melhores do mundo e fala inglês. Então é um país, assim, destino por excelência para programas de intercâmbio. De novo, nos anos 1950, 1960, 1970 só existiam o AFS e mais um ou dois, três programas, mas hoje tem uma infinidade de programas de intercâmbio na Nova Zelândia. Ou seja, numa população de quatro milhões de habitantes, você tem em torno de 12, 13 mil estudantes de intercambio por ano. É a maior densidade do planeta em termos de programas de intercâmbio. Então, a minha tese foi relacionada com o fato de, se a gente consegue sobreviver num mercado que é extremamente adverso àquilo que a gente faz pelo sentido de que qualquer organização hoje em dia faz intercâmbio na Nova Zelândia e as pessoas podem receber para fazer isso, você ter uma organização que sobrevive com voluntários que estão fazendo sem buscar uma remuneração: “Nossa, tem alguma coisa muito especial acontecendo na Nova Zelândia”, que é um dos extremos, que se eu analisar e descobrir o que acontece nesse extremo, eu posso generalizar para todas as outras organizações da rede do AFS que não passam por um mesmo nível de dificuldade que passa o AFS Nova Zelândia. Então eu escolhi um dos extremos para trabalhar em função de ser o mercado mais difícil para operar em programas de intercâmbio. Aí eu passei um mês na Nova Zelândia, entrevistando voluntários de todas as faixas etárias, todos os interesses possíveis, e o que eu fiz depois foi organizar as razões pelas quais eles continuam trabalho voluntário ao longo dos anos em cinco grandes drivers, cinco grandes grupos de comportamento, que tá relacionado com as relações, a tarefa, que é uma tarefa difícil, mas atrai a atenção das pessoas pelo fato deles desenvolverem algumas destrezas, relacionado com o desenvolvimento de autoestima, e as questões de impacto.
P/1 – Eu vou agora só te fazer algumas perguntas avaliativas antes da gente encerrar. Conta para a gente um pouquinho, fora o AFS, quais são seus sonhos, aspirações da parte da vida pessoal, fora o trabalho.
R – Na verdade, eu acho que tem um pouco a ver com o porquê eu trabalho com o AFS o que eu quero para o mundo. Eu acho que eu poderia trabalhar para um banco, para qualquer grande empresa, mas eu gosto de trabalhar pelo AFS porque eu acredito que eu realmente estou mudando o mundo todo dia, quando eu ligo o meu computador de manhã, quando eu tenho que resolver um trabalho burocrático super chato na organização, de alguma forma eu estou impactando o mundo de uma forma muito positiva, porque tem algum Lucas, lá em Antônio Prado, que depende um pouco do trabalho que eu faço, das coisas que eu faço. E eu faço o que eu faço porque eu gostaria que o mundo fosse um pouquinho mais subversivo, um pouquinho mais criativo, que as pessoas quebrassem um pouco mais de regras, acho que como eu quebrei dentro do AFS muitas vezes e que possibilitou que a organização avançasse muito e eu acho que é isso, eu faço o que o que faço porque eu quero um mundo mais subversivo, mais criativo, mais empático e um mundo do bem.
P/1 – Quais foram os seus maiores aprendizados desse tempo?
R – Nossa, é muito aprendizado, eu acho, né? Eu acho que eu aprendi, principalmente no lado profissional, a pesar muito quando eu tenho que defender meu ponto de vista e quando eu tenho que realmente escutar e entender porque as pessoas têm pontos de vista diferentes do meu. Acho que isso foi, para mim, um grande aprendizado. Eu acho que eu sempre fui uma pessoa que sempre teve oportunidade de ocupar posições de liderança na vida, então começando desde cedo em escola, pelo fato de ser criado em Antônio Prado, de sempre ter sido muito estimulado, e a gente acaba muitas vezes em posições de liderança só defendendo o nosso ponto de vista. Eu acho que o AFS sempre procurou me mostrar que as pessoas têm pontos de vista muito diferentes, elas têm histórias muito diferentes das minhas e isso faz com que elas tenham visões diferentes do mundo. Saber quando eu tenho que escutar essas visões diferentes das pessoas para saber de onde elas estão vindo e quando eu tenho que defender o meu ponto de vista, eu acho que isso o meu grande aprendizado com o AFS. Saber quando fazer uma coisa, quando fazer a outra, quando equilibrar isso. Acho que é um dos grandes aprendizados que eu tive com o AFS.
P/1 – E a Arquitetura, Lucas?
R – Pois é, olha que coisa engraçada, né? Eu acabei tendo muita dificuldade para terminar a Arquitetura porque eu já não queria mais fazer aquilo no final. Foi uma coisa muito bacana, eu fui um excelente aluno, eu me envolvi com iniciação cientifica, com pesquisa, com tudo dentro da escola. De novo, eu já fazia aquilo a vida inteira na escola, fiz isso no intercâmbio, na faculdade não ia ser diferente. Então aí eu acho que decepcionei muita gente quando chegou ao final, eu disse: “Eu não quero mais fazer isso, não” (risos). Aí terminar foi um parto, porque eu não queria mais fazer aquilo. O que eu fiz: comecei Administração de Empresas, já enquanto estava terminando a faculdade de Arquitetura, e Administração de Empresas eu fiz brincando em três anos e meio. Eu já queria terminar, já tinha experiência, era diferente, já sabia aonde eu queira ir, então, eu acabei fazendo uma transição de carreira meio sem querer. De novo, eu frustrei muita gente, porque não sei se hoje eu fosse ser um excelente arquiteto, acho que não, mas eu era um excelente aluno de Arquitetura, fui um excelente estudante de Arquitetura, sempre sabendo o que estava acontecendo, novidades, sempre envolvido com pesquisa, então eu acho que eu frustrei muita gente pelo fato de não ter terminado, e as pessoas: “Prometia tanto, né?” “É, mas a vida às vezes muda um pouquinho”. O AFS tendo um pouco de influência nisso porque eu achei muito mais legal trabalhar com gente mesmo, trabalhar com pessoas e também me dei conta, depois de certo período de tempo, que na verdade essa maneira de ver o mundo, de organizar o mundo em carreiras, ela está um pouquinho obsoleta já, né? Exceto para uma ou outra profissão, que são muito específicas, mas de forma geral, o que você se forma não faz diferença nenhuma. Eu demorei um pouco para entender isso, por isso que fui fazer Administração. Acho que hoje que eu nem teria feito Administração. “Não, se eu quero trabalhar mais nessa área, tenho que fazer um curso superior nessa área”. Isso foi o que, dez anos atrás? Acho que hoje não teria feito diferença nenhuma. E depois o mestrado fui fazer em Psicologia Organizacional e Desenvolvimento Organizacional, que também não tem nada a ver com as áreas anteriores. Arquitetura ficou para trás. Ainda gosto bastante, mas ficou para trás.
P/2–E Lucas, o que você acha da gente fazer esse projeto de 60 anos, resgatando as histórias de vida de vocês, que fizeram parte desses 60 anos, os mais diversos perfis?
R – Eu acho uma iniciativa excepcional, porque isso acontece em várias organizações, mas o AFS é muito especial em não manter registros da nossa história recente. Acho que a gente é muito bom mantendo registros do começo da organização, de quando a organização era um serviço de ambulâncias, mas a partir do momento que a gente virou uma organização de aprendizagem cultural, uma organização que desenvolve empatia no mundo, que a gente virou um programa de intercâmbio, acho que a gente foi muito ruim em mantendo os registros da história. Em termos de produto, é muito repetitivo, então a gente acha que está lá sempre, mas como organização, por esses processos que a gente passou como organização, especialmente nos últimos 30 anos, a gente foi terrível em manter a história. A gente nunca criou nenhum registro, então essa iniciativa é excepcional porque é uma oportunidade de resgatar alguns pontos da história da organização que estavam meio obscuros, ou que ninguém, principalmente o pessoal que vem hoje: “Mas por que vocês passaram por isso? O que levou vocês a entrarem nesse processo?”, ou “Por que vocês chegaram ao que vocês chegaram hoje?”. Eu acho que a gente devia fazer isso com mais frequência, inclusive.
P/2 – Antes de encerrar, eu queria fazer uma última pergunta então. Trabalhando numa organização assim, super internacional, que trabalha com um tanto de culturas, um tanto mais de países diferentes, tem algum lugar no mundo que você não foi e gostaria de conhecer?
R – Vários (risos). Sempre tem vários lugares. Agora eu estou planejando uma viagem para o Tibete.
P/2 – Aham, tá certo, é isso aí.
P/1 – Para a gente encerrar, só comenta para a gente como que foi contar a sua história, voltar lá atrás, fazer essa reflexão dessa trajetória.
R – Aquilo que eu jamais achei que fosse acontecer comigo, acaba acontecendo, né? A gente acaba ficando velho e acaba esquecendo coisas. Justamente fazendo esse trabalho que eu fiz, especialmente de desenvolver o AFS no Rio Grande do Sul, de conhecer muita gente, gente de diferentes cidades, eu ia muito reparando nisso: “Nossa, as pessoas vão esquecendo as coisas, isso nunca vai acontecer comigo”. Hoje, o simples fato de ter que lembrar coisas que aconteceram 15, 20 anos atrás, eu já não lembro uma série de detalhes. Foi uma experiência interessante, dar conta que eu também estou esquecendo das coisas e eu também vou esquecer das coisas e que parece que o passado vai ser sempre melhor do que na realidade foi. Então, tem sido uma experiência interessante essa de tentar lembrar alguns detalhes que na verdade eu não sei nem se eu tinha presente.
P/1 – Em nome do Museu da Pessoa e do projeto, a gente te agradece pelo teu depoimento, Lucas. Muito obrigado.
R – Muito obrigado a vocês.
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