Programa Conte Sua História
Depoimento de Márcia da Silva Moreno
Entrevistada por Denise Cooke
Primavera do Leste, 29 de junho de 2018
Entrevista de número PCSH_HV653
Revisado e editado por Bruno Pinho
P/1 - Márcia, muito obrigada por estar aqui contando a sua história para nós. Seja bem-vinda. Vamos falar de que dia, ano e onde você nasceu.
R - Eu nasci no dia dois de outubro de 1991 na cidade de Janiópolis, Paraná, 22h40 para ser mais precisa e passei a minha infância toda lá. Até os 17 anos eu morei nessa cidade e depois eu fui para outra cidade, maior: Arapongas, no Paraná.
P/1 - E você sabe alguma coisa sobre o dia do seu nascimento? Seus pais te contaram?
R - Na verdade, assim, minha família teve muita turbulência. Foi um momento de muitos conflitos. Eu não vou dizer para você que o meu aniversário foi um momento de celebração, aquela coisa de acolhimento, realmente. Minha mãe e meu pai tiveram muitos conflitos familiares. Minha mãe é de uma origem muito humilde. Ela é neta de indígenas e o meu pai é italiano. A família do meu pai nunca aceitou a minha mãe, mas eles se casaram e em pouco menos de um ano ela engravidou de mim. E, para a minha família, aquilo foi uma bomba, porque eles ainda lutavam e queriam que eles se separassem, que não ficassem juntos. Aí então, com a minha chegada, meio que ficou aquela coisa de ‘‘vamos ter de aceitar esse relacionamento e engolir essa criança’‘. Então, eu não vou dizer que a minha chegada foi uma coisa celebrada. Até para a minha mãe, talvez, e para o meu pai, principalmente, que foi muito carinhoso, muito parceiro, muito paizão mesmo, sim, mas por grande parte da minha família eu não vou dizer que foi uma coisa muito celebrada, assim.
P/1 - E eles sendo de mundos tão diferentes, como eles se conheceram? Como esse amor surgiu?
R - Meu pai morava em uma cidade perto de Maringá, no Paraná. Meu avô é fundador de Maringá. É o João Moreno (Guilhem) [00:03:13] e é bem conhecido. A família tem muito conhecimento ali, praticamente ajudou a fundar a cidade, abrir a cidade. Na época que ele esteve naquele local, era tudo mato, como ele dizia. E ele tinha terras ali. Ele resolveu vender e investir em terras que, segundo ele, ele conseguiria comprar mais e mais barato em outros locais. E ele mudou para a região de Palmital, que é perto de Boa Esperança e (General Álvares) [00:03:35]. É tudo muito perto lá. Depois de Palmital, ele não gostou muito das terras e resolveu comprar um sítio com água. Ele amava água, então queria um sítio com água. E ele comprou esse sítio lá em Janiópolis e meu pai se mudou para lá. E como tem muitos vizinhos, todo mundo é muito próximo, é aquela comunidade, quando tem uma festa todo mundo vai junto. Aí tem uma única igrejinha em determinado lugar e todo mundo vai lá. Minha mãe ia muito para lá e meu pai estava meio que noivo de outra mulher na cidade que ele tinha deixado, perto de Maringá. E meu pai conheceu minha mãe, começaram a se envolver. Ele tinha também muita amizade com tios meus, que eram casados com irmãs da minha mãe e ele acabou se envolvendo com ela, começando um relacionamento, um namorico, ali. Eu não lembro quanto tempo eles namoraram, mas resolveram noivar. O meu pai terminou com a outra moça e resolveu se casar com a minha mãe. Foi assim a história deles, até onde eu fiquei sabendo e que eu me lembre.
P/1 - Mas você falou que os irmãos do seu pai já eram casados com irmãs da sua mãe também?
R - Não, amigos do meu pai.
P/1 - Ah, amigos.
R - Muitos amigos eram casados com irmãs da minha mãe. Meu pai conheceu minha mãe através de amigos. Minha mãe tem bastante irmãs. Os amigos dele se casaram com irmãs da minha mãe, então ele acabou conhecendo ela através de terceiros, nesse envolvimento.
P/1 - E como foi esse namoro deles, que obviamente, foi uma coisa muito turbulenta, que causou problemas na família? Como foi essa história?
R - Eu não tenho muito detalhe, porque depois, quando era mais nova, a família do meu pai acabou me ‘‘pegando’‘ para eles. Eu não morei com a minha mãe e meu pai até uma fase da minha vida. Depois, eu voltei a morar com meus pais. Depois, eu fiquei sem falar com a minha mãe por mais de oito anos, morando no mesmo quintal, basicamente. Só que eu não tenho detalhes específico do namoro deles. Minha mãe nunca gostou de contar muito. Para ela era algo que não era muito bacana de ficar falando. Meu pai sempre foi uma pessoa muito reservada e a minha família fala. As irmãs do meu pai, minhas tias, minha avó - que é a mãe dele, falavam a versão deles da história. Como tinha uma versão de que a minha mãe não prestava, de que ela destruiu um relacionamento que meu pai tinha antes, de que ela entrou como intrusa na família, de que ela era morena, índia, pobre e não sei o quê. Tinha muito preconceito na família. É muito preconceituosa com muitas coisas, com pessoas diferentes. Então, o que eu sei e vivi, basicamente, foi isso. Mas do namoro e até do casamento eu só sei de alguns detalhes. Não sei muito. Mas era de aceitação nenhuma. Quando meu pai saía para namorar minha mãe era muita briga que ele conta que tinha com minha avó e minhas tias, mas ele acabava indo, até que resolveu realmente casar e a família teve meio que aceitar. Ele foi empurrando aquilo ali com a barriga até quando deu.
P/1 - E teve algum incidente sério nessa história, envolvendo as famílias?
R - Teve muitos. Quando a minha mãe se casou com o meu pai, eles não tinham uma casa própria. Foram morar junto com a minha avó. Como era sítio do meu avô e os irmãos trabalhavam todos juntos, até construir uma casa para ele ou então resolver o que ia fazer da vida, ele foi morar com a minha avó por um período. E foram muitas brigas. Eram brigas de xingamentos, de ofensas, empurrões. A minha mãe engravidou de mim, eu nasci. Eu ainda morava na casa da minha avó. Minha mãe conta que ela apanhou de uma tia minha. Essa tia minha mesmo, alguns anos depois eu perguntei dessa história e ela confirmou que realmente bateu na minha mãe, com um pedaço de cano, na época, e ela estava com quase nove meses de gestação. Depois de um tempo, minha mãe não aguentou mais a situação. Eu acho que eu tinha quase dois anos. Minha avó, depois de um tempo, me aceitou. Tinha tias minhas que falavam que não queriam nem me pegar no colo. Tinham um receio muito grande, um bloqueio muito grande. Não queriam saber da minha existência. E a minha avó foi quem acabou tendo muito mais carinho por mim. Mas é aquela história: ela me queria para ela e aí virou aquela briga por minha causa. Até que meu pai resolveu morar - tinha uma tia minha que morava em uma casa vizinha à da minha avó foi embora e meu pai falou: ‘‘vamos sair daqui e ir para a outra casa que está vazia. Vamos viver a nossa vida porque ficar dentro da casa da minha mãe não está dando certo’‘. E aí eles resolveram. Eles cultivavam a agricultura lá. Na época, plantavam algodão, café e várias coisas assim. Eles resolveram sair da casa da minha avó e morar na casa dessa minha tia que tinha desocupado. A casa pertencia ao meu avô, que era do sítio, e ele resolveu sair de lá. Dois anos depois a minha mãe engravidou da minha irmã também. Os conflitos nunca acabaram. O meu pai faleceu agora, em 2016, e até hoje, até no velório do meu pai, até para sepultar o meu pai, teve briga na família. Hoje em dia eu não falo mais com as minhas tias. Nós tivemos muitos conflitos e muitas coisas eu fui descobrindo no meio do caminho. Meu pai sofreu muito, a minha mãe sofreu muito, a minha irmã, eu. Nós acabamos pagando o preço por uma não-aceitação na família que foi muito alto, ainda mais para crianças, adolescentes. Foi bem complicado esse período na nossa vida.
P/1 - Como foi a festa de casamento? Teve uma festa? A família compareceu? Como é que foi?
R - Teve uma festa. Tem primos do meu pai, alguns tios mais distantes, que sempre receberam minha mãe muito bem. Sempre acolheram muito bem. Todo mundo se uniu: ‘‘vamos fazer uma festa com direito a bolo, festão mesmo, vestido de noiva, uma cerimônia bacana na igreja’‘. A minha mãe conta que casaram na igreja. A minha avó e minhas tias ficaram na dela. Não ficaram muito contentes com o acontecido. O meu avô sempre aceitou minha mãe, ele era mais tranquilo com relação a isso. Os primos se divertiram, foi no sítio mesmo. Eles resolveram montar um espaço lá e fizeram. Ficaram tranquilos. Foi uma festa bacana, pelo que minha mãe fala. Só depois, acabou a festa tarde da noite. Eles, como eram parentes de outras cidades que estavam vindo para lá, todo mundo teve de dormir no mesmo espaço. Ela fala: ‘‘a única coisa que eu me lembro é que eu não tive lua de mel por alguns dias’‘. Geralmente, quando viam parentes de longe, ficavam dias na casa da família para aproveitar a viagem e ficar por ali. Demorou um pouco para eles se ajeitarem, irem para o quarto deles, ter a vida deles, a privacidade deles, digamos assim. É só o que eu me lembro pelo que ela conta. Ela não entra em detalhes da vida dos dois. Eu sei por pequenas coisinhas que eles acabaram falando ou algum tio falava. Coisas assim.
P/1 - E como se chamam seus avós paternos?
R - O meu avô paterno é João Moreno Guilhem e a minha avó é Ana Pollo Moreno, que se chama.
P/1 - E, na verdade, quem não aceitava a sua mãe era a sua avó Ana, porque o seu avô João até aceitava.
R - O meu avô aceitou.
P/1 - Então, o problema era a sua avó e as suas tias, as irmãs do seu pai.
R - Isso, tias. Eles são em cinco irmãos. Três tias e um tio meu que também não aceitava a minha mãe. Nunca aceitou essa questão da família. A minha família é muito conservadora, do tipo que escolhe seu destino, seu marido, onde você vai morar, o que você vai fazer da sua vida, que profissão você tem de ter. Para eles, se você seguir aquele padrão, o que eles querem para você, tudo bem. Por exemplo: se eles não gostam de fulano, não tem amizade com fulano, você não tem de ter. Não pode ter. É uma família complicada, eu diria. Muito apegada a coisas e detalhes. Eles não estão se preocupando em entender que o outro ser humano é outra pessoa, é outro sentimento, são outros laços que vai criar. Eles querem viver naquele mundinho, naquele bolo de neve que eles criaram ali e quem está por fora dali, ou você faz o que está sendo imposto por eles ou nada está certo.
P/1 - E em meio a tudo isso, como foi a sua infância?
R - Eu não sinto saudade da minha infância. Tem muita gente que tem lembranças boas da infância, que fala muita coisa bacana. Eu não sinto saudade da minha infância, de muitas coisas. Eu brinquei muito, tive muita amizade com primos, tinha bastante amiguinhos. Só que eu não tenho uma infância bacana de falar, de carinho de mãe. A minha mãe teve depressão pós-parto, viveu muitos conflitos. Eu não tenho uma infância assim, bacana, para lembrar de detalhes que, assim, eu fale que eu gostaria de voltar atrás e ter tal coisa de volta. Depois que eu fiquei com a minha avó, foi aquela história: tudo o que eu queria... a minha avó tentou me comprar, eu diria. Hoje eu tenho um filho. Eu tenho convivência com a avó dele. Assim, eu percebo que a avó deixa você fazer mais coisas. Ela vai ceder mais coisas para você. Coisa que a sua mãe vai colocar limites. Para mim, era muito melhor ficar com a minha avó do que com a minha mãe. Foi muito mais cômodo para mim. A minha mãe acabou, em certos limites que ela tentava colocar em mim ou em coisas que ela tentava fazer, para mim era pior e eu acabei ficando com a minha avó. Então, a minha infância foi: fica com a mãe e fica com a avó e enfiaram o conselho tutelar no meio. O conselho tutelar me buscava na casa de uma e me levava para a casa da outra. Aí, buscava na casa de uma e levava para a casa de outra. Em escolas eu não tinha paz porque o conselho tutelar vivia atrás de mim. ‘‘Você tem de voltar a morar com a sua mãe’‘. E eu falava que eu não queria voltar a morar com a minha mãe porque com a minha avó era melhor. E eles não estavam errados por questão de falar assim: ‘‘mas você não tem de ter raiva da sua mãe, porque ela está dizendo não para você ou te colocando limites, porque criança não quer comer na hora certa, não quer comer aquilo que deve, quer sair, não quer ter hora para voltar e não quer disciplina’‘. E eu tinha tudo o que eu podia e queria na casa da minha avó. Desde um tênis que eu quisesse, uma boneca que lançou. Qualquer coisa eu tinha. O meu pai e a minha mãe já tiveram uma vida mais humilde. Depois que meu pai se separou e foi morar na casa dele com a minha mãe, meu avô resolveu dividir tudo. Aí cada filho tocou seu espaço de terra, se virou como podia. As coisas foram realmente divididas e os meus pais ficaram meio que excluídos da família. Mesmo morando no mesmo quintal, porque era o mesmo sítio, eram pouquíssimos metros de distância. Eram, acho, 200 metros uma casa da outra. Mesmo assim era tudo muito dividido lá. Assim, a minha infância com meus pais passou a ser muito humilde, de pouca coisa. Meu pai passou a ter de trabalhar muito para sustentar a família. Depois de um tempo a minha mãe trabalhar também, aí não tinha com quem deixar eu e a minha irmã. Eu ficava com a minha avó e minha mãe, às vezes, levava a minha irmã para lavoura ou coisa assim. Eu não ia porque aquilo não era cômodo para mim e eu fiquei com a minha avó. Então, foi uma fase de muita briga e muito conflito nessa questão de ‘‘vai com a mãe e fica com a avó’‘ e eu ficava perdida. Não sabia o que fazia. Todo mundo falando para mim que o filho tem de estar com os pais e, na minha cabeça, eu tinha de estar com os meus avós. E a família sempre falando mal dos meus pais e eu acabei criando muito ódio da minha mãe sem saber o porquê. Anos depois eu fui conversar com ela e ter consciência de que eu fui muito imatura e muito manipulada. Principalmente, que eu estava tendo picuinhas com ela que não tem lógica. Eu, como mãe, hoje entendo que fui completamente errada. Ainda bem que depois, no futuro, tudo se resolveu. Alguns anos depois.
P/1 - E você lembra do nascimento da sua irmã?
R - Eu não lembro muito bem. Ela é um ano e 360 dias, para ser bem precisa, mais nova do que eu. Então, eu não lembro muito bem. Só que eu lembro que eu não convivi com a minha irmã. Eu não lembro dela como criança. Nós brigávamos muito depois que ela começou a andar, brincar. Nós nunca tivemos uma amizade ou relação de irmãs. Nunca tive com ela. Ela era muito na dela, mais envolvida com a minha família. A minha mãe sempre disse: ‘‘já que a Márcia eu praticamente perdi, eu não vou deixar que tomem a Denise de mim também’‘. Então, eu ficava com a minha avó, na casa da minha avó, com o meu avô e minhas duas tias que não se casaram e ficaram morando com meus avós e a minha irmã morava com meus pais. Então, nós não tivemos uma relação muito grande, de irmãs. Foram alguns momentos, alguns episódios, em que eu resolvia voltar para casa. Dormia lá dois ou três dias, vivia esse período e voltava para a casa da minha avó. Basicamente, a minha vida toda foi morando com a minha avó, que eu me lembre, até o momento em que eu me casei - eu fugi de casa aos 17 anos - foi com a minha avó que eu vivi.
P/1 - E os seus avós maternos, como eles chamam?
R - É Gerônimo José da Silva e Olícia. Olícia da Silva. Eu não lembro o outro sobrenome dela.
P/1 - E você teve contato com eles?
R - Meu avô faleceu alguns anos depois de eu nascer. Acho que dois. Eu não lembro dele. Eu não lembro nem de ter visto dele. Com a minha avó eu não tinha contato quase nenhum com ela. Como eu não ficava muito com a minha mãe, eu lembro de poucos episódios de dormir na casa dela ou dormir na casa de alguma tia por parte da minha mãe. A minha irmã conviveu mais. Eu convivi pouco com ela. Eu tive bastante convivência com os meus avós paternos, mas os maternos eu não tinha muita convivência. Foram poucos momentos, não foram grandes não.
P/1 - E você teve contato com essa herança, essa cultura indígena da parte da sua mãe? Isso era presente na família dela?
R - Na família da minha mãe era. Sempre foi. A minha mãe não tem nem tantas características como a minha avó. Da minha avó, eu lembro de detalhes como a forma de fazer comida, socar as coisas no pilão. Eu lembro dela socar coisas no pilão, canjica, coisas assim. Plantações que ela fazia, o jeito de ela falar, se vestir. Segundo a minha mãe: ‘‘seu avô pegou a sua avó no mato’‘, mas eles não são muito de falar a história, a raiz deles. Talvez agora, para mim, que sou adulta, eles falem mais, mas quando eu era criança, não tinha muito detalhes. Eles não abriam, não falavam muitos detalhes. Para a família do meu pai, isso era uma nojeira, era absurdo. Era coisa de bicho. Então, eu não tive muito convívio e nem fiquei falando muito sobre isso porque eu tinha meio que medo de falar e brigar com a minha avó parterna e minhas tias. ‘‘Não vou me envolver muito nessa cultura que é totalmente diferente do que eu estou vivendo agora, porque se eu for diferente do que está acontecendo, eu vou perder tudo o que eu tenho. As minhas avós e minhas tias vão ficar com raiva de mim, então eu vou ficar desse lado. Não vou me envolver muito com aquele’‘. Aí começamos a ver muitos defeitos. Minhas avós e minhas tias falavam muito dos defeitos da minha mãe, dessa cultura, do jeito que eles eram, essa do jeito de cozinhar, do jeito de fazer festa. Eles fazem muita festa, de conversar alto, de dançar, de ter bastante comida. Eu fui criando raiva daquilo. Eu não gostava. Eu, sinceramente, não gostava daquilo quando era criança. Até onde me lembro, não gostava. Fui criando uma certa raiva e não queria me envolver. Por isso eu não conheci mais do que eu deveria, na verdade. se tivesse conhecido mais, seria mais bacana. Hoje eu tento recuperar o tempo perdido, mas tem coisas que não tem como voltar. Não dá para voltar no tempo, infelizmente.
P/1 - Você lembra como era a casa da sua avó?
R - Eu lembro de alguns detalhes. Até hoje ela mantém a casa dela, de madeira, pintada de verde, muita planta. Muita planta. A minha avó tem muita planta mesmo. Ela tem um terreno gigante na cidade de Jeniópolis e a casa dela é cercada de plantas. Ela gosta ainda de fazer as coisas. Se ela for fazer uma canjica, paçoca - eu lembro de paçoca de carne, de amendoim - é tudo no pilão, é tudo rústico. Ela não gosta de modernidade nenhuma. Ela tem medo de colocar o celular para carregar porque ela acha que é tudo muito moderno. A minha avó tem quase os mesmos móveis de antigamente. O quadrinho da família, que é dos filhos, ela e meu avô no mesmo lugar de quando eu era criança ela manteve. Tudo está como quando eu era criança, que eu lembro que eu ia lá e via. Ela não mudou quase nada na casa dela.
P/1 - E as festas? Você lembra de alguma em especial que tenha te marcado?
R - Eu lembro do casamento de um tio meu, que foi na casa dessa minha avó. Eu era muito pequena. Acho que foi uma das poucas festas que eu fui, que foi onde eles reuniram toda a família na casa. Meu tio se casou e a minha avó falou: ‘‘não, vamos fazer a festa aqui em casa’‘ e foi feito lá. Tinha muita fartura, muita comida, música, eles dançando, a família da minha avó toda reunida. Vieram parentes de longe, distantes, para festejar, para comemorar o casamento desse meu tio. Eu lembro de poucos detalhes, eu era criança. Foi onde eu convivi um pouco com os meus primos por parte de minha mãe, que eu não tinha convivência antes. Eu era até um pouco mais excluída, porque como eu ficava nesse vai e volta, não tinha convivência com eles. Então, eu conheci primos que eu nem imaginava que tinha. Eu brinquei muito, lembro que nós dançamos, comemos muito. São poucos detalhes que eu lembro porque eu era muito nova, na época. Eu não vou lembrar 100 por cento.
P/1 - Você lembra de que tribo a sua avó era?
R - Eu não lembro, não sei dizer. Era do interior do Paraná, só que eu não sei dizer agora a tribo que era. Eu não vou me lembrar. De onde vieram os pais dela eu também não vou me lembrar.
P/1 - E como é que foi ir para a escola? Você tem alguma lembrança desse período? Alguma professora que te marcou, os amigos?
R - Eu lembro que quando comecei a ir para a escola, eu morei com a minha mãe por um período. Ela me matriculou na escola, para ir ao prezinho. Foi em uma época que nós estávamos tentando nos dar bem. Ela: ‘‘não, fica aqui, tem a sua irmã. Meu pai, na época, comprou um beliche. Ele armou tudo, conforme ele podia, as coisas para o Papai Noel vir e trazer uma bicecletinha. Um tricíclo para nós. Depois daquele período eu fiquei mais com eles. Eles foram meio que me cativando novamente. A minha mãe me matriculou na pré-escola e eu fui cinco dias. Uma semana. Foram cinco dias que eu fui para a escolinha. Eu chorava, me desesperava. Eu era muito apegada, gostava de dormir até tarde e comecei a estudar de manhã. Eu me senti estranha no meio do todo mundo, porque a família da minha avó é muito reservada. Eles não vão para festa, eles não fazem nada. É sempre só na casa. No máximo eles iam para a igreja que tinha, rural. Era o máximo. Eles não saem, eles não gostam de festa, eles são muito reservados mesmo e eu me sentia um bicho no meio daquilo tudo ali. Eu não gostava. Por causa da família do meu pai eu acabei ficando muito fechada. Antissocial, eu diria, até. E quando eu comecei a ir para a escola, comecei a conhecer gente nova, crianças. Eu não me enturmava com ninguém, eu não me enturmei com ninguém, eu não gostei. Aí eu começava a chorar todas as vezes que a minha mãe ia me acordar de manhã para ir para a escola. Eu chorava demais e aí corria para a casa da minha avó. Ao invés de ir para a escola, eu corria para a casa da minha avó. Aí a minha avó batia a porta na cara da minha avó, brigava com a minha mãe, falava que ela estava me obrigando a ir para a escola, que aquilo era absurdo, que não precisava, que só depois, quando eu tivesse que ir na primeira série eu teria a obrigação de ir. E foi aquela coisa. O meu pai falava: ‘‘deixa, mulher, deixa. Não vamos ficar brigando’‘. Meu pai sempre quis apaziguar as coisas, ele nunca gostou de briga. Então, assim, ele acabava deixando. Nesse acabar deixando, eu acabei não fazendo a pré-escola. Só me lembro depois, que na primeira série meu pai conversou muito comigo. Ele falava: ‘‘olha, a partir do ano que vem você tem de ir para a escola, senão você não vai aprender’‘. Ele foi conversando comigo. Ele me preparou, praticamente, daquele ano até o final do ano, total, para eu, no outro ano, começar a estudar. Porque, o meu pai, como ele tinha passe livre, ele vivia na casa da minha avó. Ele comia na casa da minha avó, às vezes ele dormia. Dormir, não tanto. Ele vivia convivendo lá. Então, com meu pai, eu tive uma convivência muito forte, só não tinha com a minha mãe. Porque, a minha mãe, era na casa dela. Ela não passava de um determinado ponto do terreiro, do terreno - nós chamávamos de terreiro. Ela não passava para cá. Não tinha muro, não tinha nada, mas ela não passava. Digamos que ela fosse proibida de passar para cá, porque era do lado dela para lá e minha avó, minhas tias e só o meu pai que vinha para cá. E eu, eu ficava nesse meio termo, meio que nessa zona de conflito, mas com o meu pai eu tinha uma convivência um pouco mais forte, porque ele vivia na casa da minha avó também, ele era filho. Eu tive, então, uma convivência mais forte do que com a minha mãe. Aí, nos anos seguintes, que eu comecei a estudar, foi fluindo um pouco melhor. Depois eu passei para a parte da tarde para estudar, comecei a fazer alguns amigos, comecei a me enturmar um pouco mais e na terceira série eu comecei a sofrer bullying na escola, porque eu sofri demais com a obesidade. Eu era muito obesa quando era criança. Aí começaram as primeiras chacotas, bullying. Eu tinha todos os apelidos que vocês puderem imaginar. Eu comecei a ficar isolada, porque os meus amigos não queriam andar comigo porque eu era fora do padrão, digamos assim. Aí, foi onde começaram os outros conflitos, que eu não queria ir para a escola. Aí virou aquele problemão. Para mim, a escola era como um inferno. Era terrível. Qualquer motivo ou em qualquer dia que eu pudesse inventar uma desculpa para não ir para a escola, eu fazia isso. Mas, apesar de tudo, como não gostava de estudar e não gostava de ir para a escola e passar por tudo aquilo, eu tentava me esforçar o máximo que eu pudesse para, no terceiro bimestre ou quando eu pudesse terminar logo o que eu tinha de fazer para não ter de conviver mais com a escola e me livrar daquilo, tanto é que eu nunca reprovei e tentava fazer isso da melhor forma possível. E foi assim até terminar, basicamente, o ensino médio. Eu não gostava de ir para a escola. Eu sofria muito bullying. E na adolescência também foi bem complicado para mim.
P/1 - E a obesidade continuou durante a adolescência também?
R - Continuei. Com oito anos e meio, mais ou menos, eu descobri que a minha obesidade tinha uma causa. Eu passava muito mal. Eu vivia com muita febre e a minha mãe até achou que, por um período, era porque eu não queria ir para a escola. Aí me levava em psicóloga, me levava em médicos, até que, um dia, um médico resolveu fazer um ultrassom. Fez uns exames de sangue. Eu não sei se foi no exame de sangue que ele pediu o ultrassom, por causa dos exames de sangue, ou o que aconteceu. Eu sei que quando fizeram o ultrassom em mim não falaram muita coisa, só me pediram para fazer uma tomografia depois. A médica, a doutora Sharon, que é o nome dela, uma boliviana que na época foi para a cidade de Janiópolis, chegou para meus pais, os chamou para conversar e falou: ‘‘eu sinto muito por falar, mas a filha de vocês está com câncer no rim’‘. E aquilo, para mim, foi... eu ouvi aquela palavra. E, na minha família, como muita gente já morreu de câncer, foi bem puxado. Porque, assim, meu pai não sabia lidar com a situação e falaram que eu teria de ir para Curitiba para fazer tratamento. Então, depois que ela deu o diagnóstico de câncer - segundo ela, começou uma correria. Uma corrida em nossa vida. Meu pai não tinha estrutura psicológica, financeira para lidar com isso e nós começamos a tentar de todas as formas um tratamento. Curitiba, Campo Mourão, eu fui para Maringá e foram vindo mais brigas, porque a minha família começou a acusar a minha mãe de que aquela doença teria sido causada por ela. Vieram acusações absurdas, assim. E aí, em Campo Mourão, foram refeitos os exames, foram feitos outros exames e o médico disse que não era câncer. O meu rim estava muito inchado e cheio de crateras, assim, nele, só que a causa não era um câncer. Foram feitos outros exames particulares e mais específicos e eles diagnosticaram uma hidronefrose. Era o nome que eu me lembro. E eles tentaram o tratamento comigo, mesmo o médico, em Campo Mourão, que eu teria de fazer cirurgia para reconstruir todo o canal do rim para a bexiga. Eles tentaram um tratamento, porque eu cheguei para a casa da minha avó, eu lembro, com o meu pai, no dia. E (meu pai) [00:27:59] falou: ‘‘ela vai ter de fazer cirurgia. Não vai ter jeito’‘. A minha família, nossa, eles são de um apoio, assim, que eu até dou risada. Eles falaram: ‘‘não, essa menina vai morrer na mesa de cirurgia’‘. E eu, uma criança, nem nove anos eu tinha na época, ouvi aquilo ali e meu Deus, eu entrei em desespero. Eu comecei a falar para o meu pai que eu não ia, que eu não ia para a consulta, que eu não ia continuar o tratamento e que eu não queria. E aí, as minhas tias falaram: ‘‘vamos mandar ela para a casa do tio dela’‘, que é na cidade de Maringá, irmão do meu pai, ‘‘para ela tentar o tratamento lá’‘. Eles arrumaram todo o esquema e me mandaram para Maringá. A minha mãe não pôde ir, só foi um pouquinho e teve de voltar, porque não se dava bem com o meu tio. Eles meio que não aceitaram ela e falaram: ‘‘deixa ela aqui que nós vamos cuidar, quando tudo estiver bem você vem buscar ou nós mandamos ela para você’‘. E eu fiquei na cidade de Maringá tentando um tratamento, mesmo com o médico de lá dizendo que não tinha como, que teria de ser cirurgia. Aí ele tentou e tentou e falou: ‘‘olha, como ela nem pertence a esse município, vamos ter de mandar de volta para lá, porque quem tem de resolver é o município de lá’‘. E aí me mandaram de volta para Campo Mourão e de lá tive de ir para Curitiba. Aí fiz todos os exames em Curitiba novamente. Até me preparar para a cirurgia foram alguns meses, até quase mais de um ano e eu fiz a cirurgia no Hospital Pequeno Príncipe, de Curitiba. Acho que foi, se não me engano, no dia 21 de setembro de 2002 que eu fiz a cirurgia. Eu já estava com quase dez anos. E depois da cirurgia eu tomei muito medicamento. Muita coisa aconteceu na minha vida. Eu me lembro do meu pai cuidando de mim no hospital. Foi ele e a minha mãe. Não permitiram que outras pessoas fossem. Teria que ser o meu pai e a minha mãe. Quando eu voltei, da cirurgia, de Curitiba, a primeira coisa que eu quis fazer foi ir para a casa da minha avó e lá eu fui ficando de novo. Eu não me cuidei em basicamente nada. Eu era uma criança. Eu queria andar de bicicleta, queria jogar bola, queria correr, queria fazer várias coisas. Aí começaram a infeccionar os meus pontos. E aí, tudo o que acontecia de ruim eu ia para a casa da minha e aí ficava aquela coisa de que é culpa dela e que aquilo estava acontecendo por culpa dela. E foram mais e mais brigas. Eu sei que fiquei um bom tempo depois fazendo tratamento, depois da cirurgia, no Pequeno Príncipe, até uns 12 anos. Foi quando, nas últimas consultas, que o médico me disse que eu poderia ter vida normal, que tudo estava tranquilo, que eu só iria lá se eu quisesse, se estivesse acontecendo alguma coisa comigo ou a cada dois anos, para um retorno. Acabou que eu nem fui mais. Depois que eu fiz a cirurgia, que eu fui liberada de todo o tratamento, que eu ainda estava com um sobrepeso. Eu tinha desinchado bastante, mas eu ainda estava bem gordinha. Aí, com quase 14 anos, eu resolvi colocar na minha cabeça, de tanto sofrer pressão da minha família, na minha escola, porque na família do meu pai, infelizmente, eu sofria muito preconceito por ser gorda. A minha mãe sempre foi gordinha também e eles falavam: ‘‘você vai ficar igual a sua mãe, você não está se cuidando’‘. Eu sentava, fazia qualquer coisa e tive muita pressão por causa disso. Eu comecei a colocar na minha cabeça que eu ia parar de comer e ia emagrecer. Com quase 14 anos eu parei, literalmente, sem comer. Fiquei dias só tomando chá, depois passei a tomar só água. Aí eu comecei a passar muito mal e fui para o hospital. Eu fui internada e eles me diagnosticaram com uma anemia muito forte e me deram medicamentos. Eu não tomava o medicamento. Eu fingia e jogava. A minha cama era daquelas tubulares, tinha uma coisa do no pé dela e eu jogava os medicamentos lá. Eu não tomava por medo de engordar. Eu já tinha emagrecido 16 quilos e fui emagrecendo mais. Acho que foi 20 quilos o que eu emagreci, até chegar um ponto que aquilo tomou conta de mim e se transformar em uma compulsão. Qualquer coisa que eu comesse, eu imaginava que eu estava muito gorda e já estava muito magra. Eu já estava vestindo 34. Eu estava bem magra. Os ossos da minha bacia, costela, do meu corpo, meu rosto ficou muito fino. Eu fiquei muito magra. Eu fiquei sem menstruar muitos meses. Meus dentes ficaram diferentes, meu cabelo caía demais e aí comecei a ter pressão dos médicos também, porque a anemia estava ficando cada vez pior. Aí, passei a ficar internada de três em três dias porque eles não viam outra solução, já que sabiam que eu não ia tomar o medicamento. Eu comecei a ficar internada de três em três dias para tentar recuperar esse quadro. Eu morava com a minha avó e com as minhas tias nessa época. Eu já não falava com a minha mãe, porque quando eu tinha 11 anos nós tivemos uma briguinha boba, não lembro o porquê. Foi quando eu fui definitivamente para a casa da minha avó e fiquei dos 11 até quase os 18 sem falar com ela. A nossa relação definitivamente tinha acabado ali.
P/1 - E vocês moravam no mesmo terreno?
R - No mesmo quintal. No mesmo terreno. Eu passava, praticamente tropeçava na minha mãe. Eu virava o rosto, mas nem um oi, um olá. Nada. Não tinha conversa entre nós duas. Foi uma briga boba, não sei o motivo, mas fiquei mesmo sem falar com ela mesmo. E, depois de um período, com essa compulsão, eu diria, pelo meu corpo, eu comecei a ser forçada por minha família a comer, a me alimentar melhor e ficar um pouco melhor em relação a isso. Eu comecei a desenvolver bulimia. Foi tudo ficando muito pior para mim, até que eles resolveram indicar uma psicóloga. Eu não queria de jeito nenhum. Aí, na escola, eu lembro que a coordenadora chegou em mim e falou: ‘‘você não precisa contar para ninguém que você está indo. Se você tem vergonha, vá escondida. Nós marcamos’‘.
P/1 - Mas antes da bulimia você acha que teve um quadro de anorexia também?
R - Tive.
P/1 - Porque teve, não é? Aquilo que você me descreveu foi da anorexia, não é?
R - Foi sim, não queria comer ao ponto de não tomar medicamento, não é?
P/1 - Não, e não menstruar.
R - Sim.
P/1 - Os dentes... acho que foi.
R - E depois ela falou: ‘‘tenta conversar. Eu marco para você a psicóloga. Você vem para a escola como se você estivesse indo normalmente. E depois do recreio, em um período que você achar que deve, você desce lá e conversa com ela, faz as consultas. Você não precisa gostar. Vai umas três vezes para ter uma experiência’‘. Eu fui e gostei. Comecei a ir. Foi aí que eu fui conseguindo entender mais o que estava acontecendo comigo, com o meu corpo e a me aceitar um pouco mais, que eu estava doente e precisando de tratamento. Aí eu comecei a me alimentar um pouco melhor, a minha pele e meu cabelo começaram a melhorar um pouco mais, eu comecei a menstruar novamente e eu fiquei mais saudável. Até minha cor voltou e mudou. Então, assim, eu superei aquela fase, eu diria. E até depois, um pouco antes de casar e fugir de casa - porque dos 14 aos 17 anos eu vivi nesse meio de tratamento, de uma autoaceitação que não vinha e mesmo assim continuavam os mesmos conflitos familiares. Eu já não tinha mais relação praticamente nenhuma com a minha irmã. Ela também já estava uma mocinha, mas nós pouco nos falávamos, pouco nos dávamos bem. Era bem pouco o convívio entre eu e ela. E a minha família e a minha vida foi, praticamente, resumida nesse conflito. Eu não vou dizer que foi uma família unida ou que tive uma boa relação com a minha irmã. Hoje em dia nós temos, mas antes não tivemos isso.
P/1 - E em meio a todas essas questões de saúde, de imagem, do seu corpo, como é que foi a sua adolescência? Como foi a Márcia adolescente? Namoro, primeiro beijo, amigos, socialização? Como foi a sua vida nesse período?
R - Foi bem complicada, porque eu não me aceitava. Então, eu imaginava: se eu não me aceitava, quem é que iria me aceitar? Foi bem complicado. Aí eu comecei a fumar. Eu descontava toda a minha ansiedade e stress no cigarro. Quando eu comecei tinha 13 anos de idade. Comecei a comprar cigarro escondida, comecei a fumar escondida e já não comia e fumava. Aí, como tive o problema no rim, o médico sempre falou: ‘‘evita cigarro, não faça isso na sua vida, porque o seu rim não é uma coisa 100 por cento. Você fez uma cirurgia, tentou se recuperar. Cuida dele’‘. Eu não tomava nem água porque eu tinha medo de engordar, mas eu fumava demais. Eu comecei a fumar muito. Fiquei com várias pessoas, tive relacionamentos. Nunca namorei sério. Sempre ficava com um ou outro, mas não vou dizer que tive muitos relacionamentos ou que foi uma fase em que eu me envolvi com outras pessoas. Para mim, a minha felicidade, eu diria, que era só ver como eu estava no espelho e acender um cigarro. Estava ótimo para mim. É o que eu me lembro, assim. Era o que importava para mim. Tanto que com o meu atual marido nem namorei. Eu estava com tanto conflito na minha família, porque eu comecei a fumar, usei maconha, cheirei. Eu percebi que estava indo por um caminho sem volta e que se eu continuasse eu ia acabar virando uma dependente. Eu resolvi parar. Falei: ‘‘não, não vou fazer isso com a minha vida, não é o que eu quero’‘. Eu já estava cansada de tanto conflito, porque quando comecei a ficar adolescente, fiquei rebelde. Eu fui uma adolescente muito rebelde também. E comecei a ter muito problema com a família do meu pai. A minha avó e as minhas tias começaram a não me aceitar mais. Elas não queriam mais passar por aquilo. E aí elas começaram a dizer que elas não tinham que passar por aquilo porque elas não eram meus pais e que eu teria de voltar a morar com a minha mãe. Aí, começou uma expulsão, eu diria. Vieram vários conflitos. Elas mesmo começaram a procurar o conselho tutelar para que me convencessem ou convencer os meus pais a assumir essa responsabilidade de me pegar de volta, porque eu estava dando trabalho, estava fumando e várias coisas. Eu até ia com cigarro e fumava na escola. Isso acabou dando problema também, porque a coordenação acabou chamando a atenção delas. Só que quando tinha que ter uma certa responsabilidade ou arcar com certas consequências, a responsabilidade era dos meus pais, não delas, que moravam comigo. E quando estava tudo bem e tudo bom, elas eram os meus pais, digamos assim, elas me criaram. Eu acabei tendo vários conflitos com relação a isso também e foi onde eu comecei a ter muitas brigas com elas também. Eu não queria dar o braço a torcer e ter humildade, eu diria, de chegar na minha mãe e falar: ‘‘mãe, me perdoa, eu estava errada. Eu quero voltar para casa, eu estou sofrendo. Vamos parar com essa briga, chega. Eu não sei o que aconteceu, mas vamos conversar? Vamos tentar entender o que está acontecendo? Eu tinha vergonha de falar isso e eu sentia 'está tarde demais. Eu fiz a minha mãe passar tanta raiva até agora e fiquei tão longe dela até agora. Agora está tarde demais para eu chegar e voltar a fazer isso'‘‘. Então, foi onde que, conversando com o meu atual esposo - ele era meu amigo - cheguei e falei: ‘‘quando eu terminar meu ensino médio, eu ainda vou ter 17 anos e eu vou fugir de casa. Eu vou sair de casa. Eu preciso dar um jeito na minha vida. Eu não vou ficar com as minhas tias e eu não vou ficar lá’‘. Porque o plano delas era comprar uma casa na cidade de Arapongas e, quando terminasse o ensino médio, me mandar para lá, para ficar longe dos meus amigos, de (Indianópolis) [00:39:19] para ficar longe dos meus pais, de todo mundo, meio que me isolar e a partir de ali: ‘‘você vai fazer tal faculdade, vai fazer tal coisa na sua vida, vai morar em tal lugar, arruma tal emprego’‘. Meio que um controle na minha vida, da mesma forma que era na dos meus tios e a mesma vida que eles tinham eu não queria para mim. Eu não me via naquela situação. ‘‘Namorar você namora só se for fulano que presta, fulano não presta’‘. Uma seleção assim. Amigo meu nunca nenhum prestou para elas. E foi nesse meio que falei para ele que eu queria fugir de casa, que eu não queria ficar naquela vida e eu não ia passar por isso. Não ia terminar meus estudos para ter de ir embora para uma cidade onde elas queriam e para que elas controlassem a minha vida. Para mim, chega. Elas tinham me controlado e feito muita coisa na minha cabeça até ali, mas dali para frente eu não queria mais. E ele me disse: ‘‘se você quiser, eu fujo com você. Você mente que está casada comigo. Nós tentamos um relacionamento e quando você fizer 18 anos, que puder responder por si mesma, você segue sua vida e eu sigo a minha, mas não vai fugir com qualquer um, não vá fazer qualquer coisa. Você é uma menina. Alguém pode te estuprar, você pode acabar engravidando. Pode acontecer várias coisas na sua vida. Não faça isso. Tenha uma consciência. Se for para fugir, eu te acolho. Fica comigo então. Nós fugimos. Não precisa ter nada comigo. Nós só vamos fugir por uma fachada, porque a sua família vai vir atrás de você e se você, pelo menos, falar que você fugiu, mente que está grávida ou alguma coisa assim, para eles será um escândalo e eles vão te obrigar a casar. Então, é melhor fazer isso’‘. E foi o que aconteceu. Eu lembro que no dia oito de novembro de 2008, quando eu vi que as minhas notas tinham encerrado e eu tinha passado no ensino médio, no terceiro ano, eu combinei com ele e ele veio me buscar. Nós fugimos. Eu tive de mentir que estava grávida. Eu fugi em um domingo. No sábado eu saí de casa e no domingo que ele me buscou, porque estava chovendo muito. Eu dormi na casa de uma prima dele e ele me buscou. E na terça-feira a minha família estava com... nossa, não chamou a polícia e o conselho tutelar no momento porque eles queriam ter certeza de que eu estava na casa da minha sogra.
P/1 - Mas você fugiu na surdina? Você fez a mala sem falar nada ou você avisou? O que você fez?
R - Eu não avisei. Quando nós conversamos, coisa de um mês antes de termos fugido, ele falou: ‘‘foge comigo’‘, quando eu falei que eu ia sair de casa. Ele falou: ‘‘você vai para onde?’‘. Primeiro ele questionou o que eu ia fazer da minha vida. Eu não tinha um plano. Eu só falei que eu queria fugir. Ele falou assim: ‘‘se você não tem um plano, foge comigo. Finge que estamos tendo um relacionamento, que nós casamos, se alguém perguntar. Você sempre foi muito reservada, muito na sua. Ninguém precisa saber do relacionamento que você teve ou não’‘. E eu falei: ‘‘vou fugir com você. Se você quiser topar e me acolher, nós nos ajudamos. Eu vou fazer isso’‘. Eu fui juntando peças de roupa, um pouco aqui, um pouco ali e levava todo dia para a escola e deixava na casa de uma amiga. Todo dia eu levava um pouquinho para a escola e deixava na casa de uma amiga. Os mais básicos. Foi pouca coisa para não dar diferença em minha casa, porque minha tia controlava até o que tinha em meu guarda-roupa. Ela revirava meu guarda-roupa para ver cada detalhe do que tinha lá. Até o absorvente que eu usava ela sabia. Se eu não menstruasse ou se atrasasse, ela falava: ‘‘o que aconteceu? Porque eu sei que não desceu para você ainda’‘ e não sei o quê. Era tudo muito controlado. E eu comecei a puxar as roupas que eu conseguia levar. Chegou no dia combinado, tinha uma festa, que era de um evento da escola, que estavam promovendo na cidade, uma coisa assim. Eu pedi para as minhas tias: ‘‘deixa eu ir’‘ e não sei o quê. Elas também queriam ir nessa festa. Às vezes nós saíamos, quando a minha tia queria ir a algum evento, elas iam. Nesse dia, eu tinha combinado, tudo certinho. Eu não sei o que aconteceu. Parece que foi tudo certo e que deu certo de a minha tia ir. E ela falou: ‘‘então vai e dorme na casa de tal amiga’‘, que era da total confiança delas. ‘‘Você sai com tal amiga e em tal lugar’‘. E essa amiga sempre foi de muita confiança delas e elas deixaram. E deu tudo certo. Eu catei a minha mochilinha, peguei o resto de coisas que eu podia e fui para a casa dessa amiga. Deixei as coisas meio no jeito para pegar depois e fui para essa festa. Ele não pôde ir porque estava chovendo muito no dia. Ele morava em uma cidade vizinha. Encontrei a prima dele lá e ela falou: ‘‘ele vem. Ele, se ele falar alguma coisa, é de muita palavra. Se ele falar, ele vem. Então, pega as suas coisas e desce lá para casa, que ele vai te buscar lá. Se você voltar para a casa da sua amiga, já era. A sua tia vem te buscar e todo mundo vai ver’‘. E eu peguei a minha mochilinha e desci para a casa dela. Dormi na casa dela e no outro dia, no domingo, ele me buscou. Fugi com ele. Ele foi, assim, muito amigo meu. Ele não tocou em mim, ele não tentou nada. Nós fomos nos envolvendo depois. Aí, a minha tia foi atrás de mim. Para a família dele também foi uma surpresa, porque ninguém nunca nem o viu namorando e de repente ele aparece com uma mulher lá. E nós fingíamos ser marido e mulher mesmo para a família dele também. A minha tia foi atrás de mim com o meu pai, na época, na terça-feira. Eu cheguei na casa dele no domingo e na terça-feira eles foram atrás de mim. Quando eles chegaram atrás de mim, a minha tia queria me levar de volta. Me prometeu, na época, um computador, para eu voltar. ‘‘Eu te dou um computador, eu te dou um celular, eu te dou o que você quiser. Volta para casa. Não faça isso. Você está grávida mesmo?’‘. Eu falei: ‘‘tia, eu estou grávida’‘. Aí eu comecei a usar os mesmos jogos que eles já usavam. Eu falei: ‘‘tia, eu estou grávida. Vai ser feio para a família. Eu não vou voltar’‘ e tal. E foi aquele conflito, aquela coisa. Só que a minha avó, querendo ou não, ela sempre me amou muito. Assim, ela queria que eu voltasse. Ela queria ter contato comigo, ela queria saber como é que eu estava. E aí ela falou: ‘‘olha, a avó está desesperada, ela está doente. Ela não está conseguindo comer se ela não te ver’‘. Aí eu falei, eu prometi para ela que em um sábado, quando o meu marido chegasse do trabalho, eu iria visitar ela sim. E no sábado, acabou que eu fui visitar elas e eles acabaram aceitando ele para ter uma convivência bacana ali entre nós. Eles acabaram aceitando ele, me aceitaram de volta, assim, em uma convivência e em uma relação de que agora não era mais a menina que morava lá. Eles acabaram me aceitando. E essa criança, que eu menti que estava grávida, nunca vinha. Aí começaram as cobranças: ‘‘o que está acontecendo? Era já para você estar com barriga’‘. Eu pensei em mentir que tinha perdido a criança, até que eu resolvi confessar. Como todo mundo já estava aceito mesmo, eu falei que não, não tinha criança nenhuma. Não contei a história para eles porque eu não quis magoar a minha avó e contar: ‘‘oh, avó, eu estava sendo praticamente expulsa de casa por suas filhas. Começaram a jogar várias coisas na minha cara e querer que eu voltasse a morar com a minha mãe’‘, porque a minha avó não sabia desse episódio. Então, eu resolvi abafar o caso e seguir em frente. Depois, no meio do caminho, nós acabamos nos envolvendo, eu e meu marido. Ele passou de ser amigo e parceiro um companheiro mesmo. Acabou sendo meu marido. E mais ou menos, quase um ano depois que nós tínhamos fugido, nove, dez meses depois, eu engravidei do João. Tive o João.
P/1 - Então, vamos parar por aqui agora e vamos entrar no bloco da dermatite e depois retomamos com o nascimento do João. Então, vamos falar da dermatite. Quando é que você soube que você tinha dermatite?
R - Eu tive o diagnóstico mesmo em 2014, depois que eu sofri um acidente de carro. Nós morávamos já aqui no Mato Grosso. Nós estávamos voltando para a fazenda onde morávamos e fomos fazer uma ultrapassagem e o caminhão não permitia que fizéssemos. O meu marido ficou contendo o carro ali e não quis fazer. Quando chegou um momento lá que tinha um reto na estrada e ele falou assim: ‘‘dá para fazer a ultrapassagem’‘ e o caminhão dando seta de que a pista estava livre e dava para fazer, só que nós suspeitamos que tinha alguma coisa estranha naquele caminhão. Não tinha buracos na pista, não tinha uma pista ruim para que ele ficasse a toda hora fazendo ziguezague. E eu falei para o meu marido: ‘‘segura, segura. Tenta evitar. Não se aproxima muito desse caminhão porque ele deve ter tomado alguma coisa e está estranho’‘. E meu marido falou assim: ‘‘só que eu estou muito perto. Vamos fazer a ultrapassagem e já nos livramos dele’‘. Até que chegou em um momento propício para fazer a ultrapassagem. Meu marido fez a ultrapassagem. Estava vindo, na época, eu me lembro só dos carros que estavam vindo. Era um carro branco e um caminhão branco atrás do carro, assim. Só que deu tempo de fazermos a ultrapassagem e entramos na frente desse caminhão. Os outros veículos passaram por nós e assim que eles passaram, o caminhão que nós ultrapassamos, entrou nos ultrapassando de volta e bateu na traseira do nosso carro. Nos jogou contra o barranco, capotamos o carro e deu perda total no carro. Total. Na época, nós tínhamos comprado algumas coisas. Tínhamos comprado carne, feito uma compra de algumas coisas aqui na cidade e o porta-malas... bateu bem onde meu filho estava com a cadeirinha dele, assim. A cadeirinha deslizou. Foi um milagre aquilio lá, não sei. Ela deslizou e encaixou no meio do meu banco e do meu esposo. Meu banco ficou totalmente destruído também, quebrou os vidros e eu não ouvi barulho nenhum, de ninguém, do meu marido, do meu filho. Só aquele movimento do carro indo para lá e para cá e capim, porque ele foi para a beira do mato. E, de repente, vi que meu filho começou a chorar. Ele só machucou a unha, assim. Nós conseguimos tirar ele do carro. Passamos ele pelo vidro e ninguém nos ajudava. Eu não chorei, não fiz nada, não tive reação nenhuma. Eu só olhava o carro e parecia que tinha um nó na minha garganta. Um nó na minha garganta e eu não conseguia ter reação nenhuma. Meu marido começou a ficar desesperado. Meu marido chorava, meu filho chorava e eu travada. Demorou muito para uma pessoa parar e nos acolher, porque os caminhoneiros têm medo de ver alguém. Como o carro estava muito escondido no mato e só eu e meu filho dando sinal na beira da BR, eles ficavam com medo de parar, até que um deles parou bem longe de nós - já estava bem escuro, anoiteceu - e resolveu nos dar carona e nos levar até a nossa fazenda, a nossa casa. Ele foi ali, clareou o carro, viu pedaço de carne no chão, ele achou que tivesse algum corpo, alguma vítima. Aí ligamos para a polícia. Demorou para a polícia chegar. Só sei que o caminhoneiro nos levou para casa. Chegou em casa, quando tirei a minha roupa, senti que meu corpo estava pinicando demais, estavam me incomodando muito. Quando eu tirei a minha roupa e fui tomar banho, caíram vários caquinhos de vidro no chão e eu achei que aqueles vermelhinhos no meu corpo, aquelas bolinhas e aquelas coisas, fossem dos vidros do carro. Depois o meu marido teve de voltar no local do acidente, fazer teste do bafômetro, abrir boletim de ocorrência, guinchar o carro e toda a burocracia e eu fiquei em casa com o meu filho. E no outro dia, que passou o acidente, eu comecei a passar muito mal, com muita coceira no meu corpo. Dois dias depois também e eu fui só piorando. E eu comecei a inchar. O meu rosto começou a inchar e eu fiquei muito péssima. Em 2012 eu já tinha tido um caso de uma coceira atrás do meu joelho, uma ferida que abriu, enorme, e não sarava. Eu não soube o que era. E aquilo voltou novamente depois desse acidente de carro, até que não teve jeito e tivemos de ir ao hospital. No SUS não tinha um dermatologista e ninguém soube explicar o que era. Só me deram corticoides para tomar, que eu me lembro. Eu dei uma melhoradinha, mas piorei, até que marquei um dermatologista e ele me diagnosticou com dermatite atópica e de contato. Eu contei toda a história de quando começaram as primeiras lesões no meu corpo, mas eu não sabia o que era. Ele me diagnosticou com dermatite atópica e de contato. E aí eu comecei a fazer um tratamento. Como ele falou que interferiu demais o meu emocional, principalmente depois do acidente, que foi o choque maior que eu tive, atacou o meu corpo totalmente e ele falou sobre o emocional e vários fatores da minha vida que podiam desencadear as crises. Só que eu lembro que as primeiras crises que eu tive foram na infância. Foi quando eu era muito bebê. A minha mãe conta que ela achou que eram fraldas que causavam aquilo em mim, porque na minha virilha, nas dobrinhas do meu joelho e no cotovelo sempre estava vermelho e com uma aguinha saindo, só que ninguém soube o que era. Até que passou a ser só nas virilhas. Aí era aquela briga, que a minha mãe não cuidava direito, que era coisa de fralda e não sei o quê. Aí eu fui morar com a minha avó e ela conta que ela me levava no hospital e que o médico passava mil e uma pomadas, mas nada resolvia. Até que um determinado médico, o nome dele é doutor Roberto, até hoje ele trabalha lá, passou uma pomadinha que a minha avó falou que foi milagrosa. Do nada secou e melhorou bem e só depois de alguns anos, mais tarde, que eu tive uma crisezinha leve, quando eu tinha quase dez anos. Também atacou a minha respiração, eu fiquei sem ar e começou a coçar meu corpo todo, mas demorou para ter crises contínuas como eu tive de 2014 até, mais ou menos, 2017 - esse que está bem mais tranquilo para mim. Depois do diagnóstico mesmo que eu tive mais crises. Assim, em curto prazo, até descobrir um tratamento que deu certo para mim, descobrir o que causava aquilo em mim, controlar mais o meu emocional, fazer coisas para controlar o meu emocional e tentar controlar as crises, porque eu já tinha conhecimento do que eu tinha. Porque, enquanto eu não tinha, não sabia o que era, quanto mais eu me desesperava mais aquilo atacava e mais eu me desesperava. E eu não sabia se a coceira abalava o meu emocional ou era o emocional que me dava mais coceira. Enfim, era uma coisa que eu não sabia explicar e eu só piorava. Foi bem complicada essa fase.
P/1 - E teve alguma crise que foi mais forte, mais marcante?
R - Teve. Em 2014, depois do diagnóstico, fiz todo o tratamento. Gastei uma fortuna com o tratamento. Um dinheiro que, praticamente, eu nem tinha, porque eu tive que comprar um carro de novo e estava começando a minha vida naquela época e eu gastei uma fortuna com o tratamento. E, de repente, duas semanas voltou aquela crise e eu voltei no médico e ele voltou com mais corticoides e eu comecei a engordar de novo. E eu, que já tinha aquela compulsão com o corpo, com estria, com celulite, com qualquer coisa eu era muito compulsiva. Eu comecei a ver o meu corpo ficar totalmente deformado, de manchas no meu rosto, atrás do meu joelho que mais dava ferida, eu comecei a ter estria, porque as pomadas que eu usava afinam a pele. Elas deixam a pele fina e em algumas partes nós chamamos de aspecto de elefante, porque a pele fica grossa como se fosse, realmente, uma pele de elefante. Nos pés, assim, eu não conseguia usar um chinelo, nada, sem ter muita bolha, muito machucado, muita ferida. Parecia que o meu pé estava totalmente partido. E eu lembro que em uma das crises depois do tratamento, quando os corticoides já não estavam mais fazendo efeito em mim, ela tomou conta do meu corpo. Eu tentei suicídio, eu tentei tirar a minha própria vida. Eu só não fiz isso porque eu tive medo de ter sequelas disso e acabar dando mais trabalho ainda e sofrimento para meu filho e meu marido. Eles foram as pessoas que me deram mais força e impediram que eu fizesse qualquer loucura na minha vida, porque eu estava a ponto de cometer suicídio sim.
P/1 - Mas você chegou a tentar?
R - Eu tentei remédios, eu tentei me enforcar. Eu pensei várias vezes. Fui no local, planejei tudo, mas na hora eu tinha medo. Meu filho, parece que ele adivinhava que eu não estava bem. Ele sempre chegava em mim e falava: ‘‘mãe, vai sarar, vai ficar tudo bem’‘. Ele pegava um algodãozinho e cuidava das feridinhas. ‘‘Mãe, vai passar, logo vai ficar bom’‘. Ele sempre foi a minha maior força nesse período. E meu marido também sempre me deu muita força. E depois que essa crise fortíssima atacou, eu lembro que eu vivia trancada dentro de casa. Eu não tomava sol, passei a não comer muita coisa. Meu marido chegava em casa e eu estava sempre do mesmo jeito: deitada no sofá, com o ventilador em cima de mim e só de lingerie, porque eu não conseguia me mover. Qualquer coisa que eu fizesse eu já queria me coçar. Eu já estava pegando uma escova de cabelo para me coçar. A minha pele estava totalmente cheia de feridas e até o meu rosto estava. Eu estava praticamente entregue à doença. Aí ele me pegou um dia, bem tarde da noite, eu me lembro, e falou: ‘‘chega. Eu vou te levar no hospital porque não estou aguentando mais ver você desse jeito’‘. E eu já não queria ir mais, porque já não tinha mais o que gastar, não tinha mais método para tentar fazer alguma coisa. E ele me trouxe no PAM aqui de Primavera do Leste e um médico do SUS, um médico que não tinha nenhuma especialidade na área, foi uma pessoa que falou assim: ‘‘eu vou te dar uma injeção. É corticoide. Você, até agora, tomou muito corticoide oral’‘. Eu levei todas as receitas, tudo o que eu tinha. ‘‘Mas tenta ter outros cuidados. A dermatite não é só stress que você passou ou só o que você encostou ali. Tem muito a ver com a sua alimentação, a sua hidratação. Tenta arrumar alguma coisa para você fazer na sua vida para que você faça toda vez que você se sentir nervosa. Uma atividade física, alguma coisinha para tentar espairecer, que você vê que prende muito o seu tempo, tira um pouco da atenção de outras coisas e, principalmente, evita comer certos alimentos, toma bastante água, tenta tomar algum suplemento como ômega três e alguma coisa assim, que funciona nesse sentido de anti-inflamatório. Tenta fazer isso e tenta se livrar um pouco de medicamentos tão fortes e tão invasivos como o corticoide, que só vai te dar efeito rebote. O que você está tendo agora é um efeito rebote’‘, que ele falou. Ou seja: o meu corpo não estava mais aguentando nenhum tipo de corticoide e estava botando para fora tudo aquilo que tinha. E foi onde eu comecei a ouvir as dicas dele. Tomei a injeção melhorei e a partir daquele momento comecei a me cuidar. Qualquer coisa que eu fosse tocar, eu me cuidava para não causar uma crise. Comecei a cuidar da minha alimentação e aí encontrei uma fitoterapeuta aqui na cidade, que trabalha apenas com plantas e coisas assim. Porque a minha avó tem muito de cura com plantas e coisas assim. A minha mãe trabalhava como auxiliar de uma fitoterapeuta lá no Paraná. Eu ouvi falar nessa mulher e lembrei da história da minha mãe, da minha avó e falei: ‘‘pode ser que funcione’‘, porque muitas coisas, minha mãe tinha chá e compressa para tudo. E encontrei essa mulher. O nome dela é Nair, aqui de Primavera do Leste e ela fez um tratamento comigo a base de chás, que limpava o meu organismo. Me deu suplementos para tomar e alguns chás para passar no meu corpo. E foi como tirar com a mão. Eu melhorei absurdamente. Eu passei a ficar uma semana sem crises, depois duas, depois três semanas. Eu consegui ficar seis meses sem ter crise nenhuma. Depois, quando as crises voltavam, eu fazia o tratamento com chás, cuidava da alimentação, tentava me controlar e não me coçar tanto. Usando dicas, assim. Foi por isso que eu criei o grupo, inclusive, no Facebook. Eu não tinha muito acesso, não conhecia ninguém com a doença na cidade. Eu nunca conheci ninguém com a doença. Não tinha nenhum tipo de acesso a isso. Eu criei o grupo e comecei a compartilhar essas dicas com eles. Como, por exemplo: ao invés de coçar alguma coisa, catar o secador de cabelo com o ar frio e passar em cima da ferida para coçar. Desde a primeira tatuagem que eu fiz e que as pessoas tinham muita vontade de fazer. Eu percebi que as pessoas não estavam tendo vida, como eu não tive por um período. E eu comecei a compartilhar cada coisa que eu fazia, cada coisa que eu usava, eu compartilhava no grupo. E foram vindo mais pessoas, mais histórias e eu, conhecendo as histórias deles e de crianças, principalmente, eu comecei a tirar o foco de mim mesma. Eu digo que a dermatite veio na minha vida para mudar o meu psicológico também, porque eu era uma pessoa muito focada em estética, superficial. E com a dermatite, eu comecei a perceber que nós somos muito além da pele, somos além de um corpo. Por trás de cada ferida, de cada ser humano com um problema, tem uma história de vida, um motivo por aquilo ali estar acontecendo e a dermatite mudou muito a minha forma de pensar e ver as coisas ao meu redor. Então, assim, com o grupo e conhecendo essas pessoas, eu comecei a tirar o foco de mim e percebi que as minhas crises, a minha doença, não eram nada se comparadas com as de outras pessoas que estavam passando por muito pior no grupo. Eu criei o grupo para ter ajuda, conhecimento, apoio. E eu acabei ajudando, dando conhecimento e apoiando. Foi muito bacana para mim, foi bom criar esse grupo, ter esse contato com as pessoas. Passar pela doença não é uma coisa fácil, mas eu tentei e tento até hoje a cada crise, a cada coisa que acontece, tirar algo bom. Tirar algo bom disso e parei de ficar focada só no desespero de tentar resolver aquela ferida de uma forma. Parei de me desesperar de ficar louca atrás de uma forma, uma cura ou alguma coisa assim. Eu passei a me aceitar muito mais e a lidar com a doença de uma forma um pouco mais, com outros olhos, eu diria.
P/1 - E quando uma pessoa desesperada no grupo te pede conselho, te pede ajuda, o que você fala?
R - A primeira coisa que eu faço é ouvir. Eu deixo livre o meu WhatsApp, o meu Messenger, qualquer tipo de coisa para a pessoa vir até mim. Eu deixo ela desabafar, porque, às vezes, ela vem para falar com você e você acaba falando e quando você vê, às vezes, ela queria desabafar. Eu percebi muito isso, que as pessoas precisam desabafar. Tem muitas mães que estão assim, ao ponto de: ‘‘nossa, olha, eu não sei o que fazer. Eu queria trocar de vida com o meu filho. Eu não sei o que fazer mais’‘. Tem muitos casos de pessoas que me procuram e me falam que tentaram suicídio e que deu errado e se viram no desespero que eu vi. E eu escuto. Eu acabei criando muitas amizades no grupo e que eu vou levar para a minha vida toda. De mães e de pessoas adultas que chegam para mim e a primeira coisa que eu faço é deixar a pessoa desabafar. Lavar a alma, eu diria, porque naquilo ali você acaba percebendo o que está acontecendo, porque aquela criança ou aquela pessoa está com tanta crise. Às vezes é algo que ela não está resolvendo no próprio emocional dela. É na vida dela mesmo que ela está com algum problema que está fazendo com que as crises fiquem mais fortes e está desencadeando uma crise de dermatite. Aí eu começo a perguntar que tipo de tratamento ela está fazendo, o que ela está usando, compartilho o que, se eu já usei e digo a minha experiência. Tento dar dicas. Não posso, acho antiético, acho errado, inclusive, indicar medicamentos, porque uma coisa que deu certo para mim pode não dar certo para a pessoa e isso pode dar um problemão. Mas se for coisas naturais, dicas de como aliviar a coceira: ‘‘não coça, tenta catar o ar, pega pedrinha de gelo, faz compressa com soro fisiológico, com chá de camomila, toma chá calmante, que te acalme. Tenta fazer alguma coisa, um yoga’‘. Eu aprendi a fazer crochê, uma coisa que eu odiava. Minha mãe é crocheteira, minha avó fazia aqueles balaios, aquelas coisas. Minha mãe é apaixonada por crochê e eu odiava aquilo, eu peguei muita raiva de crochê. Até de crochê eu peguei raiva da minha mãe. E quando ela veio em casa, que eu estava em uma crise e ela viu a minha situação, ela falou assim: ‘‘por que você não faz crochê? Eu te ensino crochê. Você vai passar o dia entertida ali, mexendo com aquela linha e criando e você vai ficar calma. Você vai se desestressar’‘. E eu comecei a fazer crochê e foi um achado para mim. Então, quando as pessoas me procuram, eu tento dar dicas para as pessoas fazerem isso. Procurar um esporte, uma academia, que seja, o yoga, faz crochê, um artesanato, vai fazer uma pintura. Às vezes, quando eu estou meio estressada, eu pinto até uma parede da minha casa. A minha casa é toda cheia de arte na parede e em alguns cantos, que eu gosto de fazer. Não tem mais onde enfiar crochê em casa, de tanto que eu já fiz. Toda vez que eu estou estressada eu vou fazer crochê, vou bordar. Eu procurei alguma coisa para tentar aliviar o meu estresse, para passar o meu tempo e para não ficar focada só na doença. Eu tentei fazer isso e eu tento tirar o foco das pessoas, um pouco, porque elas entram no grupo procurando uma solução, cura ou algo milagroso para a doença. Eu deixo sempre claro: você vai encontrar apoio e uma forma mais suave e mais tranquila de lidar com a doença. Se você vai ter de conviver com ela, não adianta viver brigando esmurrando e tentando lutar contra. Tenta fazer dela uma aliada ou tentar de uma outra forma aliviar a sua dor compensando com outras coisas. Eu descobri um dom, por exemplo, fazendo crochê, pintando alguma coisa, bordando e fazendo Eoutras coisas que eu não imaginava que faria. Talvez, se eu não tivesse, pela dermatite, ter de aliviar o meu stress de alguma forma, jamais teria feito isso. E é o que eu mais tento indicar para as pessoas e principalmente não ficar tão focada em estética: ‘‘mas eu gosto tanto de usar short e vestido, mas as minhas pernas estão cheias de manchas’‘. Podia estar o calor que fosse: eu vivia de calça, mesmo com a perna cheia de ferida. Eu enfaixava, o que é pior ainda, porque com o calor é muito pior. Eu enfaixava aquela ferida com gaze, colocava uma faixa, às vezes colocava um plástico filme para ficar de calça e ninguém ver a minha perna machucada e nem me perguntar. Porque o preconceito das pessoas... eu já vi mãe em supermercado e alguns lugares catando o filho e tirando de perto de você, com medo: ‘‘essa mulher deve ter uma doença muito grave e que passa’‘. E você vê que as pessoas te olham com maus olham e como se eu tivesse uma doença muito contagiosa. Então, as pessoas não tem conhecimento do que é a dermatite e não tem noção de que a dermatite não é contagiosa. E o preconceito delas, como diria a Clara, filha de uma amiga do grupo, minha, nós já temos feridas demais no nosso corpo e não precisamos de mais feridas na alma. Então, o preconceito ainda é muito grande e as pessoas sofrem muito com o preconceito. É algo que acaba afetando muito o nosso emocional e acaba piorando as crises também.
P/1 - Fora essa situação no supermercado você sofreu outras situações de preconceito, assim?
R - Eu já sofri da própria família, de achar que aquilo não era dermatite, de achar que aquilo era outra coisa, que passava. E ninguém nunca fala, mas indiretamente fica tirando uma coisa daqui, não quer que você encoste em outra coisa ali. Por mais que você tenha um diagnóstico e esteja fazendo um tratamento. Já aconteceu de uma tia minha me pegar e me levar em um determinado médico para ouvir do médico se era realmente dermatite, se não era alguma outra doença, porque eles acham que qualquer doença na pele, qualquer tipo de doença, é AIDS, é HIV, eles falam que é uma doença nesse sentido. ‘‘Essa doença deve ser alguma doença que alguém fez para você’‘. Eles já me fizeram procurar benzedor e pessoas que fazem trabalho porque eles tinham certeza de que era algum trabalho que tinham feito para mim, para a minha pele estar desse jeito. É bem complicado lidar com as pessoas por essa falta de conhecimento e muitas pessoas, às vezes, tem o conhecimento, mas preferem insistir em algo que elas planejam na cabeça delas, eu acho, e ficam insistindo com aquilo ali. É complicado.
P/1 - E me conta a história da sua tatuagem com relação à dermatite?
R - Eu sempre tive vontade de fazer tatuagem, desde a minha adolescência. E algumas ainda bem que eu não fiz, porque eu teria me arrependido hoje. Mas a minha primeira tatuagem eu quis fazer uma homenagem para o meu filho. O nome do meu avô é João, o nome do meu pai é João e eu sempre falei que se um dia tivesse um filho o nome seria João. E o nome dele é João. Eu queria fazer uma tatuagem que fosse diferente, para ele. Como a dermatite estava avançando no meu corpo, uma hora era na minha perna, mas de repente não era mais só ali. Ela passou para os braços e até que chegou ao ponto de ficar no rosto, em vários lugares. Ela não ficou em um lugar só. Aí o meu marido falava: ‘‘não faz, porque se você fizer...’‘ e o meu sonho de fazer uma tatuagem desde que nós casamos, dos 17 anos até hoje. Eu ainda tenho vontade de fazer outras. Se deixar, nós viramos um gibi. Eu sempre quis fazer e ele falou: ‘‘agora que você tem essa doença, como é que você vai fazer alguma coisa que é na sua pele? Vai acabar sendo pior’‘. Aí eu falei: ‘‘mas eu vou arriscar’‘. Eu tinha vontade de fazer uma tatuagem um pouco maior, mas eu falei: ‘‘vou fazer uma pequenininha para fazer um teste. Eu preciso saber. E se eu fizer e dar certo, não é?’‘. Aí eu fiz. Eu criei o desenho do meu filho, eu escrevi o nome dele: João, formando uma bicicletinha, na verdade. E falei para o meu amigo, o tatuador: ‘‘Fernando, eu quero uma tatuagem assim e assim. Eu quero bem pequena porque é um teste. Eu quero saber se o meu corpo vai resistir bem a aquilo ali’‘. No primeiro dia, eu fui para casa e ela estava perfeita. Depois, no segundo dia, ela começou a coçar e eu achei que fosse normal porque a tatuagem coça quando está cicatrizando, mas eu percebi no outro dia que ela começou a escorrer muito líquido, como se fosse um pus ou coisa assim. Aí, em volta dela, começou a surgir várias bolinhas. Aí elas foram espalhando e ficando até quase no meu cotovelo, em volta da tatuagem e eu percebi que era uma crise que estava dando. Aquilo começou a coçar demais e eu não resisti. Eu dormia de luva para não coçar. E se eu coçasse durante a noite, não ia agredir tanto com as minhas unhas. Inclusive, as minhas unhas estão curtas. A maior parte do tempo elas vivem curtas. Se eu tiver alguma crise ou alguma coisa eu corto porque eu sei que me coço durante a noite. No outro dia eu amanheci e a tatuagem praticamente nem existia mais. Parecia toda borrada e aí começou a criar uma casquinha, ficou vermelha, ficou muito feia. Mesmo assim, continuei tendo os cuidados que ele, o tatuador, tinha me passado, recomendado, usando as pomadinhas que eles tinha me passado. Só que a crise não melhorou. Aí, da tatuagem, foram dando outras crises. Comecei a ficar nervosa, estressada com isso e fui tendo crises em outros lugares, até que eu não tive como correr e passar uma pomada com corticoide em cima da tatuagem. E ele sempre me falou: ‘‘não use outras pomadas a não ser a que eu indicar porque pode borrar a tinta. Não vai ficar muito bacana’‘. E eu tive que passar a pomada com corticoide porque não ia cicatrizar. Estava com uma ferida muito grande aberta em cima da tatuagem. Depois ela cicatrizou. Demorou alguns dias para ela cicatrizar e ela ficou um pouco borradinha, mas não apagou totalmente a tinta. Com o passar do tempo, eu relatei tudo isso no grupo que eu tinha e as pessoas falaram: ‘‘então não vou arriscar e não vou fazer’‘, mas com o passar do tempo e com outras crises vindo, eu percebi que dava no meu braço inteiro, mas num círculo perto da tatuagem, numa área perto da tatuagem, não dava mais, não estava mais dando crise em mim. E aí outras pessoas começaram a fazer tatuagem e relataram as mesmas coisas, falando que deu na tatuagem uma crise muito forte, mas depois não estava dando mais. E eu resolvi fazer uma outra para fazer um teste e fiz uma no braço. Também deu uma reação na hora, assim, mas no braço que eu tenho a tatuagem não deu mais crises. Eu não sei o que tem a ver, que relação que isso tem com a dermatite, mas no braço não deu mais. Aí eu fiz uma terceira em homenagem ao meu pai que faleceu em 2016 e também não tive problema nenhum. E agora, os relatos que eu colhi no grupo, eles me disseram que toda tatuagem que fazem com tinta preta não dá reação. E quando dá, é uma no início, mas ela cicatrizou, acabou. Só que com titna colorida, onde tem a cor, principalmente vermelho, verde, amarelo, continua até hoje dando crise. Então, eu acho que tem alguma relação com tinta com alguma coisa assim, nesse sentido. Mas para mim foi libertador fazer tatuagem e para outras pessoas que também tinham vontade e viram relatos e acabaram fazendo também e teve relatos muitos positivos com relação a isso. Não teve problema nenhum com relação à tatuagem. Pelo menos isso. Nós não estamos privados de tanta coisa assim. Como eu sempre deixei muito claro no grupo: ‘‘não deixe de ter a sua vida. Eu privei muito a minha vida e não só com relação à dermatite, mas eu já tive complexos com várias coisas. Obesidade, com várias coisas assim. Era cabelo, pele, espinha na adolescência e eu percebi que quando mais nós colocarmos essas coisas na cabeça e nos preocuparmos demais...
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R - Porque como eu sempre deixei muito claro no grupo, não deixe de ter sua vida. Eu privei muito a minha vida, não só com relação à dermatite, mas eu já tive complexos com várias coisas, obesidade, várias coisas assim. Era cabelo, era pele, era espinha, não sei o que da adolescência. E eu percebi que quanto mais a gente começa a colocar essas coisas na cabeça, a gente fica preocupada demais, a sua vida vai passando, vai passando um ano, vai passando dois, você não vive, você existe só e você não faz nada da sua vida, porque você nunca vai ser perfeito. Até daquela pessoa que você olha e: ‘‘nossa, como eu poderia ser igual a fulano’‘, nem a fulana é igual ela mesma. Então, a gente se compara muito aos outros e aí a gente não é feliz com o que a gente tem. Então, você não precisa, por causa da dermatite, se limitar tanto. É que nem eu falo, você tem vontade de fazer uma tatuagem, botar um piercing, vai lá, tenta. Eu mesma já tive piercing, agora tenho só na minha orelha. Eu mesma já tive piercing que infeccionou, virou uma coisa, tirei, dei um tempo para o meu corpo, respeitei o meu limite, vi que aquele não era o local, que não era o momento. Cicatrizou, coloquei de novo e fiquei durante muitos anos com meu piercing, não tive problema nenhum, tirei agora, faz pouco tempo, da sobrancelha. Eu não usava short, saia, coisa curta, que mostrasse as minhas pernas, de forma alguma. Tanto é que quando alguém me via, que ia na minha casa, ou que via alguma foto que eu estava e eu estava com roupa curta, as pessoas comentavam: ‘‘nossa, que milagre, Márcia, você com a perna de fora, você nunca está assim’‘, e com roupa de manga comprida, eu sempre andei muito. Aqui eu ando por causa do sol, que é um pouco mais forte, mas eu nunca me mostrei. Não ia em rio, não ia em piscina, eu não aproveitava a paisagem maravilhosa que a gente tem aqui na região, por exemplo, por medo, por vergonha de mostrar as minhas pernas cheias de manchas, estria, consequências que a dermatite trouxe. Eu tinha vergonha. Nem o meu pé eu mostrava, de tanta vergonha que eu tinha. Mas eu passei a viver melhor a partir do momento que eu passei a aceitar isso e que comecei a perceber que a dermatite não ia me limitar tanto, que ela não ia ficar mais me limitando, que ela não ia mais ficar privando e que eu ia aprender a controlar ela, que ela não ia controlar minha vida, de tal, que eu tenho que viver, ou que eu tenha que fazer, mas que eu ia ser a dona de mim mesma e que eu ia aprender a lidar com ela. Não dá certo de um jeito? Então, vamos dentar de outra forma. E foi onde eu comecei a melhorar um pouco mais e é o conselho que eu sempre dou para as pessoas que me procuram, que estão no grupo, que têm acesso a mim. Hoje às vezes eu fico um pouco mais afastada do grupo, porque eu tenho uma vida um pouco corrida. Filho, casa, sempre tem visita na minha casa. Então, eu tenho uma correria um pouco maior, que eu acabo não participando tanto. Mas sempre que alguém me procura no privado, ou no grupo mesmo, eu tento dar a maior atenção possível e orientar o que eu passei, relatar a minha experiência, deixar as dicas do que eu puder lá e deixar bem claro isso, que você é dona do seu corpo, você pode controlar ela, você pode lutar, ter que conviver com a doença, então não deixa que ela faça você sofrer tanto, tenta procurar uma forma, se não tem um jeito, de uma forma ou de outra vai ter, então é isso o que eu mais tento pregar e conscientizar as pessoas.
P/1 - E agora que você adotou essas estratégias de prevenção, de controle, com que frequência são as suas crises, mais ou menos?
R - Algumas coisas assim, como uma mudança de clima, por exemplo. Esses dias eu tive uma crise, por exemplo, aqui em Mato Grosso, porque mudou o clima, agora a gente está num período bem crítico para a gente, que é época da seca, às vezes está um calor de dia, à noite muda. Então, começa sempre uma coceirinha aqui e outra ali. E eu evito medicamentos ao máximo, porque eu tenho medo do efeito rebote, que eu já sofri. Então, eu já tenho em casa meu sorinho, minhas compressinhas, aí minha mãe, quando ela vem para cá, ela tem muito conhecimento de várias plantas medicinais, inclusive, ela esteve aqui mês passado, a gente andou nos matos em volta da minha casa, ela já: ‘‘ai, isso aqui é bom, não sei o que’‘, e ela tem conhecimento. Com a fitoterapeuta eu pego dicas também, chás e tal. Eu tenho meio que a minha estratégia nesse sentido, assim, de cuidados mais naturais. E as crises às vezes duram, eu já fiquei dois meses sem ter crise, dependendo, eu já fiquei quase um ano sem ter crise nenhuma, dependendo do período. Agora, quando meu filho começa a ter, por exemplo, um problema na escola, ou épocas que eu tenho o trabalho mais puxado, aí eu fico mais estressada, eu percebo que eu vou entrar numa crise, eu tento parar a minha rotina, meditar um pouquinho, vou lá, faço um crochê, vou conversar com alguma amiga. Eu não bebia, nem tomava bebida alcóolica alguma por medo e eu sempre gostei de tomar um vinho, uma coisinha, uma cerveja. Hoje em dia eu vou lá, abro um vinho, tento relaxar, não deixo aquilo me dominar, tento tirar da minha cabeça o máximo possível, o máximo possível. E uma coisa que eu sempre aconselho muito as pessoas também, se puderem, procurar ajuda psicológica, porque ajuda demais também a você conseguir lidar, a entender um pouco mais as coisas e a lidar melhor com as coisas. Porque às vezes a gente fala, mas para quem está na situação é difícil, eu sei o quanto é difícil, você não vê luz no fim do túnel, você não vê saída, você não vê um lado B, você não vê saída. Só que se você tem conhecimento, ou está bem com você mesmo, você consegue, de alguma forma, pelo menos passar por aquela fase daquela crise na doença mais tranquilo, assim, sem deixar que ela te afete tanto. Hoje em dia eu tenho uma crise ou outra, eu já sei o que é, já penso: o que eu fiz? O que eu comi? O que eu usei? O que aconteceu? Eu já tento me cuidar nesse sentido e sei, vão ser três dias difíceis, depois eles vão passar, eles vão melhorar e eu aguento firme. E assim acontece.
P/1 - Então, o autoconhecimento é fundamental para o portador.
R - É fundamental. É fundamental, é fundamental mesmo. E muitas coisas você só vai saber, só vai conhecer quando você passar. Como por exemplo, o que você comer que vai desencadear uma crise, o que você usou. Eu não posso usar certos tipos de perfumes, certos tipos de comidas, assim, com corante, nada industrializado eu como mais. Tipo assim, cigarro, eu fumava, até um período eu fumei, até o cigarro atrapalha muito para quem tem dermatite. Então, muita coisa assim eu acabei tendo um conhecimento, testando, acontecia, eu ia lavar o cabelo, por exemplo, eu não lavo mais o cabelo deixando o xampu escorrer no meu corpo, é sempre com a cabeça inclinada, porque o resíduo do xampu que eu uso, por exemplo, vai dar uma reação no meu corpo, aí vou desencadear uma dermatite de contato. Então, são dicas, assim, são cuidados que você toma no seu dia a dia, que você talvez na hora não vê resultado, mas ao longo prazo, você consegue ver que melhora muito e que dá um resultado bacana e eu já consegui ficar quase um ano sem crises e foi muito tranquilo, assim, para mim nesse período, só que se eu me descuidar... eu diria que é um cuidado que você tem que ter para o resto da sua vida, é como uma pessoa que é diabética, mais ou menos, tem que ter.
P/1 - E essas plantas que a sua mãe e a sua avó falam, você pode citar algumas que ajudam?
R - Ela fala muito de uma tal de carobinha. A carobinha, lavanda, que são umas folhinhas, assim, com um cheiro muito bom, lavanda. A camomila. Para dor de cabeça, por exemplo, que às vezes eu estou com uma dor de cabeça, eu estou meio agitada, o chá de marcela, aquela marcelinha, que é uma florzinha também. Calêndula, a calêndula eu já indiquei para várias pessoas, inclusive, ela é muito boa para pele, tem gente que manda manipular pomadas. Capim-cidreira, que é um calmante maravilhoso, sempre aconselho também. Capim-cidreira, tem a erva-cidreira, que é uma folhinha. Barbatimão, que é uma coisa que tem muito aqui no cerrado mato-grossense, que eu não sabia do poder de cicatrização que ele tem. Óleo de Copaíba, que é um poderosíssimo cicatrizante também. São coisas assim que ela me indica. Algumas coisas, quando ela tem dúvida, ela fala: ‘‘eu vou levar essa aqui’‘, porque ela trabalha na pastoral da criança, assim, ela contribui muito lá com umas plantas, ela leva daqui para lá quando ela vai, inclusive. Ela fala assim: ‘‘eu vou confirmar com o pessoal da pastoral, tem as mulheres que têm mais conhecimento do que eu ainda em chás e vou confirmar se essa planta serve para tal coisa, daí eu te aviso’‘. Aí quando ela não tem certeza de uma coisa, ela nem me passa, ela nem fala. E, basicamente, o que eu estou me lembrando agora são essas plantas que ela sempre me fala. E eu achei maravilhoso, foi ótimo para mim. Gostei demais. É uma coisa que antes eu abominava na minha família, que era a coisa indígena, coisa de mato, e que hoje no que eu estou vivendo foi uma volta tão grande que o mundo deu, que eu estou colhendo os frutos daquilo que antes eu detestava. É como eu digo, a gente não pode dizer nunca: ‘‘dessa água não beberei’‘, eu sempre insisto. Eu falei tanto: ‘‘dessa água não beberei’‘, que hoje em dia eu faço até um chimarrão com ela. É basicamente isso.
P/1 - E vamos falar um pouco agora do nascimento do seu filho, como é que foi? Me conta.
R - Então, depois que eu tinha fugido com meu esposo, quase dez meses depois... ele sempre sonhou em ser pai, sempre quis ser pai e eu não tinha esse plano na minha vida, nunca sonhei em ser mãe, nunca me vi sendo mãe, dona de casa, esposa, nunca vi isso para a minha vida. Meu plano era morar sozinha, talvez um dia ter uma produção independente, eu sempre me vi sozinha, eu sempre fui muito isolada. Tanto é que eu tenho muitos amigos, só que as pessoas sempre notaram que eu sempre fui muito na minha, muito de não me envolver muito em nada.
P/1 - Mas então vamos aproveitar, o que você queria fazer? Assim, você tinha algum sonho profissional, uma carreira que você queria seguir?
R - Eu não tinha, na verdade. A única coisa, a meta da minha vida era não ser mais um bicho encurralado, eu diria, uma pessoa que as pessoas dizem que você tem que ir, o que você tem que vestir, como você tem que se comportar, com quem que você pode andar, porque fulano é bom, porque fulano não é. Eu nunca tive distinção com nada, a minha mãe, o meu pai, na cidade de onde eu vim, ele foi muito conhecido lá, porque ele tinha amizade com todo mundo e eu também sempre tive, nunca tive preconceito com gays, com lésbicas, com negro, indígenas, com ninguém. E já a minha família era muito de separar as classes, de separar as pessoas e de olhar para uma pessoa, por ela estar vestindo tal coisa ou ter uma tatuagem - porque tatuagem na família era algo, nossa, terrível - ela já era uma pessoa de má índole. Eu nunca tive, por exemplo, uma religião. Minha família é muito católica. Então, aí como ele sempre teve muita amizade com todo mundo, eu também tinha. E quando eu me casei e resolvi me envolver com meu marido, eu percebi que, tipo assim, eu não estava mais sozinha, eu não ia viver tão mais isolada, que eu ia ter que pensar no coletivo, ia ter que pensar num grupo e não viver pensando só em mim ou querendo me livrar de algumas coisas. E depois de um tempo que a gente começou a se envolver, a gente começou a ter um relacionamento mesmo, de marido e mulher, nós dois, eu engravidei do meu filho e ele sempre sonhou muito em ser pai, sempre quis muito ser pai. Apesar de que a gente não tinha uma estrutura bacana, a gente estava começando a vida, nós dois, ainda. Se fosse olhar bem, pensar bem, a gente devia ter planejado essa criança, essa gravidez, essa vida a dois, para depois acontecer. Só que depois que eu engravidei do João, a gente começou a correr atrás de tudo, arrumamos nosso cantinho, ele nasceu no Paraná. Foi o primeiro neto do meu pai, a minha família aceitou ele de uma forma, assim, nossa, muito grande, como se muita coisa do meu passado tivesse sido apagada, muita coisa do passado, da minha vida, eles quiseram preservar e não tocaram mais no assunto, para não perder contato com meu filho e comigo. Então, assim, depois que meu filho nasceu, a minha família acabou meio que não tocando mais em assunto nenhum, de conflito nenhum, de problemas com a minha mãe, não falaram mais nada, porque eles gostaram muito do meu filho, eles acabaram se envolvendo demais com ele, ele acabou cativando eles. Meu avô já é falecido, já, depois. E por ter sido o Joãozinho da família, todo mundo acabou meio apagando aquele passado todo, de tanto conflito que a gente teve e a gente acabou tendo uma relação mais bacana. Aí mudou muita coisa na nossa família, até o descobrimento do câncer do meu pai. Meu pai, em 2016, em setembro, meu pai foi diagnosticado com câncer. E como a minha mãe passou a ter acesso à minha vida, a gente tinha feito as pazes, depois que meu filho nasceu, a gente resolveu se falar de volta e ter uma relação bacana, a minha família começou a ter meio que picuinhas, assim não gostava que ela tivesse contato com o neto, eles não gostavam muito. Daí começou de novo aquela separação de querer que ele ficasse com contato só com eles e não com a minha mãe e meu pai, acabou aquele conflito de novo. Todas as vezes que meu pai vinha aqui em Mato Grosso me visitar mesmo foi motivo de muita briga entre eles lá, quando ele voltava. Minha mãe contava, minhas tias ficavam sem falar comigo, tenho uma tia que é, inclusive, madrinha do meu filho, de tanto que eu considerava, considerei muito ela. E não tenho problema, assim, até hoje, mas foi bem complicado, porque até para o meu filho quiseram passar mais ou menos aquela coisa de: ou você tem contato com um, ou você tem contato com o outro, de que lado você está? E eu nunca quis que meu filho passasse por isso. Tanto é que ainda bem que eu moro longe, eu digo, e ainda bem que eu não deixei que isso acontecesse. Esses conflitos afetassem ele. E depois, com a doença do meu pai, que a gente descobriu em setembro de 2016, as brigas na família voltaram pior ainda, porque daí começou a disputa para quem que ia cuidar do meu pai. Porque se minha mãe ficasse no hospital com meu pai, eles não podiam ficar. Se eles ficassem, não queriam que minha mãe ficasse. Daí começou uma disputa para ver com quem que ia ficar. Aí meu pai tinha alguns bens lá, um pouco de terra, um carro, algumas coisinhas lá que ficavam naquela história de que: ‘‘ah, ela só está...’‘, minha mãe, no caso, ‘‘ah, ela só está cuidando dele, só está ficando com ele aqui no hospital por interesse no que ele tem’‘, uma coisa assim, por pouca coisa começou briga. E começou vários conflitos depois da doença do meu pai, tive várias brigas com tias e tios meus, porque dentro do hospital, meu pai no leito de morte, eles brigando, um expulsando o outro do quarto e aquilo foi assim, eu tive que ir, fui para lá visitar meu pai depois da cirurgia que ele fez, voltei para cá e 20 dias depois me avisaram que ele tinha entrado em coma e que era para eu ir para lá, porque estava um clima terrível no hospital e meu pai confiava muito em mim, ele deixava muitas coisas na minha mão. Ele esperou eu chegar, eu cheguei num domingo lá, ele entrou em coma numa terça-feira e eu consegui viajar no sábado para lá, cheguei no domingo à tarde. E cheguei no hospital, peguei na mão dele, segurei na mão dele, ele ainda me reconheceu, tentou falar alguma coisa, só que como ele estava entubado, naquela situação, assim, ele não conseguiu me responder. E naquele mesmo dia, no domingo, já passava da meia-noite, 12:24, para ser mais precisa, ele faleceu nas minhas mãos. Ele esperou praticamente eu chegar. E ali foi onde eu deixei claro para a minha família: eu sepulto com meu pai toda a picuinha, toda briga, toda mágoa, toda intriga que teve até hoje. Se vocês não querem aceitar a minha mãe, se vocês não querem aceitar a minha irmã, porque é fruto de um relacionamento do meu pai com a minha mãe, vocês não gostam dela, tudo bem, mas eu não quero mais, a partir de hoje, nenhum tipo de intriguinha, não quero ouvir vocês falando mal de ninguém, da minha mãe ou de qualquer outra pessoa da família para o meu filho, quero que meu filho cresça sem saber que a família teve essa sujeiraiada, essas brigas, esses conflitos. Então, com o meu pai eu pretendo sepultar tudo quanto é mágoa, se vocês fizerem questão de fazer isso e de manter isso, a gente vai levar uma relação, eu diria que para o resto da vida, mas se vocês continuarem insistindo nessas brigas e, ‘‘ah, e agora, e os bens do seu pai?’‘, ou então voltando no passado de que: ‘‘ah, a sua mãe devia ter feito tal coisa, seu pai não teria morrido, não sei o que’‘, eu encerro com meu pai e sepulto com meu pai também qualquer relação que a gente tenha com a família. A partir de agora vocês estão livres, meu pai não está mais vivo, então não tem por que também a gente ter proximidade nenhuma. E não teve jeito, porque depois de alguns dias que meu pai faleceu, a gente teve briga para sepultar, porque eu queria sepultar meu pai num canto, eles queriam em outro. Teve briga para escolher o caixão do meu pai, teve briga para escolher roupa do meu pai, tudo teve muito conflito. E depois que meu pai foi sepultado, que a gente estava voltando a pegar as coisas dele, tirar tudo sítio e mexer com papelada de escrituras de inventário, essas coisas, vieram as brigas e acusações de que a minha mãe tinha envenenado o meu pai, por isso que ele teve câncer. Foram várias acusações. Foram muitas brigas. Muitos conflitos, assim. E a gente começou a descobrir coisas que as minhas tias fizeram, falavam, envolviam terceiras pessoas, armando planos para tentar separar meu pai da minha mãe. Tem coisas que eu sei hoje que as minhas tias armaram e que fizeram o meu pai sofrer muito, que uma pessoa depois, que é muito amiga da família, chegou em mim me pedindo perdão, falando que não teve tempo de pedir perdão para o meu pai, mas que fez ligações, fez coisas a mando das minhas tias, insinuando que a minha mãe teria casos com amigos do meu pai, para tentar separar. E meu pai, na época, assim, ficou muito magoado. Meu pai tomou veneno, tentou se suicidar na época, foi algo muito pesado para a gente e muito, assim, um choque. Eu era bem nova na época, a minha irmã também. E a gente não sabia que aquilo tudo era uma armação. E que depois de alguns anos também teve outro caso, outro episódio de ligações e de cartinhas e de coisas anônimas, que foram acontecendo com amigos da família do meu pai, amigos do meu pai, no caso, e que insinuavam que minha mãe teria caso com esses caras e não sei o que, e que, na verdade, eu fiquei sabendo agora, faz pouco tempo, que eram armações também, entendeu?
P/1 - Deixa eu entender uma coisa, essas suas duas tias eram solteironas?
R - Sim.
P/1 - Então, era a sua avó e as duas tias solteironas fazendo toda essa armação para separar o seu pai e a sua mãe?
R - Sim.
P/1 - Parece conto de fadas isso.
R - Parece, parece, parece mesmo.
P/1 - Que loucura.
R - Parece. Hoje em dia, assim, eu até visitei elas uma última vez, tudo acabou, no sítio que eu nasci, que tem lá do meu pai, é da minha avó também, era o meu recanto, era o meu paraíso. Meu vô sempre quis um sítio para ele chamar de seu e ser um paraíso, tipo assim, eu vou plantar várias frutas, eu vou ter uma mina d'água, eu vou fazer represas, tem um rio, eu vou fazer um sítio bonito com várias flores e vários lugares, assim, aconchegante. E é um sítio maravilhoso, que era, eles plantavam café, tinha as coisas que eles costumavam plantar lá. E depois que meu avô faleceu, ficou meu pai no sítio, minha mãe na casa deles, a minha avó e essas duas tias. Porque os outros irmãos casaram e foram para outras cidades. Uma outra tia veio para Arapongas e um tio para Maringá. E aquele sítio lá, enquanto meu pai estava vivo, era tudo do jeitinho que meu avô deixou, a maioria das coisas. E depois que meu pai morreu, elas se viram obrigadas a sair de lá. Minha avó nunca morou na cidade, nunca. A vida da minha avó sempre foi sítio, sempre foi colônia daqueles imigrantes de outros países, eles tinham as colônias, que eles chamavam antes, então ela sempre viveu nesse meio. Ela nunca morou em cidade. E quando meu pai morreu, alguns meses depois, eles ficaram sozinhos lá, a família, os parentes e amigos que antes viviam visitando eles lá e que gostavam muito do meu pai, passaram a não ir mais, ficou aquela coisa isolada. Esses tempos atrás, eu visitei a minha avó na casa que ela mora na cidade hoje, perto de Maringá, eles estão assim, minha avó, ela está só esperando o momento de ela partir, eu percebi que ela está uma pessoa triste, amargurada, ela não tem contato com familiares, ela não tem amizade nenhuma, ela não sai para nada, ela só fica dentro de casa, ela remói muito as coisas do passado, lembra do que ela podia ter feito, do que ela podia ter dito, lembra de situações do meu pai, só de tocar no nome dele, ela já não sabe falar no nome dele sem ter dor, sem sofrer muito. A gente entende que é mãe, mas por trás daquilo eu sinto que tem alguma coisa entalada, que acho que ela acha que ela deveria ter feito, mas não fez. E as minhas tias estão lá, sozinhas também, basicamente uma vida triste, eu diria, triste demais porque tinha tudo para não ser assim, porque hoje em dia...
P/1 - Você sabe por que as suas tias nunca casaram? Qual que é a história?
R - Olha, depois de conviver todo esse tempo com eles e ver essas coisas, eu imagino que talvez elas, por uma amargura da vida, ou sei lá. Porque teve uma delas que foi até noiva um período lá e não sei o que aconteceu, que elas não casaram. Não sei dizer muito bem o porquê que elas nunca quiseram casar. Eu sei que, tipo assim, muitas coisas, os bens da minha avó elas acabaram pegando para elas e, inclusive, agora, depois que meu pai faleceu, virou outra briga na família, porque os irmãos quiseram... inclusive não brigam ainda porque a minha avó está viva, mas todo mundo já está se preparando para quando a minha avó partir, virem para cima delas, porque muitas coisas elas acabaram tomando posse do que não era delas. E como a minha avó, ela não é alfabetizada totalmente, ela não mal assina o próprio nome, ela não tem noção do que ela está fazendo ou deixando de fazer, então isso acaba dando aquela atrapalhada e eles acabam usando de má-fé, todos os irmãos e outras pessoas acusam de que elas usam de má-fé para ir conquistando coisas, porque hoje em dia elas têm casa, elas têm terreno, elas têm alguns imóveis, algumas coisas, assim, que a gente sabe que não teria como elas terem de outra forma, elas nunca trabalharam assim, de registrado, ou fora de casa, alguma coisa assim, para ter o que tem hoje. Então, é mais um conflito grande que vai vir na família futuramente, depois que a minha avó partir, provavelmente.
P/1 - E me conta como é que foi a reconciliação com a sua mãe, então, depois de tantos anos estremecida, sem se falar?
R - Ela se deu depois que meu marido chegou em mim e falou: ‘‘olha...’‘, me perguntou por que eu era brigada com ela, porque depois que a gente fugiu, a gente começou a frequentar a casa da minha avó de novo, ele quis saber por que eu ia na casa da minha avó, mas eu não ia no meu pai e na minha mãe. E eu expliquei que eu não conversava com a minha mãe. Ele me perguntou quantos anos fazia, na época já fazia sete anos e alguma coisa. Ele me perguntou: ‘‘mas por que você não fala com sua mãe?’‘, eu não soube dizer, eu fiquei, assim, sem... eu usei as desculpas que as minhas tias deram para mim a vida inteira. Eu falei: ‘‘ah, porque ela nunca respeitou meu pai, porque ela traía meu pai, porque não sei o que’‘, toda aquela jogada que, na verdade, era uma encenação e nunca foi comprovado nada. E eu usava isso. E ele falou assim: ‘‘mas como? Quando alguém acusa uma pessoa, a primeira coisa que ela tem que fazer é provar que aquilo que ela está acusando é verdade ou não. Se você não tem provas contra a sua mãe, por que você está acusando ela? Você está condenando a sua mãe sem ao menos ter ouvido ela, sem saber. E outra, ela é sua mãe. Você já pensou se um dia você for mãe e seu filho fizer a mesma coisa com você, como é que vai ser?’‘. Mesmo assim eu não quis conversar com ela, não quis nenhum tipo de contato e ele não insistiu, ele respeitou meu momento, ele falou: ‘‘um dia você vai conversar com ela, um dia você vai procurar ela e vocês vão se dar bem, só que eu vou respeitar seu tempo e esse tempo vai chegar’‘. E depois que eu tive meu filho, aí a minha irmã foi morar comigo, porque a minha família, do meu pai, a minha irmã já estava uma mocinha e ela começou a namorar, se envolveu com um vizinho lá, que era muito amigo da minha avó e das minhas tias. E eles começaram a insistir nesse relacionamento, que ele era um cara bom, que minha irmã devia ficar com ele e aí minha irmã já não queria mais. Minha irmã falou que não estava gostando dele, que ele estava começando a beber, igual o pai dele tinha problema com bebida. E aí minha família insistindo e falando para o meu pai para arrumar logo um casamento para ela, porque ela ia acabar aparecendo grávida lá e vários problemas assim. E a minha irmã não queria, não queria e minha irmã me ligou um dia, foi passear na minha casa, ela pegou férias na escola e falou para mim: ‘‘Márcia, eu estou assim, assim, assado com o Vi, eu não estou feliz com ele, eu não estou bem’‘, eu falei: ‘‘larga dele, Denise, termina com ele. Se você não está bem...’‘, ela falou assim: ‘‘ah, mas e o pai, Márcia? As tias também só ficam falando para o pai que é melhor não insistir nisso logo, ele está até querendo vender a moto para comprar algumas coisas para a gente casar e tal’‘, eu falei: ‘‘Denise, se você não quer, não vá, não faça isso com a sua vida, você vai estar se envolvendo com a pessoa, corre o risco de formar uma família com uma pessoa que você não gosta’‘. Aí ela falou assim: ‘‘não, eu vou terminar com ele’‘. Chegou lá, ela voltou da viagem e foi terminar com ele, tentar terminar com ele, ele foi totalmente agressivo com ela, não aceitou o final do relacionamento. Parece que comprou uma arma, pelo que ela conta, não vou afirmar isso, porque não tenho como provar, mas parece que ele comprou uma arma, passou a ameaçar meu pai, minha mãe, todo mundo que não queria que ela se separasse dele. E a minha família, minha avó e minhas tias, todo mundo, principalmente as minhas tias, ficou muito em cima de por que ela estava se separando dele, por que ela tinha pedido o término desse namoro, sendo que ele era um rapaz bom, e insistindo naquele relacionamento, queria que ela ficasse com ele, porque, tipo assim, ele era uma pessoa que a família, que elas estavam aceitando. E a única solução para minha irmã foi fazer o que eu fiz, fugir também. A minha irmã também, com 17 anos, fugiu de casa, só que ela não fugiu para ficar com alguém, ela fugiu para vir morar comigo. E eu passei a ser responsável por ela, daí eu já estava com 19 anos e ela estava com 17. E ela também fugiu desse namorado dela e foi morar comigo em Arapongas. E depois que ela foi morar comigo em Arapongas, ela nunca teve problema com a minha mãe, ela passou a ter muito contato com a minha mãe, e a minha mãe sempre apoiando. E as vezes que eu ligava para a minha irmã, falava, a gente planejou tudo para ela fugir de lá de noite, pegar um ônibus e vim parar aonde eu estava, e eu comecei a falar com minha mãe por telefone e percebi que minha mãe, ao invés de empurrar ela para esse cara, ou por mais que o cara estivesse ameaçando, inclusive ela e meu pai, ela não teve medo, ela: ‘‘não, a Denise não vai ficar com um cara que ela não gosta’‘, não sei o que, ela apoiou demais a minha irmã, aí que eu percebi que minha mãe não era o monstro que pintavam para mim. E eu ainda comentei com meu esposo, falei: ‘‘poxa, eu achei que a mãe ia insistir nisso’‘, que minha mãe também é meio conservadora, a família da minha mãe também é daquele tipo: se envolveu com um cara, tem que casar. E ela não estava fazendo isso. E eu comecei a ver minha mãe com outros olhos a partir daquelas ligações. E a minha irmã veio morar comigo. Aí um dia minha mãe quis vir visitar a gente, somos só duas filhas, ela quis vir visitar a gente, ela perguntou, a minha irmã falou: ‘‘Márcia, a mãe quer vir me ver e ver você também e o João, ela não conhece o João ainda e tal’‘, o João já estava, na época, com quase nove meses, ‘‘ela pode vir aqui na sua casa? Ela vai ser bem recebida na sua casa?’‘, eu falei: ‘‘vai, Denise, ela vai ser bem recebida, pode falar para ela vir, que ela vai ser bem recebida’‘. Aí teve um imprevisto, que a gente acabou pegando férias antes e nós fomos antes para a casa deles lá. Eu fui para a casa da minha avó e minha mãe continuava morando do lado dela e nós acabamos visitando a minha mãe, eu fui antes na casa da minha mãe, eu abracei ela, a gente conversou, foi algo, assim, de ninguém se emocionar muito, foi algo como se a gente nunca tivesse se afastado. Levei o neto dela, ela pegou no colo, ela lidou bem com a situação, assim, e ela não ficou tocando em assunto nenhum, até hoje ela não toca no assunto do passado, só se eu perguntar alguma coisa. E a minha irmã foi morar comigo, ficou morando comigo até se casar. Depois a minha mãe começou a fazer visitas na minha casa, meu pai também. As minhas tias nunca foram. As minhas tias, quando a minha mãe pegava o meu filho no colo, por exemplo, elas davam um banho no meu filho para pegar meu filho depois. Quando eu ia para algum lugar e deixava, porque meu pai era muito apegado ao João, é o único neto, o primeiro neto, ele era muito apegado ao João, e quando eu saía para algum lugar ou o meu pai queria levar meu filho para algum lugar, ele ia pescar ou fazer alguma coisa, eu falava: ‘‘pai, eu vou para a cidade, eu vou resolver alguma coisa, fica com o João, o senhor cuida do João’‘, e tal, falava isso para as minhas tias. E quando eu via, chegava em casa, ele estava sempre trancado na casa das minhas tias, porque eles não queriam que o João ficasse indo com o meu pai para a casa dele, por causa da minha mãe. Então, até nisso teve conflito. Só que quando eu chegava, as coisas mudavam um pouco. Mas até nisso teve conflito. E eu lembro que uma vez o meu filho pegou e... eu não lembro o que minha tia falou que ia dar para ele de presente, que ele queria muito. E ele brincou comigo e falou assim: ‘‘mãe, a tia vai me dar...’‘, eu acho que era um tratorzinho, uma coisa assim, que ele gostava muito. ‘‘Ela vai me dar um tratorzinho e eu vou morar aqui com ela, mãe’‘. Nossa, aquilo eu me vi, eu me vi na pele do meu filho. Eu me vi. Só que ainda bem que eu já tinha passado por aquela história, morava em outra cidade, a cena já não ia mais se repetir, não ia permitir que aquilo acontecesse de forma alguma. E foi quando, assim, a nossa família praticamente mudou. Elas tiveram que engolir o fato de eu ter voltado a falar com a minha mãe, elas tiveram que engolir o fato do meu filho ter convivência com a minha mãe, de o meu pai vir me visitar aqui em Mato Grosso, nunca elas vieram visitar. Tio meu, nunca, ninguém, apenas meu pai e a minha mãe veio visitar a gente, veio ver o neto e só eles fizeram essa questão. Só eles se preocupavam em dar um jeito. Meu pai nunca teve acesso a redes sociais, essas coisas, a minha mãe agora que está tendo, mas ele dava um jeito de ligar de uma operadora para outra na época, ficava caro, mas todo aniversário que tinha, qualquer coisa, ele ligava, ele dava um jeito de vir aqui para ver, fez sempre essa questão. Já as minhas tias que diziam ter tanto apego, tanto carinho, tanta coisa, elas nunca moveram uma palha, eu diria, para fazer esse tipo de coisa. Então, o tempo passou, a gente amadureceu, todo mundo, a gente aprende muito mais observando do que às vezes ouvindo. Eu comecei a observar muito as coisas que estavam acontecendo em volta na nossa família, o que tinha levado aquilo acontecer, eu percebi que eram preconceitos, eram bobagens, eram por teimosias que as brigas e as coisas tomaram a proporção que tomaram. Então, foi um período assim, que a gente superou de boa, hoje a gente não tem mais trauma disso, mas a família não é mais como antes, não posso dizer que eu tenho uma relação bacana com a minha avó, com as minhas tias, eu não posso dizer isso. Futuramente eu não sei como é que vai ser a relação com o meu filho, delas com o meu filho, eu não sei o que elas vão falar para o meu filho futuramente. Eu não quero tocar nesse assunto, não quero deixar que ele sofra essas mágoas, que ele tenha essas feridas, que ele carregue isso para a vida dele. Mas foi algo bem complicado, assim, que a gente passou, mas que finalmente, felizmente acabou bem, eu diria que acabou bem. Depois que meu pai faleceu, a gente resolveu tudo certinho. Eu olhei para a minha mãe, falei: ‘‘mãe, agora somos nós três, eu você e a Denise’‘, acabou. Vai ser nós três e está tranquilo. Hoje em dia minha mãe viaja, minha mãe passeia. Aqueles amantes, aqueles caras, ‘‘ah, quando seu pai morrer...’‘.
P/1 - Quando seu pai morresse, ela ia...
R - Isso. Então, aí hoje a minha mãe, ela tem uma vida, depois que meu pai faleceu, ela tem a vida que ela queria, as liberdades, as coisas que ela não vivia antes, ela está tendo agora. Então, assim, aqueles amantes, aquelas coisas que sempre foram plantadas na nossa cabeça e na cabeça do meu pai que ela tinha, que quando meu pai fosse sepultado, ela já ia aparecer com um amante ou um cônjuge em casa. Já se passou algum tempo e ela está viajando, hoje ela conheceu praias, lugares e coisas que nem eu conheci ainda. Ela está tendo oportunidade de conhecer e de viver. E assim, as coisas acabaram bem. Eu diria que terminaram bem nesse aspecto. A minha família continua com muita raiva, muita mágoa, só que como eu sempre disse para a minha mãe, para a minha irmã, isso são pesos que eles estão carregando, que é deles carregar e deixa eles carregando, não vamos mais compactuar com isso, isso não vai afetar a nossa vida, a nossa família. Hoje a gente está unido, a minha irmã vem me visitar tranquilamente. Hoje a minha irmã se casou também, está no relacionamento que ela sempre quis ter, com a pessoa que ela ama de verdade, está feliz. A minha família não precisa mais do que isso para ser completa, nós temos grandes amigos, a gente acabou construindo outras famílias aqui. E assim, não faço questão de manter uma relação bacana, porque muitos primos que a gente cresceu junto, que a gente brincou junto por parte do meu pai, hoje em dia se afastaram também. Nunca fizeram questão de perguntar o porquê que aconteceu, por que tantas intrigas, por que tanta briga. E acabou assim, que a família ficou dividida por uma coisa que ninguém sabe explicar o porquê, não tem um motivo óbvio, a não ser um preconceito, uma picuinha, uma teimosia e uma coisa de não dar o braço a torcer, de falar: ‘‘não, João, a gente aceita o seu relacionamento, a gente aceita a sua vida’‘, ‘‘não, João, a gente aceita a sua esposa, o que você escolheu para a sua vida. Desde que vocês vivam bem e sejam felizes’‘. Eu gostaria muito que minha avó, por exemplo, tivesse dito para o meu pai o que eu ouvi dela depois de alguns anos, que eu estava com o meu marido. Que eu ainda perguntei, comentei com ela, falei: ‘‘nossa, vó, eu achei que vocês não iam gostar dele’‘, porque a mãe dele é amiga da minha mãe, eu fugi com o cara que eu descobri futuramente, depois de um tempo, que a mãe dele era muito amiga da minha mãe. E a minha avó falou assim: ‘‘olha, a única coisa que eu desejo para vocês dois...’‘, ela sentou com a gente, eu e ele um dia e falou antes de a gente vir embora para o Mato Grosso, ela falou: ‘‘olha, eu desejo que vocês dois sejam muito felizes, ele é o cara que você escolheu. A única coisa que eu peço para você...’‘, falou para ele, ‘‘é que sempre respeite ela, que você, Márcia, sempre respeite ele, que vocês vivam bem, que vocês eduquem os filhos de vocês da melhor forma possível e que jamais sequer levante um dia a mão ou a voz um para o outro e vivam com respeito’‘. Era o que eu mais desejava que eles tivessem feito, era, digamos, que essa benção que eu queria que minha avó tivesse dado antes, lá no início, para o meu pai e para a minha mãe e que teria evitado tanta coisa que aconteceu até 2016, final de 2016 e até hoje teria, se a gente tivesse tido um contato mais próximo e mais contatos, teria evitado se ela tivesse feito isso. Porque se a pessoa não passar por certas experiências... o relacionamento da minha mãe durou muito tempo, até meu pai falecer, foram 20 e poucos anos, acho que 28 anos, uma coisa assim, de casamento. Então, em 28 anos dava para vocês saberem se realmente a pessoa era uma coisa ou não. Meu pai poderia ter se separado da minha mãe, se ele quisesse, por vontade própria, eles poderiam ter aceitado ela. Eles poderiam pelo menos ter engolido, falado: ‘‘não, fulana, eu não gosto de você, mas o meu filho gosta, vamos ter respeito um pelo outro’‘. Não precisava ter armado tanta coisa, como foi armado, não precisava ter julgado como foi julgado, colocado uns contra os outros, porque teve familiares que participaram, minha mãe conta, do casamento dela, da vida dela, que tinham amizades com ela e com meu pai no início do relacionamento deles que depois, do nada, simplesmente nunca mais cumprimentavam e eles não iam mais na casa da minha mãe e que por picuinhas e por conversinhas por parte da família do meu pai, acabavam se afastando deles dois e isolando. Quantas e quantas festas de família que tinha na casa da minha avó, aniversário do meu avô ou comemoração do aniversário da minha avó, a festa de casamento deles, que minha avó e meu avô ficaram casados bem mais de 50 anos, eles fizeram uma comemoração. A minha mãe ficava simplesmente sentada sozinha na casa dela, do lado, enquanto todo mundo estava lá festando, ninguém se manifestava nem para dar um pratinho de alguma coisa, ou falado: ‘‘não, vem, vem participar’‘. A partir de um tempo passado, depois, que minha mãe começou a perceber que quando tinha alguma festa, e por meu pai querer evitar, meu pai sempre querendo evitar brigas, acabavam isolando minha mãe e ele ficava em cima do muro, na verdade, nunca ficou de lado nenhum. Então, meu pai acabou não tendo lado nenhum.
P/1 - E conta para a gente da sua vinda para o Mato Grosso e como é a sua vida hoje em dia aqui?
R - Então, eu vim para cá no Mato Grosso em 2012, final de 2012, novembro de 2012. Eu morava em Arapongas. E aí meu marido teve uma proposta de trabalho em Mato Grosso do Sul. E chegou ali, ele fez todo plantio de soja para o rapaz que ele veio trabalhar, para o homem que ele veio trabalhar e tudo certinho, aí depois estava tudo feito numa região que tinha muito gado, ele decidiu não plantar mais soja, porque não compensava investir para trazer máquina, essas coisas de lá para cá, na época era puxado para ele. E dali a gente resolveu não voltar para o Paraná, não quisemos voltar para lá e a gente resolveu vir para cá, para o Mato Grosso mesmo. A gente estava no Mato Grosso do Sul e resolveu vir para cá, porque ele já tinha trabalhado aqui antes, conhecia, e nós viemos para cá. E no começo, assim, foi bem complicado. Depois do acidente de carro, que a gente perdeu o carro e aí eu fiquei doente, depois que eu me recuperei, estava lidando melhor com a situação, meu filho ficou doente, teve um início de uma pneumonia, ele vivia internado, deu vários probleminhas, a gente várias vezes pensou em desistir, em voltar para trás, em tentar outra coisa. Mas os anos foram passando, a gente foi se ajeitando e hoje, assim, a gente vive muito bem, muito bem mesmo, eu não tenho mais vontade de voltar para o Paraná, muito pelo contrário, se eu puder trazer minha mãe e minha irmã para cá, eu vou trazer. Tenho muita vontade, estou até planejando trazer minha irmã para morar para cá, que ela já está gostando da região, ela gosta demais daqui, então a intenção nossa é continuar nossa vida aqui, em Mato Grosso. A gente se adaptou muito bem ao lugar, a gente teve paz, a gente conheceu animais e, tipo assim, uma natureza, as coisas diferentes, que a gente não tinha no Paraná. Estamos longe de toda aquele bolo que era, de família, não sentimos falta nenhuma, não só eu, como meu esposo, vive super bem também. Nosso filho ama esse lugar, ele está sendo criado de uma forma muito tranquila, muito livre, com contato com muita natureza, com muito animal, com pessoas, assim, que acolheram a gente aqui, de uma forma, assim, que eu nem sei dizer. Foi mais que a nossa família. Então, hoje eu diria que nós estamos muito bem aqui em Mato Grosso, estou muito feliz, não tenho vontade de voltar, ir embora, de começar tudo de novo. Muito pelo contrário, sempre falo para a minha mãe, para a minha irmã para apagarem a vida delas lá no Paraná, tudo o que aconteceu, eu desapegarem, a minha mãe ainda tem minha avó, que ela mora com a minha avó hoje, cuida da minha avó, então ela tem uma certa coisa que ainda prende ela lá. Mas eu falo para vir para cá, para a gente ficar nós aqui, ter a nossa vida aqui, porque está sendo muito bom. Eu gosto demais daqui.
P/1 - E o que que você faz hoje em dia? Como é sua rotina?
R - Agora eu estou trabalhando, eu sou autônoma, na verdade. Terceirizo um serviço de marmita, essas coisas, assim, para a fazenda lá. E meu esposo, ele trabalha como operador de máquinas, tudo que for em geral lá na fazenda, ele faz. E meu filho estuda numa escola rural, lá próxima de onde a gente mora, tudo muito tranquilo, muito simples, muito bacana, com as coisas da região, assim, a vida nossa é muito mais tranquila agora. Não sinto falta de nada lá do que eu vivia, do que eu tinha lá no Paraná, viu? Muito bom.
P/1 - Muito bom. Vamos já finalizar. Eu queria te perguntar o que você achou dessa iniciativa, desse projeto, de a gente entrevistar portadores de dermatite atópica, ouvir as histórias deles, o que você acha disso?
R - Eu achei maravilhoso, achei uma ideia maravilhosa, porque no início do grupo, em 2014, quando eu criei e começaram as primeiras pessoas a aparecerem, a gente percebia que ninguém falava disso e o quanto a gente queria falar, o quanto as pessoas queriam falar sobre isso. E quanto mais preconceito a gente... eu ouvia relatos, eu sofria, a gente escutava, assim, e foi vivenciando isso, eu percebia que a gente precisava falar mais sobre dermatite atópica. Precisava botar a boca no trombone mesmo e mostrar para as pessoas que isso não é contagioso, como que funciona, que por trás daquelas pessoas com aquelas feridas na pele, com aquele histórico, existem seres humanos com histórias bacanas, com histórias de superação, de sofrimentos, de luta e muitas histórias bacanas, mas que as pessoas só olham a estética, só olham uma pele. Então, assim, eu achei maravilhoso o projeto, eu achei bacana falar sobre isso. Tanto é que quando eu recebi o convite, que eu abri meu e-mail, até não acreditei, fiquei pensando: ‘‘será que não é uma armação, alguma coisa?’‘, não acreditei e fiquei muito feliz. Ainda agradeci muito a Taís que indicou, que falou sobre mim, por estar participando disso e poder contar um pouco a minha história e principalmente por falar sobre o que mudou na minha vida a dermatite atópica. Porque eu falei, eu sempre comentei isso com meu esposo, alguém precisa saber a reforma que teve na minha vida, porque, olha, eu que nunca... todo mundo sempre fala: ‘‘ah, mas você precisa tirar algo bom daquele sofrimento ou daquilo que você está passando’‘, e eu sempre achava que aquelas pessoas eram loucas, eu falava: ‘‘como é que tem algo bom nisso? Não existe algo bom nisso’‘. E eu sempre fui muito de ser muito ingrata, eu nunca fui de agradecer, nunca fui de ver o lado bom das coisas, eu fui muito pessimista. Mas depois que aconteceu tudo isso na minha vida, eu diria que eu mudei demais, que a dermatite mudou a minha vida e não foi para uma nem duas pessoas que eu já disse isso, que eu vejo o mundo de outra forma hoje. Eu educo meu filho de outra forma, eu conscientizo pessoas de outra forma, eu vi a minha família, as coisas assim, ao meu redor, e o que aconteceu comigo mesmo, de uma forma totalmente diferente. Para mim foi muito bom. E falar sobre isso, principalmente, está sendo maravilhoso também.
P/1 - Como você se sentiu de participar dessa entrevista, contar a história da sua vida? Como é que foi essa experiência?
R - Foi maravilhosa para mim, maravilhosa. Eu sempre tive vontade de relatar, de falar sobre isso e contar em detalhes para vocês que muita gente, amigos até, próximos, não sabiam da história da minha família, da história da minha filha, da doença. Tem muitos amigos meus e familiares que não sabem que eu tenho a doença. Até a minha irmã mesmo, pouco tempo atrás agora que ela soube que eu tenho a doença. E para mim foi muito bom falar sobre isso, eu adorei. Adorei demais de participar do projeto.
P/1 - E qual é seu sonho hoje em dia? O que você quer para o seu futuro?
R - Olha, eu acho que para mim, eu diria que eu vivo um momento muito bom na minha vida e eu acho que eu estou onde eu deveria estar. Eu faço o que eu gostaria de estar fazendo. A única coisa que eu sonho ainda é mais para o meu filho. As coisas estão indo num caminho tão bacana na nossa vida, na minha e da minha família, na minha vida, que eu não diria que eu tenho planos futuros, de sonhar tal coisa. Acho que a única coisa que eu ainda comento com meu esposo, é que a gente se vê juntos, velhinhos, continuando morando no meio do mato, num cantinho só nosso, para a gente estar sentado de um lado, tacando milho para os peixes ou para os pombos, é o que eu quero para mim. Eu quero paz, eu quero tranquilidade, eu quero uma vida calma, quero ver meu filho bem encaminhado, sem conflitos, viver em harmonia, eu diria. Viver em harmonia com todo mundo, sem ter nenhum tipo de conflito, simplesmente livre de qualquer corrente que aprisiona a gente, seja ela do preconceito, seja da intolerância. A gente aceitar as diferenças, aceitar que o outro é diferente da gente, que ele tem vontades diferentes da gente e, principalmente, o que eu sonho não é muito para mim, assim, como eu faço parte do grupo de dermatite e estou nesse meio, eu sonho muito para os outros também, que um dia possa existir uma cura, que um dia possa vir essa cura, para essas crianças principalmente, que sofrem tanto, que sofre a criança, sofre a mãe. Porque a gente que é adulto, lidar com a doença já não é fácil, para uma criança é pior ainda. Então, o meu sonho hoje, eu diria que não é para mim, mas é de uma forma, ou que a medicina, que alguém invente ou estude, ou dê mais visão, ou fique mais focado, um pouco mais, nessa doença que afeta ainda muitas pessoas e tira a qualidade de vida de muitas pessoas. E que eu ainda sonho que um dia a gente vai encontrar, não sei se é cura, mas uma coisa que as pessoas possam viver de boa, sem sofrer tanto, como têm sofrido com a doença. Esse é o meu sonho no momento, assim, não para mim, mas no geral, assim, eu penso.
P/1 - E tem alguma coisa que você gostaria de ter contato para a gente, que você não contou? Enfim, se você quiser, fica à vontade.
R - Não tenho.
P/1 - Compartilhar alguma coisa.
R - Basicamente, é isso mesmo. A única coisa que eu me lembro, como eu disse no meio da conversa, eu nunca tive o sonho de ser mãe, mas meu esposo sempre quis, a gente tem o nosso filho ali, saudável. E quando eu estava fazendo a consulta, que eu tive o diagnóstico, eu me lembro de ter ouvido do médico que o meu filho poderia...
P/1 - Quando você foi diagnosticada, o médico...
R - Isso, o médico me perguntou se na minha família teria alguém que tem dermatite já, rinite, bronquite ou alguma das ites, ele falou. E eu lembro da minha mãe, que a minha mãe sempre sofreu muito com bronquite, asma, rinite. E ele me disse: ‘‘olha, toma cuidado, porque as chances de o seu filho desenvolver dermatite, é muito grande. Se ele não desenvolver dermatite, ele vai desenvolver rinite, alguma outra doença’‘. E realmente, meu filho tem rinite alérgica. Então, assim, o meu medo eu acho que é o medo da maioria das pessoas que hoje eu vejo no grupo e que tem muitas mães que têm dermatite e os filhos herdaram a dermatite. Então, eu sou muito grata pelo João não ter dermatite. Espero que futuramente ele não desenvolva também dermatite. E eu diria que se eu já não tinha vontade de ter um segundo filho, nunca esteve nos meus planos, eu acho que a dermatite me fez pensar muito mais nisso, porque eu fiquei com mais medo ainda de desenvolver isso numa criança, porque acompanhando de perto o sofrimento dessas crianças e essas mães, e a luta que é, eu não consigo ver e imaginar sendo mãe de uma criança com dermatite atópica, porque eu não sei... as mães, eu admiro demais, eu queria deixar aqui o meu parabéns, não tenho nem palavra para dizer o que eu vejo nessas mães, que superam e que lidam com essas crianças com esse sofrimento tão grande, porque eu não sei se eu conseguiria lidar com isso, porque é um sofrimento psicológico muito grande, é muito grande, nossa, é tremendo.
P/1 - Muito obrigada, foi incrível, foi um prazer ouvir a sua história.
R - Eu que agradeço.
[01:58:21]
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