Heranças e Lembranças
Depoimento de Jack Henry Franco
Entrevistado por Paula e Helena
Rio de Janeiro, 04/08, 26/08 e 05/09/1988
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número HL_HV052
Revisado por Genivaldo Cavalcanti Filho
P/1 - Bom, Sr. Franco, eu gostaria de começar a entrevista pedindo pro senhor nos dizer o seu nome completo, data de nascimento, cidade, país, filiação. Por favor.
R - O meu nome originário era Giacobbe Franco. Nasci em Rhodes, na Ilha de Rhodes, em dezessete de julho de 1926. Na época do meu nascimento, Rhodes já era italiana, colônias italianas. Portanto, toda a minha formação foi feita em colégios italianos e na Aliança Francesa de Rhodes.
P/1 - O nome dos seus pais?
R - Os meus pais… O nome hebraico, o nome que ele usava era Hiskia Franco. E da minha mãe é Vida Franco. Meu pai faleceu há uns quinze anos. Tenho sorte de ter minha mãe viva, que mora em Los Angeles, Califórnia.
P/1 - E o senhor tem irmãos?
R - Tenho três irmãos. Um é médico em San Antonio, Texas. Tenho uma irmã casada, com filhos e tudo, que mora também em Beverly Hills, Califórnia. E tenho - tinha, infelizmente perdi o irmão mais velho de câncer, dois anos atrás. Os nomes deles eram Aaron Franco, Alberto e ...
P/2 - O médico era Aaron?
R - Não. O médico era... É Alberto Franco. Ele vive em San Antonio, Texas. Naturalmente, os visito uma vez por ano, no mínimo.
P/2 - E a sua irmã, qual o nome dela?
R - Selma Franco.
P/2 - E o seu irmão que faleceu?
R - Aaron Franco.
P/2 - Porque aí o senhor vai citar este...
R - Sim. Exatamente.
P/1 - O seu pai e a sua mãe já eram nascidos em Rhodes? Eles são originários de Rhodes?
R - São todos de Rhodes. E a minha família é… De origem vem da Espanha. Depois da expulsão da Espanha, onde todos os judeus tiveram de sair, a família parece que foi… Migraram para a Itália. Depois da Itália, na época o Império Otomano precisava, abriram as portas para muitos judeus...
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Depoimento de Jack Henry Franco
Entrevistado por Paula e Helena
Rio de Janeiro, 04/08, 26/08 e 05/09/1988
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número HL_HV052
Revisado por Genivaldo Cavalcanti Filho
P/1 - Bom, Sr. Franco, eu gostaria de começar a entrevista pedindo pro senhor nos dizer o seu nome completo, data de nascimento, cidade, país, filiação. Por favor.
R - O meu nome originário era Giacobbe Franco. Nasci em Rhodes, na Ilha de Rhodes, em dezessete de julho de 1926. Na época do meu nascimento, Rhodes já era italiana, colônias italianas. Portanto, toda a minha formação foi feita em colégios italianos e na Aliança Francesa de Rhodes.
P/1 - O nome dos seus pais?
R - Os meus pais… O nome hebraico, o nome que ele usava era Hiskia Franco. E da minha mãe é Vida Franco. Meu pai faleceu há uns quinze anos. Tenho sorte de ter minha mãe viva, que mora em Los Angeles, Califórnia.
P/1 - E o senhor tem irmãos?
R - Tenho três irmãos. Um é médico em San Antonio, Texas. Tenho uma irmã casada, com filhos e tudo, que mora também em Beverly Hills, Califórnia. E tenho - tinha, infelizmente perdi o irmão mais velho de câncer, dois anos atrás. Os nomes deles eram Aaron Franco, Alberto e ...
P/2 - O médico era Aaron?
R - Não. O médico era... É Alberto Franco. Ele vive em San Antonio, Texas. Naturalmente, os visito uma vez por ano, no mínimo.
P/2 - E a sua irmã, qual o nome dela?
R - Selma Franco.
P/2 - E o seu irmão que faleceu?
R - Aaron Franco.
P/2 - Porque aí o senhor vai citar este...
R - Sim. Exatamente.
P/1 - O seu pai e a sua mãe já eram nascidos em Rhodes? Eles são originários de Rhodes?
R - São todos de Rhodes. E a minha família é… De origem vem da Espanha. Depois da expulsão da Espanha, onde todos os judeus tiveram de sair, a família parece que foi… Migraram para a Itália. Depois da Itália, na época o Império Otomano precisava, abriram as portas para muitos judeus para ir a Rhodes e eles optaram por ir. Agora, a minha família tem muitas raízes, não sei quantas gerações, que já nasceram em Rhodes.
P/1 - O seu sobrenome Franco é de origem… Espanhola?
R - Espanhola. Da parte da minha mãe é Touriel.
P/1 - Solteira.
R - É. Eles também são de origem espanhola, pegaram o nome de família de uma província na Espanha que se chama Teruel. Tem outras famílias Touriel também. Tanto é isto que a nossa tradição lá em Rhodes… Falava-se em espanhol, o ladino, que era um espanhol antigo; era a nossa língua interna, de casa. Só se falava espanhol, entretanto fomos educados em italiano, francês. Mas o que se falava em casa era o espanhólico, que nós chamamos espanhólico.
P/2 - Espanholado, também, às vezes.
R - É. Exato. Isso é típico dos sefaradim que vieram de origem da Espanha. Tem muitos sefaradim dos países árabes que não falam espanhol, só falam árabe, mas nós falamos espanhol. E, naturalmente, temos este costume que ficou por séculos e séculos.
P/2 - Vocês não falam o árabe?
R - Não. Eu não falo árabe, infelizmente. Gostaria até de… Mais línguas é bom saber, tantas línguas. Falo cinco, seis línguas; o espanhol era o nosso dia a dia, a língua de casa, a língua materna. Mas a língua de estudo foi italiano e francês. Isto em Rhodes.
P/1 - E os seus avós? O senhor conheceu avô paterno, materno? O senhor pode dar os nomes pra gente?
R - Infelizmente… Os meus avós paternos se chamavam Aaron Franco, o meu avô paterno, e meu avô materno se chamava Iacob Touriel. Tive a sorte de conhecer o meu avô materno, nos Estados Unidos, Iacob Touriel. Infelizmente não tive a sorte de conhecer meus avós paternos, que já tinham morrido quando… Mas lembro que meus pais sempre falava deles, assim, de… Tem uns casos, que depois eu vou contar, que são muito interessantes.
P/1 - Eu gostaria que o senhor nos desse, tentasse nos dar um apanhado da casa que o senhor morava, em Rhodes. O senhor morava no centro da cidade? Em que cidade ou em que bairro, município, eu não sei...
R - Não. Nós morávamos no que se chamava… Como toda colônia ou grupo de judeus, em Rhodes nós tínhamos, éramos todos na judere… Juderia. Como é? Onde tinha o nosso… Era só dos judeus que moravam lá. Era o bairro dos judeus. E éramos todos juntos, por uma questão até de proteção porque em Rhodes, basicamente, a população, quase a maioria são gregos e tinha muito antissemitismo na época. Então nós, eu me lembro de garoto, lutamos sempre nos colégios, nas ruas com grupos de rapazes gregos. Não passava um dia sem lutas. Cada um nos insultava, chamavam de jiu futi, que é uma palavra pejorativa, em grego. Quer dizer… Como dirty jew, uma coisa assim. E nós retrucávamos, lutávamos corpo a corpo; quebravam vidros das nossas casas, nós invadíamos os bairros deles. Éramos bem agressivos.
Na época, também me lembro de ter chegado em Rhodes emissários de Israel e que já encucaram na gente o sentimento de sionismo, de autodefesa, de ter um sentimento bem patriótico, bem… E desde garoto...
P/2 - Em que ano, mais ou menos, esse emissário judeu...
R - Isso foi em… Chegaram de 1936 em diante. Eram bem ativos e faziam leituras de heróis judeus que lutaram contra árabes durante esse período que antecedeu a declaração do Estado de Israel. Essas lutas eram sempre uma base para incentivar aquele orgulho, aquele espírito patriótico. E desde garoto nós éramos bem ativistas bem fortes no colégio.
Eu me lembro até [que] tínhamos um professor italiano que ele… Como todo garoto, eu tinha na época dez ou onze anos, e ele falou em italiano "voi, ebrei" de uma maneira muito pejorativa, como se nós fôssemos uma escória. E eu, modéstia à parte, eu era [um] tipo de líder dos garotos, na época. No dia seguinte, eu decretei que não íamos à aula de literatura em italiano. Éramos mais ou menos trinta rapazes; ficamos no pátio do colégio, tocou o sino para entrar e ninguém entrou, então vieram saber o que que houve. Eu fui lá, falei com o diretor e disse que nós não admitíamos ser insultados por um professor que nos chamou "voi, ebrei” de uma maneira pejorativa por que nós nos sentimos assim ofendidos e queríamos uma desculpa do professor. Aí o professor… Houve um impasse, ele... Naturalmente, não houve uma desculpa propriamente falada, mas ele se retratou, de uma certa maneira e aí continuamos, no dia seguinte, as aulas.
Por uma coincidência também, isso já faz anos, eu me encontrava em Roma na época do nazismo e da ocupação nazista e encontrei na rua esse professor. Ele, por uma questão de sobrevivência, tinha um distintivo de fascistas. Quando ele me viu, eu não pude voltar atrás; ele me encarou e disse: "Puxa, você não é aquele garoto, Giacomo Franco? Eu falei: "Sou." Disse: "Não é você [que] aquele dia fez aquela greve, é isto?" Eu falei: "Sim, mas tudo..." Eu fiquei meio sem jeito. Ele disse: "Olha, não… Você está vendo o distintivo, mas isso porque eu sou obrigado, para poder trabalhar."
Ele me convidou pra um café e me perguntou onde eu morava. Eu inventei um endereço falso, com medo que ele pudesse me delatar, mas ele foi uma pessoa muito simpática. Contudo, eu não tomei chance, na época.
P/2 - Essa escola a que o senhor estava se referindo era uma escola pública italiana?
R - Era sim. Era uma escola pública.
P/1 - Mas era frequentada por gregos e judeus?
R - Não, era exclusivamente judeus. Era uma escola, aliás… Eu não… Francamente, acho que era Aliança Francesa, mas era obrigatório estudarmos literatura italiana e todas as matérias eram postas em italiano. Além de gramática e literatura italianas, todas as outras matérias eram dadas em italiano, a não ser francês - nós tínhamos uma professora Taranto, que era uma professora judia… Aliás, todos os professores lá eram judeus, menos esse italiano que falou isso. Essa professora Taranto ensinava francês. Aliás, [eram] ótimos professores.
P/2 - Essa escola era dentro do seu bairro?
R - Era dentro deste bairro. Era uma escola...
P/2 - Vocês chamavam de juderia?
R - É. Juderia… É igual em Toledo, na Espanha, que tem um bairro que era só… Não era um gueto, não. Nós vivíamos com certas liberdades.
Eu me lembro da minha casa. Era uma...
P/1 - Descreve um pouco a casa pra gente.
R - A casa era numa rua… Como se diz? Em uma subida. Uma casa muito boa, de dois andares. E tinha um pátio atrás cheio de árvores, que na época eu pensava que fosse [de] um tamanho grande e quando eu voltei, anos depois...
P/1 - É sempre assim, né?
R - É sempre assim, a imaginação da criança amplia as coisas. E eu encontrei que era um pequeno… Além de um pátio, tínhamos jardim e tínhamos quatro, cinco árvores de frutas.
A minha casa, a casa de meus pais, era encostada na Muralha de Rhodes, que era exatamente a muralha construída pelos Cavaleiros de Malta durante as épocas das Cruzadas, que foram lá e construíram aquilo como proteção da cidade, propriamente falada. As muralhas não eram muito grandes. A minha casa, eu me lembro que era encostada nesta muralha. O pátio dava para os fundos dessa muralha. Como [eu] era pequeno, tinha até certos medos de noite, de fantasmas...
P/2 - Dava pro mar? Depois da muralha era o mar?
R - Não. A minha casa dava para o interior da cidadela, digamos assim. Do mar era mais… Não tinha muitas casas, era mais comércio. As casas eram mais do interior, dando para o interior da ilha, não tinha vista para o mar. E era uma casa muito cômoda, muito confortável.
Eu me lembro até de um detalhe. Por ser de dois andares, nós convivíamos… Eu não me lembro em que ordem, se no verão nós ficávamos embaixo, que era mais fresco, ou em cima. Em inverno, a mesma coisa. Alternávamos os quartos.
Era uma casa bem ampla e eu tenho recordações muito felizes desta minha casa, dos meus pais, daqueles costumes sefaradim que eu acho espetaculares. Eu acho, eu sou fanático em questões de costumes.
P/1 - Isso a gente pode conversar depois. Eu queria que o senhor falasse o que tinha mais nesse bairro. A sua casa era uma casa considerada boa pra época? Vocês eram… Viviam bem? O que tinha mais nesse bairro? Tinha outras casas boas? Tinha agricultura?
R - Meu pai… Tinha, tinha casa. Lá era estritamente… Era bairro residencial. Na rua onde eu morava era só casas. Naturalmente lá, como era pequeno, tinha comércio. Meu pai era um comerciante de classe média...
P/1 - De quê?
R - A loja do meu pai tinha de tudo. Era um pequeno magazine. Como Rhodes era porto franco, ele importava tudo da Itália. Eu era garoto; ia lá, ajudava, às vezes, meu pai, de brincadeira. Ele tinha tudo - perfumes, roupa. Era um tipo de um pequeno magazine, mas muito minúsculo. E eu também pensei que ele fosse grande, [mas] era bem pequeno.
P/1 - Sua mãe trabalhava com seu pai, não?
R - Não, não. A minha mãe cuidava da casa, cozinhava, que era… E tinha uma empregada que vinha fazer o trabalho duro, que era lavar roupa e limpar a casa. Mas vinha uma, duas vezes por semana.
P/1 - Ela era judia?
R - Não. Era uma grega que vinha assim, para ajudar. A vida em Rhodes… Todos os judeus moravam juntos dentro de poucos quarteirões.
P/1 - E tinha o quê? Tinha bibliotecas, sinagogas, tinha teatros?
R - Tínhamos. Em Rhodes tinha de tudo, por incrível que pareça. Rhodes, uma ilha tão pequena, mas era… Nós tínhamos Yeshivá, que era o colégio de preparo de rabinos - encorajado pelo próprio Mussolini, porque ele tinha, no início, muita estima. E o governador italiano, Del Vecchio, um dos que fizeram a revolução fascista, era muito simpatizante com os judeus. Gostava da colônia judia, porque era uma colônia produtiva. E, como já disse antes, praticamente todos eram do comércio.
Tinha um banco judeu, de Alhadeff, um magazine grande. Tínhamos uma biblioteca, Dante Alighieri, que era uma biblioteca do Estado, do governo, muito boa. Os colégios eram muito bons, o ensino era de um nível muito, muito...
P/1 - Mas a própria escola era dentro do bairro? Era só frequentada por judeus?
R - Era só frequentada por judeus.
P/1 - Escola pública, só frequentada por judeus.
R - Era só por judeus. E tínhamos três sinagogas - se não me engano eram três pequenas. Tinha uma maior que a outra, mas eram pequenas. E tínhamos cemitério. Nós tínhamos uma infraestrutura de vida [em] que participávamos da vida geral da ilha, mas tínhamos nossa vida cultural. E era separada.
P/2 - Essas três sinagogas demonstravam uma divisão entre os judeus? Era frequentada por A, B, ou C? Ou...
P/1 - Categoria profissional ou...
P/2 - Havia divisões na comunidade judaica?
R - Sempre há. Em qualquer sociedade, infelizmente, se não sociais, econômicas...
P/2 - Tinha ashkenazim na ilha?
R - Não. Que eu me lembre, não tinha um ashkenazi. Eram todos sefaradim. Por incrível que pareça, também este negócio de sinagoga… Não sei com certeza quantos tínhamos, sei se eram duas ou três, mas sei que era mais de uma. E não havia… Naturalmente, em toda sociedade, mesmo na época, havia separações por… Digamos assim, por camadas sociais, por camadas econômicas mas, naturalmente, todos conviviam juntos. Talvez uma dessas sinagogas fosse daqueles que eram considerados os ricos...
P/2 - Ou os ortodoxos.
R - Ou também. Exatamente.
P/2 - Mas existiam judeus pobres? No seu bairro existia alguma pobreza?
R - Havia pobre propriamente...
P/2 - Qual era o número de habitantes judeus na ilha?
R - Eram cinco mil, representavam 10% da população - era cinquenta mil a população [total] Tinha alguns judeus pobres, infelizmente. Mas [em] Rhodes, como era uma ilha tão pequena, todos os filhos cresciam [e] não tinham condições de trabalhar ou progredir.
Todos tinham uma ânsia de emigrar porque havia já antecedentes de outros que tinham emigrado para muitas partes do mundo, então todo mundo tinha essa ânsia de encontrar o Eldorado. Ou então procurava ir aos Estados Unidos, ser chamado por muitos parentes, irmãos.
Quase que os rapazes que chegavam numa idade de dezoito anos, onde a educação já era restrita, eram obrigados a emigrar. Famílias eram separadas, isto era uma coisa triste. Eram separadas por uma necessidade da época de progredir, de melhorar. E eles que emigravam também mandavam dinheiro. Tinham um sentimento de família tão forte que o primeiro dinheiro que eles ganhavam mandavam pros pais, pra eles viverem melhor.
P/1 - Só pra ter uma ideia: esses judeus um pouco mais pobres, quais eram as atividades deles? Era agrícola, por exemplo? Havia agricultura?
R - Não. Havia agricultura, mas toda ela estava nas mãos dos gregos que possuíam terras no interior. As fazendas ou propriamente o que era, na época, era tudo nas mãos dos gregos e uma parcela pequena de turcos, que também eram considerados antagonistas dos gregos, porque sempre houve essa diferença entre gregos e turcos que vem de séculos atrás.
As atividades dos judeus pobres eram todas manuais. Eram todos artesãos, ninguém que eu me lembre se dedicava à agricultura. Ninguém. Era mais propriamente na cidade. Faziam trabalho assim...
P/2 - As pessoas mais ricas, os comerciantes mais ricos, eles tinham barcos, faziam transporte de importa… Aquela coisa antiga, que navegavam pra comprar não sei onde… Tinha barcos?
R - Talvez tinha dos mares ou dos… Não, relativamente porque como era...
P/2 - Tinha judeus muito ricos?
R - Tinha. Poucas famílias, que eram os banqueiros, o banco Alfader. Eu francamente não me lembro dos sobrenomes, mas tinha poucas famílias que eram considerados ricaços da ilha. A maioria era de uma classe média razoável, boa. E uma parcela pequena de pessoas pobres, mas nunca passaram miséria, porque todos os judeus ajudavam também a estas famílias pobres.
P/1 - Como era feita essa ajuda? Como eram as atividades sociais da comunidade? A comunidade tinha essas instituições...
P/2 - Lar dos Velhos, Lar da Criança, Hospital...
P/1 - Ajudavam-se...
R - Exato, nós tínhamos. Havia o hospital, era tudo do Estado. Não existia hospitais judeus, porque o lugar era pequeno e não comportava. Quer dizer, a maioria deles dependia dos hospitais, das bibliotecas, dos colégios. Havia o colégio da Aliança Francesa que era patrocinado e ajudado pela própria colônia dos judeus. E a Yeshivá, o próprio governo dava o subsídio para ela se manter; havia muitos lá que se formavam rabinos. E tinha uma vida cultural muito grande.
P/1 - O que tinha?
R - Nós tínhamos, por exemplo, cinemas, teatros, propriamente, na palavra moderna. E tinham os teatros [do] tipo grego, que eram os anfiteatros. Tinha programas italianos de… Porque os italianos fizeram muitas coisas boas lá em Rhodes, modernizaram.
Sinagoga era o centro social da vida dos judeus. As sinagogas tinham… Perto da sinagoga [tinha] aqueles lugares quando se faziam… E os casamentos eram todos feitos em casa da gente porque como a população era pequena... Mas cinco mil é bastante gente.
P/2 - Era muita gente pra uma população de cinquenta mil na ilha toda, né?
R - Era muita gente. E era muito atuante. Quando era Yom Kippur, todo mundo fechava as lojas e eles se juntavam. Naturalmente havia, sem dúvida, uma separação por questões sociais, de judeus que não se misturavam com os mais pobres. Isso, infelizmente, não é típico dos judeus somente, é típico do ser humano, mas eles tinham um grande espírito de ajuda. Quando uma família não tinha dinheiro ela era ajudada pela comunidade. Dava dinheiro, dava sustento. Quer dizer, havia esse espírito.
P/2 - E havia também aqueles grupos da juventude, de partidos?
R - Sem dúvida.
P/2 - Todos aqueles...Todos aqueles que a gente conhece, né?
R - Sem dúvida. Nós tínhamos, por exemplo… Eu me lembro, eu era do partido Jabotinsky, então quando vinha… Que devemos lutar. E tinham outros que eram mais pacatos: tinha os ortodoxos, no lado religioso, e tinha outros mais modernos. A juventude tomou muita consciência das coisas de Israel e foi bom, porque despertou em nós um sentimento que sempre… Aliás, nossas… Como se diz? [Em nossas] rezas, sempre dizíamos: o ano que vem, Jerusalém. Quer dizer, o nosso espírito sempre foi voltado para Israel. E esses contos que vinham, nos contavam sobre judaísmo, lutas que os judeus, os pioneiros, começaram a ter em Israel, era um incentivo que dava a gente espírito, uma gana de ir a luta; acendeu aquela chama que estava meio apagada.
Não [era] só eu, como [também] os velhos. Naturalmente, tinha aqueles que não acreditavam muito, mas a maioria tinha um espírito muito forte.
P/1 - Mas esse incentivo não era só por parte da família. Era por parte de todas as instituições sociais? Na escola se falava nisso, nos lugares que frequentava?
R - Sempre se falava de uma maneira… Gozado, porque havia uns judeus assimilados, que nós até considerávamos… Alguns eram até fascistas e entraram por um proveito próprio, por uma coisa, pertenceram ao Partido Fascista. Mas era obrigatório, talvez, ser.
Eu me lembro que [quando] eu era garoto você devia, no colégio, ser membro dessa vanguardista que tinha balila, que era o nome que davam aos garotinhos pequenos. Uma vez por ano usávamos aqueles uniformes, era toda uma farra. Nem sabíamos o que era aquilo, mas nós éramos conscientes da nossa história e do que estava acontecendo em Israel, então nós ajudamos, dentro do possível. Tinha aquelas caixinhas, que eram uma… Como se chama aquilo de botar dinheiro...
P/1 - De botar dinheiro pra mandar pra Israel, aquelas coisas.
R - Dinheiro, aquela azul, sempre tinha. Em toda família tinha isso. Eu me lembro, na casa dos meus pais tinha uma. De vez em quando, botávamos umas moedinhas dentro.
P/1 - Seus pais eram muito religiosos?
R - Não. Ele era… Meu pai, aliás, tinha uma voz maravilhosa e cantava na sinagoga, era chamado para cantar. Ele gostava disso. Não era muito religioso, mas seguia as tradições fielmente. Não era fanático demais.
P/1 - Mas que dizer, então, na sua educação - eram alguns filhos homens -, o seu pai nunca tentou forçar pra uma educação mais religiosa ou de tentar o rabinato?
R - Não, religiosa não. Ao contrário, meu pai nos deixou muito livres porque também nós… Eu fiquei em Rhodes até os onze anos; depois, tivemos que sair. Naquela época, meu pai me levava à sinagoga, mas não… Não era aquele homem que obrigava a ir à sinagoga, entende?
P/1 - Vocês já se vestiam… Agora, falando de costumes. Como eram os costumes dos judeus nessa sua...
P/2 - Deixa eu só fazer uma pergunta antes de entrar em costumes. O senhor falou que tinha algumas histórias dessas brigas dos meninos judeus contra os meninos que xingavam. Como era isso? Formavam mesmo grupos rivais, brigas de turma, não é isso?
R - Exato. Briga de rua, de turma.
P/2 - O senhor pode contar alguma coisa?
R - Acontecia o seguinte: nós vivíamos dentro de um bairro considerado judeu. E no início, quer dizer, quando você entrava neste bairro sempre havia como um tipo de guardas - não só de garotos, até de uns certos adultos. Porque havia sempre bandos de gregos, até de turcos, que passavam, entravam, pegavam pedras, quebravam as vidraças todas das casas, e se encontravam gente isolada, rapaz e tudo, batiam neles, entende? Nunca chegaram a matar gente, mas batiam mesmo. Então, nós, em princípio, nunca íamos sozinhos. Sempre íamos em bandos, não só pra defender como também para responder às provocações.
Eu me lembro que era garoto, íamos sempre, no mínimo, quatro, cinco juntos. E quando encontrávamos maior número, se víamos que não aguentaríamos, ou fugíamos ou os enfrentávamos, mas nós nunca levamos desaforo.
Aprendemos isso até com esses emissários de Israel, nos encucaram isso, de não fugir. E nós nos defendíamos. Às vezes, eu batia neles, nos batiam; eu chegava em casa arrebentado, com cortes no rosto, camisas rasgadas. Minha mãe ficava doida comigo, porque achava que eu era...
P/2 - O senhor liderava aos onze anos?
R - Não, algumas vezes eu liderava dentro daquele grupo. Eu tinha onze anos, mas era uma coisinha que não se brincava. Era muito agressivo naquela época.
P/2 - Seus irmãos também?
R - Meus irmãos, o menor era o mais calmo. Mas também nos uníamos sempre. O que me lembro dos irmãos, o mais velho também… Mas parecia que eu adorava brigar por estes fatos, entende? E eles faziam isto. Era uma questão de... E quando...
P/2 - A coisa já era violenta mesmo. Desde as crianças.
R - Desde as crianças. Por incrível que pareça, os adultos não tanto. Os adultos não brigavam tanto, só as crianças, por um condicionamento deles escutarem falar. E também [tem] aquela história que o [povo] judeu matou Cristo; até hoje permanece, muitos acham que nós éramos… E tinha as...
P/2 - Isso era uma coisa, então, mais das crianças. Os pais não deviam incentivar essas brigas na rua, não é?
R - Não. Não incentivavam, mas eles escutavam. Por exemplo, tinha...
P/2 - O senhor não ouvia, por exemplo, alguns pais falarem assim: “Quando vier um grupo de garotos, não bate, volta pra casa.” Uma coisa de...
R - Eles sempre diziam para não brigar mas, independente do que meu pai dizia, eu até brigava dentro do colégio. Até [com] meus colegas, às vezes. Quer dizer, era briguento, no sentido… Era mais agressivo, porque… [Por] natureza, digamos assim. Mas os adultos não brigavam, até se davam bem comercialmente.
P/1 - Na maioria das…
(PAUSA)
R - ...que quer dizer judeu sujo, uma coisa assim. Quando falavam isso, nós respondíamos, brigávamos. E nós tínhamos também… Eu me lembro que eu também, isso com onze anos… Tínhamos algum adjetivo também apropriado pra dizer pra eles, mas nunca… Não me lembro qual era a palavra.
Na época das festividades religiosas gregas, aí que era o perigo porque eles eram de Cristo, então diziam que os judeus tinham matado Cristo e toda essa coisa, então, nós nos protegíamos. Nem os provocávamos nesses… Eles nos provocavam. Mas como eram a maioria, nós sempre ficávamos um pouco na defensiva.
P/1 - Quer dizer [que] de uma certa maneira, não havia uma socialização entre vocês e os outros.
R - Não.
P/1 - Então na sua infância, você teve uma vida completamente… O bairro judeu era muito autônomo, tudo acontecia lá dentro, não precisava...
R - Exatamente. Havia um entrelaçamento, digamos assim, de vida social comercial com os italianos, mas propriamente social, só com os judeus. Havia...
P/1 - Qual era a língua que vocês falavam?
R - Espanhol.
P/1 - Não na casa. Na cidade, no bairro judeu.
R - Italiano. Na cidade se falava italiano, grego, turco, por incrível… Falava-se até em francês.
P/2 - Mas nas escolas públicas, nos bairros não judeus, se aprendia o turco, se aprendia o grego?
R - Não. Os gregos, naturalmente, aprendiam grego, mas era tudo italiano. Agora, dentro do… Cada um aprendia em casa, aprendia a língua dele. Mas nós, no colégio, aprendíamos italiano e francês. Grego e turco nós aprendemos por escutar, por conviver com eles. Mas obrigatoriamente era o grego - aliás, o francês e italiano.
P/1 - Havia uma maioria de emigrantes de um determinado país, lá nesse bairro judeu? Qual era a predominância das pessoas que moravam lá, já nascidos em Rhodes ou eram… Os pais eram de família espanhola ou…
R - Não. Quase noventa… Eram todos de origem muito antiga de Rhodes. Quer dizer, não havia emigrantes que vinham para se estabelecer a Rhodes porque era uma ilha muito reduzida, [com] pouca chance de você progredir. As crianças, por exemplo: tínhamos o ginásio, tinha até o segundo grau que você podia estudar. Para estudar, ir à faculdade, você devia emigrar. E não havia possibilidade de trabalho para toda gente, no sentido de progredir. Pra trabalhar, ganhar uma miséria, não era isto. Por isso que os judeus de lá já eram de família, de gerações, eram estabelecidos ali. Não havia judeus que iam lá. E quase todos eram de mesma origem.
P/2 - E da mesma família também? Aquelas famílias enormes...
R - Havia. Todas essas famílias se multiplicavam. Havia o ramo de todas as famílias - Alhadeff, Franco, Menaché, Rasom. Tinha… Israel. Tinha milhares, mas que tinham ramificações diversas. Então se casavam, se...
P/2 - Por exemplo, o sobrenome dos seus colegas da escola, eram muitos da mesma família ou era bem variado? Predominavam tantas famílias...
R - Eu me lembro… Não. Não posso dizer qual as famílias que predominavam. Era variado. Naturalmente, sem dúvida, deveria ter algumas famílias que predominavam pela quantidade de gente que tinha, mas eram variados.
P/2 - As famílias judaicas eram muito grandes, né?
R - Sem dúvida.
P/1 - Seu pai tinha irmãos morando lá? Sua mãe, seu pai?
R - Exato. Meu avô paterno teve seis filhos com minha avó, irmãos do meu pai. Todos eles, depois, emigraram, foram embora. Os filhos destes meus tios emigraram todos. Eu os encontrei eles agora, em Israel. Foram ao Congo Belga, foram para os Estados Unidos. Muitos foram para a África porque a África, naquela época, representava um lugar que se...
P/2 - África do Sul?
R - Não. África, Congo Belga, lá nas colônias francesas e belgas. Ganhava-se muito dinheiro em pouco tempo. Eles iam onde era fácil ganhar… E o judeu lá...
P/2 - O senhor conhece algum judeu que esteja no Brasil que tenha passado por essa coisa de ir pro Congo Belga?
R - Não, infelizmente não conheço. Eu tenho uns primos que moram agora em Israel, os encontrei lá; tiveram que sair porque depois o Congo Belga virou Zaire e chutaram fora os belgas. Não havia mais condições para os brancos viveram lá. Mas eles ficaram milionários. Conseguiram tirar o dinheiro fora e se estabeleceram na Bélgica. Na Bélgica...
P/1 - Havia outros grupos minoritários em Rhodes ou em volta desse bairro judeu moravam outros grupos menores?
R - Não. Ao redor de nós moravam os turcos e eles também eram uma parcela menor que os gregos. Os gregos eram a maioria. E os italianos; além do corpo administrativo do governo, havia alguns italianos que se radicaram, por razões da colonização de Rhodes. Mas a maioria eram gregos.
Na ordem: eram gregos, depois turcos, os italianos e por último vinham os judeus. De cinquenta mil, eu acredito que 25 mil eram gregos. O resto, turcos e italianos, e cinco [mil] eram judeus. Não havia outros grupos porque, como já falei, Rhodes era uma ilha muito pequena. Era maravilhosa.
É uma ilha linda, cheia de turistas; os italianos [a] chamavam uma das sete maravilhas do mundo. Era chamada La Isle des Roses porque só havia rosas lá, cresciam rosas. Era uma ilha cheia de rosas.
P/2 - As companhias de navegação, de comércio de navegação, eram de quem? Dos italianos?
R - A maioria era de italianos e gregos; [de] alguns turcos. Porque [em] Rhodes, num dia claro, se via as costas turcas. Via-se muito...
P/1 - Exatamente. É entre um e outro.
R - Era quase todo de italianos. E gregos, que tinham aquelas barcaças bem antigas, cheias de barris que traziam...
P/1 - O senhor tem fotografias dessa… Da sua infância?
R - Eu tenho algumas fotografias de Rhodes quando eu estive lá e não mudou nada. Entre aspas - quero dizer que eu voltei lá depois de trinta, quarenta anos. Fui com a minha mulher e disse que eu encontraria, faria os mesmos passos [de] quando era garoto. E, de fato, eu fiz. Fui encontrar a loja do meu pai, fui à minha casa - encontrei a casa sem dúvida, sabia onde era. Fui ao colégio, que depois foi destruído pelas bombas, quando os alemães...
P/2 - Ainda era um bairro judeu quando o senhor voltou?
R - Não. Agora não tem mais nenhum judeu lá. Só tem uma única família de Sorianos, que vive lá, que cuidam...
P/1 - Família de…?
R - Soriano. Sobrenome deles. E nenhum judeu voltou mais lá. Eu acho, isso é um pensamento meu, que onde os judeus foram perseguidos não devem voltar nunca mais. Essa é a minha ideia.
P/2 - Aí vai ficar... (risos)
R - Eu acho que judeu que vai pra Alemanha viver lá, eu acho que ele é mais criminoso do que qualquer outro. Onde ele foi massacrado, injuriado, exterminado, ir lá viver entre aqueles alemães que… Se você vê um velho de setenta anos, por certo já era nazista, na época. Então, pra quê? Tem poucos judeus na Alemanha. Em Rhodes, felizmente, não tem ninguém.
P/1 - Agora eu gostaria que o senhor dissesse, contasse um pouco como é que era o cotidiano na sua casa. Como era o dia a dia na sua casa? Se tinha hábitos diferentes...
P/2 - Um Shabat, um casamento… Conta pra gente. Um Bar Mitzvah.
R - Ah, esse… Olha, isto é… Eu tenho recordações, agora que vocês estão tocando nesse assunto, muito gostosas. Uma delas é do Shabat. Eu tive a sorte de conhecer a minha avó paterna, que era a mãe do meu pai.
P/1 - Como era o nome dela?
R - Rica Franco. E era uma senhora alta, magra. Era uma senhora [que] dizia ter, na época, uns 75 anos ou talvez mais. Ela usava vestimenta toda de preto, de veludo preto, isso me lembro. E ela vinha sempre a pé da casa dela para a nossa casa, que era filho dela. Quando ela passava pela rua, até as gregas tinham um respeito tão grande por ela, que ela, sem modéstia nenhuma, parecia uma rainha. Alta. Ela usava aquelas correntes aqui, de ouro, na… E tinha um chapeuzinho tipo Nehru, da Índia, aquela...
P/2 - O senhor tem uma fotografia da sua avó?
R - Não sei. Eu acho que infelizmente não tenho.
P/1 - Mas isso era uma vestimenta típica das mulheres judias?
R - Também da época. Era veludo preto, era um casaco...
P/1 - Até hoje as gregas usam isso.
P/2 - Mas ela usava todo dia o preto?
R - Não. Não usava todo dia, mas lá era costume para uma senhora de idade.
Eu me lembro, então, [que ela] vinha sábado de noite, com aquelas jóias que tinha aqui, aquela… Entrava... E nós, eu me lembro, subíamos. Na época, eu me lembro que a sala era no segundo andar e a sala de jantar. Ela subia devagarzinho e a minha mãe, com aquele respeito, beijava a mão dela. E todos nos beijávamos, em sinal de respeito. E quando nos beijávamos, ela abençoava a gente.
Um dia, a minha mãe esqueceu de beijar a mão dela. E como as duas eram matriarcas, na palavra certa, a minha avó disse pra minha mãe: "Querida, você esqueceu uma coisa." Diz ela: "O quê?" "Você esqueceu de beijar a minha mão." "Ah, desculpa." Falou: "Não é o fato que você vai me beijar a mão. Você me tira a oportunidade de te abençoar." Essa era uma maneira muito esperta, sutil, de manter a força dela em cima da nora.
Eu me lembro que era uma mulher muito agradável. E os jantares de Shabat eram...
P/1 - Que vocês comiam? Era sua mãe que cozinhava? Era a empregada que cozinhava?
R - Cozinhava. Todas as delícias sefarditas se faziam. Era tomate recheado, cebolas recheadas, e tinha bohios, que são típicos sefaradim. Bohios, burekas, são nomes de coisas que se faziam estritamente lá. E doces eram todos do local. Uma delícia.
P/1 - Mas esses preparativos começavam sexta de manhã? Como é que era feito isso?
R - Exato. Não, era… Tudo lá girava ao redor das tradições. Quando era Shabat, sábado, e se fazia o kidush, meu pai, todo mundo se vestia, tomava banho, se arrumava e sentávamos ao redor da mesa. Antes devia fazer o kidush, e minha mãe se preparava no mínimo um dia antes, preparando aquelas coisas gostosas. E nós sabíamos que Shabat era...
P/2 - Quando vocês sentavam na mesa era aquela coisa rígida ou vocês brincavam, riam? Ou tinha aquela coisa, não podia falar na mesa?
R - Não. Nós éramos um pouco… Talvez pela mentalidade um pouco latina, éramos mais barulhentos. Tanto que minha nora, que é ashkenazi, acha que nós somos um pouco barulhentos, que somos muito ativos na hora da jantar.
Eu gosto de vibração na hora de jantar. Eu gosto que meus filhos discutam, falem de política, de literatura, enfim, de tudo. Eu acho que numa mesa deve vibrar uma família. E lá… Meu pai era assim, respeitamos muito... Eu não me lamentava nem a palavra com a minha avó, porque ela era a matriarca, não se podia...
P/2 - Como era esse matriarcado? Era muito rígido? As mulheres dominavam a família? Quem mandava nos filhos?
R - Dentro da família eram as mães, sem dúvida, porque os pais trabalhavam de dia. Eu achava até.. Não achava nem certo que um pai, friamente, castigasse um filho só porque a mulher disse: “Olha, ele fez isso.” Ele chamava a atenção, mas quem batia era a mãe, que ela é que cuidava da educação dentro de casa. Eu me lembro, minha mãe era austera, mas ela era… Da época. Era austera. Éramos muito levados. Oh, meu Deus do céu!
P/2 - Quando o senhor voltou a Rhodes, o senhor fotografou a sua velha casa, a loja do seu pai? Tem fotografias pra gente tirar cópia?
R - Eu tenho que ver no meu álbum de viagem se eu tirei. Eu talvez tenha algumas fotografias. Posso ver isso.
P/1 - Como era a loja do seu pai?
R - A loja do meu pai era o nome Franco. Loja Franco, me lembro. Essas lojas eram numa rua, isso me lembro, que era rua principal de Rhodes, a rua do cais, que dava exatamente ao redor da cidadela. Essa rua só tinha lojas e essas lojas eram uma pegada à outra. Por incrível que pareça, não eram muito grandes. Eram pequenas, mais ou menos do tamanho de lá de baixo.
P/2 - Acompanhava a arquitetura da ilha, casas pequenas.
R - Eram todas pequenas, de um andar...
P/1 - Brancas.
R - Algumas eram brancas. A minha casa, por exemplo, me lembro, não era branca não.
P/2 - A sua casa era de tijolo?
R - Tijolo. Eu me lembro do teto, era todo teto de… Como chama?
P/2 - Telha.
R - Telha. Era uma casa muito boa. Tanto é que essa casa durou, durou. E depois foram vendidas, os gregos a pegaram.
P/1 - E outros costumes, senhor Franco? Como eram os casamentos? O senhor fez Bar Mitzvah?
R - Não. Infelizmente não cheguei, porque eu saí com onze anos. Os casamentos eram… Alguns eu me lembro, eram acontecimentos sociais...
P/1 - Em casa.
R - Em casa. Era praticamente em...
P/1 - Religiosos em casa.
R - Não. Os religiosos eram feitos na sinagoga, mas as festas eram todas feitas em casa.
P/1 - O que era? Música, dança? Havia vestimenta especial pro casamento? Como era o vestido, por exemplo, dela? Ou a vestimenta do homem...
R - Não. Não havia música...
P/2 - Tinha alguma coisa típica no casamento? Por exemplo, ainda se usava aquele costume de arranjar casamento? Arranjar o noivo, a família...
R - Ainda existia. Eu que me lembro de ter escutado que existiam casamentos por conveniência. Às vezes homens de fora [vinham] para se casar com moças judias de Rhodes.
P/1 - O casamento dos seus pais foi casamento arranjado também?
R - Foi arranjado por meu avô paterno, que quando viu minha mãe a adorou. (risos) Pensou num dos filhos. Mandaram as fotografias e meu pai foi lá. Naturalmente, se não se gostassem, não iam se casar; se gostaram primeiro, depois se casaram. O amor lá, naquela época, vinha depois do casamento. Ah, aquele amor de… Não me refiro só a amor sexual; amor de respeito, de tudo que faz parte entre homem e mulher, eles adquiriram com a experiência, adquiriram com o tempo. Com respeito. Alguns são felizes, outros se aturam e não são felizes. O da minha mãe foi relativamente feliz porque meu pai era ótimo. Minha mãe não era durona, um pouco, mas meu pai era um homem simples, um homem bom. E não tinha Cristo que não se desse bem com ele.
P/2 - Tinham roupas especiais pra noite de núpcias? Usavam aquela coisa religiosa?
R - Não. Eu tenho um retrato...
P/2 - O vestido de noiva...
R - O da minha mãe era branco, de renda, aquele… Naturalmente...
P/2 - Não tinha nada de peculiar dos sefarditas?
R - Não. Os sefaradim lá já eram modernos, não eram [do] tipo do Marrocos ou que viviam bem no interior de um país em que a era moderna não tinha chegado. Rhodes era um país moderníssimo.
P/1 - Tinha influência cultural muito maior da Itália, Grécia, não é?
R - Grécia, Itália. Eu me lembro; de garoto, eu estudei toda a literatura italiana, Dante Alighieri, tudo.
P/2 - A comunidade judaica de Rhodes, ela se vestia igual...
R - Aos italianos. Aos europeus.
P/2 - Não tinha...
R - Não. Os sefaradim nunca usaram cachimbos, nada disso.
P/2 - Pela vestimenta não se identificava quem era judeu?
R - Não.
P/1 - E os mais ortodoxos? Por exemplo, nesse bairro, em Rhodes, não se via na rua um homem, por exemplo, com um casaco maior?
R - Não, não. Lá é típico, esse do casaco maior é típico dos judeus ocidentais de origem polonesa ou russa. Os judeus de Rhodes, mesmo os ortodoxos, se vestiam igual aos outros. Igualzinho. Você não podia distinguir quem era um ortodoxo, quem era um liberal ou um ateu, no caso. Ninguém sabia. Os gregos sim que usavam a vestimenta típica, grega, da época, que era aquela calça toda bufante. Os turcos usavam aquilo mais. Aquilo se distinguia logo. Mas os judeus se vestiam...
P/1 - E pelo biotipo? O senhor, por exemplo, tem...
R - Eram… Olha, os sefaradim são uma raça linda. As mulheres [são] maravilhosas e os homens simpáticos, altos, bonitões. Não tinha ninguém feio dos sefaradim. Eu não considero...
P/1 - Mas eu queria saber, o senhor, andando num bairro típico de gregos, naquela época, era identificado como um grego, por exemplo? Alguma coisa física já dizia que o senhor era de família judia? Ou tem aquele negócio que tem todos os judeus que...(risos) O nariz...
R - Não. Nós, de fato, éramos mais assimilados no modernismo dos italianos. Os gregos se mantiveram um pouco afastado desse progresso, então eles mantinham os costumes. Nós, era difícil você distinguir. Eu, quando fui à Itália, ninguém sabia que era judeu. Pelo nome - eu depois mudei o nome, botei Giácomo Franco - ninguém sabia que eu era judeu. Pelos traços, difícil. No Brasil, você parece um pouco semítico, mas ninguém... E os judeus de Rhodes não tinham traços de vestimenta ou narizes. Como já disse, eram lindos.
P/1 - E a sua irmã? Como ela era?
R - Ela é loura. Aliás, a maioria dos Franco são louros com olhos azuis. Um dos meus filhos… O meu neto agora nasceu todo lourinho com olhos azuis.
Minha irmã tinha… Ela é loura com olhos azuis, então não havia uma condição de dizer “você é judeu”. Alguns judeus tinham os traços marcantes, mas a maioria eram lindos. As moças eram lindas, uma mais bonita que a outra. Francamente, tinha as feias. (risos) Mas eram muito poucas.
(PAUSA)
P/1 - Senhor Franco, o senhor teria mais algum festejo que o senhor se lembre, alguma comemoração típica dos judeus de Rhodes? Ou algum instrumento, por exemplo, música ou de cozinha típica ou jóia. O seu irmão mais velho, por exemplo, fez Bar Mitzvah, o senhor se lembra?
R - Não. Infelizmente, nenhum dos meus irmãos fez Bar Mitztvah. Tivemos que sair.
Falando de instrumentos, eu me lembro que a minha mãe tocava bandolim, que é um instrumento… E ela tocava relativamente bem. E das coisas assim não sobrou nada, porque tivemos...
P/2 - Ela tocava em festas públicas ou dentro de casa?
R - Não. Ela tocava pra ela, pra brincar. Eu gostava de escutá-la tocar. E a maior festa que eu me lembro que nós tínhamos lá, que era um acontecimento de uma importância bem grande, sem dúvida era o Yom Kippur. O Yom Kippur, depois tinha Rosh Hashanah. Todas essas festividades judias eram celebradas com um espírito festivo, com uma coisa.. Digamos, com uma expectativa. Quando chegava a data se vibrava. Não tanto do lado religioso, como do lado histórico e tradicionalista. Quer dizer, [com] aquilo se vibrava, entende?
Eu me lembro de garoto, eu tinha orgulho de ser judeu. Mesmo sendo massacrado todo dia pelos gregos; me batiam, me jogavam pedra, mas eu tinha aquele orgulho de ser judeu. E até hoje eu tenho esse orgulho. E lá, talvez não todos tivessem esse sentimento, mas quase todos tinham isso. Não digo que seja caracteristicamente só do sefaradi, isso é típico do judeu. Mas não tanto religioso, isso que eu quero dizer. Nós celebrávamos com muito ímpeto, com muita vontade.
P/2 - Era como se fosse uma coisa nacionalista. Um dia que batiam os sentimentos mais nacionalistas.
R - Sem dúvida. Sem dúvida aquilo sempre foi presente em nós. Ao menos eu falo por mim mesmo.
P/1 - Como era, então, essa comemoração na sua casa? Como era a quebra do jejum, o que se comia?
R - Ah, era tudo conforme a tradição manda.
P/2 - O senhor jejuava desde pequeno?
R - Eu jejuava.
P/2 - A partir de que idade? As crianças começavam a jejuar com que idade?
R - Ah, [com] sete, oito, nove anos se jejuava. Depois, as festividades eram celebradas com muita alegria.
P/2 - Não tinha festas… Como era um bairro judeu, uma coisa na rua, mesmo, mesa na rua...
R - Não. Isto não. Isso eu acho que é mais… Nunca nós fizemos. Por exemplo, nas festas de Pessach, de Rosh Hashanah, se costumava visitar os parentes. Então, era… Levava-se doces, levava-se coisas, tudo geralmente feito pela própria dona da casa. Quem tinha capacidade, fazia doces, levava pra tia. Visitava-se até, em certas épocas, a casa dos pobres e se dava comida pra eles, um dinheirinho. Costumava-se dar isso.
P/2 - E esses rapazes que emigravam pra tentar a vida voltavam nessas festas? Quem estava morando mais próximo?
R - Quase nenhum deles voltou para Rhodes, pela simples razão que quando você atinge o nível de… Além de se sofisticar na vida, trabalhar… Suceder na vida - não todos foram bem sucedidos, mas aqueles que sim nunca poderiam voltar num lugar onde não poderiam ter a mesma chance de um progresso.
P/2 - Não, eu digo o seguinte. Nas comemorações em que vinham os parentes, se encontravam? Chegava ao ponto de gente que estava morando fora de Rhodes voltar para passar Yom Kippur com a família?
P/1 - A tradição era tanta a ponto dessas pessoas...
R - Não se eles estiverem muito longe. Isto não. Mas eles vinham, de vez em quando, visitar. Chamavam as famílias onde eles iam, criavam novas raízes. Mas entre nós, nós frequentávamos muito nessas festividades.
E a sinagoga era um lugar alegre, a não ser no Yom Kippur, que se mantinha um certo rigor e tudo mais. Mas as outras, Rosh Hashanah e tudo, era uma alegria. Os judeus lá eram unidos. Como já falei, os pobres eram ajudados pelos mais ricos, entende? Havia esse espírito de ajuda.
P/2 - Havia alguma rivalidade política entre os judeus pobres e os judeus ricos?
R - Não entre os pobres e os ricos, mas entre os próprios ricos havia tendências, que geralmente acontecem onde eles exercem um certo poder. Mas nunca exerceram sobre o pobre. Sempre usaram um espírito de caridade, digamos assim, para ajudar.
P/2 - Tinha algum grupo judeu de esquerda lá, comunistas?
R - Tinha. Tinha fascistas, que eu me lembro, que não eram bem vistos.
P/2 - Mas de esquerda? Comunista.
R - De esquerda devia ter. Eu era garoto, não…
Quando entrei nesse grupo de jovens éramos considerados de esquerda porque queríamos lutar, queríamos isso, queríamos aquilo, mas não havia ainda aquelas divisões. Mesmo na Europa havia mais. Em Rhodes era mais homogêneo, o povo era mais homogêneo.
P/1 - E o seu pai? Você se lembra dele falar alguma coisa de política? Ele participava de alguma coisa? Discutia em casa? Ele...
R - Na época, nós éramos muito pequenos. Um costume típico, não diria se é sefaradi ou… Depende de cada família, de cada pessoa. Meu pai não trazia em casa assuntos de negócios. Se os negócios estão indo mal ou bem, nunca trazia para não dar, talvez, uma insegurança ou uma coisa… Eles só tocavam [em] assuntos referentes à família, à comunidade, tudo se falava. Mas sobre negócio, política…
Nós vivíamos numa época dos italianos que era tranquila. Não éramos perseguidos, não éramos… Havia muitos que eram simpatizantes até dos fascistas. Alguns judeus.
Fora disto, não havia em casa discussões porque éramos muito pequenos. Não é como agora que os meus filhos e eu falamos de política. Não só de política...
P/2 - De que forma os judeus se identificavam com o fascismo? Em que pontos que ele… Que o senhor pode se lembrar.
R - Talvez por um sentimento mais de conveniência material. Sendo fascista você podia conseguir melhores condições de emprego, melhores condições de negócios. Havia poucos que eram fascistas, a maioria não pertencia ao partido fascista. E cada um vivia dentro do grupo. Não havia muita política.
P/2 - Como era o sistema político de Rhodes? Vocês elegiam vereador, por exemplo? Prefeito? Como era a organização política?
R - Não. Não existia. O sistema, a organização lá era a administração típica italiana, onde havia sempre os líderes de cada comunidade, que eram os representantes das comunidades para assuntos relevantes, até a religião, o modo de vida. Eles representavam a comunidade. Esses representantes tinham o status de porta-voz; traziam qualquer queixa que houvesse, qualquer coisa.
P/2 - Esse parlamentozinho tinha turcos, gregos e judeus?
R - Tinha. Sem dúvida que cada comunidade tinha o seu...
P/1 - Esse representante judeu era um representante que vocês conheciam? Era do seu bairro ou o senhor lembra o nome de algum judeu que tenha sido...
R - Geralmente esses… É. Eu me lembro que tinha uns ou outros que tinham… Eram eleitos mais pela capacidade intelectual, como também pelo poder econômico deles. Eram mais bem vistos pelos italianos. E eles representavam bem. Tinha rabino, tinha o presidente da comunidade; tínhamos um pequeno conselho nosso, que era eleito pelos… Todos...
P/2 - Seu pai não participava do conselho?
R - Ele participava na sinagoga. Na sinagoga ele era muito ativo.
P/1 - O senhor falou, inclusive, que ele tinha uma caixinha daquelas... Como era o nome daquela caixinha que se botava o dinheiro...
P/1 - Então o seu pai era uma pessoa participativa na sinagoga.
R - Na sinagoga. Do lado religioso que constava, ele tinha uma voz bonita; ele gostava e participava. Fora disso, como participação política ativa, ele participava não. Participava no âmbito da colônia.
P/1 - Mas o senhor, na sua casa, não tem lembrança de reuniões de pessoas que tenham ido para discutir alguma coisa com seu pai, de conversar ou… Se pensava em emigrar, naquela época, as pessoas...
R - Havia essas reuniões, me lembro bem. Às vezes elas eram visitas sociais onde se aproveitavam as ocasiões para discutir problemas de… Mas como eu saí muito jovem, muito pequeno, não me lembro de ter assistido a conversas desta natureza. Eu sabia que existia. Até na própria sinagoga havia reuniões a esse respeito.
P/2 - A sua mãe fazia doces pra fazer chás na sinagoga? Tinha aqueles costumes de fazer chá na sinagoga, chá pra caridade?
R - Ela fazia do… Eu me lembro que lá havia um costume ainda um pouco arcaico, meio antiquado: como as casas não tinham fornos, lembro que minha mãe preparava bolos, coisas, em bandejas e se levava aos fornos de padarias para fazer.
Eu me lembro que ela fazia uma parte pra distribuir aos mais necessitados. Isso eu me lembro. Todo sábado ela fazia isso e distribuía pra quem… Sempre havia parentes que precisavam de uma ajuda, então dava roupas usadas. Enfim, havia esse espírito. Sempre foi praticado esse espírito.
P/1 - Comia-se carne na sua casa?
R - Comia-se. Não éramos kasher - francamente falando, não. Mas não éramos também assim… Não comíamos porco, essas coisas, mas também não éramos… Talvez fôssemos kasher sim, porque [em] Pessach minha mãe limpava tudo, usava todas aquelas coisas. Mantinham-se os costumes.
Não éramos fanáticos kasher, comia-se de tudo lá.
P/1 - E mais uma coisa, senhor Franco. O senhor tem alguma lembrança de festejos em relação a nascimentos e mortes? Como era um enterro, na sua cidade, de judeus? Havia alguma… Algum ritual?
R - Havia o ritual mesmo que você, às vezes, vê até nos filmes. Por incrível que pareça. Mas a religião judaica é tão prática e humana que eu acho que aquela morte, eles… Como costuma, davam…
Eu me lembro quando faleceu não sei quem da minha família, minha mãe ia ajudar [a] distribuir aquelas passas, aqueles doces. Eu era bem pequeno, perguntava: "Mas para que estão dando? Está todo mundo chorando, porque vocês estão dando de comer?" Eles respondiam que aquilo era um símbolo da continuidade da vida, que mesmo na amargura devia-se provar uma coisa doce, que a vida continuava de qualquer maneira. Mas que isso não invalidava o fato de reverenciar, lembrar dos mortos.
Era uma… Eu não sou muito entendido em religião judaica, mas [pelo] pouco que li, o pouco que sei, se tivesse que optar, mesmo não sendo judeu, eu optaria por ser judeu porque é uma religião muito humanista. Mesmo que diga que nosso Deus é vingador, que ele não gosta que nós possamos idolatrar outros ídolos, outras coisas, eu acho que a religião judaica é muito suave, é muito confortante. E nós usávamos isso lá. Minha mãe, meu pai, quando nascia uma criança era uma festa.
P/1 - Como era?
R - Ah, sim...
P/2 - E o morto era… Tinha aquela coisa do morto ficar exposto em velório? Eu acho que existe uma diferença de costumes. Alguns não podem ver o morto...
R - Sei. Lá me lembro que… Não me lembro muito bem, mas o pouco que sei dos costumes é que eles preparavam o morto: lavavam o morto, embrulhavam numa mortalha - não sei se a palavra é certa. [Embrulhavam] em uns lençóis brancos e botavam num caixote simples, mas não deixavam exposto.
P/2 - Eu acho que no judaísmo não tem isso.
R - Tem. Os americanos… Meu pai, quando faleceu nos Estados Unidos, foi embalsamado. Como eu morava aqui, demoramos para ir ver a família e meu pai estava exposto, a metade, sim. Mas é costume de cada país. Em Rhodes era bem… O costume [era] bem tradicionalista.
P/1 - O senhor não se lembra de algum objeto que se punha em cima do caixão, alguma coisa assim? Porque a minha avó, quando meu avô morreu… Ela é descendente de marroquino e punha pedra em cima do caixão.
R - Ah, não. A pedra, às vezes, simboliza a visita. Você vai ao cemitério [e] tem uma pedrinha para o morto, pra não sentir que está abandonado. Há muitos costumes, uns que são de origem até cabalística, que é muito interessante para saber disso. Mas se usava todas estas festividades com o intuito geral da comunidade. Todos participavam, não éramos omissos ao fato que acontecia.
P/2 - Nós entrevistamos um alemão que no dia que casou, ganhou a roupa que deveria vestir quando morresse.
R - Não. Isso é um pouco tétrico até de… Não, isto… Lá acontecia o seguinte: famílias quando casavam [e] não tinham roupas, o que tinha mais dinheiro dava roupa para esta gente se vestir. Cedia ou dava presente. O enxoval lá, havia aquele costume que a mulher quando casava devia levar enxoval. Mas todas essas tradições, mesmo que um pouco antiquadas, tinham sua graça, sua beleza, entende? Hoje, o modernismo tirou tudo isso.
Lá era uma comunidade que eu… Agora que vocês estão pedindo para fazer isto aqui, estou me lembrando espontaneamente de coisas que eu, francamente, tinha completamente esquecido. Está voltando atrás de uma maneira… Como um flashback. E eu vejo que, com todas as coisas, tive uma infância muito boa. Exatamente porque estávamos dentro de um espírito de tradição, onde todos nós pertencíamos a alguma coisa, que sempre em festas olhamos e aquela festa era uma fonte de prazer, uma fonte de reuniões de famílias também. Isso que era bonito.
Eu gostava de ver a casa cheia de parentes, e também havia gulodices que minha mãe preparava - [quando] garoto, eu gostava. E aquele movimento. Era dinâmico. Isso que eu gostava. Não era uma apatia, havia participação completamente...
P/2 - Eu sei. O senhor está passando isso pra gente. A gente está imaginando que era uma coisa muito ativa, muito… E que extrapolava. Era maior do que a comunidade de vocês. Esse espírito era nutrido por pessoas de fora também. Não era uma coisa fechada, né?
R - Mesmo… Não. Mesmo que aquelas pessoas… Antes dessas pessoas terem vindo educadas, digamos, para certos fatos...
P/2 - Como assim, não era uma comunidade isolada numa ilhazinha. Vocês...
R - Não. Sempre estávamos a par de tudo que acontecia em todas as partes das outras comunidades.
P/2 - Vocês tinham jornais judeus, alguma coisa assim? Alguma publicação?
R - Tinha. Jornais, francamente, não me lembro, mas devia ter alguma coisa. Devia ter jornais porque a comunidade era bem ativa.
P/2 - Tudo bem. A gente pergunta, o senhor fala. Se não se lembra, tudo bem.
P/1 - Eu acho que a gente...
P/2 - Vamos só introduzir… Pra gente parar, mas vamos só introduzir. Como tudo começou, como as notícias chegaram em Rhodes e começou a ideia de ter que sair de lá? Foi uma expulsão do governo? Como é que começou dentro da sua casa.
P/1 - A época.
P/2 - Fecharam a escola?
P/1 - O gueto mesmo. Tornou-se gueto esse bairro judeu?
R - Não, porque… De uma parte… Não é que se virou… Mas vamos por ordem cronológica. O caso foi assim. Em Itália, quando Mussolini começou a fazer aliança com Hitler… Mussolini não era… Nunca perseguiu judeus durante o período dele. Foi só quando ele se associou com Hitler. E por demanda de Hitler ele tomou medidas contra os judeus. A primeira medida que eles tomaram em Rhodes era de fechar os colégios para os estudantes judeus.
P/2 - Em que ano foi isso?
R - Isso foi 1939. Começaram em final de 38.
P/1 - Deixa eu dar um parênteses pro senhor. Só lembrando, ontem mesmo, no [jornal] O Globo, comecei a ler artigos de cinquenta anos atrás. Estava assim: “Exatamente há cinquenta anos atrás, em 1938, o governo italiano, oficialmente, em Roma, proíbe a ida dos judeus nas escolas.” Exatamente ontem. No O Globo, naquele quadrinho que tem os cinquenta anos atrás.
R - Eu vou pegar. No Globo, de ontem?
P/1 - É. Exatamente há cinquenta anos atrás, o governo italiano...
R - Em que página?
P/1 - Ah, eu não sei.
P/2 - Internacional?
P/1 - Não. Eu acho que é um quadrinho.
P/2 - Ah, na frente, na primeira página?
P/1 - Não, acho que é dentro. No segundo caderno, não sei. Tem um quadrinho que fala o que que aconteceu há cinquenta anos atrás no mundo e no Brasil.
R - Eu vou procurar. Então, a primeira medida foi esta. Quando os meus pais viram que isto já tinha acontecido, eu estava no ginásio, meu irmão também; eu fiquei de me apresentar. E neste intervalo, minha mãe tinha uns irmãos nos Estados Unidos; se comunicaram e acharam por bem nós saírmos de lá. E preparamos os... Esta documentação e mandaram. Mandaram todos os documentos para nós sairmos de Rhodes para ir aos Estados Unidos.
P/2 - Vocês, então, conseguiram a chamada. Seus parentes dos Estados Unidos chamaram, vocês...
R - Chamaram. Meu pai, na época, tinha de vender a casa; não conseguiu vender, deixou lá. Mas o negócio vendeu para um grego que pagou a metade, depois não pagou mais.
Naquela época, todo mundo estava querendo ir embora. E aí, meu pai, como era um homem cuidadoso… E o médico americano era muito chato em questões de tracoma, uma doença dos olhos que é contagiosa. E eles exigiam… Então meu pai nos levou num oculista, que era um desgraçado de grego. Para pegar dinheiro, talvez por maldade, nos operou aos três filhos de tracoma.
P/2 - E vocês não tinham.
R - Não tínhamos. Bravo, Helena. Você já percebeu logo.
P/2 - Já tinha o espírito nazista, né?
R - Exato. Já. Quando o médico americano em Nápoles, quando fomos todos para seguir para os Estados Unidos, nos examinaram, estávamos todos sadios. Abriram as pálpebras para ver se tinha tracoma. A primeira coisa que ele viu foi aquela cicatriz. "Ah, vocês têm tracoma, tem que ficar." Meu pai, minha mãe ficaram assustados. "Como?"
Fizemos uma reunião à noite. Telefonaram para o irmão dela, para [se] aconselhar. Eles decidiram que nos deixariam a cargo do presidente da comunidade judaica de Nápoles, com dinheiro suficiente pra nos tratar. Nesse intervalo, nós já tínhamos ido ao médico italiano, que atestou com documentos e tudo, e o médico americano não quis aceitar como válido que nós não tínhamos tracoma, mas que foi indevidamente feita uma operação. O americano não quis saber.
Nós ficamos lá por seis meses para sermos tratados, em Nápoles. Então, meus pais chegaram em nós… Disseram para eles seguirem na frente. Eram o total de seis na família: três foram na frente e nós, três irmãos, todos homens, ficamos em Nápoles. Por sorte, meu irmão pequeno, depois de seis meses - ele não foi operado - conseguiu passar.
Meu pai me mandava dinheiro. E nesse intervalo, a guerra se declarou e meu irmão mais velho e eu ficamos presos na Itália. Essa família de judeus italianos, que até chegou a nos emprestar um dinheiro no início, depois falou que não podia nos manter. E eu já tinha treze anos, comecei a trabalhar. Aprendi a consertar tapetes, essas coisas, que era o serviço que se fazia, me ensinaram isso.
Eu trabalhei, depois tive a sorte de encontrar um judeu italiano, um grande comerciante, de nome Pontremoli. Levou-me a Roma, aí tem outras coisas que eu vou continuar.
P/1 - Então acho que a gente podia parar e continuar uma outra vez. Muito obrigada.
R - Nada.
P/1 - Senhor Franco, dando continuidade à nossa entrevista, eu gostaria que o senhor nos relatasse um pouco como foi essa ida pra Roma, qual foi o destino do seu irmão, o seu destino profissional e de vida. O que sucedeu depois da saída de Nápoles.
R - Olha, isso aconteceu, mais ou menos… Que a memória não me falhe, [foi] em 1940, quando eu tive a sorte de encontrar este Pontremoli. Ele era uma criatura fabulosa. Eu nunca vou poder esquecer desse homem. Primeiro levou meu irmão como secretário, em Roma. Depois de um tempo, ele me chamou também pra ir lá junto com ele. Parece que gostou mais de mim que meu irmão, não sei, aí eu virei o secretário dele. E secretário na palavra total. Era isso. Eu fazia todas as coisas bancárias e fazia todos os recados. Era um secretário particular, no sentido de negócios e tudo.
Nós, naquela época, trabalhamos mais ou menos na clandestinidade. E ele era um… Mais ou menos freelancer. Não tinha uma loja. Como ele era muito conhecido em Roma… Quer dizer, durante a guerra começou depois a haver gente que tinha, digamos, terras nos lugares ocupados; não tinha mais as rendas quem vivia daquelas rendas das terras, então foram obrigados a vender peças de arte, especialmente tapetes, que eles tinham muito. E foi uma surpresa. Muitas vezes eu ia com ele visitar essas casas que por fora pareciam nada e dentro eram verdadeiros palácios. E era gente de todo o tipo, especialmente da nobreza. Gente que tinha obras de arte de valor incalculável e era obrigada a vender. De vez em quando vendiam um tapete, vendiam uma peça de prata. E assim se mantiveram por.. Esperando que um dia a guerra acabasse.
Isso foi no início, mais ou menos em 1940. Na época, os judeus já estavam sendo caçados.
P/1 - O senhor estava com uma família judia?
R - Não. Isto era em Nápoles. Quando eu fui morar em Roma, moramos numa pensão. Existia milhares, naquela época. E nós trabalhávamos. Nessa pensão, naturalmente, nunca dissemos que éramos judeus.
P/1 - O senhor continuou com seu nome?
R - Eu continuei porque meu nome na certidão de nascimento é Giacobbe Franco. E eu, naturalmente, italianizei o nome para Giacomo Franco, que era o nome mais perto. Pelo Giacomo Franco ninguém me pegava por judeu e fomos andando assim por um tempo.
Depois, os alemães começaram… Houve a queda de Mussolini. Isso já está no período… Quase acabando a guerra, todo esse período nós trabalhamos em Roma. E nesse período, éramos sempre cuidadosos de não ficar muito tempo numa pensão. Mas tem uma pensão que eu me lembro, de duas senhoras italianas, duas velhinhas; depois da guerra eu levei a Clara e meus filhos pra visitar esta mesma pensão e estava lá. Uma das velhinhas tinha morrido. Ela se lembrava de mim, que eu falava sempre que logo que acabasse a guerra eu ia pros Estados Unidos, então ela me chamava "o americano". Assim, de brincadeira. Tive um encontro muito emocional com ela. Isso foi logo depois da guerra, alguns anos depois.
Voltando durante o período da guerra, quando os alemães entraram em Roma, houve aquele fá-fá-fá e nós estávamos lá, eu me lembro. E meu irmão e eu tínhamos nos separado exatamente para… Como os fascistas caçavam os judeus, por causa disso, o meu irmão foi até… Tinha um fulano na pensão que não gostava de meu irmão e… Como se diz? Denunciou meu irmão. E eu o visitava de vez em quando, uma, duas vezes por semana. Quando eu fui lá ver, a mulher da pensão foi muito bacana, muito...
P/2 - Ele foi preso?
R - Não chegou a ser preso. Esta mulher me disse: "Olha, avisa ao Aaron que ele foi denunciado e, portanto, não venha aqui." Eu também fiquei esperando na esquina para ele aparecer. Aí eu o peguei, deixei… Ele foi apanhar as roupas e eu o levei na minha pensão; nos escondemos lá por uns três, quatro dias. Eu fiquei, ficamos apavorados.
Nesse intervalo, foi logo quando os americanos… Eu estou me antecipando um pouco porque… Mas foi… Durante a ocupação dos alemães foi uma coisa muito brava, muito...
P/1 - Eu queria que o senhor contasse um pouco, independente da sua vida individual, se o senhor tem alguma lembrança histórica da época, de ter ouvido no rádio. O que que o senhor ouvia em relação aos judeus, a caça aos judeus, o antissemitismo? Como isso refletia na sociedade, ali em Roma?
R - A sociedade estava completamente tomada de pânico. Muitos chegaram a fugir. Outros tentaram comprar com suborno maneiras de prolongar as estadias deles, mas quase todos estavam condenados. Aliás é uma outra coisa, é uma infelicidade, que muitos judeus de Roma, como de outras cidades, não perceberam que mesmo com o fascismo não iam ser atingidos pessoalmente. E já era tarde.
Quando eles… Mussolini, por questões de Hitler, impôs que eles recolhessem todos os judeus; eles fizeram uma caçada completa em Roma e pegaram, realmente, todos os judeus. Nós tivemos a sorte de fugir disto. Mas durante esse período de ocupação alemã em Roma, que foi declarada cidade aberta, eles pegavam todos os rapazinhos de dezoito, vinte anos, pegavam e mandavam pra campos de trabalho.
P/1 - Havia bairros judeus em Roma?
R - Havia. Havia um bairro que era.. Não era um gueto, mas era um bairro conhecido, muito antigo. Tanto que a sinagoga de Roma é uma das mais antigas sinagogas, a da Firenze mais ainda… E que tinha uma vida própria. Eram prósperos comerciantes, tinha médicos, tudo. Mas quando o fascismo começou a caçada, eles pegavam até da sétima geração, os que eram casados com católicos, pegavam todos eles.
Nesse período de ocupação alemã, eu e meu irmão chegamos à conclusão que para poder nos safar de ser pegos por esses alemães a melhor coisa era pegar uma permissão, um tipo de uma carteirinha amarela, que eu me lembro. Fomos lá como voluntários num lugar que era rede ferroviária, controlada pelos alemães. E pedimos...
P/1 - Mas que ideia.
R - Fomos lá e os alemães mesmo nos colocaram logo a trabalhar na estrada de ferro. E eu me lembro...
P/1 - Mas sabendo que o senhor era judeu? Não.
R - Não. De jeito nenhum. Isto não.
P/1 - Ah, pelo nome não se identificava que o senhor era judeu.
R - Pelo nome não sabia. E Aaron Franco era Aroldo Franco. Ele modificou o nome. Nós conseguimos as duas carteirinhas, que era amarela. Trabalhamos dois, três dias nessa estrada de ferro, escapamos e nos mudamos da pensão também porque se eles podiam ir atrás de nós, seria difícil nos encontrar. E por uns meses adiante, nós nos salvamos com essa carteirinha porque cada tarde eles fechavam todo o quarteirão e pegavam todos os rapazes. E...
P/2 - A carteirinha era exatamente o quê?
R - Era uma identidade que dizia que você trabalhava pelas forças ocupadas. Era escrito em alemão também, alemão e italiano, e...
P/2 - O senhor tem essa carteirinha?
R - Infelizmente, eu não guardei. Eu guardei o meu passaporte italiano. A única coisa que eu guardei.
Então, por este tempo, foi andando, andando. Eu me lembro que… Naturalmente, tinha gente boníssima. Os italianos, muitos eram contra também. O povo não queria a guerra, não gostavam dos alemães. Naturalmente, você fazia o mínimo possível para fazer entender que você era judeu. Por uma questão de salvar la pele.
P/1 - Qual era esse mínimo que você fazia pra esconder que você era judeu?
R - O mínimo não. Eu fazia o máximo, aliás. (risos) Devíamos tomar muito cuidado porque até com Pontremoli, que nós íamos, por exemplo...Ele era um bon vivant, um homem de muitos recursos...
P/1 - Como é o nome dele?
R - É Moni Pontremoli. Ele era um homem de muitos recursos, então vivia muito bem, nos melhores hotéis, nos melhores restaurantes. Eu, como secretário… Ele tinha uma grande amizade por mim e eu por ele também, então aonde ele ia eu ia atrás. Mesmo quando ele saía com as garotas, eu ia também. Sim, ele me levava.
P/2 - Secretário para todos os assuntos. (risos)
R - É. Ele era um homem que nunca me tratou como um subalterno, sempre me tratou como um irmão. E eu nunca posso esquecer dele.
Mas voltando, eu me lembro de um caso típico. Quando estávamos num hotel, em Roma, e tínhamos… Lá num bar, estávamos tomando… Aí veio um cara que era da Gestapo. E nós não sabíamos que era da Gestapo. Ele começou a falar: "Você, de onde é?" Eu falei que era de Rhodes. Quando eu falei que era de Rhodes, o Moni, que estava comigo, me cutucou debaixo da mesa para eu não falar muito. Porque o homem da Gestapo era muito… Sabia, dizia: “Em Rhodes tinha muitos judeus.” Quando ele falou, eu falei: “Que eu me lembre, não.” Tentei me desviar. Depois dei uma desculpa e saí logo correndo para não ficar, porque ele podia prolongar [a conversa].
Como estes casos houve também outro caso durante essas recolhidas que faziam dos jovens. Uma vez fui até parado por um carabineiro e um alemão. Pediram meus documentos e eu mostrei meu passaporte. No meu passaporte está escrito Giacobbe Franco. O carabineiro percebeu que eu era judeu, então ele disse: "Olha, sai daqui. Fica em casa escondido por três dias, porque esses três dias que vem vão ser os piores. Vão recolher todos os jovens."
P/1 - Falou isso em italiano e o alemão não entendeu nada.
R - Em italiano. Sim. [O alemão] não falava italiano, por sorte minha. E disse: "Vai até lá, devagarinho. Sai daqui." Eu vi depois, ele se virou [e] disse “tutto bene” para o alemão. Eu [me] comuniquei com meu irmão também, nos escondemos esses três, quatro dias.
E assim em diante fomos, até a chegada dos americanos. A chegada dos americanos foi pra mim… Parecia que tinha ganho a… Não sei. Era um sonho tão esperado, sabe? Eu vivi estes seis anos numa… Sempre criando umas fantasias, sem querer. Rapaz jovem, muito sensível, eu criei até fantasias do que era Estados Unidos, do que era a minha família.
Enfim, foi tudo… Causou seus traumas, que até pouco deixaram certas marcas. Mas graças a Deus eu recuperei, eu reconheci certas coisas. Mas não deixa de ser… Eu acho que muitos também, em piores situações que as minhas, devem ter sofrido muita coisa na vida e deixado sua marca.
P/1 - Só um minutinho, Sr. Franco. Esse período que o senhor falou, esses dias que o senhor esteve escondido, como é que foi? Foi escondido mesmo, não se saía na rua? Uma família ajudou?
R - Essas mesmas senhoras, essas duas. Como não podia dizer que eu estava lá, então o meu quarto foi abandonado. Ela me escondeu debaixo de uma escada. Tinha o lugar onde guardava coisas de limpeza e me botou uma caminha bem estreita. Eu, quando levantava, batia com a cabeça. Era assim um tipo de ângulo, quase um cubículo, muito estreito. Botou uma caminha lá. E lá, como não era muito limpo, me lembro das pulgas, que eram uma coisa horrível. O lençol cheio de pulgas de noite e eu não podia fazer nada. Quando todo mundo saía, que ela estava sozinha, aí eu saia pra fazer minha higiene pessoal.
Eu fiquei neste lugar por uns quatro, cinco dias. Não me lembro bem, porque aquilo me deixou tão traumatizado que eu, até hoje, não posso ficar num lugar muito pequeno, fechado; me dá claustrofobia. Então, quando…
Todos esses períodos foram… Teve diversos lances, que são tantos que eu não quero me prolongar. Mas...
P/1 - Não, mas o senhor podia contar alguns que o senhor acha...
R - Não. O que eu acho...
P/2 - E a correspondência com a sua família? A família chegou nos Estados Unidos, deu pra manter correspondência? Ou não?
R - Com meus pais, eles falaram que mandaram até dinheiro. Eu recebi. De fato, eu recebi uma vez. Meus pais tinham mandado. Como eles estavam nos Estados Unidos, não podia mandar dinheiro diretamente para a Itália; mandaram via Buenos Aires, via Argentina, porque meu pai tinha um irmão… O FBI soube disso, fizeram investigações. Meu tio, que estava radicado lá, foi rápido lá [e] explicou o caso, mostrou os documentos [explicando] por que razão ele tinha mandado. Eles nos mandaram dois mil dólares. Naquela época, dois mil dólares era dinheiro que não acabava...
P/2 - É. Pra três, quatro anos.
R - É. Isso durante a guerra. E aquilo foi o salva-vidas pra nós, tanto pra meu irmão como pra mim. Foi uma coisa que…
Eu sabia que meus pais… Nós sabíamos que eles estavam bem, mas eles não sabiam… E nós mandamos por lá, como é que chama? A Cruz Vermelha, mandamos cartas, uma atrás da outra. Mas eles recebiam algumas, por anos não receberam, nós tampouco recebemos.
Foi um período de desespero para um rapaz da minha idade. Mas eu já tinha amadurecido tão rapidamente...
P/1 - O senhor tinha quantos anos, nessa época, em 40?
R - Naquela época, eu já tinha uns quinze, dezesseis anos. Eu já estava tão amadurecido da vida, das coisas, que eu… Era quase estóico. Fiquei estóico demais. Não digo cínico, mas sensível às coisas. Não me corrompi dentro daquela vida de… Havia uma degeneração completa durante a guerra, gente se vendendo e fazendo qualquer coisa pra sobreviver. Eu tive sorte, devido a esse Pontremoli, de manter uma certa…
(PAUSA)
R - Dando prosseguimento ao que estava falando… Naquela época, foram épocas mesmo difíceis. Entretanto, nós nos mantivemos, tanto meu irmão como eu, dentro de uma ética moral, até… Não digo religiosa porque não tínhamos… Tínhamos perdido quase a fé em Deus, mas sempre pensamos que um dia escaparíamos daquilo. E tivemos muita sorte.
P/2 - Eu queria que o senhor explicasse melhor que ética era essa que o senhor… O que o senhor viu que não fazia? O senhor falou que as pessoas se vendiam. O que o senhor recusou-se a fazer? Devem ter lhe sondado, né?
R - Olha… Eu tive oportunidades até de roubar, de me apropriar de somas muito grandes desse meu patrão, o Moni Pontremoli, porque ele tinha dado, na época que os bancos estavam fechados - não podia ter contas para os judeus -, um dinheiro que naquela época era uma fortuna, para eu esconder de uma maneira e dar para ele quando ele precisava. E ele, naquela época, pra fazer uma história longa, conheceu uma moça, daqueles tipo mundana, muito bonita. Ele me levou uma vez para um cassino - lá se jogava de noite -, ela começou a se engraçar com ele e ele gostou dela. Começaram a viver juntos. Depois vinha, dizia: "Giacomo, me traz as cem mil liras." E eu trazia. Mas eu tomava conta de tudo.
Quando eu vi que o capital dele estava se esgotando, diluindo, um dia eu falei: "Olha, Sr. Pontremoli, só faltam cinquenta mil liras, não tenho mais dinheiro." Ele ficou… Disse pra mim: "Mas como?" Eu vi que a cara da mulher já tinha mudado, porque estava atrás do dinheiro dele. Dito e feito. Depois de uns dias, ela disse que tinha recebido um telegrama da mãe dela, que estava chamando e o abandonou.
Depois que ela [o] largou, um dia eu fui lá [e] levei... Eu tinha exatamente metade do capital que ele tinha me largado; eu fiz uma conta corrente, mostrei pra ele e ele me disse: "Puxa, eu nunca imaginei que você tivesse mais cabeça que eu." Ele apreciou porque… Quer dizer, a ética de se manter uma pessoa direita em uma circunstância, porque aquilo foi uma tentação. Eu [poderia] ficar com esse dinheiro, mas eu nunca poderia fazer uma coisa a uma pessoa que me fez tão bem na minha vida, dizer que foi como irmão, como um pai. Eu não… Nem me passou pela cabeça um pensamento daqueles.
Ele disse a mim: "Mas como? Não te deu ideia de pegar esse dinheiro, comprar uma camisa ou uma maçã pra você?" Eu disse: "Nunca pensei nisso."
Aliás, tem uma coisa gozada de falar de comprar uma coisa. Quando eu estava em Nápoles - isso era anterior ao tempo que eu conheci o Pontremoli -, houve um caso fabuloso. Eu não tinha… Eu tinha um emprego que me sustentava, só. Praticamente [era para] pagar a pensão e quase não sobrava dinheiro pra comida. Era tudo racionado, tudo. Aquilo que me sobrava, não sobrava nem pra comer. Aí eu fiquei doente, comecei a perder os cabelos [por causa] da má nutrição. Tive essa sorte de conhecer um médico judeu que me ajudou, me dava até caixas de marmelada. E um caso… Vale ser escrito um livro deste médico e da mulher dele. Foram criaturas que eu nunca vou esquecer na minha vida, maravilhosas.
Nessa pensão que eu estava, eu me lembro que tinha uma loja que vendia bananas que vinham da África. Uma banana custava, não sei, uma lira e eu não podia comprar. Não tinha dinheiro. Então fui economizando centavos por centavos, até fazer aquela lira. Finalmente, depois de meses a fio, fui lá e comprei uma banana.
Como é que eu ia fazer para eu comer essa banana? Não queria que nunca acabasse essa banana. Era um garoto de quatorze, quinze anos. então fui comendo aquela banana devagarinho, quase não queria engolir aquela banana. Até hoje, quando eu vejo essa banana, me lembro daquilo.
Eu tive sorte de encontrar muita gente boa, muito boa mesmo. Tanto judia… Mais judia, e também não judia.
Passei todo esse tempo e quando os americanos chegaram em Roma, então foi pra mim um...
P/1 - Em Roma, o senhor conheceu outros judeus? O senhor teve contato com outros judeus?
R - Eu tive… Toda a família de Pontremoli. Tinha umas primas, que eu… Eles tinham uma loja de tapetes e eu tive o prazer… Eu fiquei com eles um pouco [para] trabalhar, mas sempre quem era o meu patrão era o Pontremoli. E era gente muito simpática, mas não tive oportunidade [de conviver] porque nós não queríamos nos misturar com outros judeus, entende? Para sobreviver, você devia se afastar. Não havia, como no gueto de Varsóvia, uma coisa de unidade e lutar. Se em Roma tivesse tido uma coisa eu, por certo, iria lá também porque eu me sentia muito patriota, mas não… Eu era sozinho. Você devia usar a sua sobrevivência pra sobreviver dia a dia. Qualquer lapso de palavra que você falasse até com um desconhecido era perigoso.
P/2 - O senhor teve contato com pessoas da resistência?
R - Não, infelizmente não tive porque, estando em Roma, não houve partisans lá. Só no norte que houve tudo. E quando vieram os americanos, logo meus pais mandaram gente nos procurar, amigos de minha família, de meus tios, e nos encontraram. Aí logo fizemos os papéis.
Eu acredito que nós éramos os primeiros italianos a sair da Itália, porque foi em 1946. Chegamos a New Orleans e veio uma pessoa da American Express, a mando do meu tio, para nos ajudar e nos botaram no trem para ir a Los Angeles. Foi aquele reencontro tão desejado com meus pais, com minha mãe, na estação dos trens. Foi uma coisa que… Foi uma coisa muito… Como vou te explicar? É difícil. Você parece que esgota toda aquela energia que você tem. Chega a um ponto que você não sabe o que é.
P/1 - Antes de chegar aos Estados Unidos, eu queria saber. O senhor passou, então, seis anos, praticamente, em Roma...
R - Seis anos e meio. Quase sete anos.
P/1 - No período de guerra onde, realmente, os judeus estavam sendo perseguidos e a sobrevivência era uma coisa muito… Mas eu queria saber. O senhor, na sua cabeça, sabia que iria ia pros Estados Unidos, ia rever a família? O que que passava pela sua cabeça? O senhor tinha medo, por exemplo, [de em] qualquer esquina ser pego, ser mandado para um campo?
R - Você estava sempre em um estado de espírito muito tenso, é por isso que às vezes você evitava até fazer amizades. Exatamente por essa razão. Para, na conversa, não poder escapar alguma coisa.
P/1 - Transmitir alguma coisa que entregasse o senhor.
R - Exato. Até eu, na Itália, em Nápoles, eu tive.. Conheci uma moça muito simpática, namoramos por muitos anos...
P/1 - Uma judia?
R - Não era judia, ela era uma católica. E era muito… Ela sabia que eu era judeu e fomos namorando por uns três, quatro anos. Até hoje, eu tenho boas lembranças dela. E ela foi…Talvez tenha sido bom porque ela me ajudou a passar esses anos. E veja bem, eu tinha...
P/2 - O senhor não quis levá-la pros Estados Unidos?
R - Não, porque ela queria se manter católica e eu sabia que não ia poder casar com católico. Eu nunca pensei em casar com ela por causa da religião, então foi já um ponto final. Mas eu tenho boas lembranças. Tenho até retratos dela, quando eu tinha quatorze, quinze, dezesseis anos. Foram anos bons, com tudo isso. Agora, o fato de nos termos… Você me falou de ter… Eu tinha muito cuidado.
P/1 - Eu queria realmente tentar deixar registrado o que [se] passava na cabeça do senhor. O senhor passou seis anos, num período pós-adolescência; o que passava...?
R - Não. Aquilo… Olha, em mim houve uma transformação drástica, eu não tive adolescência. Eu virei homem de um momento para outro. Eu virei homem, como homem eu encarei os fatos da vida, de uma maneira muito realista, ao mesmo tempo muito sonhadora. Sonhava, fantasiava de noite que um dia ia chegar nos Estados Unidos. Este sonho, este… Como chama? Nightmare, como se diz?
P/1 - Pesadelo.
R - [Que] esse pesadelo ia acabar. E, de fato, acabou. Mas durante todos aqueles anos não foi fácil porque eu criei um outro mundo. Um outro mundo onde a minha sanidade foi mantida dentro de uma fantasia. Esta fantasia foi válida naquela época. Foi como uma âncora que não me deixou tragar até no fundo do mar porque havia, como eu estava falando em questões de ética, de ter.. Eu podia ser um vagabundo, podia [me] meter a matar gente ou entrar… Até fazer contrabandos e fazer coisas assim, que muita gente fazia. Eu mantive uma...
P/1 - Muitos judeus, o senhor está dizendo?
R - Não. Os judeus que faziam… Eu duvido que alguém… Era gente… Alguns fizeram, [é] natural, pra sobrevivência, mas eu mantive mais ou menos dentro dessa linha. E foi isso, não foram fáceis aqueles anos. Mas ao mesmo tempo tive muitos bons momentos, boas recordações, boa gente que me ajudou; tive uma vida muito cheia de perigos também. (risos)
Às vezes aconteciam coisas que… Quando, por exemplo, Mussolini caiu, eu me senti mais sem perigo, mas logo que caiu Mussolini, logo depois de um mês, os alemães entraram. Então [havia] aquela euforia de estar livre e, [de] repente, você se sentir preso de novo. Se você não saía louco, era por um milagre. E você mantendo as aparências sempre, estar bem arrumado… Não tinha muita roupa, a roupa estava mais velha, mas sempre mantendo as aparências, sabe? Tudo aquilo foi a minha salvação, a minha sanidade.
Não resta dúvida que eu, com todos estes anos, criei… Tive muitos traumas, até familiares. Achei que meus pais me abandonaram, todas aquelas coisas que depois, com o tempo, fui realizando que não foi a verdade. Mas foi uma fantasia que eu fiz e isso acarretou muitos desajustes, não digo mentais, mas emocionais, que graças a Deus foram já ultrapassados.
Todos aqueles anos… Eu estou falando, mas é capaz que mais tarde eu me lembre de outros casos muito interessantes.
P/1 - E o seu irmão teve a mesma trajetória que o senhor?
R - Nós sempre estávamos juntos, na mesma cidade. Ele também era um rapaz muito inteligente. Quando os alemães vieram, ou melhor, quando foi liberada Roma, ele logo foi lá… Como ele falava melhor inglês que eu, ele foi logo, se ofereceu como intérprete aos ingleses e conseguiu um posto. Um dia veio todo uniformizado de intérprete.
O meu irmão era um rapaz brilhante. Pena que ele, pobrezinho, morreu agora, faz dois anos, de câncer. Ele tinha alcançado na vida comercial um nível muito alto de bem-estar, mas enfim… Nós estávamos juntos, mas sempre estávamos separados, nunca no mesmo lugar porque tínhamos chegado à conclusão que se alguém fosse preso, um podia se salvar. Estando os dois juntos… Era mais perigoso estar juntos.
E aqui, mais ou menos, [se] encerra esta fase da guerra, durante esses anos.
P/1 - O senhor não tem nenhuma memória do seu irmão ter contado algum fato, algum incidente que tenha ocorrido com ele nas ruas em Roma, alguma perseguição que tenha ameaçado muito a vida dele?
R - Não. Fora deste que ele foi… Fizeram a denúncia contra ele, nós sempre tínhamos cuidado de nunca ficar muito tempo num lugar. Ficávamos no máximo três meses. Quando saíamos, dizíamos que íamos viajar, pra não deixar rastro.
P/2 - Mas vocês viam pessoas serem deportadas? Famílias...
R - Víamos. Nós víamos coisas, fatos que até hoje nunca posso esquecer. Não de famílias. Pegavam rapazes jovens, isso sim, mais estritamente, mas não eram só judeus. Era jovens de todo… Por exemplo, fechavam ruas e… Isso eram os alemães, só os alemães que fizeram isso. Botavam em caminhões e… E muitas vezes via. Até já tinha um sexto sentido, me protegia, fugia; me encostava contra a parede ou entrava em alguns apartamentos, porque era tudo trancado, para poder me salvar.
Uma vez eu vi um caso de um caminhão cheio de carabineiros sendo perseguido por um jipe alemão, com dois ou três soldados só. Eles começaram a atirar e o caminhão estava cheio de carabineiros, todos com metralhadoras. De repente, eles param e se rendem todos. Pra mim, aquilo foi… Quando eu vi aquilo, “meu Deus”, eu falei, “gostaria de ter uma metralhadora na minha mão para atirar nos alemães.” Eram mais de vinte ou trinta carabineiros. Demonstra que o italiano não tinha nenhuma paixão para a guerra. E quando eu via isto, [era] mais uma razão para ficar assustado, porque eu estava sozinho no mundo, então eu devia usar a minha cabeça. Sempre usei a minha cabeça para me salvar de certas situações.
Às vezes, eles fechavam a rua. Quando via isso, já tinha um sentido contra esse perigo. Eu fugia, entrava, batia, dizia que era uma coisa, entrava como se fizesse parte daquela família, entende? Muitos percebiam, me deixavam entrar. Isso [em] diversos casos.
Muitas vezes, no início, usei aquela carteirinha amarela e fui salvo muitas vezes. Mas depois de um tempo achei melhor não usá-la, porque já não estavam mais obedecendo a essas carteirinhas. Com medo que aquilo me pudesse pegar de novo, eu sempre fugia. E sabia onde andar.
Às vezes, eu tinha uma bicicleta pra me locomover. Eu usava essa bicicleta em lugares menos de pedestre, em lugares… Conhecia Roma muito bem, então ia sempre pelos lugares mais escuros para não entrar nas ruas principais. E fui andando assim, meses a fio, até chegar a libertação de Roma.
Foi uma alegria grande porque meus pais, meus tios mandaram gente. Até meu tio, [que] era um médico de Nova York, mandou um colega dele, major, que era médico nas tropas americanas, nos procurar. E a primeira coisa que fez… Ele me trouxe uma caixa cheia de chocolates e coisas. Aquilo foi uma festa. Depois, meus pais foram me mandando pacotes porque havia um programa de ajuda, então eles, a cada semana, nos mandavam um pacote de comida, de roupas.
P/2 - Cigarro, Nescafé, chocolate.
R - É, todas essas coisas. Depois...
P/1 - E os familiares em Rhodes, como é que…? O senhor sabe alguma coisa sobre pessoas, sobre...
R - Sei que houve mais de 2.500 judeus que permaneceram em Rhodes e infelizmente foram pegos pelos alemães, de uma vez só. Foram levados e nenhum deles se salvou. Todos eles foram...
P/1 - Inclusive membros da sua família?
R - Alguns membros que eu, infelizmente, agora não posso me lembrar.
P/1 - Mas membros diretos, quer dizer, os seus avós...
R - Não, meus avós já tinham falecido. Agora...
P/1 - Já tinham falecido. Então, pai, mãe e os irmãos...
R - Não, esses já tinham todos saído. Algumas tias devem ter morrido porque.. Pela idade, mas o resto, não me lembro de outra gente. Sei que foram 2500 pessoas que morreram.
Vamos parar aqui, depois...Tá?
P/1 - Tá ótimo. Muito obrigada.
P/1 - Sr. Franco, dando continuidade à nossa entrevista, eu queria que o senhor começasse falando um pouco, retomando um pouco a saída de Roma e como é que foi nos Estados Unidos o encontro com família, os primeiros dias, a adaptação. E todos os trâmites, inclusive burocráticos, da saída da Roma para os Estados Unidos, ou por que a sua família estava lá e que foi mais fácil. O senhor, por favor, dê uma sintetizada nisso.
R - Para dar prosseguimento a esta fase, logo que acabou a guerra, naturalmente, meus pais, muito ansiosos para nos pegar de volta, fizeram todo com os _______ deles, essa documentação. E foi tão rápido porque os italianos, também, naquela época, com os americanos, não podiam complicar. Não foi difícil, tanto é que eu me lembro que fomos, talvez, os primeiros italianos a sair da Itália diretamente para os Estados Unidos como emigrantes - chamados, naturalmente, pelos meus pais.
Quando saímos de lá, fomos bem auxiliados por muita gente a mando do meu pai, dos meus tios, que eram muito influentes nos Estados Unidos. Chegamos a New Orleans; eu ainda mantenho o passaporte italiano daquela época. E [logo que] chegamos em New Orleans, meu tio mandou um representante...
P/1 - Quando, exatamente? O senhor se lembra?
R - Eu tenho a data no passaporte. Aliás, está em casa, depois eu vou mostrar. Vieram nos apanhar no navio. Fomos. Havia esse negócio de saúde, de pedido, mas conosco não havia problema.
Logo nos colocaram num trem e chegamos a Los Angeles. Meus pais, naturalmente, estavam me esperando, a família toda. E houve até uma reportagem no jornal de uma reunião nossa, depois de tantos anos de separação. Foi uma coisa emotiva, muito forte. Naturalmente, se chora naquelas ocasiões, eu chorei.
Chegamos e os primeiros dias nos Estados Unidos pareciam um sonho de ter escapado a esta loucura que foi a guerra. Naturalmente, tudo que nos Estados Unidos nós tínhamos percebido era um sonho, exatamente aquilo que eu tinha sempre sonhado, aqueles sete anos da separação, entretanto eu não falava inglês. Eu tinha acabado o ginásio, aí me enrolei no colégio. Fiz um exame para ver em que nível eles achavam que eu estava e, modéstia à parte, passei muito bem. Meu irmão, que era um rapaz brilhante… Passamos logo.
Em pouco tempo, eu peguei o diploma [de] high school lá, que não foi nada difícil, tendo uma boa base como nós tínhamos. E nós, por uma situação de… Não sei se vou dizer de circunstâncias, o meu desejo era de estudar, frequentar a faculdade; ser, talvez, senão médico, dentista, uma coisa dessa. Mas porque lá era tudo pago e eu não queria ser um peso pra minha família, eu comecei a trabalhar.
E a coisa curiosa que eu quero ressaltar é o seguinte: eu idealizei [por] sete anos inteiros um retorno, quase como um retorno ao paraíso, que era um Shangri-Lá. Entretanto, a necessidade da língua foi tão imperativa que eu achei logo que… No terceiro dia eu já me enrolei no colégio para poder frequentar à noite. Frequentávamos das sete às dez, três horas por noite; era um curso bem intensivo para inglês, especialmente inglês.
No quarto dia eu fui, entrei em campo sozinho, fui procurar umas lojas. Como eu trabalhava com tapetes persas, sabia consertar, tinha uma loja de departamentos muito grande - ainda existe em Los Angeles - que se chama Burlaks. E essa loja tinha um departamento de tapetes persas. Eles vendiam muito, era uma loja muito tradicional, e eu me apresentei como especialista em tapetes. Logo me aceitaram e o meu chefe, na época, eu me lembro, era um armênio. Eu saí de um fogo dos alemães; entrei com um armênio, que era também muito antissemita, muito chato. Mas como estávamos nos Estados Unidos, um país que era livre, um país que é completamente… Não são admitidas certas coisas, mas o antissemitismo existe.
Eu era competente no meu trabalho, assim que me dei bem com ele. E ele via que eu era outra classe. Eu não me associava muito com ele, a não ser nas horas de trabalho. Ele era meu chefe e eu obedecia o que ele me dava pra fazer. Mas eu também sabia que aquele emprego...
P/2 - O senhor fazia restauração de tapetes?
R - Fazia restauração. Mas naquela época era para catalogar os tapetes, preparar para a venda, que vinha dos lugares como da...
P/2 - O senhor restaurava trançado e a tinta também?
R - Não, a tinta não. Já vinha tingido. Era uma arte para saber consertar e eu tinha aprendido muito bem. Eu não fazia muito isso, porque os tapetes lá não tinha muito que fazer. Era mais para preparar, catalogar; eu entendia bem do negócio. Mas eu também, quando peguei esse serviço, sabia que ia ser provisório. Eu sempre achei que eu devia ser o dono de mim mesmo e fui trabalhando. Economizava, naturalmente, fiquei logo independente...
P/1 - Só um minuto, eu queria perguntar pro senhor. Como os seus pais, já nos Estados Unidos, viviam? Eles já tinham… Eles eram americanos, tinham o green card? Eles tinham cidadania?
R - Não, eles tinham… Eram emigrantes, mas depois de cinco anos podiam se naturalizar. E dito e feito, eles se naturalizaram americanos. Aí também ficou mais fácil a nossa ida para lá.
P/1 - Em termos de profissão, o seu pai trabalhava em que lá?
R - Meu pai, na época, quando ele… Em Rhodes, ele tinha comércio. E o comércio dele era o comércio que ele já sabia de muitos anos. Tinha uma loja, vendia de tudo lá. Em Rhodes, nesses lugares pequenos, tinha… Era uma camisaria, perfumaria, tinha tudo. Um pequeno empório. Nos Estados Unidos, infelizmente, devido também à língua, que foi um pouco difícil pra meu pai falar muito bem, ele não teve condições de trabalhar a não ser em decorações de flores, como florista. E ele usava isso. Tinha boates onde ele entrava, preparava... Tinha certos dias que ia lá e levava certas decorações. E se usava muito buquês de corsais, eram chamados corsais. Tinha três, quatro boates, e ele fornecia esse serviço, mas era um serviço árduo, chato, porque era dia e de noite. Ele foi muito valente.
P/2 - Seus pais estavam morando naqueles bairros judeus, alguma coisa assim? Naqueles bairros que concentravam judeus?
R - Exato. Naquela rua, onde eu me lembro, tinha diversas famílias judias.
P/1 - Qual era a rua?
R - A rua era Cinquenta… Fifth Place. Era Vermont e Fifth Place, em Los Angeles. Era praticamente um bairro judeu. Depois, quando os judeus foram melhorando a vida deles, foram saindo e toda essa parte onde os judeus moraram inicialmente, quando começaram a vida, os pretos começaram a comprar as casas. Era um tendência da época. Meu pai, depois de um tempo [que] estávamos lá, comprou uma casa muito melhor, num bairro muito melhor. Já melhorou de vida. Todos nós estávamos lá e queríamos uma coisa sempre melhor para os meus pais, então eles venderam aquela casa e compramos outra casa muito melhor, em estilo espanhol. Uma casa muito bacana.
P/1 - Nessa escola em que o senhor estudou inglês tinha outras pessoas que tinham acabado de vir da guerra, que estavam emigrando pros Estados Unidos, outros judeus?
P/2 - Deixa eu emendar. O senhor passou quanto tempo nos Estados Unidos, antes de vir pra cá?
R - Eu passei de 1946 a 1951.
P/2 - E nesse período que esteve nos Estados Unidos o senhor se ligou mais a esse tipo de pessoas, os emigrantes judeus, ou teve uma integração com os americanos? Como é que o senhor se sentiu? O senhor se sentiu um menino perdido que parou de estudar e já era um rapaz, tinha que voltar, fazer intensivo? Ou o senhor conseguiu se sentir, viver mais como americano?
R - Não, isso é difícil. Vou dizer. O americano, quando vê que você é estrangeiro, depende de certas situações; eles aceitam até um determinado limite. Eles falam que você tem um acento simpático: “Ah, você é italiano”, “você é francês” e assim em diante. Eles jogam na cara que você não é americano.
Naturalmente, muitos começam a trabalhar e eles são até um pouco, são… Não são dadas as oportunidades iguais ao americano nascido, isto sem dúvida, mas se você entra no teu próprio negócio e começa a trabalhar por sua conta, independente do que você é não tem limite. Entende?
P/2 - Mas o senhor perdeu aquele estigma de prisioneiro de guerra, de...?
R - Não, sempre você fica. Por causa do acento da língua, você… Lá é o poder econômico que prevalece, que te dá a tua liberdade. É bonito falar frase, mas em qualquer lugar o poder cabe mais na tua capacidade de ‘suceder’ na vida. Quando eu vi isso, eu sabia que eu não ia ficar empregado, tanto que eu me empreguei com uma loja também de flores, de um patrício nosso, muito boa pessoa, e ele viajou, me deixou a gerência da loja. Eu era muito meticuloso, muito cem por cento, no sentido… Faltava...
(PAUSA)
R - E neste período, nos Estados Unidos, a vida era boa, no sentido que havia oportunidades pra todos os campos. Eu estava até de olho pra comprar uma loja e ficar independente. Eu não tinha o capital inicial que precisava, então, como meu pai tinha… Nesse intervalo, eu tive a sorte de conhecer a minha mulher; foi aí que eu… A minha mulher, a mãe dela é prima-irmã da minha mãe e ela foi aos Estados Unidos pela primeira vez em 1949, parece - exato, 49. Ela queria conhecer a minha mãe porque era prima. Minha mãe não tinha automóvel; eu [a] levei com meu carro pra visitar a casa de uma tia nossa, onde esses primos estavam hospedados - era a mãe da minha mulher, a minha sogra. Então, fomos lá...
P/1 - São de Rhodes também?
R - São de Rhodes, mas já estabelecidos aqui, há muitos anos, no Brasil. Eles foram pros Estados Unidos pra visitar essa tia que nunca tinham visto, imagina. Acontecia destes casos, sempre, entre os judeus. Eles foram, foi aquela emoção de que…
A minha tia chamou a minha mãe pra ir lá e eu acompanhei. Quando eu entrei, disse: “Vem conhecer a minha prima.” Eu fui lá, aí eu conheci a minha mulher. O primeiro impacto foi assim muito bacana; eu falei depois que ia telefonar pra ela para levá-la fora...
P/2 - Ela tinha quantos anos?
R - A minha mulher tinha, naquela época… Tinha 22 anos, parece. Eu tinha… Somos quatro anos mais velho que ela.
Depois de uns dias, eu telefonei; levei-a para as melhores boates, para ela conhecer Los Angeles. Foi paixão à primeira... No primeiro encontro, tanto que eu fiquei… Queria até ______ - é uma palavra em inglês, fugir. Queria até fugir com ela e casar. E ela, naturalmente, indo lá, quase acontecia, mas ela… Certas ponderações foram tomadas em conta, que a mãe… Aí eu fui, me declarei com minha sogra, disse que eu estava apaixonado pela filha. E ela, muito inteligente, falou, disse: “Olha, hijo, nós vamos voltar ao Brasil. Mas se for de los cielos…” Ela usou uma expressão em ladino que quer dizer: se é destino que vocês se casem, eu não tenho nada que me opor.
P/2 - Qual é essa palavra?
R - Se fue de los cielos. Se for de los cielos, será. É uma expressão típica de ladino.
Por dois anos, eu me correspondi com minha mulher. E eu achei que já era tempo, que ela… Ela estava também, depois de tanto tempo, com medo que aquela paixão, aquele amor pudesse não acontecer mais.
Eu tomei iniciativa de vir aqui, ao Rio. E gozado que quando eu me decidi ela tinha operado um mês antes, de apendicite, então ela perdeu muito peso. Quando eu desembarquei no Galeão, aquele.. No velho Galeão; quando me encontrei com ela, era magrinha, magrinha. Falei: “Cadê a minha Clara?” (rindo) Mas foi, depois… Naturalmente, foram ótimos comigo. E a minha paixão sempre… Não houve nenhuma alteração. E aí ela também percebeu que era para ser mesmo.
Depois de uns meses, nos preparamos para casar. Eu casei aqui e depois eu tinha de voltar para os Estados Unidos. E fomos…
P/1 - Casaram em religioso?
R - No religioso e no civil, aqui.
P/2 - Foi em qual sinagoga?
R - Na Rua Tenente Possolo.
P/1 - Conta um pouquinho do casamento. A sua família veio?
R - Ah, do casamento. Foi uma… Não, infelizmente não. Não vieram porque… Até eu estou achando estranho, podiam ter vindo, mas… Foram pegos de surpresa, não esperavam tão cedo.
Antes de acontecer o casamento, os meus sogros, por uma razão muito óbvia, porque eu morava muito longe - outra mentalidade, outra cultura -, eles não estavam muito propensos a casar a filha comigo, mesmo sabendo quem eu era, de família, da mesma família, Nisso não havia nenhum obstáculo. O obstáculo era a distância, cultura, mentalidade, enfim… Mas tudo isto, quando me conheceram, mudaram, viram que eu, modéstia à parte, era um rapaz sério, direito.
Antes de acontecer este ponto, mesmo nas minhas cartas com ela, durante dois anos, ela, às vezes, mostrava relutância de assumir um compromisso definitivo. Aí veio uma amiga da irmã dela, Olguinha Abramsohn - até hoje somos amigos muito íntimos. Eu os chamei aqui, vieram para Los Angeles, um ano antes de eu vir aqui, e eu pedi para ela que intercedesse, que falasse, toda aquela história. Que amaciasse um pouco os meus sogros. E ela fez também. Disse: “Não, é um rapaz isto e aquilo…” Ela ajudou bastante, tanto que quando nos casamos, eu pedi que ela fosse a nossa madrinha de casamento.
No dia do nosso casamento, como os meus sogros são muito bem relacionados aqui, de uma família tradicional, havia quase toda a… Todos os judeus. Tinha mais de trezentas ou quinhentas pessoas no casamento. Foi um casamento muito grande. Eu me lembro, eu estava aqui...
P/1 - Quando foi o casamento?
R - Foi em onze de… 21 de novembro [de] 1951. Nós nos casamos e, naturalmente, como eu aqui não tinha… Eu tinha gostado muito do Rio de Janeiro; achei que era um país de futuro, um país jovem. Eu, de fato, estava muito entusiasmado, aí eu disse pra minha mulher: "Olha, vamos lá. Vamos trabalhar uns anos, eu faço um capital pra poder vir aqui e aí podemos nos estabelecer com mais comodidade.” Desta maneira, poderíamos não depender de ninguém porque você já cria uma certa independência. E outra coisa, assumir a vida por suas próprias forças.
P/2 - Mas o senhor ganhou dote, aquela coisa toda?
R - Não. Não houve dote. O meu maior dote foi minha mulher. Para mim vale qualquer… Dote, propriamente, não. Em dinheiro, não. Achei aquilo tão...
P/2 - Mas eles chegaram a propor? Porque é… Já é natural, né?
R - Não. Eles fizeram a festa, foram muito bacanas, pagaram a passagem de navio [na] primeira classe. Achei que aquilo já era uma coisa maravilhosa. E não houve dote porque eu achei que isso era nos tempos antigos que se usava. A melhor coisa que eu fiz foi de ter casado com a filha deles, que até hoje é uma coisa que não tem preço, no sentido… Mas antigamente se usava dar dote. Aliás, é uma característica… Mas não houve necessidade disso.
Então voltamos aos Estados Unidos. Inicialmente, como eu tinha um emprego, por fatos de economia, naturalmente, moramos uns tempos com meus pais. A casa era grande, tivemos um quarto, mas eu achei que aquilo não era saudável. Até aconselho a ninguém a morar com os pais, mesmo por um dia. (risos) Não, é verdade. Eu adoro meus pais e não aconselho ninguém morar com os pais. Casou? Vai num hotel, numa barraca, vai em qualquer lugar, mas com os pais… Negativo. Tanto de um lado como de outro. Mas eu fiquei uns tempos com eles.
Logo depois, eu encontrei um negócio que era uma boa oportunidade. Eu não tinha o dinheiro porque era cash, era dinheiro à vista, aí eu pedi que meu pai me emprestasse essa quantia, que na época foi mais ou menos dez mil dólares. E eu comprei esta loja, o ponto, com todas as contas dessa loja, que tinha um movimento muito bom.
P/1 - Era loja do quê? Era floricultura?
R - De flores. Floricultura e plantas, decorações de plantas. Tinha hospitais, tinha as coisas que eles tinham contratos mensais, e então a primeira coisa quando comprei… Lá é tudo tão prático, nos Estados Unidos. É uma maravilha. Comprei a loja logo e comecei a trabalhar como nunca trabalhei na minha vida. Primeira coisa: eu pedi a meu irmão que me ajudasse. Pintamos a loja, modernizei, fiz… Virou outra vista. E comecei a trabalhar. Em seis meses, eu tinha pago de volta a meu pai.
P/1 - Fruto do seu trabalho.
R - É. Eu trabalhei, trabalhei. E minha mulher...
P/1 - Sua esposa não trabalhava?
R - Não. Ela vinha, me ajudava às vezes, aí ficou grávida do meu primeiro filho.
P/1 - Como é o nome de solteira da sua esposa?
R - Clara Israel, da família Israel.
Ela vinha, mesmo grávida. Eu me lembro uma vez… Ela me trazia a comida, preparava tudo e trazia. Pegava o ônibus. Eu tinha uma camioneta que usava no meu negócio e ela, naquela época, não sabia dirigir. Depois, eu achei um absurdo ela me trazer essas coisas e não queria, mas éramos tão apaixonados e tão unidos que ela preferia vir e ficar comigo na loja.
Trabalhei uns três anos e meio e neste intervalo, nós fizemos amizades. Tínhamos parentes que estavam muito bem de vida, tinha outros… Eu frequentei a sociedade, a sinagoga. E a sorte nossa é que alugamos um apartamento numa seção muito nova, muito bonita em Los Angeles, em _____ Park, que era um bairro novo. Nós conhecemos um casal, também de judeus, que como nós estava começando a vida.
P/1 - Americanos judeus?
R - Americanos judeus. Ficamos logo amigos, até hoje somos amigos íntimos. Toda vez que ele vem, fica na minha casa; quando eu vou lá, fico com eles. Não na casa deles, mas ficamos com irmãos.
Isso foi uma coisa muito boa pra minha mulher porque [ela] tinha [uma] amiga com quem conversar. Minha mulher é uma criatura muito dada, muito simpática; não tem uma pessoa que não goste dela, então ela fez muita amizade com este pessoal, deste conjunto de apartamentos. E lá, para lavar a roupa tinha lavanderias automáticas, se encontravam lá. Depois vieram na nossa [casa], tivemos reuniões, jantares.
Começamos a socializar muito, com muita gente, com muitos parentes. Já tínhamos nosso apartamento. E uma coisa que eu me lembro: logo que comprei… [Que] alugamos o apartamento, fomos numa loja especializada de móveis. Eu me lembro até agora o nome, San Fernando Furniture Co. Fomos lá e num dia escolhemos todos os móveis do apartamento. E eu… Por incrível que pareça, aquele sofá curvo que eu tenho até hoje é daquele tempo. As mesinhas do lado, com mármore preto, são italianas; compramos lá. Era facilitado o pagamento, eu já tinha negócio, então podia comprar fácil, quer dizer, tinha crédito. E paguei logo porque eu trabalhava [de] dezoito até vinte horas por dia. Quer dizer, trabalhei...
P/2 - A sua esposa, no Brasil, chegou a estudar, fazer faculdade?
R - Ela chegou a fazer… Ela cursou aqui a Santa Úrsula. Ela pegou, se não me engano, Filosofia ou Letras, uma coisa assim. Mas ela estudou no Mackenzie, em São Paulo. Num colégio muito bom.
Ela tem uma preparação muito boa, acadêmica. Tanto que em inglês não teve problema, porque ela estudou muitos anos aqui. O Mackenzie era um colégio dirigido por americanos, lá em São Paulo, então ela não teve nenhum problema.
P/1 - E o contato, Senhor Franco, com os americanos? O senhor fala que se relacionava muito com os parentes. A princípio...
R - Parentes e eu... Uma coisa, aliás, que hoje eu estou entendendo, [é] que nós também somos, numa parte, culpados; os próprios judeus são culpados. Nós nos assimilamos com as nossas próprias… Por uma autodefesa. Entretanto, nos Estados Unidos, está havendo uma mentalidade nova, da nova juventude, que se acha americana. Eles integraram o sistema típico do país. De religião ou cultura são judeus, mas de preparo, de vida social são estritamente americanos. Este ponto… Acho que às vezes nós chamamos o antissemitismo dos outros, mas acho que nós usamos o antissemitismo pelo avesso também, que nós também criamos certas barreiras. Não deveríamos criar, mas isso não vem ao caso agora porque é um longo processo para isso.
P/1 - Não. Eu só queria saber, depois da guerra, como foi pro judeu se estabelecer em outro país, nos Estados Unidos. Se havia, realmente, uma coisa ainda clara de antissemitismo por parte da população. O senhor...
R - Havia. Era um antissemitismo velado. Naturalmente, eles não acreditavam [em] tudo aquilo que tinha acontecido, pra eles era inacreditável tudo isso. Mas havia, como eu te falei agora há pouco… É [com] o poder econômico que você cria a sua própria independência e respeito, por incrível que pareça. Em certos setores da vida ou das artes, digamos assim, a sua inteligência, a sua capacidade de criar, às vezes, é apreciada exatamente por isso, no meio artístico. Mas no meio comercial você é admirado e respeitado pelos sucessos que você conseguiu ter na vida. E como você consegue? É pelo poderio econômico que você consegue ter. Ou pelas expansões.
Um exemplo: tem um judeu, Murdock, na Inglaterra; ele era de origem romena, não sei de onde, e ele foi um arquibilionário. Hoje em dia, ele é chamado de outsider, quer dizer, o de fora. Não é aceito, sem exceções. Nos Estados Unidos… É um país de fato de… Há antissemitismo, como em todo lugar, mas muito menos. Especialmente após [a] guerra, depois de tudo que os nazistas conseguiram, então havia uma liberdade completa. E os judeus, aqueles que souberam trabalhar, conseguir se expandir e suceder, tiveram grandes chances. Os judeus são muito respeitados nos Estados Unidos.
P/2 - E as divisões entre judeus permaneceram nos Estados Unidos? Sefaradim, ashkenazim, da Polônia, da Alemanha, da...
R - Olha, eu estava lendo… Aliás, eu sou grande devorador de livros. Adoro ler e li milhares de livros. E uma das coisas que eu gosto é da história judaica. O que eu li, infelizmente, [é] que o nosso povo sempre lutou entre si, desde a época inicial do nosso Estado, da época de Salomão, de David, destes reis. Houve sempre uma desunião entre nós, por questões até de religião. Havia sinagoga, na época, milhares e milhares de anos, em Israel; cada sinagoga tinha um ritual diferente, cada um não concordava com o outro. Então eu digo que havia, de fato, por questões de origens, entre os sefaradim e ashkenazim, uma divisão, mas era mais cultural, entende? Não de religião.
P/2 - E política, em relação aos Estados Unidos? Porque os judeus lá participam bastante na política.
R - Muito. Eles são muito ativistas, participam da vida americana, são grandes beneficiadores por obras de caridade. Não só judias, como também de outras entidades, cristãs também. Eles dão porque se sentem livres e, ao mesmo tempo, não há essa marcação que na Europa havia, de séculos e séculos. Nos Estados Unidos era mais suave.
Naturalmente, você chegava nos Estados Unidos, naquele início… Em todos os governos os judeus eram apreciados. Na Europa, infelizmente, não. Mas havia… Nós, por exemplo, éramos de Rhodes. Havia uma comunidade lá em Los Angeles que tinha sua própria sinagoga, então o que acontecia? Todos esses grupos, acima de um número razoável de famílias - digamos, não sei, quinhentas, duzentas famílias, não sei exatamente quantas foram - se formava entre eles. E por razões de costumes, de tradições, eles formavam a sua própria sinagoga, onde os cultos religiosos eram seguidos da mesma forma que os antepassados. Porque havia também uma questão de gostos. Você vê, os sefaradim, a própria leitura da... Hebraica, ela é mais tipo Oriente Médio. É mais árabe, tem uma origem árabe, de cantar as coisas. Já os ashkenazim são um pouco diferentes. Hoje estão percebendo que a maneira que se fala o hebraico do sefaradim é mais certo do que a maneira que os ashkenazim falavam. De fato, isto foi comprovado, então, havia divisões.
Isso não impedia que você entrasse na sinagoga dos ashkenazim e vice-versa. Havia interrelações entre os grupos em questões vitais, em questões globais, de religião ou até de... Questões de demarcar certas… Não digo estatutos, uma maneira de culto, as modernizações do Torá. Havia uma interligação entre todos os judeus. Havia congressos onde todos os sefaradim, ashkenazim participavam, onde se ditavam novas medidas, novas coisas.
No início… Eu acredito [que] depois da Segunda Guerra Mundial, não houve mais aquele tabu de casar ashkenazim com sefaradim, especialmente nos Estados Unidos - foi o local mais apropriado, onde não houve nenhuma [das] ideias separatistas que haviam cá. Ao contrário, se compatibilizaram muito bem juntos, casando famílias entre ashkenazim e sefaradim, com grande sucesso. Quer dizer, a origem era a mesma, só os costumes que eram diferentes.
Eu me lembro [que] na época, quando estive nos Estados Unidos, eu ia com meu pai, pertencia a sinagoga, mas eu gostava daqueles cantos hebraicos cantados no nosso sistema, porque desde garoto eu… E eu fui, depois, a umas sinagogas ashkenazim, que também eram maravilhosas, lindas, mas os cânticos, as coisas eram diferentes. Não apreciava. É a mesma coisa que um ashkenazim tivesse vindo na nossa sinagoga; ele não iria gostar tanto quanto eu gostava dele. Isso é normal. Mas fora disso, de cultos, havia completamente liberdade.
[É] gozado, eu me lembro que por uma questão de conveniência ou… De costume também, a pessoa não se abrange fora. Ela permanece. Eu espero que agora, futuramente, isto seja como exemplo que o judeu deve se expandir e assimilar onde ele viver, a cultura do próprio país. Não deixando de ser o que é, mas pertencer de uma maneira… Porque assim ele será aceito de uma maneira mais aberta, mais sincera.
Ainda permanecem certas peculiaridades e coisas que com o tempo vão desaparecer - que Cristo foi assassinado pelos judeus, que os judeus, na Páscoa, matam criança, todas aquelas bobagens. Isso já é do passado, mas nós devemos pertencer ao país onde vivemos. Eu acredito [que] manter nosso… Manter a chama da nossa tradição, isso eu acho um patriotismo para eles, de Israel. Nunca deve ser também… Porque não vamos esquecer, se acontecer um outro holocausto o único lugar seguro que teremos é Israel, então não podemos esquecer Israel. Eu nunca esqueci.
Não sou religioso, mas me considero muito patriota e, dentro das minhas possibilidades, eu dou o máximo que posso para Israel porque é a única maneira de manter Israel. É a única salvação nossa, senão… Mas se até hoje os judeus não desapareceram, não vai ser agora que vão desaparecer. (risos)
P/2 - Bem, o senhor estava falando que depois de três anos e meio de trabalhar na sua loja de flores, resolveu...
R - Exato. Eu tinha feito com minha mulher… Não propriamente um trato. Mas como ela, depois de um certo tempo, como ela… Estávamos apaixonados e eu tinha falado: “Na verdade, se você acha que quer voltar para sua família, nós voltamos.” E o que fizemos foi isso. Depois de três anos e meio, foi por uma coceira… Ela mesmo está falando que se tivesse morado mais seis meses não queria mais voltar porque ela assimilou muito a mentalidade americana. Ela gostou do sistema americano de vida, gostou da maneira aberta, livre [com] que você se expressa. E as amizades lá são… Realmente verdadeiras. Ela criou amizade com essas amigas; de fato, ela não estava querendo voltar, mas voltou porque ia se reencontrar com a família. Quem não gostaria? Especialmente uma filha, se reencontrar com os pais, irmã e os irmãos?
Eu decidi vender… Tinha feito já um capital bastante para eu pagar todas as despesas de navio, porque eu mandei todos os meus móveis de navio. Sim, porque eram móveis bons e novos, então achei que era uma pena. E eu trouxe um carro - era permitido, naquela época, trazer um automóvel. E...
P/1 - Eu só queria… Quer dizer, sem o motivo da família, o senhor, na primeira vez que veio pro Brasil, já tinha gostado daqui? Qual foi a sua impressão do Brasil?
R - Eu, quando estava trabalhando na floricultura, não era um trabalho que me agradava muito. Achei que não estava à minha altura, esse trabalho que eu fazia, Mas como eu também, lá nos Estados Unidos, sabia que era uma coisa provisória, eu podia muito bem, se tivesse ficado lá, mudar de ramo. E qualquer ramo que eu tivesse empreendido, eu ia ser um sucesso. Talvez mais que aqui. Mas gostei daqui porque era a mentalidade latina. Eu [era] acostumado, na Itália... Não que eu tivesse me acostumado nos Estados Unidos, ao contrário. Até hoje a minha leitura preferida é em inglês, raciocínio, tudo em inglês, muito mais do que em qualquer outra língua. Mais que o português. Mas eu… Como eu achei que aqui poderia mudar de ramo, havia uma chance. E sabendo que minha mulher ia ficar mais contente…
Pensei que aqui, de fato, era [o] país do futuro. E quando me mudei, até tinha discutido uma coisa com minha mulher, que eu me surpreendia que aqui não havia assaltos a banco. Eu até falei: “Clara, que maravilha de país que nós vivemos. Não tem assaltos a banco!”
P/1 - Por que, tinha nos Estados Unidos?
R - Nos Estados Unidos já tinha, se falava. Assaltos. E aqui… Gozado, depois de anos que eu estava aqui que começaram os assaltos. Até parece que foi mentira, foi urubuzando lá. Palavra de honra, não tinha assaltos aqui. Não tinha.
P/2 - Não tinha mesmo. Isso é coisa bem mais recente.
R - Não havia assaltos na rua. Na rua a gente andava, era educada, todos bem arrumados; muito mais civis, muito educados. Havia uma elegância de ser do brasileiro que era uma coisa que me agradava. Era uma coisa cerimoniosa. Depois, com o tempo, foi dada uma virada tão brusca que os valores básicos mudaram aqui. Hoje não tem respeito pra nada, hoje é salve-se quem puder. Além disso, a própria cultura deu um avanço tão rápido que perderam os princípios elementares do que é uma civilidade e respeito pelos outros. Não há mais. Você pega os automóveis, pega tudo aqui, cada um acha que pode fazer o que quer.
Tudo isso, palavra de honra, hoje estou surpreso como o Brasil mudou. Aqui no Rio - felizmente que só aqui no Rio, porque São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, nesses lugares, a vida é outra. É outra civilização lá. Aqui no Rio piorou, mas em todos os sentidos. Infelizmente, piorou. Eu viajo, vou muito a São Paulo e tudo, vejo lá, é muito mais civilizado. E muito mais educado, todo mundo. Lá é que é o verdadeiro Brasil. Aqui, não sei o que houve. Tô querendo entender até hoje as causas, porque chegou tudo isso. Não sei encontrar as causas.
Parece que houve um socia... Não que eu seja contra um socialismo puro, de massas, mas houve aqui um… Desandou completamente tudo. Não há nada mais que mantenha. Você repara, nas ruas, a gente… Antes te esbarravam, pediam desculpa: “Ah, desculpe.” “Oh, minha senhora.” Toda aquela educação. Desapareceu aqui no Rio.
Mas enfim, eu estava dizendo… Quando eu voltei dos Estados Unidos, eu tinha trazido as coisas. Eu fiquei na casa, desta vez, dos meus sogros. Fiquei porque não ocorreu…. Viemos ainda encontrar [uma casa]. Eles foram muito bacanas, muito gentis. [Foi] muito bom. Eu já tinha vindo com um filho e achei que minha mulher também, não era justo eu sacrificar... Ela não, porque ela estava se sentindo bem na casa dela, mas eu achei que era um sacrifício pros meus sogros eu abusar demais. Depois de... Não sei, no máximo um mês, parece, um mês ou dois, aluguei… Encontrei esta loja daqui, entrei como sócio.
P/1 - Foi o primeiro emprego que o senhor teve no Rio de Janeiro...
(PAUSA)
P/1 - Então, o primeiro emprego que o senhor teve no Rio foi a compra da loja.
R - Então, quando nós ficamos aqui, eu, naturalmente, estava procurando me estabelecer e tive também a sorte com meu cunhado, o Jacques Soriano; ele conhecia o dono desta loja. Ele sabia que ele estava procurando um sócio. Eu entrei, gostei daqui, e logo que eu entrei, seis meses depois, minha mulher já estava grávida do segundo filho. Quando o meu segundo filho nasceu… Todos eles me trouxeram muita sorte. Tanto o grande como o pequeno.
P/1 - Como é o nome deles?
R - Robby. Roberto Luiz Franco é o pequeno. E o grande é Henry Morris Franco. Quando nasceu o segundo filho, meu sócio decidiu que queria largar o negócio e me ofereceu comprar a parte dele, aí eu fiquei dono. E foi na data que meu filho nasceu. Quer dizer, quando nasceu, eu fiquei dono absoluto da loja.
P/2 - Era brinquedos, sempre foi brinquedos?
R - Não. Era tecidos.
P/1 - Como era o nome da loja?
R - Desirée. Era uma loja muito conhecida. E logo no primeiro dia eu fiquei sozinho, fiz uma reforma logo, modernizei a loja. Abri as portas, modernizei, fui a São Paulo comprar...
P/1 - Era aqui no ponto, na Galeria Menescal, em Copacabana?
R - Esse mesmo. Estou aqui há mais de 35 anos. Mas era Desirée.
Logo quando eu fiquei sozinho, nós moramos na Santa Clara; aluguei um apartamento. E eu tinha prometido a minha mulher que no décimo aniversário do nosso casamento eu ia levar ao redor… Fazer uma viagem ao redor do mundo. Quando chegou o décimo aniversário… Neste intervalo, eu [estava] trabalhando aqui, nesta loja. E sempre progredindo, porque comecei com uma mentalidade nova de botar tecidos mais finos, estamparias; eu gosto de coisas, estampas arrojadas.
Eu era conhecido como a loja que tinha mais sedas puras arrojadas. Era uma… Tinha uma clientela muito boa. Senhoras da alta sociedade vinham aqui para comprar. Eu, naquela época, era jovem, tinha aquela ambição; eu, pessoalmente, ia atender as senhoras e criei muitas amizades com essas senhoras.
Depois de tantos anos de trabalhar, chegou o décimo aniversário de nosso casamento. Eu falei para Clara, chamei uma companhia de viagem… Eu tinha economizado dinheiro para esse fim; toda vez separava para fazer uma viagem assim, como manda o figurino. Tinha acumulado um certo capital e essas coisas para a viagem, fora outros investimentos que eu consegui fazer durante esses anos. Aí falei pra ela: “Olha, agora vamos viajar.” Ela disse: “Como estamos num apartamento alugado, eu preferiria ver se comprássemos, com isso damos uma entrada pra comprar um apartamento.” Achei a ideia dela maravilhosa. Falei: “Muito bom.”
Entramos em campo procurando apartamento para comprar. Tivemos a sorte de encontrar um, que é onde estamos morando agora, que ela gostou, por ser amplo. Os garotos eram pequenos, era um apartamento que eles podiam crescer com um certo espaço.
Logo entrei em tratativas com o dono para ver, e faltava uma importância. O dinheiro que eu tinha separado para a viagem não era suficiente porque ele queria metade de sinal e a outra metade para pagar em 24 meses. Eu não tinha isso. Eu falei, ele era completamente… Disse: “Eu não posso.” Queria cobrar juros. Eu aceitei que cobrasse juros. Paguei tudo que eu tinha para ele e mais, eu pedi mais trinta dias para pagar a outra parte; depois, 24 meses. Dito e feito, foi comprado nessas condições.
Nesse intervalo, eu fiz outras aplicações, comprei outras propriedades, e foi pago. E esse senhor Landau, um judeu também, muito simpático, ele sempre vinha no dia primeiro, para receber a promissória. (risos) Passava com o chofer dele...
P/2 - Essa frase que o senhor falou, “o que determina é o poderio econômico”, isso é muito forte na sua cabeça? O senhor desejou sempre ficar rico, alguma coisa assim? O senhor tinha essa necessidade de ficar rico pra não sofrer determinadas coisas?
R - Isso eu não sei. Isto foi uma… Eu não sou rico, digamos assim, rico na palavra geral. Eu sou rico no sentido de bens que eu adquiri. Tenho uma mulher que eu adoro, tenho filhos, uma família; isso pra mim vale do que qualquer coisa. Mas em bens materiais, eu consegui ter uma coisa. Por diversos fatores, um [deles], por uma certa ambição. Mas essa ambição minha nunca foi de querer sacrificar o outro para eu poder chegar primeiro.
P/2 - Essa sua ambição, ela vem do senhor. Desde a época que o senhor ficou sozinho na guerra, o senhor trabalhou para sobreviver...
P/1 - Teve que ter ambição, né, pra...
R - Exato. Para poder não só sobreviver como também conseguir. Eu sou uma pessoa… Não digo ambiciosa, mas sou uma pessoa que gosta das coisas que o poder econômico dá. E saber viver, saber.. Ver uma peça, como uma bela mulher ou um belo quadro ou uma peça de arte, um bronze. Ter o desejo de ter uma coisa bela, feita assim de maneira… É um desejo que eu gosto. Talvez isso… Há um fundo psicanalítico também.
P/2 - Porque as belas mulheres não se compra. (risos)
R - Não. Isto eu sei que não se compra, mas você pode... Eu tenho uma bela mulher, que é a minha mulher. Então eu já tenho uma, entende? (risos) Disse as outras belas mulheres como… A mulher é um símbolo de beleza muito poético, muito romântico.
Eu sempre quis coisas, mas não pelo fato… Eu acho que querer e poder são duas coisas diferentes. Uma pessoa pode querer [e] não conseguir por fatores de destino, de sorte. Eu acredito, há sempre uma mão que protege. Uma coisa meio mística. Eu sou assim. Não sou muito supersticioso, mas acredito em muita coisa dessa. Mas também precisa trabalhar e ter vontade férrea de conseguir, não sair desse caminho. Eu tive, de fato, porque eu vi...
Eu passei muita miséria na Itália. Eu comia dias a fio um pedacinho de pão que era quase escuro, não tinha nada de farinha dentro, com duas, três azeitonas. Eu tive um tratamento, caiu os meus cabelos de má nutrição. Era garoto de quinze anos, vaidoso, como qualquer garoto nesta idade; de repente, de manhã, vou pentear os cabelos [e] me cai toda essa parte de cabelo. Fica uma parte branca aqui.
Eu fiquei apavorado. Fui num médico e ele logo diagnosticou que era má nutrição. Esse próprio médico, um judeu muito bom, me ajudou, me deu comida.
P/2 - O senhor falou sobre ele.
R - Nós falamos. Então é isso. Você vê, eu tinha isso, passei miséria. Quem passa miséria quer ter as coisas que deseja. Mas não… Eu não sou ganancioso. E não piso em cima dos outros.
P/2 - Que tipo de educação o senhor e a sua mulher vinham dando a seus filhos, em relação a esses pensamentos que o senhor tem sobre assimilação, não assimilação dos judeus? Que tipo de educação o senhor tentou passar pra eles?
R - Olha, eu dei uma educação muito liberal a meus filhos. Tanto é verdade que o último, o meu pequeno, quando namorou a própria mulher, não sabia - ambos não sabiam que eram judeus. Quando eles tomaram compromisso, os dois tiveram a grata surpresa de...
P/2 - Mas eles não falaram sobre isso?
R - Não falavam tanto de religião, de origem. Quando falaram da origem, [ela] disse: “Não, eu sou judia.” Então ele disse: “Eu também sou judeu.” (risos) Foi uma coisa que… Mas eu até estava me preparando, por que minha mulher era mais liberal. Agora já mudou, ela está muito mais… Ela virou [uma pessoa] mais fechada. Ela me preparava [pra] que um dia meus filhos pudessem casar fora da religião e eu estava conformado. Mas tive a sorte que os dois...
P/1 - Mas na casa do senhor, quer dizer, o senhor manteve algumas tradições? O senhor trouxe consigo algumas tradições, alguns rituais. O senhor manteve na sua casa alguma coisa típica da sua cidade? Havia comemoração das festas religiosas?
R - Olha, eu falava muito com meus filhos… Havia. Devido aos meus sogros, eram respeitados. Mas eu, pessoalmente, nunca falava tanto de religião e sim de história de Israel, contava a história pra eles. O pouco que eu sabia...
P/2 - Mas, por exemplo, no Yom Kippur, eles iam espontaneamente à sinagoga? Não iam? Jejuavam quando queriam?
R - Exato. Eram livres. Porque meu pai, por incrível que pareça, ele era muito religioso, mas ele me educou livre. Talvez, por causa da separação que nós tivemos, dos sete anos, eu perdi um elo de continuidade com ele. Como eu fui educado muito livre, eduquei também meus filhos livres. Entretanto, eles… [Eu] contava as histórias e eles queriam um ambiente típico judaico de família - não muito religiosa, quase não religiosa, mas muito patriótica. Eles assimilaram o que mais importante que tem, as raízes da nossa cultura. E eles se criaram… Tanto que meu filho trabalha, é vice-presidente do Fundo Comunitário; chegou a esse ponto por causa da dedicação que ele tem pra Israel. Ele foi lá quando era garoto, ficou seis meses no kibutz, trabalhou lá. E o outro meu filho foi lá, adoraram Israel. Quer dizer, são patriotas. Mas não temos muita… Não somos fanáticos pela religião.
P/1 - Em termos de costumes, na sua casa… Quando comemora-se hoje alguma festa religiosa, se comemora à la Rhodes as tradições, as comidas, os cânticos, o casamento? A sinagoga que o senhor frequenta no Rio de Janeiro?
R - Olha, para ser sincero, quando meus sogros viviam, era celebrado à risca no sistema de Rhodes. Quando eles faleceram, as tradições, por incrível que pareça, desapareceram, deixando saudade até para os meus filhos - até hoje eles querem aquele ambiente. Era poucas vezes por ano, mas era um ambiente familiar e gostoso, até de religião, daquelas… De Pessach, de Yom Kippur, de Rosh Hashanah. Eram lindas e eles sentem saudade disso.
Eu, infelizmente, não sou religioso. Eu não sei nem ler hebraico, então não...
P/2 - As suas duas noras acendem velas, na sexta-feira?
R - Eu não sei se acendem, acredito que não. Mas minha pequenininha, ela que está… A minha netinha, Tatiana, está num colégio hebraico e ela vai trazer isso de volta, esses costumes. Eu estou sentindo, ela já faz em casa.
Aprendeu hebraico, está aprendendo hebraico. Ela que vai trazer de volta a nossa família.
P/2 - Com relação também à carreira profissional dos seus filhos, o senhor foi liberal, eles escolheram o que queriam? O senhor tinha… Fez aquela coisa que os pais faziam: “Não consegui ser médico, quero que meu filho seja”?
R - Não, não. Eu, naturalmente, queria que tivessem, de qualquer maneira, uma educação universitária; que se formassem e que escolhessem o que queriam. Tanto é verdade que eles fizeram, escolheram.
O Rick é um rapaz brilhante como o outro; são dois rapazes brilhantes, cada um na sua profissão. Ele gostou mais de artes, é mais criativo. O outro pegou uma coisa que eu acho, que até não sei como ele é até hoje… É uma profissão muito ingrata. Ser psicanalista não é fácil. Ele estudou, se formou psicólogo; depois entrou na faculdade, se formou em Medicina. E agora já foi aceito na Sociedade de Psicanalistas, está fazendo o curso de especialização. Daqui a pouco, ele vai se formar - formar não, ele já está formado. Vai ser aceito como...
P/2 - Essa carreira do seu filho teve relação com a sua entrada na psicanálise?
R - Não, isso não tem nada a ver. Ele gosta disso, gostou. E gozado é que eles escolheram completamente livres.
Eu fui um pai severo até um certo ponto, mas fui liberal, quase nunca bati em meus filhos. Nunca bati neles. Eles me adoram e eu acho que os adoro exatamente porque tivemos muita comunicação. Uma coisa que eu sempre fiz questão, desde meninos: nunca deixamos de conversar, de falar. Eles me traziam os problemas deles e eu estava lá pra ajudar, pra aconselhar, quando devia, quando não devia. Enfim, houve uma comunicação que até hoje se mantém, espero até morrer que seja sempre assim. Eles são maravilhosos.
P/1 - O senhor frequenta alguma sinagoga no Rio de Janeiro?
R - Frequento a sinagoga, gosto muito da ARI e frequento também o CIB, a Beth-El - esta sinagoga sefaradim, aqui.
P/1 - E a comunidade de Rhodes, existem outras pessoas?
R - Muito poucas. Já não tem muitos agora. Tem poucas famílias.
P/1 - E sobre o restante da sua família? Seus pais já faleceram?
R - Meu pai faleceu. Minha mãe, graças a Deus, [está] viva ainda. Da parte de meus pais que são da família Franco, teve uma ramificação de não sei quantos irmãos e todos eles tiveram muitos filhos. Eu tenho primos em toda a parte do mundo. Tenho em Buenos Aires, tenho também em Israel, que recentemente encontrei; não tinha nunca visto porque quando saí de lá ele já tinha saído antes, e na Europa também tem bastante Franco. Quer dizer, é uma família que tem muitos descendentes, que estão aí.
Da parte da minha mãe, que são da família Turiel, infelizmente não são muitos, são poucos. É uma pena. Tem um primo meu que é Turiel, é um rapaz jovem, tem quarenta e poucos anos. Ele está se separando da mulher e não tem filho, tem só filha. Quer dizer, parece que o nome Turiel acaba com ele. Eu espero que não, mas se ele não casar e tiver outro filho, vai acabar.
P/2 - O senhor desenvolveu ou desenvolve alguma atividade política? Dentro do sionismo ou fora, o senhor participa de alguma coisa?
R - Houve época que eu trabalhei para levantar fundos para Israel, mas eu sou uma pessoa que me irrita muito pela avareza de muita gente que eu conheço. Gente que tem muito dinheiro, muitos são amigos meus e não querem dar por avareza mesmo. Eu criei muita… Perdi até alguns amigos por causa disso. Achei melhor não participar, porque eu tenho cabeça quente. E se eu sei que você tem e não quer dar, eu te xingo de todos os nomes porque acho que todo mundo tem de dar para Israel e eles não deram. Eu fico chateado porque infelizmente tem gente que toca muito no bolso deles, entende?
P/2 - Quando o senhor diz que o judeu deve ser nacionalista também daquele país onde vive, o senhor pensa isso em relação ao Brasil? Quer dizer, é sua política em relação ao Brasil?
R - Sem dúvida. Eu acho que o Brasil é um país que tem um… Estruturalmente é um país onde todo mundo anseia em ficar livre desta… Mas não vamos esquecer também certas verdades - que aqui no Brasil, como colônia portuguesa, tivemos muitos casos de antissemitismo, muito fortes, até de gente perseguida na história por causa de antissemitismo.
Eu tenho fé no Brasil. É um país jovem, um país que quer amadurecer. Eu tenho... Eu espero que mude, para que meus netos tenham um país de liberdade. Como país exemplo, que eu posso citar por ter vivido nele e conhecido outros países, acho que não tem país como os Estados Unidos. Isso é… Eu espero que o Brasil venha a ser o segundo lugar como [exemplo de] liberdade. Vai ser difícil, porque…
Eu participo aqui dentro, mas te digo francamente, como eu conheço como sou nervoso, e muito, às vezes, tempestivo, eu evito de fazer certos trabalhos que possa prejudicar o próprio trabalho em si, que precisa ser mais diplomático, e eu não sou. Vou prejudicar a causa, vou prejudicar a própria origem do trabalho que entendi de fazer. Não vou conseguir fazer, então evito fazer essas coisas. Já me ofereceram certos cargos que eu recusei...
P/2 - Isso dentro da Federação, dentro da área...
R - É. Dentro daqui, da comunidade sefaradi, me ofereceram certos cargos. Eu fui secretário-tesoureiro aqui do CIB, num período de dois anos. Agora, parece que vão ter eleições de presidente do CIB; me ofereceram a presidência, mas eu, infelizmente, não… É um trabalho que precisa-se dedicar, sei lá, 24 horas. E como eu trabalho muito, não quero prejudicar porque sou uma pessoa... Se pego uma coisa, faço bem. Como eu não vou ter tempo, eu recusei. Mas deve ter muita gente boa lá que… Vão pegar a peteca, como se diz.
P/2 - Eu queria fazer mais uma pergunta. O senhor falou que está nessa loja há trinta anos. Eu queria que o senhor historicizasse um pouquinho esses trinta anos de loja. Depois o senhor mudou de ramo. Como foi essa trajetória aqui na loja?
R - Essa trajetória foi o seguinte: durante muitos anos, o próprio tecido era vantajoso. Depois a moda começou, a moda pronta, se lembra? Há uns quinze anos. As confecções começaram a tomar conta, então era mais barato comprar uma coisa pronta que mandar fazer.
Eu vi, teve um tempo que os negócios estavam caindo. E era tudo moda. Uma época era de veludo - além do veludo, devia ter uma determinada cor de roxo. Só se vendia roxo. Eu estava... A loja cheia de tecido, não se vendia nada, a não ser veludo roxo. Aí eu falei: “Não, isso não pode.”
Comprei uma loja aqui perto e eu, na época, tinha ajudado meu cunhado a abrir outra loja de brinquedos. Eu achei que brinquedos era um.. Havia importação de brinquedos, naquela época, achei que ia testar para ver esta loja. Como a loja é de propriedade minha - não esta, a outra que eu comprei -, aí eu fiz brinquedos. E importei muitos brinquedos do Japão.
P/1 - Qual era a loja?
R - Aqui, a Carrossel. Aí eu comecei a abrir as outras lojas. Comprei uma em Ipanema, aquela também é minha propriedade, e aluguei outras que não pude comprar.
Meu filho começou, ele montou as lojas no shopping; foi ele que fez, que preparou. Tudo ele que fez - aliás, tenho que dar muito mérito a ele porque ele sozinho que fez as duas lojas.
Todo esse período de trinta anos trabalhando - naturalmente, progredindo - viajando, comprando, fazendo, crescendo família, tendo Bar Mitzvah, foi uma vida muito cheia e muito completa. Muito...
P/2 - E quando é que o senhor realizou, então, a promessa da viagem ao mundo? Realizou?
R - Não. Nós viajamos muitas vezes.
Por incrível que pareça, na mesmo época que eu comprei o apartamento, mesmo comprando, [se] passaram poucos meses e eu tinha feito dinheiro suficientemente dinheiro [e] fiz uma viagem para os Estados Unidos com minha mulher. Quer dizer que… Mas nós já viajamos [para] toda parte. Fazer uma viagem assim é muito cansativa. Não...
P/2 - O que eu queria mais que o senhor falasse era um pouquinho quando o senhor voltou a Rhodes, quando o senhor voltou à Itália. Os lugares, as sensações dessa volta. Acho que isso encerra.
R - As sensações… É, encerra sim. Foi gostoso por uma parte.
Quando depois comecei a viajar, que eu podia gastar, eu levava meus filhos, mesmo pequenos. Na primeira viagem, o Robby tinha oito e o Rick tinha doze anos. Viajamos a Europa toda, fomos pra Roma. Em Roma, eu fiz questão de levá-los na pensão onde eu estive hospedado durante os últimos dias da guerra. Esta mulher… Eram duas irmãs italianas, uma já tinha falecido. Eu levei os meus garotos e a minha mulher. Eu pensei, levei um maço de flores pra ela, mas eu achei que um maço de flores era muito pouco. E como me mostraram carinho, eu peguei um dinheiro, botei num envelope e dei pra ela. Um gesto de… De agradecimento. Porque eu vi que ela também estava precisando, estava muito mal.
Meus filhos vibraram de saber as histórias. Eu contava tudo que aconteceu durante a guerra, contava aos meus filhos. E eles queriam saber tudo. Onde eu trabalhava, os levei. Depois disso, eles ficaram muito sensibilizados e curiosos e queriam saber de tudo o que aconteceu na guerra. Eu fui contando, durante [um] tempo a fio, fui contando as minhas histórias, as minhas coisas boas, coisas ruins.
Depois de um tempo, decidi visitar Rhodes. Por uma questão de saudosismo e de apego, Rhodes é uma coisa que fica na minha memória. Uma coisa vívida, às vezes obscura. Mas os momentos vividos… Ela não se transformou, em quarenta e poucos anos que faltei lá, Rhodes permaneceu inalterada. Completamente igual no sentido visual, cultural, tudo. Só que, naturalmente, depois da guerra, os italianos perderam e deram… As Nações Unidas deram Rhodes para a Grécia e eles mantém uma ilha para turistas. Tem muito alemão.
Eu visitei a casa onde eu nasci, fui ao colégio, na loja onde meu pai tinha... Todos esses lugares eu visitei sozinho, com minha mulher. E explicava tudo. Ainda encontrei tudo. A memória estava tão vívida que nada foi despercebido, nada foi esquecido. Parecia que eu me tinha me transformado no garoto de doze anos - eu tinha doze quando deixei Rhodes.
Foi uma coisa muito gostosa. Fiquei lá uma semana. Tinha só uma família judia, desse senhor Soriano, que cuidava do cemitério, da sinagoga. Fui lá, fiz um donativo para tudo. Mas… Tudo isto foi muito… Visitei dentro da casa dos meus pais. Foi uma coisa completamente… Não mudou nada. Como já contei, só os banheiros; eles tinham modernizado os banheiros, naturalmente, depois de cinquenta anos. Foi gostoso de ver isso. Agora, Roma...
P/1 - Em Roma também, como é que foi?
R - Em Roma foi interessante, porque eu trabalhava lá, então tinha o caso também de… Roma me deixou… Tenho muitas, muitas lembranças um pouco...
P/1 - Tristes.
E - ...tristes. É. Algumas.
P/2 - Aquela pessoa com quem o senhor trabalhou, que fim levou?
R - Ele… Ah, nós estivemos falando dele. Quando enfim me estabeleci aqui no Rio eu escrevia pra ele, pra esse meu ex-patrão, Pontremoli. Um dia que ele ia de tal a tal período aos Estados Unidos, e se eu pudesse me encontrar com ele…
Eu fiz a viagem daquela vez, quando os meus filhos vieram comigo. Na volta para o Rio, eu passei pelos Estados Unidos pra me encontrar com ele. Encontrei com ele, aí meus filhos souberam.
Houve um caso muito gostoso. Ele nos convidou… Quando nos abraçamos, choramos os dois. Ele viu a minha mulher, abraçou como se fosse uma irmã dele, e os meus filhos. Ele nos convidou uma vez para jantar, e os meus filhos pequenos, eles sozinhos - o Robby tinha oito, o outro doze - disseram: "Papai, nós gostaríamos convidar o senhor Pontremoli para um almoço. Ele, sozinho.” Eu falei… O Pontremoli queria saber o que estavam dizendo; eu disse, "Ótimo. Eu aceito."
Fomos ao hotel onde estávamos, era no… Ambassador Hotel; na cafeteria era muito elegante, muito bonito. Era um café da manhã porque ele preferia, porque tinha que trabalhar muito. Eu estava ali de férias e ele não, ele estava recolhendo tapetes, então os garotos… Tivemos um café da manhã e ficamos conversando.
Veio a hora para pagar. Eu tinha dado o dinheiro pra eles, então da mesada deles eles iam pagar. E quando veio a conta, eu me lembro, eram dezessete dólares. O pequeno, Robby, achava que era um absurdo, um roubo. Depois, o Robby disse: “Tem que deixar a gorjeta também.” Aí perguntou: “Papai, quanto vai deixar de gorjeta?” Eu falei: “15%.” Fiz um cálculo. “Tem que deixar dois dólares e meio a três dólares.” “Três dólares? É muito!” Dizem: “Não, papai…”
Todo esse cálculo, ele está escutando tudo. Mas eles tiraram o dinheiro deles e pagaram. E ele apreciou muito.
Imagina o simbolismo disto. O gesto foi que eles quiseram pagar a ele o bem que ele me fez, então ele quis… Isso me sensibilizou muito. E houve muitos casos gostosos com ele...
P/2 - Ele se casou?
R - Ele se casou… (risos)
P/2 - Não, porque naquela época, aquela mulher… (risos)
R - Ele se casou. Ele tinha… Exato. Ele se casou com uma pessoa que depois que ele morreu - eu soube que, infelizmente, ele morreu - esta senhora, que era mulher dele, veio aqui me procurar. Era uma senhora que quando vi, eu fiquei tão decepcionado porque era uma pessoa… Não era à altura dele, entende? Era uma pessoa meio esquisita, mas tudo bem. Ela me contou que Moli deixou muitos papéis pra ela e que ela estava bem. E eu fiquei pensando nele até hoje, que estou com 62 anos...
P/2 - Senhor Jack, a primeira foto é sua e do seu irmão mais velho, o Aaron, né?
R - Exato.
P/2 - O senhor se lembra em que data ela foi tirada?
R - Isso eu devia ter… Não sei. Eu devia ter uns quatro anos, talvez, ou cinco, no máximo. Minha mãe me contou que ela fez esta roupa, ela mesma. E, naturalmente, se usava nas festas de Rosh Hashanah e tudo.
P/2 - Era uma roupa de festa.
R - Essa, sem dúvida, é uma festa...
P/2 - De veludo preto. Sapatinho...
R - De veludo preto, com sapatinhos, tudo de verniz.
P/2 - E essa foto é dentro da sua casa ou no fotógrafo?
R - Não. Acho que devia ser no fotógrafo.
A minha casa, eu me lembro que era uma casa de dois andares. Mas… Não me lembro. Esta parece que é o estúdio do fotógrafo.
P/2 - E como é que o senhor recuperou essa fotografia? Ela estava com seus pais, o senhor andava com ela?
R - Não. Quando eu fui aos Estados Unidos, depois de muitos… Melhor dizer, nossa separação, minha mãe tinha lá uma porção delas. Fui lá catando onde eu estava e peguei para fazer...
P/2 - E sua mãe conseguiu levar os álbuns todos na emigração, não teve problema?
R - Não. Alguma coisa ela conseguiu levar e muitas outras coisas não podia levar. Mas essas coisas, naturalmente, não tinha nada para os italianos, então ela pode trazer sem problemas.
P/2 - Quando o senhor veio morar no Brasil, o senhor a trouxe.
R - Trouxe.
P/2 - Essa segunda foto, Senhor Franco, é a turma do senhor da escola municipal de Rhodes?
R - Da nossa escola… Não. De fato, era municipal, mas era judaica, estritamente. Só tinha estudante judaico.
P/2 - Porque era dentro do bairro judeu, mas era uma escola do Estado.
R - Dentro do [bairro] judeu. Era do Estado, supervisionada pelo Estado, com professores italianos; tinha também professores de francês, naturalmente, de outras matérias. E aqui era no final da escola, não sei se era do primeiro [ano do] ginásio ou do último da classe elementar. Mas eu acredito… Que eu, com dez anos, já tinha entrado no ginásio.
P/2 - O senhor tinha aí mais ou menos dez anos.
R - Aqui eu já tinha dez anos. E quando eu saí de Rhodes, já tinha doze.
P/2 - E o senhor se lembra da ocasião que essa foto foi tirada? Por que motivo que teve essa foto? Era foto de formatura ou…?
R - Talvez tenha sido. Devido ter sido de formatura, se não me engano, do período elementar. Nós chamamos elementar lá, que era o primeiro grau, primário.
P/2 - Primário ou o ginásio?
R - Não, primário. Porque o ginásio só, era mais de quatro anos o ginásio.
P/2 - Tem alguma pessoa que esteja na foto que seja importante na sua vida, principalmente, que o senhor queira falar alguma sobre ela? Ou são só pessoas...
R - Não. Agora que estou vendo as fotografias, me volta atrás muita coisa que eu pensei que tivesse esquecido. Tem um rapaz aqui… Meu Deus do céu! Parece que estou voltando àquela época. Isto já são cinquenta anos atrás. Engraçado, eu me lembro destes rapazes, de cada um. E eu era com este - acho que o nome dele era Davi -, eu era mais… Esse era um rapaz muito simpático. Tinha todos [os tipos de] rapazes. Tinha uns que eram de posses, outros eram mais pobres, mas éramos.... Não havia distinção no colégio porque éramos todos judeus. E éramos todos unidos.
P/2 - Nesta foto não está o tal Salvatore?
R - Não. Salvatore era professor de italiano. E ele saiu antes de… Ele saiu em 37, antes de ter tirado essa fotografia.
P/2 - E essa parte que aparece ao fundo é a porta da escola?
R - Exatamente. Esse é… Nós estávamos no quintal, na parte do playground da escola.
P/2 - E esses professores foram pessoas que marcaram a sua vida ou...?
R - Algumas. Essa professora era muito simpática.
P/2 - Professora da esquerda. Como era o nome dela?
R - Infelizmente não... Esse era o professor de italiano. Esse eu não sei se era de matemática e essa era uma professora judia. Também formada...
P/2 - Da direita, né?
R - Da direita. Agora, todos eles...
P/2 - Essa era judia?
R - Não. Esta que era judia, da direita. Esta era italiana. Mas todos esses rapazes...
P/2 - Atrás da foto tem alguma dedicatória, alguma coisa? O senhor se lembra?
R - Nós podemos olhar.
P/2 - É uma foto postal. Peraí, deixa eu ver. É uma foto postcard. No verso aparece ainda o nome original do Senhor Franco, Giacomo.
R - Giacomo. Onde está?
P/2 - Tá aqui. A gente também grava os sinais que estão atrás da foto.
R - Exato. Gozado que… Veja bem...
P/2 - É um selo de Rhodes aí, essa estampa? Não.
R - Esse do postcard não. Aqui, o selo. Deixa eu ver se tem a data. É uma pena que não tenha. Mas isto não fui eu que escrevi. Acho que era o professor que tirou e deu. Naquela época me chamavam de Giacomo. Exato.
P/2 - Acho que tem o nome da escola… No verso da foto aparece o carimbo com o nome da escola.
A foto um também é uma foto postal, mas não tem marca do fotógrafo no verso -
A foto dois, de 1936. Que mais, Seu Jack?
R - Olha, essa fotografia foi tirada… Em 1939, quando a família toda posou para o passaporte único, que era… Que a família...
P/2 - Vocês já estavam em Roma ou ainda estavam em Rhodes?
R - Não, isso é em Rhodes. Essa fotografia foi tirada em Rhodes com a família, pra mandar pro consulado americano.
P/2 - Isso foi antes, então, da operação da vista?
R - Não, isso foi depois da operação, quando estávamos para embarcar. E esta, que eu estou aqui sozinho, é a do passaporte individual.
P/2 - A foto quatro era do passaporte individual. O que é isso aqui?
R - Franco, Giacomo. O nome.
P/2 - Ah, o seu nome. E aqui?
R - É a assinatura que devia assinar pro passaporte.
P/2 - Do burocrata.
R - É. Devia-se assinar em cima da fotografia.
P/2 - Ainda está com seu nome original, né?
R - Exato. Essa é minha assinatura.
P/2 - Então, aqui, da esquerda pra direita, esse primeiro é o Seu Jack.
R - Esse sou eu aqui. Na parte de baixo, minha mãe e meu pai, a minha irmãzinha, Selma, meu irmão mais jovem, Alberto, e meu [irmão] mais velho, que era Aaron.
P/2 - Por que ele está careca, seu irmão? Alguma coisa especial?
R - Não. É que aquilo, naquela época, às vezes… (risos) Vamos dizer, ele ficou tão revoltado de ter cortado o cabelo que até hoje não se esquece disso. Quer dizer, não sei, cortaram o cabelo dele. Mas foi uma coisa que ele não gostou.
P/2 - Essa também o senhor recuperou com a sua mãe? Sua mãe tinha.
R - Todas essas fotografias estavam com minha mãe. Agora...
P/2 - É engraçado, porque isso aqui é uma fotografia de toda a família pra enviar pros Estados Unidos.
R - Era exigido pelo consulado [que estivessem] todos juntos, para eles saberem… Depois, cada um teve de tirar o passaporte.
P/2 - Essa era uma roupa tradicional que sua mãe sempre usava, parecida com aquela roupa da sua avó? De veludo preto.
R - É. Era uma roupa comum, naturalmente, pra viajar. Todo mundo se veste melhor ou...
P/2 - Posso tirar?
R - Pode. À vontade.
P/2 - A foto número cinco são os três irmãos que ficaram sozinhos. A família foi pros Estados Unidos...
R - Exato. E nós tínhamos ficado em Nápoles para ser tratados de tracoma. Logo depois de seis meses, o Albert, como não foi operado em Rhodes, teve a sorte de passar. E ele prosseguiu depois para os Estados Unidos. Nós tínhamos ficado, meu irmão e eu, sozinhos, na Itália. Aqui, isto era logo quando ele já tinha... Estava para viajar.
P/1 - O Albert é o de baixo?
R - É o de baixo. Ele foi um dos últimos a sair da Itália. Logo depois se declarou a guerra.
P/2 - Essas duas, você acha que precisa?
R - Talvez esta, só.
P/2 - Tem uma que está o senhor, o seu irmão e mais aquele senhor que cuidou de vocês. Não tem aí? A gente podia fazer direto aquela.
R - Ah, sim. Tem. É interessante, mas essa daqui. Aqui, quando nós já ficamos sozinhos.
P/2 - É. Então, a gente faz essa.
R - Quer tirar essa?
P/2 - Mas é melhor ir em ordem, né? Bom, não tem problema.
R - Aaron and Jack.
P/2 - Então essa vai ser a foto seis. Aparece o Senhor Aaron e o Senhor Franco. Ela é de que data? 1940?
R - Esta não. Essa já estava em 1941.
P/2 - E qual é o nome desse senhor?
R - Senhor Modiano. O primeiro nome não me lembro. Eu o chamava de Senhor Modiano.
P/2 - Essa família era amiga dos seus pais?
R - Não. Naquela época, em Nápoles, ele era o presidente da comunidade judaica de Nápoles. E quando meus pais souberam que devíamos ficar lá por uns seis meses pra nos tratar, naturalmente, procuramos o presidente da comunidade como um auxílio e para deixarem a cargo dele.
P/2 - Ele foi como um tutor, né?
R - Exatamente. Um tutor.
P/2 - Mas ficou com ele quanto tempo? Só uns seis meses?
R - Nós ficamos mais de seis meses, ficamos quase dois anos debaixo da tutela dele. E ele foi muito… Espetacular. Mesmo quando os portos se fecharam, por um tempo, ele nos ajudou financeiramente. Mas depois de um tempo ele não podia mais.
P/2 - Isso é na casa dele?
R - Isso é na casa dele.
P/2 - Na casa que vocês ficaram?
R - Não. Tínhamos uma pensão, onde nós ficamos. E aí, depois de um tempo, quando os portos se abriram, a guerra acabou, ele apresentou a conta corrigida. Meu pai pagou de volta tudo para ele com mais… Parece que foi dada uma importância de agrado para ele, porque ele foi muito bacana conosco.
P/1 - E o senhor voltou a rever essa pessoa?
R - Não, ele faleceu. Ele deixou umas filhas que depois da guerra eu procurei, mas já tinham se mudado e nunca mais eu vi. Foi uma pena.
P/2 - Foto sete. Aparece Seu Jack com o Pontremoli. E atrás tem uma dedicatória que o Senhor Jack vai ler pra gente, vai traduzir.
R - Ah, não. Esta é uma fotografia… Gozado que não… Eu tinha mandado aos meus pais explicando o que era a fotografia. "Questo signore è mio principale. Questa fotografia è stata presa dopo la liberazione di Roma in dodici giugno del 1944. Um bacio extra a Selma e Alberto. Saluti."
P/2 - Mandou pros seus irmãos.
R - Exato. Esta foi tirada em junho de 1944, logo após a libertação de Roma.
P/1 - O senhor se lembra da situação exata dessa fotografia?
P/2 - Por que vocês tiraram a fotografia?
R - Não, isso é na rua. Fotógrafo de rua que tirou, eles apresentavam e você pegava. E como eu estava com ele, então eu peguei esta fotografia.
P/2 - E depois o senhor recuperou nos Estados Unidos.
R - Exato. Estava com minha mãe.
P/2 - Pontremoli foi seu padrinho durante a...
R - Foi tudo. Foi meu pai, meu irmão, foi...
P/2 - Eu pensei que ele fosse uma pessoa mais velha. Ele não era muito mais velho que o senhor, né?
R - Não. Naquela época, ele tinha 33 anos. Eu tinha… Tinha o dobro da minha idade, mas era uma pessoa espetacular.
P/2 - Vamos pegar a próxima aqui. Eu acho que deve ser...
R - Ah, essa da liberação de...
P/2 - A foto número nove...
P/1 - Número oito.
P/2 - Desculpe. Aparece o Seu Jack junto com um americano, uniformizados, mandados...
R - Pelo meu tio, pelo meu tio de...
P/2 - Qual o nome do seu tio?
R - Asher Touriel.
P/2 - Asher Touriel, que estava nos Estados Unidos e mandou procurar os irmãos. O seu irmão ainda não estava com o senhor?
R - Não, ele não estava aqui. Mas então eles trouxeram, até me lembro, pacotes de comida, de latas. E este terno que você vê, meio grande em mim, foi mandado pelos meus pais também, trouxeram com eles.
P/2 - Isso foi em que data?
R - Isto foi em 1944. Está aqui. Roma. February 27th, 1945.
P/2 - No verso da foto tem a data do acontecimento, escrito à mão. E na frente também tem um sinal. O que é isso? Ralph é o nome desse...
R - Ralph Stock Wallet.
P/2 - Foi a pessoa que foi enviada pra procurar vocês. Está escrito à mão, também, em cima da foto. Ele era o quê? Amigo do seu tio? Conhecido?
R - É. Devia ser um conhecido. Acho que era um oficial.
Ele nos procurou e foi muito bacana, isso aqui em Roma mesmo. Perto daqui é onde eu morava. Gozado. Interessante essa...
P/2 - A foto número nove, da esquerda para a direita. No verso tem uma dedicatória. O que está escrito?
R - Esta é uma fotografia que meu irmão mandou para a noiva dele, na Itália. Maria. Está escrito: "Questi sono i nostri parenti de Los Angeles… Mia Michetta... Ti voglio bene." Escreveu que a Selma, que era amiguinha deles, mandava muitos beijos a namorada dele. Depois ele foi lá e casou com ela.
P/2 - Então, da esquerda para a direita, esse é seu tio?
R - Não. Este é meu pai, esta é minha tia, a tia da minha mãe.
P/2 - Como é nome dela?
R - Rachel Tarica. Aqui é meu irmão caçula, minha mãe, meu tio, tio Tarica, a Selma, Aron e eu. Essa foi uma fotografia quase… Uma das primeiras nos Estados Unidos.
P/2 - A casa dos pais dele, você acha que precisa, Paula? Acho que não, né?
(PAUSA)
P/2 - A décima é a foto em Los Angeles, Califórnia. A primeira loja que o senhor foi proprietário?
R - Exatamente.
P/2 - Aparece a Dona Clarinha já grávida do primeiro filho, do lado esquerdo a sogra...
R - A mãe dela.
P/2 - Então, a sua sogra. É do lado direito, a sua mãe. Era uma floricultura… Tinha nome, não tinha?
R - Olympik Flores. 1953.
P/2 - 1953, a foto. Que mais?
P/1 - Quem tirou a fotografia, o senhor sabe?
R - Acho que deve ter sido eu. Porque se eu não estou aí, acho que fui eu mesmo.
P/2 - Nessa época, sua mulher ia visitar o senhor, levava comida.
R - Ela me ajudava, me trazia comida. Eu ficava até danado porque ela estava grávida, pegava o ônibus para me trazer. E eu não queria que ela me trouxesse. Mas foram anos maravilhosos. Aqui a Clara estava uma coisinha louca.
P/2 - Acho que é só. Tem uma bonita aqui atrás.
R - Essa foi tirada numa boate.
P/2 - Tirada numa boate. Em que ano? Está escrito aqui atrás, não tá?
R - Aqui. July, 16th. O ano não diz, mas devia ser 1953.
P/2 - Já estavam casados?
R - Já. E com filho já.
(PAUSA)
R - ...E eu gostei muito dela. Então, naturalmente, eu falei com ela que ia telefonar. Usei um pouco de malandragem, por uma semana não telefonei...
P/2 - Fez um joguinho.
R - É. Fiz um joguinho de fazer esperar e deu resultados. No primeiro encontro nos apaixonamos, os dois. No segundo, terceiro encontro, eu já queria fugir com ela pra casar. E, naturalmente, era difícil. Porque ela vindo do Brasil não… Tinha outra mentalidade.
Depois de um mês, saindo praticamente quase todo dia juntos, eu me declarei à mãe dela, [disse] que estávamos apaixonados e queríamos casar. E ela foi muito diplomática, muito… "Se for de los cielos..." Esta é uma expressão típica sefaradi. Como dizer, ela não tinha nada a se opor porque eles iam voltar e, naturalmente… "Se for de los cielos que seia" é uma coisa muito vaga e, ao mesmo tempo, afirmativa.
Fomos nos correspondendo por quase dois anos e eu, depois, decidi que já era tempo de chegarmos a um entendimento. E ela sempre estava tirando o corpo fora, mais ou menos. Aí eu decidi, escrevi, não me lembro se telefonei, [avisei] que eu ia chegar [em] uma determinada época para casar. Ela ficou meio assustada.
O primeiro encontro foi um pouquinho emotivo, porque ela tinha operado de apendicite uma semana atrás e estava muito magra. Ela estava com medo que não ia gostar mais de mim e vice-versa, que eu não ia gostar dela. Mas graças a Deus nada daquilo aconteceu. Depois de três meses nos casamos aqui. Nós fomos de volta aos Estados Unidos e depois de quase quatro anos de ter trabalhado e feito suficiente capital, aí eu decidi vir para cá porque eu tinha gostado muito do Rio.
P/2 - Como é que… Eu ia perguntar sobre o Rio de Janeiro. O senhor falou que um dos fatores do interesse pelo Brasil foi que o Brasil também era um país latino. Eu queria, se o senhor conseguir, falar um pouco sobre diferenças e semelhanças entre Itália, Estados Unidos e Brasil. Mas só do que interesse pro senhor.
R - Olha, por uma questão básica, digamos, basicamente de cultura, a Itália se parece com o Brasil, que é um país estritamente latino, muito parecido com a cultura, as maneiras do povo. De vez que quando eu fui aos Estados Unidos, eu me encontrei com uma cultura mais anglo-saxã, que era, me parecia na época, mais fria. Naturalmente, pra mim, como pra qualquer outra pessoa, precisava um tempo de adaptação cultural. E eu não dei suficiente tempo para me adaptar, porque 4 anos não eram suficientes. Mas se eu tivesse ficado mais tempo nos Estados Unidos, sem dúvida ia adquirir, que já adquiri… O pouco que adquiri de lá foi uma base de diferença, porque quando eu vim aqui também reparei da cultura americana pra cultura brasileira. Muitos fatores lá são tomados mais a sério: o respeito pelo próximo, os horários são obedecidos. Enfim, todas essas coisas que todo mundo já conhece. Eu assimilei muitas coisas boas dos Estados Unidos.
P/2 - E essas coisas foram difíceis pra… Quando chegou ao Brasil?
R - Adaptar no Bra... De fato. Havia. Naquela época não havia aqui - e continua mais ou menos a mesma coisa... (risos) Mas antigamente eu achava que o sistema de vida no Brasil era melhor que agora. Havia mais respeito, havia mais decência. Enfim, eu acho que era mais gostoso viver no Brasil, naquela época. Agora eu vejo que a vida moderna, os valores… Modificou muita coisa.
Em fatos básicos, nos Estados Unidos, um latino, por exemplo, se adapta mais rapidamente porque é uma coisa de ordem, uma coisa que… Bom para você, bom para o próximo. Aqui é o contrário. É bom para você e é péssimo para os outros porque ninguém respeita o próximo. Então, há uma diferença cultural, sem
dúvida nenhuma.
E eu tive.. Não tive dificuldade para me adaptar aqui por causa da língua. Como eu falo italiano, falo [um] pouco de francês, espanhol, o português foi relativamente fácil pra mim. Que há uma diferença básica, há; entre culturas brasileira e cultura americana há, sem dúvida.
P/2 - A gente sabe que há, mas a gente queria saber pro senhor. Interessa pra gente saber como é que o sentiu o Brasil, quais foram suas impressões sobre o Brasil. Houve uma ruptura na sua cabeça quando saiu dos Estados Unidos pra vir pro Brasil? Itália, Estados Unidos, depois Estados Unidos-Brasil. O Brasil é mais uma volta à Itália e mais distante dos Estados Unidos?
R - Exatamente. Você botou em ordem cronologicamente certa. Foi bem isso. Eu pareço que voltei [a] quando era garoto. O sistema italiano, meio bagunçado e tudo. Mas eu vim ao Brasil com grandes esperanças e ainda acho que o Brasil é um país muito… Que pode oferecer muita coisa. E eu tinha muita vontade de vencer, trabalhei muito. Horas pra mim não era… Não tinha nenhum problema. E o pouco que eu ‘sucedi’, que eu consegui, foi com trabalho.
Eu tinha esperança que o Brasil era e ainda é um país onde se pode fazer boas raízes e crescer família jovem. Porque o país, em si, e quase a população toda [é] jovem. Nasceu aqui meu filho, o Roberto, e o Rick quando chegou aqui tinha dois anos. Praticamente ele se considera brasileiro, como mentalidade, tudo. E nós sempre gostamos daqui.
O convívio com o povo, com a gente, até com a sua própria… Dentro do sistema onde você vive, de classe, é mais aberto, mais… Entende? O americano é outro sistema de vida. Pra mim foi… Eu nunca me arrependo de ter vindo aqui. Isso é um fato que eu reconheço. Eu gosto. Infelizmente, agora a situação está tão incerta. Muita gente tem medos, mas eu acho que também faz parte, digamos assim, do crescimento do próprio Brasil. O Brasil está saindo de uma fase atrasada, está entrando numa era moderna e essas transformações são necessárias. Isso tudo vai passar. Eu espero...
P/2 - O senhor ficou quase dez anos nos Estados Unidos. Onde o senhor deu mais duro no trabalho, lá ou aqui? Onde é mais difícil se firmar profissionalmente?
R - Nos Estados Unidos é mais difícil porque lá… Eu tive a sorte de poder comprar essa floricultura, trabalhei por minha conta. Eu fiz bastante dinheiro para vir aqui. É mais difícil lá que aqui. Agora, aqui também está ficando difícil, como lá também.
P/2 - Aqui é mais difícil de fazer dinheiro, é mais fácil?
R - Não. Depende. Fazer dinheiro, você fazia também lá. Eu ganhei muito dinheiro em pouco tempo, em três anos. Eu ganhei muito dinheiro lá.
P/1 - Mas por quê? Porque o ramo do senhor era um ramo que dava?
R - Era. Além de ser lucrativo, tudo que uma pessoa… Eu aprendi. Em qualquer ramo, tudo que uma pessoa se dedica, não olha horário, tem vontade de ganhar, no sentido de economizar… Porque tudo é uma sequência que vai junto. E o trabalho, sorte, o fator também do tipo do negócio, a lucratividade de cada negócio - um dá mais, outro dá menos, o fator sorte. Todos esses fatores, se você junta onde você pode ter sucesso...
Não é só saber trabalhar, é saber qual é o ramo também que a pessoa… No ramo que eu estava lá se ganhava muito dinheiro, entende? No ramo que eu estou agora, aqui, é mais difícil por causa de concorrência. E lá também. Lá tem muita concorrência.
É um pouquinho de tudo, sabe? Vontade de suceder, vontade de trabalhar, o fator sorte também entra no meio. Quer dizer, um pouquinho de cada que faz. E também tem… Cada um tem um caminho, eu acredito. Sou meio fatalista, talvez. Acredito que cada um tem um destino, tem um sucesso ou o que for. Acredito que o nosso caminho já está traçado. Um pouquinho [de] misticismo ou o que for.
P/2 - Senhor Jack, depois dos Estados Unidos o senhor voltou a estudar? Eu sei que o senhor, por conta própria, continua a ler bastante. Eu queria saber mais sobre seus interesses atuais. O senhor, uma vez, falou que era fanático por costumes. O senhor se aprimora dentro disso? O senhor é um colecionador... Fale um pouco dos seus hobbies, dos seus prazeres, das suas leituras.
R - É. Eu sou muito… Gosto de ler muito e sou um homem de impulsos até intelectuais, digamos assim.
P/2 - Mas o senhor não chegou a estudar...
R - Frequentar a faculdade, não cheguei a frequentar. Mas, modéstia à parte...
P/2 - O senhor se aprimorou.
R - Eu me aprimorei lendo muito. Li tudo que for de… Eu li livros de filosofia, história, religiões, tudo. Até livros técnicos cheguei a ler, a compreender. Adquiri...
P/2 - De economia também?
R - Um pouco de economia, marketing, negócios, business administration. Todas essas coisas eu estudei, li...
P/2 - Aqui no Brasil? Lendo nos livros também?
R - Uma parte nos Estados Unidos também. Eu estudei bastante lá. Acabei o high school, que era o segundo grau completo e depois fui estudando por minha conta. E tenho um pouco, digamos assim, de curiosidade, então quase tudo, todos os romances famosos, até romancistas, escritores russos, conheço quase todos eles.
(PAUSA)
R - Isso foi uma curiosidade que até hoje eu tenho. Por exemplo, sai um assunto que me atiça a curiosidade, eu pego, leio livros. Quero me aprofundar em tudo que me interessa. Com o tempo e a experiência, [fui] adquirindo essa certa cultura. E tem uma...
P/2 - Tem uma influência da sua esposa também? Ela fez literatura.
R - Sem dúvida, mas eu acho… Não, tá certo. Não quero negar a capacidade e o grau da educação que ela teve, mas eu acho que os dois crescemos de uma maneira muito boa. Quem cresceu mais não vem ao caso, isto é secundário. Mas tem uma certa… Gosto de pintura, de arte, gosto de coisas… Por exemplo, de música: sou um fã ardente de música clássica, música erudita… Pintura nem se fala, gosto de pintura, gosto de literatura. Todas as coisas básicas que embelezam um pouco a nossa vida.
P/2 - Eu acho que o senhor já pode ser assim considerado um colecionador de objetos de arte antigos, não é? Ou não?
R - Eu posso… Colecionador, propriamente...
P/2 - Como é que começou essa mania?
R - Olha, é uma mania [que] por incrível… Eu não sei explicar como. Eu gostei porque fui adquirindo esse gosto. Na época da Itália, quando eu trabalhava com Pontremoli, eu tive muito acesso de visitar museus, casas de clientes que tinham peças maravilhosas. E a própria beleza de cada peça foi logo… Despertou em mim esse prazer, essa vontade de querer… Não digo possuir, mas querer, às vezes, dentro dos limites, possuir algumas peças. E com o tempo, à medida que eu estava subindo, digamos, na vida, fui adquirindo coisas que comprei em certos leilões, em viagens...
P/2 - Mas tem interesse comercial, de capitalização?
R - Não. Nada. Nunca comprei nada com o intuito de saber o valor. Sempre comprei coisas, até de valores elevados, mas nunca pensando que era… Bom, comprava coisas que me entusiasmava. Às vezes eu posso comprar uma coisa de pequeno valor com a mesma facilidade. Naturalmente, dentro dos limites das possibilidades financeiras, dos momentos que eu passei também porque há momentos que… Hoje tenho uma certa folga de poder comprar certas coisas. Antigamente eu não tinha esta folga. Mas mesmo assim, eu sempre comprei coisas pelo meu prazer. Exatamente individualista, de olhar e admirar aquela coisa que, a meu ver, era bela, era linda. Pode ser um quadro ou um objeto, uma estatueta. Esse prazer de admirar uma coisa bonita.
E foi assim. Colecionador não sou mesmo. Agora, que eu tenho...
P/1 - Não é dos barrocos, dos santos barrocos?
R - Sim, dos santos barrocos. Isto eu gosto. Por coincidência feliz, a minha mulher também gosta. Quando fui adquirindo, ela também estava gostando e foi um impulso também para eu continuar. Porque se ela não gostasse muito, eu ia parar um pouco, pra não contrariar também o gosto dela. Ela também… Tudo está em casa e a casa pertence à mulher.
Mesmo assim, eu faço certos exageros. Em nome de comprar prata, as coisas que eu gosto. Mas isso são… Cada um de nós temos certas peculiaridades que eu considero até certas… Não digo abusos, mas são até um pouco...
P/2 - Extravagantes.
R - Extravagâncias. E são extravagâncias que dão prazer. Eu acho isso bom. O fato da gente descobrir uma peça que ninguém sabe dar o valor… Não é o valor intrínseco da peça, mas sim o valor artístico. E às vezes é uma peça que possa ter um valor não monetariamente, mas um valor artístico. Isso que me entusiasma.
P/1 - Um valor simbólico, né?
R - É. Exato. É um valor que todo tem… Básico, um valor intrínseco.
P/2 - E aquele valor do belo.
R - É. Da beleza. Às vezes eu tenho sorte de encontrar uma peça linda por um preço que você acha que é tão irrisório, no sentido… Porque o preço de uma coisa bela… Não há preço. Há preço intrínseco, preço de valor. Isto cada um sabe dar. E eu sei dar. Quando se junta o valor intrínseco com o valor do entusiasmo, é uma coisa bonita.
P/2 - Senhor Jack, além daquela caixinha de especiarias da Turquia, de objetos rituais judaicos, o senhor tem mais alguma coisa? Mesmo que não seja antigo? Alguma coisa que seja bonita.
R - Olha, eu comprei… Aquela peça que é dos doces, que é típico de família sefaradim, é uma peça muito, digamos assim, tradicional. Ela é tradicional porque em todas as famílias de classe média sefaraditas de Rhodes, era costume, quando você entrava botavam dois potezinhos de doces feito em casa, que eram em pratos de prata, lindos. E eram dois tipos de doces, ou damasco ou figos. Eles te traziam com aquela cumbuquinha, como é que se chama? Aquela com os garfos e as colheres, e que juntavam tipo com uma mão servia um, com a outra… Era um ritual, eu me lembro disso. Era tão bonito. E aquilo vocês… Era típico daquilo, era bem tradicional.
Eu tive a sorte de encontrar em Buenos Aires, num antiquário; encontrei e comprei. Não vi preço nenhum, paguei caro. Eu me lembro que naquela época eu paguei caro, mas eu me entusiasmei. O homem percebeu também que eu tinha gostado, aí ele fez o preço e pronto. Eu não pechinchei nem nada, como às vezes… Quem compra peças de antiquário sempre pechincha um pouco porque é costume. Mas eu, naquilo, pedi, falei: “Pode fazer um desconto?” “Não. Eu faço 10%.” Eu falei: “Tá bom. Negócio fechado.” E comprei logo, porque adorei.
Essas coisas são tradicionalistas, me lembraram a minha tradição de judeu de Rhodes, a minha família, dos costumes que nós tínhamos nas épocas de Rosh Hashanah, Yom Kippur, quando quebrávamos o jejum. Era bonito. Antes se quebrava o jejum com um doce, entende? Estilo sefaradita. Eu não sou nada religioso, mas aquilo me entusiasmava, adorava, vibrava com aquelas coisas. E são costumes belos, são costumes…
Meu pai, eu tive a sorte de ter uns parentes… Minha mãe vive, graças a Deus vive ainda, e eles foram… Meu pai era muito religioso, entretanto ele nunca impôs doutrinariamente uma religião em cima de nós. Ele foi um liberal, mas um liberal no puro senso da palavra. Ele me deixou… Pela separação também - eu não tive contato com eles por sete anos -, quebrou um pouco esse elo da união até de tradição. Mas aquele pouco que eu já tinha absorvido de garoto, até os treze anos, foi suficiente que me levou até os vinte anos, quando eu voltei a… Mantendo, inconscientemente, todos aqueles costumes, mesmo não praticando durante a época da guerra. Mas foram, permaneceram dentro de mim bem vivos.
Essa admiração por essa tradição ainda é latente, ainda está viva dentro de mim e, naturalmente, eu passei pra meus filhos - não tanto nas atrações das próprias tradições, mas sim pelos fatos dos contos que eu contava a meus filhos quando eram pequenos. Eles também absorveram este... Entende? Eles, até hoje, gostam.
Eu conquisto até meus netos. A minha netinha, que tem seis anos, já gosta de escutar certas coisas. E ela frequenta o colégio Max Nordau, ela agora nos está ensinando mais que eu a ela.
P/1 - Senhor Jack, só mais uma coisa. O senhor teve o irmão na Itália, quer dizer, então se afastaram da família. E os seus pais nos Estados Unidos, eles mantiveram tradições e hábitos judaicos? Os irmãos que viveram com eles nos .Estados Unidos, eles até hoje são pessoas tradicionais, seguem os rituais da religião? Mais do que o senhor, que esteve afastado deles, ou não?
R - Não. Talvez porque também tiveram uma educação muito liberal. Muito patriótica, mas não muito religiosa. Eu, modéstia à parte, me considero muito mais religioso que qualquer judeu religioso que vai no Yom Kippur, fala "minha culpa, minha culpa" e não participa do espirito global, não só de nossa religião como de nossa ajuda, do apoio que nós devemos dar a Israel, como um país que está passando dificuldades. Nisso, eu me considero um dos bons judeus. E eu passei isso a meus filhos, o espírito patriótico. Mais que o espírito religioso;, entende? É o que vale, eu acho… São os dois, eu respeito os dois lados, mas que às vezes o religioso se beneficia desse lado para tirar o corpo fora, de não ser tanto na outra parte, que é mais importante - a parte tradicionalista e a parte patriótica.
P/1 - Patriótica em relação a Israel, que o senhor está dizendo?
R - Em relação a Israel, ajudar esse país que está passando dificuldades. E ajudar em todos os sentidos, até para manter as nossas tradições.
Eu acho que a própria tradição é mais importante. A religião é um veículo. A tradição é.. Também a religião é dia a dia, como dizer… Mas eu acredito mais na tradição. Não que eu não acredite na religião, sou religioso até um certo ponto, mas tradicionalista sou até os ossos. Gosto da minha tradição, gosto de ser judeu porque eu acho que o judeu foi um povo sempre castigado, sempre perseguido. E eu acho que nós devemos, exatamente por tudo que passamos, ter orgulho de nossas tradições, orgulho de nossa herança, do que os nossos antepassados passaram; conseguiram passar a nós também este amor pelo nosso povo, pelas nossas tradições.
Eu me sinto um cidadão do mundo, no sentido que eu gosto de todo mundo. E não digo que a minha tradição é melhor que a dos outros. Com tudo que eu respeito os outros, gosto que os outros respeitem a minha também. Então, sou um... Sou dessa filosofia de vida. Respeito os outros, porque quero ser respeitado. Não gosto que me pisem, porque aí eu também…
Aquela mentalidade também de que os judeus, durante a guerra… Perguntam os filósofos, os grandes historiadores do mundo: “Por que os judeus não se revoltaram? Por causa disso, por causa daquilo.” Eles não podem falar, sem estar presentes, o que houve realmente. Houve um preparo psicológico tão profundo quando Hitler entrou no poder que se criou uma propaganda tão forte de medo, que ela foi crescendo ano a ano, então foi encucando esse medo nos judeus europeus. Só a figura do alemão uniformizado já era o suficiente pra criar aquele pânico.
Hoje em dia não existe isso. E de fato, por essa razão que o sabra que nasceu em Israel está descontaminado desta má impressão que foi encucada com os anos no judeu, de ter medo. Hoje o judeu não tem medo, porque ele defendeu a sua terra. E os sabra não conhecem isso. Eles sabem que só podem contar com eles [mesmos], então eles lutam, lutam.
Dizer que o judeu não é lutador não é verdade. Quando precisa, o judeu sabe lutar. Na história nossa, sempre, nos tempos bíblicos, sempre lutaram. Nunca foram um pouco pacífico no sentido pacato, que aceitam. Mas os europeus, os judeus europeus, às vezes tiveram que aceitar muita coisa com cabeça baixa porque não tinha outra alternativa. Não vamos esquecer que em Varsóvia, no gueto, houve um levante e foi um levante sem… Sabendo que não havia esperança nenhuma. Entretanto, morreram mais de quinhentas mil pessoas lá, lutando. Demonstraram ao mundo e aos nazistas que o judeu, quando tem chance, ele luta. Até morrer. Ele sabe morrer lutando.
P/2 - Por que o senhor acha que os judeus são tão ligados ao comércio?
R - Aí eu vou te voltar a umas razões que vêm logo do início, antes da Idade Média.
P/2 - Essas razões históricas eu sei, mas por que a tradição, por que de pai pra filho… Os filhos, mesmo podendo estudar, mesmo… Continuam no ramo?
R - Não. A tradição depende dos países. Nos Estados Unidos, a média da família americana judia não quer que o filho seja comerciante. Ela quer ser profissional. Tem a ideia que o profissionalismo, de fato, liberta a pessoa, de dar uma certa, digamos assim, situação financeira de liberdade e de accomplishment, de chegar a alguma coisa. Tanto que tem umas piadas das Yiddish Mamas que diz: "My son, the doctor." "Meu filho, o médico." Nos Estados Unidos é isso.
Os judeus se dedicaram ao comércio, primeiro, por uma tradição quase milenar, porque aqueles que não tiveram as profissões não tiveram outra alternativa histórica de possuir terras, porque não era permitido aos judeus manter a terra. Isso vocês já sabem, qualquer estudante sabe disso. O que aconteceu? Eles eram obrigados a se virar.
Virar em quê? O que que podiam fazer? Não podiam ser médicos, não podiam ser advogados, não podiam ser donos de terras, não podiam ser nada. Iam ser o quê? Comércio. Comércio era uma coisa que você devia usar a sua inteligência e o seu expediente de pegar uma coisa, compra aqui, vende lá, e vir o que precisa aquele lugar. Eles viram [que] o interior não tinha um comércio suficiente, então pegavam coisas, vinham; compravam por cem, vendiam por duzentos. Eram únicos. E se dedicaram ao comércio por uma… Quase foram obrigados ao comércio. Não porque o judeu prefere.
Eu, por exemplo… Os meus filhos são profissionais, um é arquiteto e outro é psicanalista. Por quê? Porque é o que eles gostam. Eu os deixei escolher.
P/2 - Mas o seu filho é arquiteto, ele não é comerciante?
R - Trabalha. Por uma conveniência até minha, eu acho. Eu praticamente... Não digo forcei, mas falei: “Não, fica aqui com…” Entende? Ele, pra me agradar, talvez… E eles cresceram nesse… O comércio que ele fez foi também junto com a arquitetura porque ele montou outras lojas, fez as lojas. Quer dizer, ele usou o gosto que ele tem na arquitetura na aplicação do comércio.
Eu acho que isso é uma razão básica, mas não digo exclusivamente que o judeu seja muito comerciante. Pra mim, melhor comerciante que o judeu e o levantino e o libanês, por exemplo. Os árabes são muito melhores comerciantes que os judeus.
P/1 - Têm um dom, né, de… Barganhar.
R - Têm o dom. Sabem isso de tratar, de barganhar. Isso já não é mais...
P/2 - Isso não é um dom. Isso é uma coisa horrorosa. (risos) É chatíssimo. Igual camêlo.
R - Mas isso é tudo cultural, viu, Helena? Tudo isso faz parte da própria cultura. Você sabe...
P/2 - Mas o judeu também tem essa fama da barganha.
R - Barganha não tanto. Você vê, fui em muitas lojas de judeus nos Estados Unidos que eles não admitem nem você… Entende? É cultural. Não te fazem desconto, é um preço só. Você sabe disso, você respeita, compra se quiser e pronto. E tudo cultural. Se você mora na Turquia, você tem de barganhar porque eles não vão te vender a preço fixo.
P/1 - Eles até esperam que você...
P/2 - Perda de tempo...
R - Exato. Mas é o costume. É um costume estritamente, basicamente cultural. Mas eu não acho o judeu melhor que nenhum outro. Francamente, não acho.
Acho uma coisa. Pela nossa peculiaridade histórica, tradicional, nós… Até nós caímos no erro de usarmos os nossos preconceitos em detrimento dos nossos interesses, vocês me entendem? Porque nós devíamos ser mais assimilados ao país onde nós moramos, assimilarmos toda a cultura do país, coisa que nós fizemos. Os nossos filhos que nascem aqui já assimilaram, isto é, não acham nada de… Nem vão falar como eu falo, porque vão se considerar completamente absorvidos e entrosados dentro da cultura brasileira. Acho justo e que deve ser assim mesmo.
Agora, a posteriori, que eles têm a tradição judaica; isso não tem nada a ver com nacionalismo. Uma coisa [é] você ter as suas raízes e outra coisa é você ter o seu nacionalismo, que é o país onde você mora, onde você cria a sua própria família, que você vibra pela própria cultura. Eu vibro. Hoje eu me sinto tão… Mais brasileiro que judeu, propriamente falando. Assimilei a cultura. Não gosto de muita coisa, mas luto [para] que esse país seja um país melhor para os meus filhos e tem os meus netos, que eles sejam melhores brasileiros do que eu sou.
Quero construir um Brasil lindo, uma sociedade democrática mesmo. Vai demorar mais tempo, mas um dia vamos chegar lá, como o ditado [diz].
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