P/1 – Eu gostaria de saber primeiro o seu nome, o local em que você nasceu, a data de nascimento e o nome dos seus pais, um pouco do começo da sua história.
R – Meu nome é Nilton Divino D’Addio, eu nasci em 28 de maio de 1944. Eu sou o quarto filho, tenho três irmãs mais velhas do que eu, aliás, bem mais velhas do que eu, de forma que eu sou o único filho menino, né, nascido depois de um certo tempo, o que já mostra que eu tive uma infância bem mimada por um lado, por outro lado eu perdi os meus pais muito cedo. A minha mãe faleceu quando eu tinha, acho que, oito anos de idade, e quando o meu pai faleceu eu tinha catorze pra quinze anos de idade. Eu fui praticamente educado pelas minhas irmãs, a mais velha, saiu pra trabalhar logo cedo, e a do meio é que assumiu o papel, praticamente, de minha mãe. Então é uma pessoa, assim, que eu sempre tive muita admiração, aliás, pelas três porque cada uma, da sua forma, é que me conduziu na vida. Meu sobrenome Divino é nome, porque eu nasci na Maternidade São Paulo, do lado tinha a Igreja do Divino e segundo consta a minha mãe estava na sacada, lá, aguardando o momento do parto quando passou uma procissão e ela fez uma promessa que se nascesse um menino bonito como eu, ela ia dar o nome de Divino, e assim ficou o Divino agregado ao meu nome.
P/1 – E seus pais são brasileiros?
R – Meus pais são brasileiros, paulistanos, eu também sou paulistano, então já há aí uma situação um pouco atípica, né, de eu ser filho de paulistanos, eu também ser paulistano. Agora, os meus avós são de fora, os meus avós por parte de pai são italianos e os avós por parte de mãe eram portugueses, meus pais, como eu já falei, faleceram já há algum tempo, né, então eu tive pouco contato com eles e com a história da minha família e tal.
P/1 – Alguém sabe essa história, essa história nunca chegou?
R – Do lado da minha mãe, eu praticamente...
Continuar leituraP/1 – Eu gostaria de saber primeiro o seu nome, o local em que você nasceu, a data de nascimento e o nome dos seus pais, um pouco do começo da sua história.
R – Meu nome é Nilton Divino D’Addio, eu nasci em 28 de maio de 1944. Eu sou o quarto filho, tenho três irmãs mais velhas do que eu, aliás, bem mais velhas do que eu, de forma que eu sou o único filho menino, né, nascido depois de um certo tempo, o que já mostra que eu tive uma infância bem mimada por um lado, por outro lado eu perdi os meus pais muito cedo. A minha mãe faleceu quando eu tinha, acho que, oito anos de idade, e quando o meu pai faleceu eu tinha catorze pra quinze anos de idade. Eu fui praticamente educado pelas minhas irmãs, a mais velha, saiu pra trabalhar logo cedo, e a do meio é que assumiu o papel, praticamente, de minha mãe. Então é uma pessoa, assim, que eu sempre tive muita admiração, aliás, pelas três porque cada uma, da sua forma, é que me conduziu na vida. Meu sobrenome Divino é nome, porque eu nasci na Maternidade São Paulo, do lado tinha a Igreja do Divino e segundo consta a minha mãe estava na sacada, lá, aguardando o momento do parto quando passou uma procissão e ela fez uma promessa que se nascesse um menino bonito como eu, ela ia dar o nome de Divino, e assim ficou o Divino agregado ao meu nome.
P/1 – E seus pais são brasileiros?
R – Meus pais são brasileiros, paulistanos, eu também sou paulistano, então já há aí uma situação um pouco atípica, né, de eu ser filho de paulistanos, eu também ser paulistano. Agora, os meus avós são de fora, os meus avós por parte de pai são italianos e os avós por parte de mãe eram portugueses, meus pais, como eu já falei, faleceram já há algum tempo, né, então eu tive pouco contato com eles e com a história da minha família e tal.
P/1 – Alguém sabe essa história, essa história nunca chegou?
R – Do lado da minha mãe, eu praticamente desconheço, porque a minha mãe era a filha mais nova, eu já nasci temporão, não conheci o meu avô, e a minha avó materna morreu um ano depois de eu nascer, então eu não tenho nenhuma lembrança dela, os tios também já eram de idade, então pouco contato houve com a família da minha mãe. Com a família do meu pai foi diferente, né, sempre houve muito contato, eu morei boa parte da minha infância na casa dos meus avós, uma vizinha era uma tia, irmã do meu pai, os filhos dela foram meus grandes amigos de infância. Depois, já na fase de adolescência, eu convivi muito com uma outra irmã do meu pai, e os filhos dela também eram bastante amigos meus. Convivemos, estudamos juntos na mesma sala. Então do lado do meu pai, aí sim a gente tem bastante informação da história, conheço bem a história, estou escrevendo, relatando a trajetória dos D’Addio, né, que são muito poucos no Brasil, da família veio só um nucleozinho do meu bisavô com os cinco filhos homens, então...
P/1 – O senhor sabe de qual cidade eles vieram?
R – Vieram de Santa Maria Capua Vetere, que eu tive a felicidade de conhecer há uns dez anos atrás, que é na região de Caserta, próximo do Vesúvio, próximo a Nápole, sul da Itália. Eles vieram para o Brasil: o meu bisavô com a esposa e cinco filhos. Um deles era o meu avô, né, então desse núcleo eu não conheci todos, não conheci o meu bisavô nem a minha bisavó, mas o meu avô e a minha avó, eu morei na casa deles um tempo, né, alguns irmãos eu tenho vaga lembranças de visitar, tenho aquela coisa... Memórias da cristaleira da casa de um desses tios aí, e depois, ao tentar escrever a história da família, fazer a árvore genealógica, se não pessoalmente, eu tive contato através da internet por e-mail, por correspondência, com todos os D’Addio que existem no Brasil. É um núcleo que deve estar diminuindo, né, mais morre do que nasce, deve ter em torno de umas cem pessoas, cento e pouco, cento e dez pessoas com o sobrenome D’Addio. Então, todos que eu conheci, todos com quem eu tive contato, são descendentes desses cinco. É um nucleozinho meio restrito, meio fechado, e eu tenho o registro de todos eles, as informações de praticamente todos.
P/1 – E essa casa que o senhor viveu a infância, que também os seus avós estavam, né, ficava onde?
R – Bom Retiro. Eu nasci em frente o Clube de Regatas Tietê. O meu pai era funcionário, era cobrador do Clube de Regatas, então nós morávamos naquela praça em frente ao clube. Tem uma travessinha, uma ruazinha chamada Rua Porto Seguro, que dava num braço do Rio Tietê, na época, antes do Tietê ser retificado, tinha um braço e tinha um porto de areia, né, por isso que a rua se chamava Rua Porto Seguro. Eu nasci ali, morei ali até uns quatro anos de idade, e aí mudamos pra casa dos meus avós no Bom Retiro, na Rua Afonso Pena, esquina com a Rua Bandeirantes. Ali nós moramos algum tempo. Em uma das fotografias que eu trouxe, eu estou com a minha irmã, essa que foi a minha mãe, praticamente, a Nanci, ela aparece comigo, eu lá na bicicleta e ela aparece do lado, o fundo era essa casa dos meus avós, um casarão grande, antigo, que depois – era alugado –, foi devolvido. Os meus avós moraram lá e os meus bisavós moraram nessa casa. Não foi a única casa em que eles moraram no Brasil, quando eles vieram da Itália, eles moraram em outra casa, também lá no Bom Retiro, onde o meu avô era alfaiate. O meu avô já veio com uma profissão, ele veio numa leva posterior à época dos lavradores e tal, já veio pra ficar empregado em São Paulo e começou a trabalhar como alfaiate, não sei se como empregado de alguém, eu sei que num determinado momento ele teve a sua própria alfaiataria, só que essa alfaiataria foi roubada, sofreu um assalto (risos), isso naquela época nem existia. Véspera de final de ano, então, ele tinha muitas encomendas de ternos e tal, e isso o levou praticamente à falência, porque ele teve que honrar os compromissos dele, pelo menos devolver o dinheiro dos clientes e tal, e aí ele passou a trabalhar na própria casa, já nesta casa onde eu, depois de garotinho, fui morar. Só que quando eu fui pra lá, o meu bisavô já havia falecido. Eu não o conheci, mas meu avô morava nessa casa. Então a minha história começa ali na Ponte Grande, depois, logo em seguida, Bom Retiro, moramos alguns anos nessa casa com os meus avós, daí a minha mãe já era falecida, nós mudamos pra um outro apartamento, a situação começou a melhorar financeiramente, uma das minhas irmãs se formou professora...
P/1 – Mas, durante a sua infância, até que idade mais ou menos o senhor morou nessa casa?
R – Eu morei até os quatro anos de idade, mais ou menos, lá na Ponte Grande.
P/1 – O senhor lembra-se dessa fase?
R – Eu tenho vagas lembranças, tenho lembranças.
P/1 – As brincadeiras...
R – Sim, também não sei se de ver fotografia, eu não sei exatamente, mas eu tenho lembrança de brincar na rua. Eu tenho lembrança de um vizinho que trabalhava na Folha de São Paulo, ele era fotógrafo na Folha de São Paulo e tinha como hobby filmes, ele tinha a máquina, um projetor de filmes na casa dele, então ele fazia lá as projeções no porão da casa e cobrava de entrada um botão, cada criança pra assistir o filme tinha que levar de entrada um botão, uma coisa assim. E eu lembro disso, lembro dos filhos dele, lembro dessa família porque convivíamos no Tietê. Eles tinham vários filhos e um deles, até de nome Edgar, era meu colega de Tietê, onde eu continuei convivendo no clube, passei a minha juventude inteira lá, né, e um desses garotos era de lá. A minha irmã mais nova até hoje mantém amizade com pessoa que morava lá, ela tem amigas... Uma dessas amigas era filha de um coronel, casou-se com policial militar, tenho um relacionamento com essa família até hoje. Alcides Benedito Marques, era esse coronel cujo a esposa é colega de infância da minha irmã. Então eu tenho lembranças de carnaval na rua, de fazer aquele cordão, tem foto minha num cordão de rua, a garotada toda com um chapeuzinho na cabeça e tal. Então eu tenho essas imagens. E depois com quatro anos, quatro anos e meio, eu fui lá pro Bom Retiro morar na Afonso Pena, e eu também tenho lembrança total dessa época.
P/1 – E aí o senhor já estava em outra casa?
R – É, aí fomos morar na casa dos meus avós. A gente morava praticamente no porão da casa. Era uma casa comprida, mas a rua era em declive, então a casa começava no nível da rua com um portãozinho baixo, que toda casa antiga tinha porão, né, e o pé direito desse porão ia aumentando até o quintal lá. Então a cozinha, o banheiro e a sala eram na parte de baixo da casa e os quartos eram na parte comum da casa, em cima. A gente tinha uma casa praticamente independente, tinha acesso independente da casa dos meus avós, mas convivi muito com eles, tinha uma tia também que morava junto com a minha avó.
P/1 – E pra ir à escola, era perto?
R – Era perto, a gente ia a pé, eu ia a pé. Eu estudei os quatro anos do primário no colégio Grupo Escolar Prudente de Moraes, que está até hoje lá na Avenida Tiradentes. Ele ainda existe. Estudei um pouquinho, um ano antes, tipo, o pré-primário, tinha esse nome na época, no Colégio Dom Bosco, do lado da igreja Auxiliadora. Está lá até hoje também. E eu tenho muitas lembranças de ir pra escola, de voltar da escola... Recentemente, vendo na internet um site que trata de São Paulo antiga, eles projetaram umas fotografias de prédios antigos de São Paulo que estão conservados, ou que estão deteriorados, que estão sendo derrubados e tal, e um dos imóveis que eles retratavam é um prédio de esquina da Rua Afonso Pena com a Rua Ribeiro de Lima onde era uma garagem, no meu tempo de garoto era uma oficina da prefeitura. E nessa oficina eu passei por um dos grandes vexames da minha vida, que no dia primeiro de abril eles chumbaram uma moeda no chão, no asfalto. Eu vinha vindo da escola, a minha irmã tinha ido me buscar na escola. Quando ela viu a moeda, ela muito esperta, falou pra eu pegar a moeda, aí eu fui abaixar pra pegar a moeda, crente que... Uma moeda sei lá de quantos réis, bonitona. Fui pegar aquela moeda, fiz força pra puxar, e aí os funcionários da prefeitura que estavam todos sentados, na hora do almoço, do outro lado da rua, morreram de dar risada: “Primeiro de abril, primeiro de abril”. Então me pregaram uma peça que eu nunca mais vou esquecer, no caminho da escola pra casa ali.
P/1 – E na escola, como era? Tinha brincadeiras? O senhor gostava de ir à escola?
R – Eu era um ótimo aluno, era um dos primeiros colocados da classe. Eu lembro disso porque teve um ano lá que eles selecionaram, de cada classe, dois pra ir visitar a fábrica da Coca-Cola. Então foi uma espécie de prêmio, né, que eles deram, e eu fui um dos dois. Então eu acho que eu era bom aluno, tinha boas notas, tenho boas lembranças do primário, esse tempo todo aí não tinha muita... Eu não lembro de brincadeiras porque o pátio da escola é aquele jardim... Um pedaço do Jardim da Luz, fica hoje entre a escola e a Pinacoteca, tem um lago, um chafariz lá e tal. Aquele espaço era o pátio da escola, então era uma coisa improvisada. Eu não tenho, assim, grande lembrança do recreio da escola. Mas como a minha mãe já era falecida e o meu pai já muito doente, ele ficou muito tempo internado em hospitais e tal, eu ficava na parte da tarde, uma certa época, eu fiquei no Recanto Infantil, também dentro do Parque da Luz, também existe ainda hoje um parque infantil lá, se chamava Recanto Infantil, sei lá, também era mantido pela prefeitura, pelo estado, eu não sei. Então daí eu passava a tarde lá, fazia as lições lá, as brincadeiras, o recreio, pra mim as diversões eram nesse parque infantil; e muita brincadeira na rua porque se brincava na rua, íamos assistir televisão na casa do vizinho, não tínhamos televisão em casa, início dos anos 1950, raríssimas pessoas tinham televisão. E uma coisa, também, que se percebe, a minha origem era muito humilde, e eu ia assistir televisão na casa de um garoto que o pai tinha uma fábrica de caixas de papelão. Então era uma diferença social muito grande, mas brincávamos todos na rua, convivíamos todos no mesmo ambiente, frequentávamos a mesma escola, não havia distinção, eu, pelo menos, não sentia nenhuma distinção. Depois dos onze anos mais ou menos, eu mudei pra um prédio de apartamentos quando tomaram, pediram a casa dos meus avós, nós fomos morar num apartamento, como eu estava dizendo. Aí houve uma certa mudança no esquema da família. Essa minha irmã tinha conseguido uma autorização do Clube de Regatas Tietê pra montar uma escolinha primária lá dentro, essa escolinha começou a dar certo, começou com dois, três alunos no primeiro dia de aula lá, e a coisa foi evoluindo, no segundo ano já tinha mais alunos, a coisa começou... As minhas irmãs, as duas já estavam trabalhando fora, nós fomos morar num apartamento novo, novo, novo, num prédio alugado, mas um predinho com elevador, coisa que naquela...
P/1 – No Bom Retiro?
R – No Bom Retiro, cento e cinquenta metros da casa em que eu morava. Eu morava na Bandeirantes, esquina com a Afonso Pena, e fui morar nesse prédio na Rua Afonso Pena. Era o segundo prédio no Bom Retiro, um prédio de oito andares, naquela época era uma coisa, assim, muito grande, aí a maior parte dos moradores desse prédio eram judeus, e eu passei a conviver com eles. Nós estamos falando de 1954, 1955, portanto, dez anos, nove anos depois da guerra, né, então era natural esperar que os judeus fossem fechados, não dessem penetração. Eu convivi com eles tranquilamente, convivia na casa deles, ia nas festas deles. Durante um certo tempo, criamos lá um clubinho da garotada, funcionava dentro de um clube dos mais velhos, eles cediam lá o espaço, eu fiz parte da diretoria desse clubinho, nós tínhamos lá ping-pong, bailinho todo sábado, todo domingo, a vitrolinha, então...
P/1 – Esse clubinho era pros dois, pros meninos e pras meninas?
R – Sim, eram menino e menina. Nós alugávamos uma quadra, que até hoje ela existe, no Quartel do Batalhão Tobias de Aguiar, o famoso prédio da Rota ali na Avenida Tiradentes. Nós alugávamos a quadra deles à noite, no sábado à noite pra esse grupo. Então iam as meninas e os meninos jogar voleibol, futebol... Era basquete e voleibol que se jogava, futebol. Não se falava nisso. Convivia, assim, com a maior naturalidade no meio deles, então nunca senti absolutamente nenhuma restrição no contato com eles. Essa é uma fase da minha infância aí.
P/1 – Infância, já adolescência, né?
R – A fase de adolescência.
P/1 – E nessas festinhas o que acontecia, que músicas, como eram as meninas, os relacionamentos já começavam?
R – Eu não sei se da parte delas tinha algum tipo de interesse, da minha parte não, era pura amizade mesmo, era uma coisa, assim, muito espontânea, não lembro de ninguém que...
P/1 – Tinha bailinhos?
R – Bailinhos, era bailinho, dançava solto, né, era época de rock and roll; numa segunda fase, já não mais eu convivendo diretamente no Bom Retiro, quando eu comecei a estudar no colégio estadual Otávio Mendes, que era em Santana, então era longe de casa, mas vários do Bom Retiro, vários desse clubinho também estudavam no Otávio Mendes, porque antigamente, nessa época de que nós estamos falando, anos 1950, final dos anos 1950, era uma disputa pra você conseguir entrar numa escola estadual, era muito difícil, eram pouquíssimas as escolas, e o nível era excelente. Então esses israelitas, o pessoal que tinha uma formação diferenciada, eles tinham uma boa escolaridade e tal, eles entravam com uma certa facilidade na escola. Eu lembro de vários deles estudando lá, fizeram lá o ginásio com a gente. Aí nessa época surge um interesse maior pela música, eu frequentava a fanfarra da escola, cheguei a ser o chefe da fanfarra da escola. Nesse grupo nós montamos um pequeno conjunto, tocava-se rock, né, na época era o rock que se tocava. Desse conjuntinho, nós tínhamos um cantor, e um dia nós resolvemos gravar um disco, mas gravar um disco é literalmente mesmo gravar um disco, contratamos lá uma gravadora na cidade, fomos pra cidade lá, e lá nós entramos num pequeno estúdio...
P/1 – Isso com mais ou menos que idade?
R – Nisso eu devia ter mais ou menos dezesseis anos, por aí, isso deve ter acontecido em 1961, 1962... 1959, 1960, nessa época, nós fomos lá e gravamos um disco, entramos num estúdio mais ou menos semelhante a esse aqui, só que era som, né, e gravamos um disco de um lado, tocando direto a música, né, acho que uns três, quatro minutos de duração, e depois gravamos o que viria do outro lado, e saímos de lá com um disco. Só que ele era de alumínio, era pintado de preto, tudo, como se fosse um disco de vinil, de acetato, na época, né, antes do vinil, e de um lado um cantor, do outro lado, outro cantor. De um lado o cantor depois se tornou famoso, é o famoso Márcio da dupla Vips, que foi contemporâneo do Roberto Carlos, cantou na Jovem Guarda e tal. O Márcio foi um grande colega meu de ginásio, convivemos muito, frequentei a casa dele, e ele cantou um desses lados do disco, e do outro lado era um tal de Sérgio Reis, que também acabou ficando famoso (risos), uma total coincidência, porque dos outros, ninguém do conjunto, da parte musical, o pianista, eu tocava saxofone, ninguém se projetou. O pianista de fato era o único que entendia realmente de música, era músico mesmo, estudava piano, hoje ele é dono de um conservatório lá em Santana, mas eu não tive mais contato com ele, mas externamente não teve projeção, né, e os outros, simplesmente, cada um tomou um rumo na vida e ninguém apareceu.
P/1 – Esse foi um dos seus primeiros passatempos?
R – Então, isso foi uma época, era um passatempo porque ia acompanhar o Sérgio Reis, ele tinha um nome americano que eu não lembro, não saberia repetir agora, e ele cantava rock, ele se apresentava no palco com uma baita de uma guitarra, e a gente ia acompanhá-lo no estúdio da Rádio Bandeirantes, que era na Rua Paula Souza, no centro da cidade. Então, de sábado, não sei se era sábado ou se era domingo o dia que ele se apresentava lá, e a gente ia lá cantar com ele, ia bater palma lá no auditório, e isso era um passatempo, quer dizer, era o motivo de aglutinar, né, e aí vieram outros grupos, os bailinhos, as festinhas da escola, a comissão de formatura que já se organizava desde o início do ano. Pra arrecadar dinheiro pra festinha de formatura fazia-se os bailinhos nas casas das pessoas, e aí certamente começaram a surgir os encontros, os casais, os primeiros namoros...
P/1 – O senhor se lembra de alguma namorada?
R – Olha, eu praticamente não namorei com ninguém antes de namorar com a minha esposa. Convivi com muitas moças, a gente tinha, assim, um grupo variado. Justamente numa dessas épocas aí nós formamos um grupo de rapazes e moças, todos lá da mesma escola, acho que todos oriundos da fanfarra. O grupo surgiu dentro da fanfarra da escola, e a gente fazia as nossas festinhas, mas sem nada de namoro, né, e aí resolvemos fazer uma festa caipira, e na festa caipira eu fui escolhido pra ser o noivo e a minha mulher foi escolhida pra ser a noiva, então ali começou, né, a gente começou a: “Opa, acho que vai dar certo”. A minha sogra foi acompanhar porque menina não andava sem a mãe do lado, né, e nessa festinha a minha sogra foi junto e lá na saída perguntou: “Quem é esse? Teu namorado?”, “Não, mãe, não tem nada...”, e aí que a coisa... Começou a haver o interesse, e aí a gente, de fato, passou a namorar e aí a minha vida realmente, a partir de que eu conheci a minha namorada, na época lá, começou a ter mais seriedade. Porque até então eu era muito paparicado pelas minhas irmãs, porque era o irmãozinho mais novo, né, “tadinho, os pais morreram”, e elas tinham passado muita dificuldade na juventude, não queriam que o irmãozinho passasse. Eu era tratado a pão-de-ló, inclusive, na escola, eu frequentava, eu ia todo dia na escola, mas eu tinha a chave da sala da fanfarra, eu passava o dia dentro da sala da fanfarra, eu era da diretoria do Grêmio Esportivo, eu cuidava do grêmio, eu era desse conjunto musical, eu fazia os ensaios. Da sala de aula eu não tenho muita lembrança, né, pouca lembrança da sala de aula; a partir de conhecer a Marly, a cabeça foi modificando, mas nisso eu já tinha dezoito pra dezenove anos de idade, não foi uma coisa, assim, tão....
P/1 – Mas você já pensava em alguma coisa que você gostava de trabalhar? Tinha alguma vontade de fazer...
R – Não, trabalhar nada, não tinha, isso era uma coisa que não passava... Essa preocupação...
P/1 – Mas tinha alguma coisa que você já gostava de fazer ou que te atraía?
R – Não, nessa época, eu ajudava a minha irmã na escola, na escolinha lá dentro do Tietê, então eu dava aula de algumas práticas esportivas lá e tal, e acompanhava o ônibus, tinha o ônibus que levava as crianças, eu fazia o trabalho de monitor dentro do ônibus, não sei se é esse o nome que existe hoje, mas eu acompanhava, então tinha uma certa responsabilidade, né, de acompanhar. Mas eu não tinha nenhuma preocupação com futuro, com profissão, não tinha essa coisa na cabeça, ela começa a surgir a partir do momento que eu começo a namorar e começo a querer ter a minha independência, só que eu estava defasado em termos de escolaridade, e aí que eu comecei a correr atrás do tempo, a primeira ideia de trabalho, de fazer uma faculdade, de ter uma profissão. Nisso eu já estava trabalhando com um cunhado meu na cidade, ele tinha uma empresa que vendia planos de saúde, eu fazia cobrança, comecei a cuidar da cobrança. Ia de porta em porta fazer a cobrança, depois já comecei a trabalhar internamente...
P/1 – E a música?
R – A música ficou pra trás, mesmo porque, nesse conjunto, eu era o cara que tocava afuche, eu não sabia nada de música, eu queria estar no meio da brincadeira, eu precisava estar lá, agora, não sabia violão, não sabia tocar piano, não sabia tocar sax, não tinha noção nenhuma de música.
P/2 – Eu queria voltar um pouquinho lá atrás, dentro da sua casa, nesse processo de mudança pra esse outro apartamento que vocês foram, como se configurou? Quem mandava no espaço interno da casa, era a avó, era a mãe?
R – Não, quando nós mudamos pro apartamento, na verdade, antes eu morava na casa da minha avó, mas o relacionamento era muito estranho, a minha mãe não se dava bem com a minha avó, então nós morávamos na mesma casa, mas, como eu falei, a gente morava no porão, a parte comum era totalmente independente, embora os quartos fossem no andar de cima, eles eram separados do restante da casa. Não havia, assim, relacionamento. Eu, como era criança, não percebia. Depois, mais velho, você começa a rever determinadas situações e tal. Mas não havia proximidade, e quando nós mudamos pro apartamento foi só o meu núcleo, o meu pai, que ainda era vivo, e as minhas três irmãs solteiras. Nesse meio tempo, o meu pai falece, a minhas três irmãs assumem a casa e a família. Elas já namoravam, cada uma tinha o seu namorado, namorados de anos e anos, uma namorou dez anos com o mesmo cara, outra namorou onze anos com o mesmo cara, a do meio, essa que era a minha mãe, ela casa e vem morar nesse apartamento. Então aí é uma situação interessante porque eu não me sentia morando na casa da minha irmã, do meu cunhado, o meu cunhado era o intruso, ele é que veio morar ali com a gente (risos). Então, pra mim, continuei sendo o queridinho da casa. Logo em seguida, a minha irmã mais velha casa e vai embora, e no ano seguinte... Num ano as três casaram, né, uma casou em julho de um ano, a outra casou em outubro daquele mesmo ano, em julho do ano seguinte, sempre coincidindo com as férias, né, porque as duas só podiam casar ou ter... em época de férias escolares. Então uma casou no final de junho de um ano e a outra casou no final de junho do ano seguinte, né, então no espaço de um ano as três casaram, uma continuou morando lá naquele apartamento durante um certo tempo, os filhos vieram, eu continuei convivendo com os meus sobrinhos, morando na mesma casa, dividi quarto com um deles lá, e aí nessa altura, então, eu já pensava em criar a minha própria estrutura, a minha própria vida, já pensava, então, numa profissão. Foi quando eu fui procurar estudar, terminar o colegial, fazer uma faculdade, e a minha ideia era fazer faculdade de Administração, era um curso de quatro anos, e depois eu ia sair... Já estava trabalhando com um desses meus cunhados no escritório dele lá na cidade...
P/1 – E o senhor queria fazer Administração, não tinha uma outra coisa que o senhor achava que poderia gostar e querer fazer?
R – Não, inclusive, essa coisa da vida militar é um negócio, assim, é muito interessante. Ela acontece de uma forma totalmente anormal na minha vida, eu conhecia a Academia de Polícia Militar, né, se chamava Centro de Formação de Oficiais. Ainda era a época da Força Pública, não se falava em Polícia Militar, era Força Pública, existia essa academia, essa escola, e nesse ginásio do estado, lá no CEBOM, onde eu estudava, a gente... Era relativamente próximo, né, então era comum a gente jogar bola lá, eu também não jogava nada, mas eu era da equipe de torcida, eu estava sempre... Onde tinha movimento, eu fazia parte, então eu fui muitas vezes lá na Academia, mas eu via aqueles homão grandes, aqueles caras barbudos, eu não me imaginava lá, muitos colegas meus de ginásio, de sala de aula, até um que foi colegão mesmo, também tinha a chave da sala da fanfarra, é um dos que dividia a chefia da fanfarra comigo, ele entrou na Academia logo de cara, né, porque você tem duas... Parênteses aí, você tem duas formas de entrar na Academia, tinha, né, hoje é diferente, você podia entrar com o curso ginasial, você entrava ao término da quarta série do ginásio, você entrava, fazia cinco anos lá de academia, e saía oficial, ou você tinha o curso colegial, fazia três anos lá na academia e saía oficial, e esses, vários deles, junto aqui, ó, terminou o ginásio e foi pra lá, eu sabia, eu conhecia, via... Ah, não, você não, ele também fez o colegial, mas o Jairo, esse a que eu estou me referindo é o Jairinho, colega de academia dele, de turma, dele, e era meu amicíssimo na época do ginásio, né, ele foi pra lá, eu sabia que ele estava lá, mas eu não me via lá, não tinha a mínima noção do que era, como fazia pra entrar, não tinha noção; eu estou fazendo, então, o cursinho pra entrar na faculdade de Administração, quando um professor na sala de aula...
P/1 – Nisso o senhor já namorava?
R – Sim, aí a cabecinha já estava querendo casar, já estava pensando em ter a sua própria independência e tal.
P/1 – Quando vocês começaram a namorar, vocês já falavam de casamento?
R – Não sei se no primeiro dia, mas no segundo talvez, no terceiro... A coisa já rolou séria ali.
P/1 – Como era o namoro? Vocês podiam sair sozinhos?
P/2 – Volta um pouquinho.
R – Não, olha... Vamos voltar? Vamos falar de namoro?
P/2 – Volta um pouquinho, e aí você chega na vida... Se não a gente vai pulando, volta quando você conheceu ela na festa, conta um pouco, como foi?
R – É uma coisa que tem... Eu não sei se pra todo mundo é assim, como acontece com as pessoas, eu não sei se é porque eu tinha, assim, um profundo respeito pelas mulheres porque eu fui educado por três irmãs, e essa que era a minha mãe era brava pra caramba.
P/1 – Como era o nome dela?
R – Nancy, ela era terrivelmente brava, mas, nossa...
P/3 – Só com você?
R – Não, o temperamento dela era... Ela era nervosa, mas comigo, eu acho que eu era a vítima principal lá.
P/1 – Você aprontava bastante?
R – Sem dúvida, sem dúvida porque eu não sentia... Eu não tratava ela como mãe, né, mas então, por exemplo, fumar, não se admitia fumar, nem pensar, e eu fumava. Mas fumar era aquela coisa, você comprava o maço de cigarro, uns cinco ou seis, saía da escola andando pela rua fumando que nem uma chaminé, então você chegava em casa com cheiro, ela ia lá cheirar a minha roupa pra ver se tinha cheiro, cheirava a boca – tinha que chupar bala de hortelã–, e falava pra mim: “Se eu te pegar, se eu te pegar”. Só que nessa altura ela já sabia que eu fumava, nisso que eu estou falando eu devia ter uns dezessete anos, por aí: “Nem pensar em fumar, e se eu te pegar, vai engolir o cigarro”. E eu escondia o maço numa caixinha que tinha no corredor do prédio, tinha a caixinha de passagem de fio de telefone e tal, eu punha o maço de cigarro, isso quando eu já estava malandro. Ela sabia, meu cunhado sabia, meu cunhado falava pra ela: “Nancy, deixa ele fumar”. “Não, se eu pegar, ele vai engolir.” Eu estava naquela, eu sabia que ela sabia, ela sabia que eu fumava, mas a promessa de engolir estava feita, e eu guardava o cigarrinho lá naquela caixinha. Um dia de manhã cedo, saindo pra escola, fui lá na caixinha, peguei o maço de cigarro, pus no bolso. Nessa altura, ela saiu no olho mágico lá do apartamento pra pedir pra eu comprar alguma coisa lá na padaria lá embaixo. Ela saiu pra ver se eu ainda estava no corredor e me pegou no flagra, né, pegando lá o cigarro e pondo no bolso. E eu estou lá esperando o elevador chegar, quando o elevador chegou, ela chegou junto: “Eu falei que você ia engolir”. Nisso, o maço já estava na mão dela, a minha boca já estava querendo engolir o cigarro (risos), a minha sorte é que o elevador chegou, tinha gente dentro do elevador, alguém empurrou a porta lá, viu ela de pé lá no corredor, e eu consegui escapar, poxa, isso eu tinha uns dezesseis pra dezessete anos. Então essa era a forma, né, mas eu tinha um respeito, uma consideração enorme por elas, e consequentemente por mulher, então eu tinha...
P/1 – E ali com as suas irmãs, vocês namoravam como?
R – Com as minhas irmãs não teve problema nenhum, quando eu comecei a namorar eu já tinha dezenove anos, por aí, acho que mais de dezenove. E com ela não teve problema na minha casa, foi bem recebida, foi bem aceita, não teve nenhuma novidade. Mas na casa dela não, na casa dela nós namoramos um ano na rua, não podia nem passar no portão, a mãe sabia, mas o meu sogro não podia nem pensar que a filha dele... Mesmo porque ela era, relativamente, menina, quando a gente começou a namorar, ela tinha catorze anos, fez quinze logo em seguida. Mas praticamente quando nós, de fato, começamos a namorar, ela tinha catorze anos, eu tinha dezenove já. Então o início foi totalmente escondido, você não podia passar nem na rua, se encontrava em algum lugar e tal. Quando ia em alguma festinha, qualquer coisa, a minha sogra sempre ia junto, sempre se saía em grupo, a menina não andava no carro do namorado, eu ia de carro, o meu cunhado, que eu morava com eles lá, ele tinha carro, eu usava o carro dele direto porque como eu falei ele morava comigo, né, não era eu que morava com ele, então o carro dele era mais meu do que dele.
P/1 – Vocês faziam o quê? Iam ao cinema?
R – Se ia.
P/1 – Conta aí da sua fase de namoro, da Marly...
R – Nós estamos falando, aí, por volta de 1963, quando eu comecei a namorar, a gente namorou um ano na rua, praticamente, o pai dela não sabia, não podia saber, e a gente se encontrando em saída de escola, ia buscar na escola, nessa altura eu já trabalhava, já tinha arrumado emprego, estava trabalhando formalmente, oito horas por dia, passei a estudar de noite, fui terminar o colegial numa escola bem fajuta no centro de São Paulo pra poder tirar o diploma, e me preparando pra ver que caminho seguiria na vida.
P/1 – Você ainda não tinha uma escolha?
R – É, aí comecei a formar o que estudar, estudar isso, estudar aquilo, não tinha uma noção bem clara. Depois de um ano namorando na rua, tive que ir lá pedir a mão da namorada pro meu sogro, sentei do lado dele lá, na cadeira, e pedi a permissão pra namorar, a permissão foi concedida. Então era uma época, assim, de muita formalidade, muito formalismo, né, e cumprimos todo esse formalismo, começamos a namorar, e aí com mais facilidade, namorando dentro de casa, saindo com mais tranquilidade, mas sair era sempre... Ela tinha uma irmã que também tinha um namorado, então saiamos os quatro, ou saíamos com colegas, ou com a mãe. Se fosse algum bailinho, alguma festa à noite que iria chegar mais tarde, a mãe ia junto, né, e nesse aspecto a minha sogra sempre foi muito gente boa, muito legal, sempre acompanhou tranquilamente, ia-se fazer passeio em Santos, era uma época diferente. Hoje, em uma hora eu não saio da minha casa, um trânsito, você não atravessa o fim de Santana, de onde eu moro, mas naquela época você ia fazer um piquenique em Santos, o sogro emprestava o carro dele, eu comecei a sair com o carrão dele lá, ia fazer o piquenique. Você ia de manhã num sábado ou domingo, voltava...
P/1 – Vocês iam pra onde?
R – Tinha uma sorveteria em São Vicente, se chamava Flor Paulista, e a gente ia tomar sorvete nessa sorveteria. Fomos umas duas ou três vezes, numa delas o carro quebrou, tivemos que voltar de guincho, mas era um passeio que se gostava de fazer, era em São Vicente, se tomava esse sorvete, passeava-se na orla lá, passava o dia na praia e depois vinha embora. A minha esposa, a avó dela tinha apartamento em Santos, então quando ia passar férias, ela ia pro apartamento da avó. A gente arrumava algum lugar pra ir passar as férias também em Santos, aí se convivia na praia, andava na praia. Passeava-se muito no Tietê porque eu era sócio do Tietê, e ela era sócia também, mas não nos conhecemos lá no Tietê. Então tínhamos todo esse meio de passear, de namorar, de conviver, de ir nas festinhas, nos bailinhos, a prática eram os bailinhos, tinha muito naquela época. Aí voltando pra parte de ensino, de estudo, a cabeça fazendo cursinho pra esse curso de Administração de Empresas que foi o que, na minha cabeça, me pareceu mais coerente, mais lógico, mais fácil de seguir. E na sala de aula, um dia lá, o professor perguntou se tinha alguém na sala que podia ir com ele pra tirar um atestado de residência. Ele precisava de três testemunhas pra tirar o atestado de residência, aí eu e mais um levantamos a mão lá, ele arrumou mais dois e fomos, eu, ele e o professor, que era jovem como a gente. Pegamos um bonde, fomos lá pro Ipiranga, e lembro bem que a gente foi em pé lá no fundo do bonde conversando e ele explicou que ele queria o atestado de residência porque ele ia prestar exame... Já fazia faculdade, ele estava fazendo USP, não sei que curso ele fazia na USP e dava aula no cursinho lá, e ele ia entrar na Academia da Força Pública, que era um negócio legal porque eram três anos e já saía empregado, pagava pra estudar, você não ia pagar a faculdade, a faculdade ia te pagar pra estudar, tinha roupa, tinha cama, e aí o meu olhão foi arregalando, eu falei: “Opa, três anos, não são quatro, são três, você tem emprego, você já sai empregado, você recebe pra estudar, parece uma maravilha”, né, e aí eu fiquei especulando com ele e tal, conversando com a namorada em casa, meu sogro era rotariano, conhecia lá alguém que era da polícia: “Não, esse é um ótimo caminho, um ótimo emprego”. Ele já estava querendo se livrar da filha nessa altura, já queria arrumar um emprego bom pro marido lá, e assim foi que eu comecei a enxergar a tal da academia da Força Pública, que pra mim, até então, era uma coisa, não desconhecida, porque eu conhecia, mas eu não me via absolutamente lá. Aí larguei o cursinho que eu estava fazendo e fui fazer um cursinho preparatório para ingressar na academia lá na Força Pública, e foi assim que eu acabei me direcionando pra Força Pública; mas não me identifiquei com a escola, com a carreira, por duas vezes tentei pedir desligamento, um dos que me fez a cabeça: “Ah, isso é bobagem, isso acaba logo”. Porque era aquela coisa muito rigorosa, muito rígida, uma escola excelente em termos de conhecimento, de ensinamento, mas aquele regime militar pesado, né, aquela coisa de tudo tem que estar certinho, tudo na hora certinha...
P/1 – Só um minutinho, quando você pensa em largar, o que passa na sua cabeça quando você tem vontade de abandonar essa carreira? O que você queria, o que você pensava?
R – Eu não sei exatamente o que me passava na cabeça, mas provavelmente voltar ao caminho anterior, evidentemente com todo aquele conflito: “Poxa, agora eu vou ter que justificar, né, em casa, pra minha família, pra futura família, que eu não gostei disso, será que vai dar certo?”. Você fica num conflito. Mas eu cheguei formalmente a fazer o pedido de desligamento, a parte, que se chama lá, né, mas um colega que era da turma dele e é remanescente deste grupo do ginásio lá, um tal de Irajá, eu me lembro muito bem, eu sentado num banco lá e ele fazendo a minha cabeça: “É bobagem, isso aqui acaba, depois muda”. Esse camarada era filho de coronéis, ele conhecia bem o ambiente e tal, a vida militar, e ele me fez a cabeça. Eu desisti e continuei, terminei a escola, aí vem a ida pro bombeiro, porque quando você termina a academia, na época era assim, hoje é um pouco diferente, era apresentado a você uma relação das unidades da polícia onde tinham vagas disponíveis, né, então você vai e apresenta uma relação de três unidades que você quer optar, e em função da sua classificação, da tua nota na escola, você vai ser atendido no seu pedido naquela sequência das três solicitações, ou vai pra algum lugar que te mandam se não tiver tido a chance. Eu não pedi bombeiro, eu não sabia o que era bombeiro, não conhecia o bombeiro, não tinha ninguém, amigo nenhum no bombeiro, não tinha nada de bombeiro, e não tinha atração também pelo bombeiro.
P/1 – Quais foram as suas escolhas?
R – A minha primeira... Eram unidades escola. Eu fui orientado por um conhecido, esse que eu até já citei o nome dele, o coronel Alcides, que era casado com uma amiga da minha irmã, e ele: “Não, você precisa ir pra uma unidade escola porque é mais disciplina, é mais não sei o quê”, e eu não tinha muita noção, nessa altura já não morava mais no Bom Retiro, a minha irmã tinha se mudado pra Santo Amaro, então eu vislumbrava mudar de lá pra Santo Amaro, ir morar perto da casa dela, porque eu ia casar, ia acabar a academia e ia casar, nessa altura eu já era noivo, já tínhamos... Estávamos só esperando a definição da data de saída, porque não tínhamos essa certeza da data, do término do curso, porque os cursos terminam normalmente em dezembro, né, os cursos da academia, só que o meu curso tinha sido antecipado, nós não tivemos férias, tivemos aulas nas férias e tal, porque havia uma necessidade de oficiais, e o curso foi antecipado. Então não se sabia se eu ia sair em agosto, se ia sair em setembro, e isso também não me permitia marcar a data de casamento, nada, mas já era certo que saindo eu ia casar, o objetivo era esse. E morando na casa da minha irmã, morando em termos, né, porque nesse período da academia você é interno, você dorme, você mora lá, dorme lá, né, no último ano, o terceiro ano, eu já não dormia no quartel, poderia ir dormir na minha casa, mas como a escola é no alto de Santana, lá na Água Fria, e eu morava em Santo Amaro, distância de vinte, trinta quilômetros, e às seis e quinze você tinha que estar em forma pra aula de Educação Física. Então pra eu sair de Santo Amaro e chegar lá no alto de Santana seis e quinze, eu tinha que sair às quatro horas da manhã.
P/1 – Só pra retomar, quando o senhor estava estudando nessa escola, como eram as amizades?
R – Na academia?
P/1 – Isso.
R – Ah, as amizades são as lá de dentro, porque você é tempo integral...
P/1 – Tem algum amigo que marcou?
R – Você entra no domingo às dez horas da noite, sai na quarta-feira à uma e volta na quarta-feira às dez da noite pra sair de novo na sexta-feira às dez horas, quando você não está com nenhum tipo de escala ou de punição – qualquer coisa que você faz, você perde o licenciamento–, você perde o fim de semana, então a tua convivência é quase que integral com aquele grupo. Então eu saindo lá do quartel, eu ia direto pra casa da namorada, pra ir pra minha casa era realmente em termos de fazer uma visita, dormia lá, provavelmente, de sábado pra domingo ou de sexta pra sábado. Eu dormia uma vez por semana na minha casa, o resto eu dormia no quartel, com o agravante de que no terceiro ano da academia, ou seja, o último ano da academia, eu entrei na faculdade, coisa que eu também fui o primeiro da minha turma, o primeiro e único, depois no meio do ano um outro também conseguiu entrar. Então eu fazia aula de manhã e à tarde na academia e à noite fazia faculdade, entrei no Mackenzie pra fazer licenciatura. Por quê? Já dentro dessa preparação pra fazer outra coisa porque mesmo terminando a academia eu não tinha a intenção de continuar, eu realmente não me identifiquei com aquilo, então assim foi, quando eu saí, em agosto de 1968, em agosto mesmo eu me casei, né, fomos morar lá na Aclimação num apartamento que a gente alugou. A Marly fazia a faculdade à noite, também fazia Mackenzie, e eu também fazia Mackenzie. A gente se encontrava na faculdade à noite e depois ia pra casa, ela já lecionava, já dava aula nessa época, e eu fazia o quartel, fui fazer a escola de bombeiro nesse meio tempo, fiz a escola de bombeiro, que foi até o mês de março, mais ou menos, do ano seguinte, fui para o bombeiro também de forma acidental...
P/1 – Só conta como o senhor chegou no bombeiro, o senhor estava nessa parte...
R – Então, eu estava naquela escolha do lugar pra ir, você perguntou pra que unidade eu fui, eu pedi pra ir pra uma unidade escola, que na época se chamava Segundo Batalhão de Guardas, Primeiro Batalhão de Guardas, né, hoje é uma das unidades que faz policiamento em campo de futebol, tudo, mas na época era uma unidade escola, formava soldados, e eu pedi pra ir pra essa unidade. Quando a gente termina o curso da academia, a gente tem oito dias de dispensa, e quando a gente casa, a gente tem oito dias de dispensa, então o que eu fiz? Eu juntei esses oito mais oito, só que encavalou, então não é oito mais oito, deu quatro mais oito, foi o tempo que eu tive de lua de mel. Então eu terminei a escola e só fui me apresentar no quartel de novo depois de doze dias, né, pra saber pra que lugar que eu ia porque até então eu não tinha certeza se seria pra aquela unidade, no que eu tô entrando na academia, eu cruzo com um colega de turma que tinha sido classificado pra ir pro bombeiro, e detestou, ele já tinha se apresentado lá no bombeiro, aconteceu lá um determinado fato numa ocorrência, e ele não gostou, ele achou que aquilo era uma bagunça, que no bombeiro só tinha pinguço, que o pessoal era muito mal vestido, totalmente fora daquele regime todo quadrado militarizado da escola, e ele foi pedir pra trocar, e disseram pra ele que não dava mais, ele já tinha se apresentado, já tinha sido publicado, não iam mudar de lugar, a não ser que ele arrumasse uma permuta. E nisso eu tô chegando, fui o primeiro cara que ele encontrou lá no ponto do ônibus, aí ele contou a história dele e falou: “Você não quer trocar comigo?”. “Bombeiro?” Eu não sei o que era bombeiro, eu não sabia o que era bombeiro, quer dizer, não sabia em termos, né, tinha a nossa noção... Eu falei: “Mas agora eu sou um homem casado, preciso falar com a minha mulher e tal”. Aí fiquei de dar uma resposta pra ele. Fui pra casa, falei com a Marly, ela falou: “Não é perigoso?”. “Ah, não sei, acho que tudo é perigoso.” “Então, tudo bem.” Peguei, liguei lá pro camarada, pro tal de Tonhete, e falei pra ele que topava fazer a troca, e assim eu fui parar no bombeiro, então veja, a minha entrada na polícia, foi meramente acidental, vocação zero, a minha entrada no bombeiro meramente acidental, vocação zero. Fui fazer a escola de bombeiro, fiz a escola sem maiores problemas, mas também sem maior dedicação, não tinha, assim, tanto entusiasmo com a carreira, com a profissão, mas você vai começando a criar o gostinho, né, mas na minha cabeça o que era? Era terminar a faculdade e sair fora, e foi o que eu fiz, quando eu terminei a faculdade em 1972 já comecei a procurar escola pra lecionar, eu já lecionava nesse meio tempo, porque na polícia você trabalhava meio dia naquela época, o expediente era meio dia, você concorria às escalas de serviço, que no bombeiro eram pesadas, a cada quatro, cinco dias, você tirava um plantão de vinte e quatro horas. E realmente, o ambiente no bombeiro era muito pesado, era muita bebida porque o regime era de vinte e quatro por vinte e quatro. Os soldados, a base do trabalho do bombeiro, eles trabalhavam vinte e quatro horas por vinte e quatro horas, significa você nunca ter um fim de semana, porque ou você tá de serviço no sábado ou tá de serviço no domingo, você nunca ter um carnaval porque ou você tá de serviço na sexta, ou no sábado, ou você tá na segunda, alias, sábado e segunda, ou domingo e terça, e é assim, e você sai às sete e meia da manhã, a rendição, entra em forma, você não sai do quartel sete e meia, vai sair oito, oito e pouco se você for trocar de roupa lá e tal, pra no dia seguinte estar às sete e meia de novo em forma.
P/1 – Vocês moravam onde nessa época?
R – Eu morava na Aclimação, morei um ano na Aclimação e depois morei um ano em Santana.
P/1 – Só vocês dois?
R – Só os dois, nessa época não tínhamos filhos, e depois eu consegui comprar a primeira casinha, um sobrado, e lá perto do aeroporto, ali antes do aeroporto, então quando eu tirei o afastamento, quando eu resolvi sair do bombeiro mesmo porque eu já lecionava... Então eu estava falando, né, que eu fazia o quartel de manhã, dava aula num ginásio do estado à tarde e à noite ia pra faculdade.
P/2 – Do que você dava aula?
R – Eu dava aula de Ciências, Ciências Físicas e Biológicas, depois também dei aula de Física, mas nesse início mesmo era aula de Ciências.
P/1 – E como era a sua relação com os alunos?
R – Olha, eu adorava. Se eu tenho uma profissão de coração mesmo, de vocação, é de professor. Isso eu exerci quase que a vida inteira, né, comecei lá com a minha irmã dando aula de futebol pra molecada lá, né, e depois tive muitas passagens como professor em situações diferentes, mas começou num ginásio do Estado, cheguei a ser diretor desse ginásio do Estado, assistente de diretor, né, porque eu não era concursado, era título precário, mas me identifiquei total com a escola, fui muitas vezes convidado pra ser paraninfo, os alunos gostavam de mim e eu adorava a escola, sempre tive total identificação com isso. Nesse anos que eu terminei, eu consegui aulas num colégio de primeiríssima linha que era o colégio São Luís na Avenida Paulista, e a Marly conseguiu aulas no colégio Dante Alighieri, então ela foi lecionar lá no Dante Alighieri e eu fui lecionar no colégio São Luís, e no ginásio do Estado, então em 1972 eu me licenciei da PM com o objetivo de não voltar mais porque o ambiente era ruim. O comandante do bombeiro com quem eu fui falar quando estava pensando em sair, ele estava embriagado, ele não conseguiu olhar pra minha cara e falar: “Sim ou não, bobagem”, né, então eu falava com um, achava que era besteira, falava com outro: “Não, vai, você tem que se arrepender do que você não fez e não daquilo que você fez, tenta, se é isso que você quer”. E eu estava nessa, só que eu saí no dia 28 de fevereiro, em 1972. Foi o meu primeiro dia de afastamento, o incêndio do Andraus foi no dia 24 de fevereiro, uma quinta-feira, sexta-feira foi o meu último dia de serviço no bombeiro, eu fiz o rescaldo do Andraus, foi meu último trabalho, tive uma despedida dos colegas: “Tchau, tô indo embora”, até porque eu passei o dia naquele incêndio, e aí tudo aquilo que eu via de negativo no bombeiro começou a modificar porque começou a imprensa a dar em cima, sair no jornal que o bombeiro vai melhorar, que vai mudar, que vai comprar equipamento, tal, tal, tal... Eu via carro de bombeiro na rua, ficava todo arrepiado, poxa, eu...
P/1 – Sua sensação nesse dia era...?
R – De vontade de voltar, né, mas não me arrependo de ter saído porque se eu não tivesse saído eu teria sido uma pessoa frustrada, né e isso... Voltei, evidentemente, assim que terminou o meu ano de afastamento, eu terminei o ano lá no colégio São Luís, continuei lecionando no Estado porque eu fazia isso em meio horário, né, fazia a noite ou de dia, e o problema era a escola particular mesmo, que ela pegou o horário que eu fazia no quartel, não tinha jeito, e também questão de compromisso, numa escola particular eu não poderia faltar uma vez ou outra, era mais complicado, e assim que eu terminei o meu compromisso lá, eu voltei pro bombeiro. E aí peguei o bombeiro realmente numa fase de revolução, quer dizer, as pessoas entusiasmadas, de cara, logo em seguida, mudou o regime de trabalho dos praças, passou de vinte e quatro por vinte e quatro pra vinte e quatro por quarenta e oito, já permitindo às pessoas terem uma família, ter convívio, ter um trabalho fora. Devagarzinho foi mudando completamente o perfil do bombeiro, e como organização ela passou a ser mais respeitada, teve mais estudos, mais grupos de trabalho, nisso eu fui transferido pra escola de bombeiro, né, na escola de bombeiros você convive com alunos, é ensino, você tem mais essa visão de que as coisas vão mudar, de que vai melhorar. E tinha um grupo de trabalho que estava fazendo estudos para a reorganização do bombeiro, pra reequipamento, e funcionava na escola de bombeiros, eu não era deste grupo, mas convivia com eles lá e tal. Quando vem o incêndio do Joelma, dois anos depois, eu estava na escola de bombeiros, convivia com todo esse grupo, com todo esse pessoal, então foi uma época, assim, que aí mudou completamente a minha relação com a profissão, com o bombeiro.
P/1 – E nesses incêndios, o que marcou? O que ficou pra você desses que foram tão significativos, né?
R – Esses incêndios, eles não marcam... Bom, eles marcam pra gente porque, é lógico, você olhar um prédio daquele, daquelas proporções, né... No Andraus, quando eu cheguei, a fase crítica mesmo já tinha acabado, e eu trabalhei no dia seguinte depois fazendo o rescaldo, não foram cenas que tenham me assustado tanto, embora você veja aqueles esqueletos todos, eu não estava lá na hora que aquilo estava soltando labaredas de atingir o outro lado da rua, você ver depois é uma coisa, na hora é diferente, então não me causou tanta espécie. Já no Joelma não, no Joelma eu participei mais diretamente, a minha filha tinha acabado de nascer, a minha filha nasceu em dezembro, o incêndio foi em fevereiro. Então você fica preocupado se em casa não estão assistindo na televisão, é tanto sentimento que vem por dentro de você, e você vendo as pessoas... O incêndio Joelma foi um incêndio que você teve muito contato com vítima, as pessoas todas presas em banheiro, muita gente morta, você não sabe se tá morto, se tá vivo, você tira aquele corpo e não sabe se tá vivo ou se tá morto, leva pra um lugar, vai botar numa maca, então é uma coisa, assim, angustiante, e você sabendo que não teria sido diferente, não teria tido tempo, depois do Andraus, de ter mudado legislação, segurança dos prédios, equipamento dos bombeiros, em dois anos, mas você fica sabendo, você tem essa consciência de que nenhuma providência concreta foi tomada de dois anos antes, daquela tragédia anterior. Então dá uma sensação de impotência em você, e de indignação, que é desesperadora. Se passar um político na sua frente, você morde o cara, não tem nem dúvida, né, vi companheiro xingando prefeito, quando o prefeito chegou lá embaixo, lá de cima xingando o cara porque sabe que ele podia ter tomado algumas providências e não foram tomadas. Só que a proximidade de um incêndio ao outro é que resulta numa mudança completa das condições de seguranças das edificações e do corpo de bombeiros, porque se tivesse tido um incêndio que não pegasse a mesma administração, o mesmo prefeito, o mesmo governador... O prefeito não era o mesmo, já não era o mesmo, mas o governador era o mesmo, o secretário de segurança era o mesmo, o comandante do bombeiro era o mesmo, e ele teve um papel essencial porque ele botou a boca no trombone, tudo aquilo que a gente tinha vontade de falar, ele falou, né? Aí começaram a surgir mudanças, uma semana depois, oito dias depois, mudou o código de edificações de São Paulo, mudou o código de obras, saiu um decreto mudando, exigindo porta corta fogo, escadas, corrimão, um monte de coisas que ninguém falava, e a gente... O estudo pra tudo isso já tinha sido feito, por isso que em oito dias eles publicaram, o estudo estava pronto na gaveta de alguém, e se não tivesse o Joelma, tinha sido empurrado com a barriga, né, ia pra frente; então eu peguei toda essa fase de mudança, de reorganização, de reestruturação. A Escola de Bombeiros mudou completamente, então tem uma fotografia minha aí, tem lá eu dando aula, eu tô numa pilha de pedra, era um pedrisco que estava sendo usado pra asfaltar, e ali no meio daqueles pedriscos a gente colocava uns tambores pra por fogo. A Escola de Bombeiros não tinha um campo de treinamento, não tinha telhado, chovia numa laje que era mais furada do que uma peneira, não tinha água encanada, a água vinha de autobomba, a gente tinha um autobomba, que foi o autobomba que eu usei pra ir pro incêndio Joelma, AB 47, era o autobomba que a gente usava pra abastecer a caixa d’água da escola, não tinha eletricidade, a eletricidade vinha em uns fiozinhos que mal dava pra acender um lampião (risos), era um rádio e uma, duas, três luzes, à noite não podia funcionar porque não tinha iluminação. Depois do Joelma, que todo mundo passou a falar de incêndio, da preocupação com incêndio, a Secretaria da Educação fez contato com a gente, nós fomos lá, fizemos parte de um grupo de trabalho, e como eu era professor da educação, me levaram, o bombeiro me levou pra fazer parte desse primeiro grupo aí, armamos lá um convênio pra dar aula pra cinquenta mil professores e funcionários da rede de ensino. Todos os funcionários da rede de ensino passariam a ter noção de combate a incêndio, o primeiro passo era avaliar a condição das escolas, num segundo passo ia começar a ser introduzido nos currículos das crianças, das escolas, noções básicas de prevenção a incêndio. Tudo isso aí a gente vivenciou, então foi uma coisa, assim, fantástica, porque a gente percebeu e participou dessa mudança.
P/1 – Você começou a ter uma noção da importância da sua profissão? Como foi? A sensação de herói...
R – Sem dúvida. Essa coisa de herói eu não tive e não curti, mesmo porque eu, pelo menos, né, tinha sempre a preocupação muito grande... Duas preocupações, primeiro, de você não aparecer, na estrutura militar, uma época, assim, de muita influência militar mesmo, do exército, os comandantes militares, não sei o quê. Você não podia se expor, você não podia aparecer porque você era transferido de imediato, então por exemplo, eu nessa... Num determinado momento, fui lecionar em um curso de Engenharia de Segurança, era o professor da cadeira de proteção e combate a incêndio, fui durante muitos anos, então eu tinha muito material que eu preparei pra essas aulas, eu tinha uma pesquisa boa, tinha bastante fundamentação e tal, eu poderia publicar um livro, teria sido uma coisa de boa penetração, de boa aceitação, e de satisfação pessoal e financeira também, mas nem pensar em ter meu nome num livro voltado para o mundo civil porque eu certamente ia pegar bandido lá na barranca do Paraná. Então essa era uma preocupação, você não aparecer muito. E a segunda preocupação era familiar porque eu tinha crianças pequenas, tinha filhos pequenos, e você tem medo de levar pra casa o risco da profissão, né, então, por exemplo, no incêndio do Joelma eu cheguei num estado lá na minha casa que era lastimável, a sorte é que não tinha ninguém, a minha mulher não estava, estava a empregada, a empregada não abriu a porta, não queria abrir a porta por eu cheguei podre, realmente mal, uma vizinha que, pelo muro, falou: “É o patrão, pode abrir e tal”, pra eu poder entrar, porque eu já cheguei vomitando que nem um porco (risos), na beira da rua lá, então você tem essa preocupação, sempre tive. O curtir, isso que eu tô fazendo hoje, é uma curtição, né, eu passei a fazer só depois, muito tempo depois, já aposentado é que eu comecei a ter... Orgulho eu sempre tive, né, da profissão, da atividade, mas passei a exercer isso com mais liberdade, com mais prazer, mesmo porque agora não tenho nenhum perigo de levar isso pra casa, mas é um negócio... Eu vou contar um episódio que eu contei pra ele agora no caminho aí, aconteceu anteontem, terça-feira eu fui com a minha mulher assistir uma musiquinha no Teatro São Pedro, na saída estava chovendo, pedi pra ela ficar me esperando lá na porta do teatro que eu ia pegar o carro no estacionamento, no que eu tô indo pro estacionamento, eu vejo uma árvore pegando fogo em frente ao Pronto Socorro Municipal, cheio de gente na porta, de guarda, de enfermeiro, de funcionários, e a árvore parecia uma chaminé lá, saindo fumaça pra cima dela assim, e gente passando: “Puxa, que absurdo”. Uma moça que passou falou que quando ela tinha ido levar não sei quem já estava pegando fogo: “Ninguém tomou providência”, tal, mas como estava chovendo, tinha água empoçada ali na rua, eu comecei a jogar água com a mão na árvore, mas aí eu vi que a árvore era oca, tinha uma macumba do lado da árvore, provavelmente alguém acendeu alguma vela e pra não apagar, né... Acho que não com a intenção de queimar a árvore, mas de proteger a vela do vento e da chuva, botou a vela nesse buraco oco da árvore, e a árvore começou a pegar fogo, e aí eu peguei, usando a mão, e comecei a jogar água, e vi que dava resultado, quer dizer, era muito pouca água, teria que ter um pouco mais de gente, de volume, bom, no fim eu acabei chamando o bombeiro, tive que forçar os caras do pronto socorro a me ceder um balde porque não queriam ceder: “Não pode, tem que falar com o diretor, não sei o quê, com o prefeito”, pra catar um balde (risos), aí tive que dar uma esculhambada lá, consegui o balde, bom, quando o bombeiro chegou a árvore estava praticamente extinta. E aí aconteceu um outro episódio interessantíssimo, isso é uma coisa que eu faço, eu sou incapaz de ver um acidente, um incêndio, alguma coisa, e não parar e não tomar alguma providência. É um sentimento que a gente tem, que poucas pessoas de outras profissões carregam isso, e eu tenho orgulho, tenho prazer de fazer isso aí, faço com prazer, é uma coisa que dá satisfação de fazer. Então veja, é uma mudança que aconteceu na minha vida, né, que foi acontecendo aos poucos, essa identificação com o bombeiro, a identificação como professor eu sempre tive, mesmo depois continuei lecionando. Agora, depois que me aposentei fui ser diretor, presidente, de uma associação nossa lá, criei uma área de ensino, criamos uma escola pra favorecer os concursos internos dentro da polícia, porque na PM, por mais que a gente veja o policial como um cara grosseiro, bruto, a estrutura de ensino da polícia é um negócio fantástico, você não dá um passo sem ter um curso, prestar um concurso, ser selecionado, e faz um curso, o que o cara faz depois com esse ensinamento é que é o grande dilema, né, você ensina toda a coisa de direitos humanos, de respeito, de cordialidade e tal, mas as pessoas se embrutecem com a atividade, é um negócio difícil de compreender. Mas nós criamos, nessa associação que eu fui presidente, uma escola com cursos preparatórios pra esses concursos internos, e chegamos a ter mais de três mil alunos, então foi uma coisa que cresceu, deu frutos, foi bacana, então é mais uma atividade minha nessa área de ensino.
P/3 – Você foi diretor de ensino da polícia, né?
R – Ah, fui diretor de ensino da PM também por dois anos e pouco lá.
P/1 – E uma pergunta, nesse momento da sua vida familiar, que foram três filhos, né?
R – Foram.
P/1 – Como era a relação com os filhos, como eles se sentiam em relação a esse pai que tinha essa profissão que é tão importante na sociedade?
R – Aí tem uma situação interessante, eu tive três filhos, sendo que o terceiro tem uma diferença de dezoito anos pro primeiro, e uma coisa que todo mundo pergunta: “Mas com a mesma mulher?”. É, com a mesma mulher, é comum os caras terem filhos de dez anos e outro de trinta, mas com três, quatro mulheres diferentes, no meu caso é a mesma; e a forma de tratamento dos dois primeiros foi totalmente diferente da forma de tratamento do outro.
P/1 – Por quê?
R – Primeiro porque eu tive uma vida de trabalhar catorze, quinze horas por dia no mínimo, no mínimo, então contato com os mais novos foi muito pouco porque eles me pegaram nessa época que eu tinha que trabalhar, e trabalhava muito, pegava plantões frequentes, era uma ausência muito grande, então o relacionamento era legal, a gente sempre conviveu razoavelmente bem, sempre viajando em férias, em feriado, sempre procurando ter uma atividade. Mas primeiro, não tinha uma situação econômica tranquila, e essa necessidade de trabalho, e o fato de eu estar dentro de uma organização militarizada, você, quer queira, quer não, eu acho que a gente passa um pouco isso pro convívio de casa, então essa coisa de falar duas, três vezes é difícil, mas também nunca encostei a mão em nenhum dos meus três filhos, nunca, nunca dei nem um beliscão neles, né, mas eu sei que eu era uma cara brava, como eu sei que eu tenho o semblante bravo, né, se alguém passar por mim na rua: “O cara lá tá de bico”. E então o convívio com os dois mais velhos, eu acho que não foi legal, poderia ter sido muito melhor, já o terceiro é uma espécie de neto, então você, primeiro, já aprendeu muita coisa que você errou com os outros, né, e ele foi o privilegiado porque ele pega um pai já quase aposentando. Ele nasceu, uns quatro, cinco, seis anos depois eu aposentei, com mais tempo, com mais maturidade, com uma situação financeira melhor, então o relacionamento com esse mais novo foi bem melhor, foi bem diferente, mas nenhum deles... Eu nunca levei filho pra quartel, nunca convivi com filho em quartel, eles nunca tiveram admiração por isso, não se entusiasmaram, nenhum deles, e eu nunca forcei também, né, a minha filha talvez... Hoje é comum uma mulher na carreira militar, na época que a minha filha era moça e tal, não era, você podia entrar como soldado e tal, já era uma coisa mais restrita, uma convivência mais difícil, no bombeiro não tinha mulher, então ela até, acho que se eu tivesse dado algum tipo de estímulo, talvez ela até tivesse encarado, mas os dois homens nunca tiveram nenhum interesse, e eu também nunca forcei a barra, não sei por quê, mas eles seguiram os caminhos deles aí, e estão labutando.
P/1 – O senhor tinha algum apelido na época?
R – Não, eu não tive, eu tenho um apelido familiar desta época de ginásio, que as pessoas que convivem comigo, desse tempo, me chamam por esse apelido, é Nini. Meu apelido é Nini. Na minha casa, a minha mulher me chama de Nini, alguns filhos chamam de Nini, meu neto me chama de Nini, a minha sogra me chama de Nini, e alguns colegas do quartel que vieram dessa época, e outros que assimilaram, me chamam de Nini, mas não é um apelido que surgiu depois, que surgiu na academia, na academia eu não tive, e os apelidos na academia são sempre pejorativos, é aquela coisa de pegar um detalhezinho do cara, e se você mostrar que ficou bravo, aí que aquele apelido vai pro resto da vida. Então agora, por exemplo, circulou no nosso meio lá, né, por e-mails, que nós temos na turma um ex-governador, temos um secretário, temos não sei o quê, juiz de direito, e agora nós temos o símbolo da Copa, que é o tatu, porque tem um que é o Tatu (risos)...
P/3 – E foi do bombeiro?
R – Foi do bombeiro, então você fala e ele fica bravo; agora não fica mais, né, mas esse apelido pegou, vai ficar pro resto da vida, é difícil, se ele tá com a família, com a esposa, ele mora perto da minha casa, às vezes eu encontro com ele, você não vai chamá-lo de Tatu perto da esposa ou dos filhos, sei lá, né, mas no contato direto é Tatu e vai morrer Tatu, e assim, tem outros. Mas eu, graças a Deus, não tive nenhum apelido, assim, pejorativo que tenha fixado, e apelido mesmo eu só tenho esse aí, e meus filhos também não têm apelido, a gente não tem esse hábito, dessa colocação de apelido, de ser tratado, chamado por um apelido, mesmo que seja carinhoso... Mas eu tinha um negócio que eu queria falar e acabou escapando.
P/1 – Então, eu perguntei pra você o que faz hoje.
R – É, mas deixa eu fazer uma continuidade dessas... Porque na vida profissional algumas pessoas me impressionaram, me chamaram a atenção, um deles vocês vão entrevistar, é o Almeida Lima, é um cara que é da minha turma, estudamos juntos, fizemos academia juntos, fizemos escola de bombeiros juntos, e ele é uma figura, o que ele fez pelo serviço de salvamento de praia foi um negócio que realmente é de se admirar, então, é uma pessoa... E eu convivi, vi a luta dele pra conseguir as coisas, pra conseguir folheto pra fazer uma campanha de divulgação, pra conseguir convênio com a Petrobras pra botar salva-vidas na praia, pra comprar equipamento, é um negócio, assim, que realmente chama a atenção. Um outro que já faleceu, um tal de Lemes, também fantástico, ligado ao salvamento, uma pessoa que se destacou, também da minha turma, e um outro, um tal de Brás, esse tá aí também, não vai ser entrevistado, não foi relacionado pra ser entrevistado, mas foi um camarada que se dedicou à parte de manutenção das viaturas, conhecia tudo, tudo, tudo de carro de bombeiro, e não é fácil porque o carro de bombeiro, o caminhão, a viatura de bombeiro é totalmente diferenciada, né, boa parte dela é importada com uma tecnologia totalmente desconhecida aqui, pra você fazer manutenção é terrível e ele passou quase que a vida inteira dele na manutenção e ele era realmente uma pessoa que entendia de tudo; tive algumas pessoas que me comandaram, aí já num escalão superior, né, falei de iguais, de superior, bom, eu convivi com o Caldas, o grande herói do bombeiro, já falecido, é o grande nome do bombeiro, se destacou no salvamento do Andraus, se destacou no salvamento do Joelma, é uma pessoa totalmente desprendida, brincalhão, gozador, tinha o apelido de cabeleira porque ele usava um cabelo deste tamanho numa época que era totalmente proibido ter cabelo comprido, e ele conseguia, na base da amizade, chamava todo mundo de Che, Che pra cá, Che pra lá, fazia amizade com Deus e todo mundo, e era um cara diferenciado, criou alguns equipamentos de salvamento, realmente mudou, criou essa mística de pessoal de salvamento no bombeiro, realmente fez um trabalho magnífico durante muitos e muitos anos, esse foi um cara. O primeiro comandante que eu tive no bombeiro, que é nome da escola de bombeiro, é o Coronel Paulo Marques Pereira, foi meu primeiro comandante quando eu cheguei no bombeiro, também é uma pessoa... Aquele homem de cabelo branco, quando a gente chega novinho ele passava experiência, passava tranquilidade, amigo, uma pessoa fora de série também, muito legal, foi alguém que me deu impacto; dois comandantes que eu tive diretos, o Gasparini e o Herculano, foram duas pessoas também muito bacanas, competentes, teve muita gente, né, no dia a dia você vai convivendo e vai admirando, mas pra não ficar cansativo e exaustivo, ficar citando nomes, uns já se foram, né, uns não estão mais aí, mas tem muita gente competente, como também tem muita gente que realmente você vê que não acrescenta, né, não acrescenta muito.
P/2 – Pelo que eu entendi, ao longo da sua história você se identificou muito com a questão do ensino dentro do universo do Corpo de Bombeiros, é isso mesmo?
R – É verdade.
P/2 – Você tem alguma ação do Corpo de Bombeiros que realmente te marcou além do Joelma e o Andraus? Tem alguma outra ação que você se lembra, se recorda daquilo? Se não, a gente passa pra pergunta dela. E eu queria que você contasse um pouco dessa parte do que é ensinar, porque eu vejo o teu forte, o teu foco, o que é ensinar alguém a ser bombeiro? Teve algum aluno que te marcou?
R – Bem, a gente falou de Andraus e de Joelma, vocês perguntaram do impacto e tal, agora, esses incêndios, não tem como você não ficar impressionado, você não ficar marcado, não lembrar, mas não são essas ocorrências que, vamos dizer, que te causam mais dificuldade, que exigem mais de você, porque num incêndio grande você é uma parte, não tá sozinho, você tem um monte de gente, em nenhum deles eu fui o primeiro a chegar, imagina, porque dizer, o cara que chega, o primeiro que chegou no incêndio, o impacto que deve ser você ver aquela... No caso do Andraus, que quando chegou, a viatura veio numa rua que dá de cara com aquele... Ela não pôde nem... Ela nem fez nada, ele não trabalhou no Andraus, ele trabalhou nos outros prédios do outro lado da rua porque não teve condição de chegar a cinquenta metros. Então imagina o impacto que deve ter causado neles, no meu caso não, eu cheguei sempre depois. Não foram só esses dois, teve lá o incêndio do Conjunto Nacional, que foi um incêndio grande também, numa grande avenida, o prédio também torrou inteirinha a Avenida Paulista, eu participei dele, mas você sempre vai e você é um pedaço, você dá a sua contribuição, mas você tem suporte, tem outras pessoas, às vezes um incêndio menor te causa mais dificuldade tecnicamente, né, você tem que ter mais domínio da situação, você chega junto, depende de você, às vezes depende só de você, e essa coisa da vida humana... Eu peguei uma ocorrência numa ocasião onde uma família morreu num poço, uma coisa banal nos cafundó lá de Santo Amaro. A família comprou um poço lá de um vizinho, e no final de semana foram limpar o poço, eram o pai e dois filhos, então desce o primeiro com o balde, os outros estão segurando a corda lá pra tirar o barro, não sei o quê, aprofundar, e o poço tinha gás, e o cara vai, não dá reflexo de gritar, de pedir socorro, coisa nenhuma, ele vai amolecendo, amolecendo. O outro: “Ow, ow”, entra pra socorrer, fica também, o pai vê os dois filhos lá embaixo, o que vai fazer? Vai descer também, morreram os três, e só não morreu mais gente porque o outro que chegou, acho que era o sogro (risos): “Opa, não vou entrar nessa aí”. Porque senão, quantos vierem, vão entrando e vão ficando, e você chegar numa ocorrência dessa é terrível, é um negócio desesperador. E qual é o grau de dificuldade? Nenhum, você vai botar uma máscara e vai descer alguém devidamente protegido pra tirar corpo, então essa é uma coisa que você não esquece. Como eu não esqueço também, no Grande Avenida, por exemplo, que eu fui puxar um cara num banheiro. Abri uma porta, arrombei uma porta lá, tinha um cara dentro do banheiro com a cara dentro da pia lá. Quando você traz o cara pro chão e vai puxar ele pra fora, a pele te solta na mão, você fica com a pele dele? O cara estava cozido, cozinhou, estava inteirão, com a roupa intacta, mas cozido, isso você não esquece. Uma outra vez que eu atendi, estava até num ponto de ônibus esperando a minha mulher chegar, eu era novíssimo no bombeiro, estava fazendo a escola de bombeiro, eu participei de um acidente. Um ônibus veio na Avenida Rangel Pestana ali, passou em cima do ponto de ônibus onde eu também estava, só que eu estava mais pra calçada, não fui levado, mas ele levou, morreram, acho que doze, quinze pessoas ali, naquele momento lá, e uma mulher cortou no meio, ela foi cortada literalmente, só sobrou um pedaço da mulher. E você tá ali, você não tem como correr, como fugir, não tem (risos), não tem: “Não cheguei, não tô aqui”, né, então tem muitas ocorrências. Um incêndio que também marcou muito pra mim foi o incêndio no depósito Aleotti, hoje é um mercado, na Joaquim Nabuco com a Avenida Ibirapuera, a continuação da Ibirapuera, não sei se ela se chama assim na continuação dela lá pra baixo. Era um depósito de material de construção relativamente grande e o fogo comendo solto, quer dizer, você chega lá com uma viaturinha de nada, sem água, transito tomado, você pede socorro e o socorro não chega, você vê o hilight da viatura, do tanque que você tá ansioso pela chegada, e ele tá preso no trânsito a duzentos, trezentos metros do incêndio, e transformador estourando, e você manda a Eletropaulo desligar, a Eletropaulo custa pra desligar, quando desliga, vem o cara do laboratório debaixo dizendo que ele tem não sei quantos milhões de antibióticos na estufa, que se não ligar a energia imediatamente ele vai me acionar, e você tem que administrar tudo isso aí, e o quarteirão queimando porque o fogo tá indo pra dentro do quarteirão, que era depósito de madeira, botijãozinho de gás explodindo que nem festa de Papai Noel. Então tem muita ocorrência relativamente pequena se comparada à Andraus, Joelma, mas que exigem mais de você como comandante, como líder ali tomando as decisões, e vendo desgraça amiúde, isso aí causa menos impacto, talvez do que essas grandes ocorrências, se bem que não tem como não ter isso como registro, mas como responsabilidade, a tua e mínima lá.
P/1 – Pra você foram dois aprendizados diferentes enquanto você ensinava, e enquanto você socorria?
R – É, você aprende. Como professor...
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