Um Menino Chamado “Innocente”
Autobiografia
Origens:
Da Itália: Barão Butichele Betine de La Cruzeta
Da Suécia: Eleutério Oloffo Stronguem, casou-se com
Da Itália: Maria Louisa Inocente.
Do Brasil: Alfredo Stronguem Innocente *24/1/1898 +1967casou
Do Brasil: Aurélia Rípoli Innocente *1908 +1984
Da Itália: Paulo Zanini e Virginia Zanini
Do Brasil: Joaquim Pereira da Costa Roque e Leopoldina Pereira
Do Brasil: Jose Paulino Bastos e Maria Bastos
Da Itália: Fernando Zanini *Set/1843 +1/9/1934 casou-se com
Da Itália: Luiza Vendramini
Do Brasil: Otávio Pereira Roque *1874 +19/9/1947 casou-se
Do Brasil: Rosa Maria Tereza Bastos *1860 +1960
Do Brasil: João Zaninne *14/6/1904 +11/5/1982 casou-se com
Do Brasil: Maria Pereira Roque Zanini *13/9/1911 +7/11/2007
Em 1836 chegou no porto do Rio de Janeiro um baú fabricado naquele mesmo ano com pertences da família, vindo da Suécia e que continua em Penápolis até nossos dias.
Prefácio
Que tal entrar nas páginas do tempo e reviver as aventuras de uma vida simples, de um menino pobre do sítio? Uma vida cheia de diversão, natureza, coisas belas, saúde, trabalho, alegria...
São quatorze anos de vida, antes que se pudesse crescer e lembrar que a melhor parte havia ficado para traz, em um mundo sem muito conforto, mas recheado de paz e amor, principalmente entre pais e filhos.
Passado esse período de felicidade, vivia escrevendo aventuras de garotos heróis, misturando com as peripécias reais, vividas nos anos verdes de minha vida. Portanto se o mundo realmente fosse um tape de televisão transmitindo nossa vida através do tempo, gostaria de descobrir onde fica a tecla de retrocesso e voltar aos primórdios de minha saudosa infância. Como esta tecla não existe, venho através das páginas que seguem recordar esse tempo de ouro.
Essa narrativa surgiu a partir de uma conversa com um amiguinho muito inteligente, de apenas onze anos de idade, onde lhe dizia o quanto o...
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Autobiografia
Origens:
Da Itália: Barão Butichele Betine de La Cruzeta
Da Suécia: Eleutério Oloffo Stronguem, casou-se com
Da Itália: Maria Louisa Inocente.
Do Brasil: Alfredo Stronguem Innocente *24/1/1898 +1967casou
Do Brasil: Aurélia Rípoli Innocente *1908 +1984
Da Itália: Paulo Zanini e Virginia Zanini
Do Brasil: Joaquim Pereira da Costa Roque e Leopoldina Pereira
Do Brasil: Jose Paulino Bastos e Maria Bastos
Da Itália: Fernando Zanini *Set/1843 +1/9/1934 casou-se com
Da Itália: Luiza Vendramini
Do Brasil: Otávio Pereira Roque *1874 +19/9/1947 casou-se
Do Brasil: Rosa Maria Tereza Bastos *1860 +1960
Do Brasil: João Zaninne *14/6/1904 +11/5/1982 casou-se com
Do Brasil: Maria Pereira Roque Zanini *13/9/1911 +7/11/2007
Em 1836 chegou no porto do Rio de Janeiro um baú fabricado naquele mesmo ano com pertences da família, vindo da Suécia e que continua em Penápolis até nossos dias.
Prefácio
Que tal entrar nas páginas do tempo e reviver as aventuras de uma vida simples, de um menino pobre do sítio? Uma vida cheia de diversão, natureza, coisas belas, saúde, trabalho, alegria...
São quatorze anos de vida, antes que se pudesse crescer e lembrar que a melhor parte havia ficado para traz, em um mundo sem muito conforto, mas recheado de paz e amor, principalmente entre pais e filhos.
Passado esse período de felicidade, vivia escrevendo aventuras de garotos heróis, misturando com as peripécias reais, vividas nos anos verdes de minha vida. Portanto se o mundo realmente fosse um tape de televisão transmitindo nossa vida através do tempo, gostaria de descobrir onde fica a tecla de retrocesso e voltar aos primórdios de minha saudosa infância. Como esta tecla não existe, venho através das páginas que seguem recordar esse tempo de ouro.
Essa narrativa surgiu a partir de uma conversa com um amiguinho muito inteligente, de apenas onze anos de idade, onde lhe dizia o quanto o invejava por ele ser criança; mas ele me respondeu que ele sim, invejava minha infância diferente das atuais e que, com certeza eu teria sido muito feliz naquela época; que minha fase criança teria passado, agora era a sua vez e que eu o deixasse ser feliz, pois seu tempo seria muito curto nesta fase. E o mais importante, dizia ele: seja sempre muito feliz em cada fase desta vida; pois o tempo ingrato devora nossos dias, mais depressa do que se imagina.
Cada um de nós carrega trancado na memória, muitas lembranças felizes e outras nem tanto, daquele tempo de inocência, onde muitas vezes queria crescer para se tornar dono de sua própria vida. Por isso, quero convidá-lo a entrar em um mundo igual a sua própria história: aventuras reais de um mundo sem pé nem cabeça, onde o enredo foi criado de um dia a dia fascinante e o destino foi o responsável por criá-lo, seja ele interessante ou não.
Desculpe-me se a sequência seja fora de um contexto normal das aventuras de garotos heróis. Isso acontece porque o garoto desta história tem sim, suas aventuras alegres e tristes, mas está longe de ser considerado um garoto herói.
Desculpe-me também se alguns fatos tiveram que ser omitidos desta narrativa. Às vezes alguns fatos se tornam ou foram de modo constrangedor no decorrer de uma vida saudável, vivida em período onde não se existia computador, vídeo game ou televisão, para ocupar as atividades saudáveis na vida de qualquer criança, que precisa de fato, brincar, estudar, fazer traquinagens e até mesmo trabalhar.
Entre nesse mundo real, da vida de um menino “Innocente”, neste mundo cheio de adultos complicados e aproveite para recordar também o passado de sua própria existência.
A maioria das personagens que desfilam por esta narrativa tiveram seus nomes preservados, ou seja: não foram alterados. Alguns, por necessidade de preservar motivos de desconforto ou outra natureza, foi necessariamente alterado, sem, contudo, prejudicar a narrativa.
O autor
O primeiro eu.
Era um dia qualquer do primeiro semestre do ano de 1957; bairro do Degredo , município de Penápolis, estado de São Paulo; mamãe já tinha dois filhos: Luiz Carlos, com três e José Carlos, com apenas um ano de vida… E eu?… Bem, aí é outra história. Eu ainda não pertencia a este mundo de ilusão… nem sei aonde me encontrava; talvez saltitante e feliz brincando no Jardim do Éden, aguardando meu momento de encarnação.
Era tardinha do final de verão e mamãe sofria com tantas dores que deixava todos preocupados, inclusive papai, que andava igual barata tonta sem saber o que fazer. A sua sorte era a presença de vovó Maria Thereza, que por algum motivo estava visitando mamãe.
Alguns dias antes, mamãe tivera uma estranha visão, dois homens, um branco e o outro moreno claro, chegavam pela trilha estreita até a entrada de sua casa, lhe entregando um pequeno caixão branco, o qual ela recusara em receber e então os estranhos visitantes retornaram pela mesma trilha, levando aquele presente macabro embora.
Naquela época, morando no sítio, não se conseguia levar ninguém a um médico e mesmo uma parteira àquela hora era quase impossível e foi assim, quase sozinha {só com ajuda de vovó, que tivera quatro filhos, inclusive um par de gêmeos (mamãe e uma irmã que faleceu bebê) todos em casa} sem nem mesmo ajuda de papai, que mamãe dera à luz a mais um machinho na família dos “Innocente”.
Só depois desse sofrido parto, é que papai, desajeitado para a coisa, ajudara a vovó a limpar o nenê com pano umedecido em água morna e álcool. Mamãe, depois do sofrimento, até que se sentia muito bem, mas o pobrezinho recém-nascido, prematuro, franzino e nascido sob risco, não estava nada bem.
Durante toda aquela noite, o bebê passara gemendo muito e vovó recomendou para que os pais encontrassem com urgência um marido com sua mulher, para que em gesto de batismo evitasse que tal criaturinha sagrada fosse embora pagã.
Assim, aos primeiros raios do sol daquela marcante aurora interiorana, papai seguiu até a casa do casal Alice e Helias e então, explicando o ocorrido resolveram batizar o nenê às pressas ali em casa mesmo. Escolheram para ele o nome de Aparecido e assim, com apenas algumas gotas de água sobre a fronte, o batizaram rapidamente em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo…
Poucos minutos depois, o pobrezinho dormiu para sempre.
Papai e Helias confeccionaram um pequeno caixão de madeira, forraram com uma manta que já fora dos outros dois filhos e revestiram o caixão com um lençol branco, depositando ali dentro o corpinho daquele anjo de Deus.
Naquela mesma tarde, levado por um carrinho puxado por cavalo, o caixão seguira para o Necrópole Municipal Santa Cruz de Penápolis, distante do sítio apenas 14 quilômetros e então, na primeira quadra, praticamente na estrada do terreno santo, fora depositado em sepultura profunda, depois coberto por terra fria.
Outra vez eu.
Dia de São João Batista, 24 de junho do ano seguinte, à noite, mamãe e dona Alice conversavam sobre os trabalhos que realizariam juntas no dia seguinte, quarta-feira, na lavoura de café. Mamãe estava no nono mês de gestação e assim mesmo iria arruar café . Isso mesmo, iria…
Quatro horas daquela madrugada, as fortes dores do parto assolaram novamente mamãe, que sem assistência médica e sem ajuda de uma parteira e com papai, como a mesma barata tonta, que sobre nascimento de nenê, só sabia mesmo... Bem... deixa para lá porque eu era muito pequeno para pensar bobagem... A frágil mamãe sofria as consequências de querer, ou não saber evitar mais um “Innocente”.
Meia hora depois, assim, sem muita cerimônia, cheguei neste tal mundo de ilusão que todos falam, com os cabelos castanhos e olhos muito pretos. E como dizem: mulher grávida tem cada desejo! E ai de quem não atender a esses desejos! Foi assim que mamãe queria ter comido pele de porco. Justo no sítio que sempre tinha dessas baboseiras, com o chiqueirão lotado e justo quando mamãe queria, não tinha. Foi por isso que paguei um preço besta, tendo que carregar o desejo não atendido de mamãe comigo, em forma de pequenina pelinha de porco, grudada na parte mais sensível de meu corpinho recém-nascido.
Papai me limpara com pano umedecido em água quente com álcool e mamãe, apesar do forte sofrimento da madrugada, até que passava bem.
De manhã, Alice e Helias foram chamados e é claro que não me batizaram de emergência. Se a situação fosse a mesma de meu irmão Aparecido (que desapareceu), eu não estaria narrando esta realidade. Quer dizer: a menos que tivesse retornado ao jardim do Éden e transmitisse tais fatos de lá por mediunidade ou telepatia.
Naquele mesmo dia, papai seguira até o cartório de registro civil da cidade, aonde me apresentara ao mundo em forma de papel. Mamãe queria que eu tivesse o mesmo nome de meu irmão que se fora, mas como diziam que não era bom, pois seria perigoso ele vir me buscar, então resolveram acrescentar Celso antes do Aparecido e assim se cumpriu.
Aos poucos fui me desenvolvendo e as únicas coisas que então fazia sem parar, era mamar, chorar, sujar as fraldas de pano, que mamãe sempre lavava e passava à base de ferro quente com brasa do fogão à lenha e tomar banho com a ajuda de Lourdes que me adorava, quer dizer: me amava, pois, a gente só pode adorar a Deus. Ela, branca de cabelos lisos, longos e negros, tinha dez anos de idade e era filha de Alice, que também tinha Helena e Valdomiro. E se ela me amava em nenê, quem sabe no futuro eu poderia amá-la em jovenzinho, ou quem sabe ela gerasse uma filha para que eu a paquerasse.
No dia 5 de outubro, um dia depois das festas de São Francisco de Assis, padroeiro de Penápolis, após a missa dominical das dez horas, com os mesmos padrinhos de meu finado irmão e com frei Ezequiel, que também me jogara “ainda mais” água na fronte, também fui batizado neste belo mundo de Deus, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Já aos cinco meses de vida, meus cabelos estavam ficando loiros e meus olhos castanhos. Logo após uma grande mamadeira de leite Ninho e com os olhos cerrados pelo sono, minha querida pajem, Lourdes, me colocara na cama de mamãe para dormir. Ao contrário do que ela imaginava, ali sozinho, acabei por me despertar e como já estava ficando crescido e curioso, acabei por me rolar muito naquela que seria pequena cama para um arteiro, indo parar em tremendo tombo, ao chão.
Foi terrível pois além do grande susto e as dores no corpinho de ossos tão mole quanto cartilagens, tive mais medo, até capaz de virar trauma, devido as gritarias de mamãe e Lourdes, apavoradas com o que pudesse vir a acontecer e vomitei todo o leite mamado há poucos minutos, me deixando muito fraco a ponto de quase perder a minha tão recente vidinha na Terra. Mas o pior foi que então me deu um grande sono de verdade e elas não me deixavam dormir, pois dizem que é perigoso um nenê ou bebê… (não sei o termo correto) dormir após um tombo, qualquer que seja a altura.
E como todos precisam ter uma recordação da primeira infância para então mostrar e comparar com os futuros descendentes; papai me colocou sentadinho na cadeira do Foto Luís de Penápolis e com uma roupinha azul clara, parecida com vestido, devido ao seu tamanho grande, sapatinhos brancos e cabelos enrolados, o flash assustou meus olhos, no mês de fevereiro, quando eu tinha quase 8 meses junto aos mortais.
Dois, três, quatro, cinco anos.
Aos poucos o tempo passava sem que eu saiba contar muito o que acontecia naqueles dias; salvo algumas lembranças contadas por meus pais e padrinhos.
A meiga Lourdes, com carinho, ainda cuidava de minhas constantes travessuras, até que eu completasse dois aninhos de existência neste mundo fabuloso.
Então, já com mais um membro na família, pois embora não me lembre do acontecimento, minha irmã Fátima teria nascido em janeiro de 1960. Assim, para ajudar mamãe a não se esforçar muito devido período de quarentena, minha prima Imaculada nos visitara, permanecendo alguns dias ali no sítio. Ela, assim como meu irmão Luís Carlos, contava quase sete anos de idade.
Esse irmão (que já não era assim tão bebê) acho que por ciúmes da intrusa, resolveu fazer manhas e quando mamãe lhe servia o almoço ele protestava:
— Não quero abrobrinha!
Mamãe, paciente, ia até o primogênito e tirava com cautela o legume de seu prato.
— Não quero feijão! — protestava o queridinho.
Mamãe tirava o feijão.
— É o arroz que eu não quero!
Eu que não tinha nada a ver com tais manhas, só tinha dois anos de idade, mas acho que (já estava mesmo peladinho) tinha vontade abrir minha torneirinha no prato do ciumento.
Nesta época papai resolveu deixar o Degredo e se mudar para o Córrego dos Pintos, seguindo titia Amélia, que se mudara há pouco tempo para este local (sua história é muito especial). Inclusive, indo morar junto com ela na mesma casa, até se construir uma casa para nós, no sítio de dona Lola a 22 quilômetros da cidade.
E foi assim que me afastei de minha querida pajem Lourdes, que já tinha doze anos e de meus padrinhos, para conhecer vizinhos novos (quer dizer, eles me conhecerem, pois com dois anos de vida a criança não almeja conhecer ninguém).
Quando a nossa casa de barro e pau a pique, a uns mil metros distantes (o que seria mil metros?) ficou pronta, seguimos de mudança para tal recanto, levando conosco a família de tia Amélia, para então desmanchar e refazer sua casinha, no sítio de seu concunhado Cóti.
Ninguém poderia imaginar, mas estas duas famílias, a dos “Innocente” e a dos “Leme” (de tia Amélia por herança do marido Anor) estariam sempre interligadas pelos séculos dos séculos.
E eu, aos dois, três, quatro anos, até parecia não ter roupas, e nem adiantava colocar, porque eu as arrancava todas, vivendo assim como um pequeno curumim indígena, sempre brincando pelado no terreiro, correndo o risco das galinhas ou patos, bicarem meu pequenino fazedor de xixi.
Meus cabelos, agora já não eram mais enrolados, nem castanhos; estavam lisos e muito loiros, me fazendo até parecido com a tal raça ariana de certo nazista chamado Hitler (Ei! Só parecido).
E para matar a saudade da antiga morada no bairro do Degredo (não por mim, que sequer me lembrava de um dia ter morado ou nascido por lá), papai, usando um cavalo arisco do senhor Airton, com Carlos na garupa e Zeca na sua frente e mamãe usando Bainho, o manso cavalo da família, comigo na garupa e minha irmã Nezinha em sua frente, seguíamos sempre a pequenos trotear das patas, pelo longo caminho de estrada de terra, desde a então nova morada, até a casa de meus padrinhos, em distância aproximada de 12 quilômetros (não que eu soubesse o que seria quilômetros... Nem trotear... nem garupa...)
Não me lembro da chegada pela cegonha do quinto filho “Innocente” (Geraldo), que se deu no mês de julho de 1962.
E foi também nesse novo sítio, que certa noite ouvia mamãe gemendo desesperada de muita dor e papai sem saber o que fazer nos forçando a ficar longe dela. Meu coraçãozinho de criança pequena, sem entender o que se passava, batia assustado. Como ainda não passava das nove horas, alguém foi do outro lado do rio Lajeado buscar dona Olívia, e ela, já idosa, gorda, de cabelos grisalhos, parecendo a dona Benta do Sítio do Pica-pau Amarelo, entrou apressada em casa.
Depois de mandar papai providenciar uma bacia de água quente e muitas folhas da erva de Santa Maria, além de proibir a entrada de quem quer que seja, principalmente nós crianças, passou a cuidar das dores de mamãe.
Com isto ficamos do lado de fora, à luz de lamparina, ouvindo mamãe sofrer e papai desesperado, nos deixando ainda mais assustados.
Meia hora depois, que para mim mais se pareceu meio ano de angustia e sofrimento, ouviu-se um choro de recém-nascido e mamãe parou de sofrer; papai correu para dentro e nós, todos pequenos, ficamos na mesma. Se pelo menos papai soubesse nos acalmar, explicando que tudo não passava de mais um “Innocente” que estava chegando neste fantástico mundo dos carnais, meu coraçãozinho angustiado teria sofrido bem menos.
Alguns minutos depois, dona Olívia nos chamou e nos apresentou o mais novo membro da família, todo limpinho, enrolado em cobertor, ao lado de mamãe que até parecia feliz. Confesso que não sabia de onde tinha vindo aquele novo bichinho. Só sabia que viera para ficar, aumentar a família e me roubar mais um pedacinho de mamãe para si.
Na manhã seguinte, dona Aparecida Antiqueira, madrinha de minha irmã Fátima, viera em casa e como boa comadre e vizinha de sítio, resolvera ajudar um pouco nos afazeres doméstico, enquanto a nova mãe, segundo recomendações da parteira, deveria permanecer em repouso absoluto.
Quando dona Aparecida dava banho no novo membro de nossa família, em bacia de água tão quente, que eu imaginava que ela queria despelar o pobrezinho (acho que era isso que eu ouvia meu pai dizer ao fazer o mesmo com os porcos para tirar seus pelos). Aproximei-me para conhecê-lo melhor.
— Bonito nenê! Não acha? — Disse-me ela.
Bonito! Pensei sozinho. Parece uma perereca!
E parecia mesmo. Com as pernas e braços encolhidos, o corpo todo vermelho, a testa enrugada, o pintinho pequenino e o saquinho quase preto por acúmulo de sangue e grande demais (bem maior do que o meu que já tinha cinco anos de existência) … aquilo não era nada bonito! E olha que não era pelo ciúme que sentia do intruso.
Agora éramos seis irmãos vivos, que por ordem de chegada eram: Luiz Carlos, nascido em 13 de junho de 1953, no sítio Boa Vista do senhor Otávio Ambrósio, no qual papai trabalhava na época, inclusive com a ajuda de mamãe (não sei como ela conseguia, com tantos filhos pequenos), vovô João Zanini ; José Carlos, que recebeu o apelido de Zeca e nasceu em 16 de março de 1955, também no bairro do Degredo; Eu, Celso Aparecido, com apelido de Cido, que nasci em 25 de junho de 1958; Fátima Aparecida, única menina, com apelido de Nenê, nascida em 10 de janeiro de 1960; Geraldo, com apelido de Nezo, nascido em 5 de julho de 1962 e este último, Marcos Antônio, apelidado de Bê, que nasceu em 13 de julho de 1963. Uma verdadeira escadinha, faltando apenas o degrau Aparecido, que faleceu com meio dia de vida. Os dois últimos nasceram neste sítio. O famoso Córrego dos… pipis.
E na família dos Lemes a tal escadinha era de tal semelhança que até parecia que ambas as famílias disputavam entre si para ver quem conseguiria ter mais filhos. Veja só a hierarquia de herdeiros: João, Donizete, Moacir, Ivone, Gilmar e Zoca. Até a posição da única filha mulher na hierarquia era idêntica.
Eu sequer sabia como nasce um bebê, mas se soubesse diria que o povo da roça trabalha de dia na lavoura e a noite, como não se tem nada o que fazer no escuro, vai fazer nenê.
Nesse período de Bê praticamente recém-nascido, papai tivera dificuldades na sua lavoura, principalmente de algodão, pois mamãe, resguardando um período de 40 dias de dieta, sem poder ajudá-lo (fazia todo trabalho do lar). Porém, graças à união familiar, vindo da ajuda do irmão Luiz (meu tio Luiz) com toda sua família (esposa Anna e filhas Belinha e Nice, que o apoiaram na colheita atrasada dessa beleza branca e macia, contando também com a ajuda de pequeno trator cinquentinha, emprestado.
E também, quando vovô João Zaninne nos visitava, geralmente levava consigo pelo menos um dos quatro primos Almeida (Imaculada, Sonia, Ivana e José Luís), já que todos éramos quase da mesma faixa etária. Eu gostava dessas visitas, pois, por falta de camas para todos, mamãe nos punha, todas as crianças, para dormir na mesma cama de casal, a princípio, um cheirando o chulé do outro, mas na manhã seguinte, amanhecia todos amontoados de todos os jeitos inimagináveis.
Ratos e cachorros
Para o plantio do algodão, papai precisava arar a terra e sendo pobre não possuía de fato seu trator, com isto o fiel puxador de arado, teria que ser o nosso cavalo baio; que não sei se não gostava de trabalhar, se não gostava de arado, ou se não gostava de meu bondoso tio Anor, que era o responsável por dirigi-lo pela terra a ser revirada; só sei que Bainho, para escapar de tal responsabilidade resolveu dar coices e levantar as patas dianteiras como doido, que se fosse a época de Zorro, seria o famoso cavalo Silver.
Infeliz Tio Anor, que precisou primeiro perder um tempão na árdua tarefa de domar o Bainho, antes do trabalho propriamente dito.
E enquanto ele cuidava dessa parte, nós, as crianças, só sabíamos mesmo brincar e então fomos juntos ao pomar, chupar as deliciosas mexericas poncãs, que tinham as cascas até avermelhadas ou alaranjadas de tão maduras. E foi assim que meu primo João, com seus já oito anos de idade, a me ver devorando uma delas, ao perceber um gominho menor, me disse que não deveria chupá-lo, pois ele pertencia a Deus e deveria ser colocado sobre a viga do chiqueirão para que “Ele” o apanhasse…
…Poucos minutos depois, sorrateiro (que eu nem sabia o que significava), voltei para conferir e não é que Deus tinha ido mesmo buscar o danadinho… quer dizer… disse-me Donizete (quase sete anos): Deus era nada menos que o safadinho de seu irmão João.
Porém o mais safado mesmo era meu irmão Luiz Carlos, que sendo o mais velho, adorava destruir as brincadeiras dos demais, principalmente se fosse algo construído com terra ou outra matéria prima adorada por crianças. João também não era flor que se cheira e resolveu bolar um plano de vingança terrível. Apanhou um moinho de café velho, cobriu-o todo de terra úmida e gritou para Luiz:
— Vem destruir se você for homem!
O Innocente de meu irmão Luiz, descalço, para provar sua masculinidade de nove anos de idade, investiu em disparada como touro bravo e meteu um baita chute sobre o monte de terra, caindo em câmera lenta (será que naquela época existia esse troço?) ao chão gritando de dor, com os dedos do pé direito todo ensanguentado e grave risco de quebradura.
Dessa maldade toda, ele saiu apenas ferido e meu primo João ganhou uma pesada surra de seu bondoso pai Anor, que abandonou imediatamente o Bainho para ver a tragédia.
Resultado final: Luiz Carlos chorando de um lado com o pé todo enfaixado por pano velho, vermelho de sangue; João Lemes chorando de outro, com as pernas nuas cheias de vergões, devido às impiedosas chicotadas à base de cinta de couro cru e eu, com o coração disparado, temendo levar também algumas chicotadas simplesmente por estar presente em tal travessura.
Durante a noite, como os cachorros Jagunço (um velho e grande cão rajado da raça perdigueiro) e Piloto (mais novo e menor, branco, da raça lulu), não paravam de latir, não nos deixando dormir (se é que latido de cachorro impede criança cansada de fazer arte, em dormir) papai se viu obrigado a levantar e gritar, ralhando com os pobrezinhos.
Pouco tempo depois, como alguém fazia barulho na dispensa, meu irmão Zeca, perguntou o que era e ouviu um sermão dizendo para calar a boca e ir dormir. Pode ser que o barulho fosse feito por algum rato (e era: um rato bem grande).
Na manhã seguinte, havia um escorregão no chão de terra da cozinha, que estivera molhado, pois na tarde anterior, toda a família teria tomado seus banhos que nem gato, em grande bacia de latão, e na dispensa faltava um saco de arroz em casca de 50 quilos, além de uma trilha daquela sementinha bem amarela, que seguia pelo caminho, devido o saco talvez furado. Papai concluiu que tínhamos recebido a visita de um gatuno (não seria ratuno?)
E nas visitas diárias à tuia de milho, com intuito de apanhar alimento para as galinhas e porcos, constantemente papai ou meus irmãos mais velhos encontravam grandes rolos de um animal, geralmente de cor marrom avermelhada e às vezes cinza, que após se deliciar de algum rato desavisado, dormia em paz. Eram grandes Jararacas , com até quase dois metros de comprimento; ou Surucucu , que chegava até os quase 4 metros (será que aos 5 anos de idade eu já era expert “ops” em nomes científicos? “Ops de novo”). Porém (voltando ao assunto), o fato era que por azar delas, foram se alimentar e dormir em hotel errado. Embora eu (em silêncio) não concordasse, papai as arrastava para o quintal e as assassinava sem piedade, a cruéis golpes de enxadadas.
Com o tempo passando e os rolos de animaizinhos perigosos desaparecendo aos poucos, é que outros animaizinhos agradeciam… aproveitando essa desordem toda. Foi quando papai percebeu seu erro ao interferir na natureza, destruindo predadores naturais, deixando com que os ratos ficassem muito à vontade, além de na tuia de milho, como também na dispensa de mantimentos.
Com isto resolveu colocar as ratoeiras para trabalhar e assim, na outra manhã, elas foram levadas ao grande terreiro, todas abalroadas de tantos animaizinhos, condenados por fazerem suas festas em local impróprio.
Nós, as crianças, resolvemos participar dessa festa (não para os ratos). Papai soltava um de cada vez e o bichinho, se vendo livre e assustado, saía em disparada pelo terreiro. Com isto, para completar a festa, Piloto e Jagunço, se encarregavam do extermínio. Piloto depois de até parecer brincar bastante com tal condenado, metia os dentes afiados sobre a cabeça do infeliz e Jagunço, sendo grande, dava apenas uma patada. Eu, apesar da folia, ficava horrorizado com tamanha maldade contra indefesos bichinhos.
Jagunço era tão esperto quanto velho. Quando papai matava um porco e fritava suas carnes ou fazia sabão com suas vísceras (intestinos e outros) no grande tacho de ferro sobre fogão improvisado no quintal, mamãe ou um dos filhos precisava ficar de guarda, pois o danado dava um jeitinho e roubava de dentro do tacho quente, partes daquelas carnes temperada à base de soda cáustica.
— Não sei como esse cachorro faz pra roubar as coisas sem se queimar — protestava dona Odete do Serafim.
Nós meninos, sem que nossos pais reclamassem, tirávamos bonitos bifes do infeliz porco sacrificado em prol de saciar nossas necessidades alimentares, fritávamos e saboreávamos apenas com sal e ajuda de um garfo, na chapa do fogão à lenha, que ficava na cozinha de nossa morada de taboca e barro.
E enquanto aquelas coisas aos poucos se transformavam em sabão, nós nos divertíamos no resistente balanço criado por meu irmão Carlos, com corrente boa e um pedaço de couro trabalhado, no galho mais grosso da amoreira que ficava junto ao chiqueirão dos porcos (os adultos chamavam de mangueirão dos porcos, mas garanto que nunca vi nenhum deles produzindo mangas).
Alguns dias depois do gatuno ter visitado nossa moradia, foi pego roubando na casa de Sebastião Sueca, que o pegando em flagrante, o amarrou pelas mãos e pernas, chamando em seguida a polícia.
Um Innocente na cidade.
Como sempre fazíamos estivemos passeando na casa de meus avôs maternos, na Rua Minas Gerais, vila Fátima, na cidade. Não só eu, mas todos gostavam desse passeio, pois vovô era muito bom e sempre nos visitava no sítio; vovó, apesar de um pouco brava e falar alto, também era muito boa, mas raramente saía de casa, aliás, nunca a vi fora de casa. Que eu saiba, nunca esteve em nosso sítio. Ou pelo menos, depois que eu me conheci por gente. Lembra que quando o Aparecido virou anjinho no Céu, ela esteve ajudando mamãe?
A casa deles era bem grande e como os três filhos já eram casados, moravam sozinhos, apesar de que, uma das filhas, tia Madalena, morava bem próximo, na mesma rua e seus quatro filhos, principalmente o menino José Luiz, estavam sempre lhes fazendo companhia, geralmente durante o dia e à noite também.
Nesse passeio, papai, mamãe e os três irmãos menores foram ao centro da cidade; eu e os demais ficamos com vovó.
Pouco depois chegou minhas primas Sonia e Imaculada, que tinham aproximadamente sete e dez anos e então, como também iriam ao centro, resolveram me convidar para ir com elas. Eu, menino do sítio, louco por novas aventuras, acabei aceitando sem pensar e seguimos juntos.
Algumas quadras caminhando devagar, eu, apesar de acostumado a correr e pular o dia todo no mato, já me sentindo cansado, ou percebendo uma aventura sem interesse, resolvi retornar. Minhas primas, confiantes que não haveria problemas concordaram, seguindo seu caminho, enquanto o valente menino de sitio, lentamente fez o caminho de volta. Subi uma quadra e virei à esquerda até a metade da quadra e cadê a casa de vovó? Continuei até o final da quadra; tornei a voltar até seu início, mas no lugar da casa conhecida, havia outra completamente diferente. Não era possível; a casa deveria estar ali… tornei a caminhar de início até o final da quadra, ficando espantado com tal desaparecimento.
Menino bobo do sítio, diante de tantas moradias estranhas, acabei me assustando e sentando na calçada de chão batido, onde comecei a chorar sozinho, como se chorar resolvesse alguma coisa. Quer dizer… acho que resolveu, pois, duas garotinhas de uns dez anos de idade, que entregavam leite nas casas, me vendo chorando, se aproximaram e me perguntaram se eu estava perdido. Assustado e com vergonha, acenei que sim, então elas me pegaram no colo (nem precisava tanto! Eu sabia andar) e me levaram direto para a rádio Difusora… aliás… iam me levando para a rádio, mas por muita sorte, ou talvez Penápolis fosse pequena demais, acabamos por encontrar meus pais próximo à linha férrea, onde eles me recuperaram, agradecendo a bondade das duas garotinhas e me enchendo de gozação.
É lógico que minhas duas primas tiveram a honra de ouvir um pesado sermão de nossa querida vovó Maria Thereza e para minha sorte, não ficaram de mal comigo, que era um priminho até querido.
Só milhões de anos depois foi eu acabei descobrindo que o que de fato aconteceu: ao retornar para a casa de vovó, acabei virando uma quadra antes, em rua paralela.
Ainda à tarde, dona Bertina, que morava em frente, fora nos visitar. Todos nós a cumprimentamos com educação, depois ela permaneceu conversando com minha mãe e avó. Eu, que achava engraçada a sua voz espanhola meio arrastada, fiquei a admirando, depois lhe perguntei:
— Dona Aparecida do Norte, por que a senhora fala desse jeito?
Todos riram de meu jeito. Dois fatos inusitados para ilustrar o livro de Pedro Bó, “Criança fala cada coisa”. Nem mesmo eu saberia explicar o motivo de tê-la chamado assim. Gostava sim, de ouvir a rádio Aparecida, onde um famoso padre (Victor Coelho de Almeida) celebrava todas as tardes a consagração à Nossa Senhora Aparecida. Mas unir um caso ao outro? Não tinha nada a ver! A não ser que: lá no futuro eu viera a saber por outra Bertina, que, como o marido desta (do passado) trouxera para mim de uma sua excursão à Santa Cidade, um carrinho de brinquedo, eu o tenha atribuído tal apelido. Apesar de estranho, dona Bertina passava a ser para mim, dona Aparecida do Norte. Ela, prima de papai, irmã do famoso Henrique Ulofo, era casada (sim) com o senhor Cido, seu primo legítimo (em primeiro grau) e talvez por isso mesmo, como todos dizem que não se pode casar primo com prima, devido ser do mesmo sangue e os filhos poderem nascer deformados, é que teria nascido um de seus três filhos sem sexo (só queria saber como a criança fazia para fazer xixi). Mas no fundo, acho que não tinha nada a ver, pois o João Cardoso também se casaria em breve com sua prima legítima Ruth e todos seus filhos nasceriam perfeitos.
Procurei saber de vovó, por que só a casa de dona Aparecida do Norte tinha televisão na região toda da vila Fátima (a casa que tinha televisão era dotada de enorme antena externa, para poder “recepcionar” os canais e logo, se tornava em evidência). Vovó me explicou que nem mesmo a casa dela tinha televisão; que a antena pertencia à outra pessoa que morara lá antigamente. Televisão era artigo de luxo. Somente os ricos conseguiam comprar e sintonizar um número reduzido de emissoras (Globo, Record, Bandeirantes e Tupy).
Na mesma noite, como fazia muito tempo que não via meus padrinhos e eles agora já moravam na cidade, seguimos a pé até a Vila América, que ainda não tinha iluminação pública. Ou seja: as casas eram iluminadas, mas as ruas não.
Foi muito bom rever os dois: minha madrinha Alice era calma e com sua bonita voz compassada, comentava sobre todo mundo, acreditando que a gente conhecia. Eu, pelo menos não conhecia nem um décimo dessa gente (também não conhecia décimo). Meu padrinho Helias, o oposto dela, falava muito em um tom bastante estridente e rápido (já sei que não sabia o que vinha a ser estridente). Só ele falava, os demais se contentavam em escutar e às vezes meu pai se irritava com aquilo. Eu, na verdade, apesar da educação de pedir a benção aos dois, o que mais queria mesmo era ficar na rua, vendo ao longe o grande cruzeiro da vila Jardim Brasília todo iluminado, com suas centenas de lâmpadas incandescentes, se destacando na noite escura. Aquilo até parecia um milagre de alguma coisa…
Aproveitando a maravilha do cruzeiro iluminado, Zeca se virou e disse:
— Se um dia você encontrar um menininho pobre na rua, tenha cuidado, que pode ser o menino Jesus e Ele é tão poderoso que pode te bater com apenas um dedo.
— Se eu encontrar um menino valente assim, dou um murro na cara dele! —Insinuei prontamente.
— Vai falando assim! Vai! — Insistiu meu irmão. — Que pecado! Você não sabe com quem está lidando!
Era verdade: nem um de nós, eu ou meu irmão, sabíamos com quem estava lidando. Como já se viu o bondoso Menino Jesus, resolver bater em alguém? Principalmente criancinhas como nós! A não ser que resolvêssemos usar seu templo sagrado para vender os ovos de nossas galinhas, ou as bananas de nosso pomar. Se Ele nos encontrasse, com certeza nos ensinaria a sermos bons como Ele era e não meninos sapecas como os irmãos Innocente do Córrego dos… filhos de galinhas.
Como meu primo José Luiz, irmão das meninas que me perderam, havia encontrado jogado na entrada do parque de diversões, que inaugurara na cidade, na praça em frente à igreja Nossa Senhora de Fátima, um pacote de ingressos para os brinquedos, na noite seguinte, sábado, todos nós, os meninos, fomos nos divertir. O primeiro brinquedo que entrei foi o carrossel: montei em belo cavalo alazão preto e quando o cobrador foi recolher o bilhete, alegou que não era válido e só podia usá-lo na sala de espelhos mágicos. Com isto, me entristeci em descer do cavalinho lindo. Deu vontade protestar dizendo que era acostumado andar em lindo cavalo baio de verdade. Só que aquele ali era especial, formoso e pequeno. E de que me interessava me ver diante de um espelho?
Porém, ao entrar com os demais diante de tal sala, acabei por me achar muito engraçado com as diferentes formas de meu corpo diante daqueles espelhos loucos. Ora estava baixinho e gordão, ora de corpo fino e cabeça ovalada; ora altão e magricela, ora de pernas muito compridas e corpo curtinho; ora totalmente inverso; ora com todo o corpo fininho; ora também inverso e acho que acabou… Chega de tanto “ora”.
E assim, como não dava mesmo para se fazer mais nada, acabamos por retornar à casa de meus avôs e sendo obrigados por papai, indo dormir, já que no sítio a gente, devido ao escuro era acostumado a dormir... como se diz, com as galinhas.
Presente da natureza.
Na tarde de domingo, ao subirmos na carroceria do caminhão Ford F.600 de cabine azul do senhor Frederico para retornarmos ao sítio e me acomodar sentado ao lado de dona Maria Ulofo (irmã do vovô Alfredo), mãe do rico e solteirão Henrique Ulofo, primo de papai (sei que já mencionei isso. Mas é para gravar mesmo), que, acariciando meus cabelos loiros, como sempre gostava de fazer, comentou com todos:
— Que lindo! Até parece uma mecha de algodão desabrochada ao sol ardente.
Realmente, meus cabelos estavam tão brancos quanto aos dela, em verdadeiro contraste de existência, onde eu não passava da primeira infância, enquanto ela já desfrutava a muito tempo da terceira idade. E eu jamais me dera conta, mas aquela mulher bondosa era na verdade minha tia-avó.
Levamos conosco dois grandes caminhões construídos em lata, faltando uma roda dianteira em cada; presente de meu vovô João Zanine a mim e meu irmão Zeca. Como faltava uma roda de borracha em cada, papai resolveu tirar uma do meu e passar para o de Zeca e fez duas rodas de madeira para o meu. Se tivesse sido ao contrário, tenho certeza que meu irmão mais velho não teria gostado. Acha que eu gostei?
Enquanto meus irmãos Zeca e Carlos faziam suas tarefas escolares na tarde de segunda-feira, sentados na cama, eu ficava ao lado, brincando sozinho e então percebi pelo buraco da parede, que do lado de fora passava um bicho rastejante; então olhei pela janela e gritei:
— É uma cobra grande!
Meus irmãos olharam e notaram que o bicho já adentrava ao quarto de meus pais, por outro buraco da parede de barro de nossa modesta casa de pau a pique , então gritaram mamãe e seguimos juntos correndo para ver de perto. O réptil entrou ao quarto, subiu pela cama de meus pais, desceu ao chão, subiu no berço de meu irmãozinho caçula. Mamãe ficara apavorada, ao ver aquele bicho passando sobre o corpo do pequenino Innocente, que por sorte estava dormindo tranquilamente. Graças a isso não houve problemas: o bicho resolveu descer do berço e seguir para a sala, onde subiu pela bicicleta até seu guidão e ficou paquerando o periquito de meu irmão Carlos.
A avezinha barulhenta não parava de tagarelar, chamando ainda mais a atenção da cobra faminta ou curiosa, que, percebendo que não alcançaria aquela refeição, desceu da bicicleta e saiu para o quintal, onde levou várias pauladas, desfrutadas por José Antiqueira (padrinho de minha irmã), que acabara de chegar apressado. Pobre réptil verde, que sequer queria fazer mal a ninguém e já estava de saída, daquela visita inesperada.
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Em nova manhã, acabei por descobrir algo que seria a mais bela dádiva de Deus e da natureza em minha vidinha infantil. Acordei bem cedo e de calça quase curta, como sempre (estilo pula brejo), camiseta de dormir e descalço, fui até a divisa da cerca que separava nossa casa do campo cerrado, o qual levava ao sítio de José Antiqueira e foi ali que vi: o mato todo orvalhado, onde os primeiros raios de Sol me davam de brinde as mais bonitas bolas coloridas de todos os tamanhos, que despencavam do Céu como a me desejar um belo dia.
Não tive dúvidas, atravessei a cerca e corri a apanhá-las, mas então percebi que ao me aproximar, as danadinhas desapareciam, como a caçoar de minha ingenuidade; porém, como menino é teimoso, eu insistia na perseguição, correndo sem cessar em busca de outra… e outra… e mais outra.
Cada vez mais elas desapareciam, aparecendo com nova cor, em novo lugar, inclusive por onde eu já tinha passado, dando a impressão que riam felizes ao me fazer de bobo. E assim, quando pude perceber já estava na divisa da casa do nosso vizinho de sítio e lá, já estava ele com seu filho mais velho, Jaime, cortando cana para triturar e providenciar a ração para o gado.
Ao me ver, carinhoso me perguntou o que fazia tão cedo naquelas bandas. Sem nada responder e percebendo que as bolinhas, talvez assustadas pela presença dos adultos, diminuíam de quantidade, então passei a fazer o caminho de volta para casa, passando sobre a árvore caída sobre o bonito rio todo de pedra que a natureza demorou milhões de anos para construir (eu não era inteligente para saber isso, mas um dia acabei crescendo e aprendi).
Aproveitei para observar suas águas muito limpa e transparente, refletindo os raios do Sol, que atravessavam sobre a visão enfumaçada da névoa que caía naquele horário tão cedo, parecendo cristal líquido, que corria em direção ao grande rio Lajeado.
Na perseguição às bolinhas, nem me lembro de ter atravessado sobre o riozinho, nem sobre a árvore caída sobre o mesmo, só os encontrando naquela hora de meu retorno.
Cheguei em casa todo molhado pelo orvalho da manhã. Mamãe me perguntou por onde havia me aventurado tão cedo, me enxugou com pano velho e me mandou tomar café. Papai e os dois irmãos mais velhos já seguiam para o trabalho. Isso mesmo: Zeca e Carlos trabalhavam com papai na lavoura até o horário do almoço, depois iam para a escola.
Naquela mesma manhã, o barulhento periquito de Carlos, não sei por qual motivo, resolveu fazer uma aventura perigosa: acho que suas asas estavam crescendo e como alguém esqueceu de apará-las, ele resolveu voar do poleiro que ficava na sala, mas se sentindo sem muita força para tal proeza, acabou caindo sobre o chão, quase em cima da gatinha que acordou assustada e nem pensem que ela esperta e safada resolveu almoçá-lo, pois ela o respeitava como sendo membro da família. O perigo veio de minha irmã Nezinha, que na simplicidade de seus três aninhos, nem sabia o que era família, muito menos membro e pior ainda, o que era aquela coisa barulhenta verde, correndo inquieta sobre o chão e foi daí que conseguiu desferir sobre a pobre infeliz, tamanho golpe de alpargatas , que foi só pena que voou. O golpe foi tão violento sobre a cabecinha da ave, que praticamente teve morte instantânea.
Mamãe se desesperou e correu a socorrer o bichinho, enquanto minha irmã, talvez percebendo a maldade praticada, não parava de chorar e eu corri para contar a tragédia ao papai e irmãos, que trabalhavam próximo de casa, raleando os recém-nascidos pés de algodão.
Carlos, com seus dez anos de idade, chorou muito e até prometeu que também mataria a irmã, mas é claro, que apesar da raiva que duraria por centenas de anos, isso não aconteceria… acho que não! Eles que contem a história deles; só dei uma lembradinha…
Castração…
Papai então resolvera que estava na hora do sacrifício aos leitões, para que engordassem e virassem ótimas refeições; com isso convidou tio Anor, e no sábado de manhã, portando creolina, linha grossa, agulha e faca afiada igual navalha, adentraram ao chiqueirão, em captura aos condenados por sua má sorte em terem nascidos machos. Nós crianças, inclusive os primos João e Zete, subimos na cerca de balaústre e ficamos assistindo aquele terrível sofrimento, onde, os pobrezinhos, um a um, eram capturados, jogados ao chão, levantados suas patas traseiras e com a faca afiada, que tio Anor insistia em passar pela pedra de amolar, seus infelizes saquinhos eram cortados ao meio e suas bolinhas arrancadas sem piedade e atiradas ao Jagunço e Piloto, que em menos de um segundo, as devoravam com muito prazer.
— Primeiro a gente capa os porcos — disse titio Anor a papai. — Depois capa a molecada! Começamos pelos menorzinhos.
Epa! Menorzinho! Era eu! Perder meu símbolo de ser hominho! Cai fora…
Dei um jeitinho e devagar desci da cerca e desapareci por um bom tempo. Apenas ouvindo ao longe, o triste choro dos outros eus, sofrendo lá no chiqueiro, nas malvadas mãos do bondoso tio Anor e papai.
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Desde que descobri as belas bolinhas coloridas de minha infância, todos os dias caía da cama muito cedo e corria pelos campos orvalhados, atravessando pela árvore caída sobre o belo riozinho de pedra, com suas águas prateadas e seguindo em vão, tentando agarrar tais bolinhas produzidas pelos raios de Sol sobre as folhas de mato molhado, até chegar à divisa de sítio de dona Aparecida.
— Hei menininho das manhãs! — Chamou-me ela, após vários dias me vendo por ali. — Por que corres tão cedo pelo mato?
Só balancei os ombros e saí correndo, não de medo dela, pois éramos velhos conhecidos, mas corria para não perder meu precioso tempo, de menininho curioso do sítio cheio de atividades.
Voltei para casa e como já era costume de mamãe, me deu um pano velho, para enxugar o rosto e corpo molhado pelo orvalho e suor.
Ainda naquele dia, vovô João chegou em sua costumeira visita de alguns dias e como no quintal havia muitas abóboras maduras, que papai usava para tratar dos porcos, para que depois eles pudessem sustentar a gente, vovô escolheu uma entre as maiores e bonita, descascou-a, cortou-a em pedacinhos bem vermelhinhos, adicionou mais lenhas no fogão e passou o resto da manhã e começo da tarde, na árdua tarefa de fazer um delicioso doce.
O doce de vovô não era qualquer coisa: ele lavava muito bem a mesa de madeira e quando o doce estava pronto (ele dizia que teria dado ponto), molhava bem a tampa da mesa e o despejava sobre ela, esperando calmamente esfriar, depois cortava aquela delícia em pedaços médios.
Pouco depois, enquanto eu perseguia no terreiro, minha boiada em forma de galinhas e filhotes, que ficavam até de boca em forma de bico aberta, devido ao cansaço de minha perseguição sem trégua, vovô, que cuidava da limpeza dos utensílios de cozinha, gritou:
— Deixe os pintos sossegado, menino! Eles vão acabar morrendo de cansaço!
Era engraçado vovô chamar os filhotes de galinha assim (só queria saber como ele chamava o fazedor de xixi). Mas, embora contrário ao meu desejo de parar de apartar minha boiada, acabei deixando-as e voltei correndo, suado, em busca do doce de abóbora em pedaços, que ainda estava muito quente.
Naquela mesma tarde, Deus, ou São Pedro, resolveu abrir suas torneiras e despejar uma forte chuva sobre o sítio e não era apenas forte. Acho que devido fazer muito tempo que não chovia, a coisa se acumulou e passou a chover granizo (vovô disse que não poderia dizer chuva de pedra) e como estava muito calor, ele, carinhosamente me pediu para correr até o terreiro com uma canequinha e apanhar algumas pedrinhas para colocarmos na limonada que ele estava preparando com limão galego. Acontece que pedir a um menino de quase seis anos de idade para correr na chuva, é a mesma coisa que mandá-lo a uma loja de brinquedo e escolher o melhor de todos.
Com isto, feliz da vida, corri para o terreiro cheio de lama e antes de começar a apanhar as danadinhas geladas, levei um tremendo escorregão no lodo, caindo sobre uma poça de água. Levantei-me, chacoalhei a camisa, olhei para ele e mamãe que estavam rindo; então como dizem: quem está na chuva é para se molhar, prossegui na deliciosa tarefa de apanhar gelos sob tal banho morno, sem querer voltar para dentro de casa.
Depois, já na cozinha, me despi completamente e me enxuguei com toalha velha, vestindo a seguir roupas sequinhas e limpas, então, sentindo alguma coisa dentro da orelha direita, comecei a esfregar o dedo:
— O que foi? — Perguntou vovô.
— Acho que entrou um paturi na minha orelha — respondi sério.
— Um paturi!? — Admirou-se vovô e riu mamãe. — Como assim?
— Não sei! — Neguei convicto. — Tá esquisito!
O fato é que havia entrado água e eu sei lá de onde surgiu a ideia de paturi (e eu sabia lá o que era paturi!) (Nome Popular: Patarrona, marreca-saúva, paturi-preta. Família: Anatidae. Nome Científico: Netta erythrophtalma erythrophtalma ...) (Para que serve dicionário?) (E já pensou um bicho desse em minha orelha?)
E com isso vovô foi o principal adulto a fazer parte de minha primeira infância, além de meus pais. E como eu era a criança de certa idade mais propícia a se brincar (não era muito grande e nem muito pequeno, estava então sempre junto dele, quando não em seu colo.
Uma das brincadeiras que mais gostava se fazia em: estando sentado em sua perna, tomava uma de minhas mãos abertas e apontando os dedos dizia:
— Mindinho, seu vizinho, pai de todos, fura bolo, mata piolho.
Depois tocando a palma de minha mão, continuava:
— Cadê o toucinho que tava aqui?
— O gato comeu — depois de mamãe me ajudar por várias vezes acabei aprendendo.
— Cadê o gato?
— Foi pro mato.
— Cadê o mato?
— O fogo queimou.
— Cadê o fogo?
— A água apagou — as vezes ele me ajudava.
— Cadê a água?
— O boi bebeu.
— Cadê o boi?
— Foi carregar trigo — essa foi uma das que mais demorou para que eu aprendesse.
— Cadê o trigo?
— A galinha espantou.
— A galinha espalhou — corrigiu-me.
— Cadê a galinha? — Eu inverti o entrevistador.
— Cadê a galinha? — repetiu ele.
— Foi botar ovo, ué!
— Cadê o ovo?
Não sabia responder. Os ombros disseram isso e ele ajudou:
— O frade bebeu!
— O que é o frade? — mudei de assunto.
— O padre! E cadê o padre?
— Foi rezar missa, owh! E cadê a missa?
E então vovô correndo os dedos por meu braço e fazendo cócegas em meu sovaco ou na garganta, dizia:
— Foi por aqui, por aqui, por aqui...
E naquela época eu nem sabia de um legado da família. Vovô viera de família muito rica, pois seu pai viera da Itália em 1868, se casando depois no Brasil e gerando filhos que moravam então em fazenda de Cravinhos. Quando vovô era então mocinho, se apaixonou por uma empregada da fazenda e por não respeitar a decisão do pai em não se casar com uma serviçal, acabou sendo deserdado da família, vindo com isto, apesar de manter o nome Zaninne, ter que sair da fazenda, se tornando pobre para o resto de sua longa vida. Que chato! Se vovô não tivesse se casado com vovó Maria Pereira (a serviçal) ele continuaria rico e hoje a gente seria rico. Será?! Acho que a gente nem teria nascido, porque nem mamãe teria nascido e muito menos se casado com papai. A história seria completamente diferente. Vovô se casaria com outra, em outra data, não teria os mesmos filhos e por outro lado, vovó se casaria com outro em outra data e… só para simplificar, este Innocente aqui, não estaria contando estes fatos que já me deixou confuso.
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Na manhã seguinte, quando dona Aparecida me viu próximo a sua cerca, antes que eu resolvesse fugir, me convidou para chegar e assim como mamãe, também me deu um pano para enxugar, depois me ofereceu café, leite, pão doce. O pão aceitei imediatamente.
— O que você faz todos os dias por estas bandas?
— Passeio!
— Não está me espionando! Está?
— Espi… o quê?
— Sua mãe não xinga de você se molhar todo?
— Não! Ela ri!
— Não tem medo de cortar os pés em alguma pedra?
Acenei que não, enquanto acabava o delicioso pão. Realmente meu passeio diário era feito sempre descalço.
— Por que não usa uma sandália?
— Não sei! Posso pegar uma laranja?
— Claro!
Apanhei uma laranja pera e uma faca de cozinha, começando a descascá-la imediatamente.
— Deixe que eu descasque!
— Não precisa! — Neguei. — Já sei descascar!
Acho que ela acreditou e em poucos segundos a danada da faca errou a laranja e resolveu fazer um enorme corte em meu dedo indicador da mão esquerda. Imediatamente, com forte grito de dor, larguei a faca e a laranja na muretinha da varanda; só não chorei para mostrar que era homem.
— Menino! — Correu ela em meu socorro. — Devia ter deixado que eu descascasse!
Apanhou uma palha de milho e amarrou em meu dedo, estancando o sangue que saía.
— Não se preocupe que vai sarar! — Emendou ela.
Acabou de descascar a laranja e me entregou. Chupei-a toda, depois disse tchau e voltei para casa. Vovô ao ver a palha amarrada em meu dedo, quis saber do ocorrido e após ouvir as explicações olhou bem e disse:
— Cuidado que a tripa vai sair por aí!
Acho que o corte não era tão grande; meu dedo é que era pequeno.
Monstro!
Devido ao calor do final de março, nós, crianças ou molecadas, aproveitávamos as tardes livres para brincar sobre o leito do riozinho de pedra. Eu, meus irmãos mais velhos; Marinho (filho mais novo do Zé Antiqueira, com dez anos) e Joãozinho (com oito anos, único filho homem de Serafim Antiqueira, que também tinha uma menina de dez anos chamada Wanda e que morava no outro sítio, que também fazia divisa com o nosso, só que do lado direito), tirávamos toda a roupa e corríamos pelados por dezenas, centenas de metros (sei lá o que era dezenas e centenas), pelas águas, sobre as pedras do rio, onde, gritávamos alegres e muitas vezes, acabávamos escorregando e caindo de bunda nua nas pedras lisas igual sabão; mas nem percebíamos que estaria ficando marcas roxas e que talvez, arrependeríamos mais tarde, devido a dor que com certeza viria forte…
E foi assim, que ao tentar dormir, as dores se apoderaram de meu frágil corpinho de seis anos. Então comecei a gemer muito, chamando por mamãe, porém foi papai quem veio em meu socorro:
— O que há?
Colocou a mão em minha testa e percebeu que estava ardendo em febre. Descobriu-me, tirou minha camisa e viu que estava muito suado. Tirou a minha calça curta, me deixando nu e viu, além das marcas roxas no traseiro, toda minha região genital, coberta por um tipo de espuma gordurosa.
— Aonde vocês estiveram na tarde de hoje?
— No rio de pedra!
— Nadaram pelados?
Não respondi.
— Quando for nadar, precisa usar alguma roupa! É perigoso nadar sem nada! Qualquer dia vocês perdem o peruzinho nessas brincadeiras !
Providenciou com mamãe um melhoral infantil para tirar a febre e me disse:
— Agora durma. Pode dormir pelado mesmo que não tem problema. Você é criança e ninguém virá aqui!
Apagou a lamparina e se retirou.
Por mais de uma hora, ou mais de cinco… (eu nem sabia hora e nem para que servisse), tentei dormir e não conseguia. Não sei se pelo fato de estar doente, ou pelo desconforto de estar pelado, fato que aprendi a detestar depois dos seis anos de idade. Então me levantei no escuro, apanhei minha calça curta, que papai jogara sobre uma lata grande de óleo de cozinha; vesti-a e tornei a me deitar.
Assim que acordamos de manhã, meu irmão Zeca, já caçoou:
— Está dormindo pelado!
Tirei a cobertinha, lhe apresentando minha calça em meu corpo. Ele gritou:
— Papai, o Cido vestiu roupa.
Papai veio até o quarto, me encontrando novamente coberto, então me perguntou:
— Você vestiu roupa?
Acenei que sim.
— Não deveria! Você anda o dia inteiro pelado no terreiro, por que tem vergonha de dormir pelado?
— Não fico o dia inteiro pe...lado! — Essa época já teria passado. Agora eu estava mais crescido e me protegia com tais acessórios chamado roupas ou vestimentas. Papai, devido trabalhar o dia todo, nem teria percebido isso.
— Pelo menos sarou?
Tornou a pôr a mão em minha testa e percebeu que a febre continuava.
— Vou ter que te levar na farmácia!
E assim fomos nós de volta à cidade, indo direto à farmácia São Paulo, na qual o farmacêutico senhor Otacílio, que sem muita cerimônia, preparou uma injeção maior do que meu braço, me jogou de bruços sobre as pernas de papai, abaixou minha calça até os pés e sem muita delonga, cravou toda aquela maldita agulha no fofo músculo de minha bundinha pequena, fazendo com que meus olhos ficassem marejados de lágrimas pela dor. Só não xinguei o filho da… porque Deus e o valente Menino Jesus não gosta.
Mas por fim, acabei em vantagens, pois a injeção fez efeito miraculoso (foi papai quem disse esse nome) e eu acabei por saborear dois gigantes pastéis de carne e um guaraná sem gelo, no bar da rodoviária, onde havíamos descidos da jardineira Mercedes Benz de meu tio Vicente (o pai separado das primas que me perderam e José Luiz além de Ivana, que era de minha idade e ainda não falei dela). Esse ônibus tinha o motor na frente, igual a um jipe grandão e fazia a linha Penápolis Córrego dos… já sabem.
Passamos o resto do dia na casa de vovó e à tarde, no mesmo ônibus, retornamos ao sítio.
À noite, todos, inclusive papai e mamãe, sentados no grande encerado de cor bege, estendido no terreiro de frente de casa, assistindo a um sapo que devorava as mariposas que paqueravam a luz de lamparina e ouvindo ao longe, o grande rádio alimentado por bateria acumulador (igual a de caminhão), que conseguia sincronizar emissoras até do exterior, graças às 6 faixas de ondas médias, curtas e tropicais (Não sabia nada disso, mas hoje diria que ondas tropicais tinha tudo a ver com natureza), que papai se orgulhava em comentar e a potente antena, que era amarrada em cima do telhado, atravessando de uma comunheira à outra.
Depois de algum tempo, resolvi apanhar uma bola velha que havia deixado no fundo, perto da tuia de algodão; mas, ao seguir ao seu encontro no escuro, levei um grande susto, voltando correndo gritando mamãe, que um monstro com dois olhos de fogo do tamanho da bola, tentara me pegar. Papai correu para investigar e só encontrou nosso velho cachorro Jagunço, doente, deitado em silêncio, com os olhos brilhando com a luz do luar.
Era mesmo de se estranhar: pois os cachorros, geralmente ficam sempre perto de seus donos e Jagunço já não fazia mais isso; estava realmente velho, doente e até sem dentes. Mamãe disse que os cachorros vivem no máximo 15 e ele já tinha mais de 16 (para mim tanto fazia: eu não sabia o que era 15 ou 16). Mas o fato, é que na manhã seguinte, Jagunço não se levantou e nós, chorosos, o levamos para um mato distante, afastado de casa, onde o deixamos abandonado.
Na volta para casa, os macacos saltitavam arteiros, nos galhos das árvores da pequena floresta que cortava o sítio, bem na nascente do riozinho de pedra. Os safados, que sempre iam até perto de casa, roubar bananas no bananal (não queria que bananas dessem no parreiral), pareciam caçoar de nossa perda e tristeza.
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Como tio Anor sempre estava em casa ajudando papai em alguma das muitas obrigações do sítio, quando possível, os filhos João e Donizete, além de, algumas vezes, Moacir e Gilmar, também iriam com ele. Assim sendo, no sábado de manhã eles apareceram e todos reunidos fomos plantar milho com uma antiga máquina manual, que mais parecia um brinquedo de criança e todos queriam usá-la, principalmente eu, que fui proibido por todos, dizendo que não era trabalho para crianças.
Com isto, em pouquíssimo tempo, sem que nenhum de nós se sentisse cansado, todo o grande espaço que papai já havia arado para esse fim, estava plantado e então, convidado por meu irmão Luiz Carlos e incentivado por João, resolvemos construir um poço na lateral direita de nossa casa.
Carlos correu a apanhar uma pazinha quadrada, um enxadão de cabo curto, uma lata das de 9 litros de óleo de cozinha vazia e imediatamente começamos nossa árdua tarefa de poceiro. Quer dizer: começamos é modo de dizer. Novamente eu era mero expectador e não podia sequer dar palpite. O que fazia era brincar sentado sobre a terra fresca tirada do buraco. Mas o fato é que o poço foi ganhando profundidade rápida e estava ficando bonito, quando, uma hora depois, papai chegou de supetão e encontrou meu irmão Carlos dentro do buraco, praticamente com o dobro de seu tamanho.
— O que vocês pensam que estão fazendo? — Gritou papai, com cara de que haveria surra.
— Construindo um poço, tio Tonico! — Explicou João, que era tão desinibido quanto a um adulto, apesar de seus meros oito anos de vidinha simples.
— Mas quem autorizou isso?
— Decidimos em turma! — Disse João, convicto de que estava certo.
— Cai fora desse buraco, Carlos! — Gritou papai com cara de que haveria surra. — E trate de tapar esse buraco imediatamente!
Nem o Valente João, conseguiria convencer papai em permitir nossa façanha. E olha que pensávamos em chegar à água em pouco tempo. E pior (ou melhor), João e Carlos eram acostumados a fazer dois desses, um ao lado do outro e lá no fundo (uns dois metros) fazia com que se encontrassem, por onde, ao brincar, pulavam dentro de um e saíam pelo outro, em verdadeira arte arteira, sem medir perigos.
Mas dessa vez não teve jeito, o poço teve que ser soterrado (dessa vez me deixaram ajudar) e fomos brincar no meio do mato, com a companhia de Piloto, que latia sem parar.
E falando em Piloto, já que estávamos no mato mesmo, fomos ver de perto o porquê de aqueles grandes pássaros negros voarem tão baixo perto da floresta do sítio. E não é que descobrimos que os malvados gigantes estavam devorando nosso velho cachorro Jagunço.
Inconformados com tamanha maldade, espantávamos sem cessar aqueles safados que insistiam em nos desobedecer e a se deliciarem com aquele banquete fedido. E o pior: os malvados macacos até pareciam rir da gente, pobres frágeis crianças.
Mamãe mandou que deixássemos as aves em paz, pois elas eram de Deus e sua função era limpar a natureza de animais mortos e que Jagunço já tinha cumprido sua missão no mundo dos vivos e que agora não sentia mais nada.
Valente menino Jesus cuida de mim!
Meu irmão Carlos, mesmo sem pensar nisso, era o único da família e daquela época a ter sua festa de aniversário. Isso mesmo: festa de aniversário é coisa moderna; mas Carlos nascera em 13 de junho, dia de Santo Antônio de Pádua e papai quando se casou, teve uma terrível doença, que o assustou muito, então fizera uma promessa em que, se sarasse, rezaria o sagrado terço todos os anos, na véspera do dia do Santo protetor dos que queriam se casar (será que na verdade papai não fizera promessa de arranjar esposa?). Bem… como me contaram, ele sarou milagrosamente e então, em todos os anos, mamãe preparava a bandeira com muitos enfeites de papel de seda colorido, colocava um lençol branco na parede para esconder a sujeira, convidavam todos os vizinhos, parentes e amigos; faziam 20 litros de chocolate com leite; outro tanto de anisete e quentão, além de pão doce e outras guloseimas; compravam muitos foguetes, rojões e bombinhas para as crianças (traques, biribas e fósforo de cor) e rezavam o terço, levantavam o falado mastro de seu santo protetor e explodiam aquela imensidão de fogos. Na época não, mas hoje eu diria que tudo aquilo era para comemorar o nascimento de meu irmão primogênito, que ao invés de Luiz, deveria se chamar, assim como papai, Antônio.
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Nossa lavoura verdinha de algodão, após a época da florada que desabrochavam ao sol (lembra dessa frase?) em cor branca, vermelha e vinho, nasciam seus frutos, os quais papai chamava de maçã e eu, curioso, pois sabia que maçã era bicho de se comer e como jamais teria comido uma, resolvi experimentá-la e adorei; tinha sabor adocicado e muito macio.
Maçãs de algodão passara então a fazer parte de minha nutrição (quer dizer… minhas coisas de se comer: como ovo, abobrinha, costeleta de porco tirada da lata de gordura…) onde talvez o único perigo, que eu não entendia, seria do fato em que a lavoura era constantemente pulverizada com veneno de pragas, como lagartas… mas… apesar de ter comido centenas delas durante aquela safra, garanto que nunca morri.
E assim, saboreando as maçãs de pobre, me deparei com pés carregados de outro tipo de fruto, que parecia pepino, mas era pequeno e espinhoso (era apenas maxixe com seus espinhos inofensivos).
Uma ideia brotou na mesma hora. Apanhei quase todos (todos os que vi) e corri para o quintal de casa; raptei uma caixa de fósforos da dispensa de mamãe e com ambos, dei vida a uma manada de gado. Com pedaços de paus velhos e pedras, construí o curral e passei a ter mais uma atividade importante… cuidar dos novos animais, deixando com isso os galináceos (?...) Que vovô tanto protestava, em paz.
Deixando as brincadeiras de lado, fui ajudar meus irmãos mais velhos (nunca ficava com os menores) a reformar por nossa conta o chiqueiro dos porcos (nossos pais quase nunca pediam ou impediam que fizéssemos alguma coisa . A ideia partia geralmente de Luiz Carlos).
Com pesada marretinha e estacas de madeira, ele procurava tapar os buracos do chiqueiro, para impedir que os danados fugissem.
Após diversas marretadas, Luiz colocou a mão sobre a aroeira e insinuou:
— Como esquenta!
Zeca repetiu a façanha.
— Verdade!
Repeti a façanha. Mas acho que meu irmão Luiz não contava muito com minha ajuda ou opinião, pois ao colocar o dedo indicador da mão esquerda sobre a aroeira, a marretinha já continuava sua tarefa.
Quando Luiz percebeu o que aconteceria, tentou segurar a danadinha, que já havia sido acionada devido uma tal lei da gravidade (e gravidade para mim, seria apenas o triste episódio do que aconteceria comigo). É claro que foi impossível e tudo em milésimo de segundo (sabia lá eu o que era milésimo de segundo) meu pobre dedinho estava esmagado.
Sangrando, doendo e chorando muito, corri aos cuidados de mamãe, enquanto os dois irmãos trabalhadores desapareceram de medo, devido à tragédia ocorrida.
Mamãe lavou minha mão, aplicou bastante mercúrio cromo e enfaixou com pano branco. Disse ela que a situação não era tão grave e que, com certeza, em dois ou três dias estaria curado. Realmente, acho que o Valente Menino Jesus ajudou a segurar a marretinha, fazendo com que meu dedo não fosse todo esmagado e nem quebrado. O fato é que, mil anos depois a cicatriz ainda existe.
A gatinha e o intruso!
Como raras vezes fazia, seguia com mamãe e os irmãos menores, a passeio na casa de João Antiqueira, que ficava no outro sítio que fazia divisa com o nosso, só que aos fundos.
Depois de passarmos pela nascente do riozinho de pedra e a floresta repleta dos arteiros macacos, que até jogavam paus nos transeuntes (os que passavam por lá). Era raro alguém passar por lá, com exceção de eu e meus irmãos mais velhos, ou poucas vezes meus primos e amigos dos outros sítios. Como já disse, nossos vizinhos eram Serafim Antiqueira, à direita, José Antiqueira, à esquerda e João Antiqueira, aos fundos. Existia também o Cláudio (a gente conhecia mais sua filha Ivonete) em frente; mas era após passarmos a grande paineira de entrada de nosso sítio e atravessarmos a estrada.
Mas, esquecendo os vizinhos: naquele raro passeio, ao atravessarmos a nascente do riozinho, encontramos nossa gatinha deitada. Fazia diversos dias que ela desaparecera. Apanhei-a no colo e levei-a correndo para casa, colocando-a confortavelmente deitada sobre o algodão, na grande tuia, depois, novamente correndo voltei ao encontro de mamãe, que já continuava o passeio sem mim.
De repente, já na casa de João, enquanto brincava do lado de fora, uma pobre andorinha sem rumo, se chocou mortalmente contra a parede branca da casa de tijolos. Apanhei-a, levando aos cuidados de mamãe, que, após jogar um monte de água sobre sua cabeça, alegou ser impossível recuperá-la…
De volta em casa, fui rever nossa gatinha na tuia de algodão. Quando a apanhei, levei dois tremendos sustos. O primeiro foi ver enorme ferida na pata traseira da gatinha e o segundo, quase apanhei com as mãos uma enorme cobra marrom, toda enrolada bem próximo de onde estava a gatinha. No desespero, corri gritando por papai que já retornara da lavoura.
Houve então uma difícil tarefa em eliminar o intruso réptil que ferira nossa gatinha. O bicho, mais assustado do que nós, tentava fugir, escondendo sobre o algodão e papai o caçava sem cessar.
Após muito tempo de caça, o vitorioso acabou sendo papai e o bicho, que ele disse ser Jararaca, jazia inerte no terreiro.
Na manhã seguinte, nossa gatinha também nos deixara, assim como a cobra, o Jagunço e a andorinha.
Então estando a tuia abalroada pela brancura de tanto algodão a granel (solto), nossa brincadeira favorita consistia em construir paredes e cômodos daquelas painas fofinhas.
Muitas crianças constroem casas sobre árvores. Nós construíamos casas de algodão e passávamos horas presos dentro delas, em muitas brincadeiras divertidas… ou até, nem tanto… Marinho, com o dobro de minha idade, brincava comigo e minha irmã pequena na casa de algodão; tirou toda sua roupa e fazendo o mesmo com minha irmã, insistia que ela brincasse nua com ele, chegando a se deitar sobre ela. Felizmente ela, assustada e chorando muito, desapareceu dali; então o moleque insistiu para que eu o fizesse, tirando toda minha roupa e se deitando sobre meu corpo nu.
Em esforço maior do que eu era capaz, livrei-me dele… calei-me emburrado… ofendi-me… assustei-me… seu pipi estava diferente do que era acostumado a ser o de qualquer um de nós, crianças Innocente. Disse não… vesti apenas a calça sem cueca… parei de brincar e fugi dali para nunca mais voltar… (e não deveria revelar esses fatos).
Que eu me lembre, nunca mais entrei naquela tuia de algodão. E olha que ela ficava dentro de nosso quintal.
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Em uma manhã, acordei sem poder enxergar nada. Meus olhos estavam grudados por uma pasta estranha. Molhei os dedos com meu próprio cuspe e esfreguei até conseguir limpá-lo (o verdadeiro banho de gato).
Ao chegar na cozinha, mamãe já percebeu que eu estava com um tal de “dor-d ’olhos” e imediatamente pingou uma gotinha de um líquido fresquinho (era colírio), que o deixou bastante confortável por quase dez… segundos, depois voltou a arder novamente.
No quintal, encontrando-me com Zeca, ele me tomou pelas mãos, me arrastando até o fundo do quintal, onde nos deparamos com o viveiro dos coelhos e ele, apanhando algumas bolinhas me entregou, dizendo que era um santo remédio para os olhos: “você já viu algum coelho usando óculos?” Brincou ele. De fato, eu nunca tinha visto.
Já na cozinha, enquanto tomava pelo menos meia dúzia daquilo (e eu nem sabia o que era sequer dúzia completa), o Carlos me perguntou:
— Que remédio você tá bebendo?
Balançando os ombros, deixei que ele visse tal preciosidade curativa.
— Bosta de coelho! — exclamou ele. — Que porquisse!
— É remédio! — fui convicto. — Você já viu coelho usando óculos?
— E você sabe de onde sai esta porcaria?
Crueldade de menino.
Em fila quase indiana, aproveitamos a visita de João e Zete, que vieram com seu pai, seguimos para o meio do algodão, que já estava alto e muito verde, arrancamos enorme quantidade do mato beldroega, ensacando-as e corremos de volta ao quintal, onde amarrávamos um pé de cada vez, em barbante que papai usava para costurar os sacos de algodão e atirávamos no meio do chiqueirão dos bichos, que vinham correndo apanhar uma de suas refeições prediletas.
Quando os famintos e insustentáveis suínos iam apanhar a refeição, puxávamos a linha, deixando os pobrezinhos na saudade (cada termo que coloco aqui: saudade, suínos, prediletas, insustentáveis. Acha que eu sabia algo daquilo?)
Nós, santinhos ou malvados, adorávamos aquelas travessuras sem causar muitos danos e persistíamos naquilo durante muito tempo.
Mais tarde, como tio Anor e filhos haviam ido embora e meus irmãos sumiram, me deparei com algumas lembranças: porcos, roça de algodão alta, pouco o que fazer, Marinh… castração ou capação… uma ideia de menino safado me brotou na cabeça. Corri para a lavoura de algodão e passei a brincar sozinho: a polícia perseguia menino safado (eu mesmo) que corria desesperado pela lavoura, caindo no chão e sendo aprisionado, então levado à delegacia, julgado e condenado a pior pena que um menino poderia ter. Por ser considerado menino sem vergonha deveria ser capado, para que nunca mais fizesse safadezas com crianças menores.
Arrancaram minhas roupas e me levaram pela cidade, amarrado na carroceria do jipe (os carros de polícia que visitavam os sítios eram mesmo Jeep, com tração nas quatro rodas), onde era objeto de exposição nu para todos e em local apropriado, com uma navalha afiada, feita com pedaço de pau inofensivo e pelas mãos do malvado policial (minha mente sugeria o bondoso tio Anor), que era eu mesmo, a navalha, assim como agia contra os leitõezinhos, fazia sua eficaz tarefa em cortar minhas preciosas provas de que eu era do sexo masculino, atirando tudo aos cachorros. Nem sei de onde surgiu a ideia de que policiais castram crianças sapecas.
Terminado severo castigo, tornei a me vestir e assim sozinho voltei para casa. Creio ter sido a primeira vez que senti desejo em brincar com meus genitais.
Na manhã seguinte, como havia chovido muito nos últimos dias e a estrada estava cheia de crateras, que os mais sabidos chamavam de erosão, os caminhões basculantes da prefeitura estavam levando pedregulhos para tapar os buracos. Eu e meus dois irmãos mais velhos fomos ver de perto e encontramos Joãozinho do Serafim, que fazia arte.
Ia até o mata-burro da estrada, virava as grossas madeiras dos dormentes com a ponta dos pregos para cima, na intenção de furar os pneus dos caminhões, depois corria e se escondia sobre o galho da figueira ali bem perto. Só que seu plano não dava resultados, pois os motoristas não eram os burros que o mata-burros mataria e eles de longe percebiam que alguém fizera travessura; xingando, parava o caminhão e corrigia o perigo, depois, passava.
Quem passara também por ali fora o senhor Cláudio, com seu gigante carro de boi, com duas gigantes rodas de madeira (maior do que o próprio carro), revestida por uma chapa de aço, para não estragar com o atrito ao solo. As rodas gemiam iguais aos leitões quando estavam sendo castrados, ou parecia uma música muito triste.
Realmente seu gigante carro de boi, com as laterais feitas de bambu trançado, carregado de milho seco, fazendo marcas profundas sobre o chão molhado, era puxado por nada menos do que 3 juntas de valentes bois, atrelados por 12 canzis e 3 cangas . É lógico, que o senhor Cláudio também não passara sobre o mata-burro; para estes casos específicos existia a porteira ao lado da estrada, já que o intuito dessa barreira é evitar a passagem de animais.
Como aquela arte não dera resultado, nos convidou a ir até a sua casa, que ficava praticamente em frente o mata-burro; apanhou uma ratoeira das grandes, cheia de ratos aprisionados por ele próprio; apanhou um canivetinho vermelho que ganhara do pai (quem me dera eu ganhasse um daqueles), apanhou um dos ratos com as próprias mãos e o puniu com severa malvadeza, capando-o como tio Anor e papai fazia com nossos leitões. O pobre ratinho chorava e esperneava tanto, me fazendo imaginar o quanto o infeliz estava sofrendo e sofreria até a morte certeira. Com isso, não concordando com tamanha crueldade, resolvi para meu bem, cair fora dali. Sabia que ratos eram nocivos (traziam doenças); mesmo com pena, até aceitava que papai deixasse os cachorros matá-los, mas muita crueldade, creio que nem o Valente Menino Jesus permitiria. Além do mais, eles não tinham culpa de serem nocivos.
Uma vez longe dos meninos, acabei me deparando com a bonita dona Odete, cor de jambo, mãe de Joãozinho, que sorrindo me convidou a entrar em sua cozinha.
Como estávamos próximo do natal e ela adorava fazer guloseimas nesta época, apanhou uma bela taça de manjar branco com vinho tinto doce e me ofereceu, perguntando:
— E os meninos?
— Estão na tuia!
— Que fazem por lá?
Só balancei os ombros.
Devorei tudo aquela delícia e lhe devolvi a taça.
— Gostou?
— Uma delícia!
— Quer mais?
Não respondi e ela entendeu. Deu-me outra taça cheia, que foi devorada lentamente para não acabar logo. Depois, devolvi-lhe a taça, agradeci e deixando meus irmãos para trás, retornei à nossa casa.
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Como era período da desova dos peixes, acontecia um processo bonito entre os bichinhos, que o povo chamava de piracema, em que os peixes nadavam rio acima, em busca de local apropriado para botarem seus ovos (ou ovas), pulando alto, com tremendo esforço para subirem à cachoeira existente no rio Lajeado e foi lá que, principalmente alguns adultos, assistidos por nós, realizavam a terrível pesca com peneira aos infelizes lambaris.
Em poucos minutos eram colhidos balaios inteiros dos condenados; onde da peneira seguia para a tarrafa e da tarrafa para a natação, que mesmo na presença de muita gente, fazia completamente nu, sem me preocupar com este pecado.
Sei que eu era apenas um menininho bobo, com seis anos e meio de idade, mas, apesar de achar bonito a subida dos peixes pela cachoeira e estar presente naquela desgraça, não concordava com este tipo de pesca, que não dava chance nenhuma aos pobrezinhos de terem seus filhotes e além do mais: se cada peixe possuísse apenas alguns ovos, a cada balaio pescado, significava um montão a menos de balaios de peixes no próximo período.
Acho que eu estava ficando diferente de outras pessoas: tinha pena das galinhas que papai matava, dos porcos que eram castrados ou sacrificados para nossa alimentação saudável, dos ratinhos capados (eu nem sabia porque eles diziam castrados) ou estrangulados pelos cachorros, da andorinha que trombava na parede branca… tinha pena até das cobras (mesmo as inofensivas verdes) que eram massacradas a golpes de enxada por papai ou outros adultos e também tinha pena da imensidão de lambaris, que infelizmente não cumprira seu destino de procriação (sei que não sabia o que era procriação, nem desova, mas também não sabia o que escrever aqui) .
Rio Tietê
Aproveitando o calor daquele começo de ano, nossa principal turminha de cinco pessoas: Carlos, Zeca, João, Zete e eu, que era o menorzinho (João e Zete moravam longe de nossa casa, perto da escolinha e igreja), seguimos juntos à passeio até a casa do senhor Henrique Ulofo, que era o homem mais rico da região e apesar da idade elevada ainda era solteiro e morava com sua mãe (aquela que acariciando meus cabelos chamou de paina de algodão). Chegando à sua fazenda só encontramos sua mãe (ela era idosa, claro, devido à idade do filho solteiro e de estatura um pouco baixa, mas gostava de nós crianças, principalmente de mim), então fomos passear na beira do rio Tietê, onde fiquei muito admirado com o tamanho enorme do rio que mais parecia um mar (nunca tinha visto um mar. Nem em fotos).
Lá encontramos alguns pescadores de beira de barranco, que na fazenda era revestido com cimento. Ali também, o rio fazia uma curva igual o dobrar de uma esquina. Mas os únicos conhecidos da gente era o senhor Inácio, mulato, que adorava uma boa conversa (tinha semelhança na prosa com meu padrinho Helias) e o José Ramos, que era meio gordo, baixo e só sabia rir.
Mesmo sem eu saber, de algum modo estes nomes: Henrique, Inácio e Ramos faria parte de minha vida lá em um futuro distante. Quem poderia imaginar?
Durante algum tempo permanecemos brincando por ali debaixo das árvores, próximo dos pescadores, mas sequer tive vontade em nadar, apesar do calor. Logo eu! Grão de areia diante daquela imensidão de água! Morreria afogado na certa!
Já de tardinha, com o Sol ainda muito quente, devido ao horário de verão, seguimos de volta para nossa casa, que ficava do outro lado do Lajeado, há pelo menos três quilômetros da fazenda.
Atravessamos no meio das vacas, onde tinha algumas novilhas mal-encaradas, as quais, mesmo Carlos e João, que eram os meninos mais valentões de nossa turma, ficavam ressabiados com elas. Eu andava cauteloso (caut… o quê?), mas confiava em João e Carlos. Depois, caminhando pelo enorme banco de areia quente, ao passarmos diante de uma velha igrejinha de beira de estrada, com algumas imagens de santos e muitas teias de aranha em seu interior, meu irmão Zeca, tão Innocente quanto eu, perguntou:
— Pra que tem essa casa velha aqui no meio das vacas?
De repente, ouvimos um forte assovio e um barulho de passos rápidos, como se tivesse alguém correndo em volta da igrejinha por três voltas, entrando a seguir em seu interior.
Todos correram assustados e eu os acompanhei sem entender nada.
Um montão de metros distante paramos e João ofegante disse:
— Lá é onde morreu gente!
Quem acredita em sobrenatural? Principalmente durante o dia com o Sol quente! Criança ouve coisas! Mas ouvimos!
Em casa, contamos o ocorrido à mamãe, mas acho que ela nem acreditou. Criança é imaginativa e vive criando baboseiras. Mas cinco crianças criando a mesma baboseira… é difícil.
Já que foi impossível nadarmos no rio Tietê e a lombriga ficou assanhada, na tarde seguinte, já que a turma estava de férias de escola e só ajudavam na lavoura no período da manhã, voltamos a nos reunir, inclusive com Joãozinho e seguimos para a beira do Lajeado, sob muitas árvores, onde tiramos toda a roupa para não molhar e lá fomos todos para dentro da água. Aquele trecho do rio não era tão fundo, mas vivíamos cautelosos, devido a muitas histórias (ou seria estórias) dos mais velhos (quem mais as contava era o Inácio), de que ali existiam muitas Sucuris que engoliam crianças.
Uma vez nas deliciosas águas morna do rio, Sucuri era ficção e divertíamos muito com brincadeiras de pega-pega, jacaré, bola… até que uma voz lá no meio das árvores gritou:
— Vou capar toda essa molecada!
Todos, inclusive os valentes João e Carlos apanharam suas roupas e atravessaram o rio, levantando as mãos para não molhar. Eu tentei fazer o mesmo, mas por ser pequeno, não conseguia atravessar o mesmo sem molhar as roupas e acabei sendo deixado para trás por meus ingratos fiéis companheiros, retornando à margem e procurando outra saída. O pior era que justamente ali, o rio fazia uma curva em sentido contrário.
O homem acabou de chegar até as margens e eu, abandonado ao triste martírio de deixar de ser menino, acabei por reconhecê-lo: era nada menos do que o senhor Sebastião Sueca, que apesar de casado, morava para os lados do Henrique, com sua mãe, a parteira dona Olívia. E sendo assim: já que ele me conhecia (no Córrego dos pipis todos se conheciam), resolveu me poupar de virar menina; então me vesti e atravessando pela pinguela, que consistia em um tronco de árvore deitado sobre os dois lados da parte mais estreita do rio, segui ao encontro de minha boa turminha, a tantos metros escondidos no meio do mato.
Um triste adeus.
Certa manhã, ainda estava muito escuro, quando mamãe me acordou junto com os demais irmãos, me fez lavar a cara bem lavada (não igual gato), me enfiou dentro de uma bonita calça cinza mais longa do que sempre usava, camisa branca, suspensórios em forma de xis nas costas e reto no peito, meias brancas e conga preto de solado branco e até uma pequena gravata borboleta, me deixando, para mim, como o menino mais bonito do mundo (tais roupas engomadas, principalmente a gravata, até me incomodavam, mas gostei mesmo assim). E junto com os demais, menos papai, que eu não sabia o porquê, não estava em casa, seguimos pelo caminho da floresta, passando pela nascente do riozinho de pedra, depois pela casa do João Antiqueira, em seguida pela outra plantação de algodão de papai, que ficava separada de nosso sítio (não era bem nosso. Já disse que era arrendado e também não sabia o que era arrendar), passamos pela casa do Cóti, cunhado de tio Anor (Cóti não era meu tio, pois a tia Amélia, então mulher de tio Anor era irmã de papai. A dona Analice, esposa do Cóti era irmã do tio Anor), tomamos a estradinha e chegamos à casa de Tio Anor.
De longe, ainda na estrada, percebi a casa cheia de gente e não sabia o porquê, se ainda era tão cedo. Além do mais não eram trabalhadores, pois estavam todos praticamente com roupa de domingo.
Chegando na entrada da casa, vi papai com jeito diferente e ao adentrar à sala, encontrei um grande caixão roxo, ladeado por quatro velas acesas e titio Anor dormindo dentro do mesmo, com pequeno ferimento na testa. Mesmo sem saber porque, senti um amargo no coração, engoli seco e pude perceber as pessoas com certas lágrimas nos olhos. Não se via uma única pessoa feliz; todos estavam muito tristes. Meus quase sete anos de idade, só me deixava saber que alguma coisa muito estranha tinha acontecido.
Permaneci pouco tempo ali e resolvi me retirar para o terreiro, onde reencontrei papai, que, abaixando para ficar de minha altura, me perguntou:
— Você já viu seu tio Anor?
Acho que foi a primeira vez que vi papai com lágrimas. Ele era adulto e adultos não choram, pensava eu. Então, também triste acenei que sim. Ainda não sabia o que estava acontecendo.
— O que ele tem? — Perguntei a papai.
— Ele morreu! Foi pro Céu!
— Como o Jagunço? — especulei innocentemente.
— Foi pra Deus!
— O Valente Menino Jesus vai levar ele embora?
— É!
— Por quê? Ele não foi mau!
— O Menino Jesus gosta de levar pessoas boas.
— E quem vai cuidar da tia Amélia e dos meninos?
— O Menino Jesus ajudará.
Papai se levantou e então segui ao encontro de João, Zete e um monte de crianças, sob a sombra de uma mangueira. João pegou uma bola pequena e começou a chutá-la. Carlos o repreendeu:
— Pare de jogar bola, João! Seu pai morreu!
— O que que tem? Já morreu mesmo! Não vai mais ficar com a gente!
Acho que só nós, as crianças, comemos um pouco da comida feita por diversas mulheres, inclusive mamãe. A comida seria muito boa (minha predileta): arroz, macarronada e frango ensopado. Mas parecia que estava sem sabor.
À tarde, aquele caixão feito de ripas e revestido em branco por dentro e roxo por fora, cheio de flores brancas, foi fechado com todo mundo chorando muito, colocado sobre a carroceria do caminhão Ford F.600 azul de Frederico e com quase todos sentados ao lado, seguiu em destino à cidade, para nunca mais voltar.
Naquele dia, sábado, 6 de novembro de 1965, começava uma grande saga na vida de minha tia Amélia, que agora viúva, com seis filhos para criar: o mais velho era João, com dez anos e o mais novo, Zoca, com menos de um.
E para mim, o dia ficou marcado como o mais triste de todos, pois além de não saber que nós também morreríamos como os animaizinhos, não podia compreender como o Valente Menino Jesus poderia levar para Ele, além de pessoa tão boa como era meu tio, a pessoa que precisava ficar aqui na Terra, para amparar a mulher e os filhinhos queridos. Nesse dia, a morte passou a ter grande significado para mim… E então sim, de verdade, passei a ter um pouco mais de medo do Valente Menino Jesus.
Na mesma noite em casa, perguntei ao papai:
— Por que o Tio Anor morreu?
— Às vezes acontece. Como o Jagunço… a gatinha…
— Mas o Jagunço estava velho e a gatinha foi mordida pela cobra venenosa.
— Pode acontecer com pessoas novas…
— Até crianças!?
— Às vezes.
— Eu também vou mor…rer?
— Acho que só depois que você estudar, trabalhar muito, casar e criar seus filhinhos.
— Não quero casar!
— Agora não! Mas quando crescer será preciso!
— Por quê?
— Você terá seus filhos e vai cuidar deles. Depois você ficará cansado de trabalhar, então seus filhos cuidarão de você.
— Nós vamos cuidar do senhor e de mamãe?
— Espero que sim! —Riu ele.
A partir de então, João e Zete, quase não frequentava nossa casa; com isto, Carlos passou a ter outra costumeira companhia, inclusive evitando eu e Zeca.
Comecei a perceber isso quando ele nos evitava e ia até a moita de bambu que ficava perto da floresta, ao lado da nascente do riozinho de pedra, colhia alguns bambus e fabricava sozinho enormes arapucas, espalhando-as inclusive no meio da floresta, correndo o risco de levar algumas pauladas dos safados macacos.
Desconfiado de suas artes, resolvi segui-lo e descobri que estava aprisionando diversos pássaros.
Um barulho provocado por mim nos galhos secos, me denunciou a ele, que gritou:
— O que veio fazer aqui?
Só balancei os ombros, receoso.
Levou-me consigo e os muitos pássaros capturados, até a casa de José Antiqueira, onde tinha um belo viveiro lotado de belas aves, como três potes, garças, seriemas, sabiás, codornas, canários, arapongas e até um belo gavião, além de diversas outras, que eu nem sabia o nome.
Carlos me contou que estava colecionando as aves junto com Marin… e não levava a gente, pois tinha medo que os macacos nos acertassem, ou alguma cobra nos picasse no meio da mata fechada. Que aquilo não era tarefa para crianças (acho que ele se considerava adulto aos onze anos de idade).
Apesar daquela exclusão, estava me divertindo com tanta beleza, descoberta graças a minha curiosidade. Estava sorridente, até a chegada de Marin…
Quando o vi chegando, assustei-me, emburrei, parei de falar e saí de mansinho, voltando sozinho para casa.
Carlos que não era bobo, ao chegar em casa suado, me perguntou:
— Por que você veio embora sozinho?
Balancei os ombros, como fazia toda vez que não queria responder.
— O Marinho mandou você embora?
Acenei que não e me retirei.
A partir de então, sabendo aonde Carlos ia todos os dias, sempre o seguia ao longe e acabava me revelando quando já estava sob a mata, ele fazia gesto de reprovação, mas acabava me adotando entre ele, depois, quando já tinha recolhido as aves capturadas e seguia até o local do viveiro eu resolvia que não deveria acompanhá-lo, mesmo achando muito belas, as aves de sua grande coleção.
No sábado à tarde, voltei com papai à casa de tia Amélia, que chorosa, sentada no terreiro em frente à cozinha, fumando cigarro caseiro, dizia:
— Quando ele saiu de casa (ela falava de tio Anor), já estava longe quando gritou algo que não entendi. Perguntei o que era e ele tornou a falar. Como não entendi, ele disse que me contava depois. Então o Cóti me falou que ele foi até perto da casa dele, mas não entrou, seguindo pros lados da casa de vocês e não chegou; passou pelo Zé Antiqueira e pelo Hirto, depois caiu nas pedras embaixo das árvores, perto do Lajeado. O João Cardoso (este era então irmão do falecido, cunhado de tia Amélia) só o encontrou já morto, quase amanhecendo o dia.
Naquele lugar bonito, tia Amélia mandou cravar uma forte cruz de aroeira, como símbolo de triste recordação.
Um castigo
Abril começava a colheita do algodão e como a lavoura de papai tivera muito sucesso, seria impossível a realização dela, apenas por ele e meus irmãos. É lógico, que além da ajuda de mamãe, eu também, fazendo uso de uma latinha vazia de óleo de 9 litros, ia até a bonita lavoura que me cobria inteiro na altura e apanhava aquelas fofuras de painas, mais branca que meus cabelos loiros, depois a despejava na grande tuia, mesmo estando do lado de fora, pois jamais quis entrar naquele local perigoso…
Bem…, mas quem disse que apenas nós conseguiríamos colher toda a lavoura de papai? Por isso ele contratou o senhor Frederico, que, logo de manhãzinha, antes do sol aparecer, chegava com seu Ford F-600, carregado de pessoas da cidade, com objetivo de nos ajudar.
Enquanto aquele exército de trabalhadores seguia para a lavoura, eu fazia minha tradicional caça as bolinhas coloridas, produzidas no campo cerrado com o orvalho da manhã. A única diferença era que: de medo, evitava chegar até a divisa do senhor José Antiqueira.
Em apenas um dia de colheita do algodão, a tuia ficava lotada e papai fazia uso também de uma espécie de caixote gigante (quase do tamanho da própria tuia) para armazenar provisoriamente o mesmo (sabia lá eu o que era isso, mas se não usar estas palavras fica difícil escrever), até que alguns trabalhadores, fazendo uso de sacos especiais, barbante e agulha grande e torta, os ensacavam e costuravam.
Todo esse algodão era pesado, assim que cada trabalhador o entregava a papai e despejado na tuia, para depois ser novamente ensacado e repesado. Eu achava aquilo uma bobeira ou perda de tempo: ser pesado e despejado, depois ser novamente ensacado e repesado! Por que não faziam apenas uma vez? Ganhariam muito tempo! Economizariam tempo e trabalho!
Enquanto papai pesava e marcava em um papelzinho, entregando-o ao trabalhador, eu permanecia por perto, pulando sobre o amontoado de sacos cheios, quando um dos homens mandou:
— Desce daí moleque! Você cai daí!
— Desço quando quiser! — Protestei bravo. — Você não manda em mim!
Ouvindo aquela minha atitude sem educação com a pessoa que estava apenas me aconselhando, papai me deu (acho que pela primeira vez na vida) um forte tapa na cara, que quase caí de verdade.
Ofendido, com vergonha e chorando, saí dali prometendo a mim mesmo em pensamento:
— Homem safado! Por que não bate em alguém de seu tamanho? Nunca mais quero falar com esse homem cretino.
Fui até a cozinha, onde, mesmo sem vontade, soluçando, bebi uma caneca de água e em menos de dois minutos, estava de volta ao local dos trabalhadores que já estavam quase todos no caminhão de Frederico para retornarem à cidade.
Achava covardia um homem adulto dar um tapa na cara de uma criança, mesmo que ela fizesse alguma traquinagem. Se a criança precisasse apanhar (as vezes precisa), Deus inventou o jeito e o lugar certo para isso. (Preciso falar?)
Voltei a brincar perto da sacaria de algodão e afastando um pedaço de pau que estava próximo do aglomerado de sacas (outra palavra esquisita), gritei:
— Papai! Tem uma cobra gigante aqui!
(Pensei que nunca mais iria falar com ele!)
Papai e alguns trabalhadores vieram correndo e fazendo uso de uma enxada, espancaram até a morte a infeliz, que dormia sossegada debaixo do pedaço de pau seco; depois a colocaram sobre o arame da cerca que dividia nossa casa com o pomar. Era uma cobra marrom, do tamanho de meus dois braços abertos. Acho que era Jararaca.
No final de semana, geralmente aos domingos, papai aproveitava sua espingarda de carregar pelo cano (chumbinho e espoleta) e saía sozinho ou com Carlos, a caçar por perto, indo até a pequena floresta dos macacos. Às vezes, de casa mesmo a gente ouvia alguns tiros.
Naquela labuta, ele passava a manhã inteira (nunca assisti, pois nunca o acompanhei, mas acho que o Carlos também atirava) e quando retornavam, traziam um punhado de pássaros cruelmente assassinados pela terrível espingarda. Geralmente eram rolinhas ou codornas, que depois de depenadas, limpas e fritas por mamãe, dava uma deliciosa refeição.
Apesar de muito saborosas, aquilo era uma covardia, pois, para saciar minha gulodice (que era pequeno), seria necessário um tantão. Imagine a de um adulto faminto, como era papai.
E como morar em sítio, geralmente estaria desprotegido contra larápios, papai tinha desde antes que qualquer um de seus filhotes viera a este mundo sua idolatrada garrucha de dois canos curtos, a qual ele mantinha carregada para eventual necessidade de proteção. E como tais larápios (talvez soubesse de sua proteção) nunca apareceram, ou... no dia em que criou coragem de aparecer e os cachorros até avisaram, papai não acreditou que era um deles, a tal garruchinha de canos cortados foi ficando guardada.
Um dia quando papai resolveu dar manutenção em seu brinquedinho impróprio para pequeninos, ao tentar tirar as duas balas para... talvez lubrificar a bichinha, percebeu que aquilo teria criado zinabre (um negócio verde misturado a pó branco) que não deixava as “guloseimas” ... Quer dizer... as assassinas se soltarem.
Não tendo outra solução, papai resolveu como elas se soltariam.
Seguiu para o quintal e encostado na parede da casa, apontou para um velho pé de coqueiro e apertou o gatilho.
Ouviu-se um grande estrondo e pedaços de ferros dos canos daquele brinquedinho voou, quase levando junto a mão de adulto arteiro, estourando o beiral da casa jogando pedaços de telhas muito próximo da sua cabeça.
O que houve foi que: nem sempre o caminho mais fácil será a melhor solução e as balas cheias de zinabres que não conseguiram seguir sua direção na horizontal, sentindo-se pressionadas pelo poder do fogo das espoletas acabaram mesmo subindo na vertical, desafiando as leias da gravidade.
Circuncisão.
Certa madrugada, que eu nem vi, papai levantou e perseguiu um bichinho que fazia arte no terreiro.
Ao acordar cedo, antes de minha tradicional caminhada pelo campo cerrado, encontrei todos reunidos em volta do tal tatu galinha, terrivelmente assassinado com uma facãozada na cabeça. Como ninguém em casa comia carne de tatu. Diziam que o tatu peba comia coisas mortas. Ninguém come coisas vivas, pois é necessário matar primeiro, com exceção (não tem outra palavra) dos peixinhos vivos, que a gente engolia ao entrar no Lajeado, que servia para aprendermos a nadar (a gente queria virar peixinho e eles pagavam com a vida por isso. Confesso que engoli um monte e jamais aprendi a nadar com eles).
Embora tatu galinha pudesse comer, em casa ninguém se atrevia. Com isto mamãe mandou chamar a dona Cida, que morava e trabalhava na casa da família do Cláudio e Ivonete, em frente ao nosso sítio, logo depois da estrada.
Dona Cida, mulher morena clara, esperta, de família judia, adorava falar mais do que todas as mulheres que eu conhecia, achou uma delícia o prato que teria para o almoço e permaneceu um tempão conversando com mamãe.
— Ontem eu cortei a ponta do pintinho de Zezinho (seu filho de uns três anos de idade). — Disse ela. — Mas saiu tanto sangue e ele chorou tanto que deu até dó!
Cada mania doida tem esse povo! Pensei eu. Por que gostam tanto de capar criança? Se o Valente Menino Jesus fez a criança com pipi, é porque é para ter pipi! Criança não é leitãozinho que precisa engordar!
O fato é que por tradição, desde antes de Jesus Cristo, os judeus têm o costume de circuncisão (preciso usar esta palavra) a seus filhos pequenos, principalmente os primogênitos (…). Diz a lei dos judeus, que a criança que não for circuncidada não poderá entrar no reino dos céus e que o próprio Valente Menino Jesus, teve parte de seu pipi cortado no sétimo dia de seu nascimento.
E por costume geral, as crianças são submetidas a pequenas cirurgias ou mesmo através de massagens no local, para desgrudar uma pele existente, que dificulta a higiene normal. E eu é que não queria cair nas garras de dona Cida ou de qualquer médico com bisturi nas mãos; preferia muito mais a tal massagem local.
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Era noite de sábado, papai reuniu alguns parceiros, como Cláudio, José Antiqueira com o filho Jaime, vovô João Zaninne, mais meu irmão Carlos e seguiram para pescar à noite na fazenda do Henrique Ulofo, com mais alguns companheiros da fazenda, incluindo o próprio Henrique, o Inácio e o senhor José Ramos (sem que eu soubesse, estes nomes tinham algo de importante a ver com meu futuro. E eu já mencionei isso).
Apesar de minha constante insistência em me deixar ir com eles, principalmente, não saindo de perto de vovô e Carlos, que passaram o dia preparando as tralhas, não teve jeito; dizia que passariam a noite na beira do grande Rio Tietê e era perigoso. Meu irmão Carlos ainda dizia que pescar à noite não era coisa para crianças (era o adultinho da família falando).
Retornaram da pescaria na manhã de domingo com as traias de pescas e os samburás lotados de peixes de vários tipos, inclusive graúdos dourados, que era considerado o peixe mais bonito do Tietê (como eu iria narrar a pescaria noturna se eu não estava presente? Acho que o Carlos deveria contar a história dele. Tenho certeza de que ele teve muitas vezes mais aventuras no Córrego dos… Pintos do que eu); despejaram tudo sobre um encerado no terreiro de casa e fizeram a divisão entre eles. Acho que passaríamos os próximos dias à base de diferentes pratos de peixe. Para nós era a maior festa, principalmente pelas bexigas dos peixes, que usávamos para estourá-las na maior algazarra.
Vila Barbosa
O passeio que eu mais adorava, apesar das dificuldades de locomoção (o ônibus tipo Mercedes de meu tio Vicentinho até a cidade, depois um grande amarelado da empresa Anhenzine), era a chácara de meus avós paternos Alfredo e Aurélia Rípole Innocente, que ficava na avenida dona Ricardina, a principal da Vila Barbosa, distrito de Penápolis, quase 30 quilômetros da cidade (já sei que não sabia essas coisas).
Para facilitar tal viagem, papai pediu ajuda ao fazendeiro senhor Henrique, que cobrando algum tanto, resolveu nos levar em sua belíssima caminhonete verde oliva ano 1953.
Além dos oito “Innocente’s”, os oito “Lemes” aproveitaram a viagem facilitada e assim cortando a estrada de terra, antes de chegar à rodovia, fazendo poeira, éramos perseguidos por Pitoco (o outro cão que entrara no lugar de Jagunço), que, apesar da velocidade da caminhonete, da poeira e da distância que o sítio já estava, insistia em nosso encalço, até que, Henrique sentiu piedade e resolveu parar, convidando-o a também subir em sua carroceria já lotada de bichos gente.
A chácara era bonita: a gente abria o portão da rua, descia poucos degraus de escada e já estava na porta de entrada da casa, atravessava a primeira grande sala, já conseguindo sentir o quão agradável era o clima em tal local abençoado, entrava em outra que servia de copa e chegava na cozinha (nem vou falar dos três quartos), então saía para o terreiro dos fundos (a lateral da casa também possuía um grande terreno todo murado), onde tinha um pequeno galinheiro fechado, uma bomba manual, pela qual se bombeava a água salobra do fundo e tampado poço (gostava muito daquele passeio, mas detestava a água ruim, preferia mil vezes a do nosso sítio); mais abaixo, uma grande tuia que meu avô usava para guardar papel usado, que ele juntava para vender na Incopa (fábrica de papel reciclável de Penápolis), então chegava a um cerca, onde, ao abrirmos o portão já estava em belo pomar com diversas árvores frutíferas, principalmente muitas jabuticabeiras e na sequência, até chegar ao riozinho dos fundos, dezenas de canteiros de verduras diversas.
“Uma vez lá no futuro distante, meu primo Zoca, acompanhado pelo filho caçula, Daniel Henrique, de doze anos de idade, chega em minha casa e entre andanças pelo grande quintal, comenta: Sua chácara é idêntica à da vó Aurélia da Vila Barbosa; tem até o riozinho no fundo (e sabe que eu não tinha reparado)”.
Chegando à chácara, pedíamos a benção a meu bravo avô, de cabelos bem grisalhos, a meu tio Osvaldo, que já fora casado, mas como a mulher morreu e ele não tinha filhos, voltou a morar com os pais e, sentada na copa, com os ouvidos grudados no rádio, encontrávamos minha bondosa avó Aurélia (ela dizia que era para ouvir a rádio Difusora de Penápolis, que de repente poderia ter notícia de algum parente); ela também tinha os cabelos bem grisalhos, amarrados como os da dona Benta do Sitio do Pica-Pau Amarelo e por ser cega (ela teria ficado cega antes mesmo de eu ser deste mundo dos mortais, vítima de um derrame mau curado) acariciava com as duas mãos ao rosto de todos, principalmente das crianças, para reconhecê-las e sempre falava com um leve sorriso no rosto cansado. Perguntava de todo mundo, até de pessoas que a gente (de apenas sete anos) nem se lembrava de, ou mesmo sabia que existia. Oh velhinha para ter memória boa assim não sei aonde…
Em nossa chegada ela já começou a chorar, de felicidade pela visita inesperada e depois, por não saber como dar de comer e abrigar tantas criaturas do mato.
Tem um ditado que diz, onde come um comem dois, sendo assim, então onde comem três (vovô, vovó e tio Osvaldo) podem comer… dezessete.
Para resolver a questão, vovô Alfredo, que era bravo como ninguém, adorava pescar e as cachoeiras do famoso Salto do Avanhandava estava a apenas 1200 metros de distância, por isso acompanhado por alguns (não os pequeninos), foi em busca de tal refeição fresquinha que viviam felizes saltitando dentro das belas quedas d’água.
Só para ilustrar, vovô Alfredo não comia peixes.
O bom da chácara era os deliciosos queijos de todos os tipos que a bondosa dona do laticínio, vizinha de vovó, dava sempre a ela e nós é quem saíamos ganhando. Com isto, ao perceber (pelo barulho) o batalhão de barrigas famintas que vovó teria que alimentar, já chamou pela janela (a janela do laticínio, estava na mesma direção da janela da copa de vovó) e lá se veio de suas bondosas mãos, provolone, frescarine, mozzarella, meia cura, requeijão (será que eu sabia estes nomes? Sabia que eram deliciosos!)
O bom também era os muros de arrimo que seguravam o muro principal da chácara, que por ser em nível bem abaixo da rua, fazia-se necessário e suas rampas de concreto áspero, serviam para nós crianças, brincarmos com diversas criatividades.
Adorávamos sentarmos à noite, no banquinho defronte a avenida dona Ricardina, que era muito bonita, com seus postes no canteiro central da avenida, espalhando luzes tão amarelas que mais parecia luz solar e dava um toque especial a nosso passeio. Era deslumbrante (sei lá…) ficarmos assistindo os carros passarem sobre a avenida iluminada, principalmente porque morávamos no escuro do sítio, aonde nossa principal diversão noturna era ver as milhões de estrelas do céu (engraçado: na cidade parecia que o número de estrelas era bem menor) e os sapos se alimentarem dos insetos que adoravam a luz das lamparinas.
Vovô era muito bravo e as únicas palavras que falávamos com ele era: “a benção avô”, quando chegávamos e “a benção avô”, quando íamos embora.
Se a gente estivesse sentado no degrau que separava a sala da copa, ou a copa da cozinha, ou a cozinha do quintal e ele iria passar, de longe fazia um gesto com a mão direita, como a dizer: “cai fora, moleque” e a gente o obedecia sem protestar.
Gostávamos de conversar com vovó Aurélia. Ela tinha uma voz bonita e sempre amável com todo mundo, além de gostar de contar muitas histórias. Ficávamos mais de horas, sentados no degrau que existia entre a sala e a copa, ouvindo suas proezas.
— Vocês já foram ao salto? — Perguntou vovó.
— Eu gostaria de ir! — Disse meu irmão Carlos.
— Sabe por que lá chama Salto do Avanhandava?
Não sabia o que era salto! Avanhandava é uma cidade perto de Penápolis.
— Na época em que o Brasil foi descoberto, os padres portugueses catequizavam os índios. Essa região tinha muitos índios e um dos padres que os ensinavam se chamava Avaí.
Certo dia eles caminhavam juntos pelas pedras das cachoeiras, então o padre escorregou e caiu nas pedras, dentro da forte queda d’água. Por mais que os índios tentassem, não conseguiram socorrê-lo, com isto ele acabou morrendo machucado e afundando sobre as águas.
No dia seguinte tornou a boiar e foi assim sendo arrastado, caindo entre todas as cachoeiras. Depois disso, os índios contavam a seus companheiros que Avaí Andava sobre as águas; daí veio o nome de Salto do Avaí Andava .
Naquela tarde na chácara, depois de demorado e divertido banho no delicioso chuveiro de vovó (que consistia em um balde furado no fundo, onde fora soldado um bico de regador, com alavanca para abrir ou fechar a água, que era esquentada em chaleira no fogão de lenha) e colocado roupa limpinha, menino curioso do sítio (para não dizer arteiro), acabei por entrar no galinheiro e passei a assustar as galinhas como se fosse uma boiada (não a minha boiada). Vovô Alfredo subia da horta e só me fez seu tradicional gesto com as mãos como a dizer:
— Cai fora daí moleque!
É lógico que o obedeci com medo.
Jantamos, fomos assistir os carros na avenida, aproveitando a fresca da noite e depois, dormir… quer dizer… tentar…
Não sei o que estava acontecendo, mas alguma coisa incomodava meu corpo inteiro, desde a ponta do dedão até o último fio de cabelo. Coçava, virava na caminha de ferro, esperneava, gemia e nada de dormir.
— O que está acontecendo, menino? — Perguntou-me vovó, apesar de cega e estar em outro quarto.
Ela era cega, mas não surda e dizem que quando o Valente Menino Jesus tira um dos sentidos, melhora os demais.
Mamãe veio saber o que estava acontecendo comigo.
— Estou com muita coceira, mamãe! — Reclamei.
— Você esteve no galinheiro! — Disse vovó. — Deve estar cheio de piolhos!
Mamãe tirou minha camisa e percebeu que vovó sabia mesmo das coisas. Estava repleto com bilhões de piolhos, que se espalharam inclusive pela cama.
Não teve outro jeito senão me despir inteiro, esperar esquentar a água e retornar ao chuveiro que ficava do lado de fora da casa, enquanto mamãe trocara toda a roupa de cama.
Vovô, que quase nunca falava, insinuou apenas:
— É o que dá, moleque arteiro mexer onde não deve.
Não foi de tudo mal, pois o banho naquela noite calorenta e naquele chuveiro diferente (no sítio o banho era de rio ou de bacia) foi realmente uma maravilha e depois dormi muito bem.
Quando acordei na manhã seguinte, vovó já estava em sua cadeira, grudadinha no rádio, ouvindo a rádio Aparecida. Com isto, sem tomar café, sentei-me no degrau e fiquei em silêncio, ouvindo a rádio e observando a boa velhinha, que me perguntou com seu sorriso bonito:
— Vai entrar de novo no galinheiro?
— Não! — Neguei surpreso.
Como ela poderia saber que eu estava ali? E que era eu? Cheguei em silêncio e permaneci em silêncio. Ela era cega! Só pode ter me reconhecido pelo cheiro. É! Acho que o Valente Menino Jesus tem mesmo compaixão por pessoas com problemas! Como eu gostava daquela velhinha! Adorava seu sorriso e sua voz doce! Apesar de ser pequeno e arteiro, acho que tinha um pouco de amor no coração.
Primeira escola.
No início de 1966, papai me perguntou se eu queria entrar na escola para aprender, junto com Zeca e Carlos (já tinha passado da hora. Eu tinha então sete anos e meio). Fomos à casa do Serafim, onde encontramos a professora Jacira, que estava matriculando a molecada.
Dia primeiro de fevereiro, agora sendo estudante, julgava ser como os irmãos mais velhos, então de manhã fui à lavoura com eles e papai, trabalhamos até às onze horas, almoçamos e ao meio dia, de calças curtas azul marinho, camisa curta branca e suspensórios amarrando à calça, seguia com meus irmãos, além de Joãozinho e sua irmã Vanda, até o pátio da igrejinha, pouco depois da casa de tia Amélia, onde ficava a escolinha do bairro.
Ao meio dia e meia, a professorinha jovem, de cabelos escuros longos, nos convidou a entrar e sentar na igrejinha, onde, principalmente eu, fiz com muito respeito. Aquele local transmitia uma paz inconfundível, que até nós, crianças arteiras sentíamos.
Dona Jacira fizera uma oração e pedira que o ano fosse de muito progresso para ela e seus amados alunos.
Dez minutos depois, nos convidou a entrar na escolinha, que tinha apenas uma grande sala com oito fileiras de carteiras duplas e apenas dona Jacira, lecionaria para todas as crianças, da primeira até a quarta série e como dois meninos juntos seria bagunça na certa, ela colocava sentados juntos um menino e uma menina (oba! Vamos namorar… mentira! Menino tinha medo de menina e vice-versa).
Eu estava no primeiro ano (só podia ser), Zeca no segundo e Carlos no quarto. Minha parceira de carteira era Maria Cláudia, uma menina alguns meses mais jovem do que eu, morena clara, de cabelos curtos encaracolados e que só conheci naquela hora.
A professora passava lição para o quarto ano, depois regredia (…) até nós do primeiro, que, como éramos marinheiro de primeira viagem, teríamos que aprender desde os primeiros rabiscos.
No intervalo para o recreio era mais divertido, pois como o local servia de festas e quermesses, existiam diversos quiosques (para mim eram varandas), onde a gente brincava de tudo quanto é coisa e retornava para as aulas todo sujo e suado.
— A partir de amanhã — disse ameaçadora dona Jacira — quem estiver sujo ou fedido de suor não entrará na sala de aulas.
No final da tarde, estava com duas páginas do caderno cheias de rabisquinhos, significando o número um.
Apesar de trabalhar na lavoura do algodão, não deixei minha tradicional caça às bolinhas coloridas pela manhã, depois tomava um café e seguíamos para a lavoura (aquela que ficava depois da casa do João Antiqueira).
Naquele mesmo espaço, na parte baixa, onde era mais úmido, papai cultivava o arroz e eu, na verdade não trabalhava muito, preferia dedicar meu precioso curto tempo de infância, em busca de frutos não comestíveis, que eu chamava de peito de passarinho. Tratava-se de um fruto semelhante a um pequeno pássaro (mais para um pombo), que uma vez aberto ao meio mostrava uma polpa de cores diversas, dependendo de seu grau de maturidade (o que posso fazer com as palavras?); quando estava bem verde era amarela, depois criava um tom avermelhado, depois vinho, roxa e quando bem madura, marrom. Devido minha curiosidade infantil, adorava abrir uma a uma.
Outra atividade era capturar folhas de uma pequena árvore, parecida com grande pé de boldo, pelo simples fato de verificar os desenhos formados nelas com as sujeiras dos pássaros ou fingir que era dinheiro.
Em poucos dias, como minha produção na lavoura não era a contento, papai pediu que ficasse em casa e só então, acompanhado por mamãe e os pequenos, seguia para a lavoura às onze horas. Mamãe levava duas grandes panelas, com o almoço para todos, além da roupa de escola de meus dois irmãos. Para mim pelo menos, que estava limpo e descansado, parecia pic-nic.
Meu primeiro livro escolar, que me deixou hiper apaixonado, comprado na cidade por papai, era a cartilha, responsável pela educação de 100% das crianças, desde a época de papai, até talvez a época de algum filho meu no futuro (já adivinhou?): “Caminho Suave”.
Em poucos dias, com a lição da barriga tomada ao pé da letra desde o be-a-ba, dona Jacira mandara como trabalho de casa, fazer a cópia desta lição no caderno.
E assim, quando fomos fazer a tarefa naquela noite, à luz de lamparina, percebi que havia levado por engano, o caderno de minha parceira de carteira. Fiquei triste e muito preocupado, pois a menina não poderia fazer sua tarefa, então comentei com mamãe que disse não ter problema e que no dia seguinte pedisse desculpa a ela e avisasse a professora.
Desta feita, enquanto caprichava em meu dever, Zeca estudava em voz alta, sua lição sobre lagos, rios e ilhas. Tudo normal para duas crianças estudantes, se não fosse…
…enquanto caminhava para a escola, às doze horas da manhã seguinte, acompanhado por meus irmãos, Joãozinho, Vanda e… a professora Jacira, que se hospedava na casa de Serafim, nem sei porque, mas comecei sozinho:
— Lago é uma porção de água cercada de terra por todos os lados… Ilha é uma porção de terra cercada de água por todos os lados… Rio é uma extensão de água que deságua no mar…
— Muito bem! — Disse-me a professorinha. — Como você aprendeu isso?
Já dentro da sala de aulas, coloquei o caderno de Claudia quietinho embaixo da carteira. Logo depois, a professora corrigia a tarefa dos alunos e chegado a minha vez levei o caderno a ela, que examinando, fez sinal de reprovação, depois riu dizendo estar tudo errado, apesar de perfeito: eu havia feito a lição, tal qual a cartilha, em letras de forma. Mandou-me sentar. Sorte não mandar refazer a tarefa no recreio, o que era comum quando o aluno não fizesse em casa.
Primeiro castigo escolar.
Ao chegar a vez de Maria Claudia, meu coração se assustou. Ela se levantou e disse:
— Dona Jacira, eu não fiz a tarefa porque esqueci o caderno embaixo da carteira.
— Então vai ficar fazendo no recreio, para não esquecer nunca mais.
A princípio fiquei calado. Mas… talvez conseguisse salvar minha colega. Por isso, também assustado, disse:
— Professora, a Claudia não esqueceu o caderno. Eu levei ele pra casa sem querer.
— Eu o levei para casa por engano – corrigiu-me a mestra. - Está certo. Então você ficará no recreio também, para aprender a prestar mais atenção no material dos companheiros.
Não ajudei em nada e ainda me prejudiquei. Dona Jacira era boa, mas não perdoava fácil. Apesar de minha ira, acho que ela tinha razão. Cuidar de uma sala com todas as séries juntas. Crianças sapecas entre sete e doze anos de idade tinha que ser ponta firme. Será que ela ganhava quatro vezes mais?
Quando corrigia de forma oral a tarefa da segunda série, um dos primeiros a ser consultado não soube responder e ela disse:
— Não tem vergonha não saber o que é isso? Até um menino da primeira série sabe! Celso venha cá!
Um pouco tímido ou assustado, segui até a frente e ela me falou:
— Diga para esse menino o que é lago!
— Lago… é uma porção… — tive pequena dúvida — de água…
— Está certo! — Confirmou ela.
— … cercada de terra por todos os lados.
— Diga também o que é ilha!
— Ilha… é uma porção de terra… cercada de água por todos os lados.
— E o que é um rio?
— Rio… é uma extensão de água doce que deságua no mar.
— Parabéns! Pode ir se sentar!
Voltou-se para o menino (Ricardo) e disse:
— Vai ficar no recreio para estudar melhor!
Quem sabe, devido a minha destreza, me perdoaria do castigo no recreio. Será?
E assim: quando os demais saíram para tal horário sagrado entre nós, dona Jacira ordenara que nós três ficássemos na sala. Era cruel, pois, além de deixarmos de comer nosso lanche, deixávamos também de brincar, que era a melhor parte daqueles trinta minutos de folga.
— Celso! — Chamou a professora.
Animado, achando que tinha me perdoado, levantei.
— Sim senhora!
— Aproveite seu tempo e refaça sua lição!
Sentei desanimado, apanhei meu caderno e a cartilha e lentamente refiz, agora corretamente toda a lição. Levantei, levei o caderno a ela, que corrigiu, depois me mandou voltar para a carteira; ao contrário de sempre: quando a criança ficava de castigo e terminava a tarefa, ela o liberava para sair.
Triste, tornei a me sentar e debruçar sobre a carteira, onde me lembrei do pedido de mamãe, então virei para a menina e disse:
— Claudia, me desculpe ter levado seu caderno…
Ela me olhou emburrada e disse:
— Não desculpo não!
— Celso! — Chamou dona Jacira.
Animado me levantei. Ela me deixaria sair.
— Deixe sua coleguinha em paz!
Tornei a me sentar emburrado.
Em seguida, Claudia se levantou, levou o caderno para a professora, que corrigiu rapidamente e a autorizou a sair para o resto do recreio. Ao mesmo tempo, após tornar a corrigir de forma oral a lição do outro menino, o autorizou a se retirar. Permaneci sentado de bruços sobre a mesinha, aguardando minha vez.
— Celso! — Chamou a mestra.
— Sim senhora! — Levantei-me rapidamente.
— Sente direito na carteira! Não é deitado não!
Tornei a me sentar. Acho que ela estava de marcação comigo.
Alguns minutos depois. Acho que o horário do intervalo já estava se esgotando; ela tornou a me chamar.
— Sim senhora! — Respondi sem me levantar.
— Levante-se quando chamar seu nome!
A obedeci.
— Você trouxe lanche?
— Sim! — Me animei.
— Pode comê-lo!
— Posso sair?
— Não! Coma na sala mesmo!
— Não estou com fome! — Neguei emburrado.
— Venha aqui!
Aproximei-me com lágrimas.
— Espero que tenha servido de lição, para ter mais cuidado com as coisas dos outros.
— Foi sem querer, professora.
— Não pode acontecer isso! É quase a mesma coisa que roubar.
— Mas eu já pedi desculpas a ela!
— Você é um bom menino! Vá se sentar!
— Não posso sair?
— Não! Seus colegas já vão entrar.
— Precisava ir na privada.
— Não se diz ir na privada. O correto é ir ao banheiro.
Balancei os ombros como quem sequer sabe o que viria a ser banheiro.
— Pode ir! Mas volte rápido.
Segui ao “tal” banheiro. Não estava mentindo. Precisava mesmo esvaziar minha bexiga. Naquele período do ano fazia muito calor e a gente, principalmente na roça, bebia muita água.
Em casa, mamãe me perguntou por que não comi meu lanche de pão caseiro (ela sabia que eu adorava pão caseiro). Zeca respondeu por mim, falando sobre o castigo e ao saber que foi devido o incidente do caderno, ela apenas riu.
As águas vão chegar.
O casamento de João Cardoso com Ruth se dera na igreja matriz São Francisco de Assis, da cidade, sem nossa importante presença. Papai alegava dificuldades, pois não tínhamos carro e então fomos apenas na recepção dos noivos, na casa de seus pais, próximo à casa de Tia Amélia.
Nessas ocasiões, mamãe me enfiava dentro de roupas bonitas: camisa de mangas compridas, calça também comprida e suspensórios para segurar a calça. Modéstia à parte eu até parecia um hominho chique.
A casa estava muito bonita, com a grande varanda dos fundos toda enfeitada, com muitas flores e ramos verdes. Duas cadeiras especialmente revestidas por tecidos rendados marcavam o local para os noivos recepcionarem seus visitantes.
Após jogarem arroz nos recém-chegados recém-casados, houve alguns comes e bebes à base de salgados, refrigerantes e cervejas, depois, animado por um sanfoneiro e um baterista sobre um pequeno e alto palco improvisado com mesa de cozinha, iniciou-se a valsa para os noivos e a seguir, baile até sei lá que horas.
De vez em sempre, nós meninos corríamos até a casa de tia Amélia e bebíamos café quente, que estava no bule sobre o fogão em brasas. Segundo dizia João, era para tirar o sono; então voltávamos ao baile; eu por voltar, pois nenhuma garota queria dançar comigo e pra falar a verdade, eu também não queria.
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Naquele período, todos os sitiantes, inclusive papai, receberam a visita de um homem, dizendo ser do governo estadual. Não era uma visita cordial; pelo contrário: muito séria e desanimadora.
Com a construção da usina hidrelétrica (que bicho era aquilo?) Do Salto do Avanhandava e outras tantos sobre o Rio Tietê, teria que represar as águas e tudo por ali seriam inundados; o Rio Lajeado desapareceria, os sítios seriam desapropriados e seus moradores teriam que deixar o local em um prazo máximo de dez anos.
Apesar do tempo ser ainda longo, aquilo desanimou de vez papai, que já andava mesmo querendo deixar a lavoura e se mudar para a cidade. Portanto, ao fazer a segunda colheita do algodão daquele ano, foi para a cidade, comprou um terreno na vila Jardim Brasília, próximo ao grande cruzeiro que era iluminado à noite, autorizou meus irmãos mais velhos a fazer a terceira colheita e ficar com o lucro. Não plantaria mais nada. Pelo contrário: não saía da cidade. Ficava a semana toda dormindo na casa de vovó e construindo a casa que deveríamos morar.
Zeca e Carlos, praticamente sozinhos, fizeram a terceira colheita do algodão e com um pouco do dinheiro que ganharam, compraram um bonito cavaquinho Gianinni, que passou a ser o fazedor de barulho da turma toda.
Uma manhã, Carlos me convidou:
— Vem comigo ver os passarinhos.
— Na floresta dos macacos? — Perguntei animado.
— Não! Na casa de Marinho!
— Nããão! — Neguei espantado.
— Por que não? Arranjei um filhote de periquito…
— Não quero ir!
— Tem medo de quê? Os passarinhos são mansos e a gente vai soltá-los. Vou ficar só com o periquito.
— Vou ficar em casa…
O menino, a faca e o porco.
A igrejinha que ficava no pátio da escolinha estava em festas e à noite, iluminada por luz elétrica, se realizava a tradicional quermesse de todos os anos, com muita bebida, salgados, frango e leitoa assada, pipoca, cestinhas de doces…
Apesar de ser fã de igreja e celebração religiosa, achava que aquela missa antes da festa estava demorando muito e como os demais pequeninos, não conseguia prestar atenção na conversa do padre, que insistia em louvar, cantar, agradecer, pedir para que os que estavam sem pecado, se alimentasse do Corpo do Senhor…
Para a criançada era o melhor dia do ano (melhor até que o natal), pois além de comer, inclusive doces, sem os pais reclamarem, tinha muita música, brincadeiras e o pátio todo enfeitado com bandeirinhas coloridas, semelhantes as usadas na bandeira de Santo Antônio, que mamãe enfeitava no mês de junho.
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Apesar de ter iniciado o ano bem na escola, não conseguia caprichar na letra. Não conseguia apontar direito meu lápis. Meus pais não ajudavam (eu também não pedia) e com isso a letra ficava grossa e torta.
Um dia, ao levar o caderno para dona Jacira corrigir a tarefa, ela atirou meu caderno longe, gritando:
— Que letra horrível!
Assustei-me, apanhei meu caderno jogado igual lixo no chão da sala e voltei para a carteira. Por sorte ela não me deu o segundo castigo do ano.
No final de semana, papai chegou da cidade, convidou o senhor José Antiqueira, que após a morte de tio Anor, passara a ser seu companheiro de castrarem ou matarem porcos. Ascenderam o fogão improvisado no quintal, puseram água para ferver em latas de óleo de 18 litros, improvisaram uma mesa com balaústres velhos, me chamaram junto a eles, escolheram um condenado no grande chiqueiro, arrastaram o infeliz para fora, deitando-o ao chão, abriram suas patas dianteiras, me entregaram uma peixeira que tinha a lâmina quase do tamanho de meu braço e Zé Antiqueira me disse:
— Você vai matá-lo. Coloque a faca bem debaixo do braço e enfie com toda sua força.
— Não pode ter dó! — Insinuou papai com certo sorriso. (Acho que ele não acreditava que eu faria).
Realmente, calado sério, encostei a lâmina da peixeira sobre o peito do bichinho, o senhor José Antiqueira colocou sua mão sobre a minha e reafirmou:
— Enfie com força sem dó. Senão ele não morre.
Forcei para que ele deixasse minha mão, entreguei a peixeira a papai e saí correndo assustado. Quem acreditaria que um menino de sete anos mataria um porco?
Da cozinha de mamãe, fiquei ouvindo os gritos agudos do pobre infeliz, que daria sua carne para nossa sobrevivência. Era seu triste destino, morrer para saciar nossa fome; mas não pelas minhas próprias mãos.
Dois minutos depois, seus gritos fortes foram se tornando mais lentos. Eram gritos cansados do pobre animal, que agonizava muito antes de morrer. Então era colocado sobre a plataforma, coberto por palha de milho seca e colocado fogo para sapecar o pelo e então raspado sua pele para limpar.
Depois vinha a parte mais trabalhosa: o desossar, separando a carne do toucinho (que viraria gordura e seria colocada em lata de 20 litros com os pedaços de carnes já fritos dentro), da barrigada (que viraria sabão), dos miúdos (fígado, coração, estômago) …
A bexiga, nós crianças usávamos para brincar… nós não! Eu sempre participava de tudo, mas desta vez estava tudo diferente: eu não queria ficar perto. Não queria a bexiga. Não queria assar o delicioso bife na chapa do fogão de lenha, pois já não me parecia mais delicioso. Não comeria daquela carne… nem mesmo da que virasse linguiça pelas mãos de mamãe, que moía, temperava e entubava (viria a ser de alimentos embutidos, tais como salsichas) nas tripas do próprio infeliz.
Dessa vez estava me sentindo culpado pela morte do pobre animal e não concordava que teria que ser assim.
E para os séculos seguintes, eu continuaria sabendo que todos nós, carnívoros humanos, sempre somos culpados da morte de infelizes, que sempre dão a vida para que nós possamos viver. Não importa se vou apenas comprar a carne já limpa no supermercado. Se eu me alimento com ela, é porque sou conivente com tal sacrifício e assim, também sou um matador.
Com isto papai estava acabando com nossas coisas do sítio, devido a decisão de mudarmos para a cidade. Eu, mamãe e meus irmãos, bobinhos como éramos, estávamos ansiosos pela mudança. Acreditávamos que seríamos mais felizes nessa nova vida (quanta ilusão). O sítio era um lugar escuro, onde faltava tanta coisa… na cidade sim era bom, luz elétrica, bares, mercados, vizinhos… por isto mesmo, aproveitando a visita do já bem velhinho, senhor Bento, vendedor dos deliciosos pães doce, com sua charanga de nem sei quantos anos, meus pais resolveram vender todas nossas galinhas, incluindo as d´angolas e os pintinhos (minha boiada).
Naquela sua provável última visita à nossa casa, o senhor Bento saiu carregado, já de noite, pois teve que esperar as galinhas se empoleirarem nos galhos da amoreira e principalmente as d´angolas que eram muito ariscas; tão ariscas que às vezes desapareciam e só voltavam depois de semanas, acompanhadas por um punhado de filhotes (elas construíam seus ninhos no meio do mato, onde chocavam sem que o intruso humano pudesse atrapalhar ou roubar seus ovos).
Antes de mudarmos para a cidade, ainda tivemos tempo de visitar meus avós e acabamos por encontrar meu tio Miguel, que era único irmão homem de mamãe e morava em São Paulo.
Ele era o homem das coisas elétricas, eletrônicas e novidades.
No escuro da noite, montou na sala de visita de vovó, seu projetor de imagens e fazendo uso de uma revista, gerava na parede suas fotografias, que todos nós achávamos o máximo e ficávamos boquiabertos.
De repente surge na parede a foto de um horrendo lobisomem.
Refeitos do espanto, papai insinuou para nós:
— Vocês que gostam de andar à noite no sítio. O dia em que encontrar um desses…
— É! — Concordou meu tio. — Isso é coisa feia!
E eu! Jamais encontrarei um lobisomem no sítio, mas que vou criar uma estória de vampiro… esperem e verão.
Saudades! Já?
De volta ao sítio, era de manhã e resolvi apanhar coquinhos saborosos. O coqueiro estava atrás do chiqueiro dos quase nenhuns porcos (papai estava acabando com tudo), assim que atravessava a cerca de arames farpados.
Assim, cutucando os cachos carregados com pedaço de taboca, derrubei bem um montão (para não falar uma centena) e enchi uma lata das de marmelada vazia, com tais frutos alaranjados, do tamanho de uma bolinha de gude. Então mamãe gritou que já era hora de almoçar para ir à escola.
Apesar de boa mãe, sua palavra sempre foi uma ordem entre nós e resolvi obedecer sem protestos.
Ao atravessar a cerca, por descuido, lá se foi minha coxa direita de encontro às farpas do arame e com isto, dois malvados cortes de tirar pedaço, bem na virilha, pertinho do saq… (quem mandava usar calça muito curta igual menininho francês!) Corri para casa chorando; mamãe, como sempre, me socorreu, limpando o sangue e passando mercúrio cromo.
Já imaginei estar livre da escola naquele dia, mas foi ilusão. Acabei de almoçar e ao dizer que não daria para ir, ela voltou a examinar o ferimento e dizendo que não sairia nenhuma tripa por ali (os adultos sempre falavam aquela bobeira), portanto não era motivo para se faltar, podendo ir normalmente à escola.
No retorno de papai da cidade, mamãe quis saber o quando de nossa mudança e ele disse faltar uma semana.
— Tudo isso ainda! — Reclamou ela.
Ah se eu pudesse voltar atrás!
Minha última semana de inocência.
E já que o assunto é aventuras (ou seria um drama?) Milhões de brincadeiras saudáveis ou até nem tanto, nos ocupavam em humilde vida de caipira, tais como fazer berrante com os talos das folhas de abobreiras, ou quase isso com os talos de capim amargoso, que também servia como canudo para fazer bolinhas de sabão, construir lindas mini fogueiras com os sabugos de milhos que os porcos devoravam, acender palitos de fósforos e até capim seco, fazendo uso de uma lupa de aumento direcionada ao sol da metade do dia, correndo o risco de incendiar o pasto seco pelo forte verão que acabara e até sentir medo de que embaixo da cama existisse algum gatuno escondido para nos assaltar durante a noite.
Embora contrariado, mas sabendo que os homens estavam na lavoura, segui com mamãe para nos despedir de dona Aparecida Antiqueira, que ao chegarmos, ouvia a rádio Aparecida. Era três horas da tarde e o padre Victor Coelho de Almeida celebrava a Consagração a Nossa Senhora Aparecida.
Enquanto ambas conversavam, eu prestava atenção nas palavras do padre…
Ó Maria Santíssima, que em vossa Imagem milagrosa de Aparecida espalhais inúmeros benefícios sobre o Brasil, eu, embora indigno de pertencer ao número dos vossos servos, mas desejando participar dos benefícios da vossa misericórdia, prostrado a vossos pés, consagro-vos o entendimento, para que sempre pense no amor que mereceis. Consagro-vos a língua, para que sempre vos louve e propague a vossa devoção. Consagro-vos o coração, para que, depois de Deus, vos ame sobre todas as coisas.
Recebei-nos, ó Rainha incomparável, no ditoso número dos vossos servos. Acolhei-nos debaixo da vossa proteção.
Socorrei-nos em nossas necessidades espirituais e temporais e, sobretudo, na hora da nossa morte.
Abençoai-nos, ó Mãe Celestial, e com vossa poderosa intercessão fortalecei-nos em nossa fraqueza, a fim de que, servindo-vos fielmente nesta vida, possamos louvar-vos, amar-vos e render-vos graças no céu, por toda eternidade.
Assim seja.
Pela intercessão de Nossa Senhora Aparecida, Rainha e Padroeira do Brasil, a bênção de Deus onipotente, Pai, Filho e Espírito Santo desçam sobre vós e permaneça sempre. Amém.
… então me voltei para as duas mulheres, que conversavam e disse-lhes:
— Quando crescer vou ser padre igual ao padre Victor!
Morar no sítio significava: brincar nu nos rios sem nunca sentir vergonha, correr pelos campos orvalhados, caçar com papai, pescar, colher legumes e frutos que nasciam sozinhos no algodoal, tais como maxixe, pepinos, melancia, tomate cerejeira e beldroega, que servia principalmente para brincarmos de tratar dos porcos, que se alimentavam de tudo, inclusive milho e abóbora; brincar no pátio da escolinha com todos os meninos, rezar na igrejinha, comer fruta diretamente do pé, fritar carne de porco diretamente na chapa do fogão de lenha, abusar dos macacos arteiros, prender as galinhas como se fossem vacas, brincar com o cavalo Bainho, brincar na tuia cheia de algodão, reunir todos os meninos dos sítios vizinhos, ter uma família muito unida, com papai e mamãe que sabiam amar e cuidar de seus filhos sempre com belo sorriso no rosto.
Durante aquela minha primeira infância, apenas uma vez papai me dera um tapa no rosto e eu jamais esquecerei. Nunca vi ele levantar a mão para qualquer um de meus irmãos. Mamãe jamais surrara qualquer um de nós (pelo menos que eu me lembre).
Eu era o menino mais feliz desse mundo… e assim, como a maioria das crianças… nem sabia.
Que sejamos felizes neste mundo novo.
E assim, no início do mês de julho de 1966, eu, sem que ninguém notasse (nem eu) acabara de completar oito anos de idade e então, manhã de domingo, por volta das dez horas, o caminhão do senhor Frederico, carregado com nossa mudança de pobre, seguíamos para a cidade, abandonando para sempre as delícias de se morar em local abençoado pelo Valente Menino Jesus.
Nunca soube porque, mas quando passávamos na estrada atrás da casa de Serafim, Joãozinho que era nosso amigo gritou:
— Já vai tarde…
Repito, era nosso amigo.
Era quase onze horas daquela manhã ensolarada e apesar de ser inverno, quente, quando o caminhão parara defronte nossa nova moradia, que consistia em sala, cozinha com fogão de lenha vermelho no canto esquerdo do fundo, dois quartos maiores e um quarto menor; um poço na saída dos fundos e uma privada no fundo do quintal, nos mesmos moldes que existia no sítio.
Outra coisa importante era a luz elétrica, uma mordomia a mais, deixando de lado a fraca iluminação por lamparina a querosene. Porém, as ruas do bairro ainda continuavam às escuras.
Mas nada de banheiro, que papai deve ter esquecido e então teríamos que continuar tomando banho de bacia, que apesar de grande, quase não me cabia dentro.
Mamãe esquentava a água, misturava com água fria, eu me despia por completo, sentava na bacia e ficava muito tempo brincando com o sabonete; até que ela gritasse várias vezes que os outros também precisavam de banho. Além do mais, sempre alguém de nós, ajudava papai a lavar suas próprias costas. Não sei o porquê, mas eu não gostava dessa obrigação.
Como criança é sempre criança, e curiosa, nossos primeiros visitantes, que até ajudavam a descarregar o caminhão e geralmente se enrolavam conosco sobre os velhos colchões de palha de milho, eram (embora eu ainda não soubesse o nome): Regina, branca de cabelos curtos e pretos, que morava ao lado direito de nossa casa, cercada por bambus; Toninho, Valdir e Sidnei, também brancos de cabelos pretos, que moravam na casa seguinte a da Regina; Irineu, que morava no fim da rua, cerca de uns 300 metros (ainda não tinha aprendido o que era metro); Milton e Sueli, que moravam na primeira casa, do lado esquerdo da nossa, assim que passasse dois terrenos baldios (vazio). Ali mesmo já dava para saber quem seria Toninho, que brigava com todo mundo, inclusive com Irineu.
Percebendo aquilo, resolvi intervir:
— Não brigue com ele não, coitado! Não está fazendo nada!
Antes do meio dia, chegou minha prima Sônia, com um caldeirão, uma panela e uma marmita, com o almoço mandado por minha avó materna, que sem muita demora devoramos e voltamos ao trabalho de montar as camas e outras coisas, que apesar de ser de pobre, vale ressaltar que, por serem móveis antigos, eram construídos com materiais de qualidade, por isso o guarda roupa, o armário de cozinha, o armário de sala tipo bufê, as mesas, cadeiras e as camas, além de pesados, eram muito resistentes e bonitos, construídos de madeira pura na cor vinho em verniz.
Naquela primeira infância eu jamais me ostentara para o trabalhão que pessoas tiveram para construir nosso então palácio da cidade. Para a criança que eu era, aquilo teria surgido assim de repente, do nada, como em um passe de mágica e somente no futuro eu viera a descobrir que o querido vovô João Zaninne, todas as manhãs, com outras pessoas, seguiam para a construção de tal local e que, lá pelas onze horas da manhã, vovó Maria Pereira mandava para ele, pelas pernas e braços dos primos José Luís e Ivana, ou a própria Sonia, a marmitinha de seu almoço. Para aquelas crianças (meus primos), que não tinham mais do que nove anos de idade, era um sacrifício danado tal tarefa de todos os dias. Que sacrifício nada! Eles adoravam tal passeio de três quilômetros só de ida e até se deliciavam com a sobra do almoço que vovô (acho que de propósito) deixava para eles na marmita.
Nos primeiros dias, me distraía ouvindo e muitas vezes correndo longe, para presenciar o apito e a passagem da bonita Maria fumaça, que cortava praticamente o meio de nossa querida Penápolis, toda empolgante e graciosa, com sua frente parecendo mesmo ser um grande rosto com olhos, boca e nariz, parecendo até piscar para nós e continuar majestosa como em belo desfile, que fazia todos pararem para assisti-la.
Tratava-se de empolgante trem de carga, inclusive gado (o embarcadouro estava como um circo, armado no cruzamento da Rua Amazonas com Rui Barbosa). Muitas vezes ela transportava passageiros, com seu famoso motor a vapor, onde o maquinista não podia esquecer de abastecê-la constantemente com lenha de eucalipto.
Com o passar dos dias na cidade, me sentia às vezes muito triste, pois, apesar dos amigos que estava conquistando rapidamente como toda criança faz, sentia saudade de tudo que tínhamos no sítio, principalmente de minhas buscas diárias pelas bolinhas coloridas no campo orvalhado pela manhã e com isto, apenas uma vez, talvez por benção do Valente Menino Jesus, quando acordava bem cedinho, recebi de presente, o quarto em que dormia acompanhado por três irmãos, repleto de milhares de bolinhas coloridas, que caiam do teto novo de nossa casa. Era tão lindo, que, mesmo ainda deitado, forçava em vão para capturá-las. Isso mesmo: em vão, pois ao apanhá-las, desapareciam da mesma forma em que surgiam.
Durante os milhões de dias que surgiram depois, tentei rever as bolinhas coloridas de meu saudoso sítio, da aurora bonita de minha infância (copiei), mas acho que elas apareceram naquela manhã apenas para dizerem adeus e que eu já não era mais uma criancinha Innocente (oito anos, já era quase um adulto).
O resto de nossas coisas do sítio, incluindo o lindo cavalo Bainho, somente cinquenta anos depois (7 de Dezembro de 2015) é que conheci o seu comprador: Ademir Gouveia, filho do senhor Joaquim Gouveia, que na época eu já conhecia de ouvir falar.
Segunda-feira, primeiro de agosto de manhã, acompanhei de perto, mamãe, com carinho, fazendo uso de ferro à brasa, colhida do fogão de lenha, passando nossas roupas escolares, composto por short azul marinho e camisa branca, com emblema “Grupo Escolar Marcos Trench”, no único bolso, que ficava do lado esquerdo.
Meio dia e meia, até parecendo anjinho, todo uniformizado e calçando o famoso conga azul com faixa branca, que papai com sacrifício comprara (os calçados de nossa época eram conga ou alpargatas rodas; fora disso, chinelos de correia ou descalço), acompanhado por Zeca e Carlos, entrava pela primeira vez naquela escola da cidade, localizada na rua Minas Gerais, duas quadras depois da casa de minha avó.
Uma escola muito grande e bonita, com dois pavimentos de salas de aulas, toda revestida externamente por bonitas pastilhas brancas; por isso tinha o apelido de “jegue”. Eu, menino bobinho, acostumado a escola de apenas uma sala de aulas, me apavorei diante de tamanho monstro escolar. Tinha medo da escola, dos alunos (que eram crianças como eu), do inspetor, do diretor, dos professores…
Um menino que, apesar de bem alto e talvez até mais velho, estudava também na primeira série e estaria na mesma sala de aulas, junto comigo; me vendo assustado, com meus dois irmãos, gentilmente se aproximou e perguntou:
— Você está com medo?
Não respondi.
— Não precisa ter medo! A dona Alice é muito boazinha. Você vai gostar!
Quando soara o sinal de entrada, meus irmãos seguiram para a fila de suas segunda e quarta série e eu, grudado em meu recente amigo e protetor, fui em busca de minha fila da professora dona Alice.
Por segurança, os alunos do curso primário (primeira à quarta série) estudavam no pavimento inferior e os do curso ginasial (quinta à oitava série), no pavimento superior, pois tinha lances de escadas para subir e criancinhas poderiam se acidentar.
Meu pavor foi logo sendo controlado; pois, dentro da sala de aulas, estava apenas com crianças de minha idade; aliás, até menores, pois eu entrara atrasado na escola e uma professora branca, um pouco acima do peso, de cabelos negros encaracolados, muito simpática, que fez questão de me apresentar com carinho a meus novos coleguinhas de estudo, que felizmente me aceitaram muito bem (lógico, crianças recebem criança bem).
Durante o intervalo do recreio, a maioria desses coleguinhas me cercaram para especular (é isso…) sobre a vida do sítio. E no final da tarde, tinha dezenas de novos amiguinhos e o pavor da escola da cidade tinha desaparecido para sempre. Já estava tão à vontade, como se estivesse na escolinha de apenas uma sala de aulas.
Amigos da cidade!
A primeira tristeza da cidade apareceu logo pela manhã, quando percebemos Piloto muito amuado, não se levantando nem para beber leite e algum tempo depois, vomitando até sangue e muita espuma. Papai resolveu levá-lo aos cuidados de um farmacêutico (acho que ainda não existia veterinário). Após um pequeno exame, o homem lhe disse:
— Esse cachorro está envenenado.
— Não temos veneno em casa! — Negou papai.
— Acha que ele pode ter comido sapo ou rato envenenado?
— Piloto não come rato! Muito menos sapo! — Negou papai.
— Então alguém lhe deu bola de carne envenenada. Não tem jeito!
E realmente não teve. Antes do horário do almoço, Piloto já estava morto e fora enterrado na pequena selva, que se fazia atrás de nossa casa. Aliás, uma de minhas distrações na cidade era esse lugar, que tinha semelhança com a velha floresta dos macacos arteiros. Só que em tamanho, inclusive das árvores, menor.
Nessas distrações, contava sempre com a companhia dos amigos vizinhos, que agora já tinha separado por família. Quando cheguei na cidade, achava que eram todos irmãos.
Os dois principais parceiros de brincar era o Toninho e a Regina. O Toninho, apesar de amigo, era meio invocado e a gente brigava muito, inclusive de sopapos. Foi ele o primeiro (e acho que único) a brigar comigo, nas bases de socos; mas em bem pouco tempo (questão de horas), voltávamos a ser amigos. Regina, de minha idade, era parceira de toda hora: estava sempre em casa e brincávamos de esconde-esconde, casinha, escolinha, papai e mamãe, mamãe e filhinho (ela sempre era mamãe). Gostava muito de conversar, era muito desinibida e tinha muitos assuntos.
Outros amigos surgiram com o passar dos dias, como Lourival (Valter), Leila, Vera, Valdecir (quatro irmãos); José Carlos, Ademir, Neuza (três irmãos); José Roberto e uma porção, que foge da memória.
Apesar da falta que o sítio significava em minha infância, uma boa herança ainda trazíamos conosco. Todas as noites, já deitados para o repouso, em ordem (ou fora também), cada irmão se despedia assim:
— Benção pai!
— Deus te abençoe! — Respondia ele.
— Benção mãe!
— Deus te abençoe! — Respondia ela.
Devido ao sacrifício dos banhos de bacia, papai resolveu construir um banheiro, nos mesmos moldes do que existia na casa de vovó Aurélia. Levantou quatro paredes do lado de fora de nossa cozinha, colocou uma porta, instalou uma carretilha com corda, amarrando um grande balde com o fundo furado e soldado um bico de regador com um registro…
Agora sim iríamos tomar banho decente, pois na bacia, acho que papai nunca lavava as partes proibidas. Eu era criança… meus irmãos menores também… então tudo bem nos despirmos e ficar pelados diante da família, mas, principalmente papai, mamãe e meu irmão Carlos, já com doze anos, queriam a tal privacidade (que nada tinha a ver com o substantivo derivado de privada).
Agora, semelhante ao banho de bacia, mamãe esquentava a água na chaleira de ferro fundido e misturava com água fria no chuveiro improvisado, depois levantava o danado e o banho tinha muito mais alegria e resultado.
Também, assim como nos visitava no sítio, vovô sempre aparecia em nossa nova casa, o que era sempre motivo de alegria para todos. Ele era um homem muito calmo e bom e sempre nos visitava aos domingos, uma semana sim, a outra não. Quando ele não vinha, éramos nós: eu, mamãe e os irmãos menores que íamos a sua casa, a aproximadamente 3 quilômetros (logo eu aprenderia isso).
O que mais nós gostávamos em ir à sua casa era o bar de dona Florzina, uma senhora baixinha, simpática e bem idosa, que ficava a apenas meia quadra da casa de vovó. Mamãe sempre nos dava dinheiro para comprarmos um doce do tipo que desejássemos (não existiam barras de chocolates caras).
Na parede frontal do bar existiam placas de propaganda das principais bebidas da época; refrigerante ou cerveja: “Quem bebe Grapete repete”. Eu é que não bebo isto! Pensava ignorante eu. Não quero repetir! Achava que repetia o ano escolar (quanta burrice!). “Crush, a sua laranja do verão”. “Cerveja forte é assim: Caracu”.
Outra ignorância de menino bobo do sítio, era não conseguir compreender o porquê dos proprietários, colocarem uma plaqueta acesa em cima de alguns veículos escrito tachi (táxi).
Já em casa, vovô sempre contava suas aventuras da mocidade; da época em que era solteiro e morava com seus pais Fernando e Luiza Vendramini, em Cravinhos e fazia suas compras em São Simão, na região de Ribeirão Preto. Fazia questão de frisar que Ribeirão era distrito de São Simão e que agora a situação está invertida. Gostava também de narrar suas andanças por toda região no transporte de boiada, montado durante muitos meses no lombo de belos cavalos boiadeiros… eu fazia questão em prestar atenção nestas histórias (até parecia que adivinhava que conheceria este mesmo mundo em futuro distante, substituindo o lombo dos alazões, por um punhado de cavalos presos nos motores dos carros modernos).
Mamãe nos contava com orgulho, que vovô já teria lido a Bíblia Sagrada de ponta a ponta, desde o Velho Testamento em Gênesis, o Novo Testamento, até Apocalipse.
Caminhão incrementado!
Nossa bela escola tinha um pequeno problema (que era grave): as torneiras instaladas para as crianças beberem água ficavam sobre uma plataforma de um metro de altura do chão (altura de uma mesa). A criança, geralmente tinha essa faixa de altura, talvez um pouco mais. Geralmente uma ajudava a outra a subir; o local ficava sempre inundado, pois o ralo de escoamento da água desperdiçada estava no chão e a plataforma, por ser de pastilhas de piso, era muito escorregadia (acho que ninguém se preocupava com os cuidados com crianças pequenas).
E foi assim que, ao tocar o sinal de fim de recreio, apesar da ajuda de um coleguinha de classe, que me puxava pela mão, talvez por não conseguir me segurar, escorreguei sobre a pastilha lisa e foi o chão quem me segurou. Machuquei o joelho direito e molhei toda a camisa branca e calça curta azul do uniforme.
Talvez por vergonha dos coleguinhas, não chorei e nem sendo percebido pelo inspetor de alunos (que não era muito de se preocupar conosco), com a ajuda de uma menina da sala (ainda não decorara muitos nomes), fui até a única torneira que ficava no pátio (a gente não bebia água dela, por ser quente e ter enorme fila de crianças que tinham medo da tal marquise, principalmente meninas, que usando saias não se atreveriam a tal vexame), lavei o que deu de minhas pernas e braços, retornando juntos à sala de aula e pedindo licença para a professora, pois os demais colegas já estavam sentados.
Se no sítio papai era agricultor, na cidade teve que trocar de profissão e trabalhava agora de pedreiro em uma construção, junto com João Cardoso, que também abandonara o sítio e comprara um pé de bode (espécie de carro ximbica), com pequena carroceria para carregar o material de trabalho. O interessante é que morando na cidade acabaram por pegar uma construção no sítio, próximo de onde a gente morava e João levava sua esposa Ruth para cozinhar para eles, passando a semana toda no sítio, retornando para casa apenas no sábado à tarde.
Meu irmão Zeca iniciou uma coleção de caixas de fósforos vazia e construiu um belo caminhão tipo Ford, com mais de um metro de comprimento, tendo a cabine de latas de óleos cortadas e trabalhadas; carroceria de pedaços de ripas que às vezes papai trazia de suas construções; dez pneus de borracha, que ele encontrou de uma velha máquina abandonada e que dera certinho para seu caminhão; motor cheio de ferros que prendia os trilhos da ferrovia aos dormentes (dizem que este é o nome da madeira que fica sob os trilhos. Deve ser mesmo, pois só ficam ali paradinhos, como dormindo por centenas de anos), que estavam sendo substituídos, devido o fim de vida útil; dobradiças pequenas para prender e fazer abrir as laterais da carroceria, capô que abria de verdade, tanque de combustível feito com frasco vazio de óleo lubrificante Singer; a princípio, tampinhas de creme dental, fazendo o farol; depois estes faróis foram substituídos por lâmpadas de farolete, utilizando pilhas dentro do motor, fazendo os faróis ascenderem realmente; para-choques com pedaço de ferro de construção; para barro com borracha de câmera do pneu de caminhão (chega de explicar senão demora); mas o danado do fordão ficou muito bonito e ele o carregava com sua coleção de vazias, amarrando com fieira de pião.
Em poucos dias, Zeca desistiu de sua coleção e me deu tudo de presente. Foi o melhor presente que ganhei nos últimos oito anos (do Zeca pelo menos, pois o caminhão que ganhei de vovô superava este).
Contada (eu já sabia contar um montão), tinha mais de 700 caixinhas de todas as marcas, porém, de um único modelo e eu, com autorização de mamãe, as guardava na sapateira de nosso quarto, jogando todos os sapatos debaixo das camas.
Uma das utilidades das caixinhas, eram belas igrejinhas que eu construía, colando uma sobre as outras e depois, encapando-a com papel brilhante, além de colar imagens de santos em seu interior e imaginando fazer até quermesses diante dessas igrejinhas (26 caixinhas para construir uma igrejinha). Viadutos, casas, cadeiras, mesas e mil outras coisas, eram também criadas com as caixinhas.
Minha irmã Nezinha já estava crescendo e com seis anos de idade, fazendo uso da bicicleta grande de papai, desceu toda torta a rua esburacada de frente de casa, quase caindo, mas com sucesso de criancinha muito jovem, que me causou inveja. Com muita facilidade a menina aprendeu a andar, enfiando as pernas por dentro do quadro (já que por cima suas pernas curtas não alcançariam os pedais) e pedalando com muito jeito passou a dar voltas sobre o quarteirão inteiro.
É lógico que sendo homem, precisava provar que ela não seria a única esperta de casa.
Pedi a bicicleta e comecei todo desengonçado, a labuta pelo poder do homem sobre a máquina. Na primeira tentativa o tombo foi razoável…, mas como nem me feri, tentei novamente, caindo sobre o primeiro buraco de nossa Rua Quatro. O perigo estava mais em quebrar o farol de dínamo da bicicleta Philips de papai, do que minhas próprias pernas.
Minha irmã me apoiava e dava conselhos diversos: “Vai reto! Não deixe o guidão virar! Cuidado com o buraco…”.
Cinco tombos depois, apenas dois joelhos sangrando e a bicicleta intacta, consegui, com a perna enfiada por baixo do quadro, dar uma volta completa no quarteirão de nossa casa. Minha irmã menor aprendeu primeiro e foi minha professora de ciclismo, que então passaria a ser meu principal brinquedo das horas vagas.
Se na escolinha do sítio estivesse com algum problema, devido ao pouco tempo que dona Jacira tinha em proporcionar a cada aluno, no Marcos Trench a situação se revertera e graças à dedicação de dona Alice, consegui uma caligrafia aceitável e aprendia com sucesso toda a sequência da cartilha “Caminho Suave”. O que eu achava o “máximo” era os carimbos que a amável professora marcava as folhas de meu caderno.
Exame final!
Com velocidade incrível o final do ano chegara e a escola marcara para o período da manhã do dia 21 de novembro, segunda-feira, nosso exame final. Com isto eu estava escalado para fazer o exame separado de meus irmãos; portanto às sete horas da manhã daquele dia em que o Sol nascera mais bonito, já estava na escola e enquanto aguardava assustado o início da prova, João Carlos dos Reis, inspetor de alunos, que tinha um carinho especial por mim, mas gostava de conversar e reparar a vida dos garotos, apontara para José Carlos (ele fora meu incentivador no primeiro dia de aula na cidade) e dissera:
— Aquele ali, não usa calça nem curta nem comprida. Usa pula brejo. Acho que o defunto era maior.
Não entendi. Não gostei. Dei um sorriso sem graça, com jeito de reprovação e me retirei. Jamais teria reparado que a calça comprida de meu colega de classe estava um pouco curta na barra.
O exame final começou antes das sete e meia da manhã e com isto a ansiedade quase desapareceu depois que as duas professoras, inclusive por sorte, dona Alice, recomendou que não devêssemos conversar, nem olhar para o lado e nem ficar nervosos, pois a prova seria fácil. Nada diferente do que tivéssemos aprendido durante o ano. Distribuiu as folhas arrancadas de caderno de brochura fornecido pela prefeitura, então iniciamos a prova que tanta ansiedade nos trouxera nos últimos dias.
— Façam de conta que é um dia normal de aulas e respondam as questões como sempre fizeram — disse a amável professora.
Antes das dez horas, todos já haviam concluído todas as provas e fomos então dispensados, para retornar à escola apenas na próxima segunda feira, no horário normal de aulas. Nos próximos dias, as outras séries estariam fazendo seus exames. Nós fomos os primeiros, por sermos da primeira série.
Como me levantei muito cedo para ir à escola e já não era mais acostumado, como no sítio, que todo dia levantava antes das seis horas; naquela tarde, sem ter o que fazer (criança sempre tem o que fazer), acabei por cair na cama e em poucos minutos estava dormindo.
Acordei quando já se iniciava a noite e encontrei papai na varanda de entrada de casa (não havia comentado que papai fizera uma varanda). Ele se sentou em uma de nossas antigas cadeiras verde e tirou o sapatão.
— O senhor não vai trabalhar hoje, papai!? — Perguntei admirado.
— Trabalhar mais!? — Riu ele. — Estou morrendo de cansado!
Ao acordar naquele horário e por não ter este costume, acreditava que o dia estava amanhecendo, quando na verdade, as trevas da noite acabaram de cair sobre a terra do Brasil, levando sua luz lá pelos lados do Japão.
Papai continuava trabalhando com João Cardoso na construção, mas neste período do ano fazia uma casa na cidade.
Uma semana inteira longe da escola, dava tempo suficiente para brincar, brincar e brincar… tudo o que um menininho tinha em mente, era se programar para brincar bastante.
Regina era minha principal parceira dessas ocupações. Com velha máquina de passar veneno de papai, representando uma tevê (ninguém tinha tevê naquela época; mas nossa casa de brinquedo tinha, com antena de bambu); pedaços de vigotas que papai trazia das construções eram os bancos ou sofás; lata de óleo vazia era o fogão e outras bugigangas representando armários, mesas, camas… Assim tínhamos nossa casa: ela era a mamãe e eu o papai; ela cuidava de nosso filho (uma velha boneca, ou boneca de espiga de milho) e eu cuidava de ganhar dinheiro, com meu trabalho na companhia de força e luz, onde os postes eram as estacas da bonita parreira que mamãe já conseguia cultivar no fundo do quintal (embora ainda estivesse muito nova) e pedaços de sabugos presos por palitos de bambus eram as lâmpadas.
Regina era assim, espécie de meu amor de menino, embora nosso casamento não passasse de um simples pegar nas mãos. Passávamos praticamente todo nosso tempo livre juntos, nos separando apenas na hora de ir para a cama, onde eu ia para a minha e ela para a dela, na casa ao lado.
Um grande pecado.
Regina era bela e muito esperta, além de que, ficava o dia todo em casa, brincando e conversando. Por sermos da mesma idade e por praticamente não existir meninas na vizinhança, me tinha como principal amigo.
Outro amigo principal era o Toninho, mas nossas brincadeiras eram sempre na rua, quase nunca íamos à casa um do outro e brigávamos bastante também. Brigava agora, dez minutos depois estávamos amigos novamente e nossas brigas eram até violentas, mas eu nunca tivera coragem em dar-lhe um murro, mesmo que conseguisse dominá-lo. No máximo, alguns puxões de orelha. Já ele, valentão, não tinha piedade e muitas vezes eu saia com sangue escorrendo pela face.
Aproveitando a folga das aulas, era quase de tarde e como Regina se fora, sozinho, de calça curta, sem camisa, fazendo uso de uma caixa de fósforos vazia, estava na rua defronte nossa casa, perseguindo as infelizes vespas, que talvez para fugir do terrível calor de quase 40 graus, que torrava tal local em época de verão, em questão de segundos, cavavam rapidamente pequena toca na rua de terra dura, entrando para se refrescar. Com isto me aproximava sorrateiramente, colocando a caixa aberta sobre sua toca e fazendo uso de um talo de capim amargoso, introduzia sobre tal buraco, forçando a infeliz a abandonar o local, acabando presa sob a caixa que era imediatamente fechada, depois levada ao ouvido, onde seu desespero em tentar escapar, funcionava como música cruel para tal anjinho da cara suja.
Depois de alguns minutos, percebendo que a pobre vespa, sem muito oxigênio em presídio apertado, acabaria morrendo, abria lentamente a caixa, deixando que a pobrezinha, encontrando a saída, voasse apressada, sumindo para jamais voltar a aquele local perigoso.
De repente, lá da casa da esquina de cima, abrindo seu portão surgiu Toninho, que tomando à rua, já iniciou seu jeito provocativo:
— Ei Cido mariquinha! Tá brincando de quê?
— Mariquinha quem me chama! — Protestei com a cara vermelha de suor.
— Quem é que só fica brincando com menina? — Insistiu ele na provocação.
— Não brinco só com meninas!
— Com quem que você brinca a toda hora? Com a Regina.
— Brinco com quem quero! — Reclamei, já um tanto bravo.
— Quem brinca com menina é mariquinha!
— Cala a boca seu filho da... — Pensei e para não falar palavrão completei. — ... Mãe.
Do jeito que ele chegou valente, já me desferiu um forte soco na cara, fazendo com que o sangue escorresse pelas narinas, pintando meu peito nu em vermelho escuro.
Nervoso e para revidar, grudei sobre tal agressor, traçando-lhe uma rasteira, levando-o ao chão, montando sobre ele e com a mão esquerda grudada em sua garganta e punho direito cerrado fortemente, agitei-o com todas as forças de meu frágil músculo, esfregando contra seu nariz, ameaçando esmagá-lo, porém me acovardando ao final, sem, contudo, o atingir.
Naquele instante, surgiu mamãe, que arrancou uma varinha verde de mato e veio gritando. Deixei o menino; ela me segurou pelos braços e me surrou forte, sem piedade, com mais de dez varadas finas nas pernas nua e bunda, levantando diversos vergões.
Com raiva (principalmente por Toninho sair rindo alto) e pelas dores das fortes varadas, que me deixava ainda mais nervoso, descontrolado, acabei por tomar a varinha das mãos de mamãe, avançando contra ela, ameaçando surrá-la com a própria arma. Mas quando fui fazer, acho que meu coração (que doeu forte) disse na hora o pecado que estava cometendo e parei. Devolvi-lhe a varinha e ela voltou a me surrar… como nunca fizera antes (nunca mesmo! Só apanhara uma vez e fora de papai).
Ela só parou com aquelas varadas cortantes, quando minha bexiga de menino que se esquece de ir ao banheiro, resolveu protestar, deixando toda a urina acumulada escorrer por minhas pernas abaixo.
Minhas pernas, braços, costas, peito e bunda, ficaram cheio de vergões, que levariam uma semana para sumir. Enquanto chorava triste arrependido em minha cama (triste por ter apanhado e por ter ameaçado bater em mamãe), Zeca se aproximou e disse zombeteiro:
— Viu só o que dá querer bater em nossa mãe! Bem feito! Vai acabar indo pro inferno e virar sabão dos capetas!
Ir pro inferno! Justo eu que queria ser padre!
Sabão dos capetas! Aquilo me deixou assustado! À noite até sonhei com o tal bicho e realmente existia sabão sendo produzido com meninos maus (diria arteiros), no qual, à margem do tacho, em cima do sabão ficava em relevo, a forma correta do pipizinho do infeliz, para aprender a não fazer mais xixi nas calças.
Três horas da tarde seguinte, acompanhado por Toninho (que voltara a ser meu amigo), sem mais o que fazer, fomos rodar um velho pneu abandonado, da charanga de João Cardoso, correndo muitas voltas sobre o quarteirão de nosso bairro.
Enquanto um dava uma volta, o outro descansava, pois, a tarefa era árdua e o calor de final de novembro, insuportável.
Pouco tempo depois mamãe mandou que parássemos com aquilo, pois estava muito quente e nós estávamos além de molhadinhos de suor, vermelhos iguais a peru peladinho (não peru de criança e sim ave que faz gluglu).
Sendo assim, fomos tomar água no pote de minha casa, depois retornamos à rua, sentando no banquinho de madeira de frente de casa e permanecemos conversando por alguns minutos.
Regina, que estava dormindo, resolveu aparecer e sentou-se a meu lado, perguntando:
— Já é amigo do Toninho de novo?
— Sou! Por quê?
— Não foi ele quem chamou você de mariquinha porque brinca comigo?
Um tanto indeciso apenas balancei os ombros e ela resolveu mudar de assunto, contando pequenas histórias de bichos do mato, tipo assombração. Ela era uma menina esperta e nada temia.
Já no finalzinho da tarde, acompanhado por Nezinha, fui descascar e chupar cana dentro de meu quarto (modo de dizer, pois era repartido com Zeca, Nezo e Bê). De repente, nem sei de quem surgiu a tal ideia: tanto Nezinha quanto eu, atirávamos as cascas e bagaços através de nossa janela, direto pela janela da casa de Regina, fazendo com certeza, uma baderna no quarto de minha amiguinha.
Mas aquela brincadeira maldosa não foi muito longe, pois dona Maria (mãe de Regina), tão logo descobriu, aprontou um grande berreiro, nos chamando de todos os nomes, menos de santo.
É lógico que nos arrependemos na hora de tal travessura sem razão e é claro que mamãe logo percebeu a gritaria e correu, a saber, do que se tratava. É lógico que a primeira cinta que apareceu em sua frente foi à arma ideal para a tal punição sem piedade.
Primeiro foi a vez de Nezinha, que levou mais de dez cintadas pelas pernas, bunda, costas e qualquer outro lugar que a cinta maldosa acertasse, enquanto que eu, ainda cheio de vergões da surra anterior, ficara de lado, com o coraçãozinho assustado, esperando chegar a minha vez.
Depois… bem… depois… sei lá o que aconteceu: mamãe abandonou a cinta e se retirou do quarto, dando-se por cumprida sua missão de corrigir os filhos. Nezinha, embora chorando muito, jamais me denunciou e foi punida sozinha por maldade de nós dois.
Com essas pequenas atividades, passou-se a semana de folga da escola.
Na segunda-feira ao meio dia e meia, entrávamos novamente na sala de dona Alice. Não só eu, mas todos os amiguinhos estavam ansiosos para saber a nota do exame realizado há uma semana.
Ali, naquele dia, saberíamos quem passara para a segunda série e quem (tadinho), teria que refazer todo o ano novamente.
Dona Alice, sem fazer muito mistério, fizera a chamada rapidamente e então anunciou:
— Sei que vocês estão com o coraçãozinho ansiosos para saber a nota do exame. Não precisam ficar muito ansiosos, pois todos passaram para o segundo ano.
Houve até uma explosão de risos de alegria. Todos se descontraíram.
— Infelizmente no ano que vem não estarei mais com nenhum de vocês. Mas não se preocupem, tanto dona Maria do Carmo, como dona Mercedes (as duas professoras da segunda série) são ótimas pessoas, adoram crianças e vocês estarão bens.
Depois daquele dia em que não tivemos atividades na escola e recebemos todo nosso material guardado no armário de dona Alice, para levarmos para casa: um batalhão de cadernos de brochura, caligrafia, desenho, folhas soltas e trabalhos em cartolinas… só retornaríamos à escola em primeiro de fevereiro do ano seguinte, uma quarta-feira. Seriam mais de dois meses de férias.
Aproveitando nossas férias, como João Cardoso não poderia ajudar papai em um serviço de piso, feito com vermelhão na casa do senhor Sebastião Sueca (o homem que queria nos castrar no Lajeado), ele resolveu me levar consigo para ajudá-lo.
Adorei a ideia de retornar ao sítio e assim passei uma semana longe da cidade, sendo bem cuidado, principalmente pela parteira dona Olívia, que devido o dom de Deus de trazer crianças ao mundo, tinha um carisma especial por esse bichinho arteiro.
Quase não ajudava papai, pois franzininho de oito anos de idade, não aguentava quase com o peso da enxada, quanto mais preparar massa de concreto! O máximo que fazia, era carregar alguns tijolos e ficar olhando-o em deixar o chão que antes era de terra batida, se transformar em piso vermelhinho.
Papai sim trabalhava muito: desde cedinho, por volta das sete horas, até o sol ir embora; e olha que nesse período do ano, devido horário de verão, o Sol só ia embora depois das oito horas da noite.
Eu acabava me divertindo com caminhadas até a estrada e muitas vezes até o rio Lajeado, que não era muito longe (em torno de 200 metros), onde aproveitava para colher uma tal de “olho de cabra”, frutinha dura igual pedra, nas cores vermelhas e pretas, as quais os adultos utilizavam para marcar ponto em jogos de truco. Também colhia outra frutinha dura, em cor branca acinzentada, que as mulheres diziam chamar, lágrimas de Nossa Senhora, as quais serviam para fazer preciosos colares ornamentais (o que que é isso?) e rosários.
No sábado, papai terminou o serviço e minha mordomia acabou junto (como uma semana passa rápido quando a gente está ou faz o que gosta!) Voltamos para casa, aonde continuaria minhas férias…
Dono de casa.
Mamãe, para aproveitar as férias de meus irmãos, com intuito (ainda não era expert nisso) de ajudar papai nas despesas de casa, resolveu convidar meus dois irmãos mais velhos e trabalhar na lavoura. Com isto, toda manhã, seguia com caminhão de boia fria para o sítio, deixando a casa e as crianças pequenas (Bê tinha pouco mais de três anos de idade), sob minha responsabilidade.
Eu levantava antes dela seguir para a roça (antes das seis horas), misturava feijão no resto do arroz delicioso que ela fazia para suas três marmitas, fazendo daquela delícia, meu café da manhã.
Papai seguia para seu trabalho na construção pouco depois das sete horas. Meus irmãos acordavam entre oito e nove horas. Nesse tempo, eu já havia lavado à louça da manhã, pois a louça da noite, mamãe, para não me sobrecarregar de trabalho, lavava à noite mesmo. Já tinha também, arrumado as camas desocupadas e varrido a casa.
Minha irmã, já com quase sete anos, me ajudava em algumas atividades, como fazer mamadeira para Geraldo e Bê e até jogar milho para as galinhas (ainda não mencionara isto, mas na cidade mamãe acabou adotando novas galinhas e o quintal já se fazia repleto delas e seus pintos, como dizia o vovô).
Minha parceira Regina, muitas vezes também me ajudava. Geralmente de manhã ela ajudava sua mãe, só aparecendo em casa após o almoço e se antes nós dois brincávamos de casinha, papai e mamãe, agora estávamos praticamente fazendo isto de verdade.
Às dez horas eu voltava a ascender o fogo do fogão de lenha (papai tinha costume em comprar caminhão cheio de lenha de velhos pés de cafés) e então fazia o almoço. Geralmente o feijão estava pronto por mamãe: eu fazia arroz e algum tipo de mistura, como tomate cozido, batata cozida ou frita (inclusive fritava as cascas das batatas que julgava que, crocantes ficava uma delícia, na verdade acho que era por necessidade mesmo que aprendi a fazer isto). Ovos fritos era o campeão das misturas, mas papai não gostava; mandioca cozida com pedacinhos de carnes (às vezes sem), outras espécies de legumes, como abobrinha, chuchu, quiabo, pepino… e salada com verduras colhida de nossa horta aos fundos do quintal (acho que também não falei disso. E fazia parte de minhas atividades, tomando meu precioso tempo de brincar, pois tirar a água do profundo poço, girando seu sarilho pesado, tendo até que forçar nas pontas dos pés para alcançar, colocar no regador e sair penso de um lado para molhar as verduras duas vezes ao dia…)
À tarde, preparava o jantar nos mesmos moldes do almoço (o que é moldes?).
Eu tinha minhas obrigações, mas nada que se comparava com o sacrifício de mamãe: todo dia, inclusive sábado, saía de casa de manhã e só voltava à noite, aonde, depois do jantar, procurava deixar a casa em ordem para que eu não trabalhasse muito no outro dia; aos domingos, lavava e passava toda a roupa (eu não sabia lavar nem passar roupas, que inclusive era atividade perigosa; poderia me queimar ou queimar um dos pequeninos).
Sentia muita pena de mamãe, ao vê-la indo de manhã, ou chegando no começo da noite, de calça e camisa comprida, pano na cabeça, suja e muito cansada. Felizmente tinha a parceria de meus irmãos Zeca e Carlos, que a acompanhava com dedicação. Minha ajuda, nada representava diante de tal sacrifício.
Meus irmãos, apesar do dia todo de labuta na lavoura, ainda tinham fôlego para brincarem conosco na rua escura, junto aos demais amiguinhos da redondeza.
E no domingo, enquanto mamãe batalhava para deixar tudo em ordem e ainda fazer a macarronada com frango ensopado para o almoço, no rádio celebrava a Santa Missa das dez horas e nós jogávamos burro com baralho, sentados no chão da varanda, ao lado do rádio.
— Enquanto o rádio reza a Missa, vocês jogam baralho! — Protestou papai. — Sabia que isso é pecado? Sabia que o baralho não é de Deus?
Respeitando o rádio e principalmente papai, paramos na hora com aquela atividade ilícita perante Deus (pelo menos até acabar a Missa, depois recomeçamos). Eu só não entendia como, se baralho é do diabo, por que papai e seus amigos sempre jogavam truco à noite em casa.
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Aproveitando as férias escolares, minha prima Sônia aparecera em casa e pediu para mamãe deixar a Nezinha ir com ela passear no sítio. Mamãe autorizou, assanhando minhas lombrigas, mas ela não permitiu que eu também fosse.
Criança manhosa, com saudade do sítio, comecei a chorar. Mamãe ficou brava gritando que não iria e pronto. Papai, também nervoso, disse que se a menina podia ir, que eu fosse também e disse à Sônia que falasse a seu pai para me levar e que depois ele pagaria a passagem do ônibus.
Mamãe ficou muito brava, dizendo que moleque manhoso precisava apanhar e não desobedecer. Passei a chorar ainda mais. Não pelo fato de querer ir passear; já nem queria mais. Passei a chorar pelo fato de ter feito papai e mamãe se desentenderem. Estava realmente errado: se mamãe não me deixava ir, papai também teria que não deixar, concordar com ela.
Fiquei jogado entre duas decisões contrárias e como papai estava cada dia mais mudado em relação ao carinhoso pai do sítio, acabei, agora contrariado, indo com Sônia, minha irmã, além de Zeca, que acabou indo para me fazer companhia, passar uma noite no sítio onde morávamos antigamente.
Tio Vicente permitiu nossa viagem fiado e Sônia não gostou muito dessa companhia; mas minha pior surpresa foi a chegada ao sítio. Nem me passava pela cabeça a casa onde iríamos passear.
Descemos na grande figueira, em frente à estrada que descia para onde morávamos e seguimos a pé por uns 300 metros, onde entramos na porteira da casa da madrinha de Nezinha.
— Nós não iremos ficar nessa casa! — Neguei assustado.
— É claro que vocês ficarão aqui! — Disse Sônia. — Viemos para isso!
— Não queremos ficar aqui! — Neguei magoado.
— Aqui é a madrinha da Fátima e ela veio passear na madrinha dela! — Ficou brava Sônia. — Você nem deveria ter vindo!
— Não quero ficar nessa casa! — Neguei emburrado.
Sônia me deixou para trás e levou minha irmã aos cuidados de dona Aparecida.
Triste, magoado, arrependido, com medo, lentamente cheguei até a casa deles. Dona Aparecida, me cumprimentou com carinho e eu retribuí. Só estavam ela e o senhor José Antiqueira.
Sônia nos deixou e foi para a casa de Ivonete (lembram de dona Cida e do Zezinho que teve sua circuncisão caseira?) Nos buscaria na tarde do dia seguinte.
Minha irmã estava gostando do passeio; eu, assustado, permaneci sentado na varanda da frente por muito tempo. Jaime, que chegou logo depois, tentou me agradar, mas não teve muito resultado.
O jantar foi servido e dona Aparecida encheu um prato gigante para mim, com arroz, feijão, farinha de mandioca e costelinha de porco frita. Revirei o prato durante o tempo de todos jantarem e não comi uma única garfada.
Já estava escuro quando Marin… chegou e nos cumprimentou educadamente. Assustado, peguei sua mão, que me estendia rindo, depois me afastei, segurando a mão de Nezinha, indo nos proteger perto de dona Aparecida.
À noite, dona Aparecida preparou uma cama na sala para Nezinha, uma no quarto de Jaime para Zeca e uma no quarto de Marin… para mim.
— Vou dormir na sala com minha irmã! — Insinuei assustado.
— Nada disso! — Negou dona Aparecida. — Você dorme no quarto de Marinho!
Apavorei-me. Não poderia ficar exposto a aquele menino perigoso.
Como sempre no sítio, deitamos cedo.
— Está gostando de morar na cidade? — Perguntou-me o menino.
— Estou! — Respondi secamente.
— Não quer mais voltar pra cá? — Riu ele.
Levantei-me dizendo:
— Vou beber água.
Saí devagarinho no escuro e me deitei no mesmo colchão de solteiro, no chão da sala, ao lado de minha irmã, onde ela não reclamou e em poucos minutos estava dormindo.
Acordei antes das seis horas e na cozinha encontrei dona Aparecida, que preparava um delicioso café, com pão caseiro, chocolate e queijo.
— Dormiu bem? — Riu ela.
Acenei que sim.
— Espero que coma alguma coisa hoje!
— Desculpe não ter comido ontem. Estava sem fome.
Realmente estava com fome e comi bastante pão com queijo, além de uma grande xícara de leite com chocolate.
Marin… levantou pouco tempo depois e seminu seguiu para o quintal, onde foi lavar o rosto e ir ao banheiro improvisado.
Apesar do carinho dos padrinhos de minha irmã, foi o pior passeio que fiz em toda minha infância (ninguém jamais soubera do que quase teria acontecido comigo, minha irmã e o menino que nem ousava falar seu nome). Apesar de estar protegido pelos adultos, tremia de medo de estar perto dele.
Quem pode se alimentar na escola?
As aulas iniciaram normalmente em um de fevereiro, comigo na segunda série e Zeca na quarta.
Estava com muita sorte, pois dona Maria do Carmo, branca de cabelos curtos pretos e um pouco gorda (obesa), era minha professora e assim, como dona Alice, gostava muito de crianças (o fundamental para ser professor é gostar de crianças, senão vai se estressar muito).
A maioria de meus colegas eram os mesmos e alguns novatos ou repetentes do ano anterior. Nosso uniforme consistia em camisa (não camiseta) branca, com botões e um bolso no peito esquerdo, com as letras bordadas em azul Ge.E.eMe.Te; calça azul (que poderia ser curta no calor e comprida no frio); sapatos a decidir, podendo ser sandália, sapato, conga ou alguns iam até descalços. As meninas tinham camisa igual e saia azul.
Nos primeiros dias daquele ano letivo, logo que entramos na sala de aulas, já ficamos sabendo que era dia de vacina e nem adiantava chorar ou tentar fugir. Ninguém gostava das vacinas horríveis que tínhamos que tomar e ninguém pedia autorização a nossos pais para nos sacrificar (estávamos em plena era da ditadura do regime militar, quem mandava nas crianças era o estado e não os pais).
Desta feita, a vacina era oral (menos mal; mas ruim do mesmo jeito) e diziam que tinha gosto de ovo choco.
As horas passavam e qualquer um que chegava na porta nos assustavam. Teria chegado nossa vez para o sacrilégio. Mas não: demo-rou tanto que chegávamos a pensar que era boato de algum colega mal inten-cionado. E isto era pior, pois eu suava frio, com o coração apertado como se estivesse aguardando a hora de ir para a cadeira elétrica.
Enfim (não teve jeito), chegou a nossa vez e em fila indiana seguimos para o pátio, onde teríamos que engolir uma colherada das grandes daquele remédio que realmente tinha gosto de ovo choco. Só quem tinha alergia a ovo estava dispensado de tal castigo. Ai do infeliz que dissesse ser alérgico a ovo: tinha que responder uma ficha de 3 quilômetros (preferível engolir aquela coisa horrível).
Na fila indiana, no percurso para tal castigo, cada um dos meninos tentava ser o último. Eu continuei no meu lugar, quer dizer, fui até empurrado para a frente. Nem liguei. Os últimos só estariam retardando tal sofrimento. Acho que imaginavam que acabaria o estoque de vacina, o que não aconteceu.
No final do mês de março, a prefeitura de Penápolis reuniu todas as escolas, com alunos, professores e pais de alunos, no ginásio municipal de esportes (o Gigante Azul), no período da manhã e passou duas horas discursando com o prefeito doutor Edison João Geraissate, presidente da câmara, vereadores, diretores de escolas e departamento de cultura. Todos diziam que aquela festa era para distribuir os recém chegados materiais escolares gratuitos aos alunos pobres e inclusive, a partir de então as escolas forneceriam alimentação saudável aos alunos pobres; os demais pagariam um valor simbólico e que todos deveriam se alimentar na escola, evitando assim terem que levar merendas de casa ou dinheiro para comprar, no nosso caso, do senhor Romualdo, que ficava com sua cesta pendurada na grade do lado de fora da escola e os alunos (os mais ricos) adquiriam deliciosos pão com carne moída ou mortadela e queijo, ou pão doce… eu nunca tinha comprado nada.
Com isso, alguns funcionários das escolas, passaram a rasgar centenas de embalagens, deixando à mostra, gigantes panelas e caldeirões, nos quais seriam cozidas nossas merendas nas escolas, além de colheres, bacias pequenas e canecas em alumínio.
Eu ficara aguardando a festa (para mim festa tinha que ter guloseimas) até o final daqueles demorados discursos de quem queria ser o dono da conquista em alimentar nossas crianças, levando refeição digna a todas as escolas do país; visto que a maioria das crianças ia mal nos estudos por não terem em casa uma refeição adequada.
A conquista viera na verdade de decisão do governo federal, através do recém empossado Presidente do Brasil, Arthur da Costa e Silva, (ele tomara posse em 15 de março) pela Arena “Aliança Renovadora Nacional” (Aos oito anos, até me sentia doutor em política).
Já no dia seguinte, nossa escola passou a servir pratos variados de sopas diárias: sopas de macarrão com batata, fubá, arroz, macarrão com carne ou legumes e no sábado, arroz doce. Só que nem todos tinham direitos a se alimentar gratuito. Foi criada uma caixa escolar, na qual o aluno pobre teria que se matricular e com isto receberia uma ficha branca, lhe dando o direito a se alimentar; os demais se quisesse comprava uma ficha azul por 100 cruzeiros… eu, apesar de pobre não era da caixa e raras vezes ganhava 100 cruzeiros de mamãe para participar da merenda. Era mais divertido a reunião dos alunos, todos (de todas as salas de aula) sentados em volta da baixa mesa, conversando muito, do que a própria alimentação.
Como a escola era na rua de minha avó e nós (eu e Zeca) teríamos mesmo que passar em frente sua casa, todos os dias aproveitávamos para dar uma pequena chegada e mesmo sem vontade, tomar água.
Um dia, vovó remexendo em seus guardados, encontrou uma velha bolsa escolar rasgada (deveria ser de meu primo José Luiz, pois tudo o que era dele ficava na casa de vovó) e me deu de presente, dizendo que era para papai consertar para mim e ele realmente, usando sua criatividade de carpinteiro (naquela época, pedreiro, também era carpinteiro, pintor, encanador e o que mais precisasse) fazendo uso de pedaços de ripas, recuperou aquela velha bolsa marrom, que, então passei a carregar meu material escolar (cadernos de brochura e desenho pequeno, livro do segundo ano, lápis preto, borracha, régua, compasso e uma caixinha pequena de seis lápis de cor) que foi comprado com sacrifício pelo dinheiro ganho por mamãe na lavoura (até então eu transportava meu material em uma sacola de pano). Apesar da volta às aulas, ela continuava trabalhando, ajudada por Carlos, que abandonara os estudos. Eu cuidava de casa e das crianças menores de manhã e Deus (e o Valente Menino Jesus) cuidava após o almoço. Zeca, por iniciativa própria, começou a trabalhar até às onze horas na olaria do senhor Ermínio Lopes (o nome era assim mesmo).
Considerando necessário, determinado dia, mamãe deixou de ir trabalhar e foi até a diretoria de minha escola, onde conseguiu nos encaixar na lista das crianças pobres; com isto, a partir de então eu e Zeca passamos a ter todos os dias a fichinha branca de refeição gratuita, além de todo material escolar básico (não consistia em uniforme ou livros).
A vinda de tia Amélia.
Acreditando facilitar a vida de tia Amélia, que teria vindo do sítio antes de nós e morava na vila Planalto, do outro lado da cidade, papai e João Cardoso, resolveram com o próprio material de uma casinha que ela tinha naquele bairro, construir dois cômodos para ela aos fundos de nosso quintal. Com isto, enquanto eles desmancharam sua pequena casa, para reconstruí-la no nosso quintal, tia Amélia e os seis filhos passaram a moram conosco (15 pessoas na mesma casa de apenas três quartos e um banheiro) e seus filhos Zete na quarta e Moacir na primeira série, transferidos, estudando em minha escola, passando a serem parceiros de caminhada pelos 3 quilômetros de distância (eu já sabia que quilômetro é igual a mil metros).
Seguíamos pela estrada boiadeira que passava atrás da Casa Anjo da Guarda, onde, temendo topar alguma boiada, andávamos no acostamento, em cima de barranco alto, onde meu irmão e primo Zete brincavam de serem caminhões pesados.
— Olha o fordão passando, olha! — Dizia Zete, abrindo e fechando a mão, apontada para trás na altura das nádegas, como se fosse seta de sinalização.
Depois Zeca, andando mais depressa, repetia a mesma cena.
Eu e Moacir conversávamos sobre outros assuntos mais interessantes a pessoas de nossas grandes idades. Aquele negócio de caminhão imaginário era pura bobeira.
Mamãe não gostava que a gente fosse à escola por aquele caminho, pois temia darmos de cara com boiada sendo transportada por ali, ou algum marginal. Anjinhos da cara… como éramos; nos julgando valentes, nem a ouvíamos e foi assim que em determinado dia, andando pela estrada (ignorando a segurança do barranco alto), percebemos de longe, a poeira que subia.
— É uma boiada! — Gritou primeiro Zete.
Ninguém perdeu tempo. Saímos correndo de volta até o início da estrada, a uns 200 metros (metro é igual a 100 centímetros ou 10 decímetros ou 1000 milímetros), onde conseguimos subir no barranco e atravessar a cerca de arame farpado do aeroporto, ficando em segurança até o tropel das vacas e boiadeiros passarem, seguindo seu destino lá para os lados do embarcadouro municipal, aonde eram amontoadas em grandes vagões boiadeiros e exportadas para os lados de Mato Grosso (que ainda era apenas um estado).
Apesar do susto, do uniforme sujo de poeira e de chegarmos na escola com os portões fechando, não aprendemos a lição. Na mesma tarde retornamos pelo mesmo caminho. Pensávamos que éramos homens cheios de coragem.
Mesmo após ter assistido o grande estouro de uma boiada dentro da cidade, onde o tropel acabou passando na rua de minha casa e eu tive que sair correndo da rua, se não quisesse ser esmagado pela multidão em debandada (Está gastando).
Quando acabei de adentrar ao portão, a ponta do chicote de um boiadeiro nervoso, bateu forte no muro, quase atingindo minha cara e ele ainda gritou:
— Sai da rua, moleque!
—Filho de uma… (tomara que a mãe dele seja uma santa!) — Pensei apavorado.
Com tia Amélia morando conosco, aumentou o número de crianças para brincarmos; por isso, por ideia de João e Carlos, todos se reuniram: Eu, Moacir, Zete, Zeca, Sidnei, Toninho, Lourival Martins, José Espontão, Ademir, José Carlos e outros que nem sei o nome; capinamos, queimamos e limpamos todo um grande terreno, que ia de uma rua à outra (100 metros de comprimento, por 15 de largura), colocamos duas traves reforçadas, construídas de caibros e redes feitas com sacos de cebolas, recortados e costurados entre si. Os riscos marcando as áreas, laterais e meio do campo, eram feitos com cinzas tiradas dos fogões de nossas casas e bancos de reserva ou torcedores, com tábuas sobre tijolos. Era nosso magnífico campo de futebol.
A primeira partida aconteceu na manhã de domingo, na qual nenhum dos dois capitães que escolhia sua equipe queria me escolher, tanto por ser o menorzinho da turma (junto com Moacir), quanto por ser ruim de bola como ninguém mais. Com isto acabei sendo escalado para goleiro, onde (por gratidão em ter ajudado na construção do campo) eu servia de apoio e olha que fora o último a ser escolhido; quando já não sobrava mais ninguém e tal capitão não teve outra alternativa.
Algumas pessoas, entre adultos e principalmente crianças, vieram nos prestigiar, assistindo nossa partida inaugural.
E sendo assim, praticamente todas as tardes, disputávamos alguma atividade esportiva no local: geralmente campeonatos de tiro livre ao gol, no qual eu não era tão ruim, sendo até melhor que muitos. Este tipo de jogo era realizado em duplas; enquanto uma dupla ficava defendendo no gol, a outra enquanto um chutava, o parceiro aguardava na lateral da trave, caso o goleiro rebatesse a bola, ele tentava aproveitar essa rebatida para marcar; depois de quatro chutes cada um, trocava a dupla e ao final, quem marcasse mais entre os oito chutes era o vencedor e os perdedores eram substituídos por nova dupla.
Outra atividade era campeonato de bolas cabeceadas, em que só valiam gols marcados de cabeça e bolas cabeceadas ou chutado fora, era ponto do goleiro. Nessa atividade, como em todas, eu era goleiro e me saía muito bem, principalmente porque os jogadores praticamente só cabeceavam bolas nos cantos ou centro do gol, alto; eu era bom em pegar bolas altas; deixando a desejar, nas bolas rasteiras.
Um tal jogo de bobinho eu era péssimo e como só perdia, acabava ficando nervoso e desistindo de jogar (sorte deles que eu não era o dono da bola…).
Banho! Eu! Pra quê?
Para incentivar nossa criatividade, a professora Maria do Carmo, usava flanelógrafo, onde colocava algumas gravuras para que usássemos de ideia na criação de redação (ela chamava de composição) em aulas de Língua Portuguesa (ela chamava de Linguagem) e o riso foi geral, quando ela queria uma redação sobre banho e colocou no aparelho, uma figura de um menininho de uns cinco anos de idade, completamente nu, mostrando sua bundinha: “que pena que ele esteja de costas”, gritaram alguns, inclusive meninas:
“Por que devemos tomar banho todos os dias?”
Era o título da redação:
— Eu não tomo banho todo dia! — Neguei.
— Como não? — Criticou a mestra. — Você não tem vergonha de não tomar banho?
— De vez em quando eu esqueço do banho! — Estava agora com vergonha de minha confissão.
— Pois de hoje em diante, vê se não se esquece mais! Você não tem chuveiro em casa?
— Tenho!
Arrependido, tive medo de ganhar o apelido de Cascão, igual o personagem de Mauricio de Sousa que detesta banho.
Apesar da confissão e da vergonha, escrevi no caderno:
“O banho, além de deixar a gente em estado de bem-estar deixa o corpo limpo e protegido contra bactérias existentes na sujeira.
Devemos tomar banho ao menos uma vez por dia, mesmo que seja em bacia ou chuveiro de água fria. E devemos fazer uso de bucha e sabão, para que limpe corretamente os poros, por onde a pele respira.
Nas regiões mais quentes, como nossa cidade, o banho se faz eficiente na limpeza do suor, nocivo a nossa saúde.
Quando a pessoa deixa de tomar banho diário, passa a ter alergias perigosas, provocando diferentes tipos de coceira.
Ao tomar banho, o corpo agradece e a gente se sente mais feliz”.
A partir daquela data, acho que jamais deixaria de tomar um belo banho (e quando isso acontecia por alguma razão, nem conseguia dormir de desconforto).
Então a casinha de tia Amélia (apenas quarto e cozinha, sem banheiro) ficara pronta e ela foi transferida para lá. Foi bom para que ela e seus filhos tivessem mais liberdade (não que crianças querem liberdade. Crianças querem aperto para poderem brincar mais) e nós colocássemos nossas coisas novamente em seus devidos lugares.
A doce inocência e felicidade do sítio, aos poucos ia sendo esquecida. Já não nos despedíamos de nossos pais, com o pedido de “a benção”, como fazíamos quando mudamos para a cidade e papai passou a ser um homem muito nervoso e o pior, começou a beber pinga (não cachaça. Pinga mesmo, que por ser pobre acostumou a tomar a da pior qualidade). Às vezes à tarde dava dinheiro, principalmente para mim, que ia até o bar mais próximo com uma garrafinha de 300 mililitros vazia, comprar-lhe metade dela de pinga, onde ele bebia tudo no mesmo dia (não era proibido a venda de bebidas alcoólicas para crianças e se eu quisesse tomar tudo na frente do dono do bar, ele deixava. “Se eu quisesse! ”)
Acho que só via papai sorrir, quando jogava truco à noite, com os amigos Rafael, senhor Libano, senhor Tonico, Airton…
Abraços de carinho ou conversa amiga, ficaram perdidas na época do sítio e passou a gritar com mamãe como se ela fosse vagabunda. E olha que ela se sacrificava, deixando inclusive as crianças pequenas aos cuidados de outro pequeno (eu), para enfrentar caminhão de boia fria, nas frias madrugadas, a fim de trabalhar na lavoura de algodão ou amendoim, com objetivo de conseguir dinheiro, para ajudá-lo nas despesas da cidade.
Lobisomem.
Acho que seguindo costumes do sítio, auxiliado por todos nós, papai comprou tela e construiu atrás da casa de tia Amélia, uma bonita horta, na qual se plantava de tudo: alface, almeirão, pimenta, tomate, chuchu que subia pela tela…
Em aulas de ciências, nossa professora resolveu criar uma experiência com dois grãos de feijão; colocando um sobre um copo com algodão embebido em água e outro, em copo, com terra normal e também sendo regado todos os dias.
No terceiro dia, os dois grãos de feijão já estavam rachados e com o broto aparecendo. Em uma semana, estavam bonitos, maiores que os copos e então a professora resolveu que não mais daria água a eles.
Uma semana depois, os dois brotinhos que já eram enormes, começaram a ficar amarelado e aos poucos foram secando e em menos de uma semana estavam quase mortos (se fossem animais, diríamos que estavam agonizantes). A professora resolveu dar-lhes água novamente. O pé que estava sobre o algodão acabou de morrer e o que estava sobre a terra, em dois dias voltou a ficar verde, restabelecendo sua vitalidade.
A pedido de mamãe, papai construiu ao fundo do quintal, um forno de assar pão, igual ao que tínhamos no sítio, pois existia um no fogão de lenha da cozinha, mas era pequeno, servindo mais para assar carne. O forno externo foi coberto para não tomar chuva e com isto, geralmente de sábado, ou até domingo, mamãe preparava a massa, eu a ajudava a cilindrar, depois, ascendíamos o forno e enquanto ela enrolava aproximadamente 10 a 12 pães, eu apanhava folhas de bananeiras para servir de bandeja, onde eles eram colocados para assar. Mamãe possuía assadeiras em alumínio, que sempre usava ao assar seus pães no forno do fogão; já no externo preferia folhas de bananeiras, como no sítio; dizia que o pão ficava mais saboroso.
Com isto estava garantido o alimento do café da manhã para pelo menos três a quatro dias. Porém, na mesma hora em que os pães saiam do forno, um já era devorado por todos nós, com manteiga original em lata (não era margarina, apesar de pobres), que derretia sobre o pão quentíssimo.
O senhor Libano, que era um dos parceiros de truco de papai, quando não jogava baralho, gostava de nos contar histórias incríveis que jurava serem verdadeiras.
Eis então que reunidos, sentadinhos no chão à frente dele, começou:
Meu cumpadi veio passiá na cidadi, pu modi i nu interro di seu tio; mai comu num consiguiu chegá im tempu nu velóio, poi só chegô di noiti, acabô pur jantá, depoi a resurveu da um pulinho nu cimitério, memu di noiti, qui no oto dia, tinha que i imbora cedinho. Quando ele pulô o muro purque o portão tava fechado, escuitou um baruio; si iscondeu por trái di um túmulo e foi andano divagá. Intão foi qui ele viu um baita de um bicho dessi tamãnhu (tamanho de um cachorro perdigueiro) cum cabeça di cachorru, fucinhu di lobu, péis di genti e corpo di capado. Ele tem u retratu lá, a dispois eu trago pu seis vê (ainda estou esperando). O bichu tava cum a perna di um morto na boca e babava mai qui nenê que qué nascê um denti. Era lubisome cum certeza.
Não me pergunte quem foi que tirou a foto porque eu também não sei. E desculpe a tradução não muito original. Não sou poliglota caipirês!
©©©
Um dos principais amigos de papai, o senhor Vicente, tinha uma bela lambreta e acho que o homem vivia em cima dela o dia todo, pois confesso que nunca o vi caminhando. Ele gostava tanto dela, mas em determinado dia, em uma estrada de sítio, nem se sabe como, acabou por chocar-se com caminhão leiteiro e infelizmente, se fosse só a bela lambreta que tivesse se desintegrado, estaria tudo bem.
Menina de circo.
Era terça-feira, 2 de maio; no início das aulas, dona Maria do Carmo, abraçada a uma menina de nossa idade, morena clara muito bonita nos apresentou:
— Esta é Lucia Regina da Silva. Ela mora e trabalha com o circo que chegou à cidade ontem e vai estudar conosco por alguns dias. Peço que vocês a recebam bem, pois é difícil para ela enfrentar assim uma sala de aulas cheia de estranhos.
Estranhos! Pensava eu. Estranho era ela, que acabara de chegar, não nós que éramos todos conhecidos e amigos. Mas de fato eu sabia o quanto era difícil chegar em escola nova, onde, não só os colegas de sala, mas toda a escola, era um mundo de estranhos para o recém-chegado.
Ela, embora não me parecesse nada tímida, estava acanhada e sentou-se em silêncio. Como era bonita! A mais bonita de toda a sala e talvez de toda a escola: morena clara, de olhos castanhos e cabelos escuros, lisos e curtos. Deveria ter minha idade.
Eu sentava na terceira fileira de carteiras, do lado da parede e na quarta carteira da fileira. Lucia sentou-se na segunda fileira, terceira carteira, bem próximo a mim.
Todos nós, os meninos da classe, estávamos vidrados naquela nova coleguinha; as meninas, porém, sentiam-se enciumadas; querendo ser iguais a ela. Ela, no entanto, permanecia o tempo todo, calada; sem falar com ninguém. Além de ser nova na escola, era nova também em nossa cidade.
As duas e meia da tarde saímos ao recreio, tomamos sopa e comemos nosso lanche, então fomos ao pátio para brincar.
Lucia sentou-se sozinha na mureta de descanso e eu, apesar de muito tímido, lentamente me aproximei:
— Olá! — Me dirigi timidamente a ela.
— Oi! — Atendeu-me séria. — Como é seu nome?
— Celso. Celso Aparecido Innocente.
— O meu é Lucia! Lucia Regina da Silva.
— Eu já sei! De onde você vem?
— Lins! Por quê?
— Bobagem! Você também trabalha no circo?
— Trabalho!
—O que você faz?
— Trapézio.
— Trapézio! — Admirei-me.
— É! Por quê? Acha que não deveria?
— Não! Acho incrível! Com essa idade já fazer trapézio!
— Não é difícil. Basta treinar bastante!
— Mas você sobe naqueles balanços que ficam quase no teto do circo?
— Exatamente!
— Puxa! Eu gostaria de assistir!
— O circo vai estrear sexta-feira.
— Não tenho dinheiro pra entrar?
— Se você quiser ir você não paga nada!
— Verdade?
— Quer ir lá hoje pra conhecer?
— Que horas?
— Quando terminar as aulas. Eu te apresento pra minha turma.
— Vou sim!
Calamos por um instante, então lhe perguntei:
— Você está com medo da escola?
— Não! Por quê?
— É nova na escola.
— Já estou acostumada. Troco de escola sempre!
— É que no ano passado, quando entrei nessa escola, parecia um local muito estranho!
— Realmente eu sinto assim também! Mas logo passa. Você veio de outra cidade?
— Vim do sítio Córrego dos Pin… tos!
— Quê!? — Achou graça.
— O nome é esquisito — fiquei vermelho de vergonha. — Mas é isso mesmo! Filhote de galinha!
— Filhote de galinha é pintinho! — Riu ela. — Isso que você falou é filhote de… menino!
— Uhm!
Pouco depois soara o sinal e retornamos para a sala de aula. Tanto eu, quanto Lucia, retornamos a aula um pouco diferente: ela por ter arranjado um amigo e eu por ter me aproximado dela. Só que aquilo provocava um pouco de ciúmes nos demais colegas, tanto meninos quanto meninas.
Assim que as aulas terminaram, avisei meu irmão e primos e segui com ela. Para mim não haveria problemas em passar no circo, que estava sendo montado no pátio da igreja Nossa Senhora de Fátima, pois o bairro Jardim Brasília ficava muito depois.
Chegando ao circo, os homens estavam trabalhando na montagem do mesmo. Alguns que eram ajudantes e outros contratados em nossa cidade para este trabalho pesado; inclusive os artistas. Realmente parecia que vida de circense não era fácil.
Lucia me levou a um reboque luxuoso. Ao adentrarmos, me apresentou a uma linda mulher de uns trinta anos de idade da cor de Lucia, de cabelos escuros, longos e lisos. Era uma cópia Adulta da menina.
— Celso — disse–me Lucia. — Essa é minha mãe.
— Muito prazer! — Estendi-lhe a mão. — Meu nome é Celso!
— Oi — sorriu-me ela. — Sou Sandra! Sandra Regina!
— A senhora tem o mesmo nome de Lucia?
— Sim, o segundo nome.
— Se parece muito com ela.
— Já me disseram isso! Aonde vocês se conheceram?
— Estudamos na mesma classe, mamãe!
Dali eu e Lucia saímos andando pelo monte de paus, fios, cordas, ferros e lonas, estendido ao longo da montagem da grande tenda do circo. A cada pessoa que encontrávamos me apresentava com carinho. A um deles ela me disse:
— Esse é o palhaço Risadinha.
— Olá senhor! Tudo bem? — Cumprimentei-o.
— Tudo mal! — Reclamou ele. — Acha que enfrentar essa dureza seria tudo de bom?
Calei-me e ele insistiu:
— Vamos garoto, pode falar, acha que é tudo de bom?
— Não senhor!
— Por isso que é bom ser garotinho, só pensa em estudar, brincar e namorar. Não é mesmo?
—Não ligue, Celso — pediu Lucia. — Ele só está brincando.
— Celso! — Exclamou ele. — Seu nome é Celso?
— Sim senhor! — Confirmei.
— Eu me chamo Armando! Mas se me chamar de Risadinha não me importo.
— Por que as pessoas te chamam de Risadinha?
— É porque ele está sempre alegre — confirmou Lucia. — Está sempre rindo.
— O senhor deve ser feliz!
— Você sabe o que é ser feliz? — Perguntou-me ele.
— É sempre estar contente! Gostar de tudo e de todos! Nunca sentir tristeza…
— Você é inteligente! Por acaso é feliz?
— Quase sempre!
— Como quase sempre?
— Gosto de minha família… de meus amigos… da escola… hoje estou mais feliz!
— Por quê?
— Conheci uma menina especial! — Falei com sinceridade e rindo.
— Cuidado com o pai dela!
— Por quê? — Admirei-me.
— O sogro é uma fera!
— Sogro? Não quero namorar Lucia!
— Sei! Sabe fazer alguma coisa além de brincar, estudar e namorar?
— Acho que não! Mas não quero namorar Lucia! Somos amigos!
Naquela tarde conheci todo mundo do circo, depois retornei para minha casa e contei toda a história a meus pais, que disseram que me deixaria ir à estreia do circo.
Na quarta-feira meu primo Zete disse:
— Hoje vai conosco na escola? Cadê a menina?
— Mora no circo!
— Ontem você abandonou a gente! Por que quer ir junto hoje?
— Não posso?
— De tarde você vem com quem?
Balancei os ombros.
Na escola também, todos os colegas de classe estavam bravos comigo, por eu ter conquistado com muita facilidade a simpatia da garotinha mais bonita de toda a escola.
Coração apaixonado.
Naquela quarta, na quinta e na sexta-feira, seguia com Lucia até o circo, para só depois seguir para minha casa.
Na noite de sexta-feira, retornei ao circo acompanhado por Zeca, aonde fomos assistir ao espetáculo nas cadeiras junto ao picadeiro.
O senhor Carlos Alberto, pai de Lucia, era o anfitrião. No início do espetáculo, anunciou:
— Respeitável público, boa noite. A equipe de espetáculos o Gran Circus Real Americano tem a grande satisfação de marcar presença em sua simpática Princesinha da Noroeste (Era o nome, apelido ou codinome que nem sei quando foi dado a minha linda Penápolis). E para abrilhantar nosso espetáculo, começaremos animados, com o grupo de palhaços Tristeza, Risadinha, e Marroco.
Tropeçando para todo lado, entrou os três palhaços, sentando-se no meio do picadeiro, onde Marroco começou a narrar:
— Sabe amigos, no dia em que cheguei nessa bonita cidade, saí à procura de uma namorada e acabei por parar defronte ao cemitério; já era meia noite e então, de repente apareceu um fantasma horrível, mas eu não tive medo, soltei um baita de um murro em sua cara que o bicho estremeceu e caiu desmaiado…
Um vulto todo de branco apareceu de traz das cortinas e abraçou Marroco. Quando este o viu, saiu correndo em disparada e tropeçando em tudo quanto era obstáculo, até sair do picadeiro.
A seguir, tristeza continuou a narrativa:
— Isso não foi nada. Outro dia fui convidado pra jantar na casa de um amigo, eu aceitei, mas acho que errei o caminho e quando cheguei na casa que pensei ser dele não encontrei ninguém a não ser uma baita de uma linda fantasma. Aquela cabeça de osso era realmente uma beleza…
Enquanto tristeza narrava a história, o vulto branco tornou a aparecer, sentou-se a seu lado e o abraçou, beijando-lhe o rosto. Assim que Tristeza o viu, saiu em disparada a mais de 100 por hora. A seguir o vulto retornou e sentou-se ao lado de Risadinha, que já narrava sua história:
—Isso não é nada. O pior foi comigo, ainda ontem eu estava sentado na praça, bem em frente ao cemitério, então chegou um fantasma, sentou-se a meu lado, tirou meu boné e o atirou longe.
O vulto tirou o boné de Risadinha e o atirou longe. Este se levantou, apanhou o boné, colocou na cabeça e reclamou:
— Deixe meu boné em paz! Então apanhei o boné, coloquei na cabeça e tornei a me sentar. O fantasma tornou a tirá-lo e jogá-lo longe…
O vulto repetiu a cena. Risadinha tornou a apanhar o boné, colocou na cabeça, sentou-se e disse:
— Deixem meu boné em paz, senão não consigo contar minha aventura. Peguei o boné, coloquei na cabeça e me sentei, então olhei bem pro fantasma…
Nessa hora Risadinha olhou bem pra cara do vulto, levou aquele tremendo susto e saiu correndo pra plateia, saindo do circo pela porta de entrada do público, com o vulto em seu encalço.
Apareceu o senhor Carlos e anunciou:
— Respeitável público, agora vamos aplaudir o mais jovem grupo de trapezistas de toda a América. Os irmãos Narjinsky!
Aquele som era repetido em eco. O grupo de trapezistas apareceu e o senhor Carlos prosseguiu:
— Petrovick Narjinsky, treze anos; Dymitry Piero Narjinsky, dez anos; Lana Mara Narjinsky, doze anos; e a mais jovem trapezista do mundo: Rayssa Narjinsky, com apenas nove anos.
“ Rayssa Narjinsky! ” Pensei espantado. “A Lúcia disse que era Silva”. (Acho que minha inocência não me deixava saber que aquilo não passava de estratégia de apresentador de espetáculos. Era mais chique o público pensar que o grupo vinha da Rússia na velha União Soviética do que de um lugar qualquer do nosso Brasil.)
O grupo de trapezistas, luxuosamente uniformizados em lycra apareceram, subiram aos trapézios e começaram a balançar, iniciando assim seu magnífico número. Lucia (não Rayssa) vestia apenas um minúsculo biquíni e soutien, mas estava magnífica nas alturas e meus olhos não desgrudavam, principalmente dela. Era realmente a menina mais bonita do mundo. Embaixo havia uma rede protetora e o número prosseguia com muita beleza, onde a luz reluzia no brilho das lantejoulas grudadas nos uniformes do grupo de irmãos.
Lucia era magnífica nos trapézios. Apesar de seus simples nove anos, parecia ser uma adulta e acho que meu coraçãozinho de criança estava ficando apaixonado.
Assim que terminou suas apresentações, eles, muito aplaudidos se retiraram e o espetáculo prosseguiu; desta feita com o globo da morte, com apenas uma motocicleta.
Por traz das cortinas corri ao encalço de Lucia:
— Puxa! Você foi excelente! — Elogiei-a.
— Obrigado!
— Você fica muito bonita com essa roupa!
— Obrigado! Foi mamãe quem fez!
— Sem ela também!
— Toma vergonha na cara, moleque! — Disse Risadinha que retornava se preparando para se apresentar novamente. — Já quer ver a menina nua?
— Não senhor! — Embaracei-me. — Eu não quis dizer isso! Queria dizer que ela é bonita com qualquer roupa!
— Eu entendi! — Confirmou Lucia rindo. — Não ligue pra ele, se não você fica louco!
Arrastou-me para o trailer de seus pais, onde sem cerimônia despiu-se daquela roupa, mesmo em minha presença. Ao perceber sua atitude, voltei-me de costas a ela, respeitando assim sua privacidade (ou seria minha timidez?)
Voltando novamente às dependências do circo juntos, especulei-a:
— Seu pai chamou você de Rayssa Nar…jyn…
— Narjynsky! — A completou. — Meu verdadeiro nome!
— É!? — Achei mesmo esquisito.
— Estou brincando! — Riu ela. — É um codinome! Pra ficar mais chique. Vamos!
Às doze horas do dia seguinte, estava novamente no circo, de onde, acompanhado por Lucia seguimos para a escola. Era sábado, mas tinha aulas normalmente e eu me esquecia de brincar com os demais colegas. Saía para o recreio, tomava sopa (que era paga) com Lucia, depois, ficávamos conversando na muretinha de descanso, acompanhados por poucos amigos da própria sala.
À tarde, retornei com ela até o circo.
— Amanhã você precisa vir ver a matinê às três horas. — Convidou-me ela.
— É!? Por quê?
— Você vai gostar! A gente vai apresentar a peça de teatro, Chapeuzinho Vermelho!
E assim fiz: com vários convites numerados para sorteio fui assistir ao espetáculo da matinê.
A primeira parte foi semelhante a que eu já tinha visto na sexta-feira, com os palhaços contando história; o grupo de trapezistas, com a beleza de Lucia no alto dos balanços (como ela era divina em um corpinho infantil perfeito); o globo da morte; o show de equilibrismo em peças cilíndricas, por Francisco (ou era Dymitry?)
… Francisco subiu sobre uma mesa e o palhaço Risadinha insistia que ele se equilibrasse sobre o cilíndrico apoiado por uma prancha e tirasse a camisa e ele o fez… colocou-se então mais um cilindro e uma prancha… O palhaço exigiu que ele agora tirasse a calça, que era mais difícil, pois tinha que levantar uma perna de cada vez, para que a perna da calça passasse.
Francisco dizia que não tiraria a calça, mas devido à insistência acabou por tirar… por baixo existia outra. Colocou-se novo cilindro e nova prancha e o palhaço mandou tirar a calça. Embora dissesse não, acabou por tirar, existindo assim outra por baixo… foi até que… já se equilibrando sobre seis cilindros, o palhaço pedindo que tirasse a outra calça, que ele negava… então a calça caiu e Francisco ficou nu diante de todos (só podia ser combinado). Voltou a subir a calça, saltou das peças de equilíbrio que caíram ao chão e fugiu para o camarim.
Antes da segunda parte, que era a mais esperada, o senhor Carlos e o grupo de palhaços, sorteara diversos brindes para as crianças com cupom de convite. Eu, ignorante, ficara conferindo os números presentes em meus convites, esperando ser sorteado também. Jamais poderia ser sorteado, pois entrei pelos fundos do circo, por convite de Lucia e não deixei o canhoto de meu convite na portaria; o sorteio era realizado com os canhotos deixados na urna de entrada.
A segunda parte apresentou o teatro “Chapeuzinho Vermelho” (adivinhe quem era chapeuzinho!), com a vovó sendo capturada pelo lobo mau (palhaço Marroco), que era caçado pelo valente caçador (José Carlos ou Petrovick).
Chapeuzinho, como em todas suas histórias, colhera frutas no pomar e seguira pela floresta até a casa de vovó que estava doente, para lhe visitar e servir-lhe frutas deliciosas. Quando chegou em sua casa, a plateia gritava à chapeuzinho, que não era vovozinha e sim, o lobo…
“É o lobo… é o lobo… é o lobo…” gritava em vão a plateia repleta de crianças.
Chapeuzinho, presa em sua história e missão, não podia compreender o que a plateia amiga lhe dizia.
E assim, o lobo após ter devorado a vovozinha, deitou-se em sua cama e cobriu-se todo:
“Vovó, pra que essas orelhas tão grandes?” “Pra te escutar melhor!” “Pra que esse nariz tão grande?” “Para melhor sentir seu cheiro delicioso”. “Pra que esses olhos tão grandes?” “Te enxergar melhor!” “Pra que essa boca tão grande?”
O lobo se levantou em um só pulo gritando:
“Pra te devorar inteirinha!”
Num sobressalto, entrou o caçador, com uma baita de uma espingarda e encurralou o malvado, matando-o e recortando sua barriga, de onde, tirou intacta a querida vovozinha.
Mágicas.
O filhote de periquito de Carlos que viera do sítio estava praticamente adulto e barulhento.
Mais uma vez, talvez por obra do destino de periquitos, acho que suas asas cresceram e ele, se achando o mestre da aviação moderna, resolveu fugir de seu poleiro (mesma história do periquito anterior). Caiu ao chão e sem conseguir muito sucesso com as asas, ou curso de voo, começou a correr de um lado ao outro na maior das algazarras (Nezinha estava bem longe dali). Antes que Carlos conseguisse recapturá-lo, um malvado gato cinza entrou pela porta da sala, abocanhou o barulhento, saindo pela porta da cozinha. Carlos, no desespero, saiu em disparada atrás do malvado, que desapareceu pelo mandiocal, entrando pela pequena mata cerrada aos fundos de nossa casa, com Carlos em seu encalço.
Essa perseguição implacável perdurou por umas cem horas, quando nosso primogênito, sozinho, cansado, revoltado, choroso, retornou dizendo que esmagara o infeliz faminto bichano (acho que nem foi verdade). Porém, o preço foi alto demais: outro periquito com final trágico.
O senhor Henrique Ulofo iria se casar e veio nos visitar, a fim de nos convidar. Ele já era idoso e se casaria com moça dezenas de anos mais jovem (será que isto é mesmo amor da moça?)
Na sala, resolveu criar uma mágica: apanhou um maço de cigarros vazio, retirou o papel branco de dentro, recortou as partes prateadas, dobrou o papel branco várias vezes e pediu para eu e meus irmãos Zeca e Nezinha soprarem. Nós o obedecemos e ele fechou a mão, depois abriu e o papel teria se transformado misteriosamente em uma vermelhinha nota de 100 Cruzeiros (por isso que ele era rico, transformava papel velho em dinheiro novo! Zeca tinha uma coleção de maços de cigarros. Era só pedir a ele.).
Passou a mão por trás da orelha de minha irmã e tirou uma moeda de 50 centavos, depois enfiou a mão dentro de minha camisa e perguntou:
— O que há em seu coração?
Só me espantei e ele tirou a mão com uma moeda de 10 centavos (eita coração pobre o meu!) Pediu ao Zeca para baixar a calça, mas como ele negou, me pediu:
— Então baixe a calça você!
— Não senhor! — Neguei também.
— Está bem! Aí dentro tinha uma nota de 100 Cruzeiros!
Tanto eu, quanto Zeca, passamos a mão por toda a calça curta. Henrique riu:
— Agora já se foi!
Pediu licença a minha irmã e tirou de dentro de seu vestido, na nuca, uma nota novinha de 50 cruzeiros.
Assim era o senhor Henrique: bom de mágicas, inclusive com baralhos. Além de ser bom homem, adorava a nós crianças (e eu acho que vou virar mágico quando crescer para ficar rico com facilidade, só tirando dinheiro escondido em crianças).
Era quase hora de sairmos de volta para casa, quando em nossa sala entrou um senhor, que distribuiu três envelopes de figurinhas para cada aluno (cada envelope tinha três figurinhas) e sorteou três álbuns (não ganhei). Quem quisesse continuar a coleção, as figurinhas estavam disponíveis para vendas nas livrarias e bancas de revistas.
— Quem não pretender colecionar, dê as figurinhas para quem for colecionar — recomendou a professora.
Era lógico que eu não colecionaria! Não tinha dinheiro para essas relíquias! Mas era lógico que não daria minhas nove a quem quer que seja. Eram figurinhas de assuntos variados, como fauna, flora, rios, peixes, moedas do Brasil, bandeiras dos estados e países…
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No centro de nosso terreno, depois do poço, a parreira de uvas de mamãe estava cada dia mais bonita e meus postes de luz ficando cobertos por ramas verdes…
No terreno baldio que existia do lado esquerdo do nosso, papai pediu permissão ao proprietário, fechou com cercas, capinamos e plantamos centenas de pés de mandioca para nosso consumo…
Como eram dois terrenos juntos, o senhor Santo Danzi, nosso vizinho do lado esquerdo, aproveitou a ideia e fez uso de um deles, enchendo-o também com diferentes tipos de plantas.
Com tudo isso minha tarefa tinha aumentado: além de cuidar de casa pela manhã, fazendo inclusive almoço para que mamãe pudesse trabalhar na lavoura com Carlos, tinha também que cuidar da horta e tratar das galinhas.
Com tanta água tirada de nosso poço, além de meus frágeis músculos dos bíceps estarem ficando doloridos, sua mina já não estava vencendo e às vezes a água saía suja. Reclamei para papai e ele resolveu: no domingo de manhã, Carlos sentou-se em banquinho improvisado com corda e pedaço de madeira forte e desceu lentamente até o fundo do poço, guiado pelos braços fortes de papai.
Acomodado dentro daquela lama vermelha, fazendo uso de pequeno enxadão e pá, afundou o poço em pelo menos mais um metro.
Não sei como, mas em uma das inúmeras vezes em que papai puxou o balde cheio de barro, sua aliança escapou do dedo e se foi parar dentro do poço…
A partir de então, a cada balde de barro tirado lá do fundo, papai exigia que eu e Zeca passássemos tudo pela peneira, no intuito de encontrar sua sagrada aliança, porém, apesar de ficarmos todos vermelhos de barro, nosso trabalho (até divertido) foi em vão e nunca mais papai usaria a tal aliança (nem outra qualquer).
Quando finalmente Carlos saiu de dentro do poço, estava todo coberto de barro vermelho, parecendo até um boneco de lama. Acho que em seu corpo, o único lugar que não tinha lama, era nos olhos.
Enfim, valeu a pena o sacrifício dele (acho que também gostou): a partir de então, o poço tinha água suficiente para nosso consumo e regar todas as plantas e hortaliças.
Tudo o que é bom, dura pouco.
Desde que o circo chegou à Penápolis, acho que nunca mais brinquei no recreio: depois da merenda passava o tempo conversando com Lucia e alguns amigos que faziam rodinha. Mas os dias passaram rapidamente e apenas duas semanas depois de sua chegada, na entrada da aula de sábado, a professora, novamente abraçada a Lucia, disse:
— Classe, hoje é o último dia que nossa coleguinha Lucia estuda conosco…
Meu coração disparou. Olhei para Lucia tentando dizer algo, mas permaneci calado. A professora continuou:
— Segunda feira ela estará seguindo viagem para outra cidade. Vai estudar em outra escola, com outros coleguinhas. O circo vai embora.
Só na hora do recreio é que, como ela não tomou sopa e eu também não, é que consegui encontrá-la no pátio.
— Você vai mesmo embora? — Perguntei-lhe.
— Infelizmente vou — respondeu-me ela triste.
— Por quê?
— Porque o circo precisa ir, Celso! Porque estamos mudando!
— Eu não queria que você se mudasse!
— Não se culpe! Nossa vida é feita de mudanças mesmo! Vivemos quinze dias em cada cidade.
— Quer dizer que… nunca mais vamos nos ver…
— Não sei! — Disse ela tão triste quanto eu. — Acho que não!
— Não pode ser! Eu gosto de você! É minha melhor amiga!
— Gosto muito mais de você! Mas o que podemos fazer?
— Pelo menos você se diverte bastante! Viaja pro Brasil inteiro!
— Eu preferia ser como você! Ter uma casa pra morar… uma única escola pra estudar… manter meus amiguinhos… é duro fazer uma amizade igual fiz com você, depois ter que ir embora.
Notei que ela falava com muita sinceridade. Notei que tinha razão. Mas nada adiantava agora. Ela iria mesmo se mudar.
— Gostaria de ir me despedir da turma do circo.
Na manhã de segunda-feira, mamãe nem foi trabalhar e me deixou ir ao circo me despedir.
Cheguei às nove horas: a gigantesca tenda já estava toda no chão e os caminhões praticamente carregados. Eu e Lucia ajudávamos o pessoal a carregar as peças mais leves.
Apesar de estar achando o trabalho até divertido, estava muito triste com o que estava acontecendo.
Aproximadamente meio dia, os caminhões e reboques começaram a se locomoverem. O último reboque a deixar o pátio foi o da família de Lucia.
O pai dela a chamou. Ela disse que teria que ir. Deu-me um rápido beijo na face (foi o primeiro beijo que ganhei de uma menina na vida), nem me deixou retribuir e correu para o carro. Sentou-se ao lado de sua mãe e sorrindo foi-se embora. Talvez para sempre.
Eu, porém, sentia o coração assustado, lágrimas correndo em meu rosto e os lábios calados. Percebi que ela sorria tristonha; que seu sorriso era um disfarce para não chorar. Não éramos namorados, éramos amigos. Nunca tive uma namorada em criança.
Às treze horas o pátio estava deserto. O circo havia se ido por completo. Só então me dera conta de que tinha perdido o horário da escola; retornei à minha casa sabendo que mamãe talvez até me bateria pela irresponsabilidade por faltar às aulas, mas ela apenas me questionou aonde eu andava e respondi que, ajudando o circo a ir se embora, acabei por me esquecer da hora.
No dia seguinte, meus colegas de escola faziam gozação comigo, dizendo que eu estava triste porque minha namoradinha se fora para sempre. Fingi não dar bolas, mas no fundo sabia que o que diziam era verdade: embora não fosse namoradinha, ela havia se ido para sempre.
No recreio, nem tomei sopa, nem comi meu lanche, estava sozinho sentado na muretinha do pátio, quando Aparecido me chamou:
— Hei Celso, esqueça a namoradinha! Venha brincar conosco!
Eles eram um grupinho de quatro meninos que brincavam de rela-rela e acabei aceitando o convite.
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Nessa época da vida, aconselhados por não sei qual amigo das crianças (amigo da onça, isso sim!), nossos pais, compravam na farmácia São Paulo do senhor Otacílio, o famoso óleo de fígado de bacalhau (Emulsão Scoth) e então, nem adiantava tentar se esquivar, todas as manhãs eu e todos meus irmãos (e lógico que praticamente todas as crianças do mundo), éramos obrigados a tomar uma colherada bem cheinha daquela… guloseima…
Pior do que óleo de fígado de bacalhau, somente a vacina de ovo choco que éramos obrigados a tomar na escola Marcos Trench. Os adultos diziam que era vitamina para crescermos fortes e saudáveis.
A visita de vovô.
Assim, acho que ainda continuava triste, quando Zeca, à noite, na varanda de saída de casa, me perturbava com suas costumeiras gozações.
— Cido Pinico, mariquinha! — Disse ele.
— Você que é mariquinha!
— Quem vinha embora da escola com menina?
— Ela era minha colega de classe.
— Mas você tinha que vir embora com a gente, que somos homens! — Continuava ele em um tom cantado.
— Você também foi no circo de graça! E achou bom!
— Fui só no circo!
— Aproveitou do convite de menina! É mariquinha também!
— Cala a boca! — Gritou ele. — Cido Pinico!
Nervoso, apanhei metade de um tijolo e bati com força em sua cabeça. O sangue jorrou imediatamente, manchando sua camisa de vermelho escuro e ele começou a chorar alto. Mamãe e papai correram a socorrê-lo, levando-o para dentro e lavando sua cabeça, depois aplicando um mercúrio e colocando um pedaço de algodão no ferimento, até conseguir estancar a tal hemorragia.
Desde o incidente até o curativo feito por meus pais, fiquei assustado, sentado em cadeira na varanda, temendo pelo grave ferimento causado em meu irmão e aguardando a surra que certamente levaria. Só não sabia quem me bateria: papai ou mamãe. Se fosse papai, seria a segunda vez e desta vez seria forte, talvez com um cinto dobrado; mamãe, eu já tinha perdido a conta. Embora quase não apanhasse, às vezes acontecia e era de varinha verde, que doía muito e levantava vergões nas pernas nuas.
Terminaram os curativos e continuaram seus afazeres: mamãe voltou a lavar a louça do jantar e papai foi ao banho. Nem sei por que, mas escapei da bela surra intacto. Nunca tocaram no assunto e Zeca passou a ter mais cuidado ao mexer com tal Innocentinho perigoso.
Uma fria manhã, por mais que eu tentasse o fogão não me ajudava e o fogo não ascendia para que eu fizesse o almoço. Parecia que a lenha estava verde ou molhada, mas não estava, pois, apesar do tempo fechado fazia dezenas de dias que não caía uma gota de água dos céus. Penápolis até parecia o famoso personagem Cascão do Maurício de Souza (já falei dele, lembra? Detestava tomar banho. Às vezes os céus se fechavam com nuvens carregadas, até trovejava, chovia em todas as cidades circunvizinhas e ia embora molhar outros cantos sem despejar sequer uma única gota em nossa querida Terra de Maria Chica (outro apelido de Penápolis, além de Princesinha da Noroeste).
Meia hora de labuta e nervoso, com a cara molhada de suor e até preta de fuligens, resolvi abandonar tudo, deitar em minha cama e deixar o almoço sem fazer.
Às onze horas, papai chegou faminto como sempre e encontrou o fogão todo apagado e as panelas vazias. Somente o arroz estava lavado, secando na bacia pequena, o alho e a cebola picados no pirex ao lado.
— Hoje não tem almoço nessa casa? — Perguntou ele bravo.
— O fogo não quer ascender de jeito nenhum! — Protestei.
Ele foi até o fogão, preparou a lenha com muito jeito, colocou um pedaço de jornal sob a danada e ascendeu seu isqueiro à gasolina. Menos de um minuto depois, o fogo ardia bonito sobre os paus secos. Papai, sem me reprovar, sentou-se na sala; acho que ele compreendia que eu ainda era só uma criança para muitas responsabilidades.
Cabisbaixo por minha ignorância, apanhei as panelas e iniciei a preparação do almoço, que por ser simples não demorou mais do que meia hora para ficar pronto.
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A visita mais rara em nossa casa deveria ser de meu avô Alfredo. Deveria, mas não foi: era um domingo pela manhã, quando ao longe, veio chegando devagar com uma mala de duratex na cabeça. Chegou, aceitou nossos cumprimentos de “bênção vô”, cumprimentou mamãe e papai, entrou e sentou-se em uma cadeira na sala, na qual ficou conversando, apenas com papai, enquanto mamãe terminava o almoço.
Enquanto isso no quintal, usando uma serrilha de ferro, criei alguns entalhes em pedaços de ripas novas (pequenas sobras), que papai sempre trazia da construção e então, fazendo uso de carretéis vazios de linha de costura número 50, que mamãe usava em sua máquina Singer (mamãe tinha mil utilidades), criava meus próprios carrinhos, ônibus, caminhões, peruas… os carretéis eram os pneus que com o dedo indicador guiava, fazendo até curvas.
Enquanto vovô não queria nossa prosa, construí pelo menos uma dúzia de carrinhos diferentes e brincava, geralmente sozinho.
Mamãe usava a máquina de costura para remendar nossas roupas rasgadas e até fazer algumas, inclusive nossas cuecas tipo samba canção, que eram feitas com sacos de farinha de trigo, ou açúcar (por isso que éramos crianças doces).
Assim que terminamos de comer nossa macarronada com frango ensopado e limonada fresca (água tirada na hora do poço), feita com limão galego que Zeca trouxera da olaria, vovô Alfredo se levantou, se despediu de meus pais e de nós {com o tradicional “a benção vô” (sei que sou repetitivo, mas é que marcou)} e se foi para a Vila Barbosa, fazendo uso do ônibus da Anhenzine.
Sua famosa mala ficara de presente a papai, que ao abrir percebeu que ele era pior do que nós crianças para ajuntar porcaria: dentro daquela mala havia apenas papéis sem um pingo de valor. Papai nos autorizou a usá-los para brincar e foi assim que comecei a ideia de criar talões de cheques ou dinheirinho, usando velhos cadernos cortados em três ou quatro pedaços.
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Para economizar no corte de cabelo da criançada, papai comprou uma (até bonita) máquina de cortar cabelos, niquelada e decidiu que seria o nosso barbeiro, passando a praticar o corte em nossas pobres cabeças.
Não adiantava tentar fugir: ele nos chamava pelo nome e então sentávamos em cadeira no quintal, éramos envolvidos sobre toalha para proteger o corpo dos cabelos que desciam pinicando como vingança por tê-los cortado e a malvada máquina fazia estragos.
Por sorte, ele sempre iniciava pelos menores. Primeiro chamava o Bê, depois o Nezo, o Zoca, o Gilmar, o Moacir (repare que ele cortava o cabelo também de meus primos, filho de tia Amélia). Coitado do Bê (Marcos), que foi a primeira cobaia, teve o cabelo praticamente todo raspado, ficando apenas com pequena mecha na frente; lá na vez do Gilmar, o cabelo já ficara tipo soldado americano, mas os caminhos de ratos eram bem visíveis nas grandes falhas.
Quando chegou a minha vez, nem adiantou estar sentado temeroso junto à mesa da sala, fingindo fazer minha tarefa (que já estava pronta há muito tempo).
— Cido! — Chamou-me com sua voz forte.
— Senhor! — Fingi não saber do que se tratava.
— Sua vez!
— Estou fazendo tarefas!
— É a sua vez! — Aumentou a voz com tom severo.
Não teve jeito: sentei-me à sua frente e fui envolvido pela toalha e então, em poucos segundos via mechas e mais mechas de meus pobres cabelos loiros, que caiam praticamente mortos sobre a toalha em meu colo. Como não tinha nada a fazer, ficava pegando-os e acariciando-os, como em triste adeus, enquanto a máquina malvada continuava seu estrago.
Depois a máquina fora deixada de lado e a navalha assustadora aparava atrás das orelhas, as costeletas (que haviam se ido) e na nuca; então entrara em operação a famosa tesoura, para sei lá aparar o que, pois, pelo vento frio que sentia na cabeça, acho que não existia mais nada.
Após cinco minutos de agonia, tudo estava consumado: a toalha foi tirada, me levantei daquela cadeira, passei a mão sobre a cabeça quase careca, tirei a camisa para bater o resto do cabelo vingativo que insistia em permanecer grudado em todo meu corpo e corri me olhar no espelho.
Apesar de tudo, não estava tão mal assim. Meus cabelos (o que sobrou, é lógico), até pareciam castanhos e eu estava parecendo um verdadeiro soldadinho seminu.
Quem ama seu dentista?
Luís Carlos, que então começara a trabalhar na marcenaria do João Carola, trouxe um lindo estojo escolar de madeira, com 6 repartições individuais para lápis, borracha, apontador e o que mais quiser.
Como ele não estudava mais, pois já tinha seu diploma de magistrado do quarto ano escolar, deixou que eu usasse o estojinho, que passou a fazer inveja em minha escola. Todos os meninos queriam ter um igual e em apenas dois dias de uso, acabei por não resistir às ofertas em valor. Luiz Gustavo ofereceu 127 Cruzeiros (suficiente para comprar uns dois daqueles) e com coordenação da professora (para que ninguém fosse lesado) passou a ser dono do danadinho.
Em poder de dinheiro; coisa rara nas mãos de crianças daquela época, no horário do recreio nem me aproximei da mesa de sopa. Fui direto no alambrado, onde pela primeira vez, comprei do senhor Romualdo, dois imensos pães doce e um punhado de balas, para mim… e Zeca.
De posse dos deliciosos pães, saí em busca de meu irmão, mas não o encontrei em lugar algum. Passei a perguntar dele aos meninos, até que um que estudava em sua sala me disse:
— Seu irmão ficou doente! Caiu na sala e a professora mandou ele ir embora.
— Doente! Como assim?
— Sei lá! Parecia que estava morrendo!
Fiquei muito preocupado, até perdi o apetite e minhas guloseimas já não parecia ter sabor. Mas enfim, sabia que ele fora para casa. Restava agora saber o que fazer com dois gigantes pães doce. Ofereci a alguns colegas que, já tendo se fartado da sopa da escola ou merenda de casa, agradeceram. Mesmo sem apetite, comi quase a metade de um deles e infelizmente acabei por jogar mais de um no lixo (o que vem fácil vai fácil).
Apesar de receoso, adentrei ao corredor da escola, passando olhando para dentro da sala em que meu irmão estudava e como ela estava vazia, continuei caminhando até passar lentamente em frente à sala dos professores.
— O que você quer, Celso? — Perguntou-me minha professora, pois ali era local proibido para os alunos.
Sem responder, com o coração assustado voltei a caminhar de volta pelo mesmo corredor.
— Menino — alguém me chamou e me voltei.
Era dona Isabel, professora de Zeca, que sabendo minha intenção se levantara e se dirigira até o corredor.
— Está preocupado com seu irmão?
Não respondi e ela continuou:
— Não precisa se preocupar. Ele teve um probleminha na classe e eu o mandei para casa. Mas ele está bem. A essa hora com certeza já está em casa.
— Ele não vai… mor…rer?
— Claro que não! Foi só uma coisa à toa. Ele já está bem. Vá brincar.
Soara o sinal, quer dizer, o sino, balançado pelo inspetor de alunos e era hora de voltar para a fila no grande pátio coberto.
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Nossa escola procurava cuidar bem de seus alunos, inclusive com cuidados odontológicos. E assim, a criança era examinada e em caso de necessidade, seus dentes eram cuidados na escola.
Eu, aos nove anos, nunca fora ao dentista, então, visitando o doutor Raimundo, precisei ser escalado para tratamento e acabei por comparecer vários dias seguidos a seu consultório, em que fiz diversas obturações. Não gostava nada da maquininha barulhenta que até machucava a boca, mas gostava de seu pequeno armário com mais de 100 gavetas que até parecia de brinquedo de crianças.
Doutor Raimundo deveria ter seus quarenta anos, era branco de cabelos escuros, um pouco calvo (para mim era careca), muito bom e trabalhava no lugar ideal: na escola infantil, pois adorava crianças como ninguém. Durante o tratamento, mesmo que a criança não colaborasse (como eu que ficava admirando suas gavetinhas), jamais se irritava. Estava sempre alegre e cuidava da gente com muito carinho. Não fingia cuidar de nossos dentes. Cuidava. Dizia que éramos como filhos para ele.
Como nosso uniforme consistia em camisa branca com emblema da escola no único bolso, que era do lado esquerdo e calça bem curta, azul marinho (a calça era tão curta, que parecíamos meninos franceses dentro daquele uniforme), eu geralmente não usava cueca com o uniforme, pois, como era feito por mamãe, tipo samba canção, com pano de saco de farinha de trigo, açúcar ou semente de algodão, se eu a usasse, provavelmente, devido à calça ser muito curta, apareceria a ponta de sua barra. Eu tinha nove anos, não me preocupava com isso; não usava e pronto.
O problema aconteceu quando, de tanto enfiar tranqueiras no pequeno bolso da calça, seu forro acabou se rasgando e dentro da sala de aulas, nem sei em que pensava, meu pintinho amarelinho, resolveu entrar em estado de foguetinho e encontrando o bolso rasgado saiu imediatamente para tomar um ar. Quando notei a tragédia, tentei prendê-lo em seu devido lugar, mas Fátima Ribeiro*, que sentava à minha direita, uma carteira à frente, olhava para trás e viu o danadinho antes que eu o guardasse…
Além de vermelho de vergonha, fiquei muito assustado, pois ela contaria à professora e teria diretoria na certa; mas, assim como eu, ela também ficou vermelha de vergonha, me olhou sério (olhar que jamais esquecerei), enquanto eu guardava a prova do crime e voltou a sua posição normal na carteira, se esquecendo (ou não) do ocorrido para sempre, em um segredo que ficou sendo só nosso.
Adeus vovô.
Vovô Alfredo, já bem idoso, acabou por ser internado no hospital de Promissão e muito doente, acabou por não resistir, vindo a falecer no próprio hospital, no final de tarde.
Papai viajou para o hospital a fim de cuidar dos preparativos de translado (acho que posso falar assim) e outras burocracias (já estava aprendendo muito).
Logo pela manhã, chegou em nossa casa, vindo da capital, minha tia Tonica, com Flávia, sua filha de minha idade deficiente por paralisia infantil, mas que graças ao Valente Menino Jesus andava e falava normalmente, tendo apenas deficiência nos braços. Minha tia era a irmã mais velha de papai, que eram em sete irmãos vivos: tia Tonica, Papai, Luiz, Amélia, Osvaldo, Aída e Arlindo além do falecido Aparecido.
Mamãe acabou de nos preparar em traje de gala {calça e camisa de mangas compridas sem suspensórios (desde que mudamos para a cidade deixei de usar meus suspensórios. Gostava deles, mas nem sei porque, tal acessório foi abandonado) e sapatos pretos}; então, após o café seguimos para a beira da rodovia de acesso à cidade, onde aguardávamos a passagem do ônibus da Anhenzine, a fim de irmos até Vila Barbosa.
Poucos minutos antes do ônibus, passou o senhor João carola, com sua charanga (calhambeque) vazia. Parou, lotou com todos nós: sete de minha casa e dois da minha tia, mais ele, dez pessoas. Ficamos apertadinhos como sardinha em lata e seguimos assim mesmo pelos 30 quilômetros até a casa de vovó Aurélia. Graças à carona de João Carola, mamãe economizou uma boa grana (a Anhenzine quem perdeu).
Chegamos à Vila Barbosa antes das oito horas da manhã e o vovô só chegou, dentro de um caixão, por volta das dez horas, sendo com isto o segundo caixão de guardar pessoas de minha vida (o primeiro foi de tio Anor). O de meu avô era diferente: grande, marrom e com forros até estofados. Ali dentro, apesar de parecer ainda mais velho, ele até parecia estar bem confortável e não ser tão bravo como sempre mostrou.
Quatro velas ficaram ardendo durante todo o dia e vovó Aurélia permanecia o tempo todo sentada em cadeira, bem próxima do extinto, sempre reclamando que sofreu muito durante os quase quarenta anos de casamento com o nervoso Alfredinho (para ela); agora ele iria descansar e ela já não sabia mais o que seria dela.
A morte de tio Anor, talvez por ser novidade, me tocou muito mais dolorida do que de meu avô paterno. Enquanto os adultos choravam e permaneciam o tempo todo na sala, nós meninos brincávamos muito de correr pelo longo terreno daquela confortável chácara no centro de Vila Barbosa.
O mais divertido entre todos, era meu primo Nenê de oito anos (não sei seu verdadeiro nome), filho de tia Aída com tio Vicente (não o da Jardineira do Córrego dos pipis).
Nenê tinha o apelido de jacaré e era assim que o chamávamos; mas ele não ficava bravo: pelo contrário, gostava da brincadeira e corria atrás da gente para pegar. Ou seja: acabava se tornando um pega-pega, com muitos gritos e algazarras.
Minhas roupas de gala, já sem sapatos, acabaram se tornando sujas, suadas e amassadas; a camisa foi deixada de lado e a calça, tendo suas pernas dobradas até a altura dos joelhos.
De vez em sempre surgia um adulto, chamando nossa atenção, que não era hora nem dia de bagunça. Tínhamos que respeitar a morte de vovô; então permanecíamos em silêncio como anjinhos por uns vinte… segundos e tudo recomeçava, geralmente pela micagem com o nariz, feita por nosso priminho “jacaré”. Quando teríamos a chance de reunir um batalhão de primos juntos novamente? Vovô morreu e nós… vivemos. Ali estava pelo menos umas 30 crianças, tais como (nem precisam ler senão cansa) Carlos, Zeca, eu, Nezinha, Nezo, Bê, João, Zete, Moacir, Gilmar, Ivone, Zoca, Nenê (o Jacaré), Donizete e Nezinha (do tio Arlindo), Belinha, Nice, Flavia e outro tanto que já me esqueci.
Papai precisou ir até o posto telefônico fazer uma ligação para São Paulo e eu, curioso (nunca tinha visto um telefone) fui com ele. O posto ficava a apenas 50 metros de distância, junto a outro posto, o de gasolina, onde a telefonista solicitou a chamada para Araçatuba, depois informou papai que sua ligação se completaria dentro de duas horas (estávamos em mundo evoluído, por isso a agilidade).
No horário combinado, voltamos ao posto telefônico e depois de aguardar mais dez minutos, assisti papai falando naquele aparelho esquisito, com meu tio José schnawgher (não consigo escrever direito seu sobrenome alemão), marido de tia Tonica, que estava a mais de 500 quilômetros de distância e papai parecia estar como bobo, falando e gesticulando sozinho.
Cinco horas da tarde, com o dobro da choradeira (até nós crianças sentíamos os olhos cheios de lágrimas, talvez não pela partida de vovô, mas sim, por assistirmos a nossos pais chorando), o caixão foi fechado e levado pelas mãos de seis adultos, pelas ruas da Vila Barbosa, até chegarmos ao cemitério local, aonde foi colocado em um buraco fundo, depois coberto com terra úmida. Aquilo eu nunca tinha visto e tive medo: não queria morrer nunca! Não queria ficar preso em caixão e coberto por terra! Com certeza ficaria sem ar! Escuro… Querido Valente Menino Jesus, não deixe isso acontecer comigo!
Após o velório e o enterro, a maioria das pessoas, parentes ou não, resolveram ir embora. Minha turma e da tia Amélia, além de tia Tonica, permaneceu na casa de vovó, pois no dia seguinte papai precisaria acertar alguma coisa nem sei sobre o quê.
Mamãe e tia Amélia prepararam o jantar, usando água do pote para cozer alimentos.
Em cozimento a água não tinha problemas, mas para beber era um sacrilégio: a água era a mais salobra do mundo e a gente só bebia porque era necessário; não tinha outra.
PS (não sei o seu significado direito, mas serve para esclarecer alguma coisa, então vou usar): Penápolis era (e ainda é) a cidade que tinha a melhor água de toda a região, cercada por cidades de água salobra, tais como Barbosa, Lins, Osvaldo Cruz, Adamantina, Andradina entre tantas outras.
Naquela noite, como nas poucas vezes que íamos à Barbosa, depois do jantar, aproveitando a luz da bonita avenida dona Ricardina, sentamos (eu, meus irmãos e primos) no banquinho encostado no muro e ficamos até tarde (nove e meia da noite) conversando sobre muitos assuntos importantes, como o futebol do próximo domingo em nosso campinho, o jogo de bolinhas de gude, o telegrama a ser passado na pipa de papel, o campo de bocha, que construiríamos atrás de nossa casa, pois Carlos fizera um jogo inteiro de bochas pequenas na marcenaria do João Carola…
Isso mesmo: no domingo, após o tradicional jogo de futebol em nosso campo construído com esforço comum de todos, meus irmãos, primos, vizinhos e eu, nos reunimos no quintal de casa, onde, novamente em esforço comum, criamos em poucas horas, na lateral direita de casa, usando tábuas usadas de papai, enxadão e enxada, um belíssimo campo de bochas, de aproximadamente 10 metros de comprimento por menos de 2 de largura.
As bolas de bochas, como já mencionei, Carlos fabricara na marcenaria de João Carola aonde trabalhava e tinha o tamanho de uma laranja baiana.
Após a construção do bonito campo, passamos a jogar sempre em dois. A partida tinha 24 pontos e quem perdia saía; o vencedor enfrentava o próximo adversário. Outras vezes fazíamos campeonatos por eliminatórias. Os jogadores eram selecionados por ordem de idade decrescente. Adivinhem quando estreei.
Ruim de bola como eu era (salvo em posição de goleiro, que quebrava o galho), passei a curtir muito mais o jogo de bocha, onde o bom jogador é aquele que tem mais inteligência (modéstia à parte eu não era burro), enquanto que no futebol precisa de agilidade e esperteza, como em uma dança (e eu só sabia dançar igual um cabo de vassoura parado).
Passei a jogar bochas todos os dias, mesmo durante a semana, depois de cumprir minha carregada tarefa caseira pela manhã, antes de ir à escola (a tarefa escolar eu fazia à noite). Quando não tinha parceiro, jogava com meus irmãos menores ou até sozinho, criando um adversário imaginário.
Castigo. De novo?
Na escola, pouco antes do recreio, pedi a dona Maria do Carmo para ir ao banheiro e ela negou dizendo que daria para esperar o intervalo. Quando o sinal soara, estava tão apertado com a urina querendo vazar pelo ladrão, que, ao invés de correr para a merenda, corri ao banheiro, antes que acabasse fazendo xixi nas calças. Foi pior: na pressa, acabei por entrar no banheiro errado… e quando pude perceber, um monte de meninas me agarrou, arrastando-me para fora, dizendo que me levariam para a diretoria, pois eu pretendia vê-las nua. Nem sei de onde tiraram essa ideia, pois nem mesmo o diretor iria acreditar nesta baboseira. Por que eu iria querer ver meninas nuas?
Diante de meus protestos e pedido de clemência, com o pipi querendo vazar urina em todo mundo, elas, guiada pela ideia da mais velha, me deixaram livre e com isto saí correndo ao banheiro certo, aonde cheguei a tempo de esvaziar minha bexiga, depois de cair pequenas gotas na cueca que eu não usava. Lavei as mãos e ainda deu tempo de comer a merenda servida pela escola, com a vantagem de que já não existia mais filas diante das merendeiras.
Assim que retornamos do recreio, a professora avisou que tomaríamos vacina e que seria injeção; quem não quisesse tomar injeção no braço, poderia ser na bunda e que não doeria nada. O pavor foi geral: se pudesse todo mundo fugiria pela janela.
O pior foi à demora. Parecia que eles faziam de propósito com a gente: a professora ou os boateiros nos avisavam da malvada e os carrascos só apareciam quase no final das aulas, nos deixando sofrer de tanta ansiedade e medo.
E não deu outra: eles chegaram depois das quatro horas e não perdoaram ninguém (só a professora); todos nós crianças, fomos sacrificados com espetadelas no braço, as quais faziam algumas crianças chorarem, enquanto outras riam, apesar de que muitas riam com lágrimas nos olhos… e pior ainda, como a partir daquele dia, dona Maria do Carmo me trocara de lugar, me colocando em antepenúltimo lugar da sala, à frente de Vinícius, o menino mais atrasado da turma, fui então o antepenúltimo a tomar a tal injeção. Ou seja: sofri muito mais, por ansiedade. Quando chegou minha vez do sacrilégio, o primeiro da sala já estava há muito tempo livre e rindo dos demais.
Senti muito medo da injeção aplicada no terço superior do antebraço (pouco abaixo do cotovelo); doeu um pouco, mas não chorei. Uma gota de sangue brotou do furo da agulha, a moça limpou com algodão embebido em álcool e retornei para o meu lugar.
E como Vinícius era o menino mais atrasado e arteiro da sala, eu pagaria muito caro por me sentar à sua frente.
Dois dias após a vacina, já era após o intervalo de recreio; enquanto eu tentava fazer meus deveres em paz, ele me cutucava com a caneta. Eu insistia para que me deixasse quieto, mas o malvado pivete me judiava mais… mais… e mais.
Dez minutos de tortura foi o suficiente para o Innocente menino calmo explodir. Virei para trás com ódio, a fim de dar-lhe um violento murro na cara, quando a professora gritou:
— Celso!
Levantei-me apavorado.
— Aqui na frente! — Gritou ela. — Agora!
Com ódio, com medo e com vergonha, a obedeci. Ela grudou em minha orelha, me levando ao canto, dizendo:
— Vai ficar de castigo até à tarde!
Com muita vergonha, permaneci em exposição para as mais de 30 crianças, inclusive o culpado, com sorrisos zombeteiros nos rostinhos bonitos. Fora a segunda vez que ficara de castigo na escola e nas duas, não me julgava culpado. Por que será que as pessoas não analisam melhor os fatos antes de punir alguém?
Pior: dez minutos depois, entraram na sala o rapaz e a moça que nos aplicara injeção há dois dias, para verificar o efeito da vacina; se tivesse ficado mancha vermelha seria necessário tratamento.
Eles vistoriaram o bracinho de todos os meus colegas, enquanto eu não sabia aonde enfiar minha cara.
Ao final, a moça se aproximou e gentilmente me pediu para ver o braço. Tentei recusar, com vergonha, por imaginar o que ela estaria pensando em me ver de castigo: um moleque arteiro, safado, sem vergonha, malcriado, bandido e tudo o que tem de ruim. Mas a mestra disse:
— Celso, deixe a moça ver seu braço!
Contrariado, estendi o braço àquela estranha que após examiná-lo ainda me agradeceu, disse tchau à professora e se retirou com o rapaz.
Assim que eles saíram a mestra me chamou:
— Deixe-me ver seu braço.
“Pra quê?! Ela não é médica!”
Estendi-lhe o braço, ela passou a mão no local da vacina, depois disse:
— Pode voltar ao seu lugar. Espero que o castigo tenha servido de lição.
Foi o segundo castigo de minha vida na escola. O pior: o verdadeiro culpado ficou me olhando zombeteiro e impune. Pior ainda: Este não seria o maior preço a ser pago por sentar-me à frente de “moleque”. O resto do ano letivo, aquele menino atrasado me atormentou tanto que me levou para seu lado; de aluno eficiente, me transformei no segundo pior da sala (dizei-me com quem andas e dir-te-ei quem és; é bíblico).
Dona Maria do Carmo, com sua ideia de mudança na sala: crianças pequenas na frente e crianças grandes no fundo; destruiu-me.
Nos moldes do ano anterior, o exame final foi realizado no período da manhã de 21 de novembro. Quando recebi a folha do caderno de brochura em branco e escrevi meu nome, as perguntas formuladas no quadro negro (que era verde) pareciam estar escritas em russo. Só o pobre Valente Menino Jesus poderia me ajudar…
Após estas provas finais, como tínhamos uma semana de folga escolar, fui com tia Amélia, Carlos, Zeca, João e Zete, trabalhar na colheita de algodão, na equipe do japonês Iroshi e seu irmão Kaneo, com seu Mercedes Benz 1113 azul, em lavoura da Vila Barbosa.
Uma semana depois, de volta à escola, a mestra anunciava os aprovados e repetentes em ordem alfabética. Quem sabe ela dissesse o mesmo que dona Alice disse no ano anterior.
— Celso! — Disse ela. — Que vergonha! Reprovado! Vai ter que fazer tudo de novo!
Quando cheguei em casa, a primeira pergunta de mamãe foi:
— Passou de ano?
Cabisbaixo, entreguei-lhe o boletim, escrito em vermelho bem grande a palavra Reprovado.
Ela deve ter ficado triste, mas não xingou e sua varinha verde não cantou em minhas pernas nuas.
Naquela tarde, enquanto o céu chorava por mim, em torrencial chuva, meu primo Moacir, sentara em banquinho na lateral de sua casa e gritava:
— Aqui só senta quem está no segundo ano!
Ele, um ano mais jovem do que eu tinha passado e estava feliz.
Enfrentei a chuva e fui até ele; sentei-me a seu lado e disse:
— Eu também estou no segundo ano!
Apesar de me atrasar um ano escolar e estar desiludido, em poucos dias, perceberia que a vida continuaria seu rumo. Ainda era criança e tinha mais era que esquecer o mal, seguindo minha sina de ajudar mamãe, brincar e ser feliz.
À tarde, mamãe pediu que eu fosse ao bar azul comprar meio quilo de café Joanfer. Como quase em tudo, a obedeci sem protestar. Após atravessar o centro do terreno do cruzeiro, vi uma coisa vermelhinha no meio do mato: era nada menos do que uma nota de 5 mil cruzeiros. A apanhei e felicíssimo continuei minha missão. Chegando em casa contei a façanha à mamãe que só disse:
— Que bom! Pena de quem tenha perdido! Deverá fazer falta.
Realmente faria. Só para se comparar: meio quilo de pó de café custava menos de 500 Cruzeiros. E eu acabei ficando chateado por ter causado tal prejuízo a alguém. E se fosse uma pessoa bem pobrezinha? Acabei por dar o dinheiro à mamãe. Ela faria melhor uso do que eu, que acabaria gastando em doces (que engordam).
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Outra de nossas brincadeiras prediletas era abrir as portas da parte inferior de nosso armário buffet da sala, arrastar quatro cadeiras de madeira maciça, colocando duas na frente e duas atrás, diante do armário, onde a porta do mesmo encostava sobre as duas primeiras cadeiras e assim, fingíamos ser um belo carro de passeio, permanecendo brincando por horas, até que mamãe acabasse com a festa.
Nunca fale com estranhos!
O casamento de Henrique aconteceu às doze horas no Grande Hotel, localizado bem próximo à estação rodoviária. No entanto, este casamento era apenas à parte do civil, para que eles estivessem certos diante da lei da terra.
Após a cerimônia, houve grande almoço para os padrinhos e alguns convidados. Eu e minha família estávamos lá (acho que fomos convidados, já que papai era um dos primos preferidos do noivo). Já a cerimônia religiosa, aconteceu no Santuário São Francisco de Assis, às 18 horas. Dali, no caminhão de Frederico, fomos levados à sua fazenda no sítio (nem vou dizer o nome). Chegamos quando o Sol queria se pôr e permanecemos ao lado de grandes mesas preparadas para tal ocasião no grande terreno limpo da Fazenda da Onça (este era o nome da fazenda e eu ainda não mencionei. E por que este nome, também não sei. Pode ser que houvesse muitas onças no lugar, o que acho provável.)
Em pouco tempo fora servido: primeiro pão francês (sei lá porque não era pão brasileiro) com vinagrete, maionese e farinha de mandioca torrada; em seguida, mandioca e batatinha cozida; depois arroz e muita carne (ele mandara matar duas novilhas para tal ocasião) e para beber, cerveja para os adultos e muito refrigerante tubaína de 300 eme éle para nós. Foi uma grande festa: a gente só tomava tubaína no natal e ano bom.
Terminado o churrasco, duas horas depois, a escuridão era total. As mesas foram desmontadas e o sanfoneiro com pandeirista (deve ser o nome de quem toca pandeiro) entraram em ação.
O baile começou com a tradicional valsa dos noivos. Henrique, meio sem jeito, parecia até avô da noiva e dançou com ela por uns… dois minutos, recebendo uma chuva de arroz, que era símbolo de fartura e fertilidade.
Na sequência, os demais convidados entraram na roda e levantaram poeira com o forrozão que se iniciara, sem ter hora para acabar. Frederico era o mais animado da turma (acho que tomou uma dúzia de cerveja, mesmo sendo ele o chofer que teria que nos levar de volta à cidade).
Nós crianças (umas 30), conhecidas ou não, achamos um jeito de brincar próximo as lâmpadas que se estendiam até a beira do largo rio Tietê, com recomendações severas de todos os adultos, para que não nos aproximássemos do rio.
Esconde-esconde por mais de duas horas, foi brincadeira ideal naquele local ermo, com muitas árvores e pouca luz. Depois, suados e cansados, fomos procurar alguma tubaína para refrescar nossa sede. Não houve jeito: as tubaínas desapareceram e tivemos que nos contentar com água fresca e saudável mesmo.
Mais nada de brincadeiras: as crianças se dispersaram e o sono chegou. Era quase meia noite e eu subi na carroceria do caminhão de Frederico, onde encontrei uma mulher deitada debaixo da lona estendida para nos transportar (não éramos bichos; só tínhamos o mesmo tratamento em transportes), coberta em pano colorido. Sentei-me encolhido em um cantinho e ela me convidou:
— Deite aqui do meu lado.
Fiquei duvidoso. Não a conhecia.
— Não precisa ter medo! Não lhe farei mal!
Ainda duvidoso fui até perto dela, sentei-me no assoalho do caminhão, ela me estendeu o pano, cobrindo a metade inferior de meu corpo (era dezembro, mas a noite estava fria).
— Está com sono? — Perguntou-me.
Acenei que sim.
— Pode dormir que este caminhão só vai sair daqui lá pelas quatro horas da manhã.
Acabei de deitar, sem me preocupar com a roupa, que já estava suja mesmo. As mãos empoeiradas e suadas das crianças durante o esconde-esconde, se encarregaram de sujá-las (e olha que a camisa era amarela clara).
— Você é filho de quem?
— Antônio Innocente!
— Conheço seu pai! Você é irmão do Edson?
— Não! — Neguei.
— Aonde você mora?
— Jardim Brasília!
— Acho que não te conheço!
Eu tinha certeza de que não a conhecia.
— Meu pai é o Tonico! O outro Antônio é primo de meu pai!
— Mesmo que não te conheça pode ficar sossegado que não lhe farei mal — brincou ela.
De fato, todas as recomendações de meus pais e da professora, eram de que jamais falasse com estranhos. Afinal como faríamos para conhecer os estranhos se não pudéssemos falar com eles?
O fato era que eu estava cansado, com muito sono e acabei adormecendo praticamente grudado à estranha.
Acordei nem sei que horas, com o barulho do motor sendo ligado e o caminhão cheio de gente. Estávamos sendo devolvidos à cidade.
Mal-acostumado.
Cóti, concunhado de tia Amélia, adquiriu um terreno próximo à olaria do senhor Ermínio (ela e os filhos João e Zete estavam trabalhando nela, com Zeca). Pensando em lhe dar melhor conforto, construiu uma casa grande e bonita, pintando-a de amarelo e emprestou para que ela morasse por tempo indeterminado sem precisar pagar aluguel. Assim, a casinha construída em nosso quintal, ficara vazia. Bom para nós brincarmos e melhor, para papai guardar suas tranqueiras e vassouras a serem amarradas (nos momentos de folga papai fabricava vassouras).
Com muita tranqueirada que então fora guardado ali: madeiras velhas, paias de vassoura, mesas, cadeiras, ferragens… em alguns dias a sujeira começou a se apoderar do local e insetos do tipo aranha, formiga, barata… surgiram rapidamente; depois, até pequenos bichos nocivos, como ratos e então… aonde tem rato…
Um dia, desanimada de tanta bagunça, mamãe chamou meus irmãos mais velhos e resolveram dar uma certa limpada no lugar e então, lá no meio de panos sujos, encontraram um belo ninho de (sinceridade) não sei que espécie de cobra, com três belíssimos filhotes espreguiçando, após terem sido covardemente abandonados pela mãe, que tratara de correr para salvar sua pele. Mas não teve jeito: todas foram jogadas para o quintal e como sempre (covardia) foram assassinadas a golpes de pauladas, inclusive as inocentes “crianças”.
Só que a casinha não ficara assim ociosa por muito tempo: meus padrinhos Helias e Alice, sabendo disso, pediram autorização e acabaram se mudando para ela. Eles teriam tentado a vida novamente no sítio, procurando reencontrar a felicidade de outrora, mas depois que a gente perde esta oportunidade não consegue se adaptar novamente e como a sua casa da cidade estava ocupada por inquilino, foram morar conosco por um determinado tempo.
Uma noite, Lourdes (minha querida ama-seca em bebê) resolvera lhes fazer uma visita e inclusive com mamãe e meus irmãos pequenos, ficaram conversando no quintal, junto à casinha, então de meus padrinhos. Papai, saíra para jogar baralho na casa do senhor Líbano. João e Zete brincavam comigo e Zeca.
Regina entrou na sala e nem sei de onde veio à ideia de brincarmos de polícia. Um a um éramos levados ao quarto de meus pais, onde Regina permanecia (era a policial).
Eu, o menorzinho, fora o último: ela fechou a porta, me tirou a calça curta (sem cueca), me jogou na cama e com as próprias mãos fingindo ser navalha, me castrou sem piedade… a seguir, baixou sua calcinha e deitou-se sobre meu corpo despido, fingindo sermos marido e mulher.
— Isto é pecado! — Disse-lhe assustado (anjinho da cara suja).
— Não é pecado! — Negou ela. — Meus pais fazem!
Na tarde seguinte, seguimos juntos de bicicleta até a primeira entrada da cidade, que dava acesso à avenida Santa Casa, onde visitamos a chácara do senhor Vitório e fomos, devidamente autorizados, colhermos laranja vermelha (as pessoas a chamam de laranja sanguínea), que é uma espécie tipo laranja pera, só que sua polpa tem a cor em vermelho, diferente das demais que é amarelada.
Regina continuava sendo muito bonita, sempre usando saia e blusa tipo camisa. As lembranças da brincadeira na noite anterior me deixavam…
— Vamos brincar de polícia… novamente… — convidei-a assustado.
— Aqui! — Reclamou ela. — Acha!?
De volta ao segundo ano escolar.
As aulas recomeçaram em 5 de fevereiro. Eu, de volta à segunda série com praticamente todos colegas novos e nova professora, dona Mercedes. Embora eu torcera durante quase todo o período de férias para estudar com Moacir, isso não ocorreu, pois ele fora escalado para a sala de dona Maria do Carmo.
Alguns de meus novos colegas de sala eram: Adalberto, o mais asseado e bem vestido, usando até relógio de pulso, que era acessório para rico (ele era filho de dona Mercedes, que tinha também o filho Gilberto na terceira série). Ambos moravam com os pais na Rua Ramalho Franco, próximo a igreja de Fátima; Grillo (era o sobrenome, nunca soube seu primeiro nome), loiro, de cabelos curtos como eu, mas era o menorzinho entre todos, não aparentando ter mais do que sete anos de idade e usava uma bolsa de nylon azul e branca, além de ser o único que levava lancheira na escola. Morava em uma casa em terreno bem acima ao nível da Rua Minas Gerais, quase esquina com a Siqueira Campos; Roberto era branco de cabelos escuros e voz forte, que era também o principal amigo de Grillo; Aparecido, menino simples, que andava sempre sujo e morava perto da vidraria (fábrica de garrafas) no caminho para minha casa; Dinho também morava na rua Minas Gerais, em frente à igreja de Fátima. Ele devido estar sempre correndo e brincando, também estava sempre sujo (acho que saía de casa limpo), sua camisa em vez de branca como as nossas, era amarelada e seu short tinha um azul bem mais escuro; Vinícius, repetente do ano anterior, que me levara com ele (e dessa vez, mesmo que tivesse que brigar com a professora, me sentaria a um quilômetro longe do tal cearensezinho; Fernando e Sônia (eu não sabia, mas lá longe no futuro, ela acabaria dando aulas de educação física para dois de meus filhos), dois irmãos ruivos que tinham apelido de cabelo de fogo devido seus cabelos dourados e muitas sardas (diziam que se uma cobra jiboia soprasse na cara de alguém, o infeliz ficaria cheio de sardas. Então diziam que os dois irmãos tinham sido soprados), de qualquer forma, Sônia tinha os cabelos compridos, voz rouca e um sorriso bonito (suas sardas fazia sua simpatia), não que a paquerasse, pois minha paquera sempre fora a Fátima Ribeiro (a do incidente com o foguetinho), que aliás nunca soube disso; ela tinha uma pinta preta no rosto e um olhar tímido como eu, só que agora estava no terceiro ano; Valdir e Nilton, dois irmãos morenos claros que também moravam no mesmo bairro que Tuta, de cabelos escuros e curto (todos nós usávamos cabelos curtos); Joana D’Arc tinha o apelido de vareta, pois era a mais alta da sala, era mulata dos cabelos cheios e morava no mesmo bairro em que eu, na rua do cruzeiro e outros…
Novidades na escola eram as gigantescas cortinas brancas, de tecido enceradado (poderia ser esse o nome de pano grosso tipo lona), que estavam sendo colocadas em todas as salas para nos proteger da forte luz do Sol, que até então torrava os braços e rosto das pobres crianças que foram condenadas a sentar próximo à janela, como eu no segundo semestre do último ano.
Também, por determinação do presidente da República Federativa do Brasil: excelentíssimo senhor Arthur da Costa e Silva, em cada sala de aula do país deveria ter o símbolo máximo da nação, a bandeira brasileira (estávamos em pleno regime militar e o homem queria mostrar trabalho) e para que a criança soubesse dar o devido valor, ela deveria ser adquirida com o dinheiro das crianças (como criança não tinha dinheiro, os pais entrariam nessa honraria). Feito os cálculos a bandeira tinha o mesmo valor, mas cada sala de aula tinha diferentes números de crianças, então uma criança poderia pagar mais… ou menos… Nossa obrigação (minha sala) ficara em dezenove Cruzeiros cada criança.
E assim, em poucos dias, bonita, no canto direito da sala, estava ela, toda orgulhosa e opulente (será que é isso mesmo?), olhando por nós, crianças cheias de imaginação. E no pátio da escola fora instalado três mastros, nos quais, também por determinação do presidente (Costa), uma vez por semana, que seria segunda-feira, seria hasteada as bandeiras da República, do estado e do município, onde, ao som do Hino Nacional Brasileiro, de Osório Duque estrada, cantado em posição de sentido, com a mão direita sobre o coração, pelo nosso coro, centenas de alunos.
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Em meu pulso esquerdo, na parte de cima, começou a surgir aos poucos uma pequena bola dolorida, que aumentava a cada dia. Segundo me dissera mamãe, era um tumor que vazaria em breve e servia para limpar as sujeiras do sangue (só não sabia qual sujeira já que meu sangue nunca brincou na terra suja). Ao fim de 10 dias, dentro da sala de aulas, a tal bola estava enorme e muito dolorida, a ponto de querer até gemer de dor, só não fazia de vergonha dos colegas.
Dona Mercedes explicava a lição e passara como tarefa o que havia explicado, detalhando como deveria ser feito. Eu, devido à dor que parecia dar até febre, não prestava atenção em nada; porém copiei a tarefa de matemática.
Por volta das três horas da tarde, aquela bola, muito vermelha e quente começou a vazar e eu fazendo uso de um lenço, que graças exigências de mamãe, tinha o costume de carregar, passei a limpar e limpar… fazendo de tudo para que ninguém notasse (deveria ter avisado a professora que, com certeza me mandaria ao banheiro ou até para casa). Quanto mais limpava, mais vazava. Por sorte (acho que para me ajudar, já que tal “Innocentinho” era tímido o bastante para pedir dispensa à mestra), lá fora armou um temporal de chuva, transformando o dia em noite, fazendo com que a professora precisasse ascender todas as nove lâmpadas amarelas em grande globo de vidro da sala de aulas. Em seguida ela resolveu dispensar os alunos que moravam longe. Eu estava entre eles. Com isto, devido o lenço muito sujo de sangue amarelado, preferi levá-lo na mão mesmo (deveria tê-lo jogado no lixo).
Passei na casa de vovó, indo direto ao banheiro, onde lavei rapidamente toda aquela coisa grudenta que ainda permanecia em meu braço; lavei também o máximo que pude o meu lenço. Enquanto isso lá fora a chuva começou muito forte, fazendo com que com os demais (Zeca, Zete e Moacir) que chegaram, tivemos que aguardar até às cinco horas, apesar da febre que me dominava, depois como fazíamos todos os dias, nos despedimos de vovó e voltamos para casa, brincando de quatro faróis (era uma aposta: quem visse primeiro um caminhão ou carro de quatro faróis, gritava ao outro e marcava um ponto. Era vitorioso quem fizesse 10 pontos primeiro e ganhava… nada… só a vitória) e de fordão (o caminhão Ford F.600) correndo sempre dentro da grande enxurrada que, apesar da chuva ter cessado há mais de quinze minutos, insistia em correr vermelha pelas ruas sem pavimento até chegar ao rio Maria Chica e ser levada para o grande Lajeado, depois Tietê, Paraná e algum dia chegar ao mar.
Quando fui fazer a tarefa à noite, quem disse que sabia alguma coisa de multiplicação com três números? Pedi ajuda de papai, que também não sabendo (ele só estudara até o segundo ano e isso foi há muito tempo) pediu que Zeca me ajudasse. Acho que por sacanagem, ou preguiça, ele disse que também não sabia (ele estava na quarta série). Com isso fiquei sem fazer meu dever de casa, que também deveria saber, pois era repetente do ano anterior e já havia estudado aquilo.
Sorte que dona Mercedes era muito boa e compreendeu minha desculpa (igual de outras crianças) de não ter feito por não ter aprendido direito, reexplicando toda a matéria.
A Avenida Minas Gerais estava então sendo asfaltada. Caminhões de pedras e um pó parecido com cimento estavam sendo despejados ao longo de toda a avenida. Homens e máquinas cuidavam da terraplanagem e distribuição de todo material, começando pelas guias de sarjetas.
Meu primo Zé Luiz recolhera algumas latas de um litro daquele tipo de cimento para a casa de vovó. No fundo do pomar, que vovô cuidava com muito carinho limpou e criou diversas ruas estreitas, asfaltando-as com muita engenharia e passou a ser seu local de brincar. Toda sua coleção de muitos carrinhos de ferro, que ganhava de seu pai (a vantagem de ter pai separado era que para compensar o trauma, vivia dando muitos presentes) sempre ficava na casa de vovó. A gente não sabe o sentimento de cada criança, mas meu primo (aparentemente) tinha uma ótima convivência com meu tio Vicentinho, apesar de que meu irmão Carlos sempre achasse o contrário.
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Carlos esteve a passeio na chácara de vovó Aurélia, onde ganhou de presente de meu tio Osvaldo, uma linda gaita (que não era de brinquedo), marca Sonhadora, com caixinha de madeira especial, forrada por veludo vermelho. Voltou para casa todo orgulhoso e vivia soprando aquela beleza, que, se soubesse tocar tiraria músicas muito lindas daquele pequeno instrumento de sopro. E Carlos tinha uma coisa de bom em sua intimidade (sua índole): não negava que a gente usasse seus pertences, desde que tivéssemos cuidado. Era assim com o cavaquinho, foi assim com o estojinho escolar, era assim com seu jogo de bochas, tornou-se assim com sua gaitinha.
Agora estávamos perfeitos: um cavaquinho e uma gaitinha, que fazíamos barulho sem talvez ter dom de artistas. Papai sempre sonhara em um acordeom, mas nem sei se ele tinha realmente algum dom para isso (esse tal de dom musical não era lá coisa fácil e eu iria batalhar por ele).
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Desde os primórdios da humanidade (filosofia) o homem destrói a natureza, cada vez com mais intensidade e ela retribui (se vinga) com catástrofes e doenças.
Quando os cientistas conseguem descobrir a cura para determinada doença, a natureza sofrida e pródiga (teima em voltar) inventa outra pior. Assim, naquele ano em que eu completava dez anos de idade, surgiu uma tal de varíola e por determinação do ministério da saúde, 100% da população (quase 90 milhões de pessoas) teria que ser imunizada com vacina (isso: a varíola já existia, mas só então os cientistas conseguiram criar barreiras de imunização).
Acompanhado por toda minha família lá estava eu na grande fila indiana, ao lado da Praça Doutor Carlos Sampaio Filho, aguardando a minha vez para o sacrifício.
Algumas pessoas, principalmente adultos protesta-vam contra a vacina, que não era recomendada se a pessoa fosse alérgica a ovo (não sei se existem pessoas alérgicas a ovo, que é a principal refeição da maioria dos pobres brasileiros. Enfim, dizem que é a tal salmonela). Crianças não podiam protestar, pois além de serem mandadas pelo governo, eram também mandadas pelos pais e pela cinta dos pais… (acabavam também protestando através do choro)
Alguns (adultos) reclamavam que a agulha machucava e então o funcionário da saúde precisava desmontar a maquininha de aplicar a tal vacina, para provar que não existia agulha; o remédio era introduzido em nossos músculos através da força de pressão. Sei lá, mas a maldita cicatriz da vacina me marcaria para a eternidade terrena.
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Nesse período, embora ninguém soubesse quem era o dono, apareceu solto nas nossas ruas, um enorme bode preto, com os chifres medindo mais de 50 centímetros cada. O bicho gostava de andar pastando para todo lado, se tornando o dono das ruas e fazendo com que nós, a criançada, permanecêssemos quase trancados, com medo do danado, que era mais bravo do que boi de rodeio.
Mesmo na hora de irmos para a escola, vivíamos assustados, pois topar com o bicho era correria na certa, com ele em nosso encalço, ameaçando uma cabeçada certeira… e diziam que o bode tem a cabeça mais dura entre todos os outros animais.
Depois de muitos dias de pavor, uma das mães, ao ter o filho ferido, devido ao tombo que sofreu ao fugir do caprino, resolveu pedir ajuda da polícia, que acabou descobrindo o dono (eu nunca descobri), que embora protestasse, dizendo que o bichinho era manso como um carneirinho, acabou o obrigando a mantê-lo amarrado e preso em local apropriado.
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E com a tia Amélia morando então na casa do concunhado Cóti, muitas vezes os primos apareciam em nossa casa, geralmente à noite para brincarmos juntos na rua, outras vezes era eu quem acabava aparecendo em sua casa.
Quando adentrei à sua sala, João (que desde os oito anos de idade já tinha um jeitão de adulto por seu o “homem da casa”) conversava com um senhor já de seus quase sessenta anos de idade. Tal homem (descobri depois ser Joaquim Leite, que também trabalhava na olaria), moreno claro de cabelos encaracolados, tinha um jeito amável e gostava de conversar contando os fatos com jeito irônico.
Ele nem sabia (talvez nem eu), mas seu jeito simpático de ser, cativou o coraçãozinho deste pequeno “Innocente”.
Cadê a tal felicidade?
Por três dias seguidos, o professor senhor Adão se responsabilizou por nossa turminha de alunos, pois dona Mercedes não pode comparecer às aulas juntamente com os dois filhos Adalberto e Gilberto. Ninguém soube o motivo, mas o marido dela, pai das crianças teria falecido inesperadamente e ambos estavam de luto.
O senhor Adão, branco, alto, poucos cabelos negros, sempre bem vestido, com a camisa em cor clara de mangas longas por dentro da calça sempre cinza social, era talvez o único professor homem de nossa escola e mesmo assim não tinha uma sala efetiva, lecionando sempre como professor substituto.
No mesmo dia em que nossa mestra retornou à suas atividades, talvez inocentemente o pequenino Grillo insinuou:
— Professora, o seu marido morreu?
— Não é da sua conta! — Deferiu-lhe um grande tapa de palavras sem educação aquela que deveria mostrar exemplo.
O menino só não chorou por vergonha da turminha. E olha que ele era o menino mais educado da sala (e se eu tinha naquela mestra meu ponto de heroína, a partir de então iria rever meus conceitos).
Papai continuava bebendo e cada dia mais nervoso e cruel. Antes ele só bebia em casa e eu era o responsável em buscar sua pinga no bar mais próximo, fazendo uso de sua bicicleta e andando todo torto com as pernas enfiadas por baixo do quadro, até o dia em que resolvi tentar colocar a perna por cima e perceber que, embora não alcançasse sentar no banco (cilim), dançando o corpo para os dois lados, conseguia pedalar e andar mais confortavelmente (corria o risco de machucar os… deixa pra lá!). Devido a embriagues de papai se tornar cada vez mais perigosa e o dono do bar, que talvez para agradar o freguês parecer colocar mais pinga na garrafinha do que o pouco dinheiro daria realmente para comprar, eu parava na metade do caminho, destampava tal vasilhame e… (bebia um bom trago? Claro que não! Eu era só um pirralhinho franzino, mas via o mau que aquilo estava fazendo e me amava) simplesmente despejava quase a metade no chão.
Só que então, papai passava a chegar em casa já bêbado e xingando todo mundo, desde mamãe até o Bê (o caçula); incluindo os móveis que não saiam da frente e então levavam pontapés, sendo muitas vezes quebrados… o bule da cozinha, que se estivesse sem café levava um bicudo que ia parar lá no quintal.
Mamãe, apesar de revoltada, sempre dizia:
— Pode quebrar tudo! Foi você quem comprou mesmo!
Será que foi só ele? Pensava eu, chorando por dentro e as vezes por fora também. Todos ajudam nessa casa.
A tristeza passou a dominar nossa família e todos sofriam com mamãe, que chorava escondida em seu quarto. Eu era criança, mas tinha coração e o danadinho tinha sentimentos. Tinha medo de papai e chorava ao saber que mamãe estava chorando escondida.
Aos dez anos de idade, não me lembrava de quando foi a última vez (se é que houve) que recebi um abraço, um beijo ou um carinho de papai. Embora no sítio ele fosse um homem muito bom e sorridente, não era de acariciar ou beijar alguma criança. Acho que tinha o gênio do falecido vovô Alfredo. O último contato físico que tive em criança por ele, foi em determinado dia, ter me jogado de bruços sobre suas pernas, baixado minha calça até os joelhos para que o farmacêutico injetasse remédios em minhas nádegas através de uma grande agulha. Ou então, ao destroçar meus cabelos, que eu sempre almejei que fossem longos e ele sempre fez com que parecesse com soldadinho americano. Pelo menos podia sentir suas mãos e corpo, que roçavam ao meu, sentado em cruel cadeira de “tortura”.
Um início de noite, ele chegou em casa xingando, lavou apenas as mãos, fez seu prato de refeição (o prato já estava fabricado e era de louça) e sentou-se em cadeira afastada da mesa para o jantar. Como a natureza se vinga, acho que os móveis também, pois aquela cadeira que já levara uns bons pontapés resolveu quebrar uma das patas e cair, derrubando papai de costas ao chão, lambuzando-o todo de arroz com feijão e abobrinha cozida, quebrando inclusive o prato.
Corremos todos para ver o ocorrido e senti o coração assustado: achava que papai teria morrido, mas felizmente não aconteceu nada de grave; apenas o tombo devido às pernas bambas e sofridas por espancamento da cadeira.
Papai (nem sei se com vergonha) se levantou, limpou a sujeira do corpo e foi tomar um banho, ficando sem jantar.
Ninguém mais pedia sua benção ao se deitar ou ao se levantar. Acho que ninguém mais ousava falar muito com ele; apenas o mínimo necessário.
Te acho muito homem!
O Coney Ysland Parque fora montado em grande terreno baldio, ao lado do córrego Maria Chica, entre as ruas Siqueira Campos (que futuramente mudaria o nome para Quinze de Novembro) e Ramalho Franco (que já se chamara Barão do Rio Branco). Seus proprietários, em acordo com a prefeitura para pagar menos impostos, concederam a manhã de sábado gratuito para os alunos do primeiro até o quarto ano da rede municipal e estadual de ensino. Com isto, em fila indiana, guiados pelos professores seguimos até o local, onde estava lotado de crianças com diferentes tipos de uniformes e assim, pela primeira vez, subi em montanha gigante (apenas três voltas, pois tinha muitas crianças), carrinhos bate-bate (apesar da fila de 100 quilômetros), carrossel, outros carrinhos…
Outras atrações que gostei muito foram à muralha da morte, na qual um motociclista se exibia em túnel na vertical, correndo em alta velocidade, quase saindo pela boca superior do túnel; e também a metamorfose humana, onde um homem jovem, todo vestido em preto fica segurando com as duas mãos nas grades onde está preso e aos poucos vai se transformando em enorme gorila, depois consegue escapar da jaula, ameaçando a plateia de indefesas crianças, sem que seu domador permita.
Ao meio dia, junto com Aparecido (que morava perto da vidraria), voltei para casa. Ele falava bem caipirão e tinha umas brincadeiras safadas. Eu, mais tímido, evitava certas baboseiras de meninos avançados. Foi a última vez que fizemos algum percurso juntos.
Na segunda-feira, na escola, Ana Cláudia (a menina mais chata do mundo) que sentava à minha frente e vivia virando para trás para me atazanar, voltou-se dizendo zombeteira:
— Você é mariquinha!
— Sou muito homem! — Exclamei com raiva.
— Homem que lava louça?
— Quem te falou?
— Alguns meninos disseram que você cuida da casa igual mulherzinha!
— Qualquer hora vou te mostrar como sou homem!
— Homem que varre casa e arruma cama! Nem eu faço isso!
— Porque você é vagabunda! — Fiquei deveras nervoso.
— Cale a boca mariquinha!
— Cuide de sua vida! Me deixe em paz!
— Vou contar pra todo mundo que você é mariquinha!
Com raiva, chateado e triste por ser pobre e ter que ajudar minha mãe nas tarefas de casa (e para não dar um murro na cara de mimada) debrucei sobre a carteira e comecei a chorar. Dona Mercedes gritou (com educação):
— Está dormindo, Celso?
Levantei a cabeça, limpando os olhos.
— Por que você está chorando? — A percebeu.
Nada respondi. Continuei limpando a cara.
— Os meninos estão falando que ele é mariquinha — disse Ana Cláudia.
— Não são os meninos! — Negou o valente Dinho. — É você que fica fazendo fofocas e está falando asneira.
— Calma aí! — Reclamou a professora. — O que está acontecendo aqui? Quem está falando isso?
— Só a Ana Claudia, professora! — Insistiu Dinho.
— Por que ele é mariquinha, Ana Cláudia?
Ela não respondeu.
— O que houve, Celso?
— Ela vive me chamando de mulherzinha!
— Por quê? Embora mulherzinha não seja bicho ruim!
— É que eu preciso ajudar a minha mãe em casa, porque ela trabalha na roça (lavoura)!
— Sua mãe trabalha na roça? — Dona Mercedes fez questão de que todos ouvissem (acho que era para me envergonhar mais).
— E o que você faz em sua casa?
— Almoço!
— Só isso? — Aproximou-se de minha carteira.
— Varro a casa!
— Que mais?
— Arrumo as camas?
— E…?
— Cuido das crianças!
— E…?
— Jogo água nas plantas e na horta!
— E…?
— Lavo os trens!
— Que trens?
Os demais colegas riram. Lembrei-me que trem é um monstro gigante que leva inclusive a boiada pro Mato Grosso.
— Do almoço! — emendei.
— A louça do almoço! Que mais?
Balancei os ombros.
— Só isso?!
Tornei a balançar os ombros.
— Que mulherzinha você é! Não menino?
Voltou até sua mesa, me deixando… sem saber o que ela queria dizer.
— Eu te acho muito homem! — Prosseguiu ela. — O menino que ajuda a mãe nos trabalhos de casa, principalmente se a mãe trabalha, não só na lavoura, mas em quaisquer outros serviços, está fazendo papel de herói. Parabéns a você e aos outros que tenho certeza que faz também! Não é possível que em nossa sala só existem dois homens! Não é Adalberto (o filho dela)?
Após o jantar, enquanto mamãe lavava a louça, eu estava ao seu lado observando o quanto parecia cansada.
— Mãe! — Chamei-a.
— O que foi?
— Por que a senhora não para de trabalhar na roça?
— Preciso ajudar seu pai a pagar as contas!
— O Zeca e o Carlos ajudam ele!
— Ainda não é suficiente!
Pensei alguns segundos e lhe disse:
— A senhora fica em casa e eu ajudo o Zeca na olaria!
— Você vai à escola!
— O Zeca também vai! A gente trabalha de manhã!
— Por que isso agora? Você trabalha aqui em casa!
— Na olaria é trabalho de homem!
— Vou pensar nisso! Tá bom?
A história de vovô.
No domingo após o almoço, vovô, como de costume veio em casa. Enquanto conversávamos na varanda dos fundos (papai tinha construído uma grande varanda nos fundos, ao lado do banheiro, que antes ficava do lado de fora da casa) mamãe lhe disse:
— Não vou mais trabalhar na roça.
— Melhor mesmo! — Concordou ele. — Você tem muito serviço em casa.
— O Cido vai ajudar o Zeca na olaria.
— Isso é bom! Já está grandinho.
— Até quando ele for embora.
— Por quê? Ele vai embora!?
— Quer ser padre — riu mamãe. — Quer ir pro seminário.
— Desde pequenino ele fala isso — insinuou vovô. — Você tem certeza que quer ser padre, menino?
Acenei que sim.
— Vou lhe contar uma história — disse vovô. — Não quero interferir em sua decisão; mas nem todos os padres são santos. Nem todos vão para o céu…
Admirei-me. Todos os padres são representantes do Valente Menino Jesus e pregam o bem. Logo, todos deveriam ir para o céu.
— Esta história aconteceu na Itália a dezenas de anos. Um menino de sua idade levava almoço a seu pai na lavoura, como fazia todos os dias. Já se encontrava na estrada deserta e ouviu um tropel de cavalos; olhou para trás e ficou encantado com o que via: uma riquíssima carruagem que brilhava em ouro, até ardendo nos olhos devido a luz solar, se aproximava puxada por quatro belos alazões com traia também em ouro. Parou diante dele que percebeu em seu interior um elegante cavalheiro todo vestido em ouro e prata.
— Aonde tu vais, pequeno menino? — Perguntou-lhe educadamente o cavalheiro.
— Levar almoço ao papai — respondeu o menino.
— Suba na carruagem que o levarei em segurança.
O menino adentrou àquela riquíssima carruagem, sentando-se ao lado do homem, que lhe disse:
— Fechai seus olhos; quando lhe disser para abri-los estaremos junto ao seu papai.
Mesmo sem entender, o menino fechou os olhos e permaneceu assim. Poucos segundos depois, o homem disse que já podia abri-los. O menino abriu os olhos e teve uma tremenda surpresa. Sabe aonde eles estavam?
— Junto com seu pai? — Arrisquei.
— No inferno! A carruagem havia desaparecido e ali era um local escuro, feio… muito calor e sofrimento. O cavalheiro elegante se transformara na frente do menino em horrível diabo, todo vermelho, com quatro chifres na cabeça, tridente nas mãos e um rabo grande em formato de arpão na ponta. O local fedia enxofre e era muito úmido…
— Então ele espetou o menino com o garfo (tridente) e jogou no grande tacho para fazer sabão? — Perguntei-lhe.
— Não! Nada disso! O diabo disse que o menino permaneceria ali sem nada sofrer e apenas apreciaria os condenados que então chegavam a aquele lugar assustador… eram pessoas más que ali chegavam e o menino era uma pessoa boa; só estava ali de visita.
— Visita no inferno?! Eu é que não quero!
— Durante todo o tempo em que ele permaneceu por ali chegaram seis pessoas, das quais, apenas uma era pessoa comum, os outros cinco eram padres.
— Mais padres ruins do que pessoas ruins! — Espantei. — Não pode ser, vô.
— Passado algum tempo o diabo bateu palmas e a bela carruagem apareceu do nada; então colocou o menino dentro e lhe disse:
— Feche novamente os olhos que o levarei a seu papai.
O menino não estava assustado. Apenas o obedeceu, fechando os olhos e assim que o diabo mandou que abrisse, estavam no mesmo local aonde havia encontrado o cavalheiro. Desceu da carruagem que em segundos desapareceu, então ele continuou o seu caminho, indo levar almoço ao seu papai, que ao vê-lo se aproximando ao longe, correu a abraçá-lo emocionado e confuso.
— Meu filho! — Disse o homem chorando. — Onde você estava? Nós estamos quase doidos te procurando por toda parte.
— Ora papai, veio lhe trazer o almoço — disse calmamente o menino. — Fui fazer um pequeno passeio, mas não me atrasei mais do que cinco minutos.
— Filho, faz três dias que estamos procurando por você! Sua mãe está quase louca!
Ele havia passado três dias no inferno, onde o tempo passou tão depressa que ele não percebeu. Parecia ter ficado por lá no máximo cinco minutos… esta história é verdadeira e aconteceu na Itália. Não estou lhe contando porque você quer ser padre. Que seja padre! É até muito bom! Desde que você seja um bom padre!
— Eu serei um bom padre, vovô! Quero ir para o Céu! Vou batizar as crianças de graça e fazer casamentos também de graça. Mas serei padre quando crescer!
Sei que existe uma pequena divergência na história de meu avô, já que dizem que no inferno, por ser local de muito sofrimento, o tempo passa muito devagar; três dias na Terra seria o equivalente a um ano por lá.
Olaria.
Acordei junto com mamãe e Zeca às quatro horas da madrugada de segunda feira. Mamãe preparara o café, enquanto nós fomos ao banheiro, depois vestimos roupas velhas: vesti calça comprida, provavelmente do Carlos, devido ao tamanho e o fato de eu só ter uma calça comprida, que era de gala (passeio).
Às quatro e meia, já estávamos na olaria. Para mim era novidade: o fato de acordar de madrugada (no primeiro dia nem deu preguiça), deixar de fazer trabalho de mulherzinha para fazer trabalho de homem, assistir as estrelas da madrugada e o alvorecer (que seja a aurora matinal), pois desde que mudara para a cidade acho que nunca mais levantei tão cedo; ter uma experiência nova com trabalho de fabricar tijolos (estava mesmo virando homem), ganhar algum dinheirinho (era para ajudar em casa, mas valia a pena)…
O senhor Nico e o filho Fíica de oito anos, auxiliados por um belo cavalo branco, por nome Guarani e uma égua preta (Estrela) amassavam a argila em engenhoca chamada pipa (não era de criança soltar com linha da mãe). Dona Conceição, e o filho Nezinho de dez anos fabricavam tijolos manualmente, assim como eu e Zeca. O senhor Joaquim Leite (que conheci a algum tempo na casa de titia Amélia) e dona Durvalina (avós de Fíica e Nezinho) também fabricavam tijolos. Dalton já tinha saído com o senhor Ermínio em caminhão Chevrolet Gigant para o barreiro, a fim de buscarem argila…
Enquanto Zeca cortava com a palma das mãos o barro, enrolava-o na areia, como mamãe fazia com o pão na farinha, depois o atirava com força sobre a forma e recortava a sobra com pedaço de arame preparado, eu desenfornava o tijolo bonito sobre duas pequenas tábuas e o colocava no chão para secar.
Até às dez e meia da manhã tínhamos fabricado em torno de 1200 tijolos, então íamos para casa se lavar (só tomava banho à noite), depois almoçava para seguir à escola. A partir de então papai autorizou e íamos de bicicleta: Zeca pilotava e eu ia na boa, na garupa (na ida era fácil para ele: terreno plano e descida. Na volta era dureza, com subida e eu fazendo peso).
Depois que chegávamos da escola tínhamos que retornar à olaria para empilhar e cobrir os tijolos que já estavam secos. Se fosse certeza absoluta que não choveria à noite não era preciso cobri-los.
Uma tarde, ao sair da escola e pegar a bicicleta, não sei o motivo (alguma intriga em sala de aulas), dois moleques se aproximaram e azucrinaram Zeca de toda maneira, chegando a dar pequenos tapas e ameaçar surrá-lo. Eram moleques bem maiores do que ele e provavelmente de sua sala. Eu, pequenino, nada podia fazer e Zeca começou a chorar muito.
Depois de azucrinar bastante, os moleques tomaram uma régua de meu irmão e se afastaram, deixando que retornássemos para casa.
Enquanto Zeca pedalava dificilmente a bicicleta no aclive da rua Siqueira Campos, fazendo círculos constantes para conseguir subir, chorava muito e foi até em casa assim. Mamãe o consolou, dizendo para evitar certos… maloqueiros.
Pouco depois das doze horas do dia seguinte, estávamos na casa de Zé Luiz, que morava a menos de 100 metros da escola, em que Zeca reclamou a ele o ocorrido. Meu primo arrepiou igual galinho de briga e foi conosco até a escola, onde, ao avistar os dois moleques ao longe, já dentro do pátio da escola, gritou para que viessem até o alambrado. Ressabiados os moleques se aproximaram.
— Vocês estão dando de valente em cima de meu primo? — Questionou bravo meu primo.
Os moleques gaguejaram e nada falaram.
— Meu primo não anda bem de saúde e nem pode ficar nervoso (isso era verdade). Ai de quem ousar relar a mão nele! Eu arrebento todos os dentes de quem quer que seja!
— A gente não vai fazer nada com ele não! — Negou um dos moleques.
— Toma cuidado! E trata de devolver a régua dele agora.
O cara devolveu a régua; Zé Luiz virou as costas e se foi.
Naquele mesmo dia, na escola apareceu um casal de jovens, falando muitas coisas sobre quem paga os professores para nos ensinar; quem paga nossos cadernos e lápis; quem paga nossa merenda; nosso dentista; os funcionários das escolas (e isso e aquilo e outro mais… e bla, bla, bla) … por fim abriram uma caixa e nos distribuiu uma revista da historinha de compadre tatu e comadre Formiga.
Comadre Formiga ganhava seu dinheirinho honestamente, fruto de seu trabalho dedicado e mandava mensalmente à parte de César; quero dizer, da costa do Silva, aliás, do governo federal. Compadre Tatu, rico e orgulhoso, nunca recolhia a tal parte do leão. Não acredito, compadre, dizia Comadre Formiga, como pode o compadre tão rico, que ganha muito dinheiro, sonegar a parte que o Brasil precisa para seu desenvolvimento; por acaso não sabe que é com esse dinheiro que o governo constrói estradas, faz hospitais, escolas, cuida das praças, limpa os rios, leva água e luz elétrica até nossas casas… (essa coiseira toda deveria ser mostrada aos adultos. Ou eles já sabiam que iríamos crescer em pouquíssimo tempo).
Em suma, tratava-se de campanha do governo federal para conscientizar as crianças, (e que estas conscientizassem seus pais) devido à importância de se recolher mensalmente à gorda fatia de seus salários aos cofres da união em forma de imposto de renda; apelidado então (nem sei por quem) de mordida do leão. Diziam que quem não andasse direito com o imposto de renda, o leão virava uma fera (ele já é uma fera). Já era estratégia do governo militar, da famosa ditadura, (apesar de que Costa e Silva era a Arena, que pelo menos no nome dizia ser uma “Aliança Renovadora Nacional”) assustar os cidadãos de bem (porque os espertinhos não se assustam).
E como era ano de eleição municipal, os candidatos a prefeito e vereadores faziam diversas vezes por semana seus comícios políticos, em que prometiam tantas coisas que os bobos dos eleitores acreditavam (como o ser humano é fácil de tapear).
Os comícios estavam sempre superlotados, principalmente porque, após uma hora de promessas ilusórias, os candidatos mandavam exibir gratuitamente ao povo, uma sessão de cinema gratuita ao ar livre; sendo inclusive objeto de campanha: se ganhar a eleição, a partir do ano que vem, uma vez por semana haverá em cada canto da cidade uma sessão de cinema gratuita aos trabalhadores (acho que foi daí que inventaram os “drive-inn”).
E quem falou que criança deixaria de assistir um cineminha gratuito? Mesmo tendo que se levantar às quatro horas da madrugada para nosso trabalho de oleiro, eu e Zeca estávamos no meio dos eleitores, com dezenas de outras crianças, assistindo em preto e branco, um filme de guerra entre piratas, em batalha sangrenta, por canhões, dentro do mar.
Sexagésimo aniversário.
Aos domingos pela manhã eu e Zeca iniciamos com a bonita jovem Delza, uma hora por semana, nossas aulas de catecismo, no intuito de nossa primeira eucaristia. Delza era muito simpática e nos tratava com muito carinho, ensinando lindas passagens bíblicas e muitas orações: Pai Nosso, Ave Maria, os 10 mandamentos da lei de Deus, os 7 mandamentos da Igreja, os sacramentos e muito mais.
Estava feliz em participar daquela novidade: me levaria ao encontro de meu sonho em estudar para ser um digno padre em prol das obras do Valente Menino Jesus.
Próximo à casa de Delza já se iniciara as obras de futura escola para crianças do primeiro até o quarto ano do ensino primário. Papai conseguiu se empregar e com carteira assinada passou a fazer parte do grupo de trabalhadores na bonita construção, que se erguia em passos rápidos.
Sexta-feira, 25 de outubro de 1968 Penápolis completava então sessenta anos de emancipação política (um dia eu aprenderia o que seria isso). Fazendo parte das comemorações desse bonito dia, o aeroporto estava em festa. Desde manhã havia a grande movimentação de pedestres, carros e aeronaves, naquele que era a melhor oficina de aeronaves do interior de São Paulo. Muitos aviões em voo de demonstração; inclusive uma cópia fiel do famoso 14 bis, de Santos Dumont, que é conhecido como o pai da aviação por ser o inventor do avião (Charles Lindbergh é famoso por ser o primeiro a atravessar o Oceano Atlântico em avião); show de paraquedismo durante todo o dia, onde se saltava mais de um paraquedista de cada vez em seus belos equipamentos muito coloridos e no final da tarde, aproveitando horário de verão, que se iniciara no dia 13, acontecia o mais esperado de todos os espetáculos: a famosa esquadrilha da fumaça da força aérea de Pirassununga, com seis belos aviões.
Ela permaneceu fazendo suas demonstrações por mais de meia hora, a partir das cinco horas da tarde, onde, ao final conseguiu escrever nos céus, “parabéns Penápolis” e como nosso aeroporto não era asfaltado, todos os seis aviões da esquadrilha, se foram sem pousar.
Estive no aeroporto apenas no período da manhã. A bonita exibição da esquadrilha, assisti de casa mesmo, que ficava a menos de um quilômetro do local e o ângulo de visão era até melhor.
Nessa época de calor, aos domingos após o almoço, uma de nossas principais distrações era a tradicional visita a sorveteria do senhor Amado, na Rua Amazonas. Como trabalhávamos, mamãe sempre nos dava alguns trocados e os sorvetes de casquinha levavam esses trocados embora.
E nessas andanças para trabalho, escola, sorveteria… às vezes os parceiros acabavam sendo meus primos João e Zete, que sempre me ouviam falando que seria padre quando crescesse e então Zete sempre caçoava:
— Você vai mesmo ser padre quando crescer?
— Lógico!
— Então eles vão cortar sua rolinha fora! Sabia?
— Por quê?
— Padre não casa! Não pode ter rolinha!
— O que tem a ver?
— Pra que serve rolinha? — Caçoou Zete. — Não é só pra fazer xixi!
— Não sou burro! — Protestei. — Sei pra que serve! Não vou casar, mas ainda assim tenho que mijar.
— Não se fala mijar! É urinar.
— Você entendeu!
— Pra que serve sua rolinha?
— Se um dia eu quiser ter filhos, preciso dela.
— Eles não vão cortar a rolinha, só vão tirar as bolinhas. Igual nossos pais faziam com os leitões no sítio.
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Nos moldes de todos os anos, o exame final foi realizado no período da manhã do dia 26 de novembro, terça-feira (no dia anterior, o exame teria sido para os alunos do primeiro ano). Apesar da grande ansiedade, parecia um dia de festas: os alunos iam para a escola levando apenas lápis e borracha, pois o material de prova seria entregue pelos professores que, sempre ficavam em dois ou três em cada sala de aulas, evitando assim que os alunos conversassem entre si durante a prova.
Antes do início dessas atividades, havia a reunião no pátio, para a execução do Hino Nacional Brasileiro, enquanto as três bandeiras eram hasteadas.
Após as provas de Língua Portuguesa, Matemática, Estudos Sociais e Ciências, que graças ao Valente Menino Jesus, fui muito bem e seria com certeza aprovado para a terceira série (só faltava um repetente ser reprovado novamente), fomos então dispensados e só retornaríamos na outra terça feira, para ver o resultado e pegarmos todo material que ficava no armário da escola.
O padre que xingava.
Nesse período de folga escolar, Zeca queria pegar mais argila e trabalhar mais na olaria, mas eu (que já não estava gostando dessa dureza) não queria nem saber. Trabalhar das quatro e meia da manhã até onze horas, depois ter que retornar à tarde para empilhar os tijolos e se São Pedro resolvesse ameaçar chuva, voltar a qualquer hora do dia ou da noite, seja segunda, terça, sábado ou domingo… já era muito (eu achava) para uma criança de dez anos de vida, que gostava mais era mesmo de brincar e ouvir pela rádio Cinquentenário de Birigui, das doze às quatorze horas, o Frei Fernandes Maria de Coroados que adorava xingar.
Seu programa sempre iniciava com a música de Roberto Carlos que dizia:
Vinha voando no meu carro quando vi pela frente
Na beira da calçada um broto displicente
Joguei o pisca-pisca à esquerda e entrei
A velocidade que eu vinha não sei
Pisei no freio obedecendo ao coração e parei,
Parei na contramão
O broto displicente nem sequer me olhou
Insisti na buzina, mas não funcionou
Segue o broto o seu caminho sem me ligar
Pensei por um momento que ela fosse parar
Arranquei a toda e sem querer avancei o sinal
O guarda apitou
O guarda muito vivo de longe me acenava
E pela cara dele eu vi que não gostava
Falei que foi o cupido quem me atrapalhou
Mas minha carteira para o xadrez levou
Acho que esse guarda nunca se apaixonou
Pois minha carteira o malvado levou
Quando me livrei do guarda, o broto não vi
Mas sei que algum dia ela vai voltar
E a buzina desta vez eu sei que vai funcionar, bi bi.
Tudo que ele falava, logo já xingava rindo: “eita desgraça pelada”. E concluía: “xingar de desgraça pelada não é pecado”. “Quando algo der errado ou levar uma martelada no dedo, ao invés de praguejar contra o mundo inteiro, só pragueje contra a desgraça pelada, que Deus deixa…”.
Em suma (que não é de sumir) seu programa era muito divertido e enquanto a gente ouvia o padre diferente por duas horas, permanecíamos brincando em casa com os coleguinhas vizinhos.
No período de folga da escola, já que eu não deixava meu irmão trabalhar mais tempo na olaria, após o almoço, minha casa ficava cheia de crianças e a gente brincava muito, inclusive com mamãe, que já terminado seus deveres do lar, nos acompanhava em brincadeiras de esconde-esconde e outras, que também servia para adultos.
Papai, depois que ele caiu da cadeira vingativa, diminuiu um pouco sua fissura pelo álcool, trabalhando na construção da escola, sempre chegava em casa cansado, sempre depois das cinco horas da tarde e com isto, acabava se embriagando quase apenas nos finais de semana. Contudo, às vezes reclamava:
— Só aqui em casa que está sempre cheia de moleques fazendo barulho! Vocês precisam ir fazer barulho na casa de seus amigos também!
Mas nunca era tão sério e nós, apoiados por mamãe, continuávamos todos os dias, de segunda até domingo. Quando as crianças eram poucas, jogávamos bocha no campinho que construímos ao lado de casa e quando papai queria descansar aos sábados e domingos à tarde (sábado ele trabalhava até o meio dia), íamos ao campinho de futebol (não era tão campinho, pois suas medidas eram de um campo quase oficial) jogar alguma pelada, que também não era mulher nua.
De repente, por volta das quatro horas da tarde, armou um gigantesco temporal e como Zeca teria ido dar uma volta ao centro da cidade, tive que pegar a sombrinha de minha mãe e correr para a olaria, no intuito de proteger nossa produção de tijolos do dia.
O temporal estava armado, mas mesmo sem o apoio do sócio, deu tempo suficiente de proteger tudo, empilhando-os, depois cobrindo-os e cercando-os com telhas. Porém, ao retornar para casa, o vendaval estava forte, junto com a chuva fria que caía também pesada.
A sombrinha tentara me proteger, mas, talvez por minha ignorância em pilotar este objeto de ajuda, o vento, em poucos segundos virou a pobrezinha do avesso e então, era uma vez a sombrinha de mamãe, que por sorte, me perdoou da surra.
Zeca concluíra então a quarta série e pararia de estudar, ficando apenas com o trabalho na olaria. Eu como não concordava em trabalhar muito, acabava por forçá-lo a não trabalhar também, então resolveu arranjar um casal de coelhinhos Piriá para cuidar; construiu sua casinha de madeira e lata, passando a cuidar dos bichinhos com muito carinho.
Todos os dias, na volta do serviço já trazia um tantão de capim amargoso para os bichinhos que comiam apressadamente e ainda queriam mais. Não havia problemas, pois, restos de verduras, ou verduras velhas que saíam de nossa horta, eram excelentes alimentação para as pestinhas em cores branca e marrom (a fêmea, eu acho) e branca e preta (o macho).
No domingo pela manhã, em catecismo na casa de Delza, pela primeira vez Zeca lhe falara que meu sonho era me tornar padre e ela riu:
— Tomara! Nossas igrejas estão precisando de pessoas para servir a Deus! Quase ninguém mais quer ser padre!
— Eu serei padre! — Confirmei. — Se o Valente Menino Jesus deixar!
— Não se fala assim — negou ela rindo. — Jesus não é Valente. É Bondoso Menino Jesus.
— Pois então, se o Bondoso Valente Menino Jesus deixar…
— Por que você O chama de valente?
— Foi o Zeca quem falou! Eu acho que Ele é valente porque é poderoso. E sei que é bondoso também!
— Muito bem! — Considerou ela. — Mas procure evitar a palavra valente.
Saindo do catecismo fomos direto à casa de vovó, onde encontramos Zé Luiz que nos convidou a ir com ele até a estação rodoviária, pois precisava dar recado ao seu pai.
Entramos em sua jardineira e o encontramos sentado no banco do motorista saboreando um pacote inteiro de doce de leite em pedaços. Pedimos a sua benção e ele nos abençoou em forma daquele delicioso doce, que sem titubear pegamos um cada. José Luiz deu seu recado e retornamos à casa de vovó, de onde eu e Zeca voltamos para casa.
©©©
Naquela mesma tarde, reunimos a molecada: eu, Zeca, Ademir, Zete, José Carlos… e seguimos até o rio Maria Chica, aos fundos da Incopa (fábrica de papéis reciclados), onde a água era represada para que uma potente bomba elétrica conseguisse suga-la levando-as ao interior da fábrica para ser usada na lavagem de tal matéria prima.
Despimo-nos por completo e assim como pequenos adões, nadamos na maior baderna infantil dos tempos. Zeca, porém, resolveu nadar com sua cueca tipo samba-canção, feita por mamãe, com saco de farinha de trigo, ou talvez semente de algodão.
Como a Incopa coletava água daquele local para usar na lavagem de papéis reciclados, dois de seus funcionários correram até o local em um jipe; apanharam nossas roupas e ameaçaram levar embora, nos deixando despidos.
A maioria dos meninos era (assim como eu) tímidos, mas sempre existe um ou outro metido a valentão.
— Vocês não podem levar nossas roupas! — Gritou José Carlos. — Não estamos estragando nada! E além do mais o rio é público!
— Vocês jogam porcariadas na sucção da água e atrapalha a fábrica! — Reclamou um dos homens.
— Ninguém está jogando nada! Só estamos nadando!
O homem deixou nossas roupas e disse:
— Vão nadar na parte de cima do rio! Aqui, além do mais é perigoso! A bomba pode sugar vocês!
Depois daqueles estraga prazeres, resolvemos nos vestir (menos Zeca que preferiu não molhar sua roupa) e voltar para casa.
Ao passar em frente à casa da Vera Martins, ela me chamou. Enquanto os meninos acabaram de ir, voltei até ela, que me disse:
— Depois você vem aqui que vou te contar algo.
No começo da noite, retornei e ela me disse:
— Sabe aquela hora que vocês vieram do rio?
— Sei! — Dei de ombros.
— O Zeca estava de calção branco molhado e nós vimos tudo.
Interessante que ninguém de nós meninos haviam notado. A maioria de nós não estava com o calção ou calça curta (como queira) branca e nem mesmo nadamos de roupa; com isto, praticamente secos, não ficava transparente. Já com Zeca, que nadou com tal cueca de material muito fino e para não molhar a calça, resolveu voltar para casa seminu, com certeza ficou com suas coisitas à mostra grátis em forma de relevo sobre tal veste grudada no corpo. É claro que nós meninos não prestaríamos atenção em pequeno detalhe.
Aproveitando o ensejo e percebendo que eu não dera muita bola pela situação constrangedora do irmão, Vera me convidou e em poucos minutos, pelo menos uma dúzia de crianças brincavam juntas de mamãe da rua, que consistia em atravessar a rua de um lado a outro, pulando com apenas uma perna e ela corria (com as duas pernas) para pegar, batendo no infeliz sem piedade. Como era brincadeira, apesar da surra doer, ninguém chorava ou reclamava. Quer dizer… às vezes chegava a chorar sim. Vera era a mais velha da turma; muito boa; gostava de brincar conosco; embora suas brincadeiras fossem assim, sempre brutas.
In jejum!
Meu terceiro ano primário iniciou-se no período da tarde do dia 3 de fevereiro, com a maioria dos colegas do ano anterior e alguns diferentes, que vieram de outras escolas, ou repetentes.
Entre eles estavam: Adalberto, o filho de dona Mercedes, que por ser rico, educado, muito asseado e bonito, era o mais cobiçado pelas meninas; só que, assim como os demais, também preferia muito mais a companhia de nós meninos, ao invés de namoricos. Dinho, Nilton, Valdir, Grillo, Aparecido, Sônia e Fernando, a chata da Ana Cláudia que, por meu azar, continuou sentando-se à minha frente; Vinícius…
A professora então era dona Izabel, que sempre muito elegante, gostava de usar blusa vermelha com saia xadrez, brincos grandes e batom muito vermelho. Era amável e gostava de lecionar.
Como Zeca não estudava mais, passei a ir à escola em companhia de Nilton e Valdir, dois irmãos crentes (evangélicos) que moravam uma rua depois do grande cruzeiro iluminado.
Logo nos primeiros dias de aula, a companhia de força e luz estava fazendo algo de bom para nosso bairro: a instalação de luz elétrica nas ruas, pois à noite, tínhamos iluminação em casa, mas as ruas ficavam às escuras. A partir de então, poderíamos brincar até mais tarde.
Foi então que, enquanto aguardava os dois irmãos para seguirmos à escola, dois funcionários da força e luz insistiam em vão para que a lâmpada de frente à casa deles se ascendesse. Eu ficara observando e percebendo que jamais poderia se ascender uma lâmpada que não tinha fios ligados.
Quando um dos funcionários desceu da escada e apanhou nova lâmpada para teste, depois de já ter trocado outra, resolvi lhe falar:
— Moço, lá em cima está faltando ligar os fios da luz.
Ele olhou para o alto, deu um forte sorriso e gritou ao companheiro:
— Já inventaram lâmpada que funciona sem fio?
Voltou-se me perguntando:
— Como você sabia disso?
— Os outros postes têm fios! — Observei.
Assim que o outro companheiro desceu para providenciar material, este lhe falou:
— Orientados por um garotinho! (Era que no futuro, tudo aquilo tinha algo a ver com minha profissão em telecomunicações e eletrônica).
E novamente a prefeitura resolveu fazer acordo cultural. Deste feita com o cine São Joaquim, o qual concedeu uma sessão de cinema gratuito aos alunos de escola pública.
E assim, novamente em fila indiana, seguimos ao centro da cidade, passando pela praça Carlos Sampaio Filho e entrando no bonito cinema, que ficava no meio, entre o fórum e a escola particular da Oceu.
O que mais gostei de verdade foi à abertura da cortina, com uma bonita música clássica intitulada A Summer Place”, a qual jamais me esqueceria. O título em minha linguagem deve ser “Um Lugar de Verão” (até parece que sabia alguma coisa de Inglês).
Outro fato interessante foi o noticiário sobre futebol denominado canal 100, com narração de Carlos Niemeyer, em voz muito forte e bonita… depois se iniciou o filme denominado Paraíso na África, narrando a vida selvagem de diversos animais, os quais, dona Izabel usaria para que fizéssemos uma composição (ou redação), já na próxima aula.
Muitas crianças detestavam esse tipo de aula; eu como gostava de escrever, não me importava e até recebia muitos parabéns, escrito sobre a composição que nunca valia notas medidas (dona Izabel sempre dava meio ponto na média a todos que fizessem o que se pedia e ai de quem não fizesse. Ela dizia que em redação não se dá nota, pois o que se conta é o esforço de cada um).
Na olaria, Nezinho não gostava nada do trabalho de fabricar tijolos (nem eu); às vezes até chorava de raiva ou preguiça e muitas vezes acabava apanhando de cinta de seu Pai Nico. Fíica, que ajudava o pai em serviço que parecia mais divertido (já viu serviço divertido?), caçoava do irmão. Ele era o menorzinho da olaria, com seus oito anos de idade; arteiro, porém muito bom, sendo querido por todos e gostava de: fazendo uso de caneta esferográfica preta, encher a região genital de risquinhos para dizer que eram pelos, onde seu pai e avô achavam muita graça.
De vez em sempre, o cavalo branco desaparecia misteriosamente do pasto, deixando a companheira sozinha; com isto, ao chegarmos de madrugada não existia trabalho e eu adorava (gostava; pois só podemos adorar a Deus). Nico apanhava a bicicleta e saía pela redondeza em busca do fujão, indo inclusive às dependências do D.E.R averiguar se não fora preso (nunca esteve lá. Os funcionários já sabiam que se tratava de cavalo da olaria e se o encontravam, avisavam imediatamente).
Muitas vezes, Nico perdia a manhã inteira em busca do funcionário desgarrado. Acho que suas constantes fugas tinham as mãos de um menino conhecido no local (e não era eu! Nem Fíica!)
Sendo assim, voltávamos para casa e aguardávamos amanhecer o dia; retornávamos ao trabalho para enfornar tijolos para queimar. Esse serviço eu gostava, pois enchia o carrinho com 50 ou 60 tijolos e levava ao forno, fingindo que o carrinho fosse um caminhão e eu era motorista. Outras vezes desenfornava os tijolos já queimados e às vezes carregava e descarregava o caminhão do senhor Ermínio em seus devidos clientes. Não que era, pois, divertido mesmo era jogar bola, bocha, maia…, mas até parecia divertido e eu, embora cansasse mais do que fazer tijolos, gostava mais.
Com isso, trabalhava mais em contato com os adultos, inclusive Dalton, que era muito bom, gostava de mim; só que… quando o tempo esquentava, devido ao calor, eu tirava minha calça comprida, permanecendo de calça curta. Ele passava a mão em minha região pubiana e dizia:
— Hoje você está em jejum?
Na realidade, como já mencionei, às vezes não usava cueca; ele fazia brincadeiras bobas, que eu detestava; mas jamais passou desse ponto…
Já com seu pais Joaquim e dona Durvalina era diferente: eles iam sempre com sua carroça cortar capim colonião às margens da rodovia Assis Chateaubriand (nominho difícil) e gostavam de levar duas pessoas consigo: às vezes eu e outras vezes Fíica; gostavam muito de nós dois e eu fora então cativado por eles desde a primeira vez que os vi; diziam que nós éramos crianças boas e educadas e que Nezinho era muito mimado e chato (dona Durvalina não falava isso). Eu já achava que Nezinho não era tão mimado assim: apanhava constantemente de seu pai por não querer trabalhar e chorava muito. Pudera; eu também não gostava de trabalhar (quem gosta? Só se for na Telesp, com ótimo salário, viajando o estado inteiro e ficando em hotéis de luxo). Criança só deveria trabalhar ajudando as mães em casa (sei que fui eu quem sugeri estar na olaria). Empregar-se só deveria acontecer após os onze anos de idade; pois nesta vida muito curta, ser criança é apenas uma pequena fase que deveria ser mais bem aproveitada com brincadeiras e passeios; não desperdiçada em trabalhos ingratos que consomem toda essa fase bonita, a troco de, talvez metade de um salário mínimo por mês. É se vender por quase nada, pois criança trabalhando é o mesmo que vender sua infância por preço irrisório.
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Com quase 16 anos de vida, Carlos já se achava homem e sentia necessidade de cortar as penugens que dizia ser barba; apanhou a navalha de uso pessoal de papai e no banheiro usou-a pela primeira vez. Quer dizer: tentou usar, mas achou que a danada não estava cortando direito, então resolveu afiá-la, como seu dono sempre fazia. Acontece que papai, experiente no assunto, desde a época em que cortava os testículos dos leitões, fazia uso de afiador próprio, feito de couro duro… Carlos, porém, preferiu fazer uso de poderosa lima, própria para nossas enxadas e facões… Tadinha da querida e antiga navalha de papai… ficou com mais dentes do que nosso velho serrote.
Nem me lembro de como, apavorado, Carlos teve coragem de contar o acontecido ao dono da navalha. Porém, ao contrário do que se esperava, papai não ficou tão bravo assim: talvez sabendo que realmente seu filho primogênito estivesse ficando adulto, precisasse de alguma orientação (que ele jamais dera) sobre estas passagens; com isto, acabava se sentindo culpado também.
Deus sempre arranja o tempo.
Os coelhos de Zeca já se multiplicaram por 4 e como eu era seu fiel parceiro de ajuda, resolveu me doar dois, dizendo que era um casal (pode ser. Nunca observei o sexo dos bichinhos). Assim, cheio de criatividade, resolvi fazer uma ficha cadastrando minha pequena tropa (era cavalo?), anotando nome, sexo, data de nascimento, cor, sinais particulares, preferências alimentares… (será que tinham mesmo tais preferências, já que comem de tudo, até estanho derretido).
Com isso, as obrigações aumentaram: além da olaria, outras atividades ainda faziam parte de nossa rotina de crianças, como, regar a horta, limpar os canteiros, tratar das galinhas, ajudar a cuidar do mandiocal (se bem que mandioca quando cresce não dá mais trabalho), ajudar mamãe escolher café à noite… Como ela agora só cuidava de casa, resolveu pegar de uma empresa de manipulação de café, sacos e mais sacos do produto (ou seriam sacas), para serem escolhidos em casa, ganhando com isto algum dinheirinho extra. Pobre de nosso curto tempo de atividades brincadeirísticas. O tempo que sobrava ia para a escola, ou fazia a tarefa escolar… Justo agora que a rua estava iluminada…
Mas estou reclamando de barriga cheia: Deus (não devo mais falar Valente Bondoso Menino Jesus. São ordens de Delza. Ela achava ser ofensa. Eu não achava! Valente para mim significava Poderoso e não um Jesus que queria bater em criancinhas) sempre nos arranjava tempo para tudo: trabalhar, estudar, ajudar em casa, escolher café, fazer tarefa, cuidar dos coelhos e galinhas e ainda um baita tempão para brincarmos como crianças felizes que éramos.
No domingo à tarde, estávamos (eu e Zeca), assistindo uma partida de futebol de adultos no campo ao lado da Sopeco, entre a equipe local (Sopeco) contra a Vila São Joaquim.
Estávamos atrás da trave do gol, ao lado direito para quem vinha da casa de tia Amélia; então, sem mais nem menos, Zeca, começara se espernear e tivera então novo ataque epilético. Eu, apavorado, achava que meu irmão e parceiro, estivesse morrendo e então, sem saber o que fazer tentava reanimá-lo; não sozinho, pois muitos dos torcedores presentes correram para me ajudar, inclusive o senhor Ermínio Lopes (nosso patrão), que encostara seu Chevrolet Gigant e com ajuda de muitos, com meu irmão praticamente já voltando a si, o colocamos na cabine do caminhão e o senhor Ermínio nos levou para casa, aonde mamãe nos recebeu com muita gratidão a tal patrão, colocando Zeca para descansar. Segundo ela, não precisava fazer nada, a não ser descansar um pouco. E então ele dormiu o resto do domingo.
Mas com papai a situação continuava complicada: ele ainda chegava em casa cada vez mais nervoso e já não conversava com ninguém com educação; sempre xingava e ofendia a todos, principalmente mamãe, que se desdobrava em atividades para ajudá-lo na tarefa de se manter uma família… e ainda escondida (não de mim) chorava muito.
Como as coisas mudaram muito, ela chegou à conclusão que a separação acabaria sendo a única solução e anunciou sua decisão apenas aos filhos mais velhos (eu, Zeca e Carlos).
Foi uma punhalada em meu coração de quase onze anos de idade. Separar a família não fazia parte de meu desejo de criança, que almejava a felicidade que tínhamos no sítio.
— Os meninos pequenos eu levo comigo — disse ela. — Vocês três que são grandes (não me achava), deixo que decidam; se quiserem ir comigo eu levo; se preferirem ficar com seu pai, não tem problema, eu irei entender.
— Eu vou com a senhora — disse prontamente Zeca.
Carlos balançou os ombros como a dizer que pouco se importava e saiu.
Eu queria mesmo era ficar com papai… e mamãe… e os irmãos… todos juntos… éramos uma família.
Papai estava com problemas… acho até que estava sendo malvado conosco. Parecia até, como já disse: vovô Alfredo. Mas eu ainda o amava…
Naquela noite, ao rezar baixinho, triste, pedi ao Querido Bondoso Menino Jesus, que amparasse nossa família e jamais deixasse que aquilo acontecesse. Aprendi nas aulas de catecismo, que um dos sacramentos era o casamento e que o homem não deve separar na Terra, aquilo que foi unido por Deus no Céu.
E o Carlos, não sei se já se considerando homenzinho ou por tristeza em perceber que nossa família talvez estivesse se despedaçando, começou a chegar em casa cada noite mais tarde e papai para demonstrar que ainda era o chefe daquele lar, resolveu trancar a porta de entrada. Quando tal filho pródigo retornou forçando a porta, não conseguindo abrir chamou por mamãe que foi impedida de atendê-lo.
A noite estava fria, mas como quando meu irmão saiu de casa ainda não estivesse, saiu só de short e camiseta. Agora, percebendo que estava impedindo de ir para seu aconchego quentinho, sentou-se ali na varanda, tentando dormir encolhidinho no chão ainda mais gelado.
Meia hora depois, Zeca se levantou quietinho e sem ascender nenhuma lâmpada abriu a porta da sala para que o maninho entrasse, porém os dois foram surpreendidos por papai que ameaçou o bom samaritano:
— Você quer fazer companhia pra ele? É só falar.
No dia seguinte estivemos na casa de vovó, onde mamãe reclamou a ela o que estava acontecendo e a decisão que ela já tomara.
Vovó mandou que ela aguardasse, pois teria uma boa conversa de sogra para genro com o danado.
Ainda naquela noite, Nezinha deu uns tapas no caçulinha Bê, que chorou imediatamente. Mamãe sem escolher de quem era a razão, tomou-se de uma cinta e deu umas boas cintadas na menina (ela adorava surrar as crianças). Papai (fosse o que fosse nunca batia em ninguém) correu em socorro da menina, dizendo que não se bate em crianças e acabou meio que acidentalmente, levando uma boa cintada nos braços.
Mamãe, embora reclamando, parou a punição e se retirou. Nezinha ainda me disse:
— Foi bom que a mãe deu uma cintada no pai.
Como é que é? Pensei sozinho. Papai foi ajudá-la e ela ainda pensa assim! Vai mal…
Innocentemente, como fazia pelo menos uma vez por semana, papai fora visitar vovó na vila Fátima. Não posso contar porque não vi, mas queria ter visto… papai levou a maior bronca de toda sua vida. Vovó era muito boa, mas quando queria se transformava na pior sogra do universo. Deve ter saído cuspindo fogo sem se despedir.
Chegando em casa reclamou:
— Fui visitar sua mãe pra ver como eles estavam e ela me veio com encheção de saco. Vou lá saber da saúde deles e recebo isso em troca. Nunca mais voltarei por lá.
Ao visitarmos vovó no domingo seguinte, ela comentou com mamãe:
— O Tonico esteve aqui. Eu peguei no pé dele sem piedade. Falei que era pra tratar a família dele melhor do que os porcos que teve no sítio. Falei que eu não criei filha pra sofrer nas mãos de nenhum homem e que se ele não melhorasse, traria vocês todos para morarem aqui e o deixaria abandonado. Se fosse isso que ele quisesse era só falar. Seu pai até saiu de perto.
O fato foi que: pelo menos por um bom tempo, papai deu uma boa melhorada de educação (Acho que o Bondoso Menino Jesus começara a nos ajudar pelas palavras de vovó).
E Jesus nos ajudou mais ainda, fazendo com que papai adoecesse e se internasse na Santa Casa… (que ajuda! Doença!)
Na escola, dona Izabel chamara a atenção de Adalberto, que, sentindo-se injustiçado ficara amuado e não obedeceu ao toque de saída às quatro e meia da tarde. Todos nós em fila indiana, acompanhados pela mestra, seguimos pela calçada da escola até o portão de saída (a responsabilidade da escola acabava ali; o que acontecesse na rua era responsabilidade de nossos pais). Ao longe, avistando dona Mercedes, algumas meninas gritaram:
— Dona Mercedes, a senhora acaba de perder um filho.
Naquele período escolar, não acompanhava meus primos e fazia meu percurso sempre sozinho. Ao atravessar atrás da Igreja de Fátima, me apaixonara por uma rica e linda casa, revestida por pequenos pisos vitrificados, a qual imaginava ser minha. Puxa como eu queria ser rico! Queria ter carro e dirigi-lo para todo lado. Mas não queria ser adulto. Nada de pelos enfeando meu corpo. Imaginava que a polícia me concedera autorização prévia para dirigir, mesmo com dez anos de idade. Que bobinho! Tendo o privilégio de ter apenas dez anos, que fizesse o sacrifício de não poder dirigir. Quando papai deixava a barba por fazer, achava-o feio e quando limpava a cara dos pelos achava-o bonito e mais jovem, como antes. Até parecia que ele ficava menos malvado…
Vovô, pela manhã, quando seguia para o trabalho pesado na lavoura, no sítio do Pereirinha, onde cuidava de plantação de café (nessa época ele não trabalhava mais para o Otávio Ambrósio), não se sabe como, foi atropelado por um carro desgovernado, machucando principalmente as pernas e acabou sendo internado no hospital público da Vila Fátima.
Na mesma tarde, ao voltar da escola, como o hospital ficava no mesmo trajeto, aproveitei para entrar na recepção, onde uma freira gentilmente me atendeu:
— O que você deseja?
— Queria visitar meu avô.
— Quem é seu avô?
— João Zaninne.
— Sinto muito, mas não é permitido.
— Por quê?
— Não se permite visita de crianças em hospitais. É para seu próprio bem.
Fiz o gesto de anjinho mais triste do mundo. Ela tentou me consolar:
— Seu avô está bem e deixará o hospital rapidinho.
Abaixei a cabeça e saí lentamente.
Já estava nas escadas de saída para a rua, quando ela me chamou:
— Hei garoto!
Voltei-me a ela.
— Venha cá!
Retornei até o balcão, ela colocou as mãos em meus ombros me levando até o corredor principal, apontou aos fundos do mesmo e disse:
— Seu avô está no último quarto desse lado (à direita. Mas eu poderia me confundir com direita). Vá vê-lo!
Animado, já ia seguindo quando ela ainda me orientou:
— Só por dois minutos!
Fui até o quarto de vovô, que estava deitado descansando. Sônia estava sentada em cadeira ao seu lado.
— Como você entrou aqui? — Admirou-se Sônia e vovô também.
— A freira me deixou entrar, só um pouquinho.
Vovô realmente estava bem, o quarto estava até bonito, devido a forte iluminação artificial e lá fora ameaçava um toró (chuva forte).
Não pude ficar muito tempo.
Para retribuir o favor da amável freira, na saída, como bom menino (carinha de anjinho que já não estava tão triste), agradeci com sorriso.
— Seu avô está bem? — Perguntou-me ela sorrindo.
— Está! Obrigado!
Obrigado Querido Menino Jesus.
Como Delza passou a dar aulas de catecismo a outras crianças, resolveu unir todas ao mesmo tempo (antes ela dava aulas individual), conseguindo um cantinho emprestado na Sopeco (empresa de beneficiamento de amendoim) que ficava a uns 500 metros de minha casa. Com isso, aos domingos pela manhã, se reuniam diversos meninos e meninas com idade entre oito e doze anos, aos cuidados carinhosos da belíssima jovem.
Além de estudos bíblicos, como “O sacrifício de Abraão” (primeiro capítulo bíblico que estudei em minha vida) e estudos da doutrina da Igreja Católica, sempre sobrava tempo para diversão, com todos correndo, lendo historinhas infantis e ouvindo o disco do Carequinha:
O bom menino não faz pipi na cama,
O bom menino não faz malcriação,
O bom menino vai sempre à escola,
E na escola aprende sempre a lição.
O bom menino respeita os mais velhos,
O bom menino não bate na irmãzinha,
Papai do Céu protege o bom menino,
Que obedece sempre a mamãezinha.
Por isso eu peço a todas as crianças,
Muita atenção para os conselhos que eu vou dar:
(Falado). Olha aqui, Carequinha não é amigo de criança,
Que passa à noite de sua cama para a cama da mamãe,
E também não é amigo de criança
Que rói unha e chupa chupeta
Está certo ou não tá?
(Crianças) eu obedeço sempre à mamãezinha.
(Carequinha) então aceite os parabéns do Carequinha.
O bom menino não faz pipi na cama,
O bom menino não faz malcriação,
O bom menino vai sempre à escola,
E na escola aprende sempre a lição.
O bom menino respeita os mais velhos,
O bom menino não bate na irmãzinha,
Papai do Céu protege o bom menino,
Que obedece sempre a mamãezinha.
Por isso eu peço a todas as crianças,
Muita atenção para os conselhos que eu vou dar:
(Falado) olha aqui, Carequinha só gosta da criança,
Que respeita a mamãe, o papai, a titia e a vovó,
E que seja amigo de seus amiguinhos,
E também que coma na hora certa,
E durma na hora que a mamãe mandar.
Está certo ou não tá?
(Crianças) eu obedeço sempre à mamãezinha.
(Carequinha) então aceite os parabéns do Carequinha.
(Crianças) sou bom menino.
Papai permaneceu internado por quatro dias, sem receber sequer uma visita (eu se pudesse teria ido, mas… só consegui visitar o vovô, por ser hospital pequeno e pela simpatia da freira. Na grande Santa Casa, não teria este mesmo carisma). Ao receber alta voltou andando para casa sozinho (5 quilômetros de caminhada. Doente). Ao chegar, foi recebido como estranho. Parecia que ninguém gostava mais dele (só parecia).
Aos poucos acabou contando que o médico lhe proibira de tomar qualquer tipo de bebida alcoólica. Ou parava… ou morria… (obrigado Querido Menino Jesus).
Meus padrinhos, que abandonaram a cidade para morar em um sítio, depois de perceberem que já não tinham tanta disposição assim para trabalho pesado, resolveram voltar, porém, como sua casa estava alugada e teriam que respeitar o contrato, vieram morar provisoriamente aos fundos de nossa casa, até conseguirem outro lugar. Depois de alguns meses, acabaram por conseguir arrendar uma chácara praticamente dentro da cidade; aproximadamente um quilômetro de minha casa (um lugar que embora ninguém soubesse teria algo a ver com meu futuro); com isto resolveram se mudar para lá e papai não perdeu tempo em usar a casinha de dois cômodos para guardar suas tranqueiras e vassouras por limpar e fazer.
Assim sendo, nossas tarefas aumentaram em casa (de novo); pois, além de trabalhar na olaria, ir para a escola, regar a horta, tratar das galinhas e coelhos, ajudar mamãe na limpeza do café, papai ainda nos pegava para ajudá-lo na tarefa de tirar a semente da vassoura, que era uma atividade chata, devido à coceira que aquilo causava em todo nosso corpo quase nu. Por sorte, como todos colaboravam, em apenas um dia de trabalho constante, se limpava grande quantidade, com isto, em dois ou três finais de semana, se limpava toda a vassoura.
Coisa rara em acontecer era a visita de tia Amélia. Mas no início da noite ela apareceu, com Moacir e Gilmar. Porém, sua conversa foi bem pouca.
— Cido — chamou-me ela. — Você viu o Moacir e o Gilmar na escola hoje?
Os dois estavam juntos dela.
— Não! — Neguei sem saber o mal que causava.
— Esses safados enforcaram a aula hoje! — Mudou o tom da conversa, tia Amélia. — Em casa vou acertar com eles!
Para tentar consertar aleguei:
— Eles estudam em outra classe e no recreio fiquei estudando. Por isso que eu não vi eles.
— Vocês saíram mais cedo?
— Minha classe não!
— Eles chegaram em casa às três horas.
— Eles podem ter saído mais cedo.
— Chegando em casa vou mostrar quem saiu mais cedo.
Para encurtar a conversa, aos moldes de cinta fina de couro cru, os dois apanharam igual gente grande e por milhões de anos seguintes me chamaram de Judas.
Juntando telhas quebradas da olaria, eu recortara suas bordas e carregara para casa, onde, em momentos de folga, preparara o barro e construíra uma bela casinha de cinco cômodos, depois fizera seu muro e em espaço considerado jardim, plantara sementes de vassoura, servindo de área verde. Construíra ruas por todo o quintal, asfaltando-as com cinzas e usando meus carrinhos de pedaços de ripa, conseguia então tempo de me descontrair, sendo criança.
Regina, minha parceira de sempre estivera comigo nesta artimanha; mas como carrinho era brinquedo para meninos, me levara para caçar moscas e atirá-las impiedosamente nas dezenas de teias de aranhas, existente ao longo das paredes sem reboco da casinha de bagunça de papai.
As pobrezinhas, se vendo presas, se esforçavam o máximo para escaparem, batendo as asas com todas suas forças; mas aquilo além de ser em vão, pois quanto mais se debatiam mais se enroscavam nas tais teias grudenta, chamando a atenção da malvada aranha, que vinham em alta velocidade e as apanhavam, levando-as aos fundos de sua casinha de teia, onde as devoravam vivas.
Muitas vezes, quando a aranha se aproximava, a pobre mosca se aquietava, fingindo de morta, mas com certeza com o coraçãozinho em pandarecos (se é que mosca tem coração), de repente um leve movimento e a aranha apanhava a infeliz.
Eu e Regina permanecíamos ouvindo o triste zumbido da mosca, sendo transformada em alimento de aranha, depois seguíamos para alimentar outra, que geralmente era diferente: às vezes grande, às vezes muito pequena; preta, marrom, pintada, bunduda, pernuda, feia, bonita.
Outra atividade que Regina adorava fazer (e eu temia), era capturar as aranhas e fazê-las andar por seu corpo, principalmente braços.
— Qualquer dia uma delas vai te ferroar — dizia eu.
— Acha! — Ria ela. — Elas são inofensivas! Pode pegar!
— Tá escrito na cara dela?
Jamais peguei uma delas. Tinha pavor daquele bichinho de oito patas e oito olhos. Regina abusava… (e nunca foi picada).
Na olaria, como não dera para trabalhar na fabricação de tijolos, devido à chuva que caíra de madrugada, fomos carregar o Chevrolet Gigant, para entrega no centro da cidade. O senhor Ermínio me pedira para travar a corrente do centro da carroceria. Tentei, mas não conseguindo, ele reclamou em tom gozador:
— Como pode ser tão burro! Não está na escola não!
Até parecia que na escola se ensinava a travar correntes! Daqui a pouco iria ensinar a fabricar tijolos ou limpar sementes de vassoura!
Depois daquela entrega, acabamos de encher o grande forno com tijolos crus e naquela mesma tarde, Dalton colocou fogo nas duas fornalhas, para então queimar os tijolos (ou assar! De qualquer modo não era para destruir). Durante os próximos quatro dias, Dalton tinha então este compromisso apertado: manter o forno em chamas durante todo o tempo, 24 horas por dia.
No início da noite, de calça comprida e blusa de frio, fui até a olaria e encontrei Dalton colocando mais lenhas nas duas fornalhas. Enquanto eu estava com frio, o rapaz estava molhadinho de suor. A me ver chegar e sentar-me no alto da parede que separava as fornalhas do forno, se aproximou dizendo:
— Veio me ajudar?
— Não! — Neguei.
Terminou de carregar as fornalhas com grandes pedaços de toras de árvores, apanhou um pano velho e enxugou as mãos e rosto, depois se voltou até onde eu estava, passou as mãos em minha virilha dizendo:
— Não está mais em jejum?
Não respondi; fiz gesto de quem não gostou de tal brincadeira indecente.
— Sabe o que é, menino! — Insinuou ele sério. — Se você estiver sentado onde está, usando calça curta sem cueca, as pessoas que estiverem aqui onde eu estou, verão todas suas coisinhas… não me leve a mal. Estou falando pro seu bem!
Se for realmente assim, minhas coisinhas já ficaram em exposição milhares de vezes. Acho que jamais ficaria sem cuecas! Embora minhas calças curtas eram sempre justas nas coxas. Além do mais, se sua atitude era mesmo apenas de ajuda, por que será que às vezes precisa apalpar?
— Gosto de você — alegou-o.
Noite de sábado, aproveitando a época fria do ano, papai nos levou até o salão paroquial da igreja São Francisco de Assis, onde se realizava um famoso bazar da pechincha, para que pudéssemos comprar algumas roupas de frio a preço de banana. Eu e Zeca acabamos por escolher um paletó preto (de terno mesmo), até um pouco grande e assim, até parecendo uma dupla de artistas (só parecendo, pois sempre fui péssimo cantor; só cantava no chuveiro e dançava igual cabo de vassoura) aqueles paletós (que até fediam mofo) passavam a fazer parte de nossas blusas de frio.
E falando sobre artistas, nosso cavaquinho vivia jogado pelos cantos da casa, sem que ninguém aprendesse a tocar qualquer coisa (eu, com muito custo sabia apenas um “sol maior”, que acho ser a primeira nota musical que qualquer um aprende na vida).
O inverno daquele ano estava se tornando um dos mais rigorosos dos últimos onze anos de minha vida… Segunda feira de manhã, somente Carlos se aventurara em trabalhar: papai, com todo o grupo fora demitido da construção da escola que já estava pronta, só aguardando o reinício das aulas em Agosto para sua inauguração; com isto ele voltara a trabalhar por conta própria com João Cardoso e assim, devido ao frio de rachar daquela manhã (geralmente a gente diz que está fazendo um sol de rachar mamona, mas tal frio também estava mesmo de rachar… os lábios) papai resolvera permanecer em casa. Eu e Zeca também não fomos para a olaria e assim, com quase toda a família reunida, permanecemos na varanda de entrada da casa, enrolados em acolchoado, esquentando no frio sol da manhã gelada.
Após o almoço, com o dia já mais quente, papai resolvera ir ao trabalho, ganhar seu pão; Zeca fora à olaria ver se podia ajudar em alguma atividade de enfornar tijolos; mamãe, como raríssimas vezes na vida fazia, acompanhada pelas crianças pequenas fora ao centro da cidade; eu como estava de férias escolares do mês de julho, permanecera sozinho em casa por quase três… minutos.
Brincadeira perigosa.
Como já fizera todo o trabalho que julgava ser necessário em casa e não tinha mais o que fazer, estava deitado em minha cama, lendo um gibi do Fantasma, que tinha 400 anos. Essa monotonia fora quebrada com a chegada de minha parceira das muitas brincadeiras de criança.
— O que você está fazendo? — Perguntou-me com seu lindo sorriso.
Joguei o gibi de lado, sentei-me na cama dizendo-lhe:
— Apenas lendo um gibi do Fantasma.
— Está sozinho?
Acenei que sim.
— Vamos brincar? — Convidou-me ela.
— De quê?
— Médico! — Disse-me, parecendo que já fora em casa com essa intenção.
Nós brincávamos juntos praticamente todos os dias. De esconde-esconde; papai e mamãe, polícia, marido e mulher… mas de médico nunca havíamos brincado.
— Está bem! — Disse-lhe animado. — Eu serei o médico! Você é minha paciente.
— Não! — Negou ela prontamente. — Eu sou médica!
— Tudo bem! — Concordei (o importante era brincar).
Retirou-se até cozinha, apanhou uma cadeira, sentou-se diante da mesa e chamou:
— Pode entrar.
Como um bom ator, com a maior cara de doente, entrei e ela me mandou sentar.
— O que você está sentindo? —Perguntou-me.
— Tenho gripe, doutora.
Ela se levantou, apanhou o cabo do ferro de passar roupas de minha mãe, pediu para que eu tirasse a camisa e como se fosse estetoscópio (e eu não sabia este nome), colocou a ponta daquele cabo em minhas costas e peito, me pedindo para que respirasse diversas vezes, então disse:
— Você não está com gripe! O exame que mandei você fazer semana passada deu infecção na urina.
— E aí, doutora? — Fingi susto. — É grave?
— Não muito.
— Preciso tomar remédio forte?
— Será necessário um novo exame com mais detalhes. Espere no quarto que eu já volto.
Retirou-se. Vesti a camisa e a aguardei ali mesmo no consultório, que era a cozinha de minha mãe.
Não mais do que um minuto ela retornou com um canudo de capim amargoso nas mãos.
— Venha para o quarto — disse ela, seguindo à minha frente.
Chegando ao quarto, baixou meu short (calça curta), me deixando de cueca caseira e me mandou deitar.
— Que exame iremos fazer? — Perguntei-lhe, me deitando.
— Vire de bruços.
Virei-me, ela levantou minha camisa, examinou minhas costas:
— Vire-se — Pediu ela.
Tornei a me virar
Puxou minha cueca caseira, me deixando nu. Levei um grande susto, protegendo meus genitais com as mãos. Ela disse:
— Precisamos introduzir uma sonda em sua uretra para colhermos material de exame.
— O que é uretra? — Perguntei-lhe surpreso em estar nu diante dela.
— Você não sabe de verdade? — Riu ela.
Acenei que não.
Segurou em meu pênis, que estava ficando… e disse:
— Esse buraquinho!
— Você vai enfiar esse capim aí? Vai machucar!
— Não vai! — Negou ela convicta. — Os médicos de verdade fazem isso! Só que você não deveria ficar assim! Teria que ser normal.
Fiquei tímido. Ela prosseguiu:
— Faremos devagar.
Sentei-me sobre a cama e ela lentamente começou a introduzir aquele capim por minha uretra, que era mais fina do que o próprio capim. 3 centímetros depois, me perguntou:
— Está machucando?
— Não! — Na verdade estava gostando.
Com cuidado, ela continuou forçando aquele fino canudo por tal orifício.
Menos de 6 centímetros de capim introduzido, ficou difícil. Ela forçou só um pouquinho e disse:
— Você não deveria estar assim!
— Com você segurando! — Ri timidamente.
— Sou médica! Não sua esposa! Vou forçar um pouquinho.
Forçou mais um pouco e o sangue escorreu pela mão dela. Dei um forte grito de dor e deitei sobre a cama. O sangue escorria forte, sujando a mão dela e minhas pernas. Senti grande tontura e embora não soubesse, minha pressão sanguínea caiu a quase zero. Percebi que iria desmaiar. Ela, assustada como eu, apanhou minha calça curta e com ela ajudou a estancar a hemorragia. O capim havia furado minha uretra, acho que a uns 4 centímetros de sua entrada e devido à grande concentração de sangue no local, a situação ficara preocupante.
Permaneci ali deitado nu, assustado, com ela ajudando a estancar a hemorragia durante vários minutos.
— O sangue está parando — disse-me ela ainda assustada.
— Será que vou ter que ir ao médico?
— Não precisa. O sangue já está parando de sair.
— Estou com muita tontura. Estou com medo.
Quando percebeu que não saía mais sangue, me disse:
— Espere aqui que vou lavar seu short.
E se retirou.
Permaneci deitado por mais alguns minutos, até que ela voltou e disse.
— Você já está ficando corado de novo.
Realmente eu teria ficado mais branco do que o lençol da cama.
Abriu a gaveta do guarda roupas, apanhou outro short e me entregou. Mesmo sem cueca, vesti-o com cuidado para não machucar ainda mais meu fazedor de xixi dolorido e percebendo que a tontura estava diminuindo, levantei-me devagar.
— Vou embora! — Disse ela com leve sorriso. — Não tenha medo que vai sarar.
Ela se foi e como eu percebi que estando em pé a tontura voltava, voltei à cama e permaneci deitado à tarde toda.
Quase quatro horas, mamãe chegou e me vendo deitado, foi até o quarto e perguntou:
— O que aconteceu?
— Nada! — Respondi meio assustado.
— Por que está deitado?
— Não tinha nada pra fazer! — Neguei me levantando.
— O que é esse sangue no lençol?
Assustei-me mais. Não havia percebido o lençol sujo de meu sangue.
— É que… saiu sangue de meu nariz.
Ela examinou meu nariz e nem sei se acreditou. Então seguiu para o quintal e vendo meu short no varal, perguntou:
— Por que lavou sua calça?
Uma das poucas coisas que eu não fazia era lavar ou passar roupas.
— É que sujou de sangue… eu passei uma água.
Não sabia, mas as consequências daquela brincadeira, que seria agradável, porém irresponsável, me prejudicaria para sempre.
Com isso, ainda amuado e assustado, praticamente não saí de dentro de casa e foi pela Rádio Tupy de São Paulo que ouvi a “grande notícia”:
“Um pequeno passo para o homem, mas um grande salto para a humanidade”.
Exatamente: embora minha innocente ignorância não soubesse dar o referido valor, naquele 20 de julho, o astronauta americano Neil Alden Armstrong, da missão tripulada Apolo 11 marcava seu nome e o da Terra na história, ao deixar cravado para sempre sua pegada em solo lunar. Isso mesmo: para sempre, pois como na lua não há ventos, sua pegada naquele solo perpetuaria por dezenas de anos e a bandeira americana fincada naquele solo também permaneceria na mesma posição.
Mas por que a citação era assim: um pequeno passo para o homem, um grande salto para a humanidade?
Para minha santa ignorância, aquilo não passava de uma grande viagem de 798 mil quilômetros e pronto. Eu também já viajara por cerca de 60 e… poucos quilômetros e não marquei meu nome na história.
Meus simples onze anos de convivência com os terráqueos, não me deixava saber que aquele pequeno passo tinha tudo a ver com o início de nossas viagens e explorações espaciais, além da evolução de nossas telecomunicações, que até então era muito precária. Lembra-se de quando papai precisou ligar para São Paulo, para avisar os parentes que vovô Alfredo teria nos deixado para sempre? Naquele dia a ligação demorou duas horas para ser completada.
Ah! Esse pequeno passo de Neil Alden Armstrong teria também tudo a ver com minha futura profissão em telecomunicações e as famosas viagens de meu pequeno Regis, pelo Cosmos.
Corpo de Maní.
Zeca tinha lá seu problema de saúde, sempre tendo ataques de epilepsia, mas independente disso era um gênio e gostava de criar as coisas.
Ele sempre ia para a olaria, geralmente de madrugada, puxando por uma cordinha seu caminhãozinho F.600. Em cima da carroceria, deitado todo garboso, ia nosso cachorrinho preto de raça lulu, por nome Bilú, que era excelente companheiro: ia para a olaria e ficava deitado ao nosso lado enquanto trabalhávamos, só retornando para casa em nossa companhia.
Ao ver minha casinha feita de cacos de telhas, teve sua ideia: apanhou um pedaço de caibro e foi cutucando com formão e martelo, até criar uma perfeita forma dupla de fabricar tijolos em miniatura. Então, todos os dias após terminar o serviço da olaria, carregava consigo em seu caminhãozinho F.600, ao invés de Bilú, um belo monte de argila já preparado para o corte.
Chegando em casa, almoçava e nem mesmo descansava, indo direto fabricar seus lindos tijolinhos. Depois, criou um buraco no chão, esperou os tijolinhos secarem bem, enfornou-os naquele buraco, cobriu com terra, deixando um buraco por baixo para a lenha e tacou fogo na lenha improvisada.
24 horas ininterruptas de fogo e os tijolinhos ficaram perfeitos. Com isto, fez uma casinha muito mais bonita do que a minha de cacos de telhas.
Às vezes, à noite, íamos até a olaria ver o forno de tijolos em fogo, sendo cuidado por Dalton, que nesse período tinha mais essa atividade e foi com isso que Zeca aprendeu as manhas de se queimar ou cozinhar tijolos.
E como o mandiocal estava alto e verdinho, inclusive tomado por capim amargoso e pequenos arbustos como alça-peixe, devido nosso pouco tempo (ou vontade) em cuidar, resolvi então construir no meio daquela plantação, minha casinha de eu sumir dos humanos. Apanhei uma enxada, adentrei ao centro da pequena lavoura e capinei, abrindo uma bela clareira, por baixo dos altos pés de mandioca; finquei estacas de madeira fazendo uma porta; bambus fazendo o teto e amarrei com arame velho, revestindo tudo com colonião, fazendo inclusive dois cômodos, sendo quarto e sala, além de duas janelas; carreguei para lá todas minhas traias de casinha de brinquedo, como a velha máquina de pulverizar lavoura, vigotas, um pedaço de lona velha que servia para deitar…
Aproveitando nosso período de férias escolares, Regina e eu estreamos a tal casinha na mesma tarde, já quase noite. Dizendo sermos papai e mamãe, deitávamos naquela velha lona e ficávamos conversando durante longo tempo. Mamãe sempre nos espionava e achava que eu não sabia.
— Você sabe por que a mandioca tem esse nome? — Perguntei à Regina.
— Seu pipi! — Insinuou ela.
— Não! — Neguei sério.
— Já sarou?
— Dói quando vou ao banheiro.
Realmente, nos primeiros dias após o incidente, eu só ia ao banheiro em último caso, pois ao urinar o canal da urina ardia tanto que até saía lágrimas de meus olhos e eu ainda sentia muito medo do ocorrido.
— Aos poucos vai sarar.
Puxou um canudo de capim que estava a seu alcance, me mostrou e perguntou rindo:
— Vamos brincar novamente?
— Não!
— E a tal mandioca?
— Era uma vez…
— É faz de conta? — Riu Regina.
— Em uma tribo indígena muito antiga, nasceu uma indiazinha com o corpo muito branco e cabelos muito pretos, até parecia você — ri para ela. — Bem diferente de seus pais que tinham o corpo bem moreno. A indiazinha era muito bonita, recebeu o nome de Maní e quando já grandinha corria aos braços de todos da tribo, onde era muito querida. Um dia, já com seus três anos de idade, adoeceu e veio a morrer quase que instantaneamente…
— Você quer falar difícil! — Brincou Regina.
— Todos da aldeia ficaram muito tristes e enterraram Maní em local calmo aos fundos da aldeia, conservando-o como se fosse sagrado. Em poucos dias, sobre sua sepultura nasceu uma planta diferente. Todos acharam aquelas folhas interessantes e decidiram conservar aquela planta com muito carinho. Alguns meses depois, como a planta ficara mais alta do que nós, rachou toda a terra em volta de si e começou a secar suas folhas, em acordo com todos da tribo, resolveram arrancá-la e encontraram suas raízes muito grossas e então experimentaram raspá-la, tirando sem querer suas cascas e encontrando um fruto muito branco, tal qual o corpo de Maní. Assim batizaram a tal raiz por mandioca ou manioca, que quer dizer o corpo de Maní…
— Bonito! Quem te contou?
— Na escola.
A nova escola.
Naqueles dias, duas professoras da nova escola estiveram em nosso bairro visitando todas as casas que tinham crianças, cadastrando-as para estudarem nessa escola, ficando assim mais perto de casa. E como em todas, minha casa também fora visitada.
4 de agosto, às oito horas da manhã, juntamente com minha irmã Nezinha e mamãe, entrara pela primeira vez na então novíssima escola batizada por “Grupo Escolar Casa da Amizade”. Prédio cheirando a novo, armários, carteiras… tudo muito bonito.
Neste primeiro dia, antes do início efetivo das aulas, no grande saguão estava tudo preparado, no qual o bondoso Frei Afonso celebrou uma bonita missa e realizou a benção daquela linda escola. Um prédio grande de apenas um pavimento, contando com oito salas de aulas, nas quais estudariam crianças do primeiro até o quarto ano do ensino fundamental (primeira até a quarta série primária).
Após a missa e a inauguração propriamente dita, as crianças de tal período matutino se dirigiram à suas salas e nós, que estávamos escalados para o período vespertino (das 12 e 30 até as 16 e 30 horas), voltamos para casa, para retornarmos logo depois.
Na sala de aulas, que era a penúltima do prédio (a última era da quarta série) passava a conhecer alguns de meus 31 colegas de classe mais eu: José Jesus, que morava uma quadra depois do cruzeiro; Osmair, meia quadra acima do cruzeiro e era crente; Neuza, na esquina adjacente da quadra à frente de minha casa, virando a esquerda; Odair, travesso que morava acima de nossa casa; Joãozinho, moreno escuro, que tinha o apelido de cipó devido ser magrelo e altura exagerada; Lourival Martins, negro que morava meia quadra abaixo de casa na esquina; Vera, que também deveria ter apelido de cipó; Ricardo morava no sítio; Luiz Cordeiro, moreno de cabelos lisos e curtos e morava a 500 metros de minha casa; Fernando Pozzatti e sua irmã Marlene, a puxa saco da professora Nair Ribeiro da Silva, que era um pouco gorda, branca, cabelos curtos escuros e muito brava.
A professora se apresentara e explicara que não nos preocupássemos que a direção se encarregaria de buscar nosso material na antiga escola; que nessa escola todas as crianças teriam direitos iguais, então todos poderiam tomar merenda, não só os que estivessem registrados no caixa e nos apresentou a vara do flanelógrafo, dizendo que criança mal-educada seria corrigida por ela.
Além das três merendeiras existia o inspetor de alunos, meu xará (nome feio. Não Celso e sim xará) Celso, que era alto, branco, cabelos pretos e bigode; e o senhor José Álvares dos Santos, que era mais baixo, pouco maior do que uma criança de estatura normal, manco da perna direita e morava na esquina da escola, sendo muito bom e cuidava além da limpeza de todo o prédio escolar, ainda lhe sobrava tempo para construir com muito carinho o jardim; pois como o prédio era novo, não existia uma planta sequer.
Celso, apesar de inspetor, quase não conversava com os alunos, aliás, acho que nem fazia nada. O senhor José, até parecia ser o inspetor, pois vivia cercado por crianças e as tratava com muito respeito e carinho.
Naquela época do ano, período de muito vento, o céu ficava enfeitado com tantas pipas no ar. A criançada (principalmente as que estudavam de manhã) abusavam do horário da tarde na divertida tarefa de empinar aquelas belezas feitas de papel de seda. Eu, como trabalhava de manhã e estudava à tarde, tinha o período de tardinha (quase nunca, pois de tardinha voltava à olaria) ou domingo para essa missão.
Comprei de Zeca (que era o gênio da família na arte de invenções) uma beleza verde e amarela, com gigantesca cauda nas mesmas cores e no barzinho azul da esquina da rua amazonas, um carretel de linhas número 40…
Assim, na tarde de domingo, enquanto vovô conversava com mamãe na varanda dos fundos, eu acompanhado por pelo menos meia dúzia de outros meninos, soltava toda aquela linha e então colocava telegrama para ser levado pela linha até o cabresto da pipa, onde ao chegar, um leve puxão na linha fazia o mesmo se desprender e cair. Às vezes colocávamos um paraquedas com hominho de plástico amarrado em suas linhas, pendurado também no cabresto da pipa. Quando estava no alto, bastava um puxão e o danado caía serenamente.
Depois de horas embaixo do sol escaldante, tendo sido chamado por mamãe dezenas de vezes, vermelho igual peru e molhado de suor, voltara à varanda e bebera quase um litro de água; seguira ao banheiro e ainda sentindo muita dor, jogara quase toda água fora em forma de urina.
— Não deves ficar nesse sol quente, menino! — Avisou vovô. — Estou esperando o sol diminuir para poder ir embora.
Mas criança só achava o sol quente na hora de trabalhar na olaria. Assim mesmo, evitando problemas com mamãe, preferi brincar com bonito bilboquê, trazido por Carlos de seu serviço no João Carola. Tal brinquedo consistia em peça de madeira oval, com furo no fundo, amarrada por barbante em pedaço de vareta. O objetivo do jogador era balançar a peça oval e em solavanco encaixá-la na ponta da vareta. Quando se tornava expert no jogo, o jogador fazia muitas artimanhas e… (deixa para lá). Eu estava ficando bom naquela brincadeira.
Acho que Zeca estava ficando adolescente. Resolvera me vender um de seus bens mais preciosos: o famoso caminhãozinho F.600, que tinha carroceria que abria de verdade, faróis que ascendiam de verdade, espelhos com vidros de verdade, para-choque de ferro, para-barro de borracha, pneus de borracha, motor de ferro… uma verdadeira beleza que ele usava até quando ia ao trabalho… mas, enfim, por 3000 cruzeiros passara a ser meu.
Como meus primos Moacir e Gilmar estavam estudando de manhã e vinham em casa quase todas as tardes e brincavam com meu mimado caminhão (além de outros brinquedos), por ciúmes, resolvi tirar os pneus e guardá-los separados.
Ao retornar da escola à tarde, fui encaixar os pneus; mas era bem mais difícil do que eu imaginava e não conseguia. Eu até que era um menino de boa índole (…) e até calmo, mas, por favor, que não me deixassem nervoso. Aqueles pneus estavam me deixando assim e o martelo foi a melhor arma para acalmar esses nervos. Ah se tivesse contado primeiro até 10 e depois pedido ajuda de Zeca na solução do problema. Uma tremenda martelada fez a cabine de meu bonito caminhãozinho parecer que sofrera um terrível acidente matando todos seus ocupantes.
É claro que dois segundos depois viera o arrependimento e não tinha outro jeito: o que estava feito, estava feito e nada mudaria isso; a não ser outros mil cruzeiros que Zeca impiedosamente cobrara para reconstruir a tal cabine…
E pelos milhões de anos seguintes, eu iria cada vez aprendendo mais, de que o homem precisa sofrer no bolso para aprender as consequências de seus atos irresponsáveis. É o que a justiça faria a cada vez mais com multas pesadas para os irresponsáveis infratores das leis, principalmente de trânsito que começaria a matar milhares de seres humanos por ano no Brasil e no mundo.
Isso lá é que é professora!
Na escola, uma semana foi o tempo que dona Nair aguardou para poder dizer que já conhecia a todos nós e para comemorar, ao dar uma pequena saída da sala (acho que sem motivo real), chamou à frente a aluna Marlene Pozzatti, entregou-lhe um giz e disse:
— O aluno que conversar, você anota o nome no quadro. Quando eu retornar acerto as contas com ele.
Saiu e Marlene, com a maior cara de importante do mundo (baba ovo), ficou observando a sala toda. Bastou uma risadinha sem graça de Neuza, para que seu nome estreasse o quadro; ela ficou vermelha de raiva, mas não adiantava, já estava condenada. Um minuto depois foi à vez de José Jesus, que deu apenas uma espreguiçada e seu nome foi fazer parceria com Neuza. Como um é pouco, dois é bom e três, deveria ser demais, Ricardo foi apenas jogar um papel amassado no cesto de lixo, no canto da sala e voltou a seu lugar com o andar um pouco mais pesado, com seu sapatão do sítio. Seu nome completara a lista.
Dona Nair retornou, agradeceu a Marlene, que com sorriso cínico voltou ao seu lugar. Dona Nair apanhou sua varinha (do flanelógrafo) e se aproximou: primeiro de Neuza, que sentava na primeira carteira da primeira fila, do lado da janela grande toda de vidro. Covardemente a professora surrou a menina com mais de 10 varadas nas pernas, costas e acho que posso dizer bumbum…
Os outros dois meninos aguardavam assustados as suas devidas vezes, que com certeza chegou. Aliás, todos nós, embora sabíamos que não seríamos surrados, estávamos assustados; Dona Nair era doente mental. Uma coisa era certa: aquele dia serviria de exemplo para que a classe virasse estátua nas saídas daquela mulher.
Nos próximos dias, a mesma cena se repetia: dona Nair chamava Marlene (sempre a idiota), saía da sala (como sempre, talvez sem ter necessidade) e a classe inteira se calava. Aliás, fazíamos mais silêncio quando ela se retirava, do que quando estava presente. Dentro da sala, se era possível ouvir o voo de uma mosca.
Porém, por mais que se comporte, criança será sempre criança e parece que uma formiguinha pica. O risinho tímido de Neuza, fizera seu nome novamente estrear o quadro… Luiz Cordeiro, menino moreno e educado, deu outro sorriso e seu nome foi parar no segundo lugar da lista macabra…
Religiosamente, todos os dias dona Nair saía da sala (acho que ela gostava mais de bater do que dar aulas para as crianças). Todos os dias Neuza estreava a lista dos condenados e todos os dias apanhava sem piedade daquela cretina. José Jesus, também, raras vezes escapava da surra.
A primeira árvore.
Apesar de não ser intenção de papai, o homem que fazia machadinha de coco e passava todos os dias na frente de nossa casa, insistiu mais de dez dias seguidos e acabou por alugar a casinha dos fundos, onde papai guardava tranqueiras. Para convencer papai em alugá-la, concordou que deixasse guardado nos fundos a sua colheita de vassouras e esperasse alguns dias para que tirássemos a semente.
Papai apanhou um cilindro velho de pão, desmontou-o, cortou diversos pedaços de ripas do tamanho do cilindro, encheu de pregos tamanho 15x15, pregando-as no cilindro com as pontas para fora, colocou uma polia no cilindro, fez uma correia com pedaço de couro, tirou o pneu da roda da bicicleta, virando-a de ponta cabeça e então, com dois de nós pedalando-a (eu e Zeca) e um com a vassoura (ele ou o Carlos, que apesar de ter seu próprio trabalho, também nos ajudava), criou uma verdadeira máquina de tirar sementes. Foi a melhor coisa que ele inventou nos últimos milhões de anos. Tirar semente de vassoura com a raspadeira era terrível e não rendia nada. Enquanto se tirava 20 litros de semente na raspadeira em três pessoas, na engenhoca de papai, se tirava 200 ou mais.
Papai estava com estoque gigante de vassouras para limpar e apenas em uma manhã de domingo, apesar da tremenda piniqueira (coceira) no corpo todo, conseguimos dar fim em tudo: aquele mundaréu de sementes até parecia arroz.
Com isso o homem da machadinha de coco se mudara para nossa casa, com mulher e dois filhos: Tadeu, um ano a mais do que eu e que seria meu companheiro de missas, catecismo e outras andanças… e Raimundo (acho que era mais jovem). Não se sabe por que, mas o menino era anão, extremamente bom e educado, e que, apesar de muito pobres (ainda mais do que nós) estava sempre com belo sorriso no rosto, parecendo nunca sentir tristezas.
Na escola, dona Nair saíra da sala, colocou sua puxa-saco para dedurar os bagunceiros (quem fazia bagunça?). Não demorou muito para que Neuza figurasse na lista… um minuto depois, Fernando, irmão da dedo duro, me cutucara e eu, que sentava à sua frente, voltei-me para ver o que era. Ele em voz tão baixa que nem eu ouvi, fez-me uma pergunta sobre matemática (a mestra nos deixou fazendo lição); Marlene bateu o giz no quadro, olhei para frente, ela apontou para nós dois e escreveu bem bonito nossos nomes:
Neuza
Celso
Fernando
Até parecia que ela fazia aquilo com o maior prazer do mundo, com sorriso cínico no canto dos lábios, torneando muito bem as letras que formariam tais nomes.
Fiquei apavorado. Apenas uma vez na vida levara um tapa de papai. Mesmo de mamãe, que era mais brava, apanhara pouquíssimas vezes… agora, por uma bobeira; por causa de uma bisca… ignorante e puxa saco, iria apanhar muito de vara, de outra malvada! Eu poderia me considerar até um bom menino. Não era de fazer bagunça… ninguém na nossa sala de aulas merecia aquelas surras. Debrucei sobre a carteira e permaneci em silêncio, emburrado. Só o Bondoso Menino Jesus poderia me tirar daquela. E ele se manifestou nas palavras de Fernando:
— O Celso não fez nada! — Gritou o menino em minha defesa. — Ele só olhou para traz porque eu chamei ele. Então você faz o favor de apagar esse nome daí! O meu você pode deixar que lá fora eu quebro a sua cara!
Levantei o rosto e vi Marlene, que dera um sorriso cínico, apanhou o apagador e tirou nossos dois nomes, permanecendo apenas o de Neuza.
Quando a mestra retornou e viu apenas um nome no quadro, disse também cinicamente:
— Vejo que a classe está melhorando. Só falta uma muleca para tomar jeito de gente!
E sem piedade surrou a menina, que já estava ficando acostumada. Apanhava religiosamente todos os dias.
©©©
Os canteiros do senhor José, estavam em tão pouco tempo ficando bonitos: cheio de diversas flores e um pequeno gramado, que já estava todo verdinho.
Sábado, 21 de setembro, três alunos de cada sala foram escolhidos pelos professores; na minha sala foram Osmair, Lucia e eu (era o dia da árvore). A escola toda seguiu até o pátio, em que previamente ensaiados cantamos uma pequena canção que dizia:
Festa das Árvores
(Arnaldo Barreto)
Cavemos a terra, plantemos nossa árvore,
Que amiga e bondosa ela aqui nos será!
Um dia ao voltarmos pedindo-lhe abrigo,
ou flores, ou frutos, ou sombras dará!
O céu generoso nos regue esta planta;
o Sol de dezembro lhe dê seu calor;
a terra, que é boa, lhe firme as raízes
e tenham as folhas frescuras e verdor!
Plantemos nossa árvore, que a árvore amiga
seus ramos frondosos aqui abrirão,
Um dia, ao voltarmos, em busca de flores,
com as flores, bons frutos e sombra dará.
Na sequência seguimos até o pátio e orientados pelo zelador manco, senhor José; apanhamos uma muda de árvore por classe e o acompanhamos até o terreno da escola, onde ele já providenciara as covas; então em uma cerimônia simples, porém muito importante (para mim mais ainda), realizamos juntos a plantação de diversas mudas (16 ao todo. 8 com os alunos do período matutino e o resto conosco), que em pouco tempo nos traria frondosas sombras. Com aquilo, eu realizava ali uma (a primeira para mim) das três atitudes da vida de um homem completo: plantar uma árvore (fácil. Acabava de se realizar), escrever um livro (complicou. Mas se você está lendo…) e ser pai de um filho (quem sabe um dia!) Ih!!! Mas eu seria padre!
No mesmo sábado à tarde, estivera brincando com Neuza em seu quintal, que ficava a menos de 200 metros de minha casa. Ela e seu irmãozinho Zezinho, de apenas quatro anos de vida, subiam na árvore alta que ficava nos fundos do quintal e ao estar talvez no galho mais alto, o menino escorregou e caiu diretinho ao chão.
Sua queda foi amortecida apenas pelas folhas secas sobre o solo.
O menino passou a chorar incessantemente (ainda bem!), chamando a atenção de seus dois irmãos, Ademir e José Carlos, que vieram correndo; pegaram o pequeno Zezinho e correram aos cuidados do pai, Joaquim, dedurando a azarada irmã. Pobrezinha da menina: já apanhava muito na escola; apanharia em casa também?!
Mas claro que os pais não se preocupariam em surrá-la! Socorrer o pequeno era o mais urgente, levando-o ao hospital, sem que houvesse punição à menina (pelo menos na hora da correria). Ela, que já descera da árvore, foi para dentro de casa e eu, sem poder fazer nada, retornei à minha.
Faltava um empurrãozinho.
Na manhã de domingo, quando ia com Zeca e Tadeu, à Casa Anjo da Guarda, para aulas de catecismo, que a partir de então se mudara para este local, encontrei Zezinho em frente sua casa com o braço engessado; havia quebrado o braço na queda da árvore (só isso. Felizmente para ele e sua irmã).
Na casa Anjo da Guarda, as aulas de catecismo passaram a ser ministrada por freiras e o número de crianças passava de 50.
As aulas se iniciavam às nove horas e na sequência, para quem quisesse, a partir das dez e meia, poderia ficar para se divertir com inúmeros jogos e quebra cabeças…
Naquele domingo, às treze horas, após a difícil tarefa de convencer mamãe, conseguimos autorização e voltamos novamente ao Anjo da Guarda, onde seguimos na carroceria de um caminhão, a uma belíssima chácara afastada da cidade, com dezenas de crianças sendo monitoradas por três freiras, que levaram dois balaios lotados de deliciosas goiabas brancas e vermelhas.
Como criança não gosta de perder tempo, fomos direto ao grande açude da chácara, no qual todas caíram imediatamente na água. Todas, menos uma: (eu), que ignorando as atividades não levara roupas.
— Tire a camisa e entre assim mesmo! — Disse irmã Thereza.
A camisa tirei rapidamente. Mesmo assim fiquei receoso de entrar na água com a única calça curta que usava {estava de cueca (aprendi a nunca mais ficar sem esse assessório), mas com onze anos de idade não ousaria nadar de cuecas perto de outras meninas, muito menos das freiras}.
— Pule na água, menino! — Insistiu irmã Thereza. — O tempo está passando.
Elas mesmas se mantinham com aquelas roupas de pinguim e logicamente não entrariam. Mas eu era criança e criança que se preza cai na água rapidamente. Realmente estava faltando um empurrãozinho. Empurrãozinho? … Acho que a irmã Thereza ouviu meus pensamentos…
Admirava a algazarra das demais crianças dentro d´água, quando irmã Thereza me deu um belo de um empurrão, me jogando entre as crianças e aí… não saí nunca mais e o tempo passou rapidamente.
Nadávamos até certa divisa, criada com mourões de aroeira, para evitar que o gado ultrapassasse esse limite mais fundo. Eu, apesar de menino do sítio, acostumado em rios, não era exímio nadador, mas me divertia a valer dentro do açude.
As freiras se divertiam nos vendo divertir e jogando diversas goiabas para que pegássemos dentro da água.
Do outro lado, entre o grande número de adultos que também se refrescavam do calor de outubro, estava frei Afonso, então vigário de Penápolis, que nadava muito bem, principalmente de costas.
À tardinha foi chegando e o Sol se pondo rapidamente, como a dizer: criançada vão embora que eu já estou cansado de esquentar vocês.
Após muitas ameaças das três freiras, aos poucos fomos saindo da água e correndo por trás de pequenos arbustos, onde nos despíamos e torcíamos nossas roupas para dar uma enxugada e tornar a vesti-las (acho que poderíamos ter feito isto próximo ao açude mesmo, porque fomos todos praticamente ao mesmo local, inclusive as meninas). E ali pude perceber que eu não era o único que não tinha ido preparado para nadar.
Mas o dia foi muito belo e chegamos em casa já era bem noitinha.
Bocha, bétia, maia, pipa, bolinha de gude, bilboquê, casinha, médico, papai e mamãe, namoro no escuro, escolinha, esconde-esconde, salva, strena-varsella, cabra cega, pular corda, pique, carneirinho, mãe da rua, mês, fita, pular corda, saltar varas em distância, rodar pião, paraquedas, carrinho, futebol, campeonatos, nadar… e milhões de outras brincadeiras faziam parte de nosso dia a dia, mas talvez a brincadeira mais boba de minha infância era matar moscas, colocá-las dentro de caixa de fósforos, enfeitá-las e enterrá-las em cemitério de mosquitos, fazendo cruz com palito de fósforos… até o dia em que Zeca, jurando que aquilo era o maior pecado do mundo, resolvi destruir tudo.
A brincadeira de carneirinho consistia em: uma criança era o carneirinho e ficava distante das demais, que permaneciam em meia circunferência, de mãos dadas e diziam, carneirinho quer goiabada? Carneirinho quer marmelada? Carneirinho quer trabalhar? Carneirinho quer namorar? Carneirinho quer apanhar? … quando o carnei-rinho aceitasse o que lhe era oferecido, dava um pulinho para a frente; quando não aceitava dava um salto para traz; quando chegava próximo das outras crianças, estas fechavam a circunferência, então carneirinho batia desde o ombro de uma criança através do braço até o ombro de outra, dizendo:
— Pique-pique carneirinho que pau é esse?
— Aroeira! — Dizia, por exemplo, aquela criança.
— Pique-pique carneirinho que pau é esse? — Tornava a perguntar a outrem.
— Peroba! — Por exemplo.
Quando carneirinho achasse que a madeira era fraca, voltava de ré, saia correndo e tentava escapulir por ali, as duas crianças envolvidas seguravam firme, tentando evitar que aquela madeira se rompesse; mas quando conseguisse quebrá-la e escapulir, todos saiam correndo como lobos vorazes atrás do infeliz. Quem conseguisse capturá-lo seria o próximo carneirinho.
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O pai de Regina, senhor Tota (nunca soube o seu nome real, suponho ser Antenor), acompanhado por outros três amigos, resolveram ir passar 10 dias no Pantanal mato-grossense, a fim de pescando distrair a cabeça.
O embarque na caminhonete tipo C-14 foi muita animada e lá foram eles para a longa viagem de aproximadamente 1230 quilômetros de distância, incluindo muitos trechos de estrada de terra ruim, que eles demorariam pelo menos três dias de viagem.
Vá ter vontade em pescar assim não sei onde. Bastava falar com papai que ele iria sugerir o rio Tietê, no córrego dos Pint… (nem é besteira!) a menos de 30 quilômetros e que se pescava grandes dourados, jaús, pintados e o que mais quisesse.
Beijo na boca!
Sábado 25 de outubro, juntamente com toda minha escola, devidamente uniformizados com calça azul curta e camisa branca com emblema G.E.C.A no bolso do lado esquerdo, às oito horas da manhã desfilava em frente ao Santuário São Francisco de Assis, nas comemorações dos 61 anos de fundação de Penápolis.
Aquela fora a primeira vez que participava de um desfile em minha vida e me fazia sentir uma pessoa muito importante: jovem cumpridor de seus deveres para criar cidadania (pensa o quê!) Já estava aprendendo as coisas).
O desfile, como sempre (e em todo lugar) iniciava com a apresentação do Tiro de Guerra, depois polícia militar, em seguida as escolas, que sempre iniciava com as crianças menores (nós fomos a terceira escola na avenida), em seguida vinha as indústrias da cidade e terminava com foguetório (Penápolis, acho que é a campeã mundial de foguetório. Nunca vi gostar tanto de barulho de fogos de artifício assim. Acho que está tentando entrar para o famoso Guines Book de barulho).
E nesse dia festivo, se fazia presente no palanque oficial, o prefeito doutor Dirceu Gastão dos Santos Peters e a primeira dama Diva de Oliveira Peters (não sabia seu nome. Achava que a primeira dama fora quem estivera em 1908, na época da fundação), vereadores, delegados, diretores, frei Afonso e… sei lá mais quem. Sei que o então prefeito já fora jogador de futebol, jogando pelo CAP e no Guarani de Campinas.
E se falando em frei Afonso, no domingo pela manhã, na aula de catecismo, a irmã Thereza, praticamente nos obrigara a participarmos da missa das 17 horas na Igreja Nossa Senhora de Fátima, onde Frei Afonso, padre franciscano, então vigário geral desta diocese, celebrara sua última missa em Penápolis, em que ao seu final anunciou:
— Estou indo embora cuidar de outra comunidade. Minha intenção era ir quietinho sem despedidas; ninguém gosta de despedidas; mas como não consegui sair escondido, resolvi aproveitar para anunciar frei Carlos de Birigui, que cuidará de tudo com muito carinho em meu lugar. Nossa vida é assim mesmo, construída de idas e vindas…
Frei Carlos era um padre de carisma incomparável (…), bondoso, gordo, de cabelos grisalho, devido sua longa existência e passava a ser o vigário geral da cidade.
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Nos campeonatos de bolinha de gude, se reunia todos quanto quisessem e se sorteava a sequência de jogada. Um jogador já gritava “Primeira ganha”, outro gritava “última perca”, outro gritava “Penúltima”. O último a jogar tinha a vantagem de ter visto a jogada dos demais e decidir se arriscaria ir para perto ou longe da casinha; em compensação, o primeiro levava a vantagem de ser o primeiro a fazer jogada real de vitória. Levava desvantagens os que jogassem fora desta sequência. Um buraquinho no chão indicava a casinha; uma circunferência em torno da casinha ajudava o jogador a se decidir; um risco no chão, desde a casinha até os jogadores, guiava a jogada (podia indicar também o caminho mais curto entre dois pontos).
Cada jogador tinha que fazer a casinha, que poderia ser antes ou depois de acertar os adversários, que eram então eliminados. Quando se fazia a casinha, tinha que ser esperto e gritar logo: “fechado”; caso contrário o outro poderia gritar: “aberto para o meu lado”; nesse caso o dono da bolinha poderia gritar: “feito pra mim, morto pra você”. O ruim era quando se estava perto do adversário e ele gritava: “nada grile”; nesse caso teria que fazer primeiro a casinha para depois acertar esse adversário. Era vencedor o que conseguisse ficar por último sem ser grilado. Esse campeonato poderia ser por brincadeira ou a valer; neste caso os perdedores perdiam suas bolinhas (de gude, claro!)
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Quando papai recebia visita para jogarem truco, para nós a festa era melhor, pois como eles jogavam até de madrugada, com certeza nós também ficávamos até mais tarde na rua, revezando entre diversas brincadeiras; a principal delas era salva; mas namoro no escuro também estava entre as preferidas. Ficávamos todos sentados em banquinho, feito com sobra de vigota que papai trouxera de um serviço e instalara de frente à nossa casa, uma dupla, ficava em pé, fechava o olho e ia perguntando seguidamente:
— É ele?
— Não!
— É ela?
— Não!
— É ele?
Até que dissesse sim; então se perguntava:
— Pêra (uma voltinha na esquina), maçã (beijo no rosto), Laranja (abraço), limão (aperto de mão), uva (beijo na boca).
De repente fui escolhido por Neuza, que topou apenas uma tal de laranja. Mas tudo bem, a gente ficava feliz assim mesmo. Então lá fui eu:
— É ele? (Pergunta idiota).
— Não! (Claro).
— É ela? (Quem seria?)
— Não! (Esperamos a próxima).
— É ele?
— Não! (Algum menino diria sim?)
— É ela? (Bonita ou feia).
— Sim!
— Pêra, maçã, laranja…
— Uva! (Nem esperei terminar a pergunta).
— Um beijo na boca de Lucia!
Mamãe apareceu na hora… Lucia se voltou dizendo:
— Vamos logo!
Me acanhei. Mamãe estava perto e sua varinha doía…
— Não vou beijar a Lúcia na boca!
— Você quem pediu! — Protestou Toninho.
— Não vou!
— Vai um beijo no rosto! — Sugeriu a condenada.
Assim sim! Ainda receoso executei minha obrigação (até parecia sacrifício)!
Mês era outra das principais brincadeiras. O formato era o mesmo: uma dupla se afastava e escolhia um mês do ano; voltava e perguntava aos demais, um a um:
— Que mês?
Os demais respondiam e quem acertasse seria o próximo. A dupla se afastava e decidiam o que cada um era: geralmente um deles escolhia ser uma BMW novinha, ainda sem emplacar e o outro era uma lacraia velha sem valor. Adivinha quem seria escolhido? (E quem decidia o que seria cada um deles? Só podia ser o mais esperto! É lógico!)
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Dona Josefa, já idosa, estatura mediana, esposa do senhor Libano (não está errado. Era assim mesmo o seu nome), estava entre as principais visitas de mamãe. Geralmente ela aparecia durante as tardes e passava várias horas sentada na varanda dos fundos, com seu vestido longo e lenço na cabeça, trocando diversos assuntos, com seu jeito meigo e caipira de conversar.
Às vezes quando eu chegava da escola ela estava presente e permanecia até quase escurecer.
Não me ajudava em nada e praticamente adultos não conversavam com crianças, mas sua visita me trazia uma certa felicidade. Acho que gostava de ver mamãe receber visitas, pois o mesmo sentimento aparecia com a visita de vovô, ou minha madrinha Alice. E acho que foi ali que eu decidira que: ao me tornar adulto vou sim, ser amigo de crianças. São bichinhos sagrados e por que não podem ser amigos de adultos?
Lembra da viagem do pai de Regina ao Pantanal? Pois é: Dona Bia, a mulher dele, andava muito preocupada, pois já se passaram muitos dias e ele ainda não teria voltado. Ela estava cismada de que alguma coisa de muito ruim poderia ter acontecido e com isto ela vivia até mesmo soluçando alto. Mamãe muitas vezes corria a consolá-la e dizer que em breve ele estaria de volta.
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E brincar de escolinha também era divertido. Fazendo uso de um fundo de bacia grande, feita de aço ou latão, na função de lousa, giz branco de verdade, trazido da escola de verdade, ou então giz colorido de terrão do chão e giz preto, de carvão. Os alunos era eu, quando Regina fosse a professora, Nezinha, Geraldo, Bê, Valdir… quando não tinha alunos brincava sozinho, com alunos imaginários (acho que já estava ficando bobo. Onze anos de idade não era mais para amigos imaginários).
A prefeitura tinha sua empresa responsável por cuidar da rede de água e esgoto do município e nosso bairro fora selecionado para receber esse bem. Com isso, os tratores, em apenas um dia esburacaram quase todas as ruas desse bairro.
À noite nossa brincadeira mudou para: dezenas de crianças correndo por horas dentro das grandes valetas que interligavam todas as ruas, formando um verdadeiro labirinto, semelhante ao existente no mundo de Minotauro.
Hora de dormir, mamãe quase nos surra, devido nossa tentativa de ir para a cama como se fôssemos às crianças mais limpas do mundo. Lógico que o chuveiro improvisado dos Innocentes tivera muito trabalho para receber três crianças imundas (eu, Zeca e Nezinha. O Carlos com 16 anos de idade já era hominho para brincar com crianças), novamente em banho frio, por preguiça de esquentar água no fogão de lenha.
No dia seguinte colocaram os enormes canos de ferro e nesse mesmo dia, as grandes valetas já estavam sendo tapadas.
Quase que imediatamente, papai que era expert em encanamentos e tinha até uma tarraxa para fazer roscas em canos, providenciara nossa rede de água e esgoto tratados.
A partir de então passamos a ter o conforto de um chuveiro de água quente, sem precisar tirar água do poço e fazer uso de chaleiras em fogão de lenha, que muitas vezes nos queimava. Passamos a ter também o conforto de um vaso sanitário em rede de esgoto, dispensando a velha e suja privada (era um lugar privado) tipo casinha.
Nosso antigo poço de corda fora aos poucos sendo tapado por entulhos e terra. Ele ainda nos serviu para fazermos uma verdadeira limpeza no quintal.
Como o espaço aumentara, papai aproveitou a varanda dos fundos e construiu outra cozinha, deixando a antiga servir de copa, desmanchando também o antigo fogão de lenha, aproveitando fogão a gás, comprado à prestação em 24 parcelas iguais, nas lojas D. Oliveira, em comum acordo entre todos os que ganhavam dinheiro nessa casa.
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Como dona Bia continuava chorando a longa demora no retorno do marido, aproveitei para conversar sobre ele com Regina, em nossa casinha do mandiocal:
— O que será que aconteceu com seu pai? — Perguntei.
— Falaram que a onça comeu eles — disse ela séria.
— Só se for uma onça gigante! Eles estavam em quatro!
— Falaram também que pode ser sucuri. Naquele lugar tem muita sucuri!
— Que azar! Onça… Sucuri!
— Sei lá! Disseram que pode ter sido até jacaré gigante.
— Eles eram quatro! (tinha que ser gigante mesmo!)
— Pode ter sido índio.
— Só se for dos filmes de Tarzan!
— Dizem que lá tem índios canibais.
— O que são índios canibais?
— Como você é burro! — Reclamou ela. — Você não estuda não!
— Nunca estudei índio canibal!
— É índio que come carne de gente!
— Você acredita nestas baboseiras?
— Não sei! Minha mãe acredita. Ela vive chorando todos os dias.
— Sei disso! Dá pra escutar aqui de casa.
— Já era pra eles terem voltado a mais de 15 dias — disse ela sentindo algumas lágrimas.
— Não se preocupe — pedi. — Daqui a pouco ele chega.
— Quando?
É claro que eu não era adivinho e muito menos expert em servir de consolo a alguém. Regina sim era melhor do que eu neste aspecto. Então balancei os ombros como a dizer: sei lá! Talvez nunca mais! Acho mesmo que as onças, jacarés, sucuris e índios canibais os comeram mesmo! E acho que seu pai serviu de palito para limpar os dentes, porque ele era o menorzinho dos quatro.
O fato era que, cada dia que passava, dona Bia chorava mais e mais. Já se passaram 30 dias depois da ida deles e ela passava praticamente o dia todo chorando e mamãe passava muitas horas com ela, tentando não sei com que argumentos, confortar tal sofrimento.
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As professoras empolgadas se reuniam, ensaiavam e então, todos nós, os alunos, deixávamos nossas salas de aula e organizados, sentávamos no chão de lajotas vermelhas, no grande galpão, de onde fora retirado as mesas e cadeiras, usadas para nossa refeição e com o esforço das mestras, assistíamos ao teatro de marionetes (ou fantoches), com histórias diversificadas.
Apesar de todo esforço de nossas queridas (será?) Professoras, nunca me empolgava tanto com teatro de marionetes. Sempre achava aqueles bonecos de pano, um bichinho sem graça.
Mas histórias tipo fábulas em aula de Língua Portuguesa sempre me cativava. Por isto mesmo sempre fui ótimo aluno nesta matéria, fazendo inclusive as melhores redações da sala e sempre fechando minhas notas com média máxima ou bem perto disso (e não sou nerd. Nunca fui).
O jovem veadinho se aproximou calmamente do pequeno rio para beber água e se refrescar do imenso calor que fazia naquela floresta; de repente, para seu espanto, surgiu voraz e enorme lobo negro; tão sedento quanto o pequeno animalzinho; porém, sua sede não era de água e sim de sangue inocente. Sentindo enorme desejo em devorar apetitoso veadinho, começou a procurar motivos para tamanha maldade e lhe disse:
— Veadinho, foste tu quem zombastes de mim no verão passado, por isto agora, por vingança irei devorar-te.
— Eu!? — Espantou-se o inocente animal. — Não pode ser, senhor! Só tenho seis meses de vida.
— Então fostes seu pai! — Maliciou malvado lobo. — E por isto pagará por ele.
— Também não pode ser, senhor! — Justificou o veadinho. — Sou órfão! Papai foi pego em emboscada por terríveis caçadores, antes mesmo que eu tivesse nascido…
— Então fostes sua mãe! Se não ela, seu tio, ou sua tia…ou seus primos e você pagará por eles assim mesmo.
E malvado lobo negro, devorou o inocente veadinho.
(É claro que eu detestei este final trágico e em meu modo de interpretar, assim que o lobo malvado avançou sobre inocente bichinho, um grupo de quatro veados adultos apareceram e pularam sobre o assassino, jogando-o dentro do rio, chifrando-o e espancando-o, fazendo com que ele gritasse apavorado e sumisse dali para nunca mais tentar atacar pequenos indefesos)
Rei leão, sentindo que seus súditos já não eram mais temerosos como nas épocas de seus ancestrais, resolveu convocá-los para mostrar preto no branco quem realmente mandava em toda a floresta. Com isto, atendendo individualmente, ameaçava seus súditos com tamanha veemência, narrando a todos, suas grandes batalhas, pelo longo tempo de sua existência.
Veio o elefante, que assustado aceitou as condições de seu rei; veio a zebra, a girafa, o crocodilo, a serpente, o veado, o lobo e até o terrível tigre… todos acabavam se submetendo as exigências de seu soberano. Mas, eis que surge a pequena vespa e quando temível rei das florestas impõe com desdém sua imponência, a vespa voa, pousa sobre o seu nariz, olha bem dentro de seus olhos e diz sorrateira:
— Rei! Não conheço sua força! Nem sua valentia! Muito menos seu poder! Como pode considerar-se, o meu rei?
— Sou o mais valente de todos os animais — justificou-se o leão. — Tenho a força de uma manada inteira e o poder de toda a selva! Portanto sou seu rei e exijo que se curve sobre o meu poder!
— De mim você não é rei coisa nenhuma! Desafio-te a mostrar sua força e astúcia sobre mim!
— Estás me desafiando para um duelo? Como ousas?
E o leão tentou abocanhar pequena vespa; porém, a esperta cravou seu ferrão sobre o nariz de convencido animal, depois voou incansavelmente, atacando-o em todas as sensíveis partes de seu enorme corpo.
O valente rei das selvas tentava em vão se defender de pequena súdita de seu grande reinado…
Esta façanha ele jamais contou para ninguém.
— Celso — chamou-me dona Nair. — Qual é a moral desta história?
— O quê? — E eu lá sabia o que seria moral de história.
— Analisando esta fábula, devemos temer mais os pequenos ou os grandes animais?
— Os… grandes! — Sei lá onde estava com meus pensamentos.
— Como? Você não prestou atenção na história? — Ela tomou de sua varinha, fazendo meu coração disparar. —Dos grandes animais a gente consegue se esconder ou fugir! A gente consegue vê-los à distância! Os pernilongos… as muriçocas… as abelhas… nos atacam sem que tenhamos chance alguma contra elas…
Sorte que ela usou a varinha apenas para apontar detalhes no quadro negro, com isto minha bunda e pernas saíram ilesas da tal moral da história.
E qual seria a moral da história entre minha professora e nós, seus alunos?
“É mais de temer a dona Nair fora do que dentro da sala de aulas”.
O nome que não deveria estar lá.
Como fazia todos os dias, dona Nair saíra da sala e indicara a puxa saco Marlene, para anotar no quadro o nome dos bagunceiros (nessa sala de aulas não existiam bagunceiros). Um minuto depois surgiu um risinho no fundo da sala e Ricardo inaugurara a lista; mais um minuto, Neuza olhou para trás e seu nome, como em todos os dias foi para o segundo lugar; mais dez segundos Osmair se levantara e fora jogar um papel no lixo do canto, ao lado do quadro negro; na volta tropeçara nos pés de Luiz cordeiro; quase caíra no chão e todos riram. Seu nome entrou em terceiro lugar da lista junto com Luiz Cordeiro, que foi para o quarto lugar.
Osmair continuou caminhando até o seu lugar, abaixou a cabeça e creio que já estava chorando antes das varadas certeiras. Acontece que este menino, um dos menorzinhos entre nós, crente, era também o mais educado de toda a sala. Nunca conversava e nunca tivera sua atenção chamada pela professora.
— Você é covarde, Marlene! — Insinuou Ricardo que não tinha o que perder. Seu nome já estava na lista mesmo.
Quando ela pensou em apagar o nome do menino não deu mais tempo, pois dona Nair chegara. Agradeceu sua carrasca, mandando-a se sentar, olhou os nomes no quadro e sem comentar nada, prosseguiu suas aulas normalmente. Aquele dia ninguém apanhou.
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Em uma das raras visitas que titia Amélia nos fazia, era tarde de domingo e enquanto ela conversava com mamãe, Gilmar e Moacir (os meninos que deram cano na escola), brincavam conosco (eu e Zeca). Em determinado momento, Gilmar sacou de seu bolso uma folha de caderno brochura dobrada e me entregou; desdobrei-a e li em silêncio:
(PS- Proibido para menores)
(Duvido que o “menor” vai seguir meu aviso em negrito, mas avisei)
Alisando cresce
O candidato de todas as eleições
Eis porque:
- É o único que aumenta a população
- Está sempre duro
- Respeita as regras
- Não gosta de chatos
- Sua preocupação é ficar por dentro
- É querido por todas as mulheres
- Seus atos surtem efeito imediatamente e se conclui em nove meses
- É modesto, pois está sempre encolhido.
- Na rua só anda de cabeça baixa
- Não é preguiçoso, levanta apenas com pensamento.
- Não gosta de publicidades
- É pobre, pois está sempre pendurado.
- Chora de prazer quando trabalha
- É honestíssimo, o único que entra cheio e sai vazio
- É craque porque joga com duas bolas
- Faz gol de cabeça e ainda cospe no olho do goleiro
- Só fica preguiçoso depois que trabalha
- É nobre, simples, careca e dorme em cima do saco
- Não é traiçoeiro, mas às vezes, ataca por trás.
- Não gosta que lhe puxem o saco
- É educado, pois se levanta quando vê mulher bonita.
Portanto, nas próximas eleições, vote em:
Alisando Cresce - O candidato do povo.
Acabei de ler, dobrei o papel e quando fui entregar para Gilmar, fui surpreendido por uma mão adulta (era tia Amélia), que apanhou aquela propaganda política, desdobrou-a, leu poucas linhas e disse:
— Lá em casa a gente conversa. (De novo eu! Não!)
O que lá aconteceu, dá para imaginar. O fato é que por outros um milhão de anos, Gilmar me julgara traidor.
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Nesta mesma noite, para surpresa geral de todos, após mais de 40 dias desaparecidos, chegou de volta em nossa cidade, os quatro pescadores do pantanal. Foi uma grande festa (sem comes e bebes e sim, festa de alegria); dona Bia chorava mais ainda, mais disse que era de alegria e então agradecia a mais de mil santos juntos (e eu só não conseguia entender o porquê: estavam sumidos ela chorava, eles voltaram ela ainda chora).
Os pescadores alegaram que a demora foi devida tremendas chuvas que caíram sobre o Matogrosso e sua caminhonete acabara ficando atolada em muito barro durante muitos dias e quando conseguiram tirá-la, acabaram se atolando em outros lugares, poucos quilômetros de distância.
Passaram fome, sede, frio, ficaram doentes e chegaram a pensar que morreriam de malária, até que encontraram uma tribo de índios (ai meu Deus! Os canibais!) que os socorreram, dando-lhes comida e remédio natural. Com isto e principalmente com a ajuda do Querido Menino Jesus e Seu Pai Celestial, aqui estavam eles, de volta ao lar.
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Mais uma vez nossa escola é agraciada com visita grátis ao circo; desta vez o grande circo Mexicano se instalara próximo ao rio Maria Chica e no sábado de manhã, concedera espetáculo gratuito para os alunos de escolas públicas.
O espetáculo era semelhante ao do Circo Real Americano, com a diferença de que o trapézio era feito por adultos, enquanto que no anterior, um grupo de adolescentes, incluindo minha amiga de escola Lucia, se exibiam lá nos balanços, com muita beleza e eficiência (gostei mais da apresentação do anterior, mesmo porque, como no primeiro o espetáculo foi à noite, as lantejoulas brilhavam devido o reflexo dos holofotes; e claro que também por Lucia) que fez meu coraçãozinho recordar e bater triste, por saudades daquela menina bonita, que foi minha companheira por alguns dias.
Como no anterior, onde o irmão de Lucia se exibia em equilíbrio sobre uma peça cilíndrica (e acabou ficando nu), nesse circo, outro menino de seus dez anos de idade, também se equilibrava sobre cadeiras sem assentos: ia colocando uma virada sobre outra, até um total de oito cadeiras e se equilibrava em diferentes posições, incluindo de cabeça para baixo e também com apenas uma das mãos.
Outra parte interessante era a dos animais, já que se tratava de circo zoológico. Elefantes que dançavam sobre tambores, leões sendo domados dentro das jaulas, mini pôneis que desfilavam carregando lindas moças sobre o picadeiro, um enorme hipopótamo fêmea que desfilava triste (acho que por saudade de sua família em seu habitat), um casal de zebras; cavalos treinados, macacos arteiros que sabiam roubar comida dos palhaços e cavalgar montado igual peão sobre os pôneis, cinco cachorrinhos poodle que desfilavam com apenas duas patas e saltavam obstáculos…
Serve meu protesto? Elefantes para dançarem sobre tambores são covardemente torturados em chapa quente e chicotadas de arames sobre as patas… leões são torturados com fogo para temerem o homem (que é o pior dos animais) … e a tristeza do hipopótamo? Só vendo (igual eu vi e jamais me esquecerei) para ter pena.
O circo deveria ser apenas de apresentação humana, como equilibristas, trapezistas, mágicos, palhaços, globo da morte… os animais deveriam permanecer na África ou outro local de seu habitat natural. Eu passaria muito bem sem assistir espetáculos assim.
De repente os grandes tratores surgiram do nada e sem piedade começaram a derrubar todas as pequenas e grandes árvores, da pequena mata nativa existente atrás de minha casa. O Innocente menino bobo, achava aquilo até divertido, mas, ao final de apenas dois dias, quando a beleza verde do lugar se transformara em grande pátio triste, de terra vermelha, este mesmo Innocente menino, percebeu o quanto é cruel a mão do homem, que, ambicioso destrói o que Deus demorou milhões de anos para construir, em forma de saudável natureza, colocando em seu lugar, árvores ou arbustos de pura pedra quente (dizem que Deus demorou apenas seis dias para criar todo o Universo, com tudo o que ele nos oferece. Pode até ser. Mas lembremo-nos de que os dias de Deus são diferentes dos nossos. Um dia de Deus pode demorar mil anos… ou mil séculos…)
Além do mais, dois homens, que pareciam deuses (só se for do dem… credo!) Passaram roubando 15 centímetros de terra de cada terreno, que fazia frente a este local que denominaram jardim Cecap, alegando que eram seus (por que será que não foram roubar do D.E.R na outra parte, que fazia fundos com a rodovia João Covolan?).
Em prazo de uma semana, caminhões carregados de cimento, folhado e tijolos, transformavam o lugar vermelho de terra em montes e mais montes de cores ainda mais triste e então homens e máquinas começaram a reconstruir a mata devastada. Fazer o que: é a evolução humana em forma de um progresso assassino. Ali era onde eu brincava, acompanhado ou mesmo sozinho; ali eu chupava pitanga, gabirova, jambo, jambolão; comia marollo; sondava os passarinhos barulhentos… (quem de vós hoje, sabe do que estou falando?).
Brincando com meninas.
Minha madrinha Alice me convidou para passear com ela à casa de sua filha Helena, que ficava no bairro do Araponga. Levantei-me muito cedo e às sete horas da manhã já estávamos saindo da rodoviária, chegando ao nosso destino em apenas meia hora.
Ela bateu palmas devagar (minha Madrinha era realmente uma pessoa bem devagar; até para falar), uma mulher olhou pela janela e a fechou bruscamente (que falta de educação! Bater a janela em nossa cara!); já pensei que voltaríamos para trás, quando, a mesma mulher abriu a porta e nos recepcionou, arrumando a saia (acho que acabara de sair do banheiro): era Helena (que eu não conhecia). Viúva, que morava ali no sítio com três filhas: Ivete de quatro, Laura de sete e Ivonice (não fui eu quem deu esse nome) de dois anos.
Enquanto minha madrinha conversava calma, parecendo que estava com medo, Helena era desesperada no falar e me recebeu muito bem, dizendo que desde os tempos de Degredo (que eu tinha menos de três anos de idade) ela não me via. Dizia que naquele tempo eu vivia andando peladinho pelo terreiro e que agora continuava bonito e mais esperto (ela quem disse! Eu nunca me achei um menino bonito! Muito menos esperto! Sabia que adorava andar peladinho. E daí? Criança pequena não sente vergonha de seu corpo. Isso é imposição que os adultos criam aos poucos em sua pureza).
Saudade do sítio: enquanto as duas mulheres preparavam o almoço eu e as três meninas fomos explorar o grande terreno do local, perseguindo as galinhas, como fazia no Córrego dos Pintos (já disse), jogando espigas de milho aos porcos e me escondendo das meninas, principalmente de Ivete, que grudou nos meus pés (sempre conquistei com facilidade meninas bem mais novas… êpa! Eu nem podia namorar! Ia ser padre!)
Almoçamos antes do meio dia, deitei um pouco em pequena cama na grande sala, onde fiquei ouvindo os risinhos das meninas que me sondavam (até parecia que elas nunca tinham visto um bicho menino). Pouco depois a mãe delas brigou, dizendo que era para deixar eu dormir em paz. Dormir!? Por que eu estava tentando dormir de dia? Não era meu costume! Acho que queria mesmo era fazer o tempo passar depressa, pois só retornaríamos à cidade no dia seguinte e eu já estava com saudades. Aquele passeio estava servindo para provar que agora eu era um menino da cidade e já não gostava mais de sítio… que pena!
Pouco depois, sem dormir, voltei a brincar no grande terreno; sempre com as três meninas. Tentei brincar de esconde-esconde, mas foi difícil, pois se Ivete fosse colocada para nos procurar; antes de escondermos ela ia atrás; se eu fosse colocado para procurar, ela permanecia junto comigo igual carrapato; se uma de suas irmãs fosse nos procurar, ela se escondia comigo e ria mais do que uma hiena, denunciando nosso esconderijo…
Pouco depois retornamos à grande casa, em que Helena acabara de preparar um delicioso arroz doce com casquinha de limão, que eu adorava (geralmente em minha escola, às sextas-feiras se servia esta guloseima).
Após o jantar fomos passear na casa de outro conhecido (deles). Enquanto minha madrinha, Helena e a outra mulher ficavam conversando na cozinha, eu passei a brincar na sala com outro menino de minha idade. Pouco depois o menino foi dormir e aí sim deu sono: aquelas pessoas não acabavam o assunto e eu queria dormir. As meninas foram dormir com as galinhas; quero dizer… cedo demais; os adultos conversavam entre eles, ignorando uma criança bobinha com sono. Quando já não tinham mais assunto e eu pensei que iríamos embora, o homem apanhou um acordeom e passou a tocar (até que bonito) por mais de duzentas horas. Pobres olhinhos meus!
Eram mais de onze horas da noite, quando minha madrinha finalmente resolveu:
— Vamos dormir que já está me dando sono!
Os meus já tinham sido tomados.
Chegamos de volta à cidade, apenas na tarde de domingo. Eu tinha então deixado de ir ao catecismo e a missa com Tadeu.
Perdidos!
As provas denominadas exame final, foram realizadas em 28 de novembro. Dona Nair, ocupada em nos fiscalizar durante a realização dos exames, nem pensou em sair da sala de aulas: Língua Portuguesa, Ciências e saúde, Matemática, História e Geografia: essas eram nossas matérias no terceiro ano do ensino primário.
A prova foi muito fácil e pouquíssimos alunos seriam reprovados; só que dona Nair, com sua varinha fina nas mãos, não nos dava trégua. Dizia que se alguém olhasse para trás ou conversasse, apanharia com certeza. Mas ao final do exame, sua varinha ainda não tinha sido usada e sendo assim (apesar da mão coçando de vontade em espancar alguém, como despedida de seu cárcere) ela nos dispensou um tanto mais cedo.
Só retornamos à escola no dia 5 de dezembro, para verificarmos as notas: fui aprovado com média 85 e então estávamos novamente de férias. Foi até um alívio: o semestre terminara sem que eu levasse sequer uma varada, da mais brava professora que tivera em minha infância.
Aproveitando o período de férias escolares, sobrava mais tempo para diversão e passeios. Assim, mesmo em dia de semana, após o almoço, nos reunimos: eu, Moacir, Gilmar e Zoca, seguindo a pé a um passeio na casa do senhor José Schmidt, padrinho de meu irmão Geraldo, que morava em um sítio a pelo menos 10 quilômetros de casa.
Apesar de ser longe, devido ao horário de verão, tínhamos todo o tempo do mundo e fomos brincando pelas margens da rodovia; hora andando, hora correndo e então, às três horas da tarde estávamos lá e… só os cachorros nos atenderam. Não tinha mais ninguém. Viagem perdida. Fazer o quê? Chorar não adiantava. Criança não se importa com viagens perdidas e viramos de volta. Passou um caminhão leiteiro; Moacir fez um sinal com o dedo e o motorista parou. Trouxe-nos de volta até a vicinal que dava saída da cidade pela Rua Jácomo Paro.
Para ganharmos tempo, resolvemos cortar caminho pela densa mata que ficava atrás do aeroporto (até quando esta mata ainda resistiria ao homem assassino? Hoje o Zoca mora nela, mas as árvores sofreram metamorfose, se transformando em concreto) Mas eu não sabia que andar em mato era tão difícil e depois de uma hora de caminhada, já sabíamos que estávamos andando em círculo, pois aquela pequena mata não tinha mais do que 4 quilômetros de extensão.
Para que não nos desesperássemos, resolvemos andar planejadamente, seguindo sempre em direção ao sol e graças a esse ato inteligente, quinze minutos depois achamos a saída, a uns 2 quilômetros de casa.
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Aproveitando o período de férias, fui a pé, com Sidney, Toninho e Valdir, ao sítio de seus tios, no bairro da Boa Esperança, também cerca de uns 10 quilômetros de casa, onde passamos toda a tarde nos deliciando com diversas frutas, principalmente manga Bourbon.
Para o retorno à nossas casas, apanhamos uma grande jaca das moles (pois existe a jaca dura, especial para fazer doce) e para trazer, devido ao seu peso, cada um de nós ficara incumbido de carregá-la por certa distância. Moleza: Primeiro: Sidney, segundo: Toninho, terceiro: Valdir e por último, já dentro da cidade, minha vez. Carreguei-a por uns 500 metros e então, ao atravessar a cerca de arame farpado, pimba, lá se foi a famosa jaca para dentro da valeta de água da enxurrada. Tudo bem se a danada não estivesse madura e se espatifado em centenas de caroços sobre o barro batido.
Fui xingado, amaldiçoado, desprezado, ignorado, abandonado… e o que tivesse mais de… ado, pelos três irmãos, acabando de chegar em casa sozinho.
Bétia era outra de nossas principais atividades de férias: reunidos na rua em pelo menos duas duplas, construíamos casinha com três varetas, uma bola de tênis e dois tacos, que até poderiam ser cabos de vassoura ou pedaços de ripa.
O jogo consistia em: uma dupla joga a bola, a outra defende, tentando acertar a bola com o taco e atirá-la longe; com isto esta dupla precisa trocar de lugar entre os parceiros, correndo, enquanto os adversários buscam a bola. Cada vez que se troca de lugar, marcam-se 2 pontos. Se quem estiver atirando a bola conseguir derrubar a casinha, troca-se de lugar. Ganha a partida a dupla que conseguir 24 pontos primeiro.
Mas como em todos, esse jogo também tinha lá suas regras, tais como: uma vez sem tirar o taco do buraco, ou seja, toda vez que o adversário joga a bolinha, é preciso tentar acertá-la; queima (caso a bolinha seja acertada em quem está defendendo. Às vezes o adversário é malvado e em vez de tentar acertar a casinha, tenta acertar o defensor); três vezes livre (quando o defensor foi queimado ou deixou de tirar o taco do buraco por três vezes); vitória (se o defensor rebater a bola alta e o atacante conseguir espalmá-la); cruzar os tacos no centro do campo ao final da partida (caso o adversário conseguisse acertar a bola nos tacos antes de serem cruzados, ganhava o direito de ser os donos do taco)
Professora meiga.
As aulas recomeçaram em 2 de fevereiro, segunda-feira. Agora no quarto ano, minha sala de aulas era a última, no final do corredor, uma após a sala de dona Nair (que alívio). Apesar de sua esquerosisse, para mim ela foi ótima professora.
Meus colegas de sala eram praticamente os mesmos, com exceção de alguns novos que vieram de outras escolas e outros repetentes do ano anterior com dona Líria. A professora era a meiga jovenzinha, de cabelos escuros longos, magrinha, dona Odete Dias Paes. Em questão de carinho por crianças a mudança fora radical.
Entre os novos alunos estavam: Olímpio, ruivo, que assim como Ricardo, também morava no sítio e cuidava de gado; era muito bom e educado, por isso todos o admiravam. Francisco e Francisca eram dois irmãos muito semelhantes; pareciam ter até a mesma idade; a única diferença eram os cabelos, a roupa e o sexo. Lourival Martins (Valter), um dos únicos negros da sala; até parecia o Pelé. Um dia houve uma briga com duas meninas na escola e o inspetor Celso, queria levá-lo à diretoria, mas descobrindo que as meninas eram as culpadas o homem resolveu deixá-lo livre. Este menino tivera uma infância triste, pois aos onze anos perdera o pai em acidente de trabalho e pouco tempo depois perdera o irmão caçula, com cinco anos, em acidente de carro.
Logo no primeiro dia, em aula de Ciências, dona Odete passara a explicar sobre o aparelho reprodutor masculino e feminino; ouriçando nossa curiosidade sobre o assunto que em casa era proibido. Mas mesmo ali, palavras muito científicas nos deixavam quase na mesma: a união do pênis com a vagina produz uma ejaculação que libera 200 milhões de espermatozoides, produzidos pelos testículos e transportados pelo esperma através dos canais deferentes que fecundarão um único óvulo que se transformará em gameta que levará a uma divisão de células, fazendo-a se multiplicar em 2, 4, 8, 16… que formará um embrião, levando-o a ser um feto que ao final de nove meses, sendo um bebê completo, nascerá através da mesma vagina por onde entrou através de um pênis ereto (a gente grava por ser assunto que nos causa curiosidade. Mas será que não dava para ser mais direto?)
Em casa repeti a aula para minha irmã Nezinha, dizendo-lhe:
— A gente nasce através da vagina.
Mamãe, que ouvira a conversa me repreendeu na hora:
— Será que precisa falar em casa tudo que se aprende na escola?
Acho que deveria chamar os pais e tirar a dúvida sobre o que é pênis, gameta, feto, vagina, testículos, óvulo, espermatozoides, embrião… Lembra: aprendi o que é uretra pela mestra vizinha, Regina, mais jovem do que este Innocentinho.
Logo no início do ano escolar, aparecera um homem, que trazia consigo uma caixa e nos demonstrara uma beleza de coleção de dicionários ilustrados em 6 volumes, todos em capa dura de cor vinho e títulos dourados. Ele voltaria na próxima semana e quem quisesse adquiri-los, o preço era excelente: 70 mil cruzeiros e poderia parcelar em quatro vezes.
Os 6 volumes foram passados de mão em mão, ouriçando nossa cobiça. Mas quem poderia comprá-los? Nem ousei pedir tal coisa a papai! Muito menos a mamãe!
No dia do retorno do homem, apenas Ricardo, o menino do sítio adquiriu a linda coleção. Não sei qual foi à estratégia adotada por ele para convencer seus pais em valiosa compra. Ele era o menino mais rico da sala, sendo o único que ia à escola de relógio no pulso, calça comprida, tênis sempre novo…
Falando em colegas recentes na sala:
Também neste quarto ano tínhamos às sexta-feira, aula de religião e como a religião oficial do Brasil era a doutrina da igreja católica, cada aluno precisou ir à livraria católica comprar uma cartilha do bom Cristão, para servir de guia durante as aulas, que era ministrada pela própria dona Odete. O mais importante era que crianças de outras religiões, como o caso de Osmair (crente), estavam automaticamente dispensados de tal matéria e neste horário (primeira aula após o recreio) permanecia no pátio fazendo o que bem quisesse (que vontade de ser crente!).
Apesar de tudo, a matéria era muito divertida e o mais importante: nunca valeria notas a fim de exame.
Naquela matéria estudei muito sobre o Monte Sinai, os 10 Mandamentos da Lei de Deus, o sacrifício de Abraão (de novo), Adão e Eva e o jardim do Éden.
Outra professora muito boa da quarta série (o quarto ano) do período da manhã, onde estudava meu amigo e vizinho José Roberto, era a já grisalha dona Líria.
O único professor homem de nossa escola, era o senhor Adão, ele já até dera aulas para mim no antigo “Marcos Trench” e foi assim como nós, adotado pelo “Casa da Amizade”. Nesta escola também ele era substituto e só lecionava quando faltava alguma professora. Já esteve em minha classe sentado aos fundos da sala, assistindo aulas de dona Odete, como se fosse criança como nós.
A diretora era dona Madalena Barquete dos Santos. Muito boa e educada. Mesmo em alguma reunião com os alunos no pátio da escola, sempre falava com muito carinho e respeito. Jamais alterou a voz ao comentar qualquer assunto, por mais sério que viesse a ser. Só não sei dizer como ela tratava o aluno que era levado à sua presença na diretoria. Nunca estive lá (acho que deveria ter feito alguma travessura para poder ter ido até lá e agora saber o que relatar nestas memórias).
Aos sábados, após o intervalo do recreio, que era das 2 e 45, até às 3 horas e 15 minutos, tínhamos a melhor de todas as matérias: aula de educação física, com jogos de futebol, queimadas, arremesso manual e outras atividades, que duvido alguma criança não gostar. Se tivesse um dia na semana que jamais faltaria às aulas, seria o sábado.
Não gostava mesmo de faltar da escola: reprovara o segundo ano não por falta, mas por culpa da própria professora (toda criança fala assim), que ao remodelar a estrutura da sala de aulas resolveu adotar o critério de altura das crianças, vindo a me colocar à frente de um aluno que já sabia ser reprovado, que me levou ao mesmo caminho.
No ano seguinte, ganhei da prefeitura municipal, no dia do sexagenário aniversário da cidade, uma medalha de honra ao mérito, por ter 100% de frequência escolar, sem uma única nota vermelha.
Naquele sábado, assim que retornamos para a sala, após as aulas de educação física, poucos minutos antes do encerramento do dia letivo, acho que devido ao forte calor que fazia no mês de fevereiro, com o corpo suado e quente, devido às atividades físicas, senti escorrer algo do nariz; julgando ser coriza (não poderia escrever meleca ou…), apanhei imediatamente o lenço que (já mencionei, graças a persistência de mamãe cautelosa) sempre carregava comigo, esfregando-o no nariz e vi manchá-lo de vermelho. Imediatamente debrucei sobre a carteira e a professorinha meiga chamou meu nome. Levantei o rosto e ela percebeu que estava com o nariz sangrando. Veio imediatamente em meu socorro, fazendo levantar o rosto, como a olhar para o teto.
— Vá ao banheiro e jogue bastante água na testa e na nuca, depois fique com a cabeça erguida.
Era esse o costume antigo de se curar a tal hemorragia nasal.
Ainda estava no banheiro quando soara o sinal de saída e ao retornar à sala de aulas, só dona Odete estava à minha espera.
— Sarou? — Perguntou-me ela, colocando as mãos sobre meus ombros.
Acenei que estava bem.
— Semana que vem eu dispenso você da aula de educação física.
— Nããão! — Era a melhor aula da semana. — Foi o calor!
Apesar de gostar muito desta nova escola, que inclusive era bem mais perto do que o então Marcos Trench, sentia saudades do tal grupo, que por ser mais antigo tinha uma ótima estrutura, com dentista e maior espaço físico, além dos colegas, que devido os dois anos de convivência se tornaram como em uma família e as brincadeiras do horário de recreio pareciam mais divertidas. No Casa da Amizade, parecia que as crianças não se dedicavam muito a atividades de recreação, onde a gente acabava por sentar em muretas, contando casos, ao lado inclusive de meninas, que era raridade na época (meninos brincavam com meninos. Idem às meninas.), salvo em aulas de educação física.
Zeca, como parecia um gênio, inventara uma espécie de hélice feita com lata de óleo de soja vazia: recortara a lata em formato de um desenho de carretel gigante, fizera dois furinhos no centro, usara um pedaço de pau de uns 15 centímetros cortado de cabo de vassouras que existia aos montes em nossa casa, pois papai ainda fabricava suas vassouras, afinava uns 5 centímetros do mesmo, no qual seria encaixado um carretel de linhas de pipa vazio com dois pregos tamanhos 12x12 sem cabeça, fixado na parte superior em que encaixava a hélice e usando um pedaço de cordinha de pião, puxava com força e a hélice voava longe.
Aquela brincadeira era tão divertida que acabou por viciar nosso cachorrinho preto de raça desconhecida (acho que era lulu), Bilú, a buscar a tal hélice, toda vez que Zeca a soltava. Esse brinquedo foi inventado alguns anos depois em plástico e é distribuído em festas infantis para crianças de todas as idades. (Ah se o Zeca tivesse patenteado). (Se papai tivesse patenteado sua máquina de tirar semente de vassouras; se Zeca tivesse patenteado sua forminha de fazer tijolinhos; se Zeca tivesse patenteado seu caminhão que ascendia os faróis, abria a carroceria, tinha espelhos, para-barros; se Zeca tivesse patenteado seus canecões e canecas, feitos a partir de latas de leite em pó ou extrato de tomates...).
Apesar de minha amizade com Tadeu e seu irmão Raimundo, eles não moraram muito tempo na casinha dos fundos de nosso quintal. Realmente era complicado, com papai guardando vassouras aos fundos do quarto onde eles quatro dormiam. Toda vez que papai quisesse fazer uma ou outra vassoura, tinha que adentrar em seu ambiente sagrado, tirando suas liberdades. Mas o pior foi quando Zeca, innocentemente falou à mãe dos meninos que alguém roubara um de seus coelhos; a mulher entendeu tudo errado, achando que meu irmão a estava acusando do furto e ficou uma fera, exigindo do pobre marido, que já trabalhava muito, que arranjasse outra casa imediatamente. E assim eles se mudaram no primeiro final de semana. Porém minha amizade com os meninos continuou, pois ambos também estudavam na mesma escola minha, apenas em salas diferentes. Se os pais brigam, os filhos não são culpados.
Com isto papai decidiu jamais alugar a casinha a quem quer que seja. Ela era ótima para se guardar suas badulaqueiras, que eram infinitas e servia também para amarrar suas vassouras, que lhe assegurava um ganho extra.
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Tão de repente como começou, os homens resolveram abandonar a construção da selva de pedras, que haviam iniciados na falecida selva natural que existia aos fundos de minha casa (por que será que não planejaram melhor antes de assassinar as árvores?). Todas as mais de 100 casas, que já estavam com as paredes pela metade e a praça que talvez a prefeitura tinha obrigado a construir como reserva de área verde, foram destruídas e então, máquinas e homens se foram sem pedir perdão.
Mas eu percebia que Penápolis era assim mesmo, terra do mau planejamento (e não estou falando mal da cidade, pois eu a amo muito, mas posso falar mal de seus dirigentes). Um dia alguém resolveu construir uma bela estação rodoviária nova; quando a obra ostentava um gigante monumento formoso e pronto para receber os ônibus, outro alguém julgou que o local não era de fácil acesso e tudo foi demolido sem um pingo de piedade do dinheiro investido com recursos dos munícipes. Mas sem problemas (para eles), reconstruíram outro prédio, não tão formoso, na mesma avenida Maria Chica, a 500 metros antes da que foi demolida (será que sendo na mesma avenida, este era de fácil acesso?)
Ao lado da nova estação rodoviária construíram um belíssimo parque turístico, todo iluminado e com fonte que também jorrava água colorida, para as pessoas irem passear e levar seus filhos, para verem os patos, peixes e até um jacaré. Colocaram um belíssimo vagão de trem, preparado para crianças terem aula de natureza na primeira infância. Tudo muito belo (aplausos).
Abandonaram…
Nem vou falar mais, senão embargam meu livro de saudade.
Nossa vida é como o escalar de uma montanha.
Nesse período da vida, papai, como já não mais bebia, se tornara um homem um pouco mais calmo; apesar de continuar com seu espírito de vovô Alfredo, sendo muito nervoso. Mamãe e ele chegaram a um consenso, dormindo em camas separadas, com esclarecimento de mamãe a todos nós e a quem quisesse saber, que sua separação de cama, vinha do ato dele fumar cigarros de palha, que lhe causava alergia.
Realmente o fedor de cigarro de palha, que fica estampado nas pessoas que fumam, causa alergia a todos que se aproximam. E não adianta tomar banho.
Com a casinha desocupada, reservei um bom espaço e construí um balcão de madeira, onde passei a usá-lo como um verdadeiro escritório, que o denominei de “Escritório do Canto”, utilizando meus velhos cadernos recortados na forma de dinheiro ou talão de cheques; a velha máquina de pulverizar que servia então de cofre; livros velhos; um velho distribuidor de motor de carro como sendo suporte para canetas e lápis da escola; e outras inutilidades que se transformavam em tesouro nas mãos de menino imaginativo… era onde eu passava então, meus ricos poucos momentos de folga.
Juntando um pouco de minhas economias, fui até o centro da cidade e comprei em loja de brinquedos, um lindo telefoninho verde, que discava de verdade e fazia barulho, inclusive de campainha. Meu escritório passava então a ter seu telefone, que se tivesse comprado um aparelho telefônico de verdade, teria custado mais barato do que o aparelho de brinquedo e seria melhor, pois o de brinquedo acabou por quebrar o disco em poucos dias de muito pouco uso.
Do escritório veio à ideia maluca de um parquinho: com arames fazia argolas, frascos de desodorantes vazios serviriam de se pisando sobre ele com força, criaria uma pressão que soltaria a tampinha com tal velocidade que se acertasse, derrubaria um dos inúmeros brinquedos inúteis colocados sobre uma plataforma baixa (era minha espingardinha de pressão com rolhas).
Outro brinquedo do parque eram três bocas de manilhas colocadas em pé, que deveria ser acertada por pedaço de folhado à base de concreto, que trouxera da construção abandonada da vila Cecap, atrás de nossa casa, levando o participante a ganhar diversos prêmios, tais como: bolinhas de gude, caixas de fósforos vazia; maços de cigarros de coleção; lápis de cor usado; caneta sem tinta, cartas de baralho e outras preciosidades raras.
Outra atividade vinha do fundo de bacia (que servia de lousa na escolinha), que quadriculada por várias cores levava o jogador a atirar pedras coloridas com as mesmas cores dos quadriculados e ganhava se acertasse o quadrinho da mesma cor da pedrinha (geralmente, como se pintava de quatro cores distintas, o participante tinha 25% de chances de ganhar)…
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Como ter um relógio de pulso era o sonho de qualquer garoto de minha idade e quase ninguém tinha esse privilegio (em minha sala, só o Ricardo e no Marcos Trench, o Adalberto, filho de dona Mercedes), então resolvi fazer uma peraltice, usando o relógio de papai, que inclusive estava com a pulseira quebrada. Mesmo assim fez sucesso, causando inveja entre a maioria de meus colegas de sala. Todos, inclusive as meninas, queriam ver de perto, tal maravilha da eletrônica moderna (ou seria mecânica, pois ele era movido à corda).
Mas tive um problema:
Como Lourival Martins estudava comigo e morava pertinho de casa, Zeca ficara sabendo dessa aventura na mesma tarde e papai, minutos depois. Enquanto me trocava para ir à olaria, papai me perguntara sério:
— Que relógio você levou na escola hoje?
O pavor tomou conta de meu ser. Papai não era de bater em filhos, mas tínhamos mais medo dele do que de mamãe, que até dormia com a varinha verde nas mãos.
— Do se…nhor! — Respondi trêmulo.
— Com ordem de quem?
Abaixei a cabeça sem responder.
— Quem autorizou pegar algo que não lhe pertence?
— Desculpe… — pedi, ainda trêmulo.
— Da próxima vez você vai apanhar igual cachorro!
Que sorte! Não haveria próxima vez!
— Não quebrei o relógio! — Aleguei.
— Vai regar a horta!
— Tenho que ir à olaria com Zeca!
— Primeiro jogue água nas plantas!
Foi meu castigo. Aquela tarefa já era de rotina mesmo.
Já que o relógio de papai não voltaria à escola, arranjei um velho relógio quebrado, dei uma boa consertada no visual da preciosidade e no dia seguinte, lá estava eu, novamente de relógio no pulso esquerdo (só que não funcionava). Quando José Jesus me perguntara que horas eram, só respondi:
— Faltam cinco minutos para você me dar um relógio novo.
Língua Portuguesa, Matemática, Organização Social, Geometria, Religião, Ciências, Educação Física; estas eram as matérias que estudávamos na quarta série.
Na sexta-feira, em aula de religião, recebemos a visita do bondoso frei Carlos de Birigui. Assim que a aula se iniciou, ele chegou à porta em tempo de acariciar os cabelos de Osmair, que saía da sala, pediu licença e entrou. Como sempre fazíamos ao receber visitas na sala, levantamos e o cumprimentamos com educação.
— Podem sentar-se crianças — disse o bom padre. — É gostoso fazer visita em sala de aulas, pois a gente é sempre recebido com sorriso sincero. Crianças não sabem ser fingidas e a gente também percebe quando é mal recebido. Que Deus sempre abençoe a todos vocês e tenho uma palavra que gostaria que vocês gravassem em seu sistema poderoso de armazenagem. Guarde no coração e armazene na memória do cérebro: A vida da gente é como o escalar de uma grande montanha. Vocês crianças, ainda estão no início dessa escalada, dando tudo de seu potencial para subir; o caminho vai ser difícil, cheio de barreiras, surpresas e vitórias. Os pais de vocês estão no meio. Já passaram por muitas adversidades, mas estão conseguindo. Eu, que já estou assim de cabelos branquinhos, já passei por todos esses obstáculos e cheguei ao topo; cumpri minha escalada, agora a descida é bem mais rápida… Desejo que todos vocês consigam cumprir esta escalada. Que nenhum de vocês escorreguem no meio do caminho.
Não sei se todos entenderam sua intenção, mas todos (inclusive eu) rimos em coro.
— Quem nessa sala está participando de aulas de catecismo?
A maioria levantou a mão.
— Parabéns! Quem estiver no catecismo nesse ano, fará a primeira comunhão no início do ano. Quem não estiver, que procure a casa Anjo da Guarda, pois as freiras estão ansiosas para conhecê-los. E podem ficar tranquilos, que se tem uma coisa que as freiras entendem bem, é de crianças!
Pudera, a casa Anjo da Guarda era (e sempre será) uma instituição que cuidava de crianças, principalmente sem pais ou abandonadas e de nós, que estudávamos a doutrina da Igreja Católica.
— E espero encontrá-los também na missa! Pelo menos aos domingos!
PS: - Todas as crianças gostavam daquele bondoso padre, que não parecia ser tão velho e era vigário de Penápolis; hoje ele já faleceu (e não foi de velhice), em morte trágica (infelizmente escorregou da montanha durante a descida). Juntamente com seu pai e outros quatro padres, se envolveram em acidente automobilístico grave, próximo à cidade de Piracicaba, no ano de 1979 (todos morreram). Nesta data, este Innocentinho aqui completava vinte e um anos de idade.
PS2: - Durante toda minha infância e convivência com a Igreja Católica, jamais soube de casos de padres pedófilos em nosso meio (todos com quem convivi, tinha carisma especial por crianças: Frei Marcelino, Frei Afonso, Frei Carlos…).
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5 de julho, domingo, visitando minha avó Maria Thereza, ela foi até seu quarto e voltou em seguida com linda correntinha de ouro, ornamentada por também belo crucifixo, se aproximou e sem praticamente nada falar, abotoou-a sobre meu pescoço, depois a ajeitou com carinho e continuou calada.
— Para mim? — Insinuei admirado.
— Se prometer que irá usar! — Riu ela.
— Nunca mais vou tirar!
Ela se afastou para a cozinha e eu a acompanhei.
— É de ouro? — Perguntei ignorante.
— 18 quilates! (E alguns que mordem).
— Ah sim! (Sei lá o que é isso).
De fato, evitava tirar a correntinha, mesmo na hora do banho, ou de dormir, permanecendo com ela, 24 horas do dia.
Brasil, tricampeão mundial de futebol.
Segunda metade do mês de junho, domingo, dia 21, duas horas da tarde, passava sem destino pelo terreno no qual estava cravado o grande cruzeiro que se iluminava durante as noites e percebi, estando a rua toda deserta, a casa do senhor Décio, lotada de gente, principalmente crianças na varanda. Como onde tem crianças, se pode entrar mais criança, cheguei devagar e percebi a televisão ligada em futebol. Foi aí que percebi o motivo da rua estar deserta: Brasil e Itália disputavam a final da copa do mundo de futebol de 1970, no estádio Azteca, cidade de Guadalajara, no México. Mesmo sem ser convidado, me acomodei entre as dezenas de crianças e passei a assistir, Pelé, tostão, Rivelino, Brito, o goleiro Félix, Carlos Alberto, Clodoaldo, Jairzinho, Everaldo, Piazza e o capitão Gerson, equipe que foram desacreditadas para esse campeonato, enfrentando a difícil Itália; sendo comandados por um carrancudo juiz alemão por nome Rudolf Gloöckner.
Pouco após os 20 primeiros minutos, Pelé faz a rede balançar primeiro, colocando o Brasil em vantagem. Mas a alegria não durou muito: alguns minutos depois, um tal de Boninsegna, tornou a deixar tudo igual, permanecendo assim até o final do primeiro tempo, apesar de que aos 45 minutos, Pelé marcara o segundo, porém o tal juiz carrancudo anulou, alegando já ter apitado o final.
Somente depois de mais 20 minutos do segundo tempo, Gerson colocava novamente o Brasil em vantagens e… 30 e tantos minutos, Jairzinho faz a rede balançar novamente. Agora o Brasil estava praticamente garantido; então… aos 40 minutos, a coisa ficou… melhor, com Carlos Alberto levando nossos canarinhos e torcida ao delírio, ao completar os quatro a um.
A televisão anunciava então: “traz outro caneco que esse já é nosso”. De fato, o Brasil conquistava o tricampeonato de futebol do mundo, trazendo em definitivo para nós, a taça Jules Rimet, que fora entregue às mãos de Carlos Alberto.
A imagem que mais marcou a meus olhinhos de quase criança, foi a linda defesa de nosso goleiro Félix, que conseguiu saltar por cima de um jogador adversário (não vou falar nome de jogadores italianos, pois não sei nenhum, a não ser o tal de Boi Sega).
Ao final da partida, saí de fininho e ao retornar para casa, encontrei dona Benedita (avó de Lourival, Leila, Vera…) que corria igual louca pela rua, abraçando mamãe, dizendo:
— Dona Maria! A senhora é brasileira?
Foi a primeira vez que assisti a uma partida de futebol de copa do mundo na vida (e mesmo outros, só ouvira pelo rádio) e como bom brasileiro, gostei; então passaria a assistir todas as demais, pelos próximos séculos.
Aproveitando a algazarra da vitória da seleção brasileira, todos soltavam fogos e nós crianças, como ainda tínhamos algumas bombinhas número 100, que talvez sobrara das comemorações de Santo Antônio, a poucos dias, que papai realizava todos os anos, aproveitamos a oportunidade para soltá-las junto com os adultos que soltavam rojões. A diferença é que nós usávamos latinhas de leite em pó ou massa de tomate vazia e colocávamos a bomba acesa embaixo; quando acontecia a explosão, a lata voava longe, com o fundo estufado para cima e muitas vezes até arrancado.
Como nosso cachorrinho Bilú estava viciado em apanhar objetos, devido ao treino recebido com a famosa hélice de Zeca, acabamos por ignorar esse perigo, acendemos uma bomba sob a lata e saímos correndo. Bilú também correu; porém em sentido da bomba. Não adiantou gritarmos para sair dali. Tentou apanhar a lata com a boca e como a bomba não era igual às de desenho animado, que demora em explodir, sua explosão foi rápida… a tragédia estava feita: Bilú, pobrezinho, teve muitos ferimentos nas patas e boca. Saiu gritando desesperado e nós, apoiado por mamãe e papai, corremos em seu socorro.
Mamãe providenciou mercúrio e curativos, para cuidar dos ferimentos provocados pelos estilhaços da bomba; mas além dos externos, ouve ferimento dos ouvidos, provocado pelo estrondo da bomba e Bilú estava muito ruim, permanecendo deitado no banheiro.
Interessante que quem colocou a bomba sob a lata e ascendeu o pavio e quem viciou Bilú a apanhar objetos foi Zeca; mesmo assim, eu me sentia culpado pelo ocorrido. Tudo bem que eu estivesse junto; era conivente com tal tragédia.
Nos próximos dias, o pobrezinho permaneceu deitado sofrendo muito e nem se manifestava em tentar ir ao trabalho comigo e Zeca, que aproveitando o período de férias escolares, em acordo com os demais trabalhadores e Carlos (que saíra do emprego com João Carola) que agora trabalhava comigo e Zeca, passamos a iniciar nossas atividades às três horas da madrugada (vê lá se isso é hora de criança acordar!)
Apesar da soneira que aquilo provocava, eu gostava desse tipo de aventura: chegava na olaria antes do senhor Ermínio e Dalton irem para o barreiro, ouvia os galos cantarem, via toda a madrugada e assistia o Sol nascer, em sua bonita aurora lá por trás do Santuário de São Francisco de Assis, quando já tínhamos fabricado pelo menos uns 500 tijolos, graças a agilidade de Carlos, que era bem esperto nessa atividade e não tinha preguiça.
Apesar de estarmos no início do mês de julho, não fazia tanto frio e quando o Sol esquentava, tirava a calça comprida, permanecendo “in jejun”, como dizia Dalton, já que (apesar da promessa feita a mim mesmo de que jamais ficaria sem) não tinha costume de usar cuecas e apesar de já estar com doze anos de idade, ele continuava com tal brincadeira sem graça e eu já não era mais uma criança ingênua, para um homem ficar mexendo em…
Bilú, devido seu sofrimento, acabou ficando muito furioso e como criança é boba, tentando acariciá-lo, Nezo, Zeca e eu, acabamos sendo mordidos pelo enraivecido animal que, em poucos dias, não tendo solução acabou morrendo de tanta raiva, provocada pelo forte estampido da bomba junto a seu sensível ouvido. Enquanto o ser humano consegue ouvir frequências até 4 quilohertz (ou seria kilohertz?), os cachorros conseguem tal façanha até 20 quilohertz (pensa o que, sou formado em eletrônica, eletrotécnica, além de ser professor de telecomunicações).
Preocupado com o ocorrido, papai nos levou a um médico do centro de saúde que receitou nove injeções para cada um, a ser aplicada em volta do umbigo. Com isto, todas as tardes íamos juntos à farmácia São Paulo, do senhor Otacílio, que nos furava com prazer. O conselho era: ou toma injeção no umbigo, ou fica louco igual a Bilú.
Em comemoração ao tricampeonato da seleção canarinho, uma grande empresa criou e passou a comercializar figurinhas contando a história de todas as copas e seleções do mundo. Cada envelope consistia em três figurinhas, que eram coladas em álbum e cada página cheia, a pessoa ganhava prêmios, que iam desde forma para pizza, até televisão e moto (será?)
Todo mundo, até quem nem tinha condições financeiras, às vezes deixavam de comprar o leite do filho pequeno para colecionar as tais figurinhas, que eram vendidas em qualquer bar. A princípio comprei 10 envelopinhos e ganhei um álbum. Como era pobre, pararia por aí.
Um dia, na volta da casa de vovó, estive por acaso na casa de um casal (desconhecido. E criança não fala com desconhecido). Eles tinham milhares de figurinhas repetidas e me deixou ver as que me serviam para trocar. Dezenas serviam. O problema é que eu não tinha para trocar com eles, com exceção de apenas uma, que já estava colada em meu álbum e serviria para ele encher uma página principal do seu; com isto me ofereceu todas as que me serviam em troca de apenas aquela que lhes seria útil. É lógico que aceitei na hora e com isto meu álbum cresceu em quantidade, me fazendo ficar viciado naquela coleção.
A partir de então, até papai nos dava dinheiro para adquirir as tais figurinhas que ao final de alguns dias, conseguimos ganhar um tal prêmio: a tal forma de pizza (ganhar? O dinheiro gasto em figurinhas, além das que ganhara, dava para comprar umas 10 formas daquela; alumínio fajuto). Quem ganhava sempre, sem dúvida, eram os produtores e distribuidores das tais figurinhas dos campeões do mundo. E com certeza também, a Fifa, a CBF, jogadores (por direito de imagem) e o governo federal, em forma dos diversos impostos embutidos naquela tramoia viciante.
Amigo secreto.
Na época do dia das crianças, dona Odete resolvera fazer uma tal brincadeira de amigo secreto em nossa sala: escrevera o nome de todas as crianças em papéis individuais, dobrara e cada qual retirara um deles, mantendo em segredo o nome sorteado. Nos dias subsequentes (viu só?) ao sorteio, muitos cochichos e tentativas de se descobrir quem tirara quem. As meninas pareciam mais entusiasmadas no assunto. Os meninos pensavam mais nas brincadeiras do horário do recreio…
Dia 12, segunda-feira, que além de ser o nosso dia, era também o da Sagrada Mãe de Jesus (e não era dia santo de guarda), data combinada para se desvendar o segredo, todos estavam eufóricos e não sei se por falta de tempo, preguiça, ou se por que meninos realmente não se preocupa tanto com tais coisas, acabei por não comprar nada a meu amiguinho secreto, embora o dinheiro doado por mamãe, estivesse em minha velha bolsa, feita de couro marrom e ripas nas laterais, parecendo valise.
Após o recreio, a brincadeira iniciou-se com a própria dona Odete revelando seu amigo secreto (a memória me deixou a sequência para trás) …
… algumas revelações depois, Vera (a maior menina da sala) revelou meu nome. Ao dar-lhe um tímido abraço, recebi um embrulho. A professorinha, sempre gentil e animada dizia:
— Que lindo! Abra-o!
Claro que sim! Imediatamente o embrulho fora aberto: era uma coleção de bolinhas de gude coloridas (carambolas) de todos os tamanhos. Agradeci feliz o presente e anunciei meu amigo secreto:
— Meu amigo secreto é o Osmair…
Ele se aproximou e teve que se contentar em receber meu presente, que a professorinha amável dizia:
— Olha! Um lápis de cor, dois pirulitos e dinheiro…
Isso! Fazer o quê? Embora eu ficara com vergonha de meu pouco caso, não se podia fazer mais nada. E o dinheiro do presente não era significativo para se comprar mais do que uma caixa pequena de seis lápis de cores…
Para o dia da bandeira (em meu mundo de estudante, a bandeira era o símbolo maior da nação) a escola preparou uma verdadeira cerimônia de comemoração.
Dia 19 de novembro, quinta-feira, às nove horas da manhã, todos os alunos participavam juntos de tal cerimônia no saguão da escola.
Para mim deveria existir mais dessas comemorações, pois, como tinha compromisso com a escola, deixava de ir à olaria e o mais importante: escolhido ao lado de mais um menino e duas meninas, representava a classe da quarta série em declamar uma poesia sobre tal data.
Não é para me exibir (e também nunca fui um nerd), mas a professora sempre escolhia para tais atividades, os alunos que tinham mais facilidade em decorar e declamar.
As comemorações iniciaram com hasteamento das três bandeiras, enquanto todos os alunos cantavam juntos o: Hino Nacional Brasileiro.
Como as apresentações eram por ordem de sala de aulas, a partir da primeira série; existiam duas classes de cada série, uma do período da manhã e a outra do período da tarde; com isto fomos os últimos a nos apresentar; onde declamamos em forma de trova, o hino da bandeira brasileira:
Hino à Bandeira Nacional
Letra: Olavo Bilac Música: Francisco Braga
(Lourival) Salve, lindo pendão da esperança!
salve o símbolo augusto da paz!
Tua nobre presença à lembrança
a grandeza da Pátria nos traz.
(Lucia) Recebe o afeto que se encerra
em nosso peito juvenil,
querido símbolo da terra,
da amada terra do Brasil!
(Celso) Em teu seio formoso retratas
este céu de puríssimo azul,
a verdura sem par destas matas,
e o esplendor do Cruzeiro do Sul
(Fátima) Recebe o afeto que se encerra
em nosso peito juvenil,
querido símbolo da terra,
da amada terra do Brasil!
(Lourival) Contemplando o teu vulto sagrado,
compreendemos o nosso dever.
E o Brasil, por seus filhos amado,
poderoso e feliz há de ser.
(Lucia) Recebe o afeto que se encerra
em nosso peito juvenil,
querido símbolo da terra,
da amada terra do Brasil!
(Celso) Sobre a imensa Nação Brasileira,
nos momentos de festa ou de dor,
paira sempre, Sagrada Bandeira,
pavilhão da justiça e do amor!
(Fátima) Recebe o afeto que se encerra
em nosso peito juvenil,
querido símbolo da terra,
da amada terra do Brasil!
Apesar de ter certeza incontestável de que passaria de ano, mas também tendo certeza de que estudaria em seminário e me transformaria em padre, fiz sozinho em meu quarto, a promessa mais boba da minha vida (boba por não ser necessária).
— Querido Menino Jesus, faça com que eu passe de ano na escola, que lhe prometo ser padre, para cuidar das coisas de sua Igreja…
Como o ano letivo passara mais rápido do que os demais, em 23 de novembro, realizávamos o exame final, sendo fiscalizados pela meiga professorinha Odete e o substituto Adão.
Dona Odete, não complicaria mesmo nossa vida no último dia de provas escolares. Sempre fora ótima professora e nos ensinava com o mesmo carinho que com certeza cuidava de seus pequenos filhos. Sendo assim, ninguém se atreveria a decepcioná-la; por isso ela tinha a fama de ser uma das poucas professoras que não reprovava alunos. Não era que ela dava provas fáceis. Ela dava prova daquilo que as crianças tinham realmente aprendido.
Dia 26, dona Odete, com sorriso meigo dizia:
— Vamos saber agora quem teve a ousadia de reprovar de ano!
Apesar da ansiedade em nossos corações pré-adolescente, cada um tinha a certeza de que teria passado sem problemas.
Após confirmação de nossas notas, a mestra pediu a quem pudesse ajudar na preparação da escola, no dia seguinte pela manhã, para a realização da cerimônia de entrega dos diplomas, no sábado, dia 28.
Acha que eu perderia a oportunidade de fugir da olaria?
Na manhã seguinte, lá estava eu, ajudando a encerar o chão do saguão, carregando cadeiras, bandeiras, faixas brancas, palanques… serviço pesado, eu até sei, mas bem melhor do que fabricar tijolos… o senhor Celso só mandava (como mencionei em algum lugar deste, nunca vi meu xará movendo uma palha sequer em nossa escola); o senhor José, como eu, as merendeiras e muitas crianças, fazíamos com prazer aquela que seria nossa penúltima atividade na escola primária.
Formatura.
Oito horas da manhã do sábado, a escola estava cheia. Eram formandos de duas salas de aula; todos em traje de gala: calça cinza comprida, camisa manga longa branca, sapatos pretos (peguei emprestado de Zeca, engraxei-o com carinho e serviu), meias brancas, gravata borboleta vinho (que também peguei de Zeca) … realmente estávamos elegantes (só faltou a fotografia) e nossos pais (meu só mamãe) estavam presentes.
Frei Carlos (seu acidente fatídico ainda não acontecera) celebrou a bonita missa de formatura; dona Magdalena, que assinou nossos diplomas, fez o discurso de despedida; um aluno de cada sala fez um pequeno agradecimento à professora e cada sala fez uma pequena apresentação. Nossa sala cantou em coro a música, Marinheiro marinhola.
Eu não sou daqui
Marinheiro só
Eu não tenho amor
Marinheiro só
Eu sou da Bahia
Marinheiro só
De São Salvador
Marinheiro só
Lá vem, lá vem
Marinheiro só
Como ele vem faceiro
Marinheiro só
Todo de branco
Marinheiro só
Com seu bonezinho
Marinheiro só
Ô, marinheiro, marinheiro
Marinheiro só
Ô, quem te ensinou a nadar
Marinheiro só
Ou foi o tombo do navio
Marinheiro só
Ou foi o balanço do mar
Marinheiro só
Na sequência, com ajuda da professora de cada sala, iniciou-se por Doutor Dirceu Gastão Dos Santos Peters, então prefeito municipal de Penápolis, a distribuição dos 60 diplomas, amarrados por fita azul, em forma de canudo.
Meu coraçãozinho bateu forte quando dona Magdalena anunciou meu nome e quase dei vexame, com pequeno escorregão no chão liso, o qual no dia anterior ajudei a encerar.
Nós, os formandos, não tínhamos idade suficiente para compreendermos e dar valor àquela grande data; apesar de todo o esforço de nossos mestres, diretora, serventes, prefeito, padre e pais, não dávamos o devido valor ao que aquela cerimônia representava. Achávamos apenas a festa muito bonita.
Encerrando aquela linda cerimônia, todos os alunos juntos cantaram:
Adeus minha escola amada e tão querida,
Adeus meus queridos mestres da minha vida,
Meu paizinho eu vou, o futuro me chama,
Aqui fica o eterno adeus, do filho que vos ama.
Adeus meus pais, adeus irmãos,
Levo saudades no coração.
Infelizmente, como a trava da memória acaba jogando em arquivo morto aquilo que não esteja sendo usado por anos, já não me recordo da canção completa (e achava que paizinho se referia a pai; milhares de anos depois descobri que a intenção era dizer que a escola era nosso pequeno país).
E assim saíra pela última vez da minha querida vida escolar primária; sendo, portanto, a última vez que veria a maioria de meus colegas e professores de sala e escola.
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A partir de então com as tardes livres e sem muitas crianças para brincar (elas sumiam durante o dia, reaparecendo no início da noite), minhas brincadeiras prediletas eram: com caixa de fósforos vazia, aprisionar as vespas que surgiam na rua em frente a nossa casa, fazendo rapidamente buraco no chão e entrando dentro para fugir do calor. Com a ajuda de um pedaço de capim amargoso, forçava a bichinha a abandonar sua toca segura, sendo presa fácil para a caixa de fósforos colocada sobre a entrada do buraco. Além do mais, para completar a maldade, com linha de pipa amarrava a infeliz pelo pescoço e a fazia voar em círculos, tentando desesperadamente e sem sucesso, escapar daquela maldita prisão de moleque arteiro.
Quando não eram as vespas, com ajuda de uma peneira grande, minha maldade era com as bonitas borboletas amarelas, azuis, vermelhas, listradas… que voavam de flor em flor, deliciando-se de seu néctar. Eu me aproximava lentamente e… certeiramente atirava a peneira, aprisionando sempre mais de uma de cada vez… tudo bem que a maioria era solta em seguida, mas… infelizmente sempre tinha as que se feriam, quebrando as asas ou pernas, na hora da prisão e então… assim como a maioria das vespas, acabava morrendo antes da hora.
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Outra brincadeira (ou arte mesmo) que surgiu de repente, ao não ter muito que fazer, lembrando-me de que certa vez o irmão Luís Carlos resolvera colocar dois pregos no tal benjamim do ferro de passar roupas e depois de enfiá-lo na tomada de energia elétrica, com a lâmina da faca de cozinha, forçar tais pregos sobre o tal cordão do ferro. Foi um estrondo só e o fogo que saiu pra todo lado.
Assim sendo, como mencionei, sem ter lá o que fazer, meu santo capetinha começou a me dar ideias e lá fui eu, com um pedaço de arame velho, de longe atirá-lo sobre a caixa de fusíveis no alto da varanda de entrada da casa. Resultado: Fogo para todo lado e os dois fusíveis de entrada de energia que voaram longe e lá nós, sem essa mordomia moderna, até a chegada de papai para consertá-lo.
Claro que meu santo anjinho da cara suja já tratou de preparar a bundinha para ganhar diversas cintadas. Porém, mais uma vez demonstrando que bater não educa (na opinião de papai) saí com as nádegas ilesa nessa terrível arte.
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Uma doença que poderia não ser das piores, porém das mais incomodantes, acercara-se de meu organismo nos últimos meses. Sua cura teria que ser mais do que com simples remédios para amarelão, recebido por ocasião de minhas constantes visitas com mamãe ao centro de saúde. Remédios à base de óleo de fígado de bacalhau, que papai nos forçava a tomar (e era horrível) também seria útil apenas como fortificante para crianças em desenvolvimento. Deliciosos remédios à base de Sadol ou Biotônico Fontoura, nos servia como mero abridor de apetite, para que comêssemos melhor e nos engordássemos como porquinhos castrados…
Meu problema de saúde agora viera dos pulmões e a tosse constante, com emissão de catarro, seria então uma tal de bronquite crônica, segundo constatou o doutor Mario Ramos (desculpe, mas nunca gostei dele), me encaminhando para fazer um tal raio xis (radiografia pulmonar), na cidade de Araçatuba. O centro de saúde de Penápolis não dispunha de tal aparelho.
Papai fora comigo com ônibus da empresa Reunidas Paulista até o local indicado; o radiologista me pediu para tirar a camisa e a correntinha de ouro com crucifixo que sempre usava (presente de vovó Maria Thereza); em poucos segundos (após duas horas de espera), meu pulmão fora fotografado… o resultado seria encaminhado ao centro de saúde de minha cidade. Quando? Só Deus saberia responder. Mas “Ele” tinha coisas mais importantes para cuidar.
Primeira eucaristia.
Como nos garantira frei Carlos, no mês de janeiro, sábado à tarde, com dezenas de outras crianças, estivera na Igreja Nossa Senhora de Fátima, na qual, um a um seguíamos até o confessionário e na maior cara de arrependidos (será?) Contávamos nossos pecados ao novo padre que chegava a Penápolis: Frei Marcelino.
— Xinguei… desobedeci a meus pais… fiz bobagem… briguei com amigos e irmãos… tive preguiça… menti… (e um montão de outros pecados da infância, que a gente até esquecia).
— Sente-se e reze um Pai Nosso; dez Aves Maria, mais a Oração de arrependimento (era a penitência exigida pelo bondoso Frei).
— Infundi Senhor em nossos corações…
Por mais que tentasse, acho que não conseguia me arrepender do fundo de meu coração, como exigia as freiras catequistas.
Após a confissão, o próprio padre nos fez um simulado, do que seria nossa primeira comunhão na manhã de domingo, naquela própria Igreja.
Tomamos uma hóstia sem ser consagrada (disse o padre), apenas para nos acostumarmos com seu jeito e sabor.
Para o domingo de manhã, deveríamos estar acompanhados por nossos pais, que serviriam como padrinhos testemunhos, para a primeira vez que receberíamos o Corpo e sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, Consagrado em forma de pão e vinho.
Minha família já não era tão unida assim e tal data, a qual fora preparada em nosso ser por vários anos, não era tão importante assim para eles, então eu e Zeca, devidamente trajados em roupas brancas, simbolizando pureza, fomos os únicos que… às sete horas da manhã de domingo, em espaço separado por faixas brancas na igreja, tivemos como padrinhos as freiras, Madre Thereza e Madre Ruth, que seguiram ao nosso lado (enquanto todos eram acompanhados pelos pais), para recebermos na língua, uma hóstia embebida em vinho… apesar desta grande falta, em data histórica na vida de um pré-adolescente, a cerimônia foi muito bonita.
Após a missa seguimos de volta a Casa Anjo da Guarda, aonde uma bonita festa nos aguardava, com muitos doces, salgados e refrigerantes…
Sentia-me então com a alma santa e que se Deus resolvesse me chamar naquele dia para seu convívio, estava preparado e sem medo.
Uma amizade para sempre
Caminhando por acaso à noite, a uns 200 metros distante de casa, ao longe avistei três moleques de minha faixa etária caçando briga (o que é etária?), quero dizer: dois moleques safados querendo bater em outro moleque moreno claro, pouquinho gordo. Nem sei quem eu pensara ser, mas me aproximei e interferi:
— Por que querem bater no menino? Aposto que ele não fez nada!
— Não é de sua conta! — Arrepiou o negrinho Cláudio. — E ele me xingou.
— Por que não vai bater na sua irmã? — Mostrei valentia (sem ser). — Você só vive ameaçando todo mundo.
Ele me encarou. O outro (que eu conhecia) o arrastou dizendo:
— Deixa pra lá, Cláudio!
— E o que você tem com isso? — Insistiu o negrinho, forçando meu peito.
— Com sua vida, nada! Mas deixe de mexer com todo mundo!
Afastaram-se e eu fiquei com o estranho.
— Não liga pra isso não! O Cláudio vive brigando com todo mundo, mas no fundo não é de nada!
— Eu não fiz nada pra ele! — Negou o estranho.
— Quem é você? — Perguntei-lhe.
— José Fernandes — respondeu-me. — Moro na esquina de cima.
Deveria ser novato no bairro, pois nunca tinha visto mais magro. Só que ele realmente era um menino que viera para ficar. Morava na rua paralela de minha casa, com seus pais (adotivos), um irmão (Cícero) e irmã (Cleuza).
Um novo emprego.
Era uma segunda-feira do mês de fevereiro, como sempre, levantei-me antes das quatro horas da manhã, olhei o tempo. Sempre fazia isso, torcendo para que viesse chuva, pois com chuva não tinha trabalho. Como o céu estava estrelado, tomei café com pão caseiro que mamãe fizera em pleno domingo à tarde e segui com Zeca para a olaria (Carlos já não trabalhava mais conosco, o que era uma pena, pois ele era muito ágil e o serviço rendia bastante). Quem sabe o cavalo branco tivesse desaparecido! Mas não, a pipa rodava a todo vapor e em nosso local de trabalho já havia uma montanha de argila esperando para virar tijolos.
Trabalhamos fielmente até às onze horas da manhã, porque eu não aceitava ir além. Se fosse por Zeca, acabaríamos indo até a noite…
Chegamos de volta em casa e mamãe me avisou:
— O Cara Feia (apelido de Wilson) esteve aqui e disse que se você quiser trabalhar na vidraria, para que esteja lá a uma e meia da tarde.
— Verdade?! — Me animei.
Eu teria procurado serviço naquela fábrica e ele ficou de me chamar se aparecesse alguma vaga.
— É para trabalhar ainda hoje! — Alegou mamãe.
Nem tomei banho. Lavei-me pior do que gato, almocei rapidamente e deitei no chão da sala para descansar um pouco. Levantar às quatro horas da manhã, geralmente era sinônimo de sono após o almoço.
Como a fábrica de garrafas ficava a pelo menos 4 quilômetros de distância, saí de casa a pé pouco depois do meio dia e meia, pois nossa única bicicleta era de papai e ele a usava para o seu trabalho.
Chegando à fábrica encontrei o senhor Wilson, que era o encarregado geral (Wilson Aparecido Innocente, era primo em terceiro grau de papai). Ele me entregou aos cuidados do senhor Antônio Carlos Lahr (um entre os três irmãos alemães que ali trabalhava), o qual o auxiliaria, levando na estufa para esfriar lentamente e temperar, as garrafas fabricadas por ele.
Trabalhar na fábrica de garrafas até parecia divertido: apesar de ser um local muito quente, o serviço era bem diferente do que fazíamos na olaria e tínhamos horário fixo, das treze horas e trinta minutos até as vinte e duas horas, com intervalo de 30 minutos às 18 horas e 30 minutos, para o jantar, que papai gentilmente me levou naquele primeiro dia.
A hora parece ter passado tão rápido, que, quando pude perceber já estava na hora de retornar para casa.
Saindo da fábrica às dez horas da noite, nem precisei voltar para casa a pé. Papai fora me buscar de bicicleta. Acho que aquela foi a primeira vez (e única) que papai me carregara na garupa de sua bicicleta.
No caminho para casa, me perguntou:
— Como foi o trabalho?
— Muito bom! Melhor do que a olaria!
— Amanhã você pode dormir até mais tarde — disse-me ele. — Não precisa ir trabalhar na olaria!
Olaria? Só faltava essa! Trabalhei desde as quatro horas da manhã até às dez da noite. No dia seguinte trabalharia novamente na fábrica de garrafas. Só faltava ter que trabalhar também na olaria! Tudo bem que eu já era quase um adulto, aos doze anos de idade. Isso lá era me amar?
A partir daquele dia, olaria estava fora de meus planos. Meu salário na fábrica seria de exato meio salário mínimo por mês (metade de 187 Cruzeiros e 20 centavos), trabalhando oito horas por dia, seis dias por semana, em regime de escalonamento: uma semana seria nesse horário, a outra seria das cinco às treze e trinta horas. Não seria registrado, pois para o governo, criança menor de quatorze anos deveria estudar e brincar, sendo proibido trabalhar (ainda bem que ele não sabia de nada; ou fingia não saber).
Na fábrica eu só conhecia o senhor Santo Danzi, que era meu vizinho do lado esquerdo (pai do Milton, Sueli e Marly) e trabalhava na lavagem e separação de vidros de reciclagem; o Odair Espontão, que morava na quadra acima de nossa casa e trabalhava na classificação de garrafas; meu primo Moacir Lemes e meu amigo José Fernandes, que faziam o mesmo serviço que eu.
No decorrer dos dias, aos poucos iria conhecer os demais companheiros. Alguns deles entre os adultos estavam: o proprietário da fábrica, senhor Antônio Pietro Tonelli; o gerente Joaquim; o encarregado Geral Wilson; seu irmão que também era encarregado, Moacir Innocente; o encarregado José Pião; encarregado Ianella; encarregado Juvelino (chega de tanto chefe); funcionários Percival de Almeida; os alemães trigêmeos, José Lahr, que tinha jeitão de nervoso, mas era calmo; João Lahr, que era o mais brincalhão e animado, e Antônio Lahr, que era o mais forte e também animado (eles tinham também o irmão Valdir Lahr, locutor de programas sertanejos na rádio Difusora e só milhões de anos depois, em conversa com mamãe, viria a descobrir que eles também foram moradores do “Córrego dos Pintos”; isso antes de eu me entender por gente); Tomaz; o gordo senhor Hélio Cardoso, que morava na própria fábrica e só fabricava garrafinhas tipo caçulinha (200 ml); Angelim; José Carlos Ramalho, que estudou com e se transformou em eterno amigo de meu irmão Luiz Carlos; Ademir (que acreditava no diabo, mas não acreditava em Deus); Carlos; Atílio Marques Lopes; Maninho (que trabalhava no escritório); senhor João baixinho; senhor Pedro, de cor negra, com seus mais de cinquenta anos de idade e se transformaria em meu melhor amigo; Mauricio Cordeiro {que me colocara o apelido mais feio do mundo; nem me atrevo a revelá-lo e tinha também o mal costume de brincadeiras malvadas, como me abraçar, beliscar de deixar meus braços, pernas, virilha e peito, cheios de marcas e vergões roxos (e nem adiantava chama-lo de gay por mexer em meu… pois aí é que ele mexia mais. E também não era mesmo homossexual; era mais para um adulto com jeito de criança malvada)}; Natal Cordeiro; José Pequeno; Valdevino; Lourival; Antônio Rodrigues de Oliveira; Aristides, popular Sapão; Valter (que era o químico da empresa) ...
Entre nós crianças e pré-adolescentes estavam: Tigrão; Braizinho; Nenê, irmão de Lourival; Luiz Milani; Carola; Cidinho; Fiinho (irmão de maninho, que talvez fosse o menorzinho entre todos, não aparentando ter nem dez anos de idade e passaria por maus momentos nas mãos de certo abusador de crianças, que acostumaria desde os primeiros dias a morder seu peito nu, dizendo que o menino era lindo e tinha um belo físico. Outros adultos poderiam interferir nesta barbárie, mas se omitiam e assim cada um de nós tinha seu próprio “cafajeste”); Augusto e Mazzola, filhos do senhor Carlos (que também era bem pequeno); Tavinho; Mauro e Luiz Henrique (filhos de Zé Peão) …
Nessa época, aos domingos à tarde, geralmente encontrava o senhor Hélio (da vidraria) na entrada do cinema, aonde ia costumeiramente para assistir aos filmes de Tarzan na matine; em que era imprescindível chegarmos antes de abrir as cortinas, para ouvirmos o tema de abertura tradicional desde há muito tempo (“A summer Place”, “Um lugar de verão” é o título traduzido do tema) e também o famoso jornal do canal 100, na famosa e bonita voz de Carlos Niemeyer.
O filme que sempre lotava o cinema em duas sessões, principalmente de crianças, tinha que ser obrigatoriamente de Tarzan; se fosse qualquer outro, o cinema que nesse caso exibia apenas uma sessão, ficava vazio. E o senhor Hélio até parecia criança no meio de nós, que fazíamos a maior algazarra (no bom sentido), batendo os pés no assoalho, gritando e assoviando (quem sabia. Eu jamais aprendi essa façanha).
Em uma dessas matines fiz questão de comprar dois ingressos, assistindo com isso as duas sessões do filme em preto e branco, “a vingança de Tarzan” (como criança é bobinha. Assistir uma sessão tudo bem, mas duas…)
Trabalhar na vidraria estava sendo ótimo, pois como tinha horários certos, tinha então meus momentos certos de folga. Comprei uma bicicleta usada para ser meu transporte; com isto, dez minutos após o horário de saída já estava em casa e para ir, quinze minutos antes do horário era o suficiente. Meu vizinho Odair, quando fazíamos o mesmo horário, passava em frente de casa e seguíamos juntos, mesmo quando o toró (de chuva) lá fora estivesse assustador.
Assim, geralmente ficava desocupado em determinado período do dia; ou de manhã, ou à tarde. Gostava mais de trabalhar no período da manhã, por vários motivos: era mais fresco para se trabalhar em firma tão quente (pudera; precisava de fogo para derreter o vidro reciclável); quando os demais estavam entrando em serviço, nós estávamos indo embora; tendo a tarde livre para brincar com outras crianças no começo da noite…
Nesse período, como já tínhamos água encanada e tratada da rede pública, que sempre deixava a desejar (na época do poço manual nunca faltou água); geralmente chegava do trabalho pouco antes das duas horas da tarde, com o corpo suado, devido ao calor da fábrica e da própria estação do ano e principalmente dos aclives, que exigiam mais de meus músculos das pernas ao pedalar a bicicleta e o pior, ao adentrar ao banheiro e encontrar a torneira seca igual ao nordeste brasileiro, me via obrigado a separar minha roupa, montar novamente na bicicleta e correr à Maria Chica, para um banho solitário de rio, em que acabava por me divertir com aquela obrigação forçada pelo DAEP (empresa responsável pela distribuição de água e tratamento de esgoto de Penápolis). Muitas vezes tomava a estrada de Jacutinga (bairro afastado), aonde ia me refrescar em pequeno açude localizado a 3 quilômetros de distância.
Como mamãe cuidava da casa, geralmente eu ficava mesmo de folga e foi assim que li e reli por umas 10 vezes a primeira fotonovela de minha vida; a qual contava a história de Rosária, uma jovem funcionária exemplar, que se apaixonara pelo patrão Rodrigo e não era correspondida, inclusive demitindo a moça; um dia a moça retornara à fábrica para conversar com tal homem e encontrara tudo em chamas. Desiludida, achara que valia a pena enfrentar as chamas para salvar seus ex-colegas de trabalho, em que alguns botijões corriam o risco de explosão; não pensou duas vezes, adentrando ao local, conseguindo fechar o gás e evitando a explosão, mas vindo a desmaiar, devido ter inalado muita fumaça; Rodrigo então correu em seu socorro e percebeu que também a amava e… viveram felizes para sempre.
Tião, que morava próximo à Sopeco, era um amigo de nossa família e às vezes aparecia em nossa casa. Papai lhe contara sobre minha insistente vontade em ir para um seminário e que ele deixaria, mas como a vida era complicada, não teria como esse desejo se realizar…
— É melhor o senhor deixar que ele vá — insinuou Tião. — Se proibi-lo, quando crescer pode se tornar um revoltado, dizendo que papai não me deixou ser o que queria… pode até virar marginal… sei lá.
Tudo bem que ele estava me ajudando, mas não precisava exagerar. Justo um menino Innocente virar marginal! Sai pra lá, meu!
Aproveitando alegação de Tião, resolvi então escrever para o seminário redentorista Santo Afonso, na cidade de Aparecida do Norte, colocando como remetente a caixa postal 49 (da vidraria). Na carta mencionara o desejo em me tornar padre e a nossa situação financeira que não era lá muito estável; se eles me aceitassem e pudessem me ajudar…
E já que às vezes Tião aparecia em casa, muitas vezes, quando estava de folga no período noturno, era eu quem acabava indo até sua casa, acompanhado por João e Zete (da tia Amélia). Sendo assim, acabei por cativar a amizade de suas duas filhas, Fernanda, de quase sete e Solange, de quatro anos de idade. Para Fernanda não era só uma amizade.
Acho que já comentei alguma coisa, de que sempre tive o dom de me tornar o príncipe encantado de menininhas bem mais jovens do que eu; sendo assim, Fernanda se apaixonou no primeiro encontro e então, todas as vezes que aparecia por lá, ela não deixava de meu pé, dizendo que eu era o menino mais bonito da cidade inteira (já estava ficando convencido… me sentindo um galã). Ela parava de brincar com outras garotas só para ficar a nosso lado. Meu primo Zete já estava me apelidando de papa anjo; pudera, eu tinha quase o dobro da idade da princesinha.
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A fábrica de garrafas era mais do tipo pela qual no futuro diriam, trabalho escravo infantil. Mais da metade de seu quadro de funcionários era composto por crianças que tinham no máximo quatorze anos de idade. Por que isso? Incentivar o aprendizado de trabalho para o futuro trabalhador? Nada disso. Salários irrisórios. Todas sem exceção ganhavam metade de um salário mínimo mensal e como não podiam ter registro em carteira de trabalho, não tinham direito ao famoso décimo terceiro salário, férias, assistência médica do INAMPS…
Mas o que poderia ser mais drástico em nossas vidas de aprendizes, era a convivência com todo tipo de adultos perigosos, que iam desde quem já enfiou a faca na barriga de alguém, alcoólatras, pedófilos, drogados.
Ademir (o que só acredita no Diabo) tinha seu próprio diabo em forma de balinhas aparentemente inofensivas. O rapaz, que usava cabelos longos, era uma ótima pessoa e nem mesmo gostava dos adultos safados, que viviam tentando explorar nossos genitais, para saber se já estavam se desenvolvendo, devido à idade de quase adolescentes que éramos. Seu único mau era o uso das tais balinhas que eram acomodadas em potinhos semelhante aos das famosas pastilhas Valda.
Logo após o jantar, o encontrei no galpão da fábrica, próximo à sua máquina de produção. Ele sacou de sua latinha, abriu-a, engoliu uma de tais guloseimas e me ofereceu outra, a qual (ignorante sim, mas não idiota) recusei.
É claro que ele insistiu:
— Pode pegar uma. Não é droga. É apenas um estimulante que nos faz aguentar enfrentar tal fornalha.
— Obrigado! — Neguei receoso. — Não trabalho na boca da fornalha.
— Experimente uma — insistiu “seu diabinho”. — Você vai gostar. Fará você viajar pra onde quiser.
— Não! Não quero viajar agora. Vou trabalhar.
E ele era uma boa pessoa. Imagine alguns outros.
Representando.
Quando trabalhava no período da manhã e tinha as tardes livres, aproveitando o entusiasmo de meu novo amigo, José Fernandes, criamos aos fundos de nosso campinho (campão) de futebol, um cirquinho todo cercado por enormes pedaços de plásticos, e anunciamos o espetáculo de logo mais à noite, que chegou rapidamente. O ingresso custaria à bagatela de cinco… palitos de fósforos e o primeiro espetáculo seria: “A vingança do Lavrador”.
Todas as crianças da redondeza e até alguns adultos, compareceram para assistir a nossa grande inauguração.
José Fernandes era Toninho, o lavrador que tivera sua filha Laura (que era Regina), assassinada covardemente por seu namorado, o rico fazendeiro Lucas (eu), que andava sempre muito elegante, com roupas caras (eu usava sempre a mesma roupa velha e suja), para fazer pirraça ao pobre Toninho, que jurara vingança contra Lucas… lá pelo final da peça, Toninho encontra Lucas rezando arrependido na sepultura da moça e crava-lhe um punhal no peito, fazendo-o agonizar muito antes de morrer…
O dinheiro (palitos) dos ingressos ficava sempre nem sei com quem! Mas nem importava. O importante era brincar e ser feliz…
Alguns adultos, verificando que o punhal era verdadeiro, nos pregaram um duro sermão, dizendo para que nunca mais fizéssemos aquilo e que se fosse para brincar, que usasse um pedaço de plástico.
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Em uma manhã qualquer daquele ano, chegou à notícia que morrera o senhor Benedito, avô de Lourival. Ele, mais dona Benedita, haviam se mudado para um bairro afastado e talvez sentindo saudades de sua antiga casa, acabou por adoecer, não se levantando nunca mais da cama. Entre sua doença e o dia em que parou de respirar, não se passaram mais do que quinze dias.
Como eles eram um casal muito simpático e querido, fizeram seu velório na própria casa de Lourival e claro que todas as pessoas da vizinhança compareceram, prestando-lhes a derradeira homenagem, dizendo que ele era um homem muito bom. Depois que morre todos vira santo na boca do povo (Sô Benedito realmente era muito bom).
O sepultamento, caminhando por mais de 4 quilômetros a pé até o cemitério municipal, se dera na mesma tarde; visto que ele morrera de madrugada. Por sorte eu estava trabalhando no período da manhã.
Nem precisa comentar que naquela noite, por respeito, ou por cansaço mesmo, não fizemos nosso espetáculo do cirquinho.
Na noite seguinte, após pouco ensaio, representamos uma aventura de Jerônimo e moleque Saci, que por sua própria insistência, fora representado por José Fernandes; eu não passara de mero índio inimigo (se é que existe índio loiro).
Já que a coisa de representar estava ficando animada, na tarde seguinte segui até o centro da cidade e me atrevi a comprar um bonito revólver 38, cano longo, prateado, da marca Ranger. O danado era realmente uma belezura de causar inveja aos demais companheiros de cirquinho e visitantes.
Mamãe reclamou de eu ter gasto dinheiro naquele negócio desnecessário, mas não chegou a brigar e para estreá-lo no espetáculo daquela noite, José Fernandes me deu o papel principal de: “Meu nome é Pecos”; um homem muito mau, que vivia caçando encrenca com todos, homens, mulheres e até crianças. E ai de quem quisesse saber seu verdadeiro nome! Ao revelar o nome, sacava a arma e sem piedade atirava no infeliz. José Fernandes era o destemido delegado, que como todo final de histórias de bandidos, acaba por fuzilar Pecos .
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Dona Benedita, agora sozinha, resolveu voltar a morar em sua antiga casa, parede de meia (germinada) com os pais de Lourival. Mas como para ela um ou dois cômodos bastassem, alugou o restante da casa para um casal de paraguaios que viviam viajando e deixavam então o filho Juan, aos seus cuidados.
Juan tinha então dez anos de idade, branco, de cabelos pretos lisos, uma vozinha engraçada e um jeito de gringo. Mas era muito bom menino.
Naqueles dias, resolvemos deixar o cirquinho de lado e voltamos a brincar de pique esconde.
Não tinha jeito, aonde o menino Juan ia, as meninas iam atrás. Tornara-se o garanhãozinho do lugar e nós, outros meninos, enciumados, ficávamos a ver navios.
Mas a menina Regina não. Ela era fiel. Brincava sim; com todos nós, de jeito normal e não se enrabichava com nenhum menino. Se ela também grudasse no jeito Don Juan de Juan (coincidência) eu ficaria louco e seria capaz de perder a amizade recente com o novo menino do lugar.
Ele se tornara um de meus principais amigos e apesar de mais novo, geralmente me dava conselhos a respeito de meninas e olha que o safadinho era realmente muito mulherengo. Tinha tudo para se ganhar as meninas bobinhas: menino bonito, boa pinta, filho de gringos, falava arrastado e bem, jeito simpático, não era tímido como a maioria de nós (principalmente eu) … com isto, as meninas se apaixonavam a ponto de até atrapalhá-lo nas brincadeiras. Mas tudo o que ele queria (segundo ele mesmo dizia), era beijar e namorar.
Uma tarde surgiu a conversa de que Vera Lucia me paquerava e eu estava amarradinho pela linda garota {lembra de uma vez que ao brincar de namoro no escuro (ele ou ela) eu pedi uva e fui atrapalhado pela imaginária varinha verde de mamãe real}. Juan me disse:
— Não perca tempo! Ela é bonita! Mulher bonita não pode escapar!
Minha única parceira fixa era Regina e nem falei com Vera Lucia. Não quero dizer que era namorado de Regina (até aos doze anos de idade não tivera nenhuma namorada), mas éramos companheiros de brincadeiras constantes. Quando não se tinha com quem brincar ou estar junto, Regina estava lá; era leal e não fazia pouco caso. Brincava também com outros meninos, mas me considerava como seu principal amigo.
Como trabalhei com José Fernandes uma semana no período da tarde, na semana seguinte nosso cirquinho havia desaparecido, vítima de vandalismo por alguns moleques do lugar. Com isto resolvemos criar do tipo de um pequeno teatro, dentro da casinha que tínhamos no fundo do quintal, onde mantinha meu famoso “Escritório do Canto”. Mantive o escritório, juntei a badulaqueira de papai na cozinha e ainda nos sobrou mais da metade do grande quarto, no qual serviria de palco para representarmos, com espaço para a plateia, que poderia inclusive fazer uso do escritório.
Papai não concordou muito com a ideia, pois seria mais barulho para atazanar sua paciência que já andava curta, com meu grande número de amigos visitantes.
Na verdade, papai confiava em meus amigos. Sabia que eu, apesar de tímido, sabia escolher amizades, deixando os que seriam problemas fora de meu círculo de convívio. O que ele realmente reclamava, era que todos vinham à nossa casa, ao invés da gente ir à deles; com isto, criança não sabe ficar calada e o barulho o incomodava. Às vezes a gente até pedia aos amigos para falarem mais baixo, só que geralmente a gente também se esquecia de falar baixo.
A primeira peça representada na casinha fora “O homem mau”, de Léo Canhoto e Robertinho. Eu, devido meu famoso revólver ranger (da Estrela) era o homem mau. O problema foi que, quando atirei em minha primeira vítima, o revólver falhou e mesmo assim, Bê, como estava no script, caiu mortinho da silva no chão. Ele era muito jovem e ainda não aprendera a improvisar. No mais, o espetáculo correu muito bem e o local era melhor do que o cirquinho. Ninguém estragaria e se podia ter espetáculos mesmo com chuva ou frio.
Pura sacanagem: resolvi colocar meu telefoninho verde em disputa, em meu parquinho de brinquedos. Acontece que empresários visando lucro são espertos e com isso, a única posição que o coloquei no tabuleiro colorido, ninguém jamais acertaria e eu atrairia fregueses. Mas meu amigo José Fernandes me sacaneou, trapaceando uma jogada e fazendo com que Valdir levasse embora meu meio de comunicação do escritório. Bem feito para mim: quem mandou tentar ludibriar fregueses ingênuos.
Televisão para todos.
Televisão em casa era coisa realmente rara, com isso a prefeitura municipal mantinha nos bairros, instaladas em parquinhos infantis, um aparelho que se ligava sempre das sete até as dez horas da noite. Em nosso bairro foi instalado um aparelho assim no parquinho do cruzeiro. Antigamente o cruzeiro era apenas uma grande cruz iluminada, cravada no centro de um terreno vazio; atualmente a prefeitura mudou gigantesca cruz para a margem do terreno e construiu um pequeno prédio, com enorme hall ou varanda, onde colocou diversas cadeiras para que nós, pobres, pudéssemos assistir então um pouco de televisão.
Às sete horas iniciava a primeira telenovela que assisti em minha vida: “Vitória Bonelli”, que narrava à vida de uma mulher forte, com quatro filhos: Mateus, João, Lucas e Verônica. No primeiro capítulo morreu seu marido, homem poderoso, dono de uma grande empresa e muitos carros de luxo (mais de 20). O que a família não sabia, era que seus bens estavam perdidos, pois a empresa estava falida e logo no segundo capítulo, todos os bens foram sequestrados para pagamento de dívidas. A mãe Vitória, aceitou bem a esta tragédia, mas os filhos, principalmente Lucas, vivido pelo grande ator Tony Ramos, tentava a todo custo impedir que levassem seus carros. Vitória começava agora uma nova vida, sem nada; alugou um prédio comercial e construiu uma cantina, onde trabalharia com os quatro filhos…
A história de vida de Vitória Bonelli era muito linda, mas não devo contar aqui, senão os autores vão querer direitos autorais, ou me processar por plágio, além de ocupar todo espaço deste livro de memórias. O fato era que, acontecesse o que quisesse, mas às sete horas da noite, eu marcava minha cadeira cativa no parquinho… uma semana sim, a outra… não. Estava trabalhando.
Após a novela, que era na televisão Tupy canal 4, tinha o jornal Nacional da rede Globo canal 5 e logo depois, o senhor Denésio (que cuidava do parquinho), ligava na Rede Record canal 7, para assistirmos Daktari, Chaparral, Batman e Robin, Daniel Boone, os impagáveis (com Renato Aragão, Ted Boy Marino…) e outros seriados que se iniciavam às nove horas.
Assim que estes seriados terminavam, eram dez horas e a televisão era obrigatoriamente desligada; salvo em dias de futebol, que a prefeitura autorizava ficar ligada até o final da partida.
Na vidraria, Tigrão tinha um toca discos vermelho, da marca Sonata e como estava precisando de dinheiro, resolveu me vender por um preço até bom, em duas vezes e ainda me daria de brinde dois discos compactos (com duas músicas cada). Não deu outra: comprei na mesma hora e chegando em casa com aquilo na garupa da bicicleta foi a maior bronca de mamãe.
— Aonde já se viu comprar essa porcaria — gritava ela nervosa. Podia ficar com ela, mas em casa só se tocaria depois que ela morresse… foi um grande escarcéu.
O que eu faria então? Devolver não era certo! Negócio feito entre homens não se volta atrás (eu era adolescente, mas era homem!) Conversei com alguns colegas e acabei por revender pelo mesmo preço para Tavinho, que me pagaria no dia do pagamento. Pagaria! Tavinho era caloteiro e mau caráter, dois tipos de pessoas que sempre detestei; mas julgava que não teria problema, pois o dinheiro faria mais falta a ele do que a mim.
No meio da montanha de vidro reciclável se encontrava de tudo, inclusive uma gigante aranha caranguejeira, maior do que um de meus palmos de menino. O bicho era assustador e muito peluda. De tão grande e talvez de idade avançada, caminhava lentamente sob nossos olhares curiosos. Alguém, impiedosamente apanhou o (inofensivo) bicho, colocou sobre o galpão da fábrica e então, José Lahr, com bastão carregado de vidro derretido (mil graus de temperatura), jogou sobre a pobre condenada e… já era. Que pena! (Deveria valer uma fortuna, além de que, não faria mal a uma mosca sequer).
Entusiasmado com a tal televisão e as comodidades de longo prazo para se pagar, Santo Danzi acabou cedendo a esse desejo, adquirindo em 36 parcelas, a televisão Telefunken, preto e branco, de 26 polegadas, me convidando junto com José Fernandes, para a noite de inauguração (de sábado para domingo), onde permanecemos até as três horas da manhã, assistindo o mais chato dos filmes já inventado (não vou revelar o nome, senão os autores podem me processar. Além de que, certa vez um amigo me disse, que para se fazer um filme dá um trabalhão danado, custa milhões de dólares em dinheiro e tem gente que tem a ousadia de dizer que não gostou. Seja lá o que for, ou quanto custou, mas eu detestei e está detestado).
O fato é que eu torcia para que acabasse logo. Queria ir embora, mas não achava educado; José Fernandes, acho que pensava igual; o senhor Santo, acho que queria que fôssemos embora, mas também não era educado tocar convidados de sua casa.
Apesar de televisão no amigo Santo Danzi, a novela continuava sendo vista no parquinho, até o dia em que a televisão pifou. Para não perder a novela, corri (de bicicleta) até o parquinho da vila Fátima, em que também fiquei decepcionado: naquela unidade eles assistiam à novela da rede Globo…
Na noite seguinte, descobri que um casal residente na mesma rua de Lourival Martins, assistia Vitória Bonelli e permaneciam com a porta da sala aberta. Abaixado em frente ao seu portão da rua, dava para ver e ouvir direitinho a novela pela televisão.
Assim, por dois dias consegui acompanhar a sequência da história; no terceiro dia, estava assistindo normalmente, quando, acho que sabendo que eu estava ali e não gostando disso, alguém empurrou a porta, fechando-a em minha cara… fiquei decepcionado. Levantei-me e voltei para casa, abandonando de uma vez por todas as tentativas de assistir novelas; voltando a minha atividade normal: brincar com os outros meninos, de salva, rela-rela, pega-pega e outras mil atividades noturnas .
Usando o ônibus das sete e meia da manhã, da empresa Anhenzine, resolvi ir até vila Barbosa, onde na Nova Loja Flor, comprei, dizendo que era presente para mamãe, a primeira geladeira de nossa casa, por 2090 cruzeiros (será que em Penápolis, cidade maior, ainda não tinha loja de eletrodoméstico?). Na verdade, utensílios do lar, nunca deveriam ser presentes para mamãe, pois é algo de uso comum. Depois segui para a casa de vovó Aurélia e aguardei o ônibus do meio dia e meia, retornando para casa.
O contador de histórias.
No horário de almoço da vidraria, santo Danzi almoçava rapidamente, depois, como tinha uma hora de intervalo, se acomodava aos fundos do grande pátio, onde, com martelinho, limpava os fundos de lâmpadas tipo incandescente quebradas, que vinham no meio do vidro reciclado, para separar o alumínio ou metal (o qual era confeccionada a lâmpada). Em poucos dias conseguia uma grande quantidade (sacos cheios); vendia e fazia uma boa feira, como dizia os antigos.
Nós que tínhamos apenas meia hora de almoço, quando sobrava um tempinho ficávamos a seu lado, ouvindo seu jeito engraçado de contar histórias:
Em um reino distante (todos os reinos são distantes), morava um príncipe que era muito corajoso e nada temia. Todos lhes contavam aventuras de grande medo e pavor; mas o príncipe vivia triste por não saber o que era aquilo. Então disse ao pai, que sairia pelo mundo em busca do medo e só retornaria ao reino, após se defrontar com tal pavor. Viajou a cavalo durante muitas léguas {e eu nem sabia o que era légua (não conte para ninguém, mas até hoje ainda não sei definir corretamente, apesar de saber que se trata de medida de distância)}, por dias e noites incansáveis, atravessando pântanos, brejos, rios, florestas… pisou em cobras venenosas; cruzou com homens cruéis…, mas o medo nunca surgia em seu caminho. Certa noite, já cansado e desanimado com a busca em vão, resolveu pedir pousada em uma casa. A mulher não concedeu, dizendo que era casada e seu marido não estava, portanto não ficaria bem receber um estranho macho em seu convívio. Além do mais, tinha uma filha jovem e não podia cofiar. Pediu que seguisse pela estrada, porque a meia milha de distância (outra coisa que ainda nem sei definir corretamente) existia uma velha casa abandonada, na qual ele poderia dormir em paz; apesar de que, naquela casa morrera enforcado na sala, um homem grande que morava sozinho e dizem, desde então ninguém mais adentrou em estranho local, por se tratar de mal-assombrado. O príncipe, porém, dizendo estar cansado e que só queria mesmo dormir um pouco, que não incomodaria tal assombração; portanto, aceitou passar a noite em tal casa, seguindo ao seu encontro. A porta estava entreaberta; ele forrou o chão com couro de boi que carregava em seu cavalo e deitou.
Nem bem chegava meia noite, ouviu uma voz forte igual um trovão que dizia:
—Eu quero descer!
— Pode descer — insinuou o príncipe, acordando.
Despencou do alto, bem ao seu lado, uma perna humana.
— Eu quero descer!
— Já disse que você pode descer — alegou o príncipe.
Caiu a outra perna.
— Eu quero descer!
— Desça logo dessa geringonça e não me amole, que estou cansado, querendo dormir.
Caiu o tronco quase despido de um homem grande.
— Eu quero descer!
— Para mim você pode até se derreter e ir para o inferno! Desde que me deixe dormir!
Caiu dois braços e a cabeça de uma única vez. Seus olhos iluminavam a casa inteira. O príncipe, não conseguindo dormir, sentou-se ao lado daquela figura humana enorme, que lhe contou:
— Eu era muito rico e tenho muito ouro enterrado nas beiradas dessas terras. Como fui muito sovina, vivo vagando sem paz pelas trevas à procura de alguém que aceite encontrar este tesouro e reparti-lo entre os pobres, podendo ficar com a metade. Somente assim minha alma será salva.
— Estou cansado e querendo dormir um pouco. Já tenho todo ouro que preciso.
— Depois que você pegar o ouro, poderá dormir em paz e eu não assombrarei mais ninguém.
— Já que me deixará em paz, concordo em buscar seu ouro.
Saíram os dois até a beira do pântano. A noite estava muito escura, mas os olhos do fantasma iluminavam como se fossem potentes faroletes. Chegando ao local indicado, o príncipe cavou incisivamente até bater em algo muito duro; era um baú, que depois de aberto estava repleto de puro ouro. Assim que o baú foi aberto, o fantasma desapareceu, deixando o local muito escuro. Assim, o jovem príncipe voltou a dormir, contando o ocorrido à mocinha, que seguiu com ele buscar o baú do tesouro. Seguindo as determinações do fantasma eles deixaram a metade do ouro para a igrejinha do lugarejo repartir entre os pobres e a outra metade deixou para a mocinha, que lhe pediu:
— Fique comigo. Quero me casar com você.
— Não posso ficar. Estou em busca do medo e só vou parar quando encontrá-lo.
— Se você quiser o medo, eu lhe darei o medo. — disse a mocinha.
Entregou-lhe uma caixinha fechada, dizendo:
— Leve-a consigo. Assim que atravessar a divisa da fazenda, abra-a e encontrará o medo.
Assim ele fez: ao atravessar a divisa da fazenda, abriu a caixa. Dela, vendo-se livre, voou desesperada uma codorna. Com aquele voo desesperado e o barulho que fez, provocou um grande susto em nosso valentão, que voltou para se casar com a mocinha dizendo:
— Realmente o medo é desesperador.
Primeira história.
Em determinada manhã, Cara Feia me pediu que fosse até a entrada da fábrica, pois existiam dois rapazes querendo falar comigo. Sem saber do que se tratava segui a aquele encontro, era a resposta da carta que escrevi ao seminário, que não veio pelo correios e sim pessoalmente. Cara Feia, sabendo do que se tratava, autorizou os dois rapazes a entrar, seguindo até ao escritório, onde eles me contaram todos os procedimentos para se matricular no seminário Santo Afonso.
Como lá não existia o curso primário, seria necessário que primeiro eu estudasse até a oitava série, depois cursaria o ensino médio com eles e na sequência o curso superior, direcionado para Teologia, que era o objetivo final do seminário.
Entregou-me algumas lembrancinhas do seminário e uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, dizendo que aguardariam meu novo contato, assim que terminasse a oitava série, dali a quatro anos.
Apesar da notícia ser desanimadora, não me atrevi a abandonar a ideia. Escrevi imediatamente para o seminário Salesiano Dom Orione de Guararapes, que por sinal era 20 vezes mais perto do que Aparecida.
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Por aqueles dias, em conversa com mamãe e Zeca, resolvemos comprar em 36 parcelas de 106 Cruzeiros mensais, nas lojas D. Oliveira, uma televisão igualzinha a do Santo Danzi. Assim, ao chegar da fábrica de garrafas, às dez horas da noite, encontrei aquela enorme antena instalada do lado de fora e na sala, imponente, aquele mais novo membro dos Innocentes. Isso mesmo: parecia um novo membro, pois a televisão tiraria a liberdade de se conversar, brincar, passear, ou o que quer que seja… liguei-a e passei tantas horas em sua frente, que mamãe até se levantou para ver se por acaso eu não teria dormido com ela ligada.
Nos primeiros dias, como era novidade, foi sempre assim, assistindo de tudo o que se passava: novelas, jornalismo, humorismo, musicais, filmes, seriados, culinárias… dando a ela poderes de senhor supremo da sala, só ela falava e a gente obedecia. Depois, aos poucos a coisa foi perdendo um pouco da graça e a rotina da adolescência, acabou voltando quase ao normal. Mas que atrapalha a vida familiar, isso lá é a mais pura verdade.
E como agora a tevê era em casa, acabei por criar novamente o hábito de assistir telenovelas: “A barba Azul”, com Carlos Zara e Ewa Wilma, contava a história de um professor pobretão (Carlos Zara) que fizera uma viagem de final de semana com seus alunos. Na mesma turnê seguia um grupo de ricaços, coordenados por uma mulher arrogante (Ewa Wilma). O avião enfrentou problemas e acabou tendo que fazer um pouso forçado na selva, ao meio de uma linda ilha. Assim começa a história cheia de belezas e aventuras, principalmente para o grupo de crianças que mantinham um clubinho organizado entre eles.
Entre as crianças estavam os atores Haroldo Botta, Ana Luiza Lancaster e Douglas Mazzola.
Seguindo o mesmo pretexto do clubinho da novela, criei meu próprio clubinho imaginário, confeccionando carteirinhas plastificadas com vidros de negativos de fotografias antigas (da época da máquina de pólvora, onde a foto ia direto para uma chapa de vidro de tamanhos variados, deixando impregnado a imagem em negativo da pessoa fotografada, devido a quantidade de pólvora que era jogada sobre o vidro). Essas peças eu trazia da vidraria, pois no vidro reciclado vinham centenas de caixas cheias desse tipo de material (eu só trazia as de tamanho seis por dez) e as lavava deixando-as transparentes.
E por se falar em trazer: o que mais vinha para casa da vidraria, com certeza, eram centenas de bolinhas de gude de todos os tipos e tamanhos (outra preciosidade vinda no meio do reciclável); com isto, em minhas jogadas nos campeonatos desse tipo de esporte, perder para o adversário, só era ruim, pois jogue o que jogar, a gente quer ganhar… perder bolinhas de gude não significava nada, diante da grande quantidade acumulada em meus tesouros.
A primeira história que escrevi a intitulei por “Angustia por alguns dias”. Sei que não era um bom título, mas foi o máximo que consegui em minha pré-adolescência: Contava a história de um jovem que morava na cidade e em companhia de três primos, foram passear no sítio de outro primo, todos crianças; chegando ao local, resolveram ir caçar com espingarda cartucheira em grupos de dois, cada qual para um lado. No meio do campo fechado, uma das crianças fizera mira e atirara, só não percebendo que do outro lado estava o jovem com a criança do sítio, que fora atingida gravemente no tórax. Este, sendo socorrido pelo jovem e levado à presença dos pais, que desesperados o levaram em estado de coma para o hospital na cidade.
Dois dias depois, o menino continuava internado e seu estado de saúde ainda inspirava cuidados.
O jovem andava preocupado por um pedaço de terra baldio, quando seu tio, pai do menino ferido, em poder de um revólver, o chamou dizendo:
— Meu filho está no hospital por sua culpa.
— Sei disso! Mas não queria que nada tivesse acontecido a ele. É meu primo predileto!
— Mentira! Sua irresponsabilidade quase o leva a morte.
— Jamais iria querer o mal dele.
— Sabia que o estado dele ainda é grave?
— O senhor sabe que ele já está se recuperando.
— Meu filho está sofrendo e você está numa boa! Isso não vai ficar assim!
— Por favor, tio. Deixe essa arma!
— Você é um moleque irresponsável e vou matá-lo!
— Não é isso que o Dudu (o menino no hospital) iria querer do senhor.
Devido ao desespero do homem, ele acabou por apertar o gatilho. Ouviu-se um estampido seco e um grito lancinante, de uma pessoa pouco mais do que uma criança. Um corpo rolando pelo chão inclinado, uma mancha de sangue em seu tórax e o rapaz estava morto.
E isto era apenas um pequeno resumo.
Pode não ser boa, mas eu acabava de completar apenas treze anos de idade e só tinha estudado até a quarta série do primeiro grau.
Um amigo diferente.
Nossas peças de teatro ainda existiam, embora com menor intensidade: geralmente aos sábados, quando eu trabalhava no período da manhã. José Fernandes era a pessoa mais animada nessa arte de representar e eu acabei ganhando gosto pelo negócio, devido seu apoio. Era ele quem decidia o que, quando, como… representar e quem fariam que tipo de papel. Normalmente a personagem principal ficava para ele; salvo nos casos de personagens loiros ou de má índole. Mas eu não me importava, gostava daquele negócio de ser outro… chegamos a decidir que continuaríamos nessa arte, mesmo depois de crescermos, montando então um verdadeiro grupo teatral.
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Os padres do seminário de Guararapes anunciaram em Penápolis um encontro dos jovens que desejassem seguir a carreira para o sacerdócio. O encontro fora realizado em sala reservada na Escola Estadual Professora Yone Dias de Aguiar, no sábado pela manhã. Nesse encontro tomei conhecimento de que a exigência era a mesma do seminário de Aparecida: a necessidade de se ter o ensino primário completo e eu havia abandonado a escola para trabalhar. Neste dia conheci Ronival, que também queria ser padre; era dois anos mais velho do que eu, filho do senhor Percival, que trabalhava comigo na fábrica de garrafas. Roni era um menino muito bom e passou a insistir para que lhe visitasse constantemente em sua casa.
Ele sempre me recebia, nos trancando em seu quarto particular para ouvirmos músicas. Tinha duas irmãs e ele (não elas) usava shorts muito curto, apertado e… digamos… provocantes. Falava de um jeito diferente e sempre muito educado. Procurava sentar-se sempre ao meu lado e ao falar, costumava passar as mãos sobre meus braços e às vezes pernas.
Sempre quando chegava ou ia embora, gostava de me abraçar, alegando ser normal e esperava que qualquer dia fosse passar a noite com ele. Eu, porém, tentava evitar ficar muito próximo, pois temia suas intenções.
Apesar de ser sempre assim, nunca passou dos limites de seres humanos do sexo masculino (macho que éramos).
Na vidraria, deixei de trabalhar como carregador e segui para trabalhar na separação de garrafas na estufa. Para mim foi excelente, pois deixei de trabalhar em local muito quente (tão quente que não tinha nadinha de pelos nos braços, devido ao calor do fogo que queimava tudo), passando para local mais refrigerado.
Entre os funcionários deste local, estava o senhor Pedro, homem de cor negra, já idoso, que gostava de contar histórias e trabalhava sempre no período da tarde. Com isto, uma semana trabalhava com ele, a outra, no período da manhã, trabalhava com José Fernandes (que sempre trabalhava de manhã).
Senhor Pedro era homem muito bom e tinha um carisma especial por mim; sempre falava que gostava mais da semana em que eu trabalhava na sua equipe. Na hora do jantar, sempre me dava alguma coisa da sua marmita, sem querer nada em troca.
Um dia me deu um pedaço de carne dizendo:
— Sabe que carne é essa?
Olhei, imaginei e disse:
— Porco!
— Coma — insinuou ele.
Devorei-a. Estava deliciosa…
— E agora? Sabe?!
— Ainda acho que é porco.
— É carne de tatu.
— Nossa! — Nunca tinha comido carne de tatu.
— Tatu Peba — o completou.
— É brincadeira. Claro! — Ninguém comia carne de tatu Peba.
— Verdade! Tem que saber preparar carne de tatu Peba.
Diziam que tatu Peba come até carne humana no cemitério.
— É tatu Galinha, senhor Pedro.
— Não essa carne aqui! — Riu ele.
Realmente estava deliciosa.
Outra coisa que a gente, inclusive eu levava, era uma garrafinha de café; em que, para não esfriar deixava sobre a laje da estufa, que era um local quente. Aquilo era a pior viagem, pois quando íamos degustar o tal ouro negro líquido, só restava a garrafinha: poucos levavam, todos devoravam. Um dia, por sacanagem, o senhor Pedro resolveu encher uma garrafinha de óleo diesel, para dar lição a quem ousasse pegar bebida dos outros sem permissão. Só para encurtar a história, pelo menos três pessoas ignorantes, levaram uma boa tragada de óleo fedido.
Como o senhor Pedro era o mais velho entre todos nós, já era de praxe por todos, deixarem dispensado da tarefa de levar as grandes e pesadas bandejas para se colocar no início da estufa, de onde elas deslizavam como em uma grande esteira de aço. Tarefa pela qual, embora pesada e que devido meus treze anos de idade, tinha o tamanho de quem ainda quase nem alcançava adicioná-las em seu devido lugar, sempre revezava entre nós.
A parte mais chata do senhor Pedro, era que ele, como gostava de contar histórias, piadas e passagens de sua vida, sempre repetia casos já contados mais de 100 vezes (acho que ele esquecia que já tinha narrado aquilo). Eu como bom ouvinte, prestava atenção em tudo novamente e olha que piada chata repetida é um saquinho, enquanto outros colegas caçoavam do pobre homem. Devia ser por isso que eu era seu parceiro e amigo predileto. Seja lá o que for, aprendi milhões de coisas importantes da vida com aquele bom homem (inclusive que um dia meus próprios filhos acabariam tendo que escutar detalhes repetidos de minha saudosa infância feliz).
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Em nossas constantes visitas ao Tião, amigo de papai, sua filha Fernanda, acabara ficando tão apaixonada pelo galãzinho Innocente, que se tornara uma menina chata, não me deixando nem mesmo conversar com quem quer que seja, quando estava em sua casa. Esta doencinha crica (garota cheia de ciúmes), que se perdurara por muitas visitas, estava me deixando revoltado e foi daí que certo dia acabei por explodir:
— Deixe de ser tão chata assim, Fernanda! — Gritei com ela, quando tentava me arrastar para longe dos demais. — Parece uma menina boba!
Pode ter certeza que nosso romance (pelo menos o dela) terminou naquele momento. Até hoje jamais a encontrei, mas sei que a danadinha realmente estava apaixonada e naquele dia sentiu seu mundo desabar, seu coração despedaçar: provavelmente correu ao seu quarto, indo chorar deitada em sua caminha de solteiro; provavelmente rasgou as milhares de juras de amor que pintara (já que ainda não sabia escrever) em seu caderno de primeiro ano escolar.
Voltei para casa sabendo que fui malvado com ela; mas foi necessário: nossa diferença de idade era muito grande (ela sete e eu treze, seis anos mais velho).
Réveillon.
No final do ano de 1971, o senhor Prieto resolveu fazer um churrasco de confraternização para comemorarmos o réveillon. A festa iniciou-se depois das nove horas da noite, onde: eu, Santo Danzi, Odair Espontão, José Fernandes e Moacir Lemes, resolvemos ir a pé, cortando pelo prolongamento da Rua Mato Grosso com a vila São Joaquim, gastando aproximadamente meia hora, até a fábrica.
Todos os funcionários, inclusive alguns familiares, principalmente do proprietário e encarregados, estavam presentes. A festa foi regada de muito refrigerante, carne com pão e mandioca e muitíssima cerveja. Eu, apesar de meus meros treze anos e meio de idade, me considerando homem, deixei o refrigerante para depois; porém, nada que fugisse ao controle. Em minha casa, desde muito pequeno, papai nos deixava beber; inclusive, quando ele bebia sua pinga, sempre nos dava uma pequena tragada.
Principalmente no natal, única data do ano em que se tinha fartura de bebidas e refrigerantes, tomávamos cerveja e vinho, na frente de meus pais, muitas vezes puro, outras vezes misturados com guaranás. Depois do almoço, um tanto grogue, para recuperação, dormíamos por umas duas horas.
À meia noite, em comemoração à virada do ano, alguém colocou o dedo no botão da sirene da fábrica e esqueceu o dedo ali. A pobrezinha da sirene chorou por muito tempo, passando de som agudo, para (um minuto depois) um som rouco e depois (mais dois minutos) um som de: me deixe em paz; e mais um minuto, um som de: nada; só fumaça e fogo. A pobrezinha não suportou tanta pressão e morreu esturricada, em triste curto circuito.
Voltamos para casa já de madrugadinha, pela mesma rua escura de antes, para então, na manhã do dia primeiro, acordar mais tarde, com o mundo virando de tudo quanto é jeito, devido muita dor de cabeça, que os outros chamam de enxaqueca, mas que na verdade é: muita bebida alcoólica.
Apesar de ainda ser dia de festa, no horário do almoço, me deliciei apenas com garrafas caçulinhas (290 ml) de tubaína, em que furava a tampa com prego e bebia na própria garrafa (experimente e verás que delícia. Mas não vale garrafa grande).
A vidraria era nosso ganha pão, mas aja material reciclado para se produzir 20 mil garrafas por dia.
Em determinados períodos, a montanha de reciclado era realmente grande, mas em outros períodos, aquela montanha diminuía drasticamente e assim acabou zerando, a ponto de não termos matéria prima para produção de garrafas novas, chegando a ser preciso encerrar suas atividades por um período indeterminado.
Assim, meio ressabiado, sem emprego, voltei à olaria, trabalhando novamente com meu irmão Zeca, desde as quatro da manhã, até por volta das dez ou onze horas.
Mesmo sendo aceito novamente por todos, com apoio do senhor Joaquim Leite, que me considerava bom menino, caçoava de Zeca, dizendo que estava ali temporariamente até a vidraria retornar suas atividades e ainda cantava (mesmo sendo um fracasso nesta arte):
Eu não sou daqui, sou do lado de lá,
Sou do lado das palmeiras onde canta o sabiá…
Realmente, a fábrica de garrafas ficava do lado de lá. Do outro lado do mundo.
O senhor Joaquim e dona Durvalina, que cortava (fazia) tijolos em terreiro lateral ao nosso, riam, enquanto o tolinho de Zeca acabava ficando nervoso.
Naquele mesmo período, meus padrinhos mudaram para uma chácara próximo à cidade, atravessando a pista e como papai não fazia mais vassouras, meu padrinho Helias resolveu me convidar para auxiliá-lo na tirada da semente das palhas. Lá, um pouco sem vontade, acabei aceitando. Não gostava daquela atividade, pois as palhas e a própria semente causavam muita coceira no corpo, a ponto de deixar vermelhidão. E nem adiantava usar camisa e calça comprida, pois a malvada semente entrava por qualquer vão das vestes indo incomodar inclusive as regiões proibidas.
Assim, trabalhava de manhã na olaria e após o almoço, a pé, seguia para a chácara, que ficava a mais ou menos dez minutos de caminhada; quer dizer… seriam dez minutos se tal moleque aventureiro não parasse milhões de vezes, se distraindo com tudo o que aparecia em sua frente.
Passava por dentro do rio Maria Chica, onde perdia um tempão, tentando apanhar nas mãos, minúsculos peixinhos pretos com caudas transparentes, atravessando inclusive por dentro dos dutos que atravessavam por baixo da rodovia Sargento Covolan. Chegando à chácara e contando sobre os peixinhos para minha madrinha, ela riu dizendo com seu jeito lerdo de conversar:
— Aquilo não é peixinho, Cido! São girinos!
— O que faz girino? — Perguntei com minha Innocente burrice de treze anos de idade, que já deveria saber a muito tempo.
— Crescem um pouco mais, perdem a cauda, nascem pernas e se transformam em lindos sapinhos.
— Jura! — Nem sei se me decepcionei ou se me alegrei.
— Não juro! — Riu ela, se mostrando sabida. — Faz parte da vida! Nunca viu falar em metamorfose? (Acho que já sabia o que era esse cara!)
Meu padrinho preparou o local e eu passei a trabalhar na raspagem da palha de vassoura. Ele disse que era para ajudá-lo, mas na verdade passei a fazer o serviço sozinho, ganhando 5 cruzeiros por lata de 20 litros de semente tirada. Não que meu padrinho estivesse me explorando ou fosse vagabundo. Muito pelo contrário: era um dos homens mais trabalhadores que eu conhecia. Enquanto eu tirava as sementes, ele ia amarrando as vassouras. O duro na verdade, além das terríveis coceiras, era ficar ouvindo ele conversar. Êita homem que gostava de falar! E ele não simplesmente falava; gritava! Não por maldade ou ser mal-educado; era seu jeito natural. Pobrezinho de nossos ouvidos diante dele! Era um verdadeiro contraste entre ele e minha madrinha Alice, que falava calma e tímida.
Durante muitos dias, seguia toda as tardes para a chácara, para dar conta sozinho de tanta palha para se limpar. Saía de casa por volta da uma hora da tarde e trabalhava até lá pelas cinco ou seis, dependendo da coragem (estávamos em pleno horário de verão e a noite só chegava lá pelas oito e meia).
A vantagem era o café da tarde que minha madrinha preparava, com pão caseiro, manteiga especial e geralmente queijo fresco.
Quinze dias depois, quando aquela chata tarefa terminou, acho que estava tão estressado de ter meu corpo judiado pelas malvadas sementinhas que pareciam arroz em casca (sei que já mencionei isto), que meu consciente determinou que eu jamais retornasse a tal local. Quer dizer, pelo menos não até o ano 2008, ao encontro de um novo proprietário (senhor Fortunato Sussai).
Será que é assim mesmo?
Como não tinha mais a tarefa de limpar sementes de vassouras, passei a ter as tardes novamente livres. José Fernandes, que estava sem serviço, sempre aparecia em casa nesse período. Um dia, trouxe por dentro da camisa algumas revistas e me convidou para ir com ele até o barrancão para juntos lermos as preciosidades.
Atrás de nossa casa existia uma pequena floresta ainda inabitada que pertencia à casa Anjo da Guarda. Tem um ditado que diz que a natureza é pródiga, por mais que você a destrua, ela, teimosa, sempre volta; sendo assim, uma vez as obras da Cecap abandonada atrás de minha casa, a floresta, com pequenos arbustos, tentava voltar ao normal e nós, molecada, gostávamos de brincar por ela, inclusive dando o nome para a trilha criada de tanto passarmos de: “a trilha dos cowboys”. Adivinhe quem eram os cowboys?
Esta trilha nos levava para uma vasta clareira, onde todos os dias, a prefeitura sem piedade retirava centenas de caminhões de terra. Este local, como ficava em desnível de pelo menos uns 5 metros mais abaixo, recebeu de nós o apelido de barrancão e foi exatamente lá que eu e José Fernandes escolhemos para lermos suas preciosidades em paz.
Pegamos uma cada e… logo nas primeiras páginas, pude perceber que… não era lá uma boa leitura. Na capa, uma mulher seminua e letras garrafais que diziam: “rigorosamente proibido para menores de 18 anos”. Em toda minha vida jamais havia visto uma mulher ou homem adulto despido. Meus genitais, ainda de criança, nem de longe se comparava aquilo estampado nas páginas nojentas (para minha idade) daquela revista imprópria… Homens e mulheres em cenas de sexo selvagem, em todas as posições que se pode inventar para a prática de algo libidinoso (aprendi muito) aos olhos Innocente de um adolescente ingênuo.
Sabia que aquelas imagens se tornariam muito prejudicial à minha idade e me acompanhariam por toda adolescência. Ainda mais, porque minha única educação sexual teria sido na escola, de maneira tal que, não consegui entender nada. Em minha casa, falar sobre sexo era besteira, proibido, pecado…
Então era aquilo que nossos pais tiveram que fazer para que nós pudéssemos nascer? Era aquele o segredo proibido para nós, crianças?
Às vezes brincava de sexo com os genitais ou no máximo com uma amiga; mas com certeza, uma brincadeira mais bonita, divertida e saudável… não aquela coisa horrível que as fotos me mostravam. Acho que ali foi minha primeira aula de educação sexual verdadeira e errada ao mesmo tempo.
Se eu já não gostava de pelos pelo corpo; se eu já não queria crescer, sendo sempre criança, depois de ver tais fotos, nas quais podia imaginar que: era aquilo que se transformaria meu corpo em pouco tempo? Meus genitais pequeninos se transformariam naquele órgão… deixa pra lá! Não! Realmente eu não queria ser adulto! Quem sabe um tal Peter Pan, voando para a Terra do Nunca e se escondendo entre Sininhos, meninos perdidos e outras fadas; fugindo de capitães ganchos e seres incríveis, de um mundo de fantasia…
Mas aqui é real e nem adianta dizer não. Os pelos chegarão aos poucos, mostrando um ralo bigode; alastrar-se-ão embaixo dos braços; em toda região da virilha; pelo rosto em forma de barba… e também não adianta não querer: os genitais, assim como os girinos de sapo, sofrerão uma tal metamorfose, se transformando em genitais adulto e é graças a isso que nossa querida vida humana se prolifera.
O que ninguém mandou, foi querer ver a coisa antes da hora certa e de forma errônea. Não adianta querer passar o carro na frente dos bois (não inventei essa frase). Viva sua infância garoto! Seu tempo está acabando.
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Em visita a casa de Ronival, trancados juntos em seu mundo particular, que era seu quarto, ele, com aquele seu jeito diferente de ser, me disse passando as mãos sobre meus braços (costume besta. Parecia que falava com as mãos):
— Agora que você está sempre livre às tardes, por que não vem mais vezes me ver?
— Às vezes ajudo minha mãe — balancei os ombros.
— Tire uma horinha de tarde! Pelo menos umas duas vezes por semana! Gosto de falar com você.
Realmente em sua casa, apesar de seu jeitinho esquisito, eu era sempre bem recebido. Seu pai, Percival, que tinha problemas em uma vista e estava agora desempregado, devido a vidraria estar provisoriamente parada, tinha um carinho especial por mim; sua mãe também gostava de minha visita; geralmente preparava deliciosas guloseimas para o café da tarde e nos servia com prazer. Mesmo Ronival, apesar de seu jeito diferente, sempre me tratou com muito respeito e era uma pessoa muito inteligente. Se alguém tivesse alguma dúvida sobre o que quer que seja, bastava perguntar a ele, que tinha a resposta com certeza.
Como era bem recebido e sendo então convidado, passei a visitá-lo realmente no mínimo uma vez por semana e se dependesse dele iria ainda mais. O que fazíamos trancados em seu quarto? Líamos assuntos variados e saudáveis (nunca revistas proibidas, iguais as de José Fernandes); falávamos sobre nossa vocação para o sacerdócio, em que ele me explicava que padre não pode casar, então teria que fazer voto de castidade e queria saber como eu enfrentaria essa realidade; se eu estava realmente preparado para uma vida privada de mulheres e prazeres da carne (eu lá sabia o que vinha a ser tudo aquilo! Castidade, privada, prazeres da carne…). Sabia que sexo seria algo bom; não queria saber da metamorfose do pênis, mas sexo seria realmente bom; aos treze anos já não era tão ignorante nessa parte.
Começa as mudanças.
Adolescente! Idade de vitalidade física inesgotável! Apesar de levantar sempre antes das quatro horas da madrugada, praticava atividades diversas durante todas as tardes e noites, até pelo menos às nove e meia da noite (quando acabava a novela da rede Globo), fazendo com que os pais berrassem para entrarmos, pois, as portas seriam trancadas e ai de quem não estivessem dentro de casa (era o famoso toque de recolher paternal em pleno século vinte). Já aconteceu com meu irmão Carlos, não queria passar pela mesma experiência de dormir jogado na varanda.
Em uma tarde de futebol, no campo da Cecap, em torno de 300 metros longe do nosso; como eu era ruim de bola na linha e não tinha vaga de goleiro (havia dois meninos melhores do que eu para goleiro), acabaram me escalando para juiz de futebol (acreditam?). Tudo bem! Que mal havia em ser juiz? O dono da partida! O rei absoluto! Apitou é lei!
Mas… apesar de conhecedor das regras, jamais ter feito tal atividade, a coisa ficou complicada. O futebol estava agitado e as equipes fortes rivais (tipo São Paulo e Corinthians em final de campeonato).
Primeiro lateral houve reversão que eu ignorei (deixa passar! Me chamaram de ladrão. Primeiro gol, juraram haver impedimento que eu não vi (não existiam bandeirinhas para ajudar). Ladrão de novo. Saída de bola do meio do campo: a equipe que vencia estava provocando, não deixando os adversários saírem com a bola. O juiz deixa assim mesmo… a melhor coisa que fizeram (até para mim): que eu saiba foi a primeira vez que quem foi expulso de campo foi o juiz.
Sentindo-me inútil por ali, fui para a casa de Ronival. Como estava suado e ele era um cara meio exigente nessa parte (não queria sentir fedor de suor de pequeno adolescente), perguntou se eu desejava tomar banho. Percebi que realmente não devia ter ido até lá, inventei desculpas e voltei para casa.
Para o meu desatino, não havia água nas torneiras (mal do mundo moderno). Na época da água de poço nunca faltou essa preciosidade; agora com água tratada, principalmente na época de calor (em que mais se precisa dela), estava sempre faltando e reclamar para quem? Se soubesse, teria tomado banho na casa de Roni mesmo. O jeito foi pegar a bicicleta, uma roupa e toalha e correr para um banho de rio. Pelo menos era divertido.
Conforme os dias passavam, minha rotina se tornava quase sempre a mesma: trabalhar na olaria, ouvir frei Fernandes, no rádio, brincar à tarde de qualquer coisa com alguns meninos e geralmente com Regina, minha principal parceira de amizade. Uma vez por semana ia até a casa de Ronival, que sempre reclamava, alegando que eu deveria ir mais vezes, com isto acabei tomando o hábito de ir quase todos os dias.
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Eu havia comprado duas calças novas; uma delas de casimira e mamãe, que não sabia, ao passar a mesma, acabou queimando. Ficou chateada, me contou o ocorrido e aproveitou, para não perder, cortou suas pernas, criando assim uma bermuda até bonita. Naquela mesma noite, estreei a tal bermuda e fui até a casa do senhor Joaquim Leite. Ele me deu de presente um litro de bebida de canelinha (e nem foi preso por dar bebida alcoólica para menores).
Sentado em seu sofá, não estava me sentido à vontade com aquela bermuda tipo short; parecia que eu estava com as pernas muito grandes e ficava forçando sua barra, tentando em vão, acho que querer esticá-lo.
A partir da hora em que completei treze anos de idade, estava muito habituado a usar calça comprida e não estava me sentindo bem com shorts. Foi a primeira e última vez que usei aquele short.
Depois de 3 meses parada a vidraria retomou suas atividades. Estava agora com um ótimo estoque de matéria prima e praticamente todos os funcionários retornaram a seus empregos.
Desta feita, ainda trabalhando na estufa, passei para a função de classificador (o cara que separa as garrafas boas, jogando as com defeitos para reciclagem), no lugar de Ramalho que se demitiu.
A função era boa e o serviço não era ruim. O problema era apenas suportar os funcionários que fabricavam as garrafas, pois eles ganhavam por produção e cada garrafa jogada fora significava menos dinheiro em seus bolsos; só que cada garrafa ruim colocada entre as boas, significava prejuízo aos compradores. Entre descontentar os compradores que são fregueses ou os fabricantes, que são colegas, era preferível… ser honesto.
Um dia, a me ver jogando diversas garrafas fora (todas com defeitos), Osmar me falou bravo:
— Pode jogar fora quantas você quiser, mesmo assim ganho o triplo de seu salário.
Nervoso com ele (até parecia que fazia para prejudicá-lo) joguei dezenas de garrafas boas no latão de vidro velho.
Suportar também os alemães João, José e principalmente Antônio Carlos, não era lá coisa muito fácil; embora ambos fossem boas pessoas e tinham carinho especial por mim (era privilegiado nessa parte), geralmente a maioria deles me ajudava na classificação em seus momentos de folga. Quer dizer… eles só queriam mesmo ajudar a si próprio, por isso eu precisava ficar esperto; caso contrário, em cada dez garrafas boas, uma ou mais iria com defeito.
Assim, com João Carlos me ajudando, ficava de olho na sua maldosa atitude, colocando diversas garrafas defeituosas na caixa das boas, então lhe mostrei e ele simplesmente me disse:
— Foi sem querer!
Sem querer ou não, ele continuava colocando. Lógico que nem sequer olhava para os defeitos. Com isso, mesmo em tom de brincadeira, lhe disse:
— Assim você está roubando a firma!
— Ladrão é o pai de seus filhos! — Brincou ele.
— Não tenho filhos!
— Então que seja o filho de seu pai!
— Não estou roubando ninguém! Você está!
— A firma é rica e eu sou pobre.
— Honestidade é a dignidade do homem — brinquei (sério).
— Tá gastando!
E assim também, nas ajudas e brincadeiras, Antônio Carlos, ao mesmo tempo em que tentava me despistar, me perguntou:
— E o passarinho? Já começou a empenar?
Era curiosidade, ou era gozação? Sei lá o que era! Eu estava próximo de completar quatorze anos e já não era nenhuma criança. Meu corpo iniciava seu processo de metamorfose humana, ficando até meio esquisito, com o tronco alongando, meus genitais aumentando consideravelmente de tamanho e surgindo pelos, inicialmente na região peniana, depois embaixo dos braços e bigodes ralos. Aquilo que eu tanto temia. Porém fui percebendo que não tinha nada de anormal naquilo que estava acontecendo e o processo era tão rápido que, quando se percebesse já estava feito e pronto…
Uma paixão perigosa.
Nessa nova função, sempre sobrava algum tempo livre, então aproveitava para dar uma volta até a portaria da fábrica, onde passava algum tempo conversando com um dos dois porteiros, o baixinho senhor João, ou Percival, que, (ambos) por problemas de saúde, deixaram de trabalhar na lavagem do vidro reciclável e foram para a portaria, se revezando.
Gostava de gastar meu tempo livre por ali, mas certo dia Percival me disse que os patrões não queriam mais funcionários atrapalhando a entrada da fábrica e eu entendendo a indireta não voltei mais.
Ao trabalhar no período da tarde, não aparecia nenhum dia na casa de Ronival, mas ao trabalhar no período da manhã ia todos os dias e percebia que ele estava cada vez mais exigente:
— Pensei que você não viesse mais aqui! — Reclamou ele.
— Semana passada trabalhei no período da tarde.
— Pode vir no período da manhã!
Fazia questão de sentar-se sempre muito perto. Sua amizade era diferente. Eu era amigo de Juan Nogueira, por exemplo; mas praticamente não sentávamos tão juntos e ele não reclamava do dia em que não nos víamos. Tinha amizade com Regina, que era menina e ela tinha um jeitinho especial sim, mas não era exigente igual ao Roni. Nunca reclamava de não a ter visitado todos os dias…
— Você tem medo de mim? — Perguntou-me ele.
— Não! — Neguei prontamente. — Por quê?
— Sei lá! Você nunca colocou as mãos em mim!
Espantei-me…
Naquela semana fui todos os dias em sua casa. Na semana seguinte não apareci, embora ele tivesse pedido. Trabalhei à tarde. Na segunda-feira seguinte, quando retornei, ele falou bravo:
— Vê lá se isso é amizade! Mais de uma semana sem aparecer!
— Estava trabalhando, Roni! — Justifiquei.
— De manhã estou aqui!
— Geralmente eu levanto tarde e um pouco de tempo que tenho, ajudo minha mãe. Ela tem muito serviço.
— Quando você trabalha de manhã, quem ajuda ela?
— Não sei! Acho que ninguém!
— Então dá pra dar uma escapadinha!
No dia seguinte não apareci.
Na quarta-feira ele parecia meu dono:
— Caramba meu! Pensei que não viesse mais!
— Venho todo dia aqui, Roni! Ontem ajudei minha mãe a fazer pão.
— Bela coisa! Ajudou a mamãezinha!
Ele percebeu que eu não gostei da conversa. Abraçou-me como nunca fizera antes e pediu:
— Desculpe cara! Não queria ofender você.
Evitei aquele abraço esquisito.
Não demorei muito e ao sair dali, decidi que para nosso bem não deveria retornar nunca mais. Ronival, como já citei, era esquisito; tinha tendências homossexuais e acho que estava se apaixonando pela pessoa errada. Durante todo tempo de nossa amizade, nunca faltou seu respeito para comigo; mas agora parecia que queria me transformar em sua propriedade, parecia que estava ficando obcecado… por mim!
De fato, na tarde anterior teria ajudado minha mãe a cilindrar o delicioso pão caseiro, que ela costumeiramente fazia, inclusive alguns pãezinhos que nós crianças adorávamos.
Nos próximos dias não retornei à casa de Ronival.
Na semana seguinte, como trabalhava à tarde, também não voltei.
Foi pior ainda, quando na vidraria vários colegas vieram me perguntar, se de fato eu estava transando com Roni. Já havia decidido abandonar sua casa, apesar de ser muito querido por seus pais e suas irmãs, mas era bem melhor evitar complicações.
Nada contra ninguém, gostava daquele rapaz (como amigo), só que eu não queria me apaixonar por uma pessoa do sexo masculino. Se eu não me tornasse padre, que já estava mesmo ficando fora de cogitação, iria querer sim me apaixonar… por uma garota e ter lindos filhos.
Na outra semana, na terça-feira, na fábrica o senhor Percival me parou no portão de entrada e falou:
— O Roni pediu para você ir lá em casa hoje.
Apenas acenei que entendi, mas não fui.
Na quarta-feira, o senhor Percival me perguntou:
— O Roni fez algo para você?
Acenei que não.
— Ele quer que você vá lá! Você está com raiva dele?
— Não! — Neguei. — Tenho que ajudar minha mãe em casa.
Não era bem a verdade. No período da tarde, mamãe já tinha terminado o serviço e o máximo que ela fazia, além do jantar, era brincar conosco de esconde-esconde, como fazia quase todos os dias. Ela só não sabia empinar pipas (ou será que sabia?).
Por volta das dez horas da manhã de sexta-feira, apareceu um homem correndo na vidraria e pediu para que o senhor Percival fosse embora, pois seu filho Ronival, fora encontrado no quarto, pendurado com uma corda no pescoço e estava roxinho. Já tinha sido socorrido e fora levado à Santa Casa, mas não tinha outras notícias.
Durante o resto daquele dia, todos na fábrica comentavam sobre o terrível acontecimento ao jovem Ronival e o porquê de ele ter tentado suicídio. Falavam que ele era mesmo esquisito e era gay. Alguns até me perguntaram se eu havia terminado meu romance com ele (repito: ele sempre me tratou com respeito. Quando percebi que ele me queria mais do que amigo, resolvi me afastar).
Naquela tarde, passei duas vezes em frente sua casa, para tentar saber notícias, mas estava sempre fechada (eles mantinham mesmo a casa, que ficava quase em frente da Incopa, sempre fechada).
Na manhã de sábado, evitei ao máximo falar com o senhor Percival; tinha medo que ele me considerasse culpado ao que teria acontecido ao seu filho. Porém, após o almoço, sem querer, no bebedouro acabei me esbarrando no homem, que percebeu meu jeito espantado:
— O que aconteceu? — Perguntou-me ele. — Parece que viu um bicho!
— Não foi nada! — Neguei sem saber o que falar.
Depois de me refazer do espanto, arrisquei:
— O que aconteceu ao Roni?
— O idiota tentou se matar com corda no pescoço — disse o pobre homem, com ar de fadiga.
Percebendo que eu, talvez sentisse alguma culpa, concluiu:
— Mas não se preocupe, se ele tivesse morrido eu faria festa no mesmo dia.
Percebendo que eu me espantara com sua conversa, ele explicou:
— Claro! Foi ele quem queria morrer! Não eu que queria matá-lo!
Ainda com jeito muito triste, disse:
— A gente deve sofrer por quem morre por Deus; não por quem morre pelo diabo.
Não entendi sua atitude.
— Quem se suicida não entra no Céu — insinuou ele.
— Deus não perdoa — emendei devagar.
— O próprio suicida não se perdoa. Ele não é capaz de aceitar o que fez.
Abaixei a cabeça e o homem ainda explicou:
— Ele gosta de você… e não é como amigo.
Preferi me afastar.
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Papai foi comigo até a agência do Bradesco (a mesma onde ele mesmo tivera conta por muitos anos, quando morávamos no sítio. Naquela época o banco se chamava Banco Brasileiro de Descontos) na qual criamos uma conta em caderneta de poupança, para que eu pudesse fazer uma pequena reserva mensal. Meu salário era de metade de um salário mínimo, dava a metade disso para ajudar mamãe; do que me restava, depositava mensalmente outra metade no banco; o que me sobrava, fazia uso para minhas necessidades adolecentísticas (até parece prova de matemática na escola. Só faltou a tradicional pergunta: Quanto me sobrou?) E um fato tenho a ponderar. Hoje, milhões de anos depois, continuo com a conta no tal banco e os “safados” querem cobrar taxas abusivas, apesar de ter um bom saldo médio. Eles que não “abusivem” muito não, que eu, apesar de com tristeza, a cancelarei.
E só para ilustrar, papai tivera contas também no Banco Bandeirantes do Comércio e Banco Noroeste do Estado de São Paulo S.A. E na época, eu criança, adorava folhear seus canhotos de talões de cheques, ao qual ele nunca me repreendia por ser tão mexelão em suas coisas de adultos.
Então com meus almejados quatorze anos, adquiri na relojoaria Oriente, meu primeiro e tão sonhado relógio de pulso de minha vida (desde os dez anos de idade tinha esse desejo). Era um bonito relógio quarts de mostrador preto da marca Oriento (como se diz no Japão; como se diz no Brasil. “Era uma propaganda de televisão”).
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Ronival nunca mais mandou recado por seu pai e eu praticamente não tinha mais notícias suas. Como decidido por mim mesmo jamais retornei à sua casa. Nem soube se sua trágica decisão de suicídio lhe deixou alguma sequela. A amizade com seu pai continuava igual. Ele ainda gostava de mim como antes e eu não tinha coragem de falar sobre o filho.
Registro em carteira.
No início do ano de 1973, como era vidrado em historinhas em quadrinhos, principalmente de Walt Disney (comprava todos os gibis), em acordo firmado com meu amigo José Fernandes, adquiri…mos um grande livro de capa dura, em edição especial do cinquentenário Disney, com quase 200 páginas mostrando as primeiras histórias em quadrinhos de todos: Pato Donald, Tio Patinhas, João Bafo de Onça, Clarabela, Pateta, Mickey (e milhões de outros).
Em acordo firmado (palavra de homens) adquiri o exemplar com meu dinheiro e no pagamento José me pagaria (me pagaria!) Lembra da sonata vendida ao safado do Tavinho? Ele também me pagaria! Passou-se o primeiro pagamento… ele não pode pagar porque tinha uma dívida. Passou-se o segundo… a dívida era bem maior que ele pensava.
Uma tarde, após chegarmos da vidraria, ele fora me visitar em casa; eu estava capinando o mandiocal que estava dominado pelo mato. Convidei José para me ajudar em troca da dívida que ele tinha comigo. Ele topou na hora: pegou uma enxada e enquanto eu capinava, permaneceu debruçado sobre ela por uns tantos minutos, depois, alegando sede, fomos tomar limonada geladíssima, preparada por mamãe, com limão galego que Zeca trouxera da olaria. Quinze minutos depois o chamei para continuarmos a árdua tarefa da capina; ele alegou que precisava ir e eu dancei…
Apesar de ele ter lido o exemplar do livro comemorativo, faz de conta que foi a título de empréstimo; o livro permaneceu comigo mesmo! (E milhões de anos depois, o mesmo se tornaria presente à minha filha caçula).
Além de colecionar diversos tipos de gibis, como sempre adorei ler, o que crescia em meu velho armário, que antes era o buffet de nossa cozinha, era os famosos livros da coleção Vagalume, que são estórias infanto-juvenis, de tamanho ideal para que as crianças e adolescentes não cansem da leitura (em torno de 100 páginas cada).
Com minhas economias conseguia comprar pelo menos um a cada mês e, acreditem, a coleção crescia rápido (e continuaria comigo por centenas de anos). Em pouco tempo eu já havia comprado (também ganhei alguns) e lido: A ilha do tesouro, 100 noites Tapuias, Xisto, As aventuras de Xisto, Xisto no espaço (este livro me incentivaria a no futuro escrever “Regis…”), A estrela do Rock, Zequinha o dono da porquinha preta, Gigante de botas, Menino de asas, Cabra das rocas, A ilha misteriosa, A ilha perdida… e dezenas de outros, que a memória acabou por trancar em arquivo morto.
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A pedido da própria fábrica, que vinha tendo problemas na justiça por contratar menores sem registro em carteira e como eu já tinha completado os quatorze anos exigidos por lei, tirei 6 fotos 3 por 4 em 9 de março e no dia 13 de março de 1973 fui à delegacia do trabalho e fiz minha primeira carteira de trabalho, a qual entreguei no departamento de pessoal, que me registraram com o mesmo meio salário mínimo mensal (134 cruzeiros e 40 centavos), em data retroativa para 1º de novembro passado. Pelo menos, a partir de então passava a ter alguns direitos, como férias, fundo de garantia, aposentadoria depois de 35 anos de trabalho (se o governo não mudar a lei) e assistência médica (observemos que até então eu ganhava metade de um salário mínimo por mês e… mais nada).
Uma noite, como geralmente fazia nos momentos que sobrava tempo, fui dar uma volta dentro da fábrica e o colega Rosemildo, de minha idade, me pediu como favor, carregar algumas garrafas para ele, que precisava ir ao banheiro. Parceiro de trabalho é para isso mesmo. Quinze minutos depois, ele não retornava e meu próprio trabalho estava acumulando lá na estufa…
Quando a coisa fica preta, os companheiros complicam para ficar pior. Meus parceiros da estufa descarregavam mais e mais a danada, só para dizerem que eu estaria atrasando seus serviços. E se o chefe chegasse naquela hora? Já que era para ferrar! Ferrado seja Rosemildo! Abandonei seu posto de trabalho, deixando acumular suas garrafas produzidas, que não podem esfriar rapidamente, pois já começavam a estourar todas e já voltava ao meu serviço, quando Cara Feia chegou… só para encurtar a baboseira, ele mandou que nós dois fôssemos embora e comparecesse ao escritório na manhã seguinte.
Planejei mil desculpas para falar na manhã seguinte e fui ao escritório. Nem me deixou entrar na fábrica. Maninho trouxe um recado de Cara Feia: volte no horário normal de trabalho que já está tudo certo.
Nem sei o que se falaram depois de minha saída da fábrica na noite passada. Voltei ao trabalho normalmente e nunca mais ninguém falou naquele incidente.
Como agora eu tinha direito a usufruir benefícios do INSS (Instituto Nacional de Seguridade Social), peguei uma guia, consultei com o mesmo médico, doutor Mario Ramos (nunca gostei dele, mas como adolescente nunca sabe nada e os pais nunca me acompanharam), que me mandou fazer novo raio xis em tamanho grande, desta vez na Santa Casa. Peguei autorização no INAMPS (o mesmo INPS, só que voltado para a área médica) e fiz o exame, levando-o ao médico que, após examinar e descobrir que deu resultado negativo, me disse na cara que eu não tinha nada, a não ser manha e preguiça, não querendo trabalhar (manha e preguiça tinha ele, que sempre atendia seus pacientes sentado em sua cadeira, sempre se espreguiçando, soltando baforadas de seus bocejos de quem parecia não dormir a 100 dias).
Fiquei com muito ódio, pois só eu sabia o mal que afligia minha garganta, com tosse constante.
Peguei nova guia e fui ao doutor Pentanha, que era especialista em nariz e garganta. Ele me pediu novos exames e constatou, entre palavras difíceis, bronquite crônica.
Passei a fazer tratamento correto, inclusive com remédio de simpatia, por vovó Maria Thereza e em muito pouco tempo estava curado.
Aproveitando as folgas do período da tarde, ou da manhã (dependendo da semana), passei a fazer um curso de datilografia na escola de dona Dercy. Nessa época já sonhava em escrever histórias (já as rascunhava em papéis usados), então comprar uma máquina de escrever seria o próximo passo; por isso existia a necessidade em se saber o que é escrever com máquina.
Também, com a mudança na casa em que morava Neuza, por Milton posseiro, que adorava futebol. Ele resolveu criar um time de futebol de adolescentes, cadastrando os interessados, me convidando para fazer parte da diretoria (viu que honra?) João, José Carlos, Ademir, Zete, Lourival Martins, Tuta, Luiz Cordeiro, Nivaldo, Moacir, Gilmar, entre outros, faziam parte da equipe de jogadores. Eu, na verdade fui para a diretoria, pois era péssimo como jogador e goleiros já tinha o Ademir e o João.
Com o dinheiro arrecadado entre os jogadores (que pagavam inclusive mensalidade social), Milton comprou dois jogos de camisas vermelhos, um jogo de calção azul, três bolas de futebol oficial número 5, meias vermelhas, uma bomba de encher bolas, uma câmera fotográfica Polaroid e outras patulaqueiras (ou é badulaqueira?)
Eu, sendo da diretoria, me tornei o responsável por criar e cadastrar todos os membros da equipe. Na própria escola de datilografia, levei papel cartão e com autorização da professora, criei os arquivos de todos, com espaço para fotografia e tudo que se precisa saber.
O emblema do time “Cruzeirinho Futebol Clube” foi rascunhado pelo próprio Milton e desenhado por José Roberto, que era exímio desenhista. Tratava-se de uma cruz com as letras CFC embaixo.
Geralmente tínhamos partidas oficiais todas as tardes de domingo, na cidade ou no sítio e eu, como não sabia jogar, acompanhava o time, anotando tudo o que acontecia para tiramos proveito ou corrigir eventuais falhas.
Uma tarde, jogando no campo do Sopeco, João havia bebido umas a mais e como jogava no gol, deixava passar até bolas retardadas por nossos próprios jogadores de defesa. Em suma: jogou pior do que eu.
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A fábrica de garrafas voltou a ter problemas com a falta de matéria prima, então para não encerrar suas atividades, resolveu manter apenas um turno de trabalho, das 6 às 16 horas, considerando 2 horas extras diárias. Com isso muitos funcionários foram desligados da empresa. Eu continuei exercendo minha mesma atividade de classificador.
Ao final do expediente, o recinto da estufa deveria ser limpo e organizado para o outro dia. Esta tarefa geralmente era feita por funcionários de separação das garrafas.
Certa tarde muito quente, os funcionários da seção de fabricação resolveram não fazer hora extra e não avisaram meu setor; com isto, às quatorze horas deixaram o trabalho, indo todos embora. Em meu setor, os funcionários resolveram fazer a mesma coisa, embora eu tenha pedido para que fizessem a limpeza do local. Como ninguém cumpriu sua obrigação, acabei adotando o mesmo sistema, indo embora junto com todos.
Na manhã seguinte, ao chegar ao trabalho, meu cartão de ponto, assim como de outros funcionários, não estavam na chapeira. Questionando o supervisor, vim a saber que estávamos suspensos por três dias… em resumo: falei com Cara Feia e ele me disse que não podia fazer nada a meu favor, pois sendo parentes, se eu não fosse punido com os demais, diriam se tratar de proteção. Deixa para lá.
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5 de novembro de 1973, na delegacia de polícia civil, fiz minha denominada carteira de identidade (RG), sendo meu segundo documento oficial de cidadão brasileiro, que me acompanharia pelos próximos séculos. Quer dizer: lá no futuro, quando um de meus filhos tentara se habilitar para ter sua Carteira Nacional de Habilitação e fora barrado devido sua RG ser de quando ele tivera dez anos de idade, descobri que eu também precisaria renovar a minha.
Naquele final de ano fui com minha tia Beatriz, ao mais longo passeio de minha existência. Ela morava em São Bernardo do Campo e resolveu me levar com ela para passear em São Paulo e como a viagem de ônibus foi durante o dia, fui lendo durante todo o percurso de seis horas.
Passei o resto do dia em sua casa e na manhã seguinte ela se sacrificou em me levar à casa de minha tia Magdalena, onde inclusive morava meu irmão Carlos, em Santo Amaro.
Na maior cidade do Brasil (segunda do mundo) me diverti bastante (menos do que eu queria), passeando com meu irmão e primo José Luís, indo à rua Direita, próximo à Praça da Sé, em quadra de patinação perto de sua casa, ao Supermercado com prima Sônia, além de ir com Carlos à casa de minha tia Tonica (aquela que teve 21 filhos legítimos), lá pelos lados da Ponte Branca, no bairro de Socorro.
Para retornar, dois dias antes fui sozinho ao centro da capital, comprei passagem e aproveitei para passear um pouco sozinho, já que, com meus dois parceiros só conseguia ir aonde eles queriam e eu me encantara principalmente com lojas de discos de vinil e livros (que eles nunca me deixavam entrar).
Naquela tarde, ao chegar de volta à casa de tia Magdalena, todos, principalmente Carlos, estavam desesperados procurando por tal caipira, que com certeza teria se perdido para sempre na cidade grande. Eles não me conheciam direito. Tudo bem que me perdi uma vez em minha própria Penápolis, deixando Sonia e Imaculada se sentindo culpadas, mas eu só tinha quatro anos de idade.
E no dia de meu retorno ao interior, novamente fui sozinho até a estação rodoviária. Sem problemas. Minha tia até descobriu que eu era mais esperto do que ela, pois conseguia tal façanha fazendo uso de apenas um ônibus e ela, que pelo menos uma vez por mês, tinha que ir até próximo ao local e sempre fazia uso de dois.
Mas eu mencionei “sem problemas”. Quase. Faltando poucos minutos para meu embarque de volta para meu aconchego, ouvi pelos alto-falantes da estação:
“Menores de 18 anos não podem viajar desacompanhados, sem autorização prévia do juizado de menores. Para mais informações procurem orientações na vara da infância, localizada na sala 307”.
“E agora?” Pensou o caipirinha aqui.
A princípio achei que não teria problemas, depois cheguei à conclusão que sim, o motorista do ônibus não me deixaria embarcar e foi por isso que procurei a tal sala indicada.
Depois de apresentar minha famosa RG (ainda bem que teria conquistado a tal, poucos dias antes dessa viagem) e carteira de trabalho, além de explicar quem eu era, de onde vinha e para onde iria, o juiz de menores me perguntou:
— Onde estão os seus pais?
— Em minha casa, lá em Penápolis — respondi tranquilo.
— Aqui em São Paulo você estava na casa de quem?
— Minha tia e meu irmão.
— Cadê um deles para assinar a autorização para você viajar?
— Não veio.
— Quem te trouxe até a estação?
— Vim sozinho.
— Então terás que voltar sozinho para onde veio. Não pode viajar sem autorização de um responsável.
Acho que meus olhos se encheram de lágrimas.
— Por favor, senhor, se eu tiver que voltar para Santo Amaro agora à noite sozinho, terei que usar dois ônibus e tenho mais medo disso do que ir para minha cidade, que estarei seguro dentro de um só.
— Tudo bem! Ponho você na viatura e lhe entrego na casa de seu irmão.
— Deixe-me voltar para casa. Viu meus documentos? São de lá! Meus pais moram lá!
O jovem juiz, que cuida de criancinhas indefesas, pensou um pouco, tomou minha passagem, assinou seu verso e me devolveu dizendo:
— Nunca mais tente viajar sozinho. Tá bom?
— Vai me levar de volta?
— Vá para sua cidade.
Não deu outra. Na entrada do ônibus foi a primeira coisa que o motorista pediu:
— Cadê a autorização do juizado para viajar?
Mostrei-lhe a passagem assinada e só desembarquei às seis horas da manhã, na estação rodoviária de minha Penápolis.
As paqueras
Aos 16 anos de idade, tinha duas preocupações básicas: o exame médico no tiro de guerra. Diziam que ficariam todos pelados em fila indiana e o médico examinaria um a um (ai meu Deus! Peladão; eu!). Outra preocupação: O que será de mim daqui a dez anos? Qual o destino que a vida me proporcionaria? Não acreditava trabalhar sempre na fábrica de garrafas.
Nessa época, apaixonado por fotografias, comprei uma câmera Kodak, que usava filme tipo 126 e a estreei na própria fábrica, fotografando alguns amigos; entre eles: Braizinho, Santo Danzi, Augusto…
Aos 16 anos meu salário na fábrica passou para três quartos de um salário mínimo, 282 cruzeiros e 60 centavos, segundo a lei número 5274, criada em 24 de abril de 1967 (viu que grande vantagem?)
Nessa época, a mania não era tanto brincar de salva ou strena-varsela. Procurar garotas era coisa mais divertida; mesmo que não quisesse arranjar garotas. Assim aos sábados à noite íamos até a praça Doutor Carlos Sampaio Filho e ficávamos rodando igual barata tonta em volta da fonte luminosa, que jorrava água a 10 metros de altura.
Enquanto os “homens” andavam em grupo de três ou quatro para um lado, as meninas faziam o mesmo em sentido oposto. Quando se cruzava algum grupo, que tivesse a pessoa pretendida, o máximo que acontecia era um tal de oi, ou psiu e a garota, no máximo retribuía com um leve sorriso. Assim eram as tais paqueras.
Quando já estávamos tontos de rodar sem ganhar uma garota sequer, seguíamos até a lanchonete Peralta, que estava ali na esquina inferior da praça, na Rua Doutor Ramalho Franco, onde sentávamos ao redor de uma mesa para quatro pessoas, de preferência com visão para a rua; pedíamos uma cuba libre cada um (rum com coca cola, limão e gelo); eu pedia também uma caixinha de cigarros Comander (era exigente: só fumava essa marca) e ficávamos horas por ali apreciando os carros que passavam e a música que tocava, acreditando que alguma garota muito bonita caísse do céu bem no nosso colo.
Ser padre estava mesmo fora de minha jogada, então paquerar garotas seria uma boa. Como em um de meus ois, a garota Joana, de seus treze anos de idade, morena, muito bonita, correspondeu, meu primo Zete, já achou que eu estava com tudo e embora, devido ser o dom Juan mais tímido da história, não estivesse a fim, me obrigou a chegar na garota. Afinal de contas você é homem ou é bicha! Dizia ele. Por isso: para provar minha masculinidade, tive que criar coragem e pedir Joana em namoro. Foi excelente. Ela me disse que já tinha namorado e acabou a esperança. Pelo menos não fugi da responsabilidade de galanteador.
E como a moda agora era as paqueras, nosso teatrinho acabou ficando abandonado, por isso resolvi criar uma rifa com 100 nomes distintos, ao preço de 20 centavos cada e me separar de meu famoso revólver ranger 38. Devido ao baixo preço, alguns adultos chegaram a comprar 10 nomes e assim a rifa foi vendida em dois dias. O mais difícil foi receber de alguns inadimplentes. Por fim, como faltava poucos, acabei por liberar para descobrirmos o ganhador, que foi… meu primo Donizete (não o Zete de tia Amélia e sim o do tio Arlindo), que, adivinhem. Não teria pago. Sendo assim, meu companheiro de teatro, José Fernandes se prontificou a pagar tal inadimplência e ficar com o prêmio (será que se não tivesse saído para tal, alguém se prontificaria a pagar?)
Agi de modo errado, indo em busca do ganhador e lhe pedindo para que pagasse. Donizete disse que não pagaria. De novo, agindo errado lhe informei que ele era o ganhador. Sendo assim, recebi meus 20 centavos e lhe entreguei o prêmio.
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Em 1976 completaria 18 anos e tive que enfrentar uma de minhas preocupações: o alistamento militar. Os exames médicos, entrevistas e outras burocracias, aconteceram sem problemas no mês de julho e agosto; inclusive o exame que se devia ficar peladão para o médico apalpar nossas coisinhas… (dois anos preocupado com este dia e finalmente já tinha passado).
Ainda naquele ano, a vidraria trocou de dono, passando a pertencer ao senhor Fortunato, que era também dono da Vidraria Brasil, perto de minha casa e como esta paralisou suas atividades para reforma, a que eu trabalhava passou a ter três turnos, criando o turno das 22 até às 5 horas da manhã.
Apesar de cansativo e a gente não conseguir dormir direito durante o dia, eu preferia este turno, pois meu primo Moacir trabalhava comigo na função de classificador, no lugar de Odair Espontão, que se demitira. Este trabalho noturno era em menor quantidade, portanto, eu e Moacir revezávamos duas horas cada um na tarefa. Enquanto um trabalhava o outro dormia.
Já estava prestes a completar 18 anos de idade e mais uma vez acabei por conquistar o coraçãozinho de uma linda garota de apenas dez anos de idade (minha sina é conquistar menininha. não vou mencionar seu nome).
Todos os dias ela estava em minha casa. Quer de manhã ou de tarde, dependendo de meu período de folga e assim como garotinhas muito jovens, também sentia ciúmes de seu “dom Juan”, não permitindo que eu sequer conversasse com Regina, minha amiga de tantos anos, ou que fosse sozinho em meus costumeiros passeios à praça central e ela nunca podia ir comigo, porque seus pais, embora gostassem e confiassem em mim, não permitiam.
Gostava muito dela e sei que, embora de seu jeito criança, também me adorava, mas a convivência, porém, estava ficando cada dia mais perigosa.
A primeira crônica.
Nessa época, escrever começava a se tornar minha paixão. Apesar de gostar dessa arte desde a escola primária, tendo naquela época escrito um livro plágio do filme “Marcelino Pão e Vinho” (Levei um gravadorzinho de mão no cinema e gravei todo o audio do filme para depois transcrevê-lo para o papel). Entre inúmeras poesias sem muito sentido e trovas, resolvi escrever então minha primeira crônica poética:
“Tony, Meu Maior Tesouro”
Desde solteiro, ainda bem jovem, já sentia grande paixão pelas crianças; um dia me apaixonei e me casei. Pouco mais de um ano depois, Deus me concedeu um grande presente: um filho; menino loiro de olhos azuis e desde muito novinho, já muito esperto.
Minha felicidade dobrou: foi o melhor presente de todos. Com isto meu amor pelas crianças se multiplicou. Tony, meu filho, me ensinou a compreender mais os pequeninos e me amava como se eu fosse um herói. Ele era meu mais leal admirador e amigo.
Como Deus me deu o destino de viver viajando a trabalho, Tony, já com oito anos, sempre me acompanhava até a estação rodoviária, ou ao ponto, onde eu embarcava em ônibus para viajar. Naturalmente ele não gostava nada deste meu destino, de passar entre oito e quinze dias ausente dele e sua mamãe. Minha esposa também não gostava e muito menos eu.
Em um período de suas férias escolares, resolvi levá-lo comigo em minha viagem quinzenal, o que o deixou muito feliz: além de conhecer diferentes locais desse Brasil, aproveitaria a oportunidade de estar comigo, o que ele e eu queríamos.
Assim como qualquer criança, Tony adorava doces e foi por isso que lhe dei alguns trocados, lhe pedindo que fosse até o bar comprar alguma coisa para ele comer durante a viagem. Assim, ele atravessou a rua e desapareceu dentro daquele bar.
Em poucos segundos, como nosso ônibus estacionava na estação, ele saiu correndo do bar e… ao atravessar a rua, um caminhão boiadeiro não conseguiu frear na lombada da estrada asfaltada e por um destino cruel, só freou após acidentar fatalmente meu filhinho adorado… meu inocente querido.
Desesperado vi o motorista fugir ao flagrante e vi também meu pequenino adorado, caído, com o corpinho ensanguentado, inerte… coraçãozinho parado. Ao seu lado, embrulhado em papel, o doce que ele mais gostava, junto a outro doce, que quem mais gostava era eu.
Deus me deu um grande tesouro, o qual desfrutei por pouco tempo… poucos anos… aliás, poucos dias, pois 90% de meus dias, passava ausente dele e minha santa mulher.
Hoje, no rostinho alegre de outras crianças, vejo a imagem de meu filhinho adorado e ouço meus amigos comentando que gosto de crianças e não tenho filhos. O que eles não sabem é que há pouco tempo no passado tive um filho, que embora único e por pouco tempo, foi meu maior tesouro, a quem não tive o tempo necessário e acabei perdendo…
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O serviço militar obrigatório iniciou-se no início de 1977. Onde Milani, da vidraria, serviu junto comigo e nossos estudos iniciavam-se às cinco e meia da manhã e seguia até às oito horas, salvo aos domingos e segundas-feiras, que não existia estudos e aos sábados, que íamos até às dez horas, além do dia em que éramos escalados para prestarmos serviço no quartel como guardas, que eram 24 horas seguidas.
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Devido à falta de matéria prima, a vidraria Santo Onofre fechou suas atividades de uma vez por todas e passamos a trabalhar no período noturno na outra fábrica, que ficava perto de minha casa; porém a estrutura da fábrica, não permitia 24 horas de trabalhos diários. O forno não conseguia derreter tanta matéria prima e o turno da noite geralmente parava antes da meia noite, onde nossos encarregados nos dispensavam.
No final de junho terminei minhas obrigações com o serviço militar e no começo de julho a fábrica de garrafas também me dispensou do trabalho, vindo a ficar desempregado.
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E a ciumeira de minha linda garota de pouco mais de onze anos de idade, continuava cada dia mais forte e eu já de “saquinho” cheio resolvi também ficar bravo, inventando ciúmes até dos cachorros ou outros moleques que simplesmente passavam na rua.
E foi assim que ela não aguentou muito tempo, reclamou para sua sogra (que eu amo tanto), que não suportava mais um homem pegando em seu pé e sumiu para sempre. Ou não?
São Paulo.
Como nessa época meu irmão Carlos já morava em São Paulo capital há muitos anos, acabei achando que lá também seria meu lugar e fui imediatamente em busca de aventuras, indo morar com minha tia Magdalena, Carlos e meus primos, Sonia, Imaculada, Ivana, José Luiz e
Com isso, depois de alguns anos, de volta à maior cidade do Brasil e segunda do mundo, já com meus 19 anos de idade, em poucos dias consegui me empregar na Têxtil Gabriel Calfat, onde trabalhava minha prima Ivana e seu príncipe Celso (não eu). Trabalharia no período das 14 às 22 horas, sem intervalo de janta, de segunda feira até sábado.
Quando fui para a capital, imaginava arranjar um emprego como a maioria dos paulistanos (5 dias por semana e no período diurno), mas não dei muita sorte nesse sentido. Porém, meu emprego era bom e eu cuidaria da balança, pesando fios de algodão para a confecção de lençóis.
Tudo corria muito bem, mas minha tia era muito nervosa, vindo a brigar constantemente com Cidinha (acho que ela não gostava da menina por não ser sua filha). Eu percebia que minha tia brigava com Cidinha, mas na verdade, jogava indiretas em mim, reclamando do quarto fechado até tarde (eu, como ia dormir muito tarde, nunca levantava antes das oito horas) …
Realmente não estava me sentindo à vontade em sua casa, que tinha o formato de um apartamento. Se eu estivesse nos fundos e minha tia estivesse limpando a cozinha, eu praticamente ficava preso no pequeno quintal. Se eu estivesse na frente da casa e ela fosse limpar a sala, também ficava preso.
Era certo que minha tia já tinha quatro filhos, mais o Carlos e ainda a filha de seu ex-marido para lhe dar trabalho. E ela já tinha sofrido muito em sua triste sina, de, além de andar mancando devido uma pequena paralisia, ter se divorciado antes mesmo de que eu tivesse vindo a esse mundo e seu ex-marido jamais ter lhe ajudado em nada para criar seus, na época pequenos quatro filhos. Portanto, eu ali era demais mesmo.
No mais, como ia e retornava do trabalho sempre a pé, pois não era tão longe e economizaria o dinheiro do ônibus, certa noite, um carro quase me atropelou na faixa de pedestres da Avenida Washington Luiz com Nossa Senhora do Sabará e depois, para complicar, o motorista, com jeitão de gay, queria me dar carona… recusei e saí andando. Ele tocou o carro e me alcançou, insistindo na carona. Após três ou quatro tentativas sem sucesso, o boiolão disse que sacaria um berro. Mandei-o caçar sapo e segui por um atalho, entrando em sentido contramão para o tal “menino apaixonado”. Será que eu tinha mesmo tendências homossexuais para viver conquistando corações de “machos”? Eu hem! Gosto mesmo é de outro tipo de fruta.
E por gostar de outra coisa, em final de semana, ao retornar de um passeio sozinho à casa de Tia Tonica, sentando-me ao lado de linda garota de seus 16 aninhos de idade, ela me deu bolas e eu senti o coração bater diferente. Continuamos conversando até nosso desembarque no Largo Treze de Maio, em Santo Amaro, onde, seguiríamos caminhos diferentes, então marcamos um reencontro para a manhã seguinte, já que eu só iria para o trabalho às quatorze horas.
No horário marcado, lá estava eu… e ela… Claro que também chegou no horário. Deu-me leve beijo nas bochechas e sem muita cerimônia me disse:
— O hotel cobra 25, eu cobro 30. O hotel é aquele alí — apontou para uma espelunca.
Só aí percebi o quanto eu era de fato um caipira do interior. Meu coração apaixonado despedaçou como louça caindo no chão duro. Fiquei sem jeito, inventei desculpas, disse que voltaria em cinco minutos e ela, talvez esteja me esperando plantada no mesmo lugar até agora.
Com tudo aquilo: sentindo enorme saudades de casa, correndo risco de encontros indesejados e ainda não me adaptando a uma prisão domiciliar, acabei por, menos de 3 meses depois, tomar o ônibus da empresa Reunidas Paulista e… como em “filho pródigo”, retornar ao lar.
A chegada em Penápolis às três horas da madrugada, foi como a chegada ao Paraíso, com o vento balançando o colonião seco, fazia a brisa se tornar agradável demais; ao oposto do que tinha na capital.
Um mês depois, consegui me empregar na Indústria de Couros Atlântica, trabalhando na seção de calçados, com grande número de jovens, todos amigos.
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Quanto a minha ex-gatinha de seus quase doze anos de idade, enquanto estive fora, talvez tentando se vingar, acabou arranjando um namorado qualquer que, diferente desse “respeitador de garotinhas inocentes”, a levou para a cama, talvez na primeira noite e em pouco tempo a abandonou. A diferença era que então ela já não estava mais sozinha.
Como eu estava de volta, ela com um filho sendo gerado em seu ventre sagrado, voltou a me procurar e eu, talvez enfeitiçado por seu encanto, acabei concordando que fingíamos estar tudo bem e cuidaríamos de tal criaturinha juntos.
Mamãe resolveu interferir em nosso relacionamento, alegando que, se ela fez isso agora, quem garantiria que não faria depois. Além de que, eu ainda era muito jovem para assumir tal relacionamento sério. Que ela não mandava em mim, mas que em meu lugar, buscaria estudar, ao invés de constituir uma família, com um filho que não era de meu sangue.
Pensando, pensando e pensando, optei pelos conselhos de quem era mais vivida.
Poucos meses depois, assim que o bebê nasceu, registrou-o com o nome que eu já teria escolhido, deixou-o aos cuidados de sua avó materna e tal pequena princesa se casou com o primo, indo morar para sempre em cidade distante de sua terra natal. E eu jamais a vi. Ou…
J.A.M.
Nesse período, participei do grupo de jovens da Juventude de Ação Mariana (JAM), participando do coral das missas na Igreja Matriz e idealizado por José Fernandes e Geraldo Malta, recriamos nosso grupo de teatros, representando em primeiro espetáculo, uma sátira criada pelo próprio José Fernandes, denominada “Julia de Neves e os três Patotas”, na qual havia três protagonistas: José Fernandes (é lógico) como Sossego, Geraldo Malta, como Mandioca e eu, como Carijó (não sei porque. Sempre fui loiro, mas nunca fui sardento). Realmente se tratava de uma sátira de Branca de Neve e do grupo “Os três Patetas” da televisão.
A peça foi um sucesso, com o teatro São Francisco (o teatro dos padres) superlotado. Até mamãe estava presente (apesar de estar ficando velho acho que ainda poderia dizer… mamãe).
Neste mesmo grupo, fazíamos diversas atividades (acho que deveria escrever um livro sobre esse período). Participávamos de visitas a entidades assistenciais como casa da criança, asilo de idosos… ajudávamos em campanha de arrecadação de alimentos e ajuda ao natal dos pobres…
Um pedacinho eu preciso contar:
Havíamos arrecadados uma enorme quantidade de alimentos e como estávamos no final do ano, resolvemos cadastrar grande número de famílias pobres para receberem esses alimentos em forma de cestas básicas. Procuramos cadastrar famílias que residiam preferencialmente no jardim Planalto, onde se concentravam os maiores números de pessoas carentes.
O cadastramento se fazia necessário para descobrir-mos quantas e a faixa etária dessas pessoas, para que montássemos a cesta de acordo com essas informações, evitando assim entregarmos, por exemplo, alimentos de uso infantil em residência que só tinham adultos e vice-versa.
Em uma das casas que visitei e orientei um senhor de uns sessenta anos de idade sobre nossa intenção, ele me disse:
— Agradeço muito meu jovem, mas não precisamos de sua ajuda. Aqui moram apenas eu e minha esposa e já recebemos nossa aposentadoria; além do mais, meus filhos nos ajudam muito.
Dava para perceber que se tratava de senhor muito carente e sua casinha era bem humilde.
— Não sou eu quem está ajudando — neguei. — Temos uma grande quantidade de alimentos, brinquedos e roupas, arrecadados em campanha na cidade. Precisamos compartilhar estes donativos entre as pessoas que se fazem necessitadas.
— Pois agradeço muito — disse o homem tirando o chapéu. — Deus já me dá tudo o que preciso. Deixe esses alimentos para as pessoas que necessitam realmente.
Apesar disso, percebendo que aquele homem era necessitado, anotei em minha planilha seu endereço e ele receberia assim mesmo sua parte nos alimentos arrecadados. Mas eu era só um jovem bobo e nem entendia as coisas. Milhões de dias depois, eu teria agido de acordo com o conselho do idoso. Ele era sim pobre, mas não necessitado. A cesta que preparei para ele, poderia ter ido para outro lar que realmente precisasse.
De volta ao grupo jovem, fazíamos concursos de artistas amadores, com banda de nosso próprio grupo (eu não tocava nada! Só atuava e escrevia).
Dando continuidade à nosso teatro, escrevi uma sequência da história de “Os três patotas”, com o título “Os três Patotas em: o sequestro”. Nesta história, Sossego, Carijó e Mandioca se via às voltas com um grupo de bandidos que sequestraram Carlos (Flaviano da dupla de cantores infantil Francisquinho e Flaviano). O menino Carlos, com onze anos de idade, era irmãozinho dos Patotas e estes não mediam esforços para resgata-lo, prendendo os bandidos.
Novamente conseguimos encher o teatro na estreia dessa nova história em três atos e esta foi a primeira peça teatral escrita por mim.
Como José Fernandes e eu, havíamos escritos uma história dos Patotas, Geraldo resolveu nos imitar, escrevendo a sequência com o título de: “Os três patotas em: Feitiço”, que se tratava de uma moça muito bonita que viera a iludir dois dos Patotas, Sossego e Mandioca levando-os ao caminho das trevas, sendo recapturados por Carijó, que descobriu os segredos da moça feiticeira.
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Um final de semana foi marcado por um grande encontro dos jovens de Ação Mariana, em local que fora marcado pela surpresa até o momento do início do encontro. Os jovens do sexo masculino ficaram hospedados nas primeiras salas de aula do Grupo Escolar Adelino Peter´s, enquanto as jovens do sexo feminino ficaram nas últimas salas. Porém, essa separação era apenas no horário de dormir, que teria que ser obrigatoriamente as vinte e duas horas. Na manhã seguinte, o horário de acordar era às seis e meia. Às sete horas, o início do encontro se dava na capela para uma oração.
O encontro fora recheado por muitas ótimas palestras, preparadas exclusivamente para adolescentes de minha idade, em que médicos, padres, professores, advogados e até o prefeito municipal, nos falavam sem tabus sobre todos os assuntos que realmente precisávamos ouvir, abordando sexualidade, onde o médico doutor Luiz Valente escreveu a palavra SEXO, como título de sua palestra, bem no centro de um crucifixo fixado no quadro negro, depois nos informou que teria feito aquilo de propósito, pois uma boa sexualidade está diretamente ligada às leis de Jesus Cristo, passando a nos falar sobre amor, sexo e religião, incluindo doenças sexualmente transmissíveis, ereção, masturbação, cópula, fecundação, menstruação e tudo mais o que a gente sempre queria aprender e não tinha aonde.
Claro que neste livro de recordações omiti fatos importantes nas descobertas de pequeno Innocente, pois, apesar de essencial seria um tanto tabu no mundo dos humanos. Não me senti à vontade para relatar a verdadeira descoberta do sexo na primeira masturbação atrás do poço de nossa casa, imitando dois garotos que já conheciam tal atividade…
… presenciar um grupo de meninos, que na casinha de areia da olaria faziam-se ativos, usando de apenas um “passivo”, me fazendo lembrar de meu triste trauma da tuia de algodão em nosso sítio e por isso, ao me convidarem para participar de tal “aventura” decidi que era hora de cair fora dali.
E outras tantas, que não dá mesmo para relatar. Não é?
Religião e Crença, abordado por Frei Marcelino (que era conhecido como o padre das crianças, por ter realmente um carisma especial por esse bichinho filhote de humanos), onde nos falava a diferença entre ser um cristão ou ser um fanático religioso.
Com ele eu aprendi que o importante não é ser católico, ou evangélico, ou testemunha de Jeová: o importante de verdade é amar e crer em Deus, respeitando seus verdadeiros ensinamentos e Mandamentos, sendo honestos, dignos e honrados. Não adianta nada ir à igreja todos os dias, bater no peito e dizer “Glória a Deus”, depois, ofender os semelhantes, não pagar o que deve; não honrar os pais e… bem: esse assunto precisava de um livro exclusivo.
Às dez horas da noite, na capela, na oração de dormir, juro que meu coração (alma) não aguentou e eu, me sentindo o jovem mais ingrato do mundo, chorei muito e sabia que a partir daquela data seria outra pessoa.
No final do terceiro dia, na despedida do encontro, já era noite, descemos as escadarias para o saguão, que estava com as luzes todas apagadas e então somando a uma grande multidão (surpresa), enquanto se ascendiam às luzes, começamos a cantar:
Fica sempre um pouco de perfume
Nas mãos que oferecem rosas
nas mãos que sabem ser generosas.
Dar do pouco que se tem, ao que tem menos ainda
enriquece o doador, faz su’alma ainda mais linda.
Dar ao próximo alegria, parece coisa tão singela
aos olhos de Deus, porém, é das artes a mais bela.
Enquanto isso, os pais dos encontristas, vinham em busca de seus filhos, com uma bela rosa na cor vinho nas mãos, abraçando o jovem com muita emoção e carinho.
Lógico, que apesar daqueles dias terem sido os mais importantes de minha vida, como nossa família não era assim tão unida, sabia que ninguém viera me recepcionar. Porém tive uma grande surpresa: mamãe me abraçava, me beijava e me entregava uma bela rosa, como todas as outras mães. Zeca também estava presente e me abraçava feliz. Papai… bem… seria muito milagre para um único encontro.
Entre 1979 e 1980, estudei e concluí meu primeiro grau escolar na Escola de Primeiro e Segundo Grau São Francisco de Assis com os professores: Alzira Carmem e Eunice, de matemática; Tomires e Maria Alice, de Língua Portuguesa; Ruth, de Estudos Sociais (História e Geografia); Vânia Fernandes, de Ciências, Física e Química; Maria Elizabeth e Vanice, de Educação artística; João Casella, de Educação Moral e Organização Social e Política Brasileira.
No segundo semestre de 1980 saí da indústria de calçados e pensando em dar continuidade a essa profissão, viajei para Franca, onde permaneci um tempo trabalhando como fotógrafo, depois, sem muito sucesso na escolha, acabei retornando ao aconchego dos pais, novamente sem dinheiro, como bom filho pródigo.
Iniciei o segundo grau escolar em 1981, fazendo curso de Habilitação Plena para o Magistério, em que era um dos dois únicos alunos homem da sala de aulas.
Mudança definitiva.
Permaneci no grupo de jovens até a metade do ano de 1981, depois disso, abandonei novamente os estudos e dessa vez em definitivo, saí de casa, indo trabalhar, a princípio pela Lajeado (empresa de telefonia), na cidade de São Simão e depois São João da Boa Vista, onde um ano depois, 30 de julho de 1982, entrei na Telesp (Telecomunicações de São Paulo S.A), onde permaneci trabalhando por quase 26 anos.
Como nesse período viajei muito por todas as cidades do estado de São Paulo, inclusive à capital, onde estudava e permanecia em hotel. Assim, me deparando com cenas de crianças abandonadas, trombadinhas, pedintes, curiosas, arteiras…
Uma destas cenas passei para o papel:
Na noite chuvosa da avenida Ipiranga em São Paulo, me deparei com um menino pobre, abandonado e resolvi seguir seus passos. Ele, uns dez anos de idade, com latinha de óleo vazia foi até um restaurante de luxo e pediu comida; o segurança sequer o deixou entrar. Foi até outro um pouco mais modesto e conseguiu arroz com carne; retornou até ás portas do cine Marabá e deitou juntamente a um homem negro, que não deveria ser seu pai, pois ele era branco; repartiu a comida com tal homem, tornou a se levantar e foi até a portaria do cinema, na qual pediu para ir ao banheiro, sendo novamente negado pelo segurança. Afastou-se um pouco ao lado, abriu o zíper da calça já rasgada e urinou ali na calçada, na presença de todos. Seguiu até um bar e pediu um copo de água, bebendo imediatamente e pedindo outro, que levou a seu companheiro. Em seguida, brincou com um casal de namorados, depois cerrou (pediu) cigarro de um transeunte, levando para o companheiro e deitou-se novamente junto a ele.
Retornei ao hotel de luxo onde estava hospedado.
São Paulo, 2 de agosto de 1984.
Ao completar 26 anos de idade, comecei a pensar:
“Pronto máquina do tempo, já avancei 10 anos e descobri o que serei nesse futuro. Por favor, me leve de volta aos caminhos de minha juventude e se possível de minha infância longínqua”.
Mas a máquina do tempo, ao em vez de me levar de volta, continuou avançando.
Em 1989, recebi da prefeitura municipal de São João da Boa Vista, certificado por ter participado em concurso de poesia e prova falando sobre a vida do Professor Hugo Sarmento, além de bolsa de estudos com validade até a faculdade, onde por quatro anos concluí meu segundo grau, em curso específico para a área em que trabalhava na Telesp: “Habilitação Profissional Plena de Eletrônica” (plena mesmo! Diferente de outros, pois neste nos certificamos em eletrônica, eletrotécnica, telecomunicações, televisão…)
Assim a Telesp, como fazia, passou a investir mais em meus treinamentos, me levando a estudar com professores formados em mestrados e doutorados, para me transformar em multiplicador de ideias e ideais dentro da empresa.
Sendo assim, de aluno passei a professor de telecomunicações e qualidade, dentro de empresa de futuro.
Em 1989 pensava:
“A vida do homem só será completa quando ele plantar uma árvore, escrever um livro e tiver um filho”. Plantei a primeira árvore no jardim do senhor José manquinho, quando cursava a terceira série na escola Casa da Amizade; escrevi meu primeiro livro “Eu, meu amor e meu revólver” no ano de 1977 e meu primeiro filho… Ah! Esse será o tesouro mais importante de minha vida! Quando você chegará?
Lembra-se quando comentei: Henrique Ulofo, Inácio e José Ramos (esses nomes têm algo a ver com o meu futuro). Pois bem: Henrique Inácio Ramos Innocente, meu primeiro filho, chegou a nosso mundo em 31 de maio de 1992 e seu nome, pura coincidência, não foi escolhido por mim: Henrique vem de rei; Inácio é sobrenome de minha sogra; Ramos, sobrenome de meu sogro e Innocente, esse sim vem de “Um menino chamado Innocente”.
Fim
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