Entrevista de Ordalina Candido Felipe
Entrevistada por Raí Salbano e Jonas Samaúma
São Paulo, 7 de outubro de 2019
Projeto Conte Sua História
Entrevista Programa Conte Sua História HV836
Transcrita por Selma Paiva
P/1 – Gratidão. Muito bem vinda, Ordalina, ao Museu.
P/2 – ‘Bora’, ‘bora’ começar. Pode começar falando o seu nome?
R – Vamos lá, então. Eu sou Ordalina Candido Felipe, sou do Paraná com muita honra, mas meu pai me registrou, atravessou a água, me registrou no estado de São Paulo, Salto Grande. Nasci em mil novecentos e quarenta e cinco, tempo do Getúlio e Café Filho e etc. Mas quarenta e cinco, quatro de abril de mil novecentos e quarenta e cinco, sendo que considero minha festa de aniversário vinte e dois de fevereiro. Eu sou uma pisciana. Minha mãe... eu perdi meu pai tinha dois anos, mais ou menos, morreu de febre amarela, tirícia. Aquele tempo não tinha remédio, morria. Agora está dando de novo amarela. Então meu pai morreu de febre amarela, tirícia. E minha mãe falou: “Então eu vou para a cidade, vou trabalhar”. Porque pensava assim: “Meus filhos têm que estudar”. Era eu e meu irmão. Então minha mãe fez um propósito de ir para a cidade e quando passou aquele ônibus... morava perto do Paranapanema, então tinha bastante carro que vinha assim, pessoas que passariam por ali na balsa. Então um senhor falou: ”Eu preciso de uma empregada doméstica, tem por aí pelo sítio?” Então apontaram a minha mãe, então minha mãe falou: “Então eu vou”. Minha vó falou assim: “Não, Maria, você não vai”. Aí tirou o peito e falou: “Pelo leite derramado, você não vai para a cidade”. Minha mãe falou: “Olha, aqui eu só venho a passeio”. Então todo mundo chorava. Você sabe o que quer dizer ‘pelo leite derramado’? Então, se fala assim porque é uma grande... tem uma grande história nisso. Então você não vai, pelo leite que você mamou. Minha mãe falou... fez uma cruz no...
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Entrevistada por Raí Salbano e Jonas Samaúma
São Paulo, 7 de outubro de 2019
Projeto Conte Sua História
Entrevista Programa Conte Sua História HV836
Transcrita por Selma Paiva
P/1 – Gratidão. Muito bem vinda, Ordalina, ao Museu.
P/2 – ‘Bora’, ‘bora’ começar. Pode começar falando o seu nome?
R – Vamos lá, então. Eu sou Ordalina Candido Felipe, sou do Paraná com muita honra, mas meu pai me registrou, atravessou a água, me registrou no estado de São Paulo, Salto Grande. Nasci em mil novecentos e quarenta e cinco, tempo do Getúlio e Café Filho e etc. Mas quarenta e cinco, quatro de abril de mil novecentos e quarenta e cinco, sendo que considero minha festa de aniversário vinte e dois de fevereiro. Eu sou uma pisciana. Minha mãe... eu perdi meu pai tinha dois anos, mais ou menos, morreu de febre amarela, tirícia. Aquele tempo não tinha remédio, morria. Agora está dando de novo amarela. Então meu pai morreu de febre amarela, tirícia. E minha mãe falou: “Então eu vou para a cidade, vou trabalhar”. Porque pensava assim: “Meus filhos têm que estudar”. Era eu e meu irmão. Então minha mãe fez um propósito de ir para a cidade e quando passou aquele ônibus... morava perto do Paranapanema, então tinha bastante carro que vinha assim, pessoas que passariam por ali na balsa. Então um senhor falou: ”Eu preciso de uma empregada doméstica, tem por aí pelo sítio?” Então apontaram a minha mãe, então minha mãe falou: “Então eu vou”. Minha vó falou assim: “Não, Maria, você não vai”. Aí tirou o peito e falou: “Pelo leite derramado, você não vai para a cidade”. Minha mãe falou: “Olha, aqui eu só venho a passeio”. Então todo mundo chorava. Você sabe o que quer dizer ‘pelo leite derramado’? Então, se fala assim porque é uma grande... tem uma grande história nisso. Então você não vai, pelo leite que você mamou. Minha mãe falou... fez uma cruz no chão: “Aqui só a passeio”. Aí minha mãe partiu, naquele carro Rolls Royce, esse carro antigamente, pretão. Eu ainda mamava num litro de mamadeira aquela água, aquele chazinho. Aí a gente partiu, com aquele pé vermelho. Aí lá fomos para a cidade. Chegamos lá naquela casa, com aqueles congóleos, tudo bacana, nós todos encolhidos com medo, dava uma descarga nós: “O que é isso?” (risos) Aí o homem falou assim: “Vão tomar banho lá na banheira”. Aquela banheira branquinha, ficou tudo vermelho e a gente lavava, lavava, minha mãe, né? Mas a gente ficou lá uns três anos. Minha mão falou: “Olha, precisamos mudar”. O seu Joaquim de Souza: “Meus netinhos, esses aqui são meus netinhos, quando crescer” - meu irmão - “vai tomar conta da fazenda, Ordalina vai tomar conta...” – assim, por exemplo - “ser pajem das minhas filhas”. E ali nós estávamos três anos. Minha mãe falou: “Não, tem que mudar alguma coisa, porque eles têm que estudar mais”. E tinha um colégio. Aí minha mãe foi pedir serviço nesse colégio, aí ela foi, aí ela conseguiu, só que nós não podíamos ficar no colégio, mas ela teve uma casa lá em baixo, casa dos pobres e a minha mãe foi ficar nessa casa, mas quando saiu dessa casa do Joaquim de Souza, ela passou um dia trabalhando numa pensão para a gente comer, poder comer, né? Eu lembro que ela levava aquelas latas de vinte litros de comida... essas latas de dois litros de comida, aí nós comíamos, não tinha talher, não tinha nada, comia tudo com a mão e a minha mãe trabalhava a troco da gente poder se alimentar. Na casa do seu Joaquim, ele era muito rico, muita fazenda, a gente ia para a fazenda, então comia muito queijo, muito... a gente já estava até enjoada de tanto comer essas coisas e tinha que levar lanche de queijo e pão. Mas a gente passou momentos felizes. Os parentes dele eram prefeitos, aquelas casas de escadaria, enormes, tipo palácio. Então, a gente vivia nisso. Muito churrasco. E seu Joaquim jogou todas aquelas fazendas no cassino, ficou com uma pequena chácara. Depois minha mãe que levava um presentinho para ele, uma camisa. A dona Maria morreu cedo, ficou só o seu Joaquim, mas a gente já tinha saído, quando ele perdeu todas fazendas. Acho que era oito fazendas, jogou tudo no cassino. Depois a gente foi para o colégio, só que no colégio não estudava negro, estudava só as grandes famílias: Meneghel, Wolf, não sei o que mais. “Dona Maria, a senhora pode trabalhar aqui e sua filha estuda lá”. A minha mãe falou: “Não, ela tem que ficar aqui comigo” “Não, dona Maria, aqui não pode, não estuda negro, porque negro geralmente não tem a mesma inteligência do branco, então ela não vai conseguir” “Não”, minha mãe dizia: “Vai conseguir.” Minha mãe brigou bastante, já deu uns murros na mesa, aí sei que depois: “Então não trabalho aqui”. Aí ela conseguiu. Aí, depois, eles não tinham ninguém para trabalhar, eu acho, aí mandou chamar a minha mãe: “Dona Maria, ela pode estudar”. Aí eu tinha que tirar dez, né? Eu tinha que dar um jeito de tirar dez. Era meio que... queria ser meio que revoltada, aí eu já queria brigar, mas falei: “Não, pela minha mãe, não. Eu tenho eu estudar”. Aí estudava, ficava tirando dez, de noite eu ficava lá com uma água lá, ta, ta no olho para eu estudar à noite e eu conseguia tirar a nota, mas era meio... a irmã falava: “Vocês são topetudas, né?” Então nós tínhamos que fazer alguma coisa, nós do orfanato. As meninas que estudavam comigo, essa menina que está na televisão, a... essa que faz o Bom Sucesso lá, como é que chama?... a mãe dela estudava comigo, entendeu? Então, era uns pobres que tinham fazendinha, que tinham alguma coisa, então eu já não tinha nada, porque vim lá do sítio. Aí, depois, a gente estudou todo mundo junto. Eu, paralelo, comecei a fazer violão, comecei a fazer piano. Minha mãe falava: “Não faz piano, porque depois não tem piano”. Comecei fazer tudo, lá tinha tudo, tudo era pago. Aí eu falei: “Eu quero fazer Artes”. Também era pago. Aí comecei a pintar, falei: “Um dia vou ser uma artista, um dia quero ser artista plástica”. Aí comecei a pintar e comecei a... aquelas meninas ricas furavam a tela, aí eu pintava para elas, e eu sempre ganhava uma garrafinha de guaraná com pão com mortadela. Parece que eu sinto o cheiro até hoje daquele pãozinho na hora do recreio. E no colégio tinha piscina, tinha ringue para você patinar, tinha tudo, só não tinha pinga, mas assim mesmo, quando era festa junina, eles guardavam umas pingas lá no armário da cozinha e nós íamos roubar, para fazer batida. Eu não bebia tanto, mas tinha uma, a Iracema, umas meninas que já gostavam de beber. À noite a gente fazia uma festinha, pegava aqueles... as meninas, cada uma tinha seu número, meu número era duzentos e vinte e oito, a gente ia lá e pegava alguma coisa das meninas e, à noite, a irmã... tinha um quadrado lá que ela olhava se não dormia. Depois nós levantávamos e uma ficava lendo, tatata, tatata, e as outras comendo, imitando as irmãs, quando as irmãs iam comer alguém rezava e a gente falava em francês, aí ficava rezando ali, e nós comendo ali. E nós levávamos um monte de coisa, mortadela, cortava aqueles pedação. Mas era o tempo de colégio, tinha serenata, a gente ia lá... Aí: “Quem fez isso?” Então, eram esses castigos que a gente, né... se ia passear um piquenique a gente deixava acho que a chácara da pessoa, assim, no chão, bagunçava demais. E a gente... eu passei todos esses anos no colégio porque pintava, piscina, a gente nas férias ia no matinê, correndo. Enquanto a irmã rezava a gente ia no matinê.
P/1 – Ordalina, queria te perguntar qual a sua primeira memória, a coisa mais antiga que você lembra?
R – O que eu me lembro assim é... assim, antigo bom, ou não muito bom? Assim...
P/1 – A primeira coisa.
R – Quando eu vejo é que eu, além de estar no colégio, tinha um sentimento, porque eu via minha mãe descer assim meia noite, uma hora da manhã, fazendo doce, sabão e eu me lembro que eu só podia chorar de noite, eu tinha que chorar só de noite. Porque de dia eu tinha um pensamento assim: “Saiba sofrer sorrindo, para fazer sorrir os que sofrem. Você tem que sorrir”. Então, de dia eu sorria, brincava de queimada, aí de noite eu ia chorar, eu chorava um pouco, eu fazia aqueles castelos, aquele tempo era castelo, história. Então era para eu sonhar e eu, tudo que tinha, que xingava ou não, eu tentava diminuir assim, eu tentava não fazer muita bagunça ou passar do limite, para não dar problema lá para minha mãe também e para eu conseguir chegar. Então, eu tinha que vencer, entendeu? O ruim também assim é que eu tenho, no couro cabeludo, muitas feridas porque as meninas queriam deixar meus cabelos como os dos brancos, como os delas, então tinha aqueles ferros quentes aquele tempo. Então, de vez em quando a gente estava no banheiro... agora até me escreveu: “Lembra, Ordalina, a gente no banheiro passando ferro no seu cabelo para ficar, né, lisinho?”, até acabar tudo o cabelo, porque queima tudo. Eles não sabem fazer, nem eu. Então era todas essas coisinhas que a gente tem guardadas, essas coisas dentro da mala, que não dissolvem, o tempo passa, mas a gente relembra. E até agora a gente, depois de quarenta, quase cinquenta anos, nós vamos nos encontrar, essas meninas que estudaram. Então a gente agora resolveu encontrar todas. Por exemplo: a fulana conhece a fulana que está lá em Santa Catarina, outras estão no Canadá, outras estão em algum lugar. Então essa conhece e lembra dessa, então já estamos todo mundo ajuntando, para a gente estar no condomínio na casa de uma delas, lá em Jundiaí.
P/1 – Como que era isso do pessoal querer mudar seu cabelo?
R – Porque elas também não entendiam, vamos... “Por que seu cabelo é assim?” Elas nunca, também... eram filhas de alemão, filho de italiano, japonês, tinha muita japonesa, então eles não entendiam negro, eles quase não viam negro. “Seu cabelo por que é assim, o cabelo assim?” “Então vamos esticar, tem um ferro quente lá”, minha mãe falou. Então elas traziam, estão me ajudando, de um certo modo... agora elas escrevem para mim dando risada... de certo modo elas estavam ajudando a me deixar igual a elas. Por exemplo: eu fui num casamento de um alemão, minha amiga casou com um alemão. Então eles me passavam o dedo: “Será que isso é pintado, manchado, não sei o quê?” Falei: “Não sai não, fia, é do mesmo jeito”. (risos) Mas é que eles realmente foram criados, às vezes, bem longe do que se diz negro. Porque no Paraná é muito, assim, mais para branco. Branco já vai para o polaco, e as irmãs de lá eram polacas, quando eu entrei no colégio, na ala francesa, depois vieram as polacas, entendeu? Então, nem eu entendia e nem elas entendiam, as meninas não entendiam esse negócio, porque meu cabelo era assim. “Vamos deixar o cabelo dela maleável”. Enquanto isso ficava aqueles feridões no meu coro cabeludo. Fritavam né, eles queriam fritar meu coro. Mas é isso.
P/1 – E você deixava, assim?
R – É, tudo pela honra da firma, é claro, eu estava no meio delas: “Vamos fazer isso?” “Vamos”. A gente bagunçou muito no colégio, e todas as coisas que tinha: “Ordalina”. As irmãs já vinham e me chamavam primeiro: “Está no meio?” Quando eu fazia alguma coisa, eu já ia lá na madre superiora: “Madre, eu fiz isso, isso e isso”. Que não era nada, mas ela sempre perguntava se eu estava no meio, sempre a acusação era minha primeiro, entendeu? Então era difícil. Eu tinha também pessoas, assim, aquelas irmãs e vinham: “Vocês têm que fazer isso”. Às vezes pisavam no pé da gente, no calcanhar. Lembro uma vez que meu calcanhar arrancou um pedaço, sangrou, assim, né? E eu nem chorava muito. Nós tínhamos que aprender a passar roupa, aprender lavar. Entendeu? E era muito assim, a gente tentava, agora eu estava falando para ela assim: “Puxa, quando lavava, tinha que passar, e aquela máquina e tal”. Então foi, talvez, na época, difícil, mas a gente levava tudo ali na... e a irmã era brava quando ficava assim, tal... eu falava: Meu Deus do céu!”. E a gente levantava cinco horas e dormia... sete horas tinha que estar na cama. Agora já dissolveu bastante, mas a gente tem meninas que até hoje não casaram, que até hoje estão ali nessa meta assim, mais ou menos meio carola ainda, né? A gente vai se encontrar agora e vai falar: “Nossa, fulano não mudou quase nada.” Mas é isso aí.
P/2 – E como foi quando a senhora saiu desse colégio, como ficaram as coisas?
R – Saí meio... eu saí e vim para São Paulo fazer Artes. Cheguei em São Paulo, falei: “Mas o que é isso, onde a gente está? Mãe do céu! Aonde, o que é isso aqui, que monte de gente é essa?” (risos) Aí eu ganhei... você vê, minha mãe foi fazer minha formatura, alguém deu dez reais, alguém deu vinte, outro deu: “O sapato da sua filha, dona Maria” ou então: “Dona Maria, a senhora não tem fotografo, né? Olha o dinheiro da foto”. Então ganhei todas as minhas coisas e então me formei de toga, de coisa. E aí, então, estava igual às meninas. Ganhei um vestido de renda, aquele tempo era renda, agora voltou. Renda, estava no baile da formatura, tudo. Então, foi tudo certinho. Fui para o Rio em mil novecentos e sessenta e... não sei quando nós fomos, nós lá na praia de Copacabana, vestida quase assim de roupa, porque não podia, a gente tirava a roupa, mas não podia tirar, ninguém podia ver nada. Tirava a roupa sem tirar a roupa de cima, tinha que saber tirar. Então fomos lá para a praia, aquela bagunça nossa toda, fomos para... agora que eu voltei lá no Rio eu falei: “Puxa que lá vida, quantos anos que eu vim para cá”. A gente foi para excursão. A gente dormia em cima, embaixo tinha um monte de menino, todo mundo só faltava quebrar, cair lá embaixo, mas a gente essa época passou... eu fui... e nós mais... eu era mais assim. Minha mãe fazia alguma coisa para vender, para a gente ter o dinheiro. E nós fomos, eu lembro que nós levamos bastante comida para comer e aquelas meninas ricas tudo com aqueles bifes lá não sei aonde e nós olhávamos... elas, como eu tinha amizade, pintava junto com elas, elas: “Ordalina, vem para cá”. Aí às vezes eu comia lá, mas não muito, aí a menina escreveu: “Ordalina, lembra quando nós passamos fome?” Passamos fome! Estávamos com vontade de comer alguma coisa. Mas não fomos para o Rio, passeamos, eu lembro que chegamos em Paquetá, não sei aonde, Petrópolis, o cicerone se perdeu lá, o ônibus, entramos na casa de uma dona, a dona ofereceu: “Quer um pouco de comida?” Ixi, a gente comeu tudo a comida da dona. Mas foi legal, enquanto a gente passou esse tempo no colégio, passeamos, e brincamos, a gente roubava muita jabuticaba. Eu tinha um ganso, então agora a gente está contando essa historia. Tinha um homem que dava um tiro de espingarda de sal e a gente vivia com a frasqueira, carregando manga verde, sal, mas era muito bom. Quando falava: “O colégio está pegando fogo”, aqueles moços invadiam e nós todas descíamos de camisola, que o homem falou que não existe mais camisola. Aí descia todo mundo, se perdia, até a irmã bater o sino e vir todo mundo, ninguém vinha, né, demorava. (risos) Do lado tinha uns homens que eram tipo jogadores, eles punham um bilhete numa pedra e jogavam e tinha uma mulher lá que contava para a irmã. Ixi, era aquela coisa! Mas foi muito bom esse tempo que a gente passou, foi uma vida. Mas quando nós saímos, você disse vem para cá, a experiência era outra, eu fui trabalhar. Trabalhei no Mappin, cheguei lá, olhei, essa menina falou: “É porque eu preciso trabalhar, meu filho está assim...” Eu falei: “Nossa, vou deixar para você a vaga”. Eu fui a primeira chamada e passei, eu falei: “Não eu queria dar para a menina”. Porque a menina era sem casa, pobre, eu falei: “Nossa!”. Entendeu? Então eu tinha essa consciência: “A senhora é a melhor letra, a melhor não sei o que”. Aí veio para o Mappin, aquelas pessoas tudo _________ [22:25], pondo o pé para cima e eu falei: “Nossa, gente sem educação”. Aí tinha uma moça que trabalhava há dezoito anos, então ela começou a me ensinar, me levou para o restaurante, mas veio uns pratinhos assim, eu falei: “Mas o que é isso, gente?” O garçom puxou a coisa, eu sentei, eu falei: “Nossa, será que eu vou sentar direito?” Sentei, eu estou comendo aqui, mas aquela comida deu, eu falei: “Mas que tipo de comida é essa?” Aquele pratinho assim, né? Eu vi que ela bebeu uma pinguinha, um negocinho, eu fiquei olhando, aí ela falou: “O dia que você quiser ficar no meu apartamento...” Eu falei. “Fazer o quê?” Ela falou: “Meu apartamento é um apartamento aqui no centro da cidade". Ela achava engraçado. Aí já me apelidaram de não sei o que, eu falei: “Ai, meu Deus do céu!” Porque, por exemplo, eu datilografava, era boa datilógrafa, aí alguém queria uma carteira, eu dava. “Não, não é para dar não, deixa eles lá”. Eu falei: “Não, mas não pode ser assim”. E eu fiquei no lugar dela depois, só que aqueles meninos eram meio nervosos, aqueles meninos que trabalhavam comigo, Departamento Pessoal. Aí eu tinha que ir lá do outro lado: “Olha, vocês vão ser empregados do Mappin e tal”. Eu sempre trazia muito gravata, para dar para aquelas pessoas que vinham do norte, alguma camisa, coitados, eles... “Você não pode ir assim, você tem que estar bem, né?” Aí sempre eu trazia, e andava com aquelas meninas que veio lá não sei de onde, que não sabia andar no Mappin, eu andava, até elas se adaptarem. Então eu fiquei assim... todo mundo ficou assim comigo, gostando porque eu fazia alguma coisa para as pessoas que não têm condições, não tinham... tinham medo também, eu lembro de mim. E eu trabalhava assim. Seu Guastero, do Departamento Pessoal, não seio o que, aquele homem todo... né? Aí eu comprava minha roupa na butique, junto com a secretária, aí eu fui andando. Porque eu fui com um vestido assim, um vestido lá do interior, no dia do emprego. Eu falei: “Nossa, tem que ser adequada”. Aí eu comecei, né? Era bem magrinha. Aí a dona falou: ”Você foi a primeira que passou, a melhor nota, não sei o que, você tem dois dias para trazer os documentos”. Eu nem queria trabalhar muito ali, porque o outro que eu arrumei era melhor, assim, mas né? E depois eu comecei a trabalhar, eu falei: “Vou ter que ir onde me chamou primeiro”. Aí fiquei lá uns cinco anos ou mais.
P/1 – Calma aí, antes de você contar o trabalho, me fala assim, como que... você disse que começou a pintar?
R – Aí, então, lá eu sonhava, via aquelas meninas ricas tudo lá e tal, eu ficava olhando, falei: “Nossa, esse é meu sonho. Eu gosto de tocar violão, cavaquinho, não sei o que, mas pintar deve ser uma coisa muito bacana”. Aí eu fui pedir para a professora Maria Louise Sbaraini, era uma polaca: “Será que eu posso pintar? Eu não posso pagar”. Ela falou: “Pode”. Eu comecei fazer quadro igualzinho o dela, punha o dela e o meu ficava igualzinho, muita paisagem. Aí, então, eu comecei a pintar. Aí essas meninas ricas pediam para eu ajudar. Eu lembro que as Meneghel pintavam, aí não sabia fazer, furava o quadro. Eu querendo quadro e elas furando quadro, entendeu? Dava aquelas pinceladas e rasgava, mas aí eu vim para São Paulo, nada de pintar.
P/1 – Mas furava de proposito ou furava por...
P/2 – Não sabiam.
R – Nada, sabe aquelas meninas ricas, que têm dinheiro, pode furar dez quadros lá, que compra outro? Os pais delas, para você tem uma ideia, traziam um jipe... na hora da gente tomar café eu era da mesa delas __________ [26:53] na hora de tomar café trazia tudo fresquinho, queijo. Por isso que eu fiquei assim: eu gosto de manteiga, manteiga, porque ali eu ficava só manteiga, manteiga, queijo, só coisa boa, alguma coisa, salada. E nós éramos enjoadas, a gente tinha que ver a comida, a nossa mesa, para a gente escolher o que ia comer, a gente falava: “TB”, tem bicho. Entendeu? Então eu fui criada naquela mesa. O refeitório era todo de mármore, lindo. Chique, meu colégio era chique, tem até hoje.
P/1 - Você lembra do primeiro quadro que você pintou?
R – Eu pintava umas onças, eu pintei paisagem, aquela paisagem linda, linda. Entendeu? Até dei lá para o interior, mas sabe quando a pessoa não sabe cuidar, o mosquito suja? Eu dei, assim, lá para os meus parentes. Pintei umas paisagens, ficou linda. Aquela paisagem que tem aquelas casinhas, tem patinho, tem pontinha, mas depois eu pintava onças, pintava muito coqueiro. Eu comecei a pintar assim. Agora não, como eu fui dar aula para as crianças, eu modifiquei alguma coisa, mais eclético assim, não só aquilo.
P/2 – Como foi que você saiu do Mappin, estava trabalhando no Mappin, aí começou a se envolver de fato com a pintura? Porque você já sabia pintar quando veio para São Paulo.
R – Quando eu estava no Mappin tinha um menino que fumava, eu descia com ele lá para baixo. Aí eu comecei encarregar de ajudá-lo a sair desse cigarro, eu tinha medo de maconheiro, falei: “Meu Deus do céu, justamente eu estou com esse maconheiro”. (risos) No Paraná falava que maconheiro era isso, eu falei: “Meu Deus do céu, me valha”. Ai então: “Eu fumo”. Tirava aquilo da perna, um toquinho de cigarro, eu falei: “Meu Deus do céu, vão falar que eu que estou dando essa maconha para esse menino”. Aí ele dava uma fumada. Ele parecia assim com você, só que tinha cabelão. (risos) Meu Deus! Aí ele ia ali no Viaduto do Chá, não sei aonde, e aí ele dava aquela fumadinha e eu não falava nem nada. Eu falava: “Você gosta? Continua, então”. Eu não vou falar para ele não continuar, porque ele vai continuar. E aí eu resolvi amá-lo, assim tipo: trazia uma comidinha para ele, perguntava alguma coisa da vida dele. Aí ele nomeou contar a história da vida dele, que o pai dele era assim, assado. A mãe era meio brava, chamou a polícia para ele. Aí fui sabendo alguma coisa da história dele. Aí o dia dele buscar esse pacau, essa maconha, esse coisa lá, ele ia lá na zona norte, não sei, ele pedia saída na firma, (risos) que a mãe dele mandou pegar não sei o que. Eu falava: “Meu Deus” - ficava rezando – “meu Deus do céu. Tomara que dê tudo certo, que ele pegue esse negócio, não morra”. Aí eu consegui assim falar com ele: “Porque você...”, aí envolvi falando com ele, mas essas pessoas que você vai curar, eles acham, assim, que já está gostando. A turma da seção falava: “Olha o love story na seção”. Mas eu falei: “Não posso misturar, ou eu trato dele, não misturo...”. E ele: “Ordalina, eu gosto muito de você” “Tudo bem, eu também te amo, gosto de você” Então não misturava. Sempre que você vai cuidar de uma pessoa, não pode misturar o caso interno com o caso externo. Aí comecei a... ele ficava lá... eu saía com ele e ela dava aquela fumada, com aquele casacão de couro. Eu falava: “Deus do céu!” E eu ali, assim... eu falei... aquele cheiro. Eu até tentei fumar cigarro, mas eu falei: “Eu não consigo”. Aí ele dava aquela tragada, ficava lá. Aí ia lá não sei aonde com ele, em tempo da polícia pegar. Agora eu lembro assim, eu falo: “Puxa que lá vida, ia lá não sei aonde!”. Ele não falava nada, só ficava dando aquela fumada e quieto. Aí vinha embora, tinha um lanche, tomava um lanche. Eu falei... aí eu comecei a conversar com ele, falava para ele que seria bom ele pintar a casa dele, sair dessas coisas. O dialogo valeu, porque ele tentou sair, e hoje ele não fuma mais. Os pais dele... os tios dele fumavam, estavam presos, eu escrevi para eles na cadeia e acho que ele pegou aquilo. Ele é filho de sírio, o pai nem falava muito. A mãe dele já chamou a polícia para ele no quarto. E aí ele reclamava muito. Mas eu fui conversando, fui cuidando. Fiquei assim, ó, fininha. Porque todo dia eu tinha que chegar mais cedo para conversar com ele. Eu moro em Diadema, ele em Guarulhos. Mas ele conseguiu sair, melhorou, não foi buscar mais, porque demora para sair da droga, né? A droga é uns dez anos, quinze anos. Hoje está liberado, mas a pessoa que fumava bastante... aí demora porque eu trabalhei com meninos vinte e seis anos, cinquenta anos trabalhando com esse tipo de criança. Então a gente vê que menino que depois se forma depois, volta para a mesma coisa.
P/1 – Não entendi, ele era o que, aluno seu?
R – Não, esse menino trabalhava no Mappin, onde eu trabalhei.
P/2 – No Mappin, e aí depois?
R – Aí depois... aí você falou as artes, aí todo dia a gente descia. Foi para contar que a gente descia, ele fumava e eu ia ver artes.
P/2 – Aonde?
R – Ali embaixo, no Largo do Arouche, ali tinha bastante. Aí, um dia, um homem implicou comigo e falou: “A senhora vem aí sempre, a senhora pinta, a senhora é isso, a senhora...” Falei: “Eu queria pintar, mas eu não tenho pincel, não tenho tinta, não tenho nada, mas eu gosto de ficar olhando, estou talvez até estudando isso aí”. E falou: “Eu tenho lá na minha casa um caixote com tinta, um monte de coisa, você aceitaria?” Eu falei: “Nossa, é tudo que eu sonhei, né?” Aí ele trouxe, eu carreguei até nas costas, na cabeça, naquele ônibus, metrô, sei lá que tinha. Aí eu levei esse monte de coisa, um caixote, assim, cheio de coisas. Levei, cheguei em casa com aquilo lá. Tinha pincel, tinha tinta, tinta óleo. Aí comecei a pintar. Aí a minha primeira exposição foi na PUC. Aí eu falei: “Posso até morrer depois que eu expor”. Aí lá vai eu para a PUC, com trinta e dois quadros. Aqui eu tenho a PUC, quer ver, pode ver?
P/2 – Pode.
R – A PUC, aí eu fui para a PUC, os quadros né o, aqui são os meninos de rua: esse voltou para a rua; deixa ver... esse ainda está mais ou menos; esse roubou muito, mas conseguiu ser um professor; esse faz casas muito bem, fumava demais; esse aqui virou pintor, é pintor; esse aqui infelizmente voltou para a cadeia de novo, depois de formado. Esse a gente suou para formar, depois de formado ele chegou na casa dele, estava bem. A casa dele não mudou, a casa tem que mudar também. Ele chegou lá, ficou meio triste. Já sai da casa com problemas, aí chega na casa tem os mesmos problemas, aí ele voltou para as drogas de novo. Esse roubava muito, ele é especialista em roubo, porque na rua, por exemplo, a mãe vive de roubo, então já põe a criança desse tamaninho para ir roubar. Então ele tinha bastante irmãos, então passou a vida inteira dele roubando. Infelizmente... a gente vai para a Noruega sempre, então levava esses meninos e lá reclamavam: “Ele rouba bastante”. Então, geralmente, quando você entra numa casa, você não entra de sapato lá. Aí deixava fora, tem um lugar, aí eles trocavam os sapatos. Passou o Brasil, o Brasil passou aqui, né? E aí assim: esse aqui nunca conseguiu chegar lá, é bom capoeirista, é bom isso, mas nunca ele faz nada muito... hoje ele veio até trabalhar para cá, está morando em Itanhaém, mas vem para cá, tem uma filha, tem outra filha com outra e assim ele vai. Ele tem bom papo. Aí esse aqui vende coisas, está melhor, a mãe morreu e ele está melhor. Esse virou... esse faz construções, esse aqui... eu pinto casas também, assim, paredes, e ele continuou pintando, entendeu? Mas então é assim.
P/2 – E essa moça?
R – Essa moça é minha filha, (risos) que veio a falecer já faz seis anos e ela fazia capoeira junto com eles também e deixou dois meninos, o Elias e a Lane, eu que tomo conta.
P/2 – Entendi.
R – E esses aqui foram os quadros lá na PUC. Esse quadro todo mundo queria comprar, aí tem um senhor que é marchand, ele guardou para juntar anos, para poder vender, dar mais dinheiro. Então aqui eu estava com trinte e dois quadros. Então foi aquele sucesso, aquela turma, ficou não sei quantos dias e veio... aí compraram meus quadros. Esse que estava marcado para não comprar ficou e os outros vinha gente, professor de Santa Catarina, professor não sei da onde e compraram e eu chorando, falei: “Nossa, minha exposição”. Aí fizeram uma música para mim. Tinha um menino da droga, eu queria que ele trabalhasse lá com a gente, eu falei: “Ele é bom, ele faz um freestyle, faz isso”. Ele era traficante, mas aí ele fez uma música, no dia ele cantou: “Ordalina, Ordalina, negra guerreira, pura e verdadeira”. Ele que fez essa música, ele cantou lá com a turminha e alguém fez um coquetel, alguém fez isso, virou assim... a gente trouxe os meninos da rua, trouxe as crianças, né, entendeu? Então foi super legal. Fiz também esses quadros da primeira chácara. Essa chácara aqui que nós ganhamos na época. Esses meninos moravam aqui. A gente ganhou. Um homem via a gente todo dia na Sé, quer dizer, vou tirar da Sé. Aí os via lá fumando, então ia lá: “Vamos, sai”. Aí o advogado falou para o meu patrão: “Se você tomar conta deles direitinho eu dou a chácara, só tem um pessoalzinho morando, tem que tirar”. Aí a gente ficou na primeira chácara. Essa chácara é onde eu fiz uma horta... ô meu Deus, esqueci o quadro lá. A gente arrumou todinha essa chácara, a gente fez horta com eles. Aonde eu dei a primeira aulinha minha para eles, aula de Artes.
P/1 – Como foi que você parou lá, nesse lugar?
R – Como eu parei, foi assim: eu trabalhava no Mappin, mas aí eu ia para casa... quando eu estava no Mappin, o pessoal tinha que estar com o cabelo bonito, não podia estar o cabelo assim, meio horroroso, com a barba tudo sem cortar. Aí eu falei: “Gente, eu tenho que cortar esses cabelos, tenho que dar um jeito”. Aí comecei a cortar os cabelos, olhava para você assim e não... no Mappin tinha que estar bem, gravatinha, arrumadinho. Aí eu comecei a cortar esses cabelos desses meninos. Tesoura, papapa. Eu olhava, tal, conversava com eles, mas estava aprendendo, mas eu comecei a cortar. Aí foi artista, foi todo mundo, Ordalina Cabeleireira, nossa! Aí eu pus, Ordalina Black and White (risos) lá na avenida, Ordalina branco e preto. Aí quando eu cortava um blackão, aquelas meninas brancas já falavam: “Mas duas horas nesse cabelo?” Porque negro é enjoado, tatatata. Usava duas tesouras, tesoura disso, tesoura daquilo, metida a cortar aqueles blacks. Tatata. Falei: “Meu Deus, tomara que saia certo”. Aí comecei a fazer cabelo, pegava aquele sabão de pedra, sabão Rio, sabão de soda, derretia tudo, punha uns matos dentro, fazia uns shampoos, aí fazia fila, todo mundo fazia fila, para lavar comigo. “Não, eu quero lavar com ela”. Porque eu deixava o cabelo tal, balançando, aquele cabelo... de homem, então, ficava... assim, sem creme, eu mesmo fazia meus cremes, virei... As meninas falavam: “Acho que essa mulher é feiticeira”. (risos) Porque de noite ficava uma fumaceira, quando eu queimava qualquer coisa, jogava lá no meio da rua, que a rua era de terra. Então eu ficava fazendo meus cremes, meus shampoos. E um dia eu fui alisar o cabelo... fazia pasta, fui alisar o cabelo da mulher: “Dona, vem cá, dona” “Meu filho” “Vai cair seu cabelo”. Caiu um pedacinho aqui. Eu falei: “Dona, vamos lá para o tanque”. Qualquer coisa água e óleo, tchã no cabelo dela, alisava o cabelo, já jogava óleo e água, para não queimar o couro, para não fazer nada, para não ficar igual ao meu. Aí eu era a melhor alisadeira. Eu ia na casa da mulher para ver se ela lavou direito, porque têm essas mulheres que depois não vão lavar, tinha uma mulher que deixou o cabelo parecendo um salame, depois não fez mais nada e a culpa é de quem? Do cabelereiro. Fazer cabelo em vila é difícil, porque tudo é sua culpa. Aí eu conseguia fazer cabelo, aí vinha artista, vinha aqueles, como é que chama? Aqueles Sensação. Aí eu comecei fazer esses moços que tinham o cabelo meio assim, eu dava uma... eu passava meu coiso, o cooler, passava o cooler, desenrolava um pouco, ficava aquele cacho, caía aqui. Aí todo mundo começou: “Eu quero cooler”. (risos) Até ontem eu falei, eu dei o cooler para a menina, passou aqui na testa: “Ordalina, deixa um pouquinho e já fica bom, eu vou deixar, vou dormir”. Isso aqui amanheceu no couro. Aí eu falei: “Põe ela na... não sei o que”. A mãe dela falou: “Não, você que pediu”. Eu falei: “Nunca mais agora”. Aprender, não dá para ninguém, aí eu não dava, mas primeiro precisou sair a testa da menina, né? Aí eu deixava o cabelo cacheado. Então, duas horas da manhã tinha gente, três horas, quase amanhecia aquela gentarada. Entendeu? Meu marido: “Eu vou matar, vou quebrar esse salão”. Eu falei: “Meu Deus do céu!” Aí os meninos já arrumavam, quando meu marido não estava, arrumavam lá dentro para mim: “Posso comer um pouco?” “Come, faz a comida do cachorro” “Nós vamos comer um pouco da comida do cachorro”. Fazia aquele monte de ovo, aquelas coisas e aí eu ficava no salão. Fazia aquele cooler, fazia o cabelo ficar encaixado, fazia creme. Entendeu? Derretia sabão, punha um monte de sabão lá derretido, lavava aquele cabelo bem lavado e o cabelo ficava lindo. Porque ninguém sabe lavar cabelo, eles pensam que passar esse monte de coisa fica bom. Tem que lavar o couro cabeludo, porque aí o cabelo fica solto e cresce. Entendeu? Você vê os índios, os cabelos deles são bons, eles não passam nada. Agora que estão passando, já estão estragando. Mas aí então eu fiquei assim, falei: “Agora eu vou sair da minha casa, vou lá para a avenida, agora eu posso pôr Ordalina Black and White”. A responsabilidade era mais, eu falei: “Ai, meu Deus do céu!”. Aí chegava aquela turma que fumava, entrava lá para o banheiro e eu falava: “Nossa, eu tenho que sair daqui, porque senão, daqui a pouco: ‘Ordalina cabelereira guarda droga’. (risos) Outro dia um menino falou para mim: “Ordalina, eu sou, agora, pastor”. E ele que vinha assim num disfarce, ajudava, punha um negócio ali, mas ele era tipo estelionatário. Então, no salão tinha de tudo, os que entravam lá para o banheiro queriam dar uma fumadinha; o que me ajudava, já fazia aquele dinheirinho, já ia fumar, até hoje, ou cheirar. Eu falei: “Meu Deus do céu, eu tenho que sair daqui, eu tenho que ir para São Paulo agora”. Aí eu fui para São Paulo fazer cabelo. Aí aqueles negros enjoados no Centro de São Paulo, aquele zero, meia, um, se errasse elas já falavam: “Passa zero.” Então tinha que dar aquele pique no cabelo. Aí fiquei meio que famosinha ali, porque até hoje: “Essa aqui é a dona que cortava, que corta bem”. Eu falei: “Cortava, né?” Tudo bem, aí eu fiquei em São Paulo ali no Centro, ali na Sé, de lá via tudo. Eu via aqueles meninos, quando vinham lá do meu bairro, parecia uns tontos, né? Porque você está no Centro de São Paulo é outra coisa, né? Eu também mudei. Aí eu via aqueles meninos procurando onde é o endereço tal, eu ficava no terceiro andar. E até hoje vou lá ver. Fiquei ali, depois fiquei num salão só para mim, ficava com o Pepe, o Pepe era da Penha... Lapa, aí depois eu fiquei só comigo. Eu aprendi, implantava cabelo, eu viajava, ia nos lugares, depois falei: “Não”. Depois eu olhava, onde eu estou? Tal lugar, fazer cabelo. Aí depois eu parei, assim, de ir em vários lugares e falei: “Agora eu vou pintar, porque agora já tenho as minhas coisinhas, já posso comprar. Vou parar de fazer cabelo e vou pintar”. E ensinei lá na Beija Flor também uns vinte anos. Hoje eu dei os diplomas para as meninas. Hoje eu tenho meninas que têm seu salão, faculdade, têm seu carro. É isso aí. “Ô, menina, vem buscar seu diploma”. Até hoje tem menina que não veio, preguiça de buscar o diploma, já está lá, até eu ia trazer um. Então foi assim: aí eu sai de lá, eu consegui começar a pintar, consegui fazer minha exposição, consegui... aí comecei nessa ONG, fiquei vinte e cinco anos nessa última.
P/1 – Qual foi a coisa que mais te marcou, nesse lugar que você ficou vinte e cinco anos?
R - Na ONG?
P/1 - É.
R - A coisa que me marcou é que hoje eu vejo os meninos: “Ordalina, você é a causa de eu estar aqui nos Estados Unidos, é a causa de eu estar sendo a diretora de uma firma disso, na escola”. Então, para mim, é todo meu ouro. Eu vejo esse pessoal que se formou, que a gente conseguiu levar. Eu vejo que o meu ouro, minha prata, está tudo ali, nessa fala deles. Você vê lá na Fábrica de Cultura, tem bastante menino que eu dei aula e hoje está dando aula, aquilo que eu ensinei, até hoje. Eu ganhei um prêmio no shopping, eu via duas meninas que eu ensinei, estavam no mesmo estilo que eu, do mesmo jeito que eu as ensinei, elas estavam fazendo. Aí o menino notou, eu nem lembrava mais de uma, aí eu falei: “Poxa que lá vida” “Mas eu lembro da senhora”. Aí os meninos olhando falaram: “Nossa, Ordalina, o mesmo estilo seu, o jeito de pintar”. Então marcou bastante, tudo que eu ensinei, que eu fiz força para ensinar para eles, embora eu não seja formada, sou autodidata. Quando eu comecei, eu ia até trazer o quadrinho que eu comecei a ensinar para eles, já está velhinho, noventa e dois. Aí então eu fiz os girassóis tipo do Van Gogh. Aí eu comecei. Aqueles meninos que tinham a mãe drogada queriam comer, aí eu fazia um lanche para eles de comida, para eles conseguirem pintar, aí eles comiam gostoso. Aí vamos, a gente fazia a horta, pintava um pouquinho. Eles conseguiram pintar até, mas um menino morreu agora drogado, fiquei com uma pena porque a mãe morreu antes. Então, esses meninos eram os mais prejudicados. Então a gente começou, eu comecei lá, e um dia conheci... eu comecei lá, você perguntou. Então eu cortava cabelo, mas ninguém queria cortar esse cabelo dos meninos da Praça da Sé, cabelo sujo, cabelo com piolho, cabelo com X. Esse patrão meu, quer dizer, levou... aí falaram: “Tem uma mulher aí que corta, ela corta dos meninos da rua, esses meninos que estão aí”. Eu trazia os meninos para comer em casa, aí punha guardanapinho, entrada, sopinha primeiro, falei: “Nossa senhora, agora eu vejo que ninguém comia isso”. Aí esse Gregory levou para mim, aí eu falei: “Não, a gente vai cortar esses cabelos, dar uma arrumada neles”. Lavei, arrumei, todo mundo saiu bonitinho. Aí eu comecei a arriscar a desenhar, como eu gosto de desenhar, comecei a desenhar no cabelo. Aí eu fazia turma não sei da onde, o nome da pessoa, risco tal, enxadrezado, aí já virou aquela fila na minha casa, todo mundo queria risco, riscava cabelo. E eu trabalhava só com a gilete, eu riscava com a gilete, é pezinho com a gilete, porque eu também não sabia, então era tudo meio rústico, não tinha máquina, depois que eu peguei a máquina. Então era tesoura e gilete, tesourona, nada de tesourinha para cabelo, depois que eu fui comprando aquelas tesouras de prata, tesoura boa. O último menino que eu ensinei era do Fernando Fernandes, o Marquinho, foi para os Estados Unidos. Ele punha umas treze tesouras __________ [51:17], entendeu? Aí eu comecei a ensinar para ele e depois ele ficou famoso, só que a mulher dele brigava com ele, tinha ciúmes, cortava a mão dele, quando ele foi para os Estados Unidos, meu Deus do céu! O Marquinhos vocês devem ter conhecido, não sei, o Marquinhos do Fernando Fernandes, ele ficou famoso. Aí então ele exibia as tesouras, todo de branco, todo bacanão. Então eu comecei a cortar dos meninos, esses meninos que tinham o cabelo bem sujo, que ficavam na rua, né? Aí a gente cuidou desses cabelos, aí eu comecei. Aí o moço me deu um presente, fez uma comida para os meninos, um carneiro, não sei o que mais lá e trouxe para mim, aí me convidou para ir lá nessa chácara. Aí eu fui e comecei a cortar cabelo lá e ensinar. Aí hoje esses meninos cortam cabelo, os filhos já estão cortando, fazendo essas barbas bem feitinhas. E eu fazia na mão, hoje eles têm a tchiiiiiiiiiiii, aquele vapor e hoje eles estão cortando, os filhos do filho e estão sobrevivendo, porque vai para uma cadeia, como que eu vou acreditar em você? Eu falava: “Então vamos cortar cabelo. Cabelo você tem seu salão, você tira a máscara”. Então, eu ensinei para vários meninos.
P/1 – Os meninos saíam da cadeia?
R – Não, os meninos saíam da cadeia ou iam para a cadeia, eles não têm como trabalhar. Quem vai dar trabalho para gente depois de cadeia?
P/2 – Depois que saía, né?
R – Depois que saía, então eu comecei a ensinar. “Você vai voltar para cadeia? E você vai cortar cabelo lá”. Lá eles cortavam, meu nome ficava lá: “Conhece a Ordalina?” Todo mundo conhecia. Entendeu? Aí então eles saíam da cadeia e começavam com salão, e eu ensinava, eu falava: “Você calado já está errado, não abre a boca”. Então eles, quando não têm nada o que fazer, pega a tesoura e fica assim. Então eles ficavam, ficou bom todo mundo hoje... aquelas casas igual um lixo, hoje estão todos chiquérrimos, você entendeu? E aí, então, eles aprenderam e hoje, nossa, só quando tem uma festa, uma coisa aí eu vou. “Essa aqui que ensinou, tatata”. Eles estão todos chiques. Hoje eu falo: “Ensina para alguém”, entendeu? Eles ensinaram, aí foi quando eu comecei ir lá dois dias lá na chácara. “Vamos fazer uma comida para esses meninos?” Aí enchia aquela chácara de criança e fazia aquela comidona. E eu nem comida sabia fazer muito direito. Aí fazia comida para eles, eles comiam. E aí fazia uma sobremesa, eu fazia a panelona, assim, de comida, todo mundo comia, só que eu falava assim para a mulher: “Se essa batata não cozinhar, sobrou, joga lá naquele buraco lá”. (risos) Parece colégio, então: “Não fica aí, tatata. Não prestou, joga”. A comida ia lá para a mesa, todo mundo comia e a hora de ir embora, tinha uma Toyota velha que a chácara ganhou, aí então levava aqueles meninos que moravam mais longe, os outros iam a pé. Então a gente fazia chocolate, cada um fazia cinco, seis ovos de Páscoa, todo mundo ficava feliz, mas era o dia inteiro fazendo aquele ovo, no outro dia também. Cada um fazia cinco ou seis, para dar para a família. E tinha o rio lá em baixo, eles andavam de caiaque. Aí a casa que eu dava aula era como daqui, assim, no rio, eu fiz uma horta ali com eles. Tinha menino que deitava ali no chão, mas não conseguia fazer nada. “Gente, é horta, vai nascer e vocês vão apanhar alface, couve”. É difícil trabalhar com esses meninos filhos de drogados. Aí eu comecei com esses meninos. Aí eu falei: “Vou ajudar você dois dias”. Dois, depois três, depois aí eu fiquei ajudando inteiro. Saí do Mappin e fui trabalhar. Aí eu comecei com Artes, mas a metade, o Gregory falou: “Mas ela não sabe Artes, como é que ela vai dar aula?” A outra metade já: “Não, ela vai conseguir”. A gente trabalhava com o Jonathan, o Jonathan é família inglesa, ele é lorde, tipo alguma coisa da rainha. “Não, ela vai conseguir, tatatatatata.” Aí eu comecei, veio oitenta meninos, falei: “Meu Deus”.
P/2 – Da onde esses meninos vieram?
R – Alguns eram da Praça da Sé, que eram esses amigos e alguns... eles eram pequenos. E alguns da vila, aquele monte de menino: “Eeeeee”. Falei: “Meu Deus, agora eu vou ter...” Fiz igual às irmãs do colégio, cruzei os braços, e dei uma olhada para eles. Eu falei: “Agora tenho que fazer igual as irmãs faziam lá com a gente”. Cruzei os braços: “Senhor, tem misericórdia, como é que eu vou... eu nem conheço esses meninos”. Primeira vez que eu tive contato com menino assim foi quando eu cheguei em São Paulo. Eu fui para Campos de Jordão, sabe aqueles meninos tirados da Febem? Eu tinha até medo, um muro desse tamanho. Quando eu tive contato mesmo da primeira vez, fiquei um ano, não, dez anos, que eles me tiraram da Febem. Então eles olhavam para você: “Você é quem, você é mãe de alguém? Eu não quero saber da minha mãe”. Sabe aqueles meninos bem revoltados? Aí eu trazia bala, trazia bolo para eles, quando eu tive o primeiro contato antes de chegar no Mappin. Aí eu tinha uma irmã lá ei fui lá passear e falei: “Eu vou ajudar a senhora”. Então era um colégio da Febem, o muro muito alto, aqueles meninos bravos. Aí eu comecei a contar histórias para eles do meu colégio, eu comecei a tratá-los com mais carinho, aí eles começaram a ficar do meu lado, mas foi muito difícil, o dono da Souza Cruz que ajudava. A minha mãe falou: “Não, filha, você vai sair daí, vai ficar mais magra do que você está, tomando conta desses meninos”. Porque eles eram bem assim, bem revoltados, né? Onde eu fiquei dez anos. Eu trazia para a minha casa aqueles pequenininhos, e ia e voltava, mas depois eles voltavam para a Febem em São Paulo. Eles ficavam em Campos porque é frio e se alguém precisasse de alguma medicação, o frio ajuda, porque lá neva, até um grau faz, alguma coisa. Então, voltando lá ao Beija Flor, onde eu fiquei, então a gente começou, eu comecei a dar aula para eles, os oitenta meninos entraram, eu fiquei... falei: “Deus, por favor, vinde, né?” E cruzei os braços e fiquei olhando para eles, bem para um: “Eeeeeeahhhhhhhhdede”. Cruzei bem os braços, olhei bem, aí eles foram ficando quietos. Falei: “Então, gente” - falei o mais baixo possível - “a gente está aqui para fazer Artes, sabe o que é Artes?” “Eeeehhhhhhhhuu”. Tornaram a ficar quietos, então: “Deus, quando veio ao mundo, fez o quê? Fez um todo, ele não fez a casa, a árvore, ele fez um todo tchiiiiiiiii, então a gente vai fazer esse todo, vai fazer esse fundo. Vocês têm gatos, cachorros, vocês já fizeram um carinho no gato, no cachorro? Então, é bem devagarinho, essa folha é sensível, ela foi feita lá...” - contei a história de onde foi feita - “então vocês vão passar tinta nessa folha, todas as cores devem ficar homogêneas. Sabe o que é homogênea?” “Ehhhhhhhhhhhhhe” “Ficar todos iguais. Não é para ficar desenhado, tudo colorido, mas cada um...”. Aí eles aprendem a fazer céu, aí fica mais fácil. Aí falei: “Então, vamos colorir, é tipo fazer um carinho”. Aí foi algum menino ajudar. “Carinho, não é assim...” Tem menino que vai pegar e tcha revoltado, nervoso. “Então, nós vamos trabalhar nessa folha, vamos nanana”. Aí eles estavam tudo com vontade: “Quero pegar no pincel, quero pegar na caneta, desenhar”. Ainda mais menino filho de pobre, que nunca tem isso, né? Então eu comecei. Aí todo mundo vinha e falava: “Mas todo mundo está quieto?” Todo mundo quieto, todo mundo ali, aí nós fizemos os primeiros quadros, eu falei: “Gente, o que eu vou fazer?” Flores. Sabe aqueles desenhos de criança de sete anos, oito anos, nove anos, dez anos? Então, aquelas flores saem meio assim, mas saem as flores. A gente levou para Noruega, vendeu tudo e aquele dinheirinho que eles tinham, a gente tirava trinta por cento para a firma e o resto deles. Nossa! Era o dinheiro que eles compravam isso... a mãe pegou. E teve menino que fez muito dinheiro. Então vendia. A gente punha um bilhete no quadro, levava para a Noruega, eu fui várias vezes também com os quadros e esse aqui era um dos banquetes que eles faziam quando eu ia...
P/2 – Nossa, que chique!
R - Comida ruim. Não é que é ruim, é a comida diferente, eu peguei um negócio e falei: “Maionese isso aqui, né?” (risos) Nossa, eu aprendi: agora põe só duas colherinhas ou uma colherinha, porque o tempero diferentemente mente. Você entendeu? Então eu fui várias vezes com os quadros, só punha na parede, quando punha, terminava de pôr, todo mundo já: “Esse aqui é meu, esse aqui é meu”. Em meia hora acabava tudo aqueles quadros, você entendeu? Então os meninos começaram a fazer...
P/1 – Calma aí vamos fazer uma pausa.
Corte.
P/1 – Então você estava falando, contando várias histórias, que trabalhou com pessoas que roubavam, traficavam, várias situações de vulnerabilidade?
R – Isso.
P/1 – O que te levou a isso?
R – Eu achei, quando eu saí do meu colégio, que todo mundo tinha que ser lindo e maravilhoso. Todo mundo tinha que ter aquela aura, aquela coroa, todo mundo tinha que... porque lá no colégio a gente aprendeu a amar... achava que todo mundo, ninguém era ladrão, ninguém era... ninguém roubava nada de ninguém. Eu pus minhas coisas lá fora, sumiu tudo. Eu tinha patinete, um monte de coisa assim, quando cheguei lá onde eu moro. Mas eu achava que todo mundo não era nada assim, todo mundo queria ser alguma coisa, assim como eu queria ser uma artista. Todo mundo tinha, assim, que querer ser alguma coisa. Então eu falei: “Nossa, eu posso ajudar, eu posso ajudar. Eu não sei cortar cabelo, mas eu dou uma olhada assim, eu vou lá e faço”. E quando eu fui fazer a primeira trança, falei: “Meu Deus e agora, como é que seria a trança?”, mas eu via como era aquele reto assim todo, né, uma trança, aí eu comecei a fazer aquela margem, mas eu não sabia trançar, eu dava um jeito para virar aquilo lá. Eu lembro que a primeira freguesa minha de trança, veio de São Paulo: “Diz que você faz cabelo muito bem”. Eu falei: “Ai, meu Deus”. E rezando ali, tatata, e pedindo a Deus e fazendo aquele... riscava bem e fazia a trança dela. Se desse para eu embolar, eu embolava, mas fazer a trança, eu tive que aprender na marra, trançar cabelo. Aí eu...
P/1 – Você aprendeu sozinha, então?
R – Tudo sozinha, Deus que me ensinou. E aí eu falei: “Nossa, como é que eu faço essa trança aí, tudo?” Aí eu comecei a fazer, aí eu fiquei a melhor trançadeira, melhor não sei o que, cabelereira, afro, da Nina, corte de artista, Sampa Crew, Sensação, vinha tudo em casa, amanhecia fazendo cabelo. Aí tinha gente que chegava até duas horas, três horas, aqueles meninos que queria dar uma fumada, não sei aonde. “Ordalina, quero meu cabelo assim todo riscado, bonitinho”. Aqueles meninos que não faziam nada, eu já dava uma cortada, porque eles não trabalhavam, não faziam nada, mas aí cortava, eles ficavam tudo bonito. Dinheiro, nada, né? Eu cortava aqueles cabelos. E quando eu comecei a trabalhar, eu falei: “Coitado desses meninos, viver com o cabelão assim”. O Mappin não pegava. Eles não pagavam tão assim, mas também não pegava gente descabelado, tinha que ser, né, cabelinho. Aí eu pegava e arrumava aqueles cabelos, de dia eu lá escondida cortava cabelo, e estava sempre arrumando essas pessoas para alguma coisa. Aí começava a fazer caridade. Você vê que na minha vida não ganhei esse dinheiro porque só ajudando. Mas eu ganhei, hoje eu sou... esses meninos me aplaudem. Esses meninos: “Estou assim porque a senhora...” Então, para mim, isso é tudo, meu ouro, a minha prata, meu tudo. Então, aí eu comecei a fazer esses cabelos assim, ensinar e aprender ao mesmo tempo.
P/1 – E desses meninos todos que você cortava cabelo, teve a relação com algum que, para você, foi especial, que você lembra?
R- Eu lembro de um que foi... comecei ensinar e ele foi preso e depois eu falava assim: “Oh, se você não ficar bom você vai cortar cabelo na cadeia.” Realmente ele foi preso, depois ele saiu e foi me procurar: “Eu vou trabalhar com cabelo, precisava de um diploma”. Aí me procurou, já estava mais moço, aí eu dei o diploma para ele e hoje ele é tipo um professor. O Mié também, hoje ele dá aula no Brasil todo, foi preso duas vezes, saiu, eu falei: “Você vai cortar na cadeia, se você não mudar”. Hoje é aquele homem distinto que faz aquele workshop, traz aquele negócio, aquela fumaceira, aquela barba e tudo bem. Então, ele mudou bastante. Entendeu? E começou a ensinar. E hoje eles falam o meu nome, ensinam. O Firmino Suruba, aquela casa ________ [01:07:36] aquele moço, hoje está com os filhos, todo bonito. Eu tenho um filmezinho, um curta metragem, como que a gente fala? Escrevem uma coisinha sua...
P/2 – Documentário?
R – Documentário, gente eu esqueço esse nome, documentário. (risos) E lá estão falando: “Puxa, eu sou assim, porque ela que me fez assim”. As mulheres deles. Entendeu? Estão no salão de cabelereiro e eles dando depoimento. Então, para mim, quando eu passo: “Ei, tia, vem aqui”. Não posso sair que eu chego meia noite, uma hora, porque todo mundo: “Entra aqui no salão, vamos ver”. Hoje eu não sou mais assim, hoje eles sabem muito mais do que eu, aprenderam muito mais, estão com mais coisas. Aquele tempo era giletinha cortada no meio, lavava a gilete, porque não tinha mais, aquela tesourona. Teve menino que eu ensinei até com tesourona desse tamanho. Entendeu? Todo lugar que eu ia, eu ensinava, tem que ser alguma coisa. Ia naqueles bairros, aí eles me escoltavam, cheio de ladrão, cheio de coisa, eu ia cortar o cabelo deles, eles me escoltavam, lá para casa. Entendeu? Eu vinha toda escoltada, eu falei: “Ai, meu Deus do céu, que tempo!”
P/2 – Dona Ordalina, como era a sua relação com sua mãe, seus avós? Você conheceu?
R – Minha mãe era muito eclética, muito legal, meu avô e minha avó morreram muito cedo, eu ia sempre lá. E minha mãe queria que eu chegasse aonde eu queria chegar. Então minha mãe sempre trabalhou em prol disso. Aí minha mãe, quando veio para São Paulo, a gente comprou esse terreno onde eu moro. Minha mãe: “Filha, vamos compra alguma coisinha para ter onde cair morto, senão, você não vai ter onde cair morta”. Aí a gente comprou lá, onde eu moro. Eu e minha mãe. Ela ganhava vinte cruzeiros, eu ganhava oitenta, não sei, sei que foi quatro reais... quatro cruzeiros, né, o terreno. Então a gente comprou, levou uns quatro anos para pagar também e hoje aquele pedacinho de chão é nosso, hoje a gente tem onde cair morto. Entendeu? Aí então minha mãe veio a falecer. “Filha, eu estou indo embora”. Eu falei: “A senhora está indo embora?” “Estou indo, não assusta, não”. Eu falei: “Tudo bem.” Um dia ela falou: “Estou indo”. Eu falei: “Mãe, então a senhora tomou banho, eu vou passar um perfume para a senhora ir bem cheirosa”. Mas não estava pensando que ela ia morrer. E falei: “Mãe”... porque ela estava bem lúcida: “Filha, isso é isso, isso é isso”. Aí era aniversário, até, da minha neta. Aquele dia eu cismei de sair mais cedo, nunca saí mais cedo. Subi, mas estava lá arrumando as coisas: “Dá uma olhada na mãe” “Ela está bem” Aí eu mandei o meu genro lá ver de novo, ele falou: “Acho que ela já foi embora”. Aí eu desci, falei: “Mãe?” “Não, ela está dormindo”. Tinha acabado de falecer. Foi suave, assim. Aí é onde a gente vê que a gente não é nada, acabou, morreu, põe lá dentro de uma caixa ali e tchau. “Amanhã dona, a senhora vai lá ver”. Pobre. “Vai lá amanhã, nove horas, leva roupa”. Esse moço era meu amigo, de vez em quando eu ia lá, às vezes, maquiar um defunto, às vezes ia lá conversar com ele. Ele falou: “Não, a gente leva lá, dá banho, põe a roupa”. Falei: “Puxa, a gente não é nada”. Chega lá eles pegam aquela mangueira e “tststs”. E põe as flores, deixa arrumadinho... “Amanhã às nove horas”. Tinha uns três já naquele departamento, morreu, só põe lá e tchau. Entendeu? Por isso que a gente tem que fazer as coisas agora, enquanto você pode. Ser ponte para alguém, passar alguma coisa para alguém de bom. Não ter esse pedantismo, esse orgulho. Entendeu? Então eu falo para a turma: “Gente, não é assim, a gente tem que ser maleável, porque desse mundo você não leva nada, do jeito que você veio, você vai”. Mas... o que você perguntou de novo? (risos)
P/2 – É sobre a sua família, sobre sua mãe?
R – É então, foi muito bom minha família, meus filhos, aí eu fui só tendo filho.
P/2 – Qual você acha que foi a coisa mais importante que sua mãe te ensinou?
R – Minha mãe me ensinou, assim, ser um ser humano que respeita, você vai até onde dá com respeito. Não precisa mentir. O que é seu, é seu. Eu lembro uma vez que a gente era pequeno, ia trazendo umas bolinhas que a gente ganhou. “Quem deu?” “Volta lá e leva lá”. Nós tínhamos medo de um homem barbudo que era lá embaixo. Aí: “Vai, volta, volta, leva lá tudo isso aí”. Falei: “Mãe, não, mãe, o homem barbudo está lá” “Leva lá e entrega lá para Paulinho” “Mas ele deu” “Não, não, não.” Então, a gente aprendeu que, se é de alguém você não pega, não leva, não joga nada no chão. Quando vou jogar alguma coisa no chão, hoje, eu me incomodo, falo: “Nossa, mas não”. Então, já nem jogo, respeitar o limite do outro, ouvir mais e falar menos, porque tudo que sai é problemático, entendeu? Você abre a boca: “O, o, o, você está falando o que, para quem?” Então não fala. Ouve. “Filha, ouve que você aprende mais”. Então minha mãe ouvia, ela sempre foi uma guerreira. Sempre ela apanhava ali, mas era chicotada... eu acho que a escravidão acabou, mas continua todo mundo quase na corrente, então você tem que melhorar. Ouve: “Sim, senhor, não, senhor, desculpa.” Entendeu? Eu trabalhei com pessoas bem... falei: “Senhor, eu não vou conseguir trabalhar” “Eu vou conseguir, meu teste é esse. “Ehhhhhhhhhhhhhhhhdooo”. Então meu teste foi esse: “Mas essa pessoa aí... você trabalhando você é escravo, você é isso”. Então deixa ver, então trabalhei, quando eu dei essas aulas eu não sabia nada. Eu falei: “Senhor, eu vou ter que aprender” “Não, mas isso aí você não faz”. Eu não falava: “Vou fazer para você ver”, então eu fazia. “Poxa, interessante”. Aí: “Não, não pega esse quadro, não, quem pegar esse quadro eu fico de mal”. Falei: “Nossa, obrigado, Senhor, eu cheguei”. Mas, assim, houve “Ahhhhhhhdada”. Aí, eu estou só ouvindo. Tá bom, depois eu poderia chorar, mas aí eu já ouvi, quieta, segurei as lágrimas, não desceu, podia cair uma dura, assim. Sabe quando cai aquelas lagrimas duras, assim? Mas você está ali, assim, tipo ouvindo. Então a vida tem dessas coisas, então você tem que aprender com a vida, porque a vida é... viver é um pouco, não é fácil, é cruel, assim, você tem que aprender estar no mundo, aí você aprende e você é feliz. Eu mesmo me coroei, porque acho que eu cheguei. Então eu senti que eu devia me coroar, cheguei, chegou o momento que eu achei que eu cheguei. Então fiquei feliz, eu dei pulo, poxa que lá vida, eu cheguei. Porque eu queria... aí Artes era cabelo também, então como eu não podia pintar, não tinha pincel... eu fiz um quadro só nas unhas, só no paninho, só no... nisso eu fiz um quadro, foi o primeiro o primeiro quadro que eu expus lá em Santo Amaro. Aí eu carreguei aquele quadro na mão dentro do ônibus, quadro desse tamanho, todo mundo, um passava, passava. Falei: “Vou embrulhar lá”. Embrulhei em qualquer coisa, falei: “Lá eu compro um papel, que vai ficar bem bonito quando chegar lá”. E era para fazer índios, eu fiz um quadro assim. Eu falei: “Mas como que são esses índios, meu Deus do céu? Cabelos lisos?” Aí o moço falou assim: “Não, eles têm franja, assim”. Aí eu fiz. Mas eu usei mis as minhas unhas, paninho, usei tudo que tinha direito, menos... eu não tinha pincel, minha sede era ter um pincel, nossa. Eu falava: “Eu gosto de ver um pincel, é tudo que eu sonho”. Aí então eu fui com esse quadro, cheguei lá em Santo Amaro, falei: “Mas cadê o armazém aqui para comprar papel?” Só tem coisas de comer ali no Centro, né? Quase coisas de comer. Aí eu peguei, andei, andei, aí achei aquele papel de embrulho, que é cinza, né? É dessa cor assim. Falei: “Vou embrulhar nesse mesmo”. Comprei lá do homem, embrulhei e levei lá para onde eu ia expor. Aqueles quadrões, com aqueles índios, bem grande, meu quadrinho estava lá. Aí fiquei olhando, falei: “Nossa, é todo meu sonho, puxa que lá vida, o meu quadro aqui”. Aí fiquei horas e horas olhando, eu falei: “Puxa, eu estou aqui”. Mas foi bacana porque eu senti aquele... trazendo aquele quadro dentro daquele ônibus, eu falei: “Meu Deus, mas eu chego lá”. Aí cheguei com aquele quadro, expus, todo mundo com aqueles quadros... o meu não estava feio, porque eu pûs um monte de cana aqui e aquele índio com aquela gamela, tampei as mãos porque eu falei: “Eu não vou saber fazer mãos direito”. Aí eles estavam com frutas na mão, assim. E aí todo mundo depois gostou do índio, está lá. E aí eu consegui expor, mas então eu falei: “Poxa, minha primeira exposiçãozinha, né?” Esse moço que eu ficava olhando lá, nas galerias lá. Aí eu fui expor lá. Mas então, a gente aprende a conseguir chegar, você tem que lutar. Aí, então, nesses anos todos eu fui dar aula, tinha bastante gente a meu favor, assim e tinha gente que falava: “Ela não vai saber”. Mas eu consegui, aí todo mundo: “Essa aqui é o coração da ONG”. Aí todo mundo... eu fui para a Noruega, eu já fui chamada para ir lá, fui para a Inglaterra, fui para a Ásia, fui não sei para onde. Consegui chegar numa meta, assim, eu uma grande pintora. Eu falei: “Gente, eu não sei nada ainda”. Hoje eu falo: “Vou começar a pintar agora, é outra etapa”. E aí eu comecei, assim, fiz todo o lugar que estou, fiz... esses quadros aqui eu fiz tudo. Entendeu? E aí foi para Inglaterra, foi para todos os lugares, eu quase não fiquei com nenhum. Eu falei: “Ô, menino”. Tem um moço que ficou com um desses, eu falei: “Você podia...” “Não, eu não posso nem emprestar para você. “Você vai sumir com meu quadro”. (risos) Mas aí eu fiz vários quadros, os meninos aprenderam, hoje eles estão pintando, alguns que pintam na rua, eu estou amparando. Hoje um deles vai para a França. “Não, não quero pintar” “Não, você vai pintar” “Não, eu não gosto” “Vai pintar”. Ele me ajudava com os índios. Então era bem pobrezinho, o pai dele mataram, a mãe dele meio, assim, religiosa do candomblé, não sei de onde, e era só investida naquilo e ele era meio solitário. Ele ficou na minha casa, eu tinha esse problema de juntar gente na minha casa, ficar morando. E a turma em mim: “Esse cara aí vai ficar aí, isso aí é estuprador, isso aí é não sei o que”. E eu tinha que cuidar, pôr uma coisa aqui, uma capa, comida. E essas pessoas, assim, o prato larga lá, eles não têm aquela tendência assim de... não tem. Então eles largam o prato lá, a cama não arruma. “Aí, está vendo?” Eu falo: “Ai, meu Deus do céu, me ajuda”. Um ano. Aí ele ficou pintando, nós ficávamos lá à noite pintando, eram os melhores, para ele, dias da vida dele, eu também. Até ia trazer um negócio que eu ganhei. Então, hoje ele vai para França, hoje uma exposição que eu tive no shopping e o pus. “Mas eu tenho que ficar aqui de pé”. Eu trazia lanchinho, aí tudo bem. Eu tenho um que está no Centro de São Paulo, ele às vezes desanimado, eu falava: “Não, não sei o que, fica lá em casa pintando”. Então é assim: a gente carrega bastante gente ao redor. E hoje ele está aqui, eu até trouxe uma foto dele, tinha muita coisa para trazer, não deu, mas até... olha ele aqui, está vendo? Watson, ele é bom, ele me ajudava nos índios, ele desenhava os índios e eu pintava.
P/1 – Quais índios que eram?
R - Ali do Rio Branco, do Itanhaém. Não tem aqueles índios lá do Rio Preto, Rio Negro? Lá tem um bocado de índio, então a gente trazia esses índios.
P/1 – Lá do Amazonas?
R – Não, aqui no Rio Negro, aqui em Itanhaém, esses lugares.
P/1 - E como foi que você começou a trabalhar com eles?
R – Então, a gente... como as crianças querem saber se o índio está pelado ou está de roupa, ou está sem nada, então a gente levava essas crianças para ver os índios. Então eles queriam ver os índios que estão melhores. Não é que estão melhores, assim: eles têm celulares, têm isso, tem aquilo, tem uns que estudam. Então a gente levava e sofria lá passando uma semana, uns dez dias. E eu fazia comida, fazia nossa comida e as dos índios, porque eles não comem assim igual a nós assim, né? E quando come parece que tem um buraco aqui dentro. Às vezes eu fazia comida e não comia, quando você via... aí eu deixava um pratinho ali para mim e um índio falava assim... Eu falei: “Pode”. Quando eu vim embora, que eu comprava uma bolacha para eu comer, porque eu chegava bem cedo e fazia aquela carne com mandioca, fazia batata doce, comida para eles e depois ia buscá-los, e aí eles vinham, a gente dava aula de Artes. Eles ficavam falando só em guarani, assim, papapa, eu já estava até aprendendo. E aí esse Watson que me ajudava, porque ele também era menino que a gente começou a trabalhar com ele. Hoje ele está todo bonitão, cabelo cresceu, amarrou. E hoje ele expos lá em Itanhaém e alguém o convidou para ir para a França, aí então ele está... já vendeu uns três, quatro quadros e está indo. Hoje ele levou a mãe dele lá não sei onde, comprou umas roupinhas. Aí ele ficava em casa, e ele conseguiu, né, se achar. Falei: “Um dia você consegue”. Ele não queria pintar de jeito nenhum, eu falei: “Não, pinta aí um pouquinho”. Eu fazia tucanos, bicho que os índios viam ali. Por exemplo, eu estava pintando aqui, ali tinha dois tucanos, então a gente pintava tucano, pintava coruja, pintava esses bichos, assim, né? Aí vinha os macacos, ficavam ali, a gente punha uma banana. Só que eu tinha um pouquinho mais de medo, mas eles não, estavam acostumados. Porque a gente come carne de macaco, eu mesma já comi, a gente come também, bem vermelhinha a carne do macaco, meu Deus do céu. Eu falei para as meninas, depois que elas comeram, eu falei: “É carne do macaco”. Lá em Rondônia eu comi. Mas aí esse Watson está bem, graças a Deus. O Sabiá está bem, o Gilmar. Mas esses eram os maiores, a gente pegava esses maiores que já tinha sido... esse aqui chegou até mocinho, os outros eram mais idade, que tem algum problema, ou às vezes dava uma fumadinha. Então, de noite eu pintava com essa turma de homens. Aí eles queriam passar na venda, eu não bebo, eles passavam na venda, eu tomava uma coquinha (risos) e eles tomavam não sei o que. Aí eu falava: “Vamos, né?” Hoje tem um que fala: “Não, dona Ordalina, eu tive que diminuir, agora eu casei, a mulher já largou, tenho que dar dinheiro para ela”. Eu falei: “Então, está vendo?” Mas a gente vai levando as vidas. Aí tem uns que vêm de segunda, terça, em casa, já está vendendo na rua. Tem outro que ficou no albergue, voltou, ficou um pouco em casa. “Nossa, sua casa é a melhor”. Porque eu tinha um quartinho lá atrás, ficou uma norueguesa também, que pintava comigo, eu pintei paredes, muita parede. Então, a gente fez de tudo nas paredes, então ela acompanhou e ela ficou uns oito meses em casa, a gente pintando lá, várias paredes. Então a gente acompanha esses adultos, eles contam história para a gente. Esse outro moço que eu acompanhei um ano, fumava bastante, que eu falei, né? Depois ele melhorou, saiu, mas é um pouco difícil. Esses meninos aí, esses dois, um voltou, né e tem que está preso lá na Bahia, eu acho, é na Bahia. Eu mandei alguma coisinha para ele quando ele entrou. Mas tem uns que voltam, não consegue sair totalmente. Mas voltando a nossa conversa lá atrás, aí você perguntou como que eu converso com a minha mãe. Eu já não tinha pai, só a mãe, minha mãe faleceu e eu fiquei com as meninas. Casada ainda estou, né, meu marido é aquele que dá uma...
P/1 – O seu marido você conheceu como?
R – Então, menino, foi uma longa história. Eu fui nesse orfanato lá da Febem e ele ficava lá no outro lugar lá. Todo mundo dava tchau para aqueles moços lá e eu também, né? “Tchau.” Aí ele falou que queria namorar comigo, mas eu não tinha interesse em namorar, saí do colégio, como é que eu ia namorar? Nem beijar eu sabia, nem abraçar, nem nada. No colégio, se você beijasse, você ia pegar um filho. Se você estava naqueles dias e sentasse lá onde o homem sentou, você pegava outro filho. Então era uma coisa meio assim. Então eu falei: “Nossa, esse moço aí tão bacana não quer estudar, não quer isso”. Eu achava que, se eu ficasse com ele, ele ia estudar, ele ia ser alguma coisa. Falei: “Acho que eu caso com ele”, fiquei assim: “Oi, tudo bem”?” Só que ele vinha às vezes abraçar, beijar, eu já não queria muito, assim. Eu falava... a mãe falou: “Você vai casar com esse moço”. Eu falei: “Não, eu não vou casar com ele” “Não, agora você tem que casar, perdendo tempo ele, coitado. Você vai casar, porque se não ele vai ficar assim, assado”. Eu falei: “Então tá, vamos casar, né? Ela falou: “Você está nervosa?” Eu falei: “Não, é que eu não quero casar, eu nem gosto dele assim”. Aí casei. Eu não tinha nem experiência, casamento, né? A gente sai do colégio com esse negócio de, se você beijar, você vai pegar um filho. Ninguém tirava a roupa perto do outro, ninguém... quando eu fui para praia eu olhei aquelas pessoas, parecia, eu falei, índio. Tudo assim só com aquele biquini, eu falei: “Nossa, o que é isso?” Aí eu levei uma malinha de roupa. “Não vai trocar? Eu: “Eu já troquei” “Não, mas essa aí não é a roupa da praia”. Eu falei: “Nossa, o que é roupa da praia?” Quer dizer: a gente não está acostumado a ficar pelado de jeito nenhum, nudez tudo era pecado. A gente confessava, às vezes, três vezes por semana: “Eu fiz isso, eu tive maus pensamentos, eu tive isso”. Os pecados eram os mesmos. Então a gente confessava duas vezes: “Eu fiz isso, fiz aquilo”. Então, aquilo, para nós... eu cheguei na praia, falei: “Nossa, o que eu estou fazendo no meio dessa turma tudo pelado?” Então eu era bem diferente. Então, a gente sai sem preparação. Aí, então, conheci o moço, minha mãe falou: “Vai casar”. Eu falei: “Eu não vou comprar nada”. Minha mãe tinha uma malona, aquele tempo aqueles baús, comprou um monte de coisas. Eu falei: “Ai, meu Deus, casar”. Aí, no dia do casamento, eu já derrubei uns pratos, ela falou: “Nossa, você está nervosa”?” Aí eu casei, mas eu falei: “Vou demorar bastante na festa”. Aí tinha festa, a gente ia para São Vicente e não sei o que, aí todo mundo acompanhou. E nós estávamos lá, todo mundo na bagunça: “Vamos para praia”. Enquanto estava assim, estava bom. Aí quando chegou eu e ele eu falei: “Não, eu quero minha mãe”. (risos) Entendeu? Tinha uma janelinha assim: “Eu quero minha mãe, eu não quero ficar aqui”. Nossa, eu dei o maior trabalho, porque você não tinha experiência, né? Eu falei: “Eu vou ficar nua perto de um homem? Deus me livre! (risos) Não, de jeito nenhum”. Olha, foi difícil, mas aí ele começou a beber, começou a... aí pronto, eu chorava, ele saía com os meus compadres, depois que a gente já tinha compadres na vila e eu não me adaptava, aí eu ia para minha mãe. Minha mãe morava no Ipiranga, eu ia para lá e aí nunca me adaptei a ele bem direitinho. Primeiro, eu comecei a baixar o nível, porque ele começou estudar depois. Eu falei: “Não, tenho que ficar mais ou menos paralela a ele, não posso ficar...” Aí tudo bem, mas nada deu certo, esse homem só mais bebia. Trabalhava, mas ele bebia, ia para a praia com os amigos, lá ele ligava. Eu falei: “Não vou atender nada de telefone”. Mas aí foi a vida. Aí, quando começou aquela briga mesmo, eu tinha um menino dez, doze, ele falou: “Ou eu ou esse menino”. Eu levei o meu filho para o Ipiranga e falei: “Não vou por ele para a rua, porque ele vai ficar igual os outros das outras mulheres”. “Seu marido está lá, o. A senhora não vai buscar?” Falei: “Não”. Porque vai beber mais, né? Aí não, deixei ficar em casa, tirei o meu filho Tiago, levei para minha mãe. Meu filho ficou lá na minha mãe, quando ele cresceu bem mais trabalhava de motoboy, de boy, aí ele veio para casa. E aí continuou, né, assim. As meninas cresceram, os meninos casaram, uma vai casar sábado agora. Quer dizer: já casou, mas a festa é sábado e no outro sábado é a igreja. Ele: “Quem vai casar?” Porque agora ele já está meio fraco da ideia, mas todos esses anos os outros falam, o meu neto fala: “Por que a senhora não largou dele?” Eu falo: “É outro problema, não tinha condições de largar, o único lugar que a gente tem é essa casa aqui”. Mas é isso. Casamento foi maravilhoso assim, né, no que se diz, quer dizer: não foi aquela coisa assim, mas a gente conseguiu suportar, passar.
P/1 – Como foi assim o nascimento dos filhos?
R – Então, foi as minhas comadres na frente, cada uma cuidou uma da outra, porque os maridos iam trabalhar e para a mulher isso é a coisa mais difícil, o marido tem que estar junto. Às vezes eu simulava uma doença, vamos ver se ele vai trazer um copo de leite. “Estou muito ruim”. Um dia eu falei para ele assim... “Comadre, eu vou falar que estou ruim” “Não, não vou levantar que eu estou ruim”, para ver se ele vai trazer um como de leite, um copo de água. Então a gente... quando ela tinha filho eu levava para o hospital, trazia, arrumava um carro, a rua toda de barro e ele a mesma coisa, até que ele levava para o hospital, ficava lá, trazia, mas os outros já não levavam. Então, a mulher fica muito sensível, tem nenê, então quer um... “Não, parece com o pai”. Todo mundo já fala que parece com o pai. E aí, então, a mulher quer um carinho também. Então eu ia para o tanque, eu ia cuidar de alguma coisa e o homem está lá. Quer dizer: não é aquele homem que vai ajudar a mulher com aquele carinho, ele vai cuidar: “Hoje você olha, porque o filho é teu também”. Então sai essa briga. “Nenê está chorando e você não vai olhar?” “Não, você olha e eu também”. Eu que levava para o posto, ixi. Era um atrás do outro. Quando um fez um ano, a outra nasceu; quando a outra fez oito meses, o outro nasceu, foi quatro, aí ele operou. Eu achava assim que eu queria ter um time de futebol, falei: “Nossa, que bonito criança, acho que eu quero ter um monte”. Mas eu nem... quando chegava daqui a pouco eu estava grávida. Eu falei: “Meu Deus do céu, que negócio de engravidar é esse!” Entendeu? Mas foi muito ruim as relações dele, não foi legal, um homem assim carinhoso, um homem que conversava, não conversava, sempre foi de não conversar. Mas também pelo jeito que ele era, foi sofrido quando ele nasceu, os pais dele, entendeu? Então, até não ponho culpa. Eu que também tenho a culpa, porque eu fui casar com ele. Quer dizer: ele já vem de uma coisa difícil, uma família difícil. Então eu não posso falar que ele só que tem culpa, então ambos. Eu mais ainda, porque vou casar, então eu caso, mas é isso aí.
P/1 – Você falou que tinha ido para Rondônia, comeu macaco. O que você foi fazer em Rondônia?
R – Eu tenho parentes lá, casados com índios também. Então eles comem macaco, eles comem tudo, aí são caçadores. Então eu comi anta, bastante anta, porcão, comi... tinha jacaré, comi aquele negócio lá também que nem pode, tartaruga. Vão me prender ainda. (risos) Comi... e lá o rio é... atravessou do lado de lá, você está na Bolívia, então é lá em cima, já Rio Negro, não sei o que. Então lá tem todas as caças, porque os ribeirinhos podem caçar, eles de lá, os índios. Aí a menina é índia, entendeu? Então eles podem ter esse tipo de carne. Tomei aquele kambô, aquele do índio, aquele do sapinho vermelho, sempre eu tomo. Ou aquele... eu já tinha tomado aquele lá, daqui a pouco a menina veio com o kambô, eu falei: “Nossa, já estou zonza da cabeça e agora com esse negócio da picada aí”. Ela deu seis picadas.
P/2 – E como foi essa experiência?
R- Quando eu vi a outra ali vomitando, eu falei: “Meu Deus do céu, agora sou eu” e o índio lá: “Eeeeee”. Fumaça subindo. “Eeeee” Aí eu segurei bem assim, respirei fundo, falei: “Meu Deus do céu”, segurei. Aí ela falou, deu duas, três: “Ela aguenta, pode dar mais”. Aí pá, tinha um foguinho ali do lado, eu falei: “Nossa, como é que ele faz isso? Nem vou olhar, vou ficar aqui”. Segurei bem na cadeira, porque todas as coisas que você for fazer, se você ficar... aí você passa mal. Tem que segurar bem, respirei bem e o negócio foi entrando ali, foi queimando. E o índio lá, o pajé soltando fumaça e: “Zaaazaza, pá”. Aquela cena, né? Eu falei: “Tá ótimo”. Essa aqui vomitou que foi longe, a outra também passou mal, eu falei: “Essa aí é forte”. Não, porque eu vi, né? Eu falei: “Não, eu não posso, tenho que segurar”. Você não pode ficar.... você tem que ficar bem. Depois eu fui no toalete, mas eu segurei bem, assim, prestei atenção, tudo bem, está picando ali e tal. Então você deixa a coisa rolar, você não pode... qualquer coisa você não pode assustar você mesma, você tem que segurar, pra que você consiga ingerir. Agora estou para tomar outro, né?
P/1 – Qual era a etnia?
R – Esses ali eram... o que tomei lá em Rondônia não lembro, é outra etnia, porque lá em Rondônia tem esses índios meio bravões, né? Aqui é guarani, quem me deu foi a Lua.
P/2 – Você vai voltar para tomar com essa mesma pessoa?
R – É, vou tomar com a Lua. A Lua, quando tomei aquele negócio que vai aqui, ela pensou que eu ia cair na escada, falei: “Não, Lua, isso aí para mim está fraco”. Eu falei para ela. (risos) É que ela, de vez em quando, vem em casa e dorme, porque eu fiz uma exposição junto com ela. E agora a menina vai me apresentar àquela moça que pinta paredes, está pintando, aquela índia. Esqueci o nome dela. Menina do Rio, porque ela está aqui em São... no Rio, ou em São Paulo. Eu falei: “Tudo bem”. Mas essa moça toma na perna, as minhas primas tomam na perna, eu vou tomar na perna também, acho que é mais fácil, tem mais carne. Você tomou? Você é meio indígena, você foi aonde, tomou com quem, com os xavantes?
P/1 – Depois eu te conto, porque é sua história, né. (risos)
R – Nossa, desculpe.
P/1 – Você disse que pintava assim o quadro na unha, né?
R – Eu fiz tudo no... como eu não tinha nada, eu fiz tudo com o que eu tinha, então na unha, a minha unha é dura, deu para fazer alguns riscos, então eu usei tudo que poderia usar, madeirinha. Então, para as crianças, eu comecei a ensinar assim, você faz uma... eu cortei uns paninhos velhos, porque os paninhos têm pontinhas também e também faz uma petequinha e nós vamos molhar lá na tinta e andar. Acabou essa tinta, molha de novo, tudo tem que ficar bem homogêneo. Então, aqueles paninhos ficavam sujos de tinta, a gente usava outra vez, molhava ele, tinha bastante tinta. Então, aqueles paninhos fizeram sucesso, foi muito legal. E eu consegui, com esses paninhos, fazer muitas coisas e eu vi que o pincel, às vezes, não era tão necessário. Você pode estar num lugar que você não tem nada, você tem a tinta, o verde você faz a tinta, você tem a terra... eu pintei com eles várias cores de terra, então você faz a tinta. Entendeu? Para mostrar que você pinta, você pinta no papelão, pinta no... eu pinto na madeira. Então você pode, né, fazer de tudo uma coisa, assim, que você pode estar pintando. Então eu consegui, assim, não morrer na praia, consegui fazer as tintas, como assim nos cabelos eu consegui fazer as pastas, os alisamentos, eu consegui, na pintura, fazer as tintas, algumas tintas. Punha nos vidros, fazia. Então foi legal para passar para eles, eu pintava parede, aguava aquela tinta e a mesma coisa de fundo que eu fazia com eles. Então, várias meninas, vários meninos me ajudavam pintar, depois faziam um jeito, depois puxava de baixo para cima, depois fazia aqueles tabletes, desenhava naquela espuma, tipo esquentado lá no fogo, não tinha pirógrafo, esquentava, fazia um desenho e pra... você entendeu? Então eu fiz bastante lugar com folhas, folhas grandes, folhas tipo aquelas folhas verdes com cores amarelados, vários tipos de cores caindo. Então eles também, eles aprenderam, alguns meninos que pintavam comigo. Hoje estou tentando arrumar essa equipe novamente, porque vou conhecer alguns arquitetos. Os arquitetos vão... às vezes tem casas que gostariam disso, então a gente pode fazer um pedaço, uma área. E tem menino que desenha bem, então a gente pode fazer esse tipo de pintura. Então eu fiz esse tipo de pintura, eu trabalho com cinco rolos, então eu desenhava no rolo, aí enrolava tudo. A chácara lá de Itanhaém ficou linda. Essa aqui não, a outra, toda pintada. Então, todo mundo que chegava lá: “Nossa.” Tem salinha desse tamanho, a gente pintou o arco, e aqui tem um beija flor. E tudo aqueles bambuzinhos, aí eu chamei uma... ela é... como é que chama, essas pessoas da Ásia? Então ela veio ajudar fazer aqueles bambuzinhos. A cozinha bem grande já veio uma norueguesa, ela desenha meio (tabetado?) _______ [1:45:26] assim, aí eu a ajudei fazer fundo. Então, a sala aqui era bem grande com lareira, aí nossa! Eu passei três dias fazendo pinguinhos. Bem vermelha a sala, bem vermelhona, com coisa, detalhe. As pessoas da Europa gostam. No Brasil, não, gostam tudo branquinho, tudo, né? Eles não têm Artes, assim, muito. E também assim, aí eu pintei os quartos tudo amarelo, o outro com cores em cima azulão, azul turquesa, com azul isso e ficou bem legal. Todo mundo que chega lá: “Nossa e a pintura”, entendeu? Eu pintava tijolos, minha sala de Artes lá, meu ateliê era tijolinho, também ensinei pintar em tudo. Então, depois que eu vi que pincel... realmente eu passei muitos anos: “Ah, eu quero um pincel”. Mas depois, quando eu falei não, agora vai sair assim. Então, a gente conseguiu. Então, você não precisa de tanta coisa. Você tem que buscar aquilo que a natureza dá e aí você consegue fazer.
P/2 – Como foram as primeiras vezes que a senhora saiu do Brasil para mostrar seu trabalho, como foram essas viagens?
R – Então na verdade eu cheguei lá, eu só... aqui, por exemplo, onde estou, aqui nesse almoço eu só dava depoimento, falava, levava os quadros: “Esse é meu quadro”. Eu falava sobre a minha pessoa, tinha um tradutor. Eu... speak english more or less... (risos) Eles não falam tão inglês lá, esses países da Europa, não gosta tanto, mas agora tem que falar, né? Mas assim a gente aprendia alguma coisa e dava. Dá para você sobreviver. E o frio, né, eu tinha medo de andar muito porque escorrega aquela neve, mas frio um e trinta graus eu já peguei, mas muito legal o povo nos tratava muito bem. Entendeu? Aqueles homens mais ricos, os __________ [01:47:56] chamavam a gente para jantar, almoçar, mas eles, de manhã, tomam um café muito forte, no meio do dia eles não têm esse almoço que nós temos, é tipo um lanche e à tarde é tipo aquela sopa, aquela coisa mais com família, tudo ali Gostoso. Fui para as montanhas lá, aquelas bem altas, aí andava de barco, ia para lá, voltava para cá. De vez em quando alguém paga uma passagem, eu vou para lá, no meu aniversário. Aí já lê um pergaminho: “Ordalina Candido, veio do Brasil, pintura tal”. E aquele monte de gente também, outras pessoas trajadas bem de acordo com eles lá. Mas é isso: então minha vida floriu. Por isso que eu me coroei, falei: “Cheguei, posso me coroar”. Quando eu vi lá Ordalina Black and White, Branco e Preto, eu falei: “Nossa, agora eu posso por meu nome lá na avenida”. Mas depois eu logo saí. Falei: “Não, eu não posso, esse povo aqui eu tenho que ir para a cidade ver o que o povo da cidade, do Centro, né, gostaria”. Mas depois eu fiquei quase trinta anos nesse colégio, agora que estou saindo desse, mas eu não deixo de estar lá sempre. “Ordalina,vem dar um workshop. Ordalina, nós podemos ir aí com as crianças?” Então sempre estou ali e agora em Itanhaém: “Ordalina, você é madrinha da nossa escola”. Falei: “Pronto, agora peguei um negócio aqui” “Você é madrinha da capoeira”. Aí levei as calças, eu ia fazer as calças, nesse colégio eu aprendi a costurar. Arrumei as máquinas, falei: “Meu Deus, não vai dar para eu costurar, porque toda hora chega alguém: “Ordalina, você está fazendo o que, cortando?” E tinha um negócio na calça, tipo o boiadeiro, vai erguer a perna, tem um negócio, falei: “Não vou conseguir fazer essas calças”, aí pagamos para alguém fazer. Mas aí eu sou madrinha. Agora, o que estou fazendo? Mandei a menina fazer um desenho lá, designer e pôr todo munda ali naquele designer e a gente por CNPJ, alguma coisa, para alguém que quiser doar alguma coisa para essas crianças. São crianças assim que são, realmente, filhos de pessoas que pai não tem e a mãe é aquela drogadona. Entendeu? “Quero ver meu filho” “Não, a senhora não vai entrar, seu filho está bem”. Então eles são, geralmente, assim, meninos que ficam na capoeira de noite, porque senão eles vão vender droga. A primeira coisa é aviãozinho, pegar para levar para cá. Então eu falei: “Realmente, vamos fazer essa capoeira girar”. Então estou falando com várias pessoas. Eu fui no Rio agora, que eu fiz a capa de um livro. Então essa capa do livro, nossa, repercutiu para caramba, eu fui para lá, autógrafo para cá: “Essa aqui é a Ordalina”. Fui na escola: “Fala alguma coisa”. Falei: “Meu Deus do céu!”. Escolas iguais as nossas, aqui, periferia, aí dei meu depoimento: “Eu desenho. Eu faço grafite”. Então, eu conversei com várias escolas, fui em Barra Mansa, onde tem uma amiga minha de colégio, Niterói. E eu vi que repercutiu bastante esse livro. E hoje ela falou para mim: “Ordalina, eu estou fazendo bolsas com a capa do livro”. Será que eu trouxe o livro? Falei: “Nossa, bacana.” A bolsa, aqui. Ela falou para mim: “Ordalina, desenha crianças”. Eu falei: “Eu não entendo. Criança? A senhora não quer falar direito o que a senhora gostaria?” Ela falou: “Eu quero uma coisa que remeta a criança”. Falei: “Então, desenho”. Eu não desenho direito, aí eu fiz esses desenhinhos assim, você entendeu? Aqui também. Aí eu fiz, você olha aqui e você já vê: “Nossa, um pião de menino”. Então, a capa são mulheres reais. “Você tem que escrever também algo aí”. Falei: “Escrever o que, gente?” Aí eu escrevi. Eu lembrei que toda hora que eu passo perto de um quadro, eu falo: “Puxa que lá vida, eu tenho que me desapegar desse quadro, eu tenho que dar esse quadro”. Aí eu escrevi O Desapego. Falei: “Não, deixa escrever aqui IO Desapego, aqui”. Aí eu escrevi que gente tem que aprender a desapegar, porque você não leva nada, não coisa nada. Então eu escrevi O Desapego. Está aqui... Vê se você acha aí?
P/1 – Mas como é que...
R – Fala.
P/1 – Você vai ler né, pode ler.
R - Não, pode falar, porque eu não estou achando nada aqui. (risos) Fala, como que é o quê?
P/1 – Como que foi isso que você falou que... Um que você começou pintar na hora que não tinha nenhum material e depois já estava na Europa...
R – Quando eu comecei pintar esse aí, esse moço que eu ia lá na galeria que deu essa dica para mim. Que ia ter uma exposição de índios. Eu falei: “Eu vou saber fazer índio? Nem vejo índio direito”. Aí eu pus até cabelo comprido, mas falei: “Não índio do Brasil tem cabelo liso e curto”. Aí eu fiz esse índio para... me inscrevi nesse Poupa Tempo lá em Itanhém...
P/2 – Santo Amaro.
R – Santo Amaro, aí foi uma primeira exposiçãozinha, mas eu levei esse quadro na mão, fui para lá com esse quadro e andei para caramba para chegar no local. Comprei um negócio para embrulhar, porque eu levei até meio desenrolado dentro do ônibus, suando, para passar perto daquele povo. “Essa dona com esse pedaço de pau aí” “Ai, meu Deus, dona, esse aqui é meu quadro, que eu estou aqui superfeliz porque estou levando para algum lugar”. Quer dizer: mal eles sabiam que eu estava feliz carregando aquele quadrado dentro do ônibus. Eu falei: “Meu Deus do céu que sofrimento para carregar”.
P/1 – Eu digo: depois disso, qual foi sua trajetória, o que mais você fez?
R – Aí eu estava trabalhando. Aí eu queria pintar mais, assim, aí comecei a pegar umas tábuas, porque não tinha tela, não sei como eu arrumei aquela tela. Aí então eu comecei a querer pintar, eu achei tela, eu pintava em tudo quanto é lugar que eu achava. Aí que eu fui trabalhar nessa ONG, aí no Beija Flor. Eu comecei a ir lá e pintar com eles, mas eles queriam mais comer, comecei a fazer a horta e depois que eu fui... era a Sé. Aí eu ia lá, ficava dois dias, três dias, depois que eu comecei a ficar o tempo todo. Aí, antes de começar lá, porque estávamos abrindo, a gente pintou parede, a gente inventou de deixar parede pintada, então eu pintava as paredes com alguns meninos. Eu subia numa escada, duas escadas. “A senhora vai cair daí, tia” “Não, não estou na hora de morrer, menino, para com isso, não vou cair nada”. Mas aí começamos a pintar parede, a gente começou a fazer tudo, entendeu? Aí eu fui indo dar aula. Fui conseguindo e os meninos se aprumando. Conseguimos bastante tinta, pincel. Porque a nossa própria aula já comprava o material, porque a gente tirava trinta primeiro, trinta por cento. Então, a própria aula já adquiria o material, porque a gente vendia. Chegavam pessoas de fora e compravam aquelas telas e as crianças ganhavam, então eles começaram a ficar mais animados. “Está lindo o seu quadro” “A senhora não falou que estava bom ontem?” “Ontem estava bom, hoje a gente vai continuar”. O quadro demora dez anos para terminar, cada dia você vai dar uma pincelada. Vinha... os índios também vinham. “Mas, tem que pintar mais. Está lindo, mas você vai ver onde precisa mais”. E os índios pintavam bem bonito, é que eu não trouxe os quadros deles. Aí eles punham mais flores. Entendeu? Os quadros deles muito lindos. Só que a gente deu para alguns, eles põe lá naqueles barracos abertos, acaba acabando, porque não tem capa, não tem nada, mas alguns eu guardei. Eu dava aula para criança bem pequenininha: sete anos, seis anos. Chegava: “Aeeeeeum”. Eu dava uma olhada para eles na porta... (risos) Eles sentavam todos quietinhos: “Vocês vão ficar com a mão aqui ou com a mão aqui, vão escutar: tatata tatata, apaga a luz”. Eles ficavam escutando - acho que dormia, alguns dormiam - quinze minutos. “A folhinha está aí”. Aí começavam, pintavam os quadrinhos deles bem diferentes, porque eles são menorzinhos. Nossa, eles adoravam pintar. Aí fiquei meio que... todo mundo gostou de pintar, as mães já mandavam: “Vai pintar meu quadro, meu filho”. Foi muito bacana. Aí, a semana passada fizeram nessa escola onde essas crianças pintaram, homenagem para mim. “Eu quero ser igual a senhora”. Falei: “Nossa senhora!” “O menina, tira foto com ela”. Tira foto. Aí fizeram eu, Ordalina, assim bem grande e escreveram lá e não sei o que, fui pra lá, homenagem para cá, você vai comer. As meninas trouxeram, cada uma trouxe bolo. “Tia, eu trouxe bolo para a senhora”. Eu tive que comer todos aqueles bolos. Eu falei: “Meu Deus do céu!”. A gente fica até meio assim, e a classe inteira. Aí, quando cheguei, um monte de presentes, cada um deu alguma coisinha embrulhado, escrito, assim do jeito deles. Foi um dia de homenagem, eu falei: “Nossa!” “Você tem que vir na outra sala, tem que vir no outro dia”. Falei: “Ave Maria!” Mas legal, teve aquele reconhecimento, aquela coisa. Então, geralmente, às vezes eu vou na escola, falar de mim. Falei: “Agora estou falando de mim agora, em vida, pelo menos”. E eu fico feliz, porque a gente conseguiu plantar alguma coisa, ser alguma coisa para alguém. Só tem que ir lá, outro dia fui numa festinha: “A senhora tem que ir lá na minha escola, na minha faculdade”. Então estou indo, cada dia tem uma agenda a se cumprir.
P/2 – Você achou?
R – Achei. O Desapego. Ordalina, aqui tem meu... ela mandou escrever em cinco linhas o meu designer. Ordalina nasceu tal dia de quarenta e cinco, Paraná, tornou-se referência em Diadema através de seus trabalhos e projetos sociais, utilizando como ferramenta de artes plásticas e cabeleireiro na recuperação de jovens e crianças. Seu trabalho será exposto no Brasil e também no exterior. Em agosto de dois mil e dezesseis estreou um documentário que mostra a vida e obra da artista plástica, Ordalina Candido: Eu sou o Povo. O meu documentário, você viu, né?
P/2 – Sua filha ia me mandar, não se ela já mandou.
R – O Desapego:
Olhamos para aquilo que tentamos desapegar. Eu olhava um quadro, falei: “Mas tenho que dar esse quadro, mas eu não vou dar agora”.
Foram anos de vivência lado a lado e, por algum motivo como motivo, como mudança para um lugar menor ou mesmo por muito tempo no mesmo lugar, as gerações querem mudanças. Onde você rapidamente decide resolver aquilo que antes não tinha a menos consciência, chegou a hora do desapego. Por isso, quanto mais cedo você aprender a desapegar das pequenas coisas e decisões, é mais fácil se desprender do futuro e deixá-lo acontecer naturalmente. A vida é um eterno desapego.
É porque ela falou: “Escreve dez linhas só”, então eu escrevi. Então, esse é o livro que foi para o Rio, a capa eu pintei numa tela, aí tirei foto e mandei. Hoje ela falou: “Ordalina, vai chegar aí uma bolsa, porque eu já fiz isso aqui na bolsa, em amarelo”. A bolsa ficou bonita, aí ela me manda. Aí eu mandei para ela... aí nós fomos... como que chama nesse lugar lá da Bienal e tinha um stand, aí dei autógrafo, falei porque ela fez o pergaminho e fez o não sei o que bem grande e aí eu tinha que falar um pouco de mim e: “Tira foto comigo? A senhora dá um autógrafo?” Falei: “Nossa”. Eu cansei lá porque lá é muito grande.
P/2 – Sim.
R – Eu fiquei lá alguns dias, era uma correria essa mulher aqui. Agora eu falei: “Dona, eu vou fazer cartões de Natal e vou fazer capas de cadernos”. Assim, se conseguir fazer, eu posso estar ajudando essas crianças. Eu falei: “Eu queria que a senhora arrumasse editora”. Ela falou: “Não, aí também tem mais”. Eu falei: “Então eu não conheço, mas eu vou ver”. Ela falou: “Ordalina, eu vou ver aqui também”. Para fazer essas capas e os cartões de Natal. Assim pode ter uma firminha que remete alguma coisa para as crianças. A gente ganha, as crianças ganham, porque lá tem que construir e tem que... eu arrumei uniforme, arrumei camiseta, mas não tem só isso, teria um lanche, alguma coisa. Então é isso que eu fui para o Rio, mas a... Pode falar.
P/2 – Entendi.
P/1 – Você teve algum sonho na sua vida, dormindo mesmo, algum sonho assim?
R – Sonho dormindo que eu consegui, eu sonhava que eu ia ser... assim, quando aquele tempo eu ficava fazendo sonho que eu era isso, que eu era princesa, (risos) que eu formei... naquele tempo que eu estava no colégio, que eu era bem menina, de noite eu tirava para fazer sonhos, para fazer... porque aquele tempo de teatro, de coisas que falava no palco e aí surge o... eu falava... aquele tempo eu gostava de declamar: “O caboclo saiu não sei da onde, tatata”. Então, de noite eu ficava sonhando, que eu vinha não sai aonde fazer... sabe, era gostoso que eu sonhava assim, eu dormia. Se eu tivesse que chorar, eu chorava e fazia aquele sonho, eu pisando não sei aonde. Sempre eu sonhava, fazia sonhos. Mas meu sonho foi bem realizado, eu consegui pintar, eu consegui expor. Eu expus no Mackenzie, expus naquela outra católica.
P/2 – Na PUC?
R – Na PUC. Então, com trinte e poucos quadros, meu marchand era bem bravo, brigou com a mulher que não queria aquele... eu até trouxe, eu acho que eu trouxe... que não queria essa... “Não, porque é gente pobre, gente isso, faz essa...” Como é que chama? “Não, ela tem que fazer o catálogo bem bonito”. Entendeu? “Não pode ser essa coisa feia”. E ele jogou lá no chão, ela ficou brava e no dia da exposição ele nem entrou, o primeiro dia. Ela queria esse, ele falou: “Não, não se pode fazer um convite horroroso assim”. Foi do dia cinco a dezessete de agosto de dois mil e dois. Eu fiz todos os quadros pintados a... Ah, meu Deus, essa aqui é a turminha lá. O convite, olha, até rasguei, o convite era assim, então ele achou que era muito feio.
P/2 – E você, o que você achou?
R – Eu não achei nada, porque não estava acostumada a ver convite, nunca tinha visto convite de artes. Ele falou: “Não, não pode ser essa coisa horrorosa”. Entendeu? Aí ela falou... ele fez outro convite, foi dia... a inauguração foi oito de agosto, às dezenove horas, em dois mil, aí eu pintei todos esses quadros a óleo, agora eu pinto acrílico também, por causa das crianças. Então eu chorava lá na PUC, nossa, via aquelas coisas todas bonitas, soluçava. Olha aqui o menino que cantou, que era traficante. Todos eles eram tráfico, esse aqui também, agora que esse aqui disse que saiu. O ensinei cortar cabelo. E esse aqui cantou a música. Deixa eu ver esse outro aqui, esse outro caiu na droga quase nunca saiu, esse aqui, faz umas pizzas boas. Esse eu falava: “Gente, o que esse menino desse cabelo liso assim, estava lá no CD assim, vup, vup, vup. O que esse menino está fazendo?” Eu fui, inventei de cantar com eles o rap, eu tinha que falar: “E nada cala a nossa voz, nada cala.” (risos) Eu falei: “Eu vou para lá com vocês”. Fechou aquela porta, eu falei: “Nossa, o que é isso? Esses homens tudo maluco, sem camisa e a fumaça subindo, e esse menino aqui com aquele negócio vup, vup, cadê a mãe desse menino?” Gente do céu, eu não estava acostumada com aquilo. Aí o menino falou: “Ordalina, vamos, você vai para o palco com a gente”. Como eu fazia os cabelos deles, ficava tudo assim, eu fui lá, passava o microfone: “Nada cala, e nada cala a nossa voz, falamos a verdade”. Eu falei: “Meu Deus do céu!” Olhava aquela turma tudo pulando assim, e aquele menino naquele squash, eu falei: “Meu Deus do céu, doido, todo mundo doido”. E a fumaça subindo. Então eu... eles tudo cantor, esses aqui, esse aqui é o que fazia o squash, cabelo bem lisinho. E aí eu... “Agora Ordalina vai ter outro som de rap, você vai com a gente”, eu falei: "Nossa, meu marido vai por eu para fora." (risos) Porque eu cortava os cabelos deles, falei: “Não, eu não posso, tenho que... depois eu vou, qualquer hora, com vocês”. Mas então eles me acompanhavam, aí fez a música, o dia do coisa lá todo mundo foi, juntou aquele monte de gente lá na PUC. Saiu tudo da Vila. O Esquilo agora está até hoje com a gente, agora ele não trabalha mais no tráfico, quer dizer, faz tempo. Mas hoje ela está sentindo o que ele fumou, que ele está sentindo por dentro, alguma coisa que saiu fora do lugar, ele não fumou tanto, ele mais vendia. Mas aí então eu acho que as artes modificam a vida, as artes faz ir onde você quer e faz você sentir, assim, uma pessoa que você está livre, você é você. Então acho que a arte é o eu, põe o seu eu para fora, trabalha com o eu. Entendeu? Artes. Aí eu estava escrevendo lá, falei que meu avô veio do Congo, lá do navio negreiro e um dia fui fazer uma exposição, num lugar aí, não sei, numa escola aí eu escrevi, O Navio Negreiro: “Eu sou o grito do navio negreiro.” Entendeu? Eu falei o navio negreiro, então eu falei que sou o grito do navio negreiro. Ainda hoje ouço gemidos. Quer dizer ainda hoje ouço gemidos daquela turma que veio. Entendeu? Você sabe da onde vieram essas pessoas? Amarrados, acorrentados, pelados, esfomeados, que eram jogados no mar depois que não prestassem mais. Esses, como dizia, animais inválidos, jogava pelo mar adentro, crianças nos braços, lágrimas ensanguentadas, trabalhos sem cessar, até a última gota cair. Nesse navio negreiro veio meu avô. Porque ele veio de navio negreiro. Por isso posso contar a história de um sonhador, aos nove anos, saído de sua terra, cujo o sonho está ainda acorrentado por um racismo. Quer dizer: ele veio por isso, ele veio contar história. É a história de um sonhador que, aos nove anos, saiu da sua terra cujo sonhos ainda acorrentados por um racismo. Então eu acho que essa história ainda é, ainda muita gente acorrentada, eu acho. Aí eu escrevi para escola, aí falei, aí ela pegou, deixei o rascunho e achei lá, falei: “Deixa levar”. Mas é isso.
P/2 – Dona Ordalina, para a gente ir finalizando, a gente quer saber como foi contar a sua história aqui?
R – Esse é o livro do filme.
P/1 – Mostra o livro.
R – Ordalina, Eu Sou o Povo. Essa é uma aluna que, realmente, a gente conversando, assim, pintando, eu falei: “Um dia a gente gostaria de escrever um livro”. Aí, quando ela se formou, hoje ela é jornalista, pintora, aí ela falou: “Vou fazer um filme”. É um... como é que fala? Um depoimento. Aí ela fez, ela tirou essas fotos, essa foto é dela. Entendeu? Aí ela fez o livro, aqui veio o CD e aí ela fez as fotos, Isabelli. E aí ela fez o livro, ela e o Diaulas, a filmação. Entendeu? No coisa... olha o livro... o coisa do índio, olha o índio, (risos) o índio está aqui. Eu lá na minha sala, toda cheia de tinta, fazendo esse índio, valeu esse índio. Aqui é o Zumbi, que eu fiz também, ela tirou foto. Esse aqui eu também fiz com a mão, eu gosto desse quadro. Aí todo mundo queria comprar. Na madeira, esse aqui embaixo e esse aqui, são na madeira. Esse último eu vendi para a Inglaterra, esse aqui na madeira. Esse aqui é as favelas, eu fiz tudo Diadema, toda a Diadema quando era mais assim, né, as casas. Por que eu fiz? Porque os meninos moravam, uns moravam aqui, outros moravam ali, então eu trouxe as casas deles para a tela, aí eles falavam: “Minha casa está aqui”. Eles dançavam assim perto: “Puxa, minha casa está aqui". Virou arte as casas deles. Entendeu? Aí essas madeiras, as mulheres iam tirar as casas: “Mas eu não queria sair da minha casa para o prédio”. Aí eu falei: “Traz uma madeira da sua casa, que a gente pinta”. As madeiras tudo velha, aí a mulher queria levar para a Noruega, eu falei: “Nossa, essas madeiras nem entra na Noruega”. As madeiras tudo velhas. Essas são as pessoas que participaram do filme, do como é que chama que você falou...
P/2 – Documentário.
R – Documentário. O Diaulas, um foi câmera, o outro foi esse negócio que você é. (risos)
P/2 – Esse negócio aí.
R – Esse aqui é meu aluno, que também pintava, quer dizer, ele foi... vários alunos aqui. Essa aqui foi a que fala, me arrumava roupa, tatata. Essa aqui, então, minha aluna que foi, a mãe dela, meu aluno. Entendeu? Então foi muito legal a participação de todos. Eu pensei: “Filmar vai ser um mês, levou um ano: “Agora você anda assim, Ordalina. Não, está errado”. (risos) Tem que sorrir assim”. Eu falei: “Nossa, pelo amor de Deus”. Eu até rezava: “Senhor, me ajuda, por que que eu tenho que sorrir assim?” “Anda até ali, não, volta”. Eu andava cinco vezes e não estava certo. “Corta”. Aí tinha uma mulher para cortar tudo. (risos) Eu falei: “Nossa, mas não dá, gente, corta daqui, corta dali”. Passou um barulho: “Não, começa tudo de novo”. Falei: “Não dá, né, gente?” Por isso aquelas mulheres vão embora para Miami, vai embora não sei para onde, porque não aguentou fazer aquele filme. Porque o filme era muito, assim, demorado. Deixa eu mostrar um negócio aqui, só, antes de acabar esse falatório, ainda bem que eu não trouxe mais coisas porque se não... (risos) Meu avô aqui que veio da África, meu avô, né?
P/2 – Conta mais...
P/1 – Conta a história antes de acabar, a história do seu avô?
R – Então, meu avô veio da África com nove anos, ele foi libertado com nove anos, ele conseguiu essa libertação e, como ele começou lá na Bahia, para aqueles lados, ele veio vindo, porque libertou o pessoal, mas eles tinham onde morar?
P/2 - Não?
R – Não, então veio andando, de carro de boi e veio fazendo família, até ele chegar no Paraná, na ilha. Esse aqui é o colégio, nós de meinha, tinha que estar tudo assim, colégio. Colégio, meu colégio era bonito, olha. Tinha jardins, tinha muita coisa no colégio. Minha mãe, dona Maria.
P/1 – Seu avô foi libertado com nove anos?
R – Foi libertado com nove anos. Colégio. Nove anos ele foi libertado. Essas aqui são as roupas que a gente fazia para os meninos dançar na Noruega.
P/1 – Ele foi libertado por causa da lei do ventre livre?
R – Isso, ele foi da ultima lei, ventre livre. A escolinha, a primeira lá que a gente começou dar aulas para esses meninos. Um pouquinho de menino, depois que a gente foi dar aquelas aulas. Salão de cabeleireiro com os meninos da vila, alguns que eu ensinei. Aqui vendendo quadros lá na Europa, num minuto eles compravam tudo. Esse aqui é meu colégio, as freiras. Só tinha fonte. Meu diploma, eu recebendo o diploma do normal. De toga, de tudo.
P/2 – Dona Ordalina, e a sua avó?
R – Então, minha avó era neta de chinesa, ela era bem espigadona, bem altona, bem... minha mãe, né... bem assim... essa aqui é a exposição da PUC. Era bem bonita... Parati, olha, onde moravam os índios ali, do lado da lá, a gente ficava muito com eles. Então, minha avó era neta de chineses... os meninos a gente levou para minha exposição na PUC, cada dia levava uma turminha. “Não ponha as mãos nos quadros”. As minhas alunas, as crianças. E assim íamos. Mas a minha avó era neta de chineses. Aqui quando a gente ia visitar os caboclos, lá no meio do... eu pintei essa dona, está até suja de tinta, pintei vários quadros. Esse aqui é o Dom Sigor, bispo do Paraná. Eu queimei a toga dele. (risos) Aí tinha que ser __________ [02:18:50] os índios. Se o cacique sai, ninguém pode ver isso, eles ficam tudo fechado. Esse aqui é meu salão, no dia do meu aniversário, salão dos meninos. Mas é isso, pode fazer, você queria falar o que mais para mim, perguntar?
P/2 – Eu queria perguntar como é que foi contar sua história aqui, pra gente, hoje?
R – Não, foi maravilhoso. Eu não terminei de contar, né? (risos)
P/2 – Então continua.
R – Não, mas não vou falar, não.
P/2 – Pode continuar, sério.
R – Mas a história é sempre a história. Essa aqui foi a minha irmã lá da Noruega que pinta, uma grande pintora. Norueguesa, muito cheia do coiso, ela que manda passagem para eu ir para lá.
P/1 – O que você acha que é importante da sua história, contar, assim?
R – A minha história é importante que agora eu posso contar minha história, porque eu acho que se cumpriu uma parte dela, eu consegui chegar, eu consegui entender o que é a vida, eu consegui entender o que é o casamento. Quer dizer, não desfrutei nada desse casamento, eu posso... mas assim, agora posso falar alguma coisa com as meninas. Quer dizer: as meninas desse tempo algumas melhoraram, algumas não conseguiram melhorar. Porque ficou muito... quase vinte anos presa ali no colégio, sob aquele julgo bem encarcerado. Entendeu? Para a gente por um sutiã precisava ter uma aula: “Vocês vão usar esse negócio”. E tá. Nós ficávamos até com medo. Entendeu? E era tudo bem diferente, era tipo bem clausura. Então hoje a gente entende como é que foi, como é que não é. Essas meninas de hoje sabem coisas que eu não sei, até hoje eu nunca vi um negócio pornográfico. Hoje elas... é abertamente, então fala... eu falo que eu não sei, eu sou... eles pensam que eu sou aquela negrona que sabe tudo, que dança samba rock bem, que faz isso. Entendeu? Mas é isso aí. Olha aqui meu casamento, foi maravilhoso. E a mulher que estava em casa queria ver esse moço, eu nunca ia achar para ela, se bem que eu peguei... porque era marido dela, ela falou: “Você tem foto dele?” Eu falei: “Eu acho que eu tenho no meu coiso de casamento, porque ele foi no meu casamento. Depois eu acho para a senhora”. Ela foi embora, eu falei: “Eu tenho que me arrumar, porque eu vou para uma festa, vou para o museu não sei da onde lá, o Museu da Pessoa e eu tenho que me arrumar e depois eu acho seu marido. E ela casou, ele morreu e ela falou que queria vê-lo. Então é assim, a vida da gente... isso aqui eu fiz um curso no Museu Sacro. Ali tem até... como chama essas múmias? Porque a terra não diluiu. Eu fiz um mês de curso lá. Você conhece o Museu Sacro? Bacana. E então, aquelas pessoas que estão lá... essas aqui são as paredes quando comecei a pintar, esse aqui é um quarto, ele dorme em cima, sobe a escadinha. Estrangeiro, então dorme em cima. Esse aqui foi um aluno que fez, meu cartão. Só que ele pôs de um lado e de outro. (risos) E ele se formou em Designer, hoje ele trabalha na Abrinq. Entendeu? Mas então a gente... isso aqui lá na Noruega, esse homem cozinhava para nós. Fazia uns pratos de macarrão, essas coisas, bem-feitas. A gente pedia para fazer meio brasileiro. Mas então, eu acho que a gente aprende muito. Hoje eu ando, eu corro, eu estou feliz. Você tem dinheiro? Não, dinheiro não faz você feliz. Você tem que ser feliz consigo mesmo, estar por dentro de você feliz. Você tem que sentir bem, qualquer roupa para mim está ótima. Entendeu? Para mim não é a roupa, não é a coisa, já não é mais isso. Então, você tem que saber chegar nesse ponto. Você mesmo falar: “Puxa, eu cheguei, eu sou fulana, não importa” “Mas você vai lá, você vai...” Eu falei: “Não, menina, ixi, eu ando até de coisa lá para... de roupa de mendigo...” “Não, a senhora...” Eu falei: “Não”. Esse aqui é o cartão que eu recebi, eu ganhei um premio na... como é que chama? No shopping. Uma pintura lá que eu fiz. Todo mundo se inscreveu, eu também vou me inscrever. Aí tinha que fazer essa pintura e aí você ganhava um prêmio. Aí ganhei uma... como é que fala... um cheque, mil e seiscentos reais e esse cheque você comprava só no shopping. Aí todo mundo, coitados, queria ganhar, mas alguém ganhou... como é que fala? Eu também e outros ganharam em segundo lugar, ganhou lá do shopping. Esse aqui é o diploma das crianças que a gente fez lá, da capoeira de Itanhaém. Uma amiga que fez para mim. Ficou bom, né, o designer?
P/2 – Ficou bonito.
R – Então ela está ajudando e as crianças estão felizes, porque recebem diploma, recebeu camiseta, então a gente... eu vou... eu dei a minha... como é que chama? Estou dando, assim, minha força para ajudar, ajuda-los a chegar lá, para eles não morrerem na praia, não ficar só na praia lá fazendo o que não querem. Isso aqui eu ganhei lá de Portugal, por isso que ele veio aqui, eu tenho um monte de pano...
P/3 – Mostra ali para câmera.
R – Esse pincel eu ganhei lá da Noruega, toda vez que eu vou lá a menina me dá um monte de pinceis, está vendo? Eu escondo tudo lá, guardo, né? Esse quadro aqui é das alunas que eu estudei. Eu tirei a parte debaixo para trazer, aqui tem os nomes das encrencas, (risos) das meninas. Aquelas madames que os pais traziam até café de manhã naquele jipe, trazia... aí tem as Wolf, as Meneghel, como é que chama?... meninas todas que estão bem na vida, graças a Deus. Aqui é o padre Sales, que dava retiro para nós. Carnaval a gente fazia retiro, tinha que ficar sem conversar, só lendo livros maravilhosos e tinha que confessar. Ia para lá uma palestra, voltava, palestra, e tinha que ficar lendo aqueles livros, São Cristóvão, igreja, bababa, palestra, então a gente bagunçava um pouquinho, mas... esse padre Sales. Essa aqui é a irmã Maria da Conceição Ferreira, aqui é o bispo, esse aqui é o padre Pedro que tinha lá. Esse aqui eu guardei lá, que saiu. Eu estou aqui, está vendo? E aí todo mundo fez quadro, as meninas: “Ordalina, manda fotos dos quadros” “O quadro já está envelhecido, menina.” Mas é isso aí. Então, a vida é rápida, passa rápido. Então você tem que fazer alguma coisa, ver o que você está fazendo para melhorar essa sua vida.
P/3 – E a senhora, que já fez tanta coisa, a senhora tem algum sonho agora?
R – Tenho, sonho... esse aqui eu pintei no shopping, mas é que aqui não dá para aparecer tanto, né? Eu tenho alguns sonhos. Agora que eu peguei essa capoeira, eu tenho o sonho de levar essa bandeira, para conseguir chegar, assim... esses meninos conseguir agora, fazer com que eles consigam enxergar outro mundo. Quer dizer: é minha responsabilidade. Acho que deram uma responsabilidade para mim muito séria, porque agora eu tenho que... esses meninos... eu acho que está nas minhas mãos para eu poder fazer alguma coisa por eles. Então eu acho que eu vou, assim, conseguir estar passando para eles alguma coisa. Vou lá quando tenho tempo, estou assim fazendo alguma coisa no Rio, aqui em São Paulo, para ver se alguém se comove em estar ajudando. Entendeu? Porque é bom você, assim, fazer algo, porque você só leva... isso aqui que eu ganhei, está vendo, lá no shopping. Era para fazer alguma coisa de Diadema, aí eu fiz essa coisa de Diadema.
P/1 – Mas você diz a bandeira qual? Da capoeira, a bandeira de ajudar?
R – É eu estou tipo assim, eu pensei bem: “Vou só levar esses docinhos lá para eles e tudo bem”. Mas eu pensei bem: eu posso, assim, conversar com o João, com o Pedro, com o Rio lá e falar alguma coisa desses meninos. Expandir alguma coisa desses meninos, que estão lá no fundo do mato que, coitados, quando veem um pão com qualquer coisa ficam doidos, comem igual um condenado, porque são meninos que a mãe é, assim, da droga, então eles têm aquela fome, olha eles comendo aqui. É tipo uma casa que eles estão, aí vão tudo para lá e eles comem, eles estão todos de uniforme. Eu fui lá com cem reais e comprei uma camiseta para eles. Uma tinha um buraquinho, uma coisinha, mas consegui comprar. Aí comprei para eles... olha eles aqui, alguns deles aqui. Consegui comprar para eles, ficaram todos felizes com aquela camisinha branca. Foi tudo dado, a gente deu para eles. Essa aqui é a menina que está fazendo o Designer para a gente poder pedir, mas ela vai arrumar direitinho. Está pondo alguma coisa de lá, outra de cá. Aí eu fui no batizado deles, tinha muita gente, muitos mestres. Entendeu? Aí levamos uma calça, eu ia fazer a calça, mas não fiz, mas aí eles... a calça, o pano não é tão bom, mas deu para fazer as calças para eles. Aí eu fiquei pensando assim dia e noite: “Nossa, mas se eu largar, eles vão ficar só nisso, eles não vão ter uma coisa bacana, crescer”. Eles podem crescer sem o mestre, quer dizer, o mestre já veio da pinga, já estava nas... saiu. Então falei: “Pode ser alguma coisa e vai depender também de mim e de outras pessoas”. Então, para o Rio, quando eu fui, falei com essa mulher agora, do Rio. Ela falou: “Ordalina, vou arrumar, tem uma mulher que quer dar uma...” Porque tem gente que quer dar alguma coisa e não sabe para quem dar. Por exemplo: o moço que nos ajudava era da França. Então tem pessoas... a pessoa: “Eu quero dar um dinheiro, mas para quem? Então você arruma”. Então eu arrumava gente para dar, outro dava três milhões, outro dava dois. “Eu quero doar esse dinheiro, porque eu tenho para doar”. Aí ela falou: “Ordalina, vou arrumar um pessoal que é para você, ela quer dar”. Eu falei: “Eu quero comprar um terreno para essas crianças fazerem uma coisa bem comprida assim, que é para... porque lá o quartinho era um quarto de dormir, então é assim, mais ou menos e é baixo. Então vamos comprar um terreno lá, é quinze mil, dez mil, então vamos comprar alguma coisa e pode fazer alguma coisa para eles. Está bom?” Aí ela pegou a bandeira: “Eu tenho umas mulheres aqui que até querem dar um dinheiro”. Falei: “Nós vamos abrir uma conta no nome da firma. Abre uma conta, porque dinheiro é difícil você lidar. Então, abre uma conta com CNPJ da firma, não sei se dá, aí põe nessa conta. Aí compra. Já tem um terreno ali, nesse lugar aqui ele pode até estar fazendo um local para eles”. Você viu eles tudo de branquinho? Aí, na hora de comer é o problema, eu mandei fazer um bolo, veio de São Paulo o bolo, aí levei um saco assim de sapato, já deixei tudo arrumado aqui e roupa. Aí o moço, coitado, dez horas da noite chegou lá quase. Falei: “Nossa, o bolo vai chegar depois”. Mas ele chegou ainda estava terminando, esse negócio de falar, papapa, dar diploma. Aí eu peguei, ele chegou, eu falei: “Graças a Deus, meu Deus, o bolo”. Aí chegou o bolo com o desenho do diploma, eles ficaram todos encantados, aquele papel do bolo. Aí eles comeram aquele bolo, todos felizes. Eu levei... como é que chama esse... esse vermelho... salsicha, aí eles comem com pão. A mulher me parte a salsicha em quatro, eu falei: “Nossa dona, põe já inteiro”. (risos) Se acabar, acabou. Aí eles comem, querem mais. E aí eles ficaram felizes. Esse aqui é o mestre que estava bebendo, parou de beber, agora está dando aula, então está ajudando a várias pessoas. Essa é uma salinha deles, que eles ficam, lá. E aí a gente vai falando para a turma e a turma vai assim... esse é um quadro meu. O menino falou assim: “Ordalina, você não entra nesse negócio de...” Essas aqui são as meninas do colégio, a roupona lá embaixo. Olha eu lá, catorze, quinze anos, férias. Então falei assim: “Você não entra nesse negócio de..." Como chama aquele negócio que é quadrado, assim, sem ser o... o que tem a mais aqui no celular, eu falei: “Não, eu não entro quase, nem sei entrar muito.”
P/3 – Instagram, Facebook?
R – Instagram é estrago. (risos) Instagram, você adivinhou. Aí falei: “Não.” Ontem eu entrei. Essa aqui foi uma festa que deram para nós, só de crepe. Entendeu? E aqui é o colégio meu, que eu estudei. Nesse meio aqui tinha pavões e a menina falou: “Ordalina, lembra que a gente estava lá e o pavão beliscava?” E a gente...
P/3 – A câmera, você está conseguindo pegar?
Estou.
R – Aí o colégio, olha lá, está vendo? Eu dormia lá em cima, aí eu via minha mãe descer lá embaixo, com cachorro, meia noite. Esse colégio existe até hoje. Esse colégio tem até hoje. Esse aqui é os meninos recebendo diplominha. Esse meu colégio tem até hoje e ele é um colégio...
P/2 – Ainda é colégio?
R – Virou faculdade, o colégio agora é faculdade. Entendeu? Estuda... a turma, essa aqui é a turma do meu colégio, da minha idade, está vendo? A turma que vai estar no... essa aqui é lá na festinha, a gente fez quinta feira, para não vir muita gente, veio só os mestres e contramestres de algum lugar. Mas eu quero levar essa bandeira. Eu pensei bem e falei: “Não, mas estão pondo na minha mão, eu quero levar, assim, conseguir que eles...”. Esse aqui os ensina. Bebia, fumava, agora já parou e ensina. Eu falei que quero levar eles para, assim, conseguir, porque tem uns dois ou três, que a mãe é bem drogada. Falei: “Vamos conseguir chegar com esses meninos, para que eles possam ter um diploma e ter alguma coisa na vida, porque senão eles vão fazer aquele primário e parar, né? Eles não vão além. Porque a gente vê todos na droga, todos começando a vender e trabalhar na droga. Por exemplo: no Apurá, lá no campo de aviação, é só menino... por exemplo: vou na casa de um menino que a droga está ali. Os meninos já começam levar. Então, não tem como eles saírem, assim... “Não, ele pode estudar. Ele está na droga, ele pode vender, mas ele pode ir na igreja”. Não, eles não impedem de ir em todo lugar, os que põem eles para vender. “Não eles podem estudar, podem ir na igreja, mas ele trabalha para a gente”, você entendeu? Então é um pouco difícil. Então ele tem outra consciência, outra sabedoria, ele não vai, né? A gente ganhou um tambor e aí a gente vai indo, vamos ver se vai dar tudo certo, para chegar com esses meninos. Então a minha história é mais uma história igual a de todo mundo. É uma história que a gente gostaria de chegar, gostaria que todo mundo conseguisse ter uma vida maravilhosa, ser uma cabeleireira. Por exemplo: agora eu vejo as meninas que eu ensinei, todas cabeleireiras por aí. Então: “Mas a senhora era brava naquele tempo”. Eu falava: “Então, preguiçosas vocês. Quando mandava trançar, não. Se vinha um cabelinho assim, ninguém queria trançar. Tem que trançar para que vocês aprendam”. Chega lá hoje, elas têm salão, faz faculdade, estão todas bonitas. Então, a vida através de brigas, então se escondiam: “Não quero fazes isso. Eu não quero fazer o cabelo daquele homem”. Então eu fazia elas fazerem. Entendeu? Então hoje elas falam: “Puxa que lá vida, eu consegui chegar. Se não fosse a senhora, eu não conseguiria, hoje eu consegui”. Então, a gente fica feliz e fala para elas ensinarem mais uma, fazer com mais uma pessoa. Entendeu?
P/2 – É lá na Fábrica isso, né?
R – É. Os meninos. Tem que ir lá, para ver esses meninos pintarem lá.
P/1 – Gratidão, viu, Ordalina.
R – A gente... hoje você não imagina, eu hoje, eu falo: “Puxa que lá vida, eu...”. Olha o quartinho deles lá, que eles estão aprendendo. Eu penso assim: “Puxa”. Eu sinto bem, de todo lugar que eu estou, eu estou feliz. Porque a felicidade está dentro de você, porque se você passar a felicidade tua para outros chegarem, tem gente que fica bravo: “Mas por que você está ajudando pessoas? Larga mão”. Eu falo: “Não, a gente tem que estar junto com todo mundo”. Essa aqui é a mulher lá da Bienal. Ela que eu mandei, porque ela é ativa, ela conhece bastante gente que tem... esse aqui é um filosofo lá, escritor na Bienal, eu comprei o livro dele para... eu gosto de Filosofia. Eu fui... a Palace, você conhece a Palace? É uma filosofia que ensina para madame como viver. Então vão aquelas mulheres chiquérrimas, tem palestras com pessoas da França. Essa aqui é minha neta, que está fazendo Direito. Falo: “Tem que estudar direito”. (risos) A minha neta mora comigo. Quer dizer: eu tenho três netos morando comigo. Essa aqui é minha festa de cinquenta anos.
P/2 – Qual?
R – Cinquenta anos de trabalhos social, racial. Foi o menino que fez. Ele fala eu de mãe: “Mãe, você tem que arrumar, eu quero ir na Globo, mãe” Eu falo: “Você vai na Globo.” Aí quando nós fomos para a Globo, ele foi, a turma já quase dando uns tapas nele, porque ele chegou atrasado. Eu falei... todo dia ele estava lá em casa. “O que o negro fazia, mãe? Da onde vem o negro?” “Veio da Bahia”. É ele, esse menino. Andava todo assim e hoje você o olha, com aquele sapatinho todo engraxado, todo arrumado. Ele é louco para fazer uma festa assim para você, mas eu falei... eu pus o nome de mequetrefe, mequetrefe é coisa ruim, aí então ele mudou. Eu falei: “Por que você não vai estudar? É que eu falei com o Guilherme Mina, falei não sei com quem, eles não vão falar de acordo com você, paralelo, você tem que estudar. Você quer ir na Globo, então vamos aprender ler”. Aí ele vinha para eu escrever uma música, aí ele escreveu uma música: “Negro, negro não tinha trabalho”. Então ele canta, essa música foi para a Globo, e eu falei: “Está vendo, você se esforçou, agora você tem que aprender a estudar, você tem que estudar para chegar lá. Para falar paralelo a essa turma, você estuda.” Aí ele foi para estudo, mas ele fez a festa, eu acreditei nele, todo mundo falou: “Ordalina, pelo amor de Deus, não vai nele não, essa festa". Eu falei: “Não, eu vou acreditar nele”. Aí todo mundo: “Não, você não vai acreditar nesse, esse aí é mais um”. Eu acreditei nele. Olha eu, recebi o título de diademense.
P/1 – Título de quê?
P/2 – Cidadã.
R – Cidadã diademense.
P/1 - Como que foi isso, que você recebeu o título? Para fechar, você não contou isso aqui.
R – O título, ele escolhe uma pessoa que faz alguma coisa pela cidade, uma pessoa contemplada. Então, o prefeito, esse que era vice da Câmara, foi me convidar: “Você vai receber um título tal dia, lá na Câmara”. Aí fiquei na Câmara de Diadema, lá para receber e teve várias falas e eu também falei e teve... porque precisa assinar, todos os vereadores precisam assinar, se eles estão de acordo que eu seja representante desse título. Aí a turma já queria saber: “Ordalina, você vai ganhar, você vai ganhar o quê?” (risos) Eu falei: “Apenas estou recebendo um título. Isso é muito bom para a cidade, eu sou representante, assim, da cidade. Quer dizer, acharam que eu represento”. Então, recebi esse título. O Marcos Michels que era representante na Câmara municipal. Aí teve esse moço que cantou, alguém cantou, alguém falou, teve todo aquele... aí teve um coquetelzinho e foi muito bacana. Quer dizer: nem todo mundo recebe um título. Eu recebi esse título dia vinte e cinco de outubro de dois mil e dezoito. Esse aqui sou eu nas Filipinas, eu fui para a Ásia. aí lá é cheio de água. (risos)
P/3 – Foi fazer o que na Ásia?
R – Eu fui... a gente ia abrir uma escola de artes, de tudo. Porque lá não tem nada. Filipinas, bem pobre, cinco vezes mais pobre que aqui. Aquele sol quente ________ [02:45:22]. Todo lugar que você vai - eu ia trazer a agenda da Ásia - é água, as casas dentro da água e aí você... sol, aí todo lugar tinha um menino, agora ele manda para mim: “Oi, Ordalina, como é que você está?” Agora ele está maiorzinho. Todo lugar a mãe dele mandava ele me levar com guarda chuva assim, porque é muito sol. Mas eu fui para a Indonésia primeiro, depois Filipinas, Camboja, a gente foi para Dubai por último e, dentro dessas cidades, Indonésia, Filipinas, a gente foi em outras cidades, todas. Por isso que eu pus lá na minha agenda, mas eu não achei essa agenda hoje. Então a gente foi conhecer vários lugares, vários tipos de comida. Isso aqui é eu pintando, eu pinto também em muro, quando tem uma festa do rap, eu estou lá, tchã, (risos) pintando. Eu olho do meu lado... esse aqui a gente pintou esse salão, favela. Pintou todas as paredes com tudo. Aqui é o salão onde os meninos comem e os meninos... a gente faz a festinha aí. Então eu pintei, começamos pela favela, que é do lado de cá, mato, favela, casa, bichos, então vai indo assim, tem a favela. Prédios. Então, essa menina que veio da Noruega que ficou comigo.
P/2 – Onde foi essa pintura?
R – Essa é no Beija Flor, esse aqui é meu ateliê lá no Beija Flor. As meninas que pintavam. Isso aqui é na minha casa. De vez em quando eles me intimam para eu fazer comida, diz que cozinho bem, só arroz e feijão e nada. Diz ser minha filha. Eu tenho um monte de filhos, né?
P/3 – Quem é essa daí?
R – É uma professora também, mas ela fala que é minha filha.
P/3 – A senhora a conheceu onde?
R – Não, ela ficava comigo também no Beija Flor, ela ficou no Amazonas, deu aula lá.
P/1 – Essas viagens todas elas voltadas para a arte ou para trabalho educacional? É que isso eu não consegui entender muito bem.
R – Para arte, né? Não, voltada para arte educacional. Quer dizer: arte e educação.
P/1 – Sempre estiveram juntas?
R – É, sempre estiveram juntas. Esse aqui são os índios. Antes de chegar lá, a gente leva as crianças, antes de chegar nos índios tem essa cachoeira, Rio Branco.
P/1 – Ordalina, a gente vai precisar fechar.
R – Então fechar. Esse aqui é o Gui, um menino que desde pequenininho me acompanhava fazer comida para os índios.
P/1 – É porque vai ficar meio difícil de conseguir ver, mesmo, na câmera. Por isso que eu estou até querendo perguntar um pouco mais porque senão a pessoa vai assistir...
R – E esse aqui é o... eu sou da Febem, eu sou madrinha deles também, da Fundação Casa. Eu tenho... a biblioteca é meu nome, Ordalina.
P/3 – Ah é?
R – Aí eu vou lá de vez em quando fazer um desenho com eles, fazer uma palestra para eles, conversar com eles. São todos meninos da Vila, né? E alguns de fora. Aí eu vou lá. Isso aqui é eu na Noruega, andando de barquinho. (risos) Isso aqui é lá na montanha. A menina que pintou comigo, a norueguesa, morou na minha casa oito meses. Ela fala bem português. Então, tem muita coisa que a gente já passou. Tenho nome numa escola, tem meu nome num cursinho, Ordalina. Cursinho com meu nome.
P/1 – Nossa.
R – É o cursinho. Aí me chamaram, eu falei alguma coisa. “Nós escolhemos seu nome para ser o nome do cursinho.”
P/1 – Por quê? Quem escolheu isso?
R- Em Diadema, uma escola, o pessoal falava: “Que nome a gente vai pôr?” “Vamos pôr o nome da Ordalina”. Então ficou meu nome.
P/1 – Mas por que eles resolveram te homenagear?
R – Eles tinham que... é porque alguns deles foram meus alunos e alguns deles também eu já tinha conhecido e eles resolveram. Eu também não fiquei muito perguntando, mas resolveram. Alguns me conheciam: “Vamos homenageá-la”. Homenagear uma pessoa, fazer para uma pessoa: “Então vamos escolhê-la”. E essa biblioteca dessa Febem foram os meninos também, porque alguns me conheciam na Vila. Diziam até ser meu parente, minha tia. “A senhora é tia de fulano? Está preso de novo” Falei: “Não. Eu sou tia, é eu sou tia”. Então vamos escolher uma pessoa, alguém para o nome da biblioteca, aí eles puseram meu nome. Aí eu fui lá, fez uma festa para eles lá, tinha um coquetel, mas só alguns meninos participaram, alguns ficaram na grade. Entendeu? Aí eles cantaram. Entendeu? Fez um palquinho. Foi legal, passei um dia lá. Agora o menino pediu para eu ir para...
P/1 – São meninos que eram alunos seus?
R – Também, alguns. Alguns dizem que sou até parente deles. Conhecida da mãe, é minha tia. Tia de todo mundo eu era, mas alguns dizem que eu sou. O moço acreditou: “É sua tia, né?” “É teu sobrinho?” Falei: “É, tudo bem”. Então é assim, então você tem que levar. Aí eu vou, agora, pintar com eles. Esses lençóis aqui que você viu, é lençol que eles mijam. Aí, como ficou manchado, a gente aproveitou aquela mancha e fez a pintura. Entendeu? A gente aproveita tudo. Falei: “Está vendo, esses aí já vamos aproveitar” - cadê o lençol? – “para fazer uma arte”. Então, essas artes são que eles... eu falo para eles: “Vocês têm que aproveitar tudo. Aproveitar tudo quanto é coisa para você fazer uma arte, você não pode jogar as coisas que estão na rua. Então: ‘Não tenho tela’. Vamos buscar as telas na rua. A gente pinta na madeira, eu pinto na madeirinha, madeirona que está lá”. Porque eles compram, geralmente, guarda roupa, depois joga fora, né? Passou um ano, as Casas Bahia, está lá fora. Então você pega aquelas gavetas, aqueles negócios, então dá para você fazer uma arte. Falei: “Gente, não precisa se preocupar com a arte, a arte está aí pertinho de vocês, é só olhar, você já faz essa arte”.
P/1 – Ordalina, gostaria realmente de te agradecer, acabou a bateria da câmera até, se não vai precisar colocar outra.
P/2 - Acabou?
R – Não, mas está bom, meninos, foi ótimo.
P/1 – Gratidão, mesmo. Deus te abençoe.
P/2 – Obrigada, dona Ordalina, de compartilhar suas histórias!
R – Imagina! História tem muitas, você passa o dia inteiro!
P/2 – Tem muitas, né?
P/1 – Acho que passa mais de um dia.
P/2 – É. (risos)
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