Projeto Conte Sua História
Depoimento de Edson Leite – Parte I
Entevistado por Carol Margiotti e Wini Calaça
São Paulo, 23/04/19
PCSH-HV 767 (Parte I) _ rev.
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Selma Paiva
Revisado/Editado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 – Edson, bom dia!
R – Bom dia!
P/1 – Muito obrigada por ter vindo aqui hoje!
R – Obrigada eu, por vocês me convidarem!
P/1 – E, para começar, seu nome completo.
R – Edson Camilo Leite.
P/1 – O local e a data do seu nascimento.
R – Eu nasci no dia 28 de dezembro de 1983, na Vila Matilde, Zona Leste de São Paulo.
P/1 – E você sabe por que você foi batizado com esse nome?
R – Então, na real, é uma briga entre meu pai e minha mãe. Meu pai saiu para me registrar, sozinho. Aí, minha mãe é (Ivanci?) [1:07] Rosana de Oliveira, meu pai é Valmir Camilo Leite. Minha mãe estava no hospital, ele saiu para me registrar. Colocou só o nome dele. Aí ficou Edson Camilo Leite. Então, não tem o nome da minha mãe. Só tem o nome do meu pai. (risos). Aí, ele me registrou sozinho, eu fiquei sem o Oliveira.
P/1 – E você sabe qual foi a reação da sua mãe?
R – Minha mãe, o que ela conta, na real, é que não deu tempo. Como já tinha registrado, naquela altura, para trocar o nome, para fazer... Como ele foi registrar, ele registrou... Foi uma briga. Foi algo que ele foi fazer e fez sozinho. Aí eu fiquei com o nome dele, só. (risos) É isso. Mas eu sou bem mais Oliveira, de vivência, do que Leite, de convivência. Porque convivi com meu pai pouco tempo.
P/1 – E você sabe por que Edson?
R – Na real, não, assim. Mas era uma altura dos Edsons, ali. 1980 você ainda tinha a era meio Pelé, ali, fora, tipo saindo, não é? Então era a altura, meio ali. Não tem mais Edson. A partir da década de 1990 a 2000 você não tem mais Edsons. Não tem criança que se chama Edson. Você tem jogadores de futebol que chamam Edson, atores que chamam Edson e aí, sei lá, você não vai buscar. E você tinha os inventores, lá atrás. Thomas Edson, não é? Aí, você vai pegar outras coisas. 2000 - 1990 e 2000 - somem os nomes Edsons e começam a aparecer os Enzos. (risos)
P/1 – E os seus pais contavam para você sobre o seu nascimento? Como foi o dia?
R – Minha mãe... Assim... Bem lá atrás, eu lembro dela contar que estava com meu pai, eles foram na casa... Porque meu pai era adotado e aí não conhecia os pais. E a minha mãe foi com o meu pai conhecer os pais dele, biológicos, na Zona Leste, na Vila Matilde. E, na casa, minha mãe sentiu as contrações e eu nasci no hospital muito próximo - ali, na Vila Matilde – à estação. Por isso que eu nasci na Zona Leste. Porque, nessa altura, eu morava em Osasco, que era onde meu pai e minha mãe moravam. A gente foi conhecer e então eu nasci lá na Vila Matilde e esse hospital, inclusive, ainda existe e eu estive nele, sei lá, nos últimos três anos, umas quatro vezes, por situações diferentes: por acidente de carro ou por uma cirurgia, alguma coisa, no hospital onde eu nasci. Muito louco isso! Então, eu tenho uma ligação ali um pouco na Leste, apesar de que nasci, só, na Zona Leste. Apesar de ter sido criado em Osasco e depois ter ido para a Zona Sul de São Paulo. Então, eu já era meio de estar em todos os lugares da cidade.
P/1 – E além do fato do seu nascimento nesse dia, tem a história de como foi conhecer os pais dos seus pais?
R – Eu lembro, de eu lembrar muito vagamente, de receber... Você lembra aqueles ratinhos que a gente tinha quando era pequeno, de rodinha? Que você puxava e ele ia. De ganhar esse presente da mãe do meu pai, biológica. Mas eu não tenho lembranças, não é? E a história dos Leite vieram dos meus avós que adotaram meu pai. Então, meu avô era José Leite e minha avó, Tereza Leite. E isso é muito louco. Assim... Essa ligação com meus avós paternos que, para mim, sempre estiveram juntos, mais do que com meu pai, precisamente, assim. Então, eu tenho essa lembrança, desses pais biológicos, só, de ter ganhado um brinquedo dos pais biológicos do meu pai. Não tenho outras, assim. E de ter nascido lá, porque minha mãe falou. Tenho essa lembrança. Então, eu acho que depois de um tempo que eu ganhei esse presente eu não sei o que aconteceu. Essa parte eu não acessei na minha memória e nunca perguntei, assim, para a minha mãe. Foi uma curiosidade que eu não tive.
P/1 – E sobre a história do seu pai, você sabe como foi todo esse processo do nascimento dele, da adoção? Se você puder contar o que você sabe sobre a história do seu pai.
R – Então... Eu não sei muita coisa, assim. Eu sei que, nesse momento ali, essa pessoa, que não era mãe biológica do meu pai, minha avó, não podia ter filhos. Então, além do meu pai adotado, ela não teve outros filhos, só o meu pai. E aí eu não sei qual era a ligação dela exatamente com a mãe biológica do meu pai. Só sei que, quando meu pai nasceu, ela deu meu pai para essa senhora, para a senhora que é minha avó, mesmo. E aí, minha avó criou o meu pai. Então, nunca tive essa curiosidade, essa ânsia de saber o que aconteceu porque, para mim, era tudo muito normal. Sei lá! Mesmo que fosse adotado, para mim era muito normal. Então, não tive essa ânsia. Cresci sem ter essa ânsia. De adulto que talvez há curiosidade, mas nunca parei para perguntar para o meu pai: “Pai, o que aconteceu?”. Mas posso fazer essa pergunta. Legal.
P/1 – E sobre a história da sua mãe, o que você sabe sobre ela? Como ela nasceu?
R – Minha mãe nasceu em Osasco. Minha família vem de uma família indígena. Grande parte do terreno onde se vive até hoje, em Osasco, era da minha família. Só que àquela altura você não tinha instrução para manter os lugares. Aí, as outras pessoas foram tomando a terra, não é? Então, hoje, o que era gigantesco é um pedaço de terra, que também não é pequeno, que foi consumido pela especulação imobiliária, por filhos de vereadores, de prefeitos, tudo, que tinham a inteligência intelectual para lidar com papéis. Então, foram tomando terra da minha família. Minha mãe é a mais nova de dez irmãos. São duas mulheres: ela e minha tia. Todos os homens morreram, todos eles, ficaram apenas as duas. Então, minha mãe é a mais nova. Minha mãe conta história diferente: que minha tia veio primeiro. Como era a menina do meu avô, meu avô era um militar de guerra também e minha avó uma índia, que os dois meio que se juntaram. E aí, como minha mãe era mais nova alguns anos em relação à minha tia, minha tia veio primeiro e meu avô cuidava muito da minha tia, pelo fato de ter muitos homens. Mas ela era meio que um menino, assim, porque eram todos homens. Então ela era um menino, jogava bola, soltava pipa, ia comprar cigarro, fumava o cigarro - ela tinha seis anos - porque fumava escondido. Juntava todo mundo. Ela conta - minha tia contando - que todo mundo se juntava para assistir futebol e jogava umas bitucas de cigarro, e ela ia pegando para fumar, sabe? Porque ela cresceu no meio de um monte de homens. Minha mãe, quando já vem, já vem diferente, mais dura num processo, e a gente tinha perdido... Perdeu o pai. Minha mãe só veio... Minha tia conta que ela tinha que levar o café, meu avô chegava bêbado e ela tinha que levar o café e um cigarro, para ele, na cama. E aí, minha mãe era mais nova e só observava essas coisas. Então, minha mãe veio mais dura, no processo. Ela é muito dura, por ver outras coisas, dentro disso. Minha mãe ficou grávida aos dezoito anos, quando conheceu meu pai e aí eu nasci e ela tinha dezenove já. E aí foi morar com meu pai, na casa da minha avó paterna, no fundo, assim. Era um terreno, em Osasco mesmo, onde a gente morava no fundo, assim. Eu lembro até hoje da casa. E tenho fotos da casa, inclusive no aniversário de um ano. Então, a casa era no fundo. Era um quarto, um corredor, um banheiro e uma cozinha grande, com aquele piso vermelho, que você tinha que passar com o joelho no chão, a cera. Mas minha mãe não ficou muito tempo com meu pai, não é? Ela volta para a casa da minha avó e com a minha tia. Então, eu fui criado com minha mãe, minha avó e minha tia. Foram três mulheres dentro desse processo. Eu cresci com três mulheres. Eu era o moleque de recado quando elas brigavam: “Vai lá e fala para sua tia que isso, isso e aquilo”. “Agora, fala para sua avó que não sei o quê, não sei o quê lá”. “Mas eu não quero falar com ela”. Ficava assim. Minha mãe começou a trabalhar muito cedo também. Então, eu a via pouco, sempre vi pouco a minha mãe. Porque aí era a minha avó quem ficava em casa e cuidava de mim uma parte do dia, e eu ia para a escola a outra parte. Então, para minha mãe, eu tinha que estudar muito cedo, ela pagava uma escola, depois não conseguia pagar, foi para outra; depois pagava um transporte para eu ir, depois não conseguiu pagar, eu ia de ônibus. Então, comecei a andar de ônibus, sei lá, com sete, oito anos de idade, para ir para a escola. Eu ia de onde a gente morava até o centro de Osasco. Eu passei por algumas escolas e depois era sempre esse processo de ser muito independente, sabe? De não vê-las muito. Nossa casa pingava. Puts, eu lembro que dormia na cama eu e minha mãe, minha tia dormia no beliche, em cima, e minha avó em outra cama. Era um quarto só. E tinha uma sala e uma cozinha. Era isso. Daí, tinha uma outra casa na esquerda, onde morava o meu tio; uma outra casa, no fundo, onde morava meu outro tio; uma outra casa na frente, em que morava outro tio. Então, era uma aldeia, se você for ver, mesmo. E é muito louco isso! Se eu pensar, era mesmo uma aldeia, porque tinha todo mundo dentro do mesmo quintal, primos e não sei o quê. E era uma casa diferente. Porque tinha muita fruta, muita coisa. A gente não tinha jogos. A gente tinha uma TV muito ruim até, para a gente, e todos os amigos da rua queriam estar lá com a gente, mesmo. Eu lembro da gente jogar, sei lá, Jogo da Vida, Interpol, Banco Imobiliário, na casa dos caras. Mas queriam estar todos lá, com a gente, porque eles podiam subir na árvore, podiam não sei o quê, tinha o poço. E até hoje é assim. Então, foi uma criação muito - até os dez anos de idade – família, conhecido, e conheci a droga, sei lá, do meu tio fumar maconha no fundo do quintal. Mas a gente não sabia o que era. Era um negócio lá e é isso, sabe? Da minha mãe ficar brava. Então, minha mãe era essa mulher meio que estava mais fora do que dentro de casa e era rígida no processo. Então, é ali, nessa criação, na separação do meu pai, que eu lembre, era muito importante para ela, sei lá, as festas de aniversário, tá ligada? Tenho fotos de quase todos os aniversários meus, porque aí juntava todo mundo. Para ela era importante. Tinha que ter bolo, não sei o quê. Então, aquilo era muito importante, disso eu lembro bastante, também. Na verdade, para as três, não é? Para a minha avó, para a minha tia e para a minha mãe. E até hoje tem essa cultura de ter festas grandes, assim. Minha tia sempre faz festas grandes. E é isso dela, naquele momento da vida.
P/1 – Posso fazer mais perguntas sobre seus pais?
R – Claro!
P/1 – Primeiro, eu queria um exercício: que você os descrevesse fisicamente, personalidade...
R – Meu pai é meu amigo hoje. Meu padrasto, que depois é um recorte, outro é meu pai. Mas meu pai, hoje, é mais meu parceiro, meu amigo, eu vou na casa dele, passo o final de semana, e tal. Ele mora no interior. É um cara que foi preso. É uma história ainda que eu não sei muito bem, nunca tive curiosidade de perguntar, mas eu lembro, sei lá, de levar carrinho que ele tinha feito na prisão, que era na mesma rua, assim, sabe? Fui visitá-lo algumas vezes, tenho uns
disso. Não é uma coisa muito específica. Minha mãe nunca falou disso. Tem algumas histórias que eu peguei quando era pequeno, que era um assalto, que não sei o quê, bababá, mas eu não lembro. Depois disso, eu lembro do meu avô e da minha avó indo me buscar e passar com eles, ficava o final de semana, não tinha meu pai. Depois, nessa casa em que meu pai viveu com minha mãe, tinha um outro cômodo, em que meu pai morava. Depois que saiu. Aí eu ficava alguns finais de semana ou períodos de férias da escola, com ele. Depois ele foi morar no interior, onde ele mora até hoje, que é uma cidade chamada Conchas, no interior de São Paulo. E aí é um cara, hoje, sereno, assim. Entendo que, “meu”, o que eu conheci dele, da história, e que eu fui vendo sempre, era isso: a casa de passar férias. Então, um cara branco, de cabelo
, que tem uma foto, inclusive, no livro, dele, assim, tipo me batizando. E sereno, tranquilo, sabe? Que está disposto a fazer qualquer coisa e que não liga para dinheiro, não está nem aí com nada, sei lá, teve uma casa, vendeu a casa, vendeu o carro, mas vive da maneira que ele quer viver. Então, é isso: um cara sereno e tranquilo, que é meu amigo, assim. Eu chamo de pai e é meu amigo. É um parceiro, mesmo, assim. E, na verdade, eu sempre costumo dizer que ele é o meu maior fã, de tudo que eu faço. Então, é isso. Bacana. Teve uma vez que meu pai me mandou uma mensagem, um áudio, falando assim: “Você é para mim o que eu acho que eu deveria ter sido para você”. E isso foi muito louco! Porque aí ele falou assim: “Eu tenho você como referência, que eu acho que eu deveria ter sido essa para você. E você é o que eu acho que eu deveria ter sido para você”. Isso é importante.
P/1 – E o que você respondeu para ele?
R – Então... Como é que você fala para o seu pai isso? Não sei, não tive resposta. Ali foi uma mensagem, um áudio. Eu falei: “Não, o que é isso? Para mim você tem a importância e ocupa o lugar certo, nos momentos certos”. E ele respeita muito isso. Muito louco! E a gente, todas as férias, as escapadas, eu vou lá, fico lá, porque é um outro processo. Um processo de trocar ideia, descobrir coisas juntos, de falar. E hoje você fala livremente de tudo, não é? São adultos trocando ideia. Não é um adulto e uma criança. Então, você fala do que você quiser. Minha mãe é, acho, a busca da perfeição em tudo que ela faz, assim, tá ligada? Então, ela busca que as coisas sejam perfeitas. Eu lembro dela sair, da gente sair de Osasco, porque ela queria ser independente, não queria estar com minha avó, com minha tia, apesar de ser só nós ali. Quando ela conhece meu padrasto, eu tinha sete anos. Sete para oito anos. Ela está com meu padrasto há trinta, já. E aí, ele começa a ir na casa da minha avó e tudo e eu lembro de um episódio muito importante, muito marcante para mim, que foi: eu tenho uma apendicite, uma dor muito, muito forte - apendicite é uma dor muito forte - e aí era o final do ano, estava entre o Natal e Ano Novo e então aquelas coisas da família estar meio preparada para fazer festa. Minha mãe trabalhava no hospital, no Faturamento, uma mulher que sempre foi trampando nessa parte. Primeiro ela trabalhou em loja, não sei o quê, depois foi para a parte de hospital e nunca mais saiu. Então, ela trabalhava no Hospital das Damas, em Osasco, depois ela foi trabalhar no Montreal, que acho que não existe mais, aí meu convênio estava em carência e ela conhecia toda a rede de médicos. Eu com uma dor muito forte e elas achavam que era frescura: “Vocês comeram muito não sei o quê, não sei o quê”. Só que aí eu comecei a vomitar muito. O meu padrasto foi me levar para a casa de uma prima da minha mãe e com muita dor, não é? Aí, meu padrasto foi me levar para o hospital. Só que, no hospital, meu convênio estava em carência nessa altura e não podia operar. E o médico falou: “Isso aqui é um apêndice, a gente tem que operar agora, urgente. A gente vai tentar interná-lo, mesmo com o convênio em carência, a gente vai tentar internar. Se passar na recepção, a gente vai”. Não passou, não é? Na recepção, ele não conseguiu internar. Eu fui parar no Hospital Regional Sul. É um hospital público de Osasco, meu padrasto me levando e aí eu estava com muita dor, é uma dor que eu acho que eu senti... E olha que eu já senti várias dores, assim, na vida... E aí minha mãe fez um escândalo no hospital para ser atendido. Estava muito cheio. E meu padrasto ficou comigo. Eu lembro desse cara sentado comigo, entre Natal e Ano Novo, e eu lembro muito porque eu fiquei quatro dias internado. Era uma cirurgia que __________ [17:55]. O apêndice, hoje em dia, é uma cirurgia muito comum, você faz a laser. Antes era um palmo de cicatriz. Mas eu era uma criança de sete anos, ali. Então, eu fiquei um tempo e eu lembro dessa imagem desse cara sentado do meu lado e de outra criança que teve uma pneumonia, de outra que tinha caído de uma laje, sabe? Várias coisas. E esse cara sentado do meu lado. E ali acho que começa a admiração que eu tenho por esse cara, de estar ali. Não tem nada a ver com o que a gente estava... E eu não sabia. E aí começa um ciclo muito diferente na minha vida, de ter uma pessoa como referência: “Puts, esse cara aqui é importante”. Ali, começa a história com o meu padrasto. E com a minha mãe: “Não, precisa resolver”. E ela quase grudou o médico no pescoço, para que aquilo acontecesse. Aí saí dali, e sempre essa mulher querendo o melhor. Então, o melhor, para ela, seria sair de casa. A minha mãe ganhou um apartamento na Zona Sul de São Paulo, no Jardim São Luís. A primeira vez que eu fui visitar, eu tinha nove anos. Não queria sair de Osasco, nunca quis. Demorei quase um ano para sair da minha tia, para ir morar com a minha mãe, porque nesse processo das duas estarem juntas, minha tia pegou esses três cômodos, arrumou lá o que pingava para caramba. A gente ia colocar panela, pingava tudo a casa. Aí, dava uma raiva, porque quem ia buscar as coisas? A gente. Panela, tupperware, não sei o quê: “Vai pegar lá que está pingando aqui, está pingando, está pingando, não sei o quê, não sei o quê”. Começava a chover, pingava. E aí isso veio muito com a minha tia, de resolver esses problemas, de não ter… E da minha mãe, das coisas serem muito certas, muito perfeitas, não é? Ela construiu em cima, tinha um quarto para mim, ela construiu um outro quarto para minha mãe, construiu um outro banheiro, foi fazendo coisas que não tinha e aí meus tios foram morrendo – os que estavam lá – mesmo, os homens da minha família, que são meus tios. Foi muito louco, foi do mais velho para o mais novo, assim, morrendo, e causas não naturais: acidente, briga. Puts, coisas muito malucas, assim. Foram mortes muito estranhas. E as duas ali, resistindo. Quando minha mãe muda para a Zona Sul de São Paulo, que ela ganhou apartamento do Cdhu, no Jardim São Luís, lá, aos sete, oito anos, em Osasco, minha tia sempre fazia festas. Ela organizava os aniversários dela. Eu conheci um disco dos
lá. Ouvia
, eram as duas músicas que eu ouvia. O que é isso? Isso era muito louco. Aquilo tocava de um jeito... E aí eu ganhei o disco do amigo da minha tia, que era DJ. Falou: “Está ouvindo aí, fica para você”. E aí, quando minha mãe foi morar na Zona Sul de São Paulo, no Jardim São Luís, eu falei: “Caraca, é o lugar do qual os caras sempre falam”. Tipo Parque Santo Antônio. Os caras falam na música. Tem uma avenida que chama Fim de Semana. Falava: “Eu moro lá”. E aí, essa resistência foi meio que quebrando, de morar na Zona Sul. E minha mãe falou que tinha que sair. Ela foi morar com meu padrasto, não tinha nada, ela que ia reformar o apartamento antes de ir, então colocou um piso de madeira, bacana, só que a gente não tinha móveis. Eu dormi num colchão durante algum tempo, só o colchão. Não tinha TV, meu avô me deu uma TV preto e branco. Eu lembro de assistir, sei lá, Corinthians e Palmeiras, na final do Paulista de 1997, se não me engano, 1996, e tinha hora que tinha que se esforçar para saber qual era o time, tá ligada? (risos) Porque a televisão era preto e branco, e aí era fogo. Ela ficava no meu quarto. Então, foi a reconstrução, não é? Era um menino, um moleque que estava independente de algumas coisas, mas morava em um quintal de família, que saía de ônibus e ia para a escola, voltava, batia figurinha, voltava à tarde para a escola. Tinha algumas coisas ali que eram importantes: chegava lá em casa, onde a gente morava, a comida estava pronta, as coisas estavam prontas, não é? Lá, onde eu fui morar com a minha mãe, não tinha nem gente em casa. Minha mãe precisava trabalhar, meu padrasto precisava trabalhar, tinha eu. Então, a chave, minha mãe me deu a chave de casa com dez anos. Eu tinha a chave da minha casa aos dez anos. Então, é essa mulher que estava sempre preocupada também com a questão visual dela, de dormir com a meia na cabeça para o cabelo ficar liso, não sei o quê. A questão estética, para ela, sempre foi importante, até hoje é importante - de dormir com a touca de natação agora, não é? Antigamente era meia. Ali, de dormir, de acordar bacana, ter um cabelo bacana, creme não sei o quê. Então, a questão estética, para minha mãe, sempre foi muito... De vincar minhas roupas, assim. Até hoje, se eu passar uma camiseta, ela quer colocar o vinco na calça. Então, muito perfeccionista. E as coisas funcionarem muito certinhas. Então, um negócio no chão, para ela… Ela é essa mulher que, além de gostar das coisas muito na perfeição, as coisas muito corretas, assim... Acho que é essa mulher, assim, que eu descrevo. De perfeição. Então, tudo, para ela, tem que estar muito bom. Acho que é isso dessa mulher. E tem meu padrasto, não é? Que eu acho que é o cara que começa ali na minha vida, na minha cabeça, numa doença, e é um cara que eu admiro muito, venho admirando, porque eu lembro algumas coisas que esse cara me falou. Eu era moleque que estava, aos dez anos, ali, no Jardim São Luís, Zona Sul, só mato. Naquele momento considerado um dos lugares mais violentos do mundo; se matava mais lá do que se matou no Vietnã. No Jardim ngela, no Jardim São Luís e no Capão Redondo. Aí eu conheci o crime, a droga conheci de ver, a morte: “Morreu um”. A nossa diversão era ver corpo, tá ligada? Eu morava atrás do cemitério São Luís. Era isso. A nossa diversão era, realmente, literalmente, ver corpo. Então: “Mataram fulano”. “É mesmo? Então, vamos lá”. E estava lá o corpo. Depois outro. Eram muitas mortes. A nossa diversão era ver corpo ou tirar corpo, naquela altura. E o meu padrasto era um cara muito correto. Aos dez, onze anos, doze, eu lembro de comprar... Cada prédio que havia no Cdhu tinha um policial, tinha que ter um policial num prédio. Era uma regra do estado, tinha que ter um policial. Então, cada prédio tinha um policial militar. Eu lembro de ter um, dois na verdade, que eram muito amigos do meu padrasto, de dar rolé de viatura, não sei o quê, bababá, de levar a gente para o policial herói ali. Ali, para a gente, não era uma ameaça esses policiais. Eram outros policiais, que eram de fora, naquela altura. Ou bandidos também, que a gente não sabia bem o que era. Aí então, eu lembro do meu padrasto conversando muito comigo sobre essas coisas, sobre coisas ruins, boas. Lembro do meu padrasto comprar um CD pirata uma vez, em Santo Amaro, no Largo 13 e devolver. Chegar em casa e falar: “Não, está errado”. E ele devolver a parada. Desde pequeno, ele vendia limão no farol; depois virou
na Telefónica e até hoje ele trabalha no mesmo emprego. Em empresas diferentes. Ficou na Telesp, na real, até a Telesp acabar e virar Telefónica, ele ficar na Telefónica, até a Telefónica fazer um outro esquema, que ele foi trabalhar na terceirizada, depois ele ficou um tempo sem trabalhar e aí, agora, ele trabalha numa empresa de telefonia. Então, era um moleque que vendia limão no farol e ficou na mesma empresa, com aquele foco de fazer as coisas certas. Eu lembro de pichar o orelhão e ele fazer eu apagar. Na frente do condomínio. Fez eu apagar o bagulho. Eu fui lá limpar. Imagina para um moleque de 13, 14 anos limpando o orelhão no meio do condomínio, sozinho. Porque ainda se tivesse sido só eu, não é? Então, é um cara corretíssimo, assim. Muito correto. E essa questão de sair de um lugar desses e parar no São Luís, onde a diversão era a morte parecer normal, é muito louca, porque aos 11, 12 anos, um desses policiais pediu para minha mãe para ele me levar ao clube no qual os policiais tinham acesso, tal. Aí, meu padrasto também ok, minha mãe, filho único, aí fui ao clube com o policial e o filho dele mais novo. Eu devia ter uns 12, ele devia ter uns sete, uns seis. E aí foi. Tinha mais dois policiais, esse que me levou, e o filho. A gente nadando, eu já nadava, minha mãe me colocou na natação muito cedo, nadei em Osasco bastante tempo, acho que foi uns três, quatro anos. Aí, quando fui para a Zona Sul, não mais. Mas já tinha muita intimidade com a água, era bacana. Aí, nesse dia, esse cara que me levou para o clube, tal, teve uma congestão na piscina e parou no meio da piscina gigantesca, no iate clube, não me lembro o nome, ali na Guarapiranga. E o outro policial não sabia nadar e o outro que estava junto saiu correndo para pedir ajuda. E aí, o filho desse outro estava na piscina menor. O filho desse policial. E aí eu pulei na água. Era o único que nadava, pulei, na hora em que eu toquei no corpo dele, afundou, porque ele deu uma parada, aí engoliu água, ficou mais pesado e afundou. E a piscina devia ter uns três metros, por aí. Que era muito grande. Aí tinha aqueles bagulhos de aspirar a piscina, que você tem que ligar, tinha um fio, fiz um laço para mergulhar umas dez vezes, para tentar alcançá-lo, para amarrar a parada no pé dele e o outro policial que não entrava na água, puxar. Puxou, subiu. Na hora em que a gente fez a respiração e a compressão aqui no peito, ele começou a soltar comida. Ele tinha comido alguma coisa e deu uma congestão, mesmo, dentro da água, uma parada e começo. E, para mim, era salvar o cara, tirar da água e tal. Um moleque! E aí virou um negócio do tipo ‘vamos tirá-lo daqui, vamos levar lá para cima, levar para a represa, não sei o quê’. Eu não entendia o que estava acontecendo: tirá-lo, levá-lo, não sei o quê, esperar, não é? Aí, levaram a mim e ao outro menino lá para cima, para a portaria, esperando chegar o resgate. Depois eu fui entender que os caras queriam levá-lo para a represa, para falar que afogou na represa e não na piscina do clube. Depois. Porque é um policial morrendo dentro da piscina de um clube. Aí, eu lembro de um outro falar assim: “Não, mas aí, cara, você vai fazer exame, a água não tem cloro”. Várias paradas. Eu lembro das conversas dos caras, mas não sabia, não entendia o que estava acontecendo. Aí, tinha um orelhão no condomínio, esse orelhão que pichou lá, aí eu fui para casa. Aí, o outro policial, que era do prédio, se não me engano, foi nos buscar - eu e o filho dele. A gente ficou na portaria, com o porteiro do clube esperando alguém vir buscar a gente, de carro, e esperando o resgate também. Aí foi me buscar, chegou em casa, perguntou o que aconteceu, eu sabia explicar, mas não sabia o que tinha acontecido. Não tinha noção. Aí a mulher dele ligou no orelhão, nesse orelhão, foi para o hospital, ligou e falou que, se ele ficasse vivo, ia ficar vegetando. Não teve salvação. Que foi muita água e foi para o cérebro. Eu fiquei uma semana trancado no quarto, assim, porque eu achava que a culpa era minha, não é? Eu deveria ter salvado. Aí, foi oficial de Justiça, uma porção de gente queria me ouvir. E meu padrasto não deixava. Falava: “Não vai ouvir”. Porque os caras montaram um circo para que não fosse prejudicada a polícia, em si. Montaram um circo gigantesco nesse processo. E eu fiquei uma semana sem falar com ninguém. Porque eu achava que eu deveria tê-lo salvado. Só que morreu e era um cara muito bacana. Apesar de algumas coisas. Eu lembro dele dar um enquadro no meu padrasto, que comprou um Tempra e foi levar a gente para jogar bola e veio uma viatura, fechou a gente e colocou o revólver em todo mundo. Na hora em que meu padrasto abaixou o vidro, ele falou: “Puts, negão, é você, mano? Vai embora, pelo amor de Deus”. Aquele momento era muito tenso dentro do São Luís. E aí aconteceu essa parada dele morrer. Então, fez eu lidar com a morte de uma maneira muito específica, do tipo: “Caramba, não consegui salvar o cara”, sabe? Aquele momento de criança, ali. E aí, lidando com a morte dessa maneira: mataram. Morreu o cara que estava comigo. Está ok. Lidar com a morte era uma coisa muito normal. Lembro de fazer um curso com o
, quando o
surgiu, tinha acho que 14, 15, e, nessa de fazer o curso, a facilitadora perguntar assim para a gente: “Vocês acham que a morte é normal?” “A morte é normal”. E ela ficava indignada. “Como vocês acham a morte normal? Dar tiro é normal?” “Dar tiro é normal”. Ela achava que não podia ser normal ter tiro, as pessoas morrerem. Não pode ser normal. Falava: “Para a gente é normal. De manhã tem uns tiros ali, depois tem uns dois caras ali”. E não era normal. Aquilo se tornou muito normal para a gente, naquela fase da infância e adolescência, ali. Era muito louco. E esse cara fazendo as coisas sempre certas: “’Meu’, você precisa estar na escola”. Até uns dez anos eu estudei em uma escola estadual e depois minha mãe quis tirar. Lá na quebrada é uma cadeia em si. Todas as escolas da periferia são projetos para que a gente se acostume a ficar preso. Mas você só vai entender isso quando você é adulto. Porque, sei lá, o rico é preso e vai morrer no terceiro dia, porque ele é criado livre. A gente é criado condicionado. Então, a gente vai ficar trinta anos preso. A gente foi condicionado a ficar preso. A escola fazia isso com a gente, é muito louco. As referências que eu tenho dessas três pessoas, de características bem diferentes.
P/1 – Qual o nome do seu padrasto?
R – Oscar. Um cara que, para mim, é uma referência em tudo que eu fiz. Esse é um cara que acreditou mais em mim do que eu mesmo. Em vários pontos da minha vida. Para mim, é importantíssimo. E falo dele com um carinho muito grande, assim... Porque até hoje ele é um cara que fala pouco, mas se ele falou, escuta. Tem que escutar. Opa. Então, várias perguntas que eu fiz, que ele não sabia responder, coisas que eu não fiz, acabei não fazendo. Mas é isso. Eu não sei nem o que a gente estava falando. (risos)
P/1 – Você estava indo para a parte de descrever seus pais e aí você pediu para falar...
R – Verdade.
P/1 – Eu queria que você me dissesse qual foi o momento da virada, que você percebeu que essas mortes e tiros não eram normais? Qual foi esse momento que “talvez não seja tão normal”?
R – Boa. Ouvir Racionais, aos oito anos de idade, um disco, e depois estar em um lugar como o São Luís e ver que aquilo era de verdade, que aquelas músicas aconteciam, a morte acontecia, o preconceito acontecia, a exclusão acontecia. Para mim, era a trilha sonora daquele lugar. Eu começo a perceber que não é normal quando escuto rap, vou para o rap. O rap salvou minha vida de várias maneiras. Diversos períodos. Então, para não ir para o crime, o rap salvou. Para não ficar maluco e tal, não culpar a polícia por querer matar a própria polícia, em si. O rap foi essa virada na minha adolescência. Eu conheci um parceiro, que é o Tadeu, mora até hoje lá, que é meu amigo, que a gente cantava rap, fazia um
com a boca, era um cara famoso ali naquele pedaço e aí o rap começa a me tocar de uma maneira muito sutil, assim. E aí eu começo a escrever. Ele fala: “Monta um grupo aí, bababá”. Aí tinha um outro parceiro, que é o Robson, que é um amigo de infância, e também está lá. E é muito louco: todos os meus amigos de infância que estavam nesse processo rap/escola/amizade estão vivos, não é? Hoje tem alguma coisa. Todos os meus amigos que estavam no processo crime - tá ligada? - escola da periferia, que estudaram comigo, morreram mesmo, morreram. Então, o rap não salvou só a minha vida. Salvou a vida de um monte de outros caras, mesmo os que não faziam rap. Eram os que estavam com a gente, agregados, e iam ao show. Muito louco como o rap salvou a nossa vida sem a gente saber o que ele estava fazendo, não é? A gente escrevendo, criticando polícia. Tem letras que eu fiz... Uma que chamava
para uma apresentação de um show de um grupo em que eu tocava - chamava
que era eu e mais um; então era duplamente. Os dois. E o grupo desse meu outro parceiro, que a inspiração era Irmãos de Sangue. A gente fez uma apresentação na Praça da Moça, em Diadema, a gente cantou essa música duas vezes, no refrão, porque ela começava com refrão:
Parece de agora a música, parece que foi feita ontem. Isso tem vinte e dois anos. Parece que acabou de ser escrita. Era esse refrão. Aí, subiu um coronel da PM em cima do palco e falou: “Desliga o som”. Tinha 25 mil pessoas na Praça da Moça. Era um show e então vários grupos tocavam. Quem estava organizando era o JL - que morreu até na semana passada, do rap - e o Dandan, que hoje é DJ do Criolo. Então, eram esses dois caras que estavam organizando o evento. E aí a gente cantou o primeiro refrão, os caras desligaram o som, voltou o som, a gente cantou. Na metade da música, os caras desligaram o som. Aí o cara virou assim para mim, o comandante, e falou: “Você tem sua vida curta e você não vai sair daqui vivo hoje”. Em cima do palco, a gente estava e eu estava com uma jaqueta Duplamente MCs e o Tadeu tinha entrado, fazendo
e estava com um jaco chamado Irmãos de Sangue, atrás. Olhei para o Robson, que estava ali, olhei para o DJ, aí falei: “Mano”. Olhei para o palco, tinha três metros, que era bem alto, porque tinha muita gente na praça - a Praça da Moça é assim. Olhei para os caras, olhei para o outro e falei: “F…., mano”. E eles fecharam o palco atrás, fecharam na frente e começaram a bater em todo mundo. Plá, plá. Bater para abrir. Na hora em que abriu, eu falei para os caras: “Pula”. A gente pulou do palco e entrou no meio do público, para sair. A gente correu até a divisa de Diadema, entrou no ônibus. Antigamente tinha um ônibus que chamava Chácara Santa Maria/Jardim Míriam. Era a linha mais comprida de São Paulo. Ela ia de Diadema até o Valo Velho. Que era um ônibus branco, da Copersul, se não me engano. Então ela saía de lá, do Valo Velho, e ia para o Jardim Míriam. Ela, agora, virou três linhas. Agora virou Campo Limpo, que vai até a Guarapiranga, depois vai até o shopping, depois para ir até para lá. A gente entrou nesse ônibus, debaixo – tinha um outro show nesse dia – das cadeiras, aí fomos para o outro show, na quermesse, que era no ngela, com medo de morrer, gigantesco. Já tinha passado na televisão o negócio, passou na Band, ao vivo. Eu lembro de ter visto no canal 21, que era o que tinha um negócio da Band, era naquela altura que tinha outro canal. Chegamos no outro show, as pessoas perguntando dos Irmãos de Sangue - porque ficou isso, não ficou Duplamente MCs, porque ele subiu primeiro – se estava tudo bem, tal, com a gente, e a gente falou: “Tá”. Já tinha tido o maior auê, assim. Aquele foi um outro momento muito tenso. Dentro da música ferrou e eu, de verdade, tomava enquadro todos os dias. Todos os dias. Porque a gente tinha uma comissão do rap dentro da Casa de Cultura do M’Boi Mirim, que eram dez grupos de rap. E aí a gente fazia uma reunião no primeiro sábado e todo último domingo do mês fazia show. E a gente era enquadrado pela polícia todos os dias e todos os eventos. E eu fui percebendo que a ligação da polícia com a periferia, naquele momento, era de morte, não era de ajuda, entendeu? Se usava um boné, uma calça larga, umas correntes... “Meu”, eu nunca usei droga na minha vida, não bebia, mas eu queria fazer música, queria falar para as pessoas o que estava acontecendo aqui, no bagulho, os caras estão nos matando, não é? E continuava. Então, nossa resistência era a música em si, e tinha o
como referência. 14, 15 anos. Aí, eu me lembro de trocar a primeira ideia com o Brown, quando a gente o levou na Casa de Cultura. Eu tenho essas fotos ainda hoje: ele, o _______ [41:06], na Casa de Cultura M’Boi Mirim, trocar ideia com ele, que eu cantava, meu padrasto bancou meu primeiro CD, inclusive, a primeira produção, custou 300 reais - deu o dinheiro para eu gravar. Falou: “Você vai gravar”. Esse cara que pagou ali um sonho que ele via. Escrevia todos os dias, ia, grudava as letras no guarda-roupa do meu quarto, assim, para decorar. E aí, esse processo de estar na Casa de Cultura, de trazer o Brown ali, próximo - a gente não tinha DJ, sabe, na Zona Sul. A gente tinha muitos cantores, caras que queriam ser MCs, estar lá na frente, mas não tinha DJ. A gente tinha dez grupos de rap numa comissão e não tinha DJ. Tinha equipamento e não tinha DJ. A gente começa, ali, naquela altura, a procurar pessoas. A gente precisa fazer esse bagulho aí, precisa DJ. E aí, paralelamente ao rap, eu começo a trabalhar, eu fazia o Camp, que é o Asam Camp, ainda tem. É o Clube do Amigo Menor Patrulheiro. É isso. Então, era o rap no final de semana. Já estava estudando em Moema, minha mãe tinha me tirado da escola da quebrada e me colocado em Moema, numa escola estadual. Não, mentira, uma escola municipal, que é a mesma: municipal aqui na quebrada e municipal lá em Moema. Mas não tinha nada a ver, mano. E ela colocou porque a servente lá tinha a neta dela e aí conseguiu uma outra vaga para mim. E então eu fui estudar nessa escola, que é o Napoleão. Existe até hoje: Shopping Ibirapuera, escola aqui desse lado. E aí, “meu”, então, imagina: era um moleque que escrevia e cantava rap. Tinha saído de uma escola da quebrada para estudar em uma escola municipal que era fogo: três quadras, as salas eram ambientalizadas, você entrava na sala de Matemática, tinha números, na sala de Biologia tinha umas (pipetas?) [43:00]. Aí, “meu”, era fogo. Então, inconscientemente, eram os moleques-problema da escola. Porque você é louco? Não tem esse bagulho lá, o bagulho está aqui, então vamos zoar. Então, você ligava hidrante, queimava ______ [43:11], zoava a escola. Porque aquele espaço parecia que não era da gente. Não pertencia à gente. Que era um outro mundo. Minha mãe nunca nem foi à reunião de pais. Minha mãe não tinha tempo para ir à reunião de pais. Eu era tipo meio desertor dentro da escola. Mas era muito bom dentro da escola. Eu lembro de fazer um piche, pendurar lá na escola e a professora falar que a gente era artista. Tinha umas professoras que viajavam: “Nossa, essa intervenção artística de vocês”. Era outra parada. Se a gente pichasse na quebrada, ia chamar a polícia e aí, lá nessa escola, era intervenção artística. Que a gente tinha subido em cima da laje. Que vocês precisam fazer coisas melhores. Você conhece o grafite? Que droga é essa? Nós vamos pichar o bagulho todo. Dane-se. Entendeu? Era muito diferente. Muito, muito. E era escola municipal. Sei lá. Eu conhecia os triplex de Moema, porque ia fazer trabalho de escola. A Associação de Pais, APM, funcionava, comprava livros não sei de onde. Minha mãe nunca deu dinheiro para a APM. E os mesmos livros eu estudava na Saraiva do shopping Ibirapuera. Fazia as curvas no livro, para estudar. Então, estudava de manhã e ficava a tarde inteira na Saraiva. Aí marcava o livro e voltava no outro dia. Não tinha dinheiro para comprar o bagulho. Então, sabe essas ligações? O rap, você estudar fora, vir todo dia, pegar o busão todos os dias na escola, 45 minutos, uma hora e meia no trânsito, para voltar com o São Luís/Moema. Então, o rap, a escola fora, tá ligada? Minha mãe fora, com a chave, fazendo Camp também, que era isso do menor patrulheiro, nove meses falando sobre noções de escritório, não sei o quê,
do MS DOS, essas paradas, estudando lá dentro. Era muita informação para um moleque de 14, 15 anos. Muita. Os caras morrendo. Era fogo. E aquilo tudo sempre foi, para mim, muito forte. Esse monte de informação, não é? E essa troca. Vai em Moema, vê o que os caras têm; vem para cá, vê o que nós temos; agora volta para lá. Para os moleques que estudavam em Moema vir aqui é o mesmo que a gente ir na quebrada: “Vamos lá! Sua casa é da hora. Os Racionais estão lá, não sei o quê”. E, para mim, era a maior vergonha, eu tinha vergonha de falar onde eu morava. Porque demorava para caramba para chegar, uma pá de favela, tinha uns parquinhos no meio do barro, esses bagulhos. Não era bacana, não é? Mas para quem tem dinheiro, aquilo era, sei lá, caricato, um bagulho assim. E aí, muito louco, porque todos os meus amigos, da minha sala de aula, todos do Napoleão, em Moema, todos esses eu sei onde estão, o que estão fazendo. São arquitetos, são atrizes, são treinadores de MMA ou
da Anita, que é meu parceiro mesmo, que é o Luiz; outra é cirurgiã plástica. Todos esses que estudaram comigo. Outro é professor. Todos esses eu sei onde estão. Outro anda de skate numa marca famosa. O outro é cinegrafista. Todos esses caras eu sei onde estão e a gente se encontra em rede social. Todos os moleques que estudaram comigo na escola na quebrada não faço ideia onde estão ou se morreram.
P/2 - ______ [46:48] questão de oportunidade que eu vejo, porque se você tivesse ficado - e oportunidade dos outros também - na quebrada todo o tempo, não tivesse essa visão de sair e ir para uma outra escola, talvez sua vida seria diferente. Você teria uma outra visão, não é? Que seus pais tiveram.
R – Eu costumo dizer que minha mãe teve uma visão que ela não sabia nem o que estava fazendo. Só sabia que queria me tirar dali. Eu não podia estudar ali. Porque isso, esse recorte que eu falo, é um recorte do que acontece ainda hoje. Como é que você tem 35 anos de idade e os moleques que estudaram com você na quinta série, você não sabe onde estão, entendeu? Você não sabe onde estão. E os outros que cresceram com você, que não estavam dentro do rap... Então, é assim: a escola salvando você, o Estado o abandonando na região periférica, de verdade, cuidando de quem está numa região como é Moema, cuidando porque cuidou de verdade, cuidou muito bem, local bacana, dava uma atenção, chamava os pais, bababá, dava uniforme. Eu tinha o maior orgulho de colocar uniforme da escola e sair na quebrada com uniforme. Aquilo era tudo para mim. Aí o rap te coloca aqui e todos esses caras estão mortos, sabe, que estavam ali, que continuaram naquele lugar. E a questão de oportunidade está atrelada, muito, como você vem, a sua criação, porque o Estado não lhe dá oportunidade, entendeu? O Estado não lhe dá. Quem foi buscar a oportunidade foi minha mãe, com uma senhora que trabalhava. O Estado não lhe dá, ele quer que você se dane. O Estado não lhe dá essa oportunidade. Não coloca escola como parâmetro para você. Tipo falar: “’Meu’, é o seguinte: você tem escolha. Nós estamos lhe dando um negócio bom e do outro lado também é bom. Você está escolhendo. Se você fizer o ruim, aí é você”. Não lhe dá escolha. Ele o coloca numa posição: ou você vai roubar ou você vai traficar, e é isso, irmão. Acabou. É o que você tem para fazer. Entendeu? É isso. Porque está tudo longe. Então, vamos fazer o seguinte: vamos colocar aqui um hospital, certo? M’Boi Mirim, aqui tem o Campo Limpo, umas UBSs, campos de futebol para caramba para vocês e um montão de escola. A gente não vai perguntar, sabe? Um centro de integração de cidadania. Porque é isso: o Jardim São Luís, hoje, é uma potência. Hoje. Mas é o lugar onde mais se abusa de mulheres. É o lugar em que se mata mais jovens. A perspectiva de vida é de 29 anos, entendeu? E aí você coloca esse monte de outas coisas: de hospital, de UBS, sem perguntar para a gente se a gente precisava ou não? De linhas. É um dos poucos bairros ainda que você tem duas linhas diretas para o Centro, que a gente brigou, lutou, colocou fogo numa porção de coisa para isso acontecer, não é? Para ter quadra, para ter um montão de coisa. É a melhor maneira do Estado dizer assim: “Você não precisa sair daí”, entendeu? “Não precisa vir para cá. Você não precisa ir para o Centro”. “Não precisa. Fica aí. Vocês têm tudo aí, inclusive casa lotérica para vocês pagarem suas contas”. É isso que o Estado faz. E é isso muito crescente, porque... O que acontece? Se a gente sai e bebe aqui na Vila Madalena, você volta com uma blitz na Avenida João Dias. Para pegar você. É isso. Você volta pela Marginal, nas pontes, você vai voltar. Então, vai parar os carros velhos ali, os carros populares. Se eu estou na Vila Madalena e bebo aqui, ninguém vai parar minha BMW. Então, o Estado lhe coloca de uma tal maneira, seja na segurança pública, que é isso que a gente está falando; seja na educação, que é isso que a gente começou a falar da escola; seja no serviço social, na assistência social, porque você coloca os melhores assistentes sociais na quebrada para resolver BO e para colocar Bolsa Família e dar cesta básica. São esses bagulhos. Seja no esporte, que daí você coloca campo de futebol pra caramba. E é sitiado por um vereador. Que aí você tem que pagar um bagulho que é público, bonitinho, que esse dinheiro vai
outro bagulho. É uma ligação tão... Você envolve todas as Secretarias: Habitacional, que aí você coloca um monte de bagulhos. Minha mãe mora no Cdhu, tem mutirão e depois tem aqui o Cingapura. “Fica todo mundo aí”. Você une todas essas Secretarias num esquema tão grande para que essas pessoas não saiam da periferia. Fique aí, entendeu? Aí, como que os caras ainda falam que você tem escolha? Você não tem escolha. Você não tem, não lhe dão escolha. Não lhe dão escolha para você morar, para você estudar, para você trampar. Não tem. E aí, se não tem, o que a gente faz? Vamos ficar aqui, então, vamos acontecer nessa droga, que é isso que tem que ser feito, entendeu? Vamos potencializar isso aqui. A gente gasta o dinheiro aqui, certo? A gente estuda aqui, a gente vai ter os nossos negócios aqui. E aí, mais para a frente, a gente se emancipa ainda dessa porcaria, entendeu? Já que é para ficar aqui, vamos ficar aqui. Mas aí vamos ficar aqui com todas essas potencialidades. Porque se cada moleque daquele ali tivesse a oportunidade de estudar fora, talvez nem voltasse. Que é o que acontece. A gente precisa tratar lá, a escola lá. Então, o Estado precisa dar oportunidade à educação, lá. A gente não precisa sair. Porque senão você não volta mais. Quantos moleques saem, o sonho é sair, ouve do pai: “Sai daqui”. Senão, você não volta. Não é nem o sair. A oportunidade de sair, às vezes, acaba sendo ruim. Porque é isso: “Sai daqui”. Vai saindo, vai saindo, vai saindo, vai empurrando a gente lá para trás. Então, isso é muito cruel. E é sutil, mano. É sutil. Não dá para ver, a gente precisa falar disso. É muito sutil. É muito sutil. Porque as políticas públicas são mandadas por pessoas que não vêm da periferia. Estuda na FGV. A FGV custa cinco paus, entendeu? As políticas públicas são mandadas por pessoas que nunca viveram ali, que vão aumentar a droga da condução para quatro e trinta. Eu nunca peguei o trem lotado, às seis da manhã. Então, dane-se que é quatro e trinta. Então, a educação, dentro desse processo, é importantíssima. Porque, se a periferia, que é a base, soubesse a força que ela tem, sem droga nenhuma, entendeu? Aqui, na Vila Madalena, os caras não iam saber fritar um ovo. Não iam conseguir limpar a casa. Levar o filho na escola, que custa sete mil reais, com segurança, entendeu? Um moleque desses, que a escola custa sete paus, aqui ou no Morumbi, onde quer que seja, vai na quebrada e volta doente, sabe? Mas volta com uma ânsia de poder resolver. Não estou falando que a gente tem que separar. A gente tem que estar junto, entendeu? Pegar a molecada que está aí e levar para lá e a molecada que está lá, trazer para cá. Essa troca é importante. Porque foi isso que aconteceu comigo, entendeu? A troca foi importante, dentro desse processo de periferia, de eu falar assim: “Caramba, o shopping Ibirapuera é f..., tem cinco andares. Vamos lá andar de escada rolante ao contrário, que é da hora, sabe?” Era isso que a gente fazia, mas: “Vamos lá na Saraiva, porque minha mãe não pode comprar os bagulhos. E eu nem vou pedir para ela, porque ela vai falar que não tem. Então eu vou estudar e fazer isso”. A troca tem que acontecer. Não precisa ser amigo, entendeu? Vamos estar juntos.
P/1 – E aí, nesse período de adolescência, para além dessas transformações no corpo, é um período complicado também, porque começa a questionar um monte de coisa e essa virada que você tem, principalmente, de ocupar, de estar numa escola diferente da sua realidade, onde você cresceu, como você lidava com essas trocas? Porque hoje, olhando para o passado, a gente consegue entender que eram trocas. Não sei se nessa época de adolescência, de questionamento, você entendia como troca. E como era voltar para casa e, no dia seguinte, ir para a escola? Com quem você conversava sobre isso, sobre essas questões?
R – Eu conversava um pouco com a minha mãe, porque a gente se via pouco. Com meu padrasto, um pouco mais. O meu padrasto, eu lembro dele falar assim: “Você só faz isso, mas tem que ser bom. Você só estuda, poxa, tem que ser bom. Você só faz isso”. Quando eu começo a trampar, com 14, 15 anos, no caso do Camp, na Robert Bosch, eu comecei a trabalhar na Bosch, ele falou assim: “Você faz outras coisas, então agora você precisa equilibrar isso aí. Você tem que ser bom nisso”. Então, era isso: eu precisava ser bom na música, precisava ser bom trabalhando, precisava ser bom na escola. Eu tinha isso na minha cabeça. Era um mantra, naquela altura: “Você precisa ser bom”. E o rap foi me levando para a cidade, conhecendo outros lugares. Tem um show não sei onde, tem ligação não sei o quê, não sei o quê, não sei o que lá. Fulano de tal, conhecer. A gente precisava ser muito bom. Então, eu tenho esse negócio. A gente conversava. Aí, eu ia, logo no princípio, quando eu estudei de manhã, lá em Moema, ia de carona com o pai de uma amiga minha, que estudava comigo, que a avó dela que levava a gente. Então, a gente conversava sobre isso, sabe? Sobre o que era bom, a gente precisa ser bom, não sei o quê, bababá, mas tinha uma revolta dentro, de achar que aquele espaço ainda não pertencia à gente, não é? Então, sei lá, eu lembro de, no final de semana, roubar tinta da escola para pichar porque a gente sabia onde estava. Então, aquele espaço ainda não era nosso. Nunca nos sentimos pertencentes àquele lugar. Apesar de achá-lo muito importante, não é? Então, a troca era essa: a gente precisava ser bom, entendeu? Essa é a lembrança que eu tenho assim, porque todas as coisas eram ruins. Tudo era ruim no entorno. O transporte era ruim, não sei o quê era ruim, para chegar era ruim, tudo era ruim. Alguma coisa tinha que ser boa ali. Então, a gente vinha sempre nessa coisa de ser o melhor. E o rap me deixou com uma raiva do Estado muito grande. Eu achava que o Estado tinha que devolver tudo para a gente. Era fogo. Queimei a escola, que era essa, aos 15. Aí fui estudar do outro lado da Bandeirantes, que era o Paiva. Hoje não existe mais. Que era uma escola também em Moema, ali. Só que eu trabalhava de dia e estudava à noite, não é? Logo ali no princípio. Então, trabalhava de dia e estudava à noite. E a conversa nossa era tipo essa: “O Estado está nos f…..., não sei o quê”. Porque o Estado era ruim, entendeu? Sempre era ruim. A gente não chamava nem de Estado, era o Sistema. Que era contra o Sistema. Não sabia nem o que era isso. Era o Sistema. Então, o Sistema era ruim, tal. Os caras querem acabar conosco. Que o Sistema, o Sistema, o Sistema. Então, era essa a conversa, era um mantra. Porque o rap colocou isso na nossa cabeça, do Sistema, e o Sistema, e o Sistema. Com esse mantra. Então, tinha várias coisinhas. Eu lembro de quando mudou o vale-transporte, o passe, para bilhete, não é? Minha mãe tinha passe. E aí trocava: pegava os passes, minha mãe me dava, porque meu padrasto ia trabalhar de carro, ela me dava para ir para a escola, ela não precisava dar dinheiro, ela fazia umas manobras para eu conseguir ir para a escola. Então, eu levava o passe para, pelo menos, voltar, quando eu ia de carona. Ela fazia essa conta. Aí eu não gastava na condução e comprava outros bagulhos. Pegava, pedia carona. Aquilo, para ela, era inadmissível, eu pedir carona. “Você é louco, pedir carona?” A minha mãe tinha uma vergonha, até hoje, não é? O meu padrasto também: “Não. Vocês têm que pagar. Está aqui, têm que pagar. O que é isso? O Estado, que não sei o quê, porque as leis”. Com esses bagulhos sempre foi muito certo. Ele fala isso para o meu irmão até hoje: “Você não tem o dinheiro para o bilhete, por que você não me falou?” Para ele é inadmissível a gente dar um golpe no Estado. Não porque o Estado é bom. É porque já está lá escrito. Então, se você fizer, é uma contravenção, não pode, entendeu? Para ele, era inadmissível. É tão inadmissível, que num desses bagulhos que ele já estava na Telefónica, já era Telefónica, ele tinha um telefone em casa, a gente ligou no orelhão direto, para você fazer chamadas - ligava para quem você quisesse. Aí, ligava para ouvir piada, para não sei o quê, do orelhão. E a polícia chegou lá no condomínio para tratar de um assunto de umas pessoas, de uma briga de marido e mulher. Aí a polícia, na hora em que chegou, eu corri no estacionamento, os caras vieram, pegaram o telefone e eu e me colocaram na viatura. E ele falou para mim: “Eu não vou lá”. Porque era isso: a gente queria dar o golpe no Estado. Então, tudo que era contra o Estado, a gente queria fazer. Aí, a polícia pegou o telefone, eu também, colocou na viatura, minha mãe saiu correndo, porque da janela dava para ver, assim, e meu padrasto ficou e falou: “Eu não vou”. Porque aquilo, para ele, era inadmissível. Ele trabalhava dentro da empresa que estava lá. Foi a primeira vez que a polícia me levou para algum lugar. Então, a conversa era isso: “Aí, agora, danou-se”. Levou, fui para a delegacia, fiquei na delegacia 12 horas em pé, minha mãe foi lá, junto com esse parceiro meu, Tadeu, e, no fundo, as delegacias antigamente ainda podiam ter detentos presos, não é igual agora, que só prende e leva para o CDP. Ainda podiam ter. Então, ficavam os caras gritando, batendo. E aí eu lembro da minha mãe chegar e o delegado falar assim para ela... Minha mãe desesperada: “Seu filho é um lixo. Estava roubando. Você tem que ir embora”. Xingou. Ela estava com esse parceiro meu. “Não adianta a senhora ficar aqui”. Lá na frente. Eu estava lá no fundo, só ouvindo. Ele voltou. Deste tamanhinho, assim, pequenininho. O policial usa um sutiã, que são dois... Os caras chamam de sutiã, mas são dois revólveres, um de cada lado, ele tirou, colocou no murinho: “Sua mãe é uma vagabunda, rapaz. Você está vendo o que você está fazendo sua mãe passar?” Xingou, xingou, falou assim: “É o seguinte: você vai ter uma oportunidade, vou te dar”. Tinha 16, acho. “Vou te dar uma oportunidade. Vou tirar tudo aqui e a gente vai sair na porrada. Se você conseguir levantar, você vai embora”. Isso era três da manhã. No meu olho, olhou na bolinha do meu olho. Aí estavam os dois policiais que tinham me prendido, que eram militares e ele, que era o civil. Quatro horas da manhã. E eu quieto. E eu tinha concentrado um ponto que eu tinha que olhar. Aí me deu um murro, eu quieto. Aí falou de novo: “Você não vai querer ir”. Colocou de volta o sutiã, as armas, saiu, me deixou lá. Aí estavam indo de bonde os caras que estava lá dentro. A gente chama de bonde quando sai o preso e vai. E era uma ligação telefônica que a gente estava fazendo em um orelhão. Aí, os caras passaram por mim e falaram... Os policiais pediram para eu virar, os caras passaram e tinha um, o Elber, que era um parceiro meu de conhecer de infância, que estava lá preso, mas eu não o vi, porque eles passaram de costas. Ele estava preso, já, por outras coisas, outros motivos e eles me mandaram virar de costas para não ver os caras indo, que eles estavam sendo transferidos lá. E aí eu tomei um tapa na cabeça, do Elber. Olhei, ele fez assim, balancei a cabeça, o cara não deixa você falar e eu o vi passando. Já era _________[1:02:34]. Fiquei em pé. Cinco horas da manhã esse cara me atendeu, o delegado, pediu para entrar os dois policiais e o telefone. Daí falou, perguntou o que tinha acontecido, eu falei, ele falou assim: “Sabia que isso é roubo?” Aí eu falei para ele: “Não é roubo. No mínimo, um furto”. Ele falou: “Então você entende de Código Penal? Você está depredando patrimônio público”. Eu falei: “Não. A Telefónica é uma empresa privada”. Ele falou: “Então você entende o que você está falando?” Eu falei: “Teria que ter uma queixa para eu estar aqui. A empresa teria que vir aqui apresentar uma queixa, para eu estar aqui. Você não pode me prender por algo de que ninguém se queixou”. Aí ele percebeu com quem ele estava falando e falou: “Cara, você não é ladrão, você não é bandido. Você viu o monte de lixo que saiu daqui agora? Isso aqui é lixo, para mim, é um monte de lixo. Você não é. Sua mãe veio aí, colocou aqui, olha que você está aqui. Você não é, cara. Só que a gente vai deixar aqui o telefone, bababá, vai assinar aqui e você volta daqui a 15 dias. Você vai assinar aqui o negócio para a gente”. Eu olhei e falei: “Vou assinar o quê?” Ele falou: “Você vai assinar um documento se comprometendo a não fazer mais isso, bababá, não sei o quê, não sei o quê”. “Não vou assinar. Eu não sei nem o que é. Não vou assinar”. Aí deu mais duas horas de canseira e me mandou embora, descalço, sem camisa - eu estava de boné - e sem boné. Falou: “Vai para casa e nunca mais...”. 92 DP, tem até hoje. Voltei, minha mãe estava chorando na sala de casa. Eram seis e meia, mais ou menos. Voltei a pé para casa. Minha mãe chorava, chorava. Eu jurei para ela que nunca mais ia fazer ela passar aquilo. Minha mãe estava chorando, assim, muito mal. Então, as relações com a polícia eram muito isso, assim, sabe, também, não é? Para mim, era fogo. Então, a conversa dos amigos, do ser bom, era sempre isso: contra o Sistema, a polícia. E aí o que eu estava falando do bilhete, quando mudou do vale-transporte para o bilhete, que utilizava da minha mãe e a gente foi parar nessa história do telefone e tal, mudou e tinha uns bilhetes eletrônicos. E uma vez, pulando a catraca, saindo da escola, porque eu era um revoltado, saí da escola em Moema para ir num negócio, eu era o cara que tipo... Eu pisei na catraca e caíram uns bilhetes. E os bilhetes eram marcados, dão umas marcadinhas. Eu levei alguns para casa e comecei a estudar os bilhetes e vi que dava para tirar as marcas do bagulho. Aí, comecei a juntar. Abria - tinha um fichário que era de zíper – as catracas e juntava esses bilhetes. Eu e mais um amigo, depois dois, depois três, depois ________ [1:05:37] o negócio. Eu tirava as marcas e comecei a vender o bagulho. Aí tirava, vendia, tirava, vendia. Eu falava: “O bagulho dava muita grana”. Eu trampava, estudava, e aí dava muito dinheiro, porque as pessoas não tinham essa noção ainda. Tirava o negócio com um isqueiro, deixava embaixo do colchão de casa, depois passava um Nugget marrom na faixa, para brilhar o bilhete. Era fogo. Porque a minha intenção era do Estado. E vendia. Só que eu comecei a perceber que eu vendia para as pessoas que eram como nós. Eu falei: “O cara não conseguia trocar”. Aí, parei de fazer isso, mas as pessoas vinham na minha casa, jogavam pedra na minha janela, para eu fazer o esquema do bilhete depois. Eu parei e aí lembro que os caras começaram a roubar os ônibus da quebrada, para pegar bilhete. Porque não tinha mais cobrador, os caras tinham tirado cobrador nessa altura, não tinha mais cobrador em São Paulo. Só tinha esses bilhetes. Depois veio a gestão Marta, não sei o quê, veio a parada de colocar o cobrador de volta por causa desses estouros de caixa dos negócios do bilhete e colocar, depois, o bilhete único. Nessa transição aí. E eu comecei a perceber e falei: “Mano, está errado, porque a gente pega do Estado e ainda prejudica nós mesmos aqui, porque daí vai lá no Largo 13, em Santo Amaro, e vende para os mesmos caras que depois não conseguem passar o bilhete e tomam prejuízo. Está errado”. E aí você vai entendendo e fazendo outros recortes. E usava minha cabeça, muito, para isso: lesar o Estado. Depois, fui trabalhar no Correio, não é? Eu era Menor Aprendiz, sei lá. Era no Correio. Ainda estava estudando no Paiva, em Moema, fui trabalhar no Correio, era isso também. Sei lá, talão de cheque. Segurava os talões de cheque, esperava chegar o documento da pessoa, juntava, passava talão de cheque nas Casas Bahia. Aí, cartão de crédito chegava, você esperava chegar... Porque, antigamente, você mandava o cartão, depois vinha um documento com a senha e você sabia o que era, ia lá para ver. Ingresso do Rock in Rio, deixa aqui. Documento de moto tal, vai lá. Usava aquilo de uma maneira muito... Mano, o Estado, o Sistema, não sei o quê. Aquela revolta de adolescente, que tipo: os Bancos, você é louco? Vai chegar, não. Só que você prejudica pessoas na ponta. Mas você não tem essa noção. Você acha que é o Estado. E era isso: cada lugar em que eu trabalhava, eu criava alguma ferramenta para que pudesse lesar a ponta, o Estado. E isso era muito... Aí, fui trabalhar no McDonald’s depois - já tinha terminado a escola. Trabalhei no McDonald’s dois anos e pouco, na Tutóia. E aí fui trabalhar numa parada do governo que chamava Frente de Trabalho. Lembra disso aí? Frente de Trabalho. Fiquei lá, era contrato. Fui trabalhar no Cratod, no Centro de Referência de Álcool e Tabaco e Outras Drogas, no Centro. No almoxarifado, eu fui parar. Então, um moleque que trabalhou no Correio, na triagem; trabalhou na Robert Bosch lá, com desenho técnico, tirando xerox; depois um moleque que trabalhava no McDonald’s, com (formação?) [1:09:11], vai parar no almoxarifado do Estado? Uma bagunça, uma zona que era tudo lá dentro. Aí eu falei: “Mano, isso aqui é o céu. Agora, estou dentro do Sistema, do bagulho”. Aí, no almoxarifado, organizei o bagulho, fiz tudo no computador, no Excel, na altura, coloquei. Três mulheres trabalhavam em Finanças, e um estagiário, que era responsável por mim. Organizei tudo, tudo, tudo. Sabia cada coisa que tinha, elas não faziam ideia do que tinha. E eu sabia exatamente o que tinha, o que estava, que você precisa licitar para comprar o lápis. Precisa licitar para comprar borracha. Precisa fazer um monte de coisa. Depois o Cratod teve o almoxarifado para baixo, saiu de onde eu estava, no primeiro andar, e foi para baixo. Organizei tudo, veio o computador, não sei o quê, e eu falei: “É isso, é aqui que eu deveria estar”. E aí começo a entender o processo de licitações, favorecimento. Tinha 17 anos. Como se favorecia um, como se favorecia outro, quem é que vinha, o porquê eu tinha que fazer três orçamentos no supermercado, para alimentação. Eu começo. E aí, mesmo quando o outro era mais barato, colocava o outro que era mais caro e falava: “Pede para esse aqui colocar o outro preço”. Eu falava: “Não. Esse bagulho tem alguma coisa errada”. Dentro daquele espaço. Aí, eu começo a fazer pedido e licitar. Pedia, sei lá, cartucho de impressora. Eu pedia três vezes mais, para os caras, para a empresa, porque daí eu vendia os outros. Eu pedia quatro vezes mais. Cinco vezes mais. E aí, tudo que eu fazia dentro daquilo, elas também não falavam nada. Porque senão caía tudo - o outro processo de Finanças, não é? Então, eu era o responsável, já, por fazer pedido do bagulho, entendeu? Eu licitava, eu orçava, e depois eu direcionava para onde ia o produto. E a empresa não quer perder, então ela manda para você quatro caixas a mais, cinco caixas a mais, não sei o quê, bababá. E era isso. Então, elas tinham que esperar acabar meu contrato. Porque senão era isso: um moleque que estava lá dentro, que descobriu todo aquele sistema corrupto dentro daquilo de fraudes de licitação e era um moleque que estava fazendo outras coisas, além delas. Daí, uma vez, o Cratod teve um roubo, pegou fogo, elas colocaram tudo dentro do roubo, entendeu? O que roubou? Computador, não sei o quê, não sei o quê, não sei o quê. Porque aí você justificava todas as outras compras. Colocaram tudo dentro do roubo. “Edson, faz a lista”. Aí eu começava a entender o sistema por dentro dele. Como funcionava todo o processo de favorecimento de licitações. E isso era muito cruel. Eu falava: “Olha só, como que é o bagulho. Como funciona isso aqui”. Isso aos 16, 17 anos. Entender como era todo aquele processo, fogo!
P/1 – E nessa época você escrevia?
R – Escrevia rap ainda. Só que eu já não cantava, eu estava tocando. Era DJ nessa altura, já. Já não cantava. Só tocava. Escrevia menos. Mas tocava. Porque eu não tinha muito tempo. Eu estava mais tocando do que cantando. Tinha isso e lá, como era também uma clínica, em que eles podiam almoçar - podem até hoje - é um processo que funciona bem na área da saúde. Tinha carimbos, eu cuidava dos receituários médicos, dos receituários de controle especial, tudo ficava comigo, no almoxarifado. Carimbo de médicos, não sei o quê. Chegava a vender atestado. Isso para quem queria ficar em casa... Porque eu pegava o carimbo do médico, e tal, vai e vendia. Era isso e eu estou falando para você: olha só o que o Sistema criou. Naquela altura. E é isso que esses caras fazem com que a gente sinta uma raiva tão grande, mas tão grande, que você quer descobrir algum momento como você vai lesar o Estado. E é isso que o Sistema cria, quando você dá a oportunidade para que você saiba e conheça. Os caras têm um medo gigantesco que aconteça mais 50, 300 Edsons desses, entendeu? Quantos Edsons aparecessem desse jeito, São Paulo estaria assim? Não pode. Você é louco? Vai deixar esses moleques saírem de lá? Esses moleques são zica. O dia em que esses moleques vierem para cá, vão descobrir tudo que a gente faz e vão tomar de assalto. E ainda vão levar para lá. E se a gente der informação para eles lá... Não, não pode. Então, quando você quebra essa bolha, quebra essa barreira, para os caras isso é mortal. Você vai, fatalmente, descobrir como fazer melhor. Sejam coisas boas ou ruins. Fatalmente. Você acha que esses caras querem que a gente esteja dentro do Estado? Não querem. O concurso público é isso: é você garantir a vida inteira do cara que, às vezes, é muito periférico, estudou, teve que estudar pra caramba para prestar concurso, mas você o tem sob controle, entendeu? Você tem o funcionário público sob controle. Condicionado àquilo. Não precisa pensar. É condicionado àquilo ali, entendeu? Então, você estuda para ter aquela vaga pública e depois eu o coloco na caixinha. Não pensa. Porque, se tiver ferramenta, danou, entendeu?
P/1 – E aí, quais eram os planos, nessa época, para você? Você tinha vontade de continuar nesse espaço? O que você queria do Edson enquanto adulto? Que imagem era essa que você queria ter de você?
R – Eu joguei futebol também, nesse meio tempo. Era um moleque fazendo uma porção de coisa. Joguei na Portuguesa, futebol, e, aos 17 anos, eu tive uma hérnia de disco congênita lombar. Eu tinha que ser operado. Então, foi a primeira vez que eu vi... Todas essas coisas que eu contei, que foram meio traumáticas e tal, aconteceram - muito louco - sempre no final do ano, sempre no mês de dezembro. Eu sou de 28 de dezembro, sempre aconteceram coisas muito marcantes no final do ano e essa cirurgia também foi no final do ano, em janeiro. Aquele ponto eu lembro dessa cirurgia passar por nove cirurgiões, um tiozão velhinho que descobriu no raio X o que era, onde era, que era L5 e S1. E ter um estalo ali, na minha vida, porque minha mãe estava com muito medo, cirurgia na coluna num menino de 17 anos. Minha mãe estava com muito medo e eu já lidava com aquilo muito bem. Essa foi a primeira vez que eu tive contato com a morte, onde você vai e volta, sabe? Você volta querendo fazer alguma coisa porque, se eu morrer, não fiz coisa alguma do que era para ter feito. Então eu vim assim com muita sede, não é? Estado, Correio, McDonald’s... Eu vim com muita sede. Até os 17, 18, 19. Com muita sede de mudar as coisas. Mudar. Dentro do rap, a perspectiva que eu tinha é que era preciso mudar os bagulhos. Era inadmissível ter uma escola f... do outro lado e a nossa ser zoada; ser um transporte tipo bom do outro lado e o nosso ser zoado. Eu precisava mudar. Meu padrasto bancou um curso de computação na Microlins, depois um curso de Inglês, que era da Trilogia Analítica. Eu fiquei sabendo o que o bagulho era hoje, da metodologia da trilogia analítica. Fiquei estudando Inglês. Juntava tudo isso na minha cabeça e falava: “Caramba, todo mundo tem que fazer isso, sabe?” E aquela ânsia que frustra, entendeu? Me frustrou. Aos 19, 20 anos, mesmo, me frustrou de uma maneira tão grande que aí eu não estava trampando - tinha saído dos trampos - estava no rap, tinha comprado alguns equipamentos, tinha montado um estúdio, gravado, tinha matérias de revistas, o primeiro cara que fez a matéria comigo, que a gente foi um dos primeiros a fazer música no vídeo game, no Playstation. A gente produzia música no vídeogame e cantava em cima dessas músicas produzidas no vídeogame. Tinha um programa, que chamava MTV Generation, que a gente fazia a base e cantava em cima desses instrumentais. Aí fiz uma matéria ali e a gente tem o estúdio. Acabou a grana. Então, não era rap, não era no Estado, não era em lugar nenhum. Estava sem trampar. Aí, fui fazer inventário de supermercado no final do ano. Ali me perdi. Naquele momento, é o que eu estou lhe falando: o Estado lhe frustra - aí eu estou explicando, agora, porque eu não sabia aquilo – de uma maneira para você não saber, realmente, o que você vai fazer, entendeu? E aí, 19, 20. Nessa fase, tem vários bagulhos que eu acho que eu vou contar aqui, que, na verdade, eu não contei no livro. Você tem um livro, mas como diz a editora: “O livro precisa estar bonito, não pode ser triste”. No cinema, tem que ser triste. (risos) Quando a gente fez o livro, ele falou: “Esse livro precisa contar as histórias boas, não pode ser triste, entendeu? Porque senão você vai fazer as pessoas cozinharem chorando, porque é um livro de receita, com história”. (risos) Aí a gente falou: “Beleza. Essas histórias a gente não vai contar porque...”
P/1 – Aqui você pode ficar à vontade para o que vier. Não existe uma lente aqui. Você pode ficar à vontade.
R – Não. E algumas coisas eu acho que as pessoas precisam saber, acho que a molecada precisa saber, e outras eu acho que precisam saber na hora certa. Todas eu acho que precisam saber. Só que algumas precisam ser ditas no momento certo. Então é bem isso, porque a gente acessa a memória para trocar essas ideias muito raramente, entendeu? E aí, algumas coisas bloqueiam e você fala: “Espera aí, não sei”. Aí, você começa a pensar para onde vai, você tem que voltar para cá, se concentrar e falar: “O espaço é esse aqui, irmão”. E aí, se consultar conscientemente para falar. Eu sou bem assim. Então, essa frustração aos 19, 20 anos foi onde aquele parceiro – olha só que louco isso! – que estava lá atrás, que passou batendo na minha cabeça, tipo me zoando quando eu tinha sido detido - porque eu não fui preso e nunca assinei nada - era um dos caras que comandavam o tráfico dentro do Jardim Bandeirantes, um pouco mais para cima do São Luís, Piraporinha e aí, no outro ano, que a gente o chamava de Brown até, que morava ali, trabalhava para esse cara - eu tinha uns 19 – na biqueira de lá da Bandeirantes. Daí eu trocava ideia não com o cara, que era esse gerente. Você tem um gerente, que era esse outro mano, que eu conhecia desde pequeno e tal. Tinha esse outro, que morava no condomínio - mora até hoje – da minha mãe, que trabalhava para ele em outro lugar, no tráfico. Uma vez, ele, conversando comigo, falou: “Mano, estou devendo para uns caras, os caras
querem me matar, não sei o quê, bababá”. Eu falei: “Mano, como é que é isso?” Aí ele falou: “Você tem um lugar para pegar a droga e tal e eu trabalho de noite”. Então, eram dois turnos. Um para quem trabalha no tráfico de dia e um turno para quem trampava no tráfico à noite. Eram dois turnos. E ele trabalhava à noite. E ele estava usando para caramba, falou: “Eu estou usando”. “Mas como é que vocês esquematizam esses bagulhos?” Ele falou: “A gente pega o crack, a cocaína e a maconha aqui. Tem os de dez, os de dois, os de cinco, e tal”. Eu falei: “Mas e aí, mano?” Ele falou: “Eu usei uns bagulhos, estou devendo outro, não consegui pagar, bababá, bababá”. Eu falei: “Tá, e como é que faz?” Ele falou: “Eu preciso, em uma semana, juntar esse dinheiro, para os caras não me matar”. Eu falei: “Então, vou te ajudar a fazer esse bagulho, tá ligado?” Porque aí, para fazer conta. Bom de vender, o cara vem, lhe dá o dinheiro, você usa a droga e depois você não sabe nem o que você está fazendo, porque tem que acertar as contas lá em cima. E eu nunca usei nada. Aí entrei com ele para colocar, a gente fez contas na biqueira, para ele trampar e pagar a dívida dele. Então, quem devia a ele disso a gente cobrou, e quem vinha comprar para pagar depois, pagava o dobro. Podia pagar depois. Você não vai deixar de pagar a droga. Então, nesse pagar o dobro, a gente pagou a dívida que ele tinha, os caras o tiraram e eu fiquei. E aí ele não morreu, ninguém matou, saiu, pagou o que ele tinha de dívida, com a estratégia que a gente tinha. Porque... O que eu comecei a fazer? Como eu trampei no Correio, eu guardei um montão de – era fogo - CPF, algumas coisas que a gente tinha. Montei uma base de linha telefônica. Porque, antigamente, para ter uma base telefônica, era só ter o CPF e o nome da pessoa. Eu montei uma base de linha telefônica, tinha duas meninas que trampavam dentro dessa base e aí eu montei um sistema de entrega: pegava a droga lá e entregava em Moema, para os outros que usavam. Aqui custava dez e em Moema custava quarenta, entendeu? Aí tinha uma menina que entregava e tinha um telefone para a gente fazer, que era esse. Caía uma linha telefônica, abria outra, no outro dia, com outro CPF. Caía outra linha, você abria outra, no outro dia, com outro CPF. Daí você fazia isso e, como eu nunca usei nada, era muito dinheiro. Eu lembro de ganhar sete mil reais por dia. Era muita grana. Mas muita grana. E aí não ficava em casa. Como eu dava essa desculpa para a minha mãe? Como eu tinha trampado de madrugada, fazendo inventário de supermercado no ano anterior, eu falava que estava fazendo isso. Aí chegava de dia... Trabalhava na madrugada, chegava de dia e dormia. Só que minha mãe começou a desconfiar de algumas coisas, algumas pessoas e não sei o quê. E era muita grana. Minha mãe, uma vez, achou dez mil reais em dinheiro. Hoje é muito. Imagina em 2000, entendeu? Achou dez mil reais e eu falei que era um patrocínio de um negócio de roupa, não sei o quê, da marca tal. E continuava no tráfico. Então, eu montei um sistema muito eficaz para os caras. O cara é que começou a ir lá com os (torres?) [1:24:37] do PCC, trocar ideia. Além de acertar, vendia muito. Muito. Aí fiquei uma cara muito ruim. De ver mina grávida indo buscar crack. E você vender. Os caras quererem dar a bicicleta que ele trampava entregando fruta, para a droga. Trazer relógio, roupa. O cara não pagar e eu espancar o cara. Eu fiquei muito ruim, assim, muito. E aí minha mãe descobriu uma vez, porque eu descendo... E aí, havia os lugares onde guardavam as drogas, quando sobrava, para você não precisar fazer acerto. O acerto era feito todas as terças-feiras. Então, todo dinheiro que vinha da semana eu entregava para os caras na outra terça. Você acumulava e ia fazendo acerto, pegava outras coisas, se você precisasse de alguma coisa: “Acabou a droga aí”. Os caras vão lá, trazem e você dá o dinheiro. Funciona como funciona um fluxo de supermercado. É a mesma parada, é uma empresa. A mesma coisa. E ali, minha mãe, uma vez, eu tive que levar droga para casa e minha mãe achou uns bagulhos em casa, assim. Achou um negócio de crack em casa enrolado num talãozinho e aí foi uma treta, eu falei que não voltava mais para casa, tirei minhas roupas, não sei o quê, mas para ela o medo é que eu estivesse usando, e não vendendo. Porque eu nunca usei. Aí eu fiquei uns dias fora de casa, lembro de passar pela minha mãe e os meus amigos, meus parceiros que cresceram comigo, também falando. Eu estava cego. Não escutava ninguém. Eu lembro uma vez de sair mais cedo de lá da biqueira e o gerente da biqueira ir me buscar quase que em casa. Falei um montão. Eu dava muito dinheiro e ganhava muito dinheiro. Mas não sei onde foi parar esse dinheiro. Nunca soube onde foi parar. Você não sabe. É um dinheiro ilícito, é um bagulho que você não sabe onde vai parar. Você compra um negócio, vai dar um rolé, compra não sei que lá das quantas, daqui a pouco você está pagando não sei o quê, não sei o quê, não sei o quê, você não sabe onde vai o dinheiro. Eu lembro de encontrar minha mãe uma vez na sorveteria, ela chorando, assim, passou por mim com meu irmão pequeno e eu estava conversando com um amigo, falando um montão, ela desesperada, foi falar com a mãe da minha filha, a Amanda, que é filha de coração, assim. E ela desesperada para saber como me tirava daquilo ali. Foi um período, eu acho, que de um mês. Ou dois. Que era para salvar a vida de alguém, que virou negócio. E era para salvar, mesmo. Não era para ganhar dinheiro. Ali, naquele momento, era mesmo para salvar alguém. Eu fui engolido pelo processo. E aí, um parceiro meu, que era irmão, tio da minha filha, parou, deu um chacoalhão em mim, um dia, falou: “Olha o que você está fazendo”. Foi lá na biqueira comigo, conversou, conversou, conversou, conversou, falei: “Firmão, vou sair”. Mas até para você sair de um bagulho desses, não é simples. Aí, a gente conversou num domingo, ele foi me buscar na biqueira num domingo, aí a gente trocando ideia, ele falou - e eu tinha que acertar - ele falou: “Vamos acertar amanhã”. Eu falei: “Mas aí as pessoas que me devem...”. “Vamos acertar amanhã”. E aí a gente saiu cobrando quem devia. Pelo menos para acertar a parte que a gente devia para o tráfico. A outra parte, que era a que eu pegava para mim... Porque eu comprava a dez, vendia a dez para quem está aqui; eu comprava a dez e vendia a 20 para quem ia me pagar depois. Mas eu tinha que assumir essa responsabilidade, de pagar os dez que eu peguei aqui, certo? Porque se esse aqui não me pagou, eu tinha que assumir a responsa, só que fora dali eu vendia a 60. Então, mesmo que ali os caras não pagassem, esses buracos eu ia... Era um sistema muito f... de administrar o bagulho, entendeu? Aí você pagava a menina para ficar no telefone, a outra para levar... O bagulho virou uma empresa dentro de outra empresa, entendeu? Porque os caras não tinham essa ‘expertise’. Então foi isso. E aí, trocando essa ideia, a gente foi em vários lugares cobrando as pessoas e fomos acertar na segunda-feira o bagulho. Ele me convenceu do processo, da minha mãe, de vários bagulhos, trocando ideia, foi comigo dentro do bagulho.
P/1 – Teve um argumento que foi...
R – Então... Falou da minha mãe, falou da minha filha, algo do que a gente já tinha feito, do que a gente já tinha colocado, mas ali, naquele momento, o que pegou foi minha mãe. Falou que minha mãe estava sofrendo naquele processo. A minha mãe. Foi isso. Mas não era ela que tinha que falar, entendeu? Era alguém para falar. Não era ela. O sofrimento dela, para mim, não servia se eu visse, mas alguém precisou trazer isso. Aí, a gente fez o acerto, na segunda-feira fui no campo. O Elber, que era esse mano aí, que era o gerente, falou: “Eu entendo você. Eu tive que abdicar de outras coisas da minha família”. Os filhos dele brincavam com cocaína no chão. Porque ele dividia nos saquinhos e tal e era isso, era normal na casa dele. Era isso. Muita droga. Aí, a gente acertou na segunda-feira, onde a gente sempre acertava, no campo, era uma casinha, você dava o dinheiro das drogas e tal e pegava as outras para você levar. Na terça, a polícia veio e foi todo mundo preso. Que era o dia do acerto. Na terça-feira, no dia do acerto, porque era o dia do acerto, entendeu? Então, a polícia fechou o campo e foi todo mundo preso, na terça. Um dia depois. Um dia. Nesse momento, o gerente foi preso, tráfico, e depois de um tempo ele saiu numa saidinha e foi morto pela polícia, fora. Foi morto. Isso foi um outro ponto, um outro estalo, Falei: “Não”. Aí, tinha um outro parceiro meu, o Dico, que a gente se conheceu no rap. Aos 15 anos ele produziu uma música minha, tal, estava morando na Zona Sul e a gente se reencontrou. Aí, ficou mais próximo, ele não me reconhecia nesse processo também ali. Então me aproximei mais dele depois desse bagulho. A minha família, estava minha mãe meio assim comigo, um distanciamento muito grande, entendeu? De ainda bem que saiu de lá, mas agora, aqui, também, é desse jeito. E aí, sem trampar, fiquei mais ou menos um ano meio que no limbo, mesmo, assim. Eu e o Dico fazendo música, produzindo algumas coisas sem receber, no rap e tal, não sei o quê, a gente ficou na baixada algum tempo, na baixada santista, aí minha prima estava namorando com um policial lá de Osasco, e aí também a polícia levava a gente - eu e o Dico - junto com ele nos rolés e também ele fazia acerto com o tráfico de droga lá em Osasco. Puxa, de novo nós vamos cair no mesmo bagulho? Agora, do lado de cá, com polícia? Então era isso: numa biqueira dez mil, na outra 15 mil, na outra 20 mil. E aí, a gente ia indo com ele, porque era próximo da minha prima e tal e era um cara bacana para você ser amigo e era um mau profissional. E é isso, não é? Então eu falei: “Caramba...”. E essas coisas perseguindo. E eu tinha uma coisa, que foi mais ou menos aos 15, 16, que foi a morte do meu primo também, que eu acho que eu pulei essa parte, que me tocou muito em relação à religião, não sei o quê, uma coisa que já falei: “Não acredito. Leva um moleque, com leucemia”. Ali, aquilo que falei: “Nunca mais eu entro num cemitério”. Que era irmão dessa prima minha que namorou com esse policial. Aquilo mexeu muito comigo também, para lidar com a morte mais uma vez. Então, de novo, era uma pessoa muito próxima de mim. E isso foi me deixando muito frio, a maioria das pessoas morrerem. Morreu, já era, não posso fazer nada. Então, está aqui, a gente tem que fazer. Morreu, acabou, já era. Não posso fazer. Então, isso foi me deixando muito frio também. Acho que foi uma parte que eu pulei. Nesse momento da vida em que a gente estava meio que lá na baixada, meio aqui, eu e o Dico produzimos um CD. Ele produziu o CD do Dexter, dentro da penitenciária de Santos. Ele produziu o CD inteiro dentro da penitenciária, numa sala fechada, com colchão. Dois anos depois, a gente produziu o CD - a gente já estava junto, os dois – do (Negro?) [1:34:00] Abraão, que fazia a participação no CD dos Racionais até ______ [1:34:05], parte dois, dentro da penitenciária de Hortolândia, em Campinas. A gente ficou uma semana com ele, entrando as oito da manhã na cadeia e saindo às cinco da tarde, produzindo o CD dele. Dentro do presídio, os dois - eu e o Dico - hospedados num lugar onde o crime é que banca _______[1:34:26] o crime, e a gente estava hospedado numa casa que também era bancada pelo crime. Era outro submundo. Aí, hoje é fogo, por isso que eu estou falando como o Estado o empurra para uns bagulhos, entendeu? Que você passa a não ter escolha em algum momento da sua vida. Você não tem escolha. Porque você não vê mais perspectiva nas coisas, entendeu? E a culpa não é sua. Porque você vai fazer o quê aos 19 anos? Eu costumo dizer hoje que tem um buraco dos 18 aos 25. Você vai fazer o quê? O cara que estudou a vida inteira em escola particular e vai começar a trabalhar aos 25, já tem a certeza do que ele vai fazer. Porque ele já sai ali da escola, entra na faculdade, tal, tal, tal e isso porque ali está bancando, você tem um direcionamento, a escola funcionava, olha isso aqui, olha lá, sabe? Museu tal, coisa tal, não sei o quê. Você não tem escolha. Por mais que você busque dentro da periferia, em si, você está num processo que o empurra para tudo quanto é lado. Se não é pelo dinheiro, é pelo poder ali, que você vai entrar nesses caminhos assim e, se não é pelo poder, é pelo confronto. Se não é pelo confronto, é por onde você vive. Vai lhe condicionando a situações que você tem noção quando você tem essa oportunidade de sair. E os moleques que não têm nem essa noção, não têm nenhuma, entendeu? Vai morrer, mano. Vai morrer, certo? Vai morrer, entendeu? A gente ainda conseguiu ter essa coisa do ser o racional. De parar em algum momento, colocar a consciência no lugar e falar: “Puxa vida, mano, os caras conseguiram. O Sistema conseguiu o que ele queria, mano. Entendeu? Que é nos deixar aqui de novo. Eles conseguiram”. A gente conseguiu pensar nisso, mas é fogo, não é? Então, é isso. Então, é injusto. A meritocracia é filha da …., que é injusta pra caramba, entendeu? Como você vai exigir o mesmo desse moleque que cresce nesse lugar, que vem com outro transporte, que a mãe nem está em casa, que nem fala coisa nenhuma, não consegue, que não vem, que vê o crime, que depois não tem dinheiro, que é isso? Como você vai exigir desse moleque a mesma coisa que você exige do outro lá de Moema, que come bem, se alimenta bem, que viaja nas férias? Vai para a Europa, que volta, que os pais isso... Como você vai exigir o mesmo dessas mesmas pessoas? Não dá para exigir a mesma coisa, entendeu? Porque esse moleque aqui vai se perder em algum momento. E, para se encontrar, ele ainda vai, talvez, ser morto, talvez ser preso. Então, chega a ser cruel porque a gente está falando em massa. Não estou falando da minha história. Mas a gente está falando de um coletivo em massa. Eu estou falando de pessoas que eu não sei onde estão, entendeu? E eu estou falando de pessoas que eu sei onde estão e porque eu sei onde estão agora. Não preciso nem fazer um estudo disso. É claro o bagulho, sabe? E chega a ser cruel. Essa é a parte que vai para a adolescência, em si, à fase adulta e aí, dessa coisa do fazer música, fazer rap. E decidi “sair fora”. 2006 o PCC fecha São Paulo, da briga do Estado com a polícia. 2006 é, literalmente, uma guerra declarada entre o Estado e a polícia. Onde, ‘meu’, sei lá, os caras queimaram ‘busão’, fecharam ponte, não sai para a rua. Polícia entrou no condomínio dando tiro. O bagulho era de tocar ninja, morreram dez aí numa padaria, sabe? O bagulho estava tenso, entendeu? Mas quem via isso? A TV ou nós. Quem continua na sua bolha, com seu dinheiro, com seus bagulhos, não vê esses bagulhos. Não vai ver, entendeu? Não vai. Pode até saber, mas não vai ver. Não importa. Os caras criaram o Sou da Paz quando morreu uma pessoa em Moema. Ninguém criou alguma coisa da paz quando morreram 12, 13, 40 lá, entendeu? Então, é isso, sabe? Foram se preocupar com a segurança pública quando sequestraram o filho do governador, entendeu? Aí você olha para a segurança pública. Mas você criou esse monstro, esse montão. O Estado cria esse monte de monstro, entendeu? Cria, todos os dias, um monte. Um monte. Sabe por que isso? Faz a máquina girar, entendeu? É um monte de corpo andando. Então, nesse momento, 2006, em que eu e esse parceiro meu, Dico, percebemos que a gente estava, mano, vivendo no meio do caos, depois de ter passado esse período muito louco, com 20 anos ali. Aí vem uma menina que eu conheci aos 15, que foi para Portugal, ela volta ali aos 20, tal, e a gente trocava ideia na internet e conversando e tal, no final do ano, com a gente, falou: “’Meu’, Portugal, não sei o quê, é bacana, legal, bababá, bababá, bababá”. Passou uns três, quatro meses, eu conversando com o Dico, ele falou: “Vamos embora, cara, vamos embora. O que você acha? Não sei o quê”. Aí, a gente vai para a baixada, fica um tempo na baixada, numa casa que minha tia tinha alugado, nós dois, final de semana, volta, fica meio que nesse limbo aí ainda e pensando. Aí, a gente concretiza esse pensamento, levo para o meu padrasto e para a minha mãe, aí meu padrasto fala: “Não, tem que ir, mesmo. Vou ajudar vocês, tal, não sei o quê, mas você tem que ir”. Então a gente pega um pensamento abstrato, concretiza. Na verdade, uma provocação dessa mina, tal, e ele falou: “Você tem que ir”. Aí, ele comprou as passagens no cartão de crédito dele. Foi quatro mil e 200 reais as duas. Eu peguei as coisas que eu tinha, vendi; o Dico pegou as coisas que ele tinha, vendeu, a gente ficou se despedindo ____________ [1:41:17]. (risos) Tinha um parceiro que tinha comprado os equipamentos, que falou: “Mano, eu deposito o dinheiro para vocês”. Deu metade e ia depositar a outra parte. E aí começa a saída do país, assim. A empreitada para “sair fora”. Ele tinha que me dar 600 reais dos equipamentos. A gente já tinha gasto a outra parte. Aí, a passagem estava comprada, hospedagem lá e tal, tudo certinho, só que ele não tinha depositado o dinheiro ainda; no dia da viagem ele ia depositar o dinheiro. Eu tinha uma conta no Bradesco. E a gente não tinha mais nada. Tinha, eu acho que cinco reais, dois reais, um negócio assim, esperando essa grana cair. E, àquela altura, o euro estava dois para um, estava bacana. Era dois para um, dois e cinquenta para um e o dólar estava um para um, assim. E a gente pegou, tinha escala em Recife, não é? Aí, a gente pegou para Recife, comeu uma sopa com as moedas que a gente tinha, uma sopa no aeroporto, e falei: “Vamos no Banco para ver se o dinheiro caiu e tal”. O Dico falou: “Vamos, cara”. A gente pegou um táxi, fui no Banco, que o Bradesco era longe do aeroporto, em Recife, fomos no Bradesco e falamos para o taxista esperar, que a gente ia sacar o dinheiro. Olhamos um para o outro e falamos: “Mano, se esse bagulho não caiu, nós estamos ferrados, não é? Fica aí, mano, com o taxista, para ele também não “sair fora”, porque senão ele vai “sair fora”. Ele ficou, eu fui. Saindo da porta, eu lembro dele, eu fiz assim com a cabeça, beleza, tinha depositado a grana. O Cascão, um parceiro. O Cascão do Trilha Sonora do Gueto. É um grupo de rap também. Era o único cara que, naquela altura, tinha dinheiro para comprar as coisas à vista, assim. Só pediu um tempo. Aí a gente, beleza, fomos lá na casa de câmbio para trocar dinheiro, para entrar pelo menos com uma ‘merreca’ em Portugal, tal. Deu 300 euros. Só que aí você precisava de um CPF para trocar na casa de câmbio. E o meu zoado, o dele zoado. O que a gente fez? Foi lá pedir para o taxista. Aí o taxista foi lá com a gente, na casa de câmbio, emprestou o CPF, trocou o dinheiro, tal, a gente pegou o avião e foi. Aí comemos no avião, estava na poltrona de três, no meio, e a gente estava levando, na mala, algumas roupas da Conduta, que era um patrocínio nosso de roupa da época do rap, garrafas de cachaça 51, que os caras falaram: “Leva cachaça, que vão vender”. Depois essa cachaça bancou um mês de aluguel nosso. E aí, fomos, descemos, não sabia, era a primeira vez que eu tinha andado de avião, eu nunca tinha andado de avião, entramos em Portugal, eu passei na imigração, o Dico ficou, os caras pediram para ele ir para a salinha e os caras me chamavam de Louco, que era DJ Louco, gritando. Falei: “Entramos juntos, vamos juntos”. Eu saí de onde eu estava, entrei na salinha com eles, os caras pediram para abrir a mala. Na hora em que pediu para ele abrir a mala, subiu aquele fedor de cachaça: tinha quebrado uma garrafa. O cara falou: “Fecha, fecha, fecha, fecha, fecha, fecha. Vai embora”. Passamos na imigração, os dois, cansados, exaustos, pegamos os 300 euros lá, pegamos um jornal, pagamos cinco euros no táxi para levar onde tinha feito a reserva de hotel, lá atrás, na agência. Aí, fomos parar no Ibis. Eu fui até lá esses dias, porque eu estava em Portugal, fui ver minha filha agora em janeiro, e foi a primeira vez que eu voltei lá, depois de seis anos. Fui ver os lugares onde eu... Muito louco... Fomos no Ibis, 125 euros a diária. Pagamos metade do dinheiro para passar tipo uma noite no bagulho. Uma noite e meia. Nós estávamos muito cansados, a gente pendurou as roupas, fizemos um varal no quarto para pendurar as roupas, que lavamos na banheira, e penduramos as roupas dele e tal e aí fomos andar por Lisboa. Ali começa a empreitada Portugal. É isso. No outro dia de manhã, num sábado, a gente pegou tudo que tinha no café da manhã, tudo, e falou: “Mano, se a gente ficar pelo menos três dias, não vamos passar fome”. Pegamos tudo e colocamos dentro de uma mala: pão, fruta pra caramba. Já que estamos pagando, vamos pegar tudo. (risos) E aí você tem 24 horas de um ... Esqueci o nome, que você pode deixar a mala, de 24 a 48 horas, no hotel. Você tem uma sala em que as pessoas, até, abandonam malas, não sei o quê. E aí a gente fez isso: encheu as mochilas, deixamos as malas no hotel e falamos: “Mano, quando a gente conseguir alguma coisa, a gente vem pegar as malas”. E aí começa a empreitada Europa, Portugal.
P/1 – Eu vou fazer três perguntas específicas. A primeira é: queria que você falasse... Para você, o que você acha, quais são os aspectos que caracterizam a identidade da gastronomia em São Paulo? O que é tão específico da gastronomia de São Paulo? Ou as gastronomias, também.
R – Na real, para mim, a gastronomia de São Paulo tem a ver muito com coisas rápidas. Não por falta de qualidade, mas coisas rápidas. Então, se a gente for pensar nas aulas, quando eu falo para os meus alunos... Inclusive, isso é uma parte de uma pesquisa dentro das aulas, que é a gastronomia de São Paulo. Primeiro, uma característica da gastronomia de São Paulo: tem que ser rápida. Você vê muito salgado: coxinha, bauru, pedaço de pizza, sabe? Você vê essas coisas que ‘quero comer e ir embora’, não é? Você vê, sei lá, cachorro quente que aqui não é o
americano, entendeu? É uma parada que você tem que comer e tem que ir embora. Então, a característica da gastronomia de São Paulo é isso: comer rápido. A cidade de São Paulo é coisa que precisa se alimentar e “sair fora”. Não é o
essencialmente, que é como acontece nos Estados Unidos. É uma comida rápida e de rua, muitas vezes, entendeu? Comer aqui e de rua. Porque quando você para, para ir a um restaurante comer, ou ele é
também, daí você vai lá e tem várias opções, é rápido, eu escolho, tem escolha, e mesmo assim é rápido. Ou eu levo a minha família, entendeu? Tipo Dia das Mães vou lá, levo minha esposa, meus filhos, para ir a um restaurante. Em São Paulo não é como na Europa, em que você vai sozinho a um restaurante comer. Então, tem essas duas características dentro da cidade: muito rápida ali, ou eu vou a um restaurante com a família. Eu tenho uma desculpa: eu vou levar minha namorada, minha esposa, aniversário de fulano. Ninguém vai... Aqui em São Paulo, dificilmente vai a um restaurante sozinho. É muito difícil você ver uma pessoa comendo sozinha. Então, a gente tem essa característica. Aí, a gente tem a característica da comida periférica, da cozinha periférica, da periferia. Que a cozinha de periferia é muito louca, assim, porque primeiro que você tem que fazer com o que você tem, com o que chega para você fazer. Mas como assim, com o que chega? Primeiro que, dentro de um supermercado na quebrada, acaba sendo mais caro do que dentro do mercado de um bairro nobre. Para você sair, para levar, o transporte é mais caro, a gasolina é mais cara, as estradas são piores, as ruas são esburacadas. Então, custa caro levar um alimento até a periferia. Muitas vezes, ele precisa custar mais caro também porque custa caro eu manter isso daí. Então, é muito louco. E aí, além de ser caro, é um alimento de baixa qualidade que chega, não é? E já chega comprometido, entendeu? Então, durante todo esse processo, todo esse trajeto, esse alimento chega comprometido às periferias. Então, você tem que fazer com o que tem. Você vai sair de lá para vir comprar aqui? Não vai. Você vai ter que fazer com o que tem lá. Isso é uma delas. Aí, você tem outras coisas, que é assim: pizza na periferia. É diferente de qualquer outro processo porque primeiro: por que a molecada compra pizza? Porque é algo que você consegue comer em mais gente e a gente compra porque é cinco reais para cada um; cada um come dois pedaços. Isso quando a gente está em quatro, entendeu? Então, a pizza passa a ser uma comida estreitamente periférica. Porque é isso: uma coisa que a gente pode compartilhar junto, entendeu? E todo mundo consegue ratear. Então, tem um monte de pizzaria por metro quadrado dentro das periferias de São Paulo. Essa também é uma característica da gastronomia de periferia, não é? Outra característica da gastronomia de periferias é feijoada aos finais de semana, no sábado. Você vai lá também porque você vai levar para a sua família, levar para o pessoal que está ali. Comida nordestina vai ter muito também em restaurante e em pequenos lugares. O que aparece hoje também é muita hamburgueria, muito hambúrguer para você ter. Mesmo assim, a aceitação é bacana, mas você consegue comer hambúrguer todo dia. Tem alguns dados dentro das periferias, dentro dos supermercados, que são assim: primeiro, que a carne é o que se vende mais, e é o mais caro. Mas é o que se vende mais. O segundo que se vende mais dentro dos supermercados é o peixe. Não é o frango, nem a carne de porco. O frango é terceiro e a carne de porco ainda é consumida por último, por conta de coisas que a gente carrega ainda, de preconceitos que a gente carrega ainda, que a carne de porco era suja, que não sei o quê, coisa que o cara que tem dinheiro já não carrega mais. Ele consome o filé mignon da carne de porco. Lá, não. E aí, o peixe, o consumo alto de peixe explica um monte de restaurante japonês dentro da periferia. Você tem um atrás do outro. Que é o restaurante
, não sei o quê. Um atrás do outro. Explica várias coisas. Não quer dizer que as pessoas tenham um acesso a isso. Quer dizer que está se comprando mais, não que está se consumindo mais, não é? Então, tem alguns números que explicam alguma coisa dentro da gastronomia da periferia: a carne, o consumo alto de carne na periferia não se deve a que se tem muito dinheiro, se deve a que eu vou fazer um churrasco no final de semana, eu quero comemorar alguma coisa. Mas a gente não consome tanta carne assim. Não tem nem dinheiro para isso. Então, de novo: o que está se vendendo muito não quer dizer que está sendo consumido muito, não é? A gente come, mas consome em momentos pontuais. Porque você não come na quebrada. O moleque não come carne porque ele não gosta, é vegetariano. Não, porque não tem dinheiro para comprar. É isso. Então, são alguns recortes que explicam algumas coisas. E a gente também precisa entender o processo histórico nosso, do Brasil. O porquê do pobre querer consumir carne; o porquê do pobre querer casa; o porquê do pobre querer carro. A gente vem de um processo escravocrata de 500 anos, onde quem era meu dono tinha casa, tinha terras e, quando me solta, me solta sem nada. Não sabia ler, escrever, não tinha terra, mas eu quero o que aquele cara tem, certo? Então, você entra na casa de um pobre, que são dois cômodos, ele tem a cama, a televisão, uma cômoda, um ventilador no teto, mais aqui outra escrivaninha, uma bicicleta, tudo acumulado ali. Então, nosso poder de ter, nossa ânsia de ter veio da falta de ter, e porque os outros tinham. Então, também o dono que era ali, meu, do escravo, tinha lá vaca, galinha, tinha um monte de coisa e consumia carne. Eu não podia ir lá atrás. E aí eu arrasto esse processo histórico na periferia também. Então, esse processo histórico de consumismo das coisas explica, se a gente for entender, a gastronomia explica o momento que a gente vive hoje, o consumo que a gente vive hoje e até quem a gente elege. Explica, porque o cara quer ser aquele cara ali, bem-sucedido e tal. Era isso. Então, nosso processo histórico tem que ser entendido, porque a gente não entendeu ainda que a gente é o dono dessa economia, não é? Que a nossa gastronomia, na periferia, é importante, entendeu? Mas quem estudou nossa gastronomia? Quem foi lá fazer o processo disso tudo, como fizeram na França, com um corte assim, assim, assado?
P/1 – Você falou que a gastronomia na periferia é um processo importante. Importante por quê? E para quem?
R – Na real, a gastronomia é importante em qualquer situação, não é? A gente tem que entender essa palavra primeiro. Porque gastronomia nunca teve a ver com comida, é o estudo do estômago e depois isso se transforma para virar algo que é distante da periferia, em si. Distante. Mas se você está cozinhando, é gastronomia. Dentro desse contexto. Se você transformou alguma coisa, é gastronomia. A gastronomia é o conjunto do processo. É a venda, é eu me preocupar com embalagem, é eu me preocupar onde está, é higiene e segurança alimentar, é tudo, é gerir. A gente já faz isso há muito tempo. A mãe tem que gerir uma vida que tem que vir inteira, é aquela mulher que mora lá sozinha com o filho, tem que gerir o tempo dela, depois tem que chegar, cozinhar, fazer, pensar em todos os processos. Ela já está fazendo isso. Ela já está fazendo o que a gastronomia faz. Então, quando a gente rotula isso e coloca isso como gastronomia periférica dentro da periferia e fala assim: “O que você faz também é gastronomia...”. “Opa, espera aí, então é verdade, então há muito tempo eu já faço isso”. “Você faz isso”. E aí, você dá o reconhecimento. A nossa autoestima, na periferia, está ferida, entendeu? Então a gente precisa, sim, se apegar a coisas como essas e nada melhor do que a comida, para se apegar e falar que é bom.
P/1 – Qual é a identidade ___________[1:55:20]?
R – É isso. É fazer com que a gente tenha, porque chega com a gente. Abrir um lugar e falar: “O que eu vou fazer com isso?” Essa é a identidade, sabe? Porque não dá para escolher, muitas vezes, ingrediente. Não dá. É justamente você trazer esse processo e falar assim: “Eu tinha isso, tinha uma cenoura na minha geladeira, tinha uma alface na minha geladeira, tinha o feijão que sobrou de ontem, ainda tinha o arroz para colocar. O que a gente vai fazer com isso? É justamente fazer com o que tem, porque não dá para você escolher muitas coisas, sabe?
P/2 - ___________[1:55:53] também?
R – Sim. Há coisas que a gente faz. Isso a gente está falando de uma vertente em quadradinha ali; de uma coisa que é fazer com o que tem. Aí, você tem... Se a gente fosse colocar num guarda-chuva outras coisas que são as pancs, por exemplo. A maior concentração de plantas alimentícias não convencionais é nas ruas da quebrada: uma taioba na beira do córrego, sabe? A gente tem a concentração de pancs, que são plantas periféricas. Elas resistem tanto quanto os periféricos, lá. Vai resistir à chuva, à água, a um monte de coisas elas vão resistir. Então, não tem mais plantas periféricas do que essas que são, na verdade, convencionais, sim. O que faz elas serem convencionais somos nós. A utilização delas. Então, a utilização de plantas alimentícias não convencionais aí, as pancs, passa a ser um prato periférico. Não tem ideia. Você não vai ver tantas pancs, na concentração, como você vê em outros lugares. Você vê pancs que você consegue consumir, tal, em bairros como aqui em São Paulo, sei lá, na Vila Madalena, em Perdizes, você vai ver plantas aqui, mas não com aquela concentração que a gente tem lá. Então, fazer com o que tem também são essas plantas, porque elas estão ali, à nossa disposição.
P/2 – Por exemplo?
R – Como, por exemplo, a azedinha, o peixinho, que são consideradas pragas ali, em alguns momentos. Você jogou, vai embora. Planta uma muda de peixinho, ela vai embora; planta azedinha, ela vai embora. A capuchinha, a ora pro nobis; “meu”, numa porção de lugar você consegue ver. Você vê em beira de córrego a taioba. Porque ela gosta de água, processo bem úmido ali. Então, essas daí estão muito concentradas e a gente não sabe, a gente perdeu, porque é um conhecimento empírico, você precisa ter vivido aquilo. Aí, você precisa conversar com as pessoas que sabem, não é? Tipo: “Você pode comer”. Minha avó falava assim que, se você vê um bicho comendo, come. Se ele não comer, você nunca viu, não come. Porque é isso, não é? Um parceiro meu, o Rafa, fala: “O melhor símbolo de orgânico é quando eu entrego com a marca de um bicho ali ter comido, porque não tem agrotóxico, nem nada”. Então, esse é meu selo de orgânico: quando um bicho comeu aqui. Se o bicho comeu, é o selo de orgânico, não é? É isso. O que a gente precisa entender é que o processo da mão de obra está invertido, assim. Nossos valores estão invertidos. Porque o pequeno produtor periférico planta. As mãos periféricas plantam os orgânicos. Essas mesmas mãos que plantam os orgânicos vendem para os outros, que querem consumir orgânicos, que não somos nós da periferia. Aí, o supermercado grande compra do Ceasa com agrotóxicos e traz para a gente. Esse mesmo cara que plantou está vendendo saúde e consumindo doença. É isso. A inversão de valores é gigantesca. E a gente está falando da gastronomia, especificamente. Mas isso acontece na educação, isso acontece na saúde, isso acontece em diversos lugares, não é? Mas dentro desse recorte da gastronomia é isso: a gente planta saúde e se alimenta de doença. Todos os dias da nossa vida.
P/1 – Eu tenho duas perguntas ainda sobre a questão do conceito da gastronomia periférica, uma é com o olhar dentro da periferia, tá? Essa que eu vou fazer agora. Eu queria que você falasse um pouco qual é esse potencial de pensar numa gastronomia periférica, na periferia. O que pode ser transformador? É um potencial transformador? Se sim, o que é transformado?
R – Primeiro que, assim... A gastronomia entra em qualquer lugar. Tem lugares em que a minha comida entrou e eu não. Então isso já é um potencial, não é? Ninguém deixa de comer. Você deixa de comer porque você não tem. Não quer dizer que você não queira, não é? Então, a comida entra em qualquer lugar. Quando a gente descobre que a gastronomia periférica é uma ferramenta de transformação social - ela pode ser - porque as pessoas comem todos os dias nas casas delas. Aí a gente vai... “Opa, espera aí, vou entender uma família, vou entender uma criança, não é?”. Vou entender porque a criança está comendo de colher: “Por que a criança está comendo de colher?” Eu vou lá: “Não, toma aqui o garfo”. Porque, às vezes, ela tem aquela refeição e eu comer de colher parece que eu estou comendo mais e, se eu estou comendo mais, parece que eu não vou ficar com fome. Então eu como de colher, entendeu? Por que aquele moleque não come carne? Porque ele é vegetariano. Não tinha, ele não está acostumado a comer carne. E, para ele, não faz diferença nenhuma estar a carne ali ou não. Você criar seu filho sem comer açúcar. Ele vai chegar com dez anos ali, sem comer açúcar. Se você criou o moleque sem comer carne, não é porque ele é vegetariano, é bacana, não queria matar bicho. Não. É porque não tinha, realmente, não é? Então, utilizar a gastronomia como ferramenta de transformação social. O Gastronomia Periférica, em si, não é só o processo de cozinha. É o processo técnico, um processo de formação, também, humana. Desenvolvimento pessoal dessas pessoas. Quando a gente passa a fazer oficina de aproveitamento total dos alimentos, quando a gente fala de desperdício: “Pô, você está falando de desperdício, quer dizer que eu não posso jogar a casca fora?” Também, mas e o tanto de desperdício de tempo que você tem no seu telefone, lendo coisas que não têm nada a ver, absorvendo informações que intoxicam você, andando com pessoas também ruins? Esse tempo também é desperdício. E o desperdício de tempo que você tem aí no transporte público, porque você passa duas horas lá, nele, porque você não contesta o Estado. Então, o desperdício não é... A gente sempre alega a alimentação, mas ele é um conjunto ali. Então, a gastronomia periférica faz a gente pensar nesse todo contexto. O aproveitamento integral dos alimentos é o aproveitamento integral do seu tempo também, não é? De como eu aproveito melhor meu tempo. Eu tive um chef de cozinha, o Ramon, lá em Portugal, que era dominicano - um restaurante espanhol. Ele olhava para mim, assim, quando eu chegava atrasado, a única coisa que ele falava para mim era assim: “El tiempo hay que aproveitar, hay que aproveitar. No final devia ter umas dez, três, quatro, oitio, mas tenes duas, três horas. En um año tenes três dias a menos”. É isso. O acúmulo dessa perda de tempo, depois, lhe faz ver o que você poderia ter feito nesses dias que você acumulou, que você não aproveitou. Então, isso é muito importante, assim. Assim, o Gastronomia Periférica utiliza todas as ferramentas possíveis que a cozinha traz. Para fazer uma formação dentro de uma cozinha você traz pratos de referência dessas pessoas que estão com a formação com a gente, para falar de técnicas, não é? “Minha mãe fazia um feijão...”. “Quanto tempo tem que cozinhar o feijão? Em que ponto ele tem que ficar bacana? Como ele tem que ficar?” Aí, você traz isso, mas não vai trazer lá um bife
e um
para explicar a gastronomia na favela. Eu nem vejo mais pato na quebrada, imagina um
! Então: “Minha mãe faz um arroz muito bom”. “Vamos lá! Como é que é esse arroz? Qual é esse tempo? Como a gente pode destrinchar isso?” Então, você traz técnicas para dentro de uma coisa que é muito próxima. Aí, você vai trabalhar com chocolate. Como é que eu derreto uma barra? Porque o moleque vê a barra de chocolate, quer comer. No que você consegue transformar, fazer essa barra e usar? Então, na real, eu costumo dizer que cozinhar, no final, no Gastronomia Periférica, é o menos importante. É isso. A gastronomia é a desculpa para que a gente possa discutir qualquer coisa. Então, você vai falar de aborto, fala que a gente vai comer primeiro: “Vamos almoçar”. Você vai falar de transporte: “Vamos tomar um café”. Então, é isso. E o (consumo?) [2:03:43] do Gastronomia Periférica hoje é levar um pedaço de nós para dentro de você. As pessoas não colocam coisas para dentro que não sejam importantes. Então, você está colocando um pouco da gente dentro de você, é sinal que é importante, entendeu? Então, é isso: é levar um pouco do que a gente está oferecendo, para dentro de você, entendeu? Eu costumo brincar com as crianças assim: “Quando você, no rótulo, não conseguir pronunciar a palavra, não consuma. Porque vocês não colocam ninguém estranho dentro da sua casa. Ou colocam? Então, como é que você vai levar uma coisa estranha para dentro do seu corpo?” Aí eles ficam olhando para a minha cara: “Não, mas é diferente”. “Não é, pô. Você não sabe o que é, como é que você vai comer? Como que você está colocando algo para dentro de você, que você não sabe nem o que é, não consegue nem falar o nome da parada?”. Entendeu? Então, é isso. Então, é muito mais do que você cozinhar, porque não dá para mensurar em números, porque são muitos números: “Quantos alunos vocês têm? Quantas pessoas são atingidas? Qual é o processo?”, não sei o quê. A gente até pode apresentar isso para você, mas vamos entender, primeiro, o que a gente está fazendo, como isso reverbera. Aí você apresenta, sim, os números e destrincha isso. Vamos entender por dentro primeiro.
P/1 – Tem alguma passagem, algum caso, alguma criança ou adolescente que tenha passado pelo Gastronomia e você gosta de contar essa história, seja por ter observado de perto uma transformação que aconteceu ali? Ou até mesmo algum caso que você fala: “Nossa, eu criei isso para isso”?
R – Na real, tem vários, assim. Tem alguns que são emblemáticos, que é assim: a gente sabe que quem... A molecada... Aí, a gente vai falar de jovens, adolescentes ali que passaram pela formação e pelo Gastronomia Periférica... a gente sabe que a gente não perde mais, entendeu? Ele foi provocado de uma maneira, mesmo que ele se distancie, a gente sabe que não vai perder para o tráfico, para o crime. Não vai perder. Porque ele passou por uma transformação tão grande dentro da vida dele, que não vai perder. Então, tem alunos que passaram com a gente e continuam fazendo eventos, tendo algumas coisas com a gente e eu sei que é dor de cabeça: “Isso aqui eu não faço, essa parada. Eu sei o que estou fazendo”. Mas você está distante, tal. Dentro desse processo de formação da escola de gastronomia tem alunos trabalhando com a gente, diretamente, que hoje são assistentes de um processo de eventos, tem ex-alunos em restaurantes, que passaram numa formação recente e estão trabalhando em grandes restaurantes. E tem uns que, sei lá, o Yuri, que estava com a gente, que estava lá, a mãe dele é cozinheira de uma creche, de uma escola. Eu falei: “Você precisa cozinhar com sua mãe, cara. Você precisa entender o que é”. Porque para a mãe dele era só cozinha. Para ele era o cara que estava dentro de um restaurante. Falei: “Vai lá cozinhar”. Colocar os dois juntos foi importante, entendeu? Muito importante, mesmo. Colocar pessoas em grandes empresas. Ex-alunos que mandam mensagens e falam: “Isso mudou meu modo de ver as coisas”. Trazer as famílias para comer junto deles, coisas preparadas, assim, que reverbera muito, muito. Porque aí: “Esse aqui nem cozinhava em casa, nem fazia nada”. Esse é o processo jovem, adulto ali, adolescente. Então, você os vê muito ativos e eu costumo dizer que a gastronomia é um jogo de futebol da quebrada. Porque a gente perdeu nossas referências, não é? É isso. Quem era o nosso último ídolo dentro desse processo? Então, se tudo der errado quando você cozinhar e você não ficar famoso, pelo menos você vai aprender a cozinhar e não passar fome. É isso, porque essa era a busca. Daí, com crianças, que eu acho que é uma transformação muito grande, eles vão descobrindo coisas... Esses dias, a mãe de uma das crianças para quem a gente dá aula falou para um parceiro nosso, que é de um projeto: “Ela não conversava, não falava com ninguém em casa. A partir do momento em que ela começou a fazer o curso com vocês, ela é outra: ela pesquisa, ela quer cozinhar, ela quer vir aqui”. Porque, dentro de casa, às vezes, você não percebe o potencial que essa criança tem. E aí você precisa ir se colocando. Então, ouvir isso de uma mãe que vai agradecer: “Obrigada por fazer minha filha interagir com outras pessoas dentro desse processo”. Que é a Ingrid - ela tem 12 anos. ‘Meu’, e é espetacular. Ela vai pesquisar, ela vai entender, a gente troca ideia, sabe? E aproxima, entendeu? Então, é isso. É, literalmente, usar a gastronomia como transformação social e desenvolvimento humano, assim.
P/1 – E agora, como eu falei daquele olhar de dentro, eu quero que você me responda agora, com esse olhar de fora: como a cidade de São Paulo enxerga essa gastronomia de periferia? Como esses movimentos se encontram, não se encontram...?
R – Na real, é assim: uma coisa muito importante eu falo, que é... Primeiro, se você tem um restaurante chamado francês, dentro da cidade de São Paulo, não tem ingredientes franceses, que não vêm da França, seu cozinheiro não é francês e mora na periferia, você faz mais gastronomia periférica do que francesa. É isso, entendeu? Porque você não traz ingredientes franceses, não tem um cozinheiro francês e nem está na França. Só come comida francesa na França. É isso. Só come comida japonesa no Japão. Aqui, se você tem um sushi na periferia, você vai ter uma comida periférica inspirada na comida japonesa. E é isso. E com cara da periferia ali. Então, você vai ter um hambúrguer periférico, uma comida periférica e é isso. Aí, quando você traz esse cozinheiro da periferia para dentro do seu restaurante e compra um produto orgânico que é produzido na periferia, você está fazendo gastronomia periférica. Você não está fazendo gastronomia francesa, entendeu? É isso. Gastronomia francesa a gente faz na França. Não se faz aqui. Aqui a gente faz gastronomia brasileira com periferia, com ingredientes orgânicos daqui e é isso, não é? Então, começa a se ver esse movimento. No entanto, você já não vê tanto chef de cozinha francês dentro de restaurantes franceses. Estão na televisão porque é legal ver o francês na televisão, entendeu? É bom, é bacana, tem o sotaque, os caras não estão... Perderam o espaço. Você vê outros restaurantes ocupando esses espaços, essas lacunas. Então, não é como o de fora vê, é como é. Não adianta você virar para mim e falar que você tem o melhor restaurante japonês. Ok, mas seu
é cearense, irmão, entendeu? Mora lá no Jardim ngela. Então: “Não, porque aqui a gente faz o melhor
”. “Beleza. Mas, mano, aqui é baiano seu cozinheiro, certo? Mora ali no Grajaú, na Cidade Tiradentes. Você vai falar para mim que seu cozinheiro é francês?” “Não, mas meu cozinheiro é italiano. Eu o trouxe da Itália para fazer comida italiana”. “Ok, e onde você compra os seus tomates? É orgânico, não é? Porque você não vai usar o tomate ali com agrotóxico”. “É”. “E de onde vem? Você planta aqui no restaurante?” “Não” “Quem plantou para você? Foi mão de obra periférica. Então, seu tomate é orgânico e periférico. Então, irmão, não tem jeito, você está entendendo? É isso”. Agora, como as pessoas veem, olham de fora, eu não sei. Eu tenho muita dificuldade de entender, ainda. Porque muitas vezes eu vejo um incômodo, mas aí também para mim tanto faz, não é isso. Eu nem sei se é, realmente, um incômodo, nem tenho essa certeza, porque também não é dito claramente, mas eu percebo que hoje há uma coisa do tipo assim: “Não vamos discordar quando ele estiver aqui porque vai ter argumento para falar. Então, não vamos discordar. Vamos só ficar quietos”. Não tem uma discordância ali. Então, eu percebo que há um medo, tanto do poder público, muitas vezes, de associar... Porque não tem como você falar de comida de periferia, hoje, sem falar de gastronomia periférica. Não tem como você falar de gastronomia, hoje, na cidade de São Paulo, sem falar de gastronomia periférica. Não tem. Não dá mais. A gente criou, hoje, uma categoria de cozinha que já existia, na real, entendeu? É que agora você faz essas pessoas entenderem que fazem gastronomia, entendeu? Eu sou um cozinheiro que faço gastronomia. Não faz ele ficar lá atrás, na cozinha, sem nunca ter sentado lá no salão. Faz a autoestima dessas pessoas estarem fortes. Isso incomoda, entendeu? Porque eu só quero sentar e comer, não quero saber de cozinha, mas a figura do chef é bacana. Não. São mulheres periféricas que têm filhos e colocaram suas energias naqueles pratos, entendeu? São mãos periféricas que colocaram energia naqueles produtos. Então, como se vê, eu tenho muita dificuldade, hoje, de ver como a cidade de São Paulo vê. Mas teve um dia... Eu estava vindo de uma viagem e aí desci a Oscar Freire com a minha mala, que tinha estourado a rodinha, estava puxando-a e tal e olhando, observando os restaurantes. A gente está na quarta rua mais cara do mundo, que é a Oscar Freire. É a mais cara do Brasil, que é a Oscar Freire. Cara. Dos maiores restaurantes, maiores lojas e tal, 90% mora na periferia, que trabalha ali, lavando os pratos ou trabalhando em loja como vendedor. É isso. Os outros são CEOs de alguma coisa, estão ali os outros dez. Aí comecei a observar os restaurantes, colocando pisca-pisca num vidro de palmito, em cima da mesa, fazendo caipirinha num vidro de azeitona e colocando um canudo, pegando os copos de requeijão para fazer ____ [2:13:58]. Falei: “Vai se danar, a gente já fazia essa droga, ‘meu’. Fazia porque não tinha, tinha que juntar copo de requeijão para colocar, tinha que comprar o de molho de tomate para tomar café. O pisca-pisca da árvore de Natal tudo torto, juntava de vidro para colocar alguma coisa”. Então, se apropria de algo que a gente fazia por necessidade. E agora é ‘da hora’, é
o bagulho, entendeu? É
, é legal. Mas aí, beleza, lhe causa aquela revolta ali dentro e você fala: “Puxa vida”. Mas aí, ali, você tem que trazer sua identidade, você tem que deixar isso claro. Que é nosso esse bagulho, que a gente fazia por necessidade. Ninguém está inventando nada, sabe? É isso. É a mesma coisa: discutir bicicleta compartilhada. “Não, que a ideia...”. Que mentira, mano! A gente comprava uma bicicletinha, dez moleques, para andar, tinha que dar uma volta cada um, e isso já era compartilhar a bicicleta. Só um tinha bicicleta. Então, a gente falava: “Dá uma volta e volta, que agora sou eu”. A gente já fazia isso. A diferença é que sistematizaram o bagulho e colocaram dentro do aplicativo. A diferença é que sistematizaram as coisas e colocaram na Oscar Freire. Aí, é legal estar na Oscar Freire. E aí, você, numa cidade de 12 milhões de pessoas, onde a periferia é quase 80% desse número que a gente está falando - de 12 milhões - se destacar como gastronomia e as pessoas não entenderem o que é a gastronomia periférica... “Você não entendeu o que é?” “Não”. “Então vai lá comer e pronto. É isso”. “É mesmo?” “É. Se você parar num restaurante, dentro da periferia, você está comendo comida periférica. Aí você vai falar depois, se é bom, se é ruim, tal, mas isso é gastronomia periférica, entendeu? Isso é a essência da gastronomia periférica. Quando você leva seu cozinheiro da periferia para o restaurante francês, você está comendo uma reprodução da gastronomia periférica”. “É?” “É. Porque você está reproduzindo gastronomia francesa, irmão. Então, para comer gastronomia periférica, só estando na favela para comer. Para comer comida francesa, só estando na França”. “O que é isso?” “É simples. Não tem o que inventar. É simples. A gente reproduz coisas, entendeu? Então, não tem o que inventar”. Quando você traz o que a cidade acha, do que se coloca, como é. E aí, nessa reflexão que eu falei para você, descendo a Oscar Freire, eu vi e falei: “Mano, aqui tem uns 30 restaurantes. Esses caras pagam para ter dez linhas numa revista em São Paulo. Numa crítica. Nos últimos dois anos, num
do Gastronomia Periférica, em si, tem duas matérias por mês. Seja rádio, revista, jornal, televisão. Duas matérias por mês. Mas não é porque a gente quer estar na matéria, para promover o que a gente está fazendo. Não. É porque a gente faz, entendeu? A gente faz. E faz”. Aí, um monte de instituto, um monte de não sei o quê, um monte de não sei o que lá das quantas começou a falar assim: “Onde vocês fazem? É que a gente faz um estudo aqui da comida da Amazônia, que não sei o quê. Onde que é? Eu quero ir lá ver”. “Mas aí tem as fotos que a gente...”. “Onde você faz gastronomia periférica?” “Vem aqui. Vem ver o que a gente faz, de segunda a sexta, das oito às vinte e duas, sábado e domingo assim, assim, assado. Vem aqui ver. Vem aqui. Senta conosco, venha comer conosco”. Entendeu? Dá trabalho? Lógico que dá. Cansa? Lógico que cansa. Mas faz. Em época de internet, tirar foto parece que você está fazendo. E não é bem assim.
P/1 - ______ [2:17:25] gastronomia periférica despontou no mundo todo?
R – Hoje a gente tem uma cozinha fixa no Capão Redondo, dentro de um Centro de Educação para Jovens e Adultos, que é uma escola pública que recebe a Escola de Gastronomia Periférica. E aí a gente tem lá uma cozinha e uma padaria e a gente recebe os alunos do Centro de Educação de Jovens e Adultos e outros alunos que ___ [2:17:48] na internet. E aí, as formações de gastronomia acontecem lá. As aulas técnicas e de desenvolvimento humano. E o Centro de Educação de Jovens e Adultos, que é o Cieja do Campo Limpo, já é aberto há 20 anos. Tem um modelo criado pela dona Eda. A dona Eda é uma senhora que me deu meu primeiro fogão, porque nas oficinas eu carregava fogão no ônibus. Aí ela falou assim: “Você não pode mais fazer isso”. Me deu meu primeiro fogão e abriu espaço - e hoje é o Diego que está lá - para ter a escola de gastronomia dentro do Campo Limpo, no Capão Redondo, hoje, que é um espaço que a gente utiliza lá. E é uma escola aberta. Então, qualquer um pode tomar café, qualquer um pode almoçar, qualquer um pode tomar café da tarde, qualquer um pode jantar. É uma escola aberta dentro do município. E é um modelo ideal para todas as escolas. Porque a gente só quer entender que as pessoas morreram dentro da escola. Não quer entender porque os moleques entraram para matar. E era uma escola. Se eu queria atingir um monte de pessoas, devia ir na Praça da Sé, lá, seis horas da tarde, na estação, e matar. Mas por que uma escola? Ninguém perguntou. Não teve ninguém perguntando por que uma escola? Não é? Então, uma escola aberta, na contramão de todos esses processos, que é onde o Gastronomia Periférica age, atua hoje. Aí tem um segundo espaço, que é para crianças de 10 a 17 anos, que é dentro do projeto ______ [2:19:04], na favela do Jardim Ibirapuera. E lá é um recorte diferente, onde a gente faz oficinas de continuidade - mas é segunda, quarta e sexta - falando de gastronomia brasileira, amazônica e essência, falando da relação com eles, de higiene e segurança alimentar, trocando ideia, falando da história da gastronomia, falando de chocolataria e trabalhando o processo de desenvolvimento humano e psicológico deles, que é com a Adélia também, uma psicóloga, uma vez por semana, estando lá e entendendo todo esse processo dessas crianças e o que acontece dentro desse lugar e tudo, desenvolvendo esse espaço e as potencialidades dessas crianças. Então, é muito importante. E aí tem o outro espaço, que foi onde começou a escola de gastronomia, que é o bistrô, dentro do Chácara Santana. Um processo que agora não tem mais a formação e recebe alunos para fazer estágios e tudo, porque é um restaurante-escola. Só que a gente precisava de uma cozinha também, de estudo, então, a gente foi para o Capão. E aí tem essa tríade aí: São Luís, Capão Redondo, Jardim Ibirapuera, dentro desse processo. Mas o Gastronomia Periférica age em outros lugares. A gente tem um aplicativo que mapeia a parte gastronômica das periferias. Eram 70 comércios, a gente tem 750 na cidade de São Paulo, onde você abre por geolocalização e sabe onde está para você comer, tal. É um monte de panfleto dentro do seu telefone. Então, foi isso que a gente fez: criou um aplicativo. Dentro desse guarda-chuva do Gastronomia Periférica, a gente tem o Rango, que é um serviço de catering, onde a gente faz café da manhã, almoço e jantar e aí os alunos da escola de gastronomia são contratados para fazer esses eventos e o dinheiro gira entre eles e também tem horas de estágio - eles precisam cumprir 200 horas de estágio dentro da escola de gastronomia. A gente recolhe frutas, legumes e verduras, duas vezes por semana, de dois supermercados grandes, para fazer uma feira aberta. Então, às terças e quintas, a gente recolhe alimentos que, supostamente, estavam feios e iam ser jogados fora, e são dados para 50 famílias, às terças e quintas. É uma feira aberta, com famílias cadastradas. Aí, a gente ainda vai para um terceiro supermercado, para atingir um outro processo, que é o do Viela. E aí são oficinas acontecendo na cidade inteira: palestra, eventos... E a gente tem um produto também, que foi o livro. Saiu um livro do Gastronomia Periférica ano passado. Explica um pouco de cada projeto dentro do livro. É um livro de receitas com história, então, é muito bacana. Eu acho que é isso.
P/1 – Quais são os desafios para desenvolver a gastronomia de forma sustentável?
R – É esse... Assim... O desafio primeiro para desenvolver de forma sustentável... O que é sustentável? Quando nós vamos falar de sustentável, o que é sustentável? Você vai explicar o que é. Primeiro: você tem que ser autossustentável. Então, a gastronomia tem que entender quem é que planta lá, qual é a importância dessa pessoa, o quão essa pessoa se sustenta ali, como ela ganha o dinheiro, o que ela precisa. De onde vem esse produto, o processo de transporte dele até chegar ali, dentro de uma cozinha, de um preparo, até ir no prato, até ir sendo descarte. E fazer essa logística reversa de novo, para você pensar o que é sustentável, porque esse ciclo precisa acontecer para que essas pessoas não deixem de produzir. Porque ninguém vai deixar de comer, não é? Mas muitas vezes você vai deixar de comprar desse produtor. E aí, quem compra? Precisa ser sustentável esse ciclo. A periferia, em si, eu falo muito desse lado. Por quê? Ela precisa entender que ela precisa comprar dela mesma, entendeu? Que o dinheiro precisa ficar ali. Então, um aplicativo que mapeia os comércios. Eu tenho que pagar lá, eu não tenho que ir lá no grande restaurante. Não, eu tenho que comprar aqui, porque se meu dinheiro ficar aqui, a gente tem a economia aqui, entendeu? Então, é isso. Para ser sustentável, as pessoas precisam entender que a grana tem que ficar lá. Eu gasto meu dinheiro na quebrada. E aí você tem uma empresa que... Como ela é sustentável? De onde eu compro? Estou aqui na periferia, aqui na quebrada. De quem eu vou comprar? Dos pequenos produtores que estão aqui em volta, das pessoas que estão aqui em volta. Para que isso gire. A gente tem uma escola de gastronomia hoje, que só sobrevive... As pessoas não pagam para estar, porque a gente faz eventos, pega essa grana, aplica, cria um fundo, para que essas pessoas consigam estudar, entendeu? Não depende de um Edital, não sei o quê, não sei o que lá das quantas. Dá mais trabalho? É mais difícil? É, mas a gente tem que fazer ser sustentável. Então, as pessoas precisam entender que o dinheiro delas precisa estar no lugar de onde elas saem, não é? Porque você sai da sua casa no final de semana, pega seu salário e vai pagar outra coisa, em outro lugar, de pessoas que já têm dinheiro. Quem já tem dinheiro sobrevive dos que não têm dinheiro. É isso, entendeu? Se quem não tem dinheiro, por conta do volume de pessoas, essas pessoas que não têm dinheiro ou têm pouco dinheiro, não dessem dinheiro para quem tem muito, estava igual, a gente conseguiria emparelhar as coisas.
P/1 – Nossa última pergunta, que pode ser uma sugestão ou um insight, ou uma ideia que você já teve e você pode compartilhar com a gente é: como ativar o potencial de São Paulo como cidade criativa da gastronomia?
R – Eu acho que a potência... Eu vou sempre bater nessa tecla... Primeiro que a potência de estudo não está só no Centro. Não está só fora da periferia. Ela está dentro. Ela precisa acontecer como trocas, entendeu? Ninguém parou para estudar gastronomia periférica. Ninguém parou para estudar as periferias, o que elas consomem. Imagina o tanto de criatividade que tem dentro desse processo que as pessoas precisam fazer com o que têm! Ninguém parou, sabe? Você para, para analisar tal coisa, aqui, específica, não é? Daquele pão ali daqui, que são essas pessoas aqui nos Jardins, né? No topo da pirâmide, sabe? Aqui, a gente para, para estudar essas pessoas aqui que, por terem estudado bastante, terem muito conhecimento, vão chegar num limite também ali, porque você não passa a diversidade. A diversidade faz com que você cresça. Passar fome, ter poucas coisas para comer, ter que andar de transporte público, a gente está calejado. Ter escola ruim. Imagina o processo criativo que você tem que ter todos os dias para pensar: “O que eu vou cozinhar para o meu filho?”. Para pensar como é que eu vou chegar a tempo, não é? Para pensar no meu filho no fogão; na outra que está chegando aqui; no outro; agora choveu, tenho que tirar roupa do varal, não sei o quê. Babababá. Você precisa ter uma criatividade muito grande. Então, São Paulo, como cidade criativa, eu acho que é assim: a gente tem que estudar de fora para dentro, entendeu? Das periferias para o Centro. Não o contrário. Porque, quando você chegar no Centro, você nem tem mais o que estudar. Acabou. Você não tem que estudar mais nada. O processo criativo está fora, entendeu? Aí, você vem fechando, fechando, fechando esse ciclo, chegou no Centro, eu vou estudar o quê? As coisas são tão ricas ali, essas pessoas têm tanta criatividade no dia a dia delas, que aqui não faz mais sentido a gente ficar estudando. Mas grandes marcas começam a perceber isso, entendeu? E por quê? O maior consumo de bebidas é aonde? Seja alcoólica, seja refrigerante, é aonde? É com a gente, porque impingem isso todos os dias. O maior consumo de tinta é com a gente. O maior consumo de eletrodomésticos é com a gente. Você não vai colocar 50 geladeiras na sua casa, não é? Então, se você tem sete mil pessoas morando num bairro rico, são sete mil pessoas fazendo compra no supermercado. São sete mil pessoas tendo sete mil geladeiras. São sete mil pessoas pintando aí, no máximo, 20 mil paredes. São esses números, não vai sair desse recorte. Se você tem 280 mil pessoas morando num bairro na periferia são 280 mil pessoas indo ao supermercado, são 280 mil pessoas comprando eletrodomésticos... Então, você vai ganhar pelo volume. Não adianta ter uma concentração de riqueza muito grande se ela não é distribuída ali. E aí, se as grandes empresas percebem isso - e estão começando a perceber isso - não é ao topo da pirâmide que eu tenho que ir. É lá atrás. Isso também é perigoso, porque também isso vem para o ruim, porque os caras que vendem
caro, vende mais na quebrada, no baile
, do que vende aqui, você entendeu? O
pode custar 300 contos, você vai vender mais lá, no volume. Porque aqui dez pessoas com muito dinheiro não vão tomar dez garrafas de
Cem pessoas com pouco dinheiro vão tomar 50 garrafas de
. A conta parece muito básica, entendeu? Esses números podem ser usados para o bom e para o ruim. Eu posso colocar lá um monte de coisa, entendeu? Só que aí, como isso vem para a gente? Como é que essas questões chegam para a gente? ‘Meu’, criatividade. Que é a palavra que a gente está falando. Cidade criativa. É todos os dias você ter que pensar em como você vai cozinhar e o quê. Todos os dias, entendeu? Todos os dias você precisa de um cardápio diferente pela relação daquilo que você tem e o pouco que você tem. Então, nas periferias de São Paulo e do Brasil, é isso. Seja no Pará, lá, fazendo um açaí; seja no Sul, eu consumindo chimarrão. É a gente pensar em São Paulo como uma cidade criativa de fora para dentro, das pontas para o Centro. Aí, sim, a gente vai falar de criatividade.
P/1 – Muito obrigada pelo encontro de hoje! Foi uma delícia te ouvir! Muito obrigada por ter vindo! E a gente está aqui só a ansiedade do dia seis.
R – Beleza. A gente vai ver tipo parte 2?
(risos)
Projeto Conte Sua História
Depoimento de Edson Leite – Parte II
Entrevistado por Carol Margiotti e Wini Calaça
São Paulo 13/05/19
PCSH- HV – 767 (Parte II) _ rev.
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Selma Paiva
Revisado/Editado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 – Edson, bom dia!
R – Buenos.
P/1 - É um prazer recebê-lo aqui de novo para a gente continuar a sua história, está bem?
R – Tranquilo.
P/1 – Edson, a gente parou na sua chegada em Portugal. Você já contou algumas coisas sobre como foi chegar, mas eu queria voltar um pouco, eu queria que você falasse para a gente o que se passava na sua cabeça quando você entrou no avião, quando você falou: “Agora eu vou!” O que tinha na sua cabeça?
R – Então, na real, como eram dois, - eu e o meu amigo - a gente trocava ideias, entendia. A gente só queria entrar. Era isso. Porque o maior medo nosso era não passar na imigração e ter que voltar. Nosso foco não saía do aeroporto, nossa cabeça não saía do aeroporto. Eu lembro até hoje que era isso: a gente tinha que passar na imigração. Era esse o foco.
P/1 - Mas por que vocês não passariam na imigração?
R – Porque, na real, eram dois caras sem grana. A gente tinha comprado a passagem numa agência de viagem, feito uma reserva de hotel, feito todos os trâmites tipo como se fosse a turismo e tal. Aí, para ir para Portugal você não precisa de visto - naquela altura já não precisava - mas você sempre tem alguma coisa que os caras param ou não deixam você entrar e tal. No entanto, quando a gente entrou, os dois, o Dico, que é o parceiro que foi comigo, foi para a salinha da Imigração e eu não. Aí eu lembro dele tipo gritando não sei o quê e eu falei: Puxa, eu vou lá”. Eu já tinha passado, porque a gente passou em caminhos diferentes. Aí o chamaram, com as malas dele, e eu não. Então, eu já estava saindo. Aí voltei e fui lá para dentro com ele. Na hora em que eu entrei, eles falaram: “O que você está fazendo aqui?” E eu falei: “Não, é meu amigo”. “Vocês estão juntos?” “A gente está junto”. E aí, fui para dentro. Na hora em que abriram a mala dele... Na hora em que o SEF, que é o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras... Aqui a gente não tem esse Serviço, mas é meio que uma Polícia Federal só para estrangeiros. Aí a gente entrou, o cara abriu a mala dele e a gente estava levando, sei lá, quatro garrafas de cachaça, uma delas quebrou na mala do Dico. Então, na hora em que abriu, falou: “Fecha, fecha, fecha, fecha e vai embora”. Então foi isso, e a gente saiu. E a gente começa a pensar em Portugal, cidade, o país ali, Lisboa, não sei o quê, quando a gente sai da Imigração. Aí a gente começa a pensar, era muito tenso. Eu era muito novo, acho que a gente não sabia exatamente o que era essa tensão. A gente só queria chegar no lugar. A gente sabia que era pouca grana e aí vai, pega um táxi... Não, minto. A gente, primeiro, foi numa banca de jornal. Para ler as coisas que tinha, o que era, procurar algumas paradas que tinha lá. E aí fomos, levamos o jornal com a gente. Era o Correio da Manhã, que é um jornalzinho menorzinho, meio que da grande Lisboa. E aí pegamos um táxi, meio que perdido, para o hotel em que tínhamos reserva. A gente não sabia o que era, que hotel que era. E aí eu lembro de estarmos os dois ainda, pegamos o táxi e tal, e do aeroporto até onde estava o hotel a gente só falou para o cara onde tinha que ir, não é? Porque apesar de ser português, de falar Português, algumas coisas você não entendia. Você ia chegar na parada, sei lá, nunca nem ouviu os caras falando. Então, é chinês. Aí o cara levou a gente, eu lembro até hoje, tinha dado sete euros no taxímetro. Não, cinco. O cara falou sete. Eu falei: “Mas o bagulho está aqui, cinco, como você está cobrando sete?” “Não sei o quê, a bagagem”. Eu falei: “Mano, não tem bagagem, não. Se está aparecendo cinco aqui, você está cobrando sete?” O cara ficou, ainda, bravo. Eu falei: “Não vou pagar sete. Vou pagar cinco, mano. O bagulho está aparecendo cinco aqui. Você não falou nada”. O cara ficou bravo. Mas daí depois a gente percebeu que, na realidade, é uma prática dos taxistas, isso, em Lisboa. Não coloca no taxímetro e depois falam de uma taxa de bagagem. Essa é uma prática dos caras, os caras fazem até hoje, os caras fazem isso, os taxistas. Mas isso depois mais para frente que a gente descolou que era isso. Daí fomos parar no Ibis. Sei lá, a gente tinha 300 contos - 300 euros - e a gente foi parar no Ibis, onde a noite era 125, se não me engano, a diária. A gente já estava destruído, cansado, a gente tinha saído de São Paulo para Recife, ido numa casa de câmbio trocar dinheiro, embarcar, com fome, entramos no avião, comemos, tomamos uma porção de vinho, descemos, aí a tensão na Imigração, mais o táxi. A gente só queria dormir, assim. Era uma sexta-feira, final da tarde, dia 7 de abril de 2006. A gente só queria dormir. Era final da tarde? Não, era início da tarde, porque a gente dormiu, fizemos um varal no quarto para secar as roupas fedendo a cachaça, fizemos um varalzinho lá. Era um quarto para os dois no hotel, a cama, os dois dormindo na mesma cama. E aí fizemos um varalzinho, penduramos no box lá no negócio, a maior treta. E aí, beleza, dormimos no hotel. Acertamos lá embaixo, dormimos. Aí, à noite, a gente pegou um mapa de Lisboa, que a gente já pegou no aeroporto um e outro depois no hotel. Aí fui marcando lugares onde a gente tinha que ir, umas paradas que a gente tinha que fazer, e aí eu lembro da gente sair, estávamos no Ibis e o Ibis é bem pertinho do _______ [6:29 ] inglês, que é tipo um shopping que tem na Espanha e em Portugal. E aí a gente deu uma passada lá nesse shopping e eu lembro que eu tinha levado meu videogame na mala. Tinha levado um Playstation na mala, porque naquela altura eu fazia, aqui no Brasil, ainda a gente estava mexendo com música e tinha feito umas produções no Playstation e tal e tinha saído algumas paradas na mídia. Levei até a revista, alguns negócios assim, falei: “Vou levar”. E aí levei um videogame na minha mala. Aí entrei nesse barato da _____ [7:04] inglês e tinha uns bagulhos muito baratos. A gente olhava bagulhos e falava: “Mano, como assim dois euros em um CD, em uma mala para guardar o videogame, não sei o quê”. A gente começou a achar as coisas muito baratas, próximo do que a gente tinha. Eletrônicos, telefone... A gente falou: “Que droga é essa?” Só que só tinha, daquela grana, 175 euros. Só. Dos 300 que a gente tinha. A gente tinha gastado125, já. Mais os cinco do táxi. Tinha170. Eu lembro que a gente foi fazendo continha. Aí entramos, eu fiquei impressionado com algumas coisas e comprei uma maleta para levar o vídeo game, para tirar da mala. Dois euros, um euro e pouquinho eu paguei na maleta. Aí a gente foi dar um rolé em Lisboa. Falei: “Mano, a gente precisa arrumar um lugar para ficar, eu não vou ficar no hotel. Acabou o dinheiro. Uma noite você tem aí, não sabia”. E a gente, andando, encontrou alguns brasileiros trocando ideia, a gente perguntando: “Vai em fulano de tal, em tal lugar”. Aí ia, mas brasileiro... Era 2006, naquela altura não dava muita atenção para outros que estavam ali. Acho que nunca quiseram ajudar uns aos outros. Então a gente rodou a noite inteira, depois que dormiu a tarde inteira. Fomos do hotel, passamos pela baixa de Lisboa, o bairro alto, o cais Sodré, depois fomos em Santos. A gente foi tudo a pé e fomos marcando onde a gente tinha passado. E fomos pegando alguns contatos, trocamos algumas ideias e tal e entendendo onde a gente estava. Daí fomos parar num cara, o Zezé, famosão por causa da pensão. Ele tinha um cabeleireiro e tinha uma pensão. O que eram essas pensões? Até hoje é um pouco. Diminuiu, mas o que era? Era tipo assim: normalmente, o imigrante brasileiro, indiano ou chinês, depende, que cuidava de um prédio para um senhorio. Então aquele cara tinha um prédio inteiro, pagava um aluguel simbólico para a Prefeitura - porque aquele prédio era histórico - e acabava alugando para uma pessoa o prédio inteiro. Aí, a pessoa fatiava esse prédio e alugava quartos para outras pessoas. Então era mais ou menos isso. E a gente foi parar no lugar... No bairro ali que chamava Anjos - chama ainda - perto da estação do Metrô e tal. E o Zezé falou: “Cara, não tenho vaga, mas eu conheço alguém que tem aqui perto um quarto para vocês”. Luciano, o nome do cara. Falei: “Tá bom, onde é?” “Subindo aqui”. A gente foi. Isso nesse rolé ainda, sem voltar para o hotel. A gente trocou essa ideia, aí foi lá com o Luciano, explicamos para ele e ele falou: “Olha, é o seguinte: aqui é 150 por mês”. Mas a gente não tinha 150 por mês. Eu falei: “Mano...”. E aí a gente trocando ideia com ele e tal, falei: “Olha, a gente tem 150, somos os dois. Sei lá, 15 dias, dá para, pelo menos, a gente ficar aqui?” E aí troca ideia e ele falou: “Tá”. Fomos entender. “Eu quero a cópia do passaporte de vocês, bababá”. Tirou a cópia do passaporte na hora, tinha uma impressorinha pequenininha que imprimia na hora, assim, os bagulhos, aí imprimiu e ele falou: “Tá. Então, beleza, vocês entram aqui sábado, amanhã, e a gente começa a contar 15 dias para os dois”. Aí a gente foi entender, depois. Beleza, levou a gente, ele morava no último, não é? Ele, a filha, a família, no último andar. Era tipo um andar inteiro ele, e os outros andares era tudo alugado, assim. Aí a gente acho que no quinto... Tinha sete andares, acho que foi no quinto que a gente ficou. E aí ele foi apresentar. Então, é um quarto, tinha dois; outro quarto, tinha três; e aí, o quarto, que a gente estava, tinha uns cinco. Então, você não alugava quarto, você alugava cama, não é? A 150 euros você alugava cama. Aí que a gente foi entender qual que era. Então, eram cinco imigrantes no quarto, era um beliche do lado de cá, outra aqui, uma parada numa parede, outra na outra parede e uma cama. Beleza, era 150 esse. Tinha outro que, se fosse duas pessoas, era 200 e assim ia, entendeu? Aí, tinha um cara que dormia meio que num closet, no armário, ficava com o pé para fora ainda. Era muito engraçado, mano. A gente estava nesse quarto, tinha outro, tinha outro, aí tinha um closet e aí tinha a cozinha, que era compartilhada. O banheiro, todos os bagulhos eram compartilhados. Aí tinha uma cozinha e uma varandinha. Tinha uma geladeira, você compartilhava os bagulhos. E esse maluco dormia, cabia só a cama dele. E uns bagulhos na prateleira. E ele dormia com o pé para fora. Não dava para fechar a porta. Porque não cabia a cama e o bagulho inteiro. A gente falava: “Caramba, mano, 150 contos foi”. Mas é isso, não é? Então, imagina o dinheiro que o cara não fazia! Só em um quarto, com cinco, mais o prédio inteiro. Imagina o dinheiro que o cara não fazia! Era muita grana. E é isso: você é imigrante, chega do nada, 150 contos você não vai ficar um mês no bagulho. Você paga 150 numa diária de um hotel. Você vai se sujeitar a algumas coisas. Tá bom. Aí, fechamos e tal, a gente já deu a última respirada, falamos: “Vamos para o hotel e aí vamos dar mais um outro rolé, não é?” Para entender: ia dar as 24 horas da tarde (não esqueça de que chegamos à tarde e que, no hotel, tínhamos um dia e meio; portanto, estavam se completando as primeiras 24 horas). A gente pegou as malas, deixou... Esqueci o nome, tem um nome onde você deixa as bagagens até 48 horas e tal, nego até abandona algumas bagagens lá, a gente deixou lá, fomos para o café da manhã do hotel, juntamos uma porção de coisa, falamos: “Mano, sei lá quando a gente vai comer de novo, pega esses bagulhos todos aí”. Já tinha dado a grana para o cara, mas eu tinha 170 euros ainda, aí a gente já tinha dado para o cara 150, ficamos com 20, e precisava pagar um táxi para levar as malas até onde era o bagulho. Não era perto, mas para puxar as malas não dava. Então a gente ia guardar uma outra grana de 20 euros, do táxi. A gente tinha tirado a média do aeroporto para lá e falou: “Mano, no mínimo cinco vai ser para a gente ir para o bagulho”. Beleza, pegamos as coisas, colocamos dentro das mochilas, falamos: “Vamos guardar porque é comida e tal, porque a gente não sabe qual que é”. Aí demos outro rolé.
P/1 – Onde vocês guardaram as comidas?
R – Nas mochilas. Tinha duas mochilas. A gente levou as malas, mais as mochilas. Aí a gente tirou os bagulhos das mochilas, colocou nas malas e guardamos os rangos tudo dentro. Como era do hotel, falamos: “Nós estamos pagando caro pra caramba, vamos comer essa p…. também”. Fizemos uma porção de lanche, embrulhamos, fizermos uma porção de coisa e guardamos para comer. E aí, beleza, no final da tarde, tipo início da noite - a gente estava na primavera - estava um frio, mano, eu lembro, Nossa, da minha... E nem estava frio para quem já morava lá. 12 graus, dez graus. Estava muito frio, mas muito frio. Eu falei: “P… q.. p….”. Você imagina no inverno! O bagulho era finalzinho da primavera, início do verão, assim. E muito frio a gente passando. Aí eu falei: “Caraca, mano, não é possível. A gente vai morrer de frio nesse bagulho, andando”. A gente volta para o hotel, pega as malas e tal e chama um táxi. Deu sete ou oito euros para descer para onde a gente ia, não é? Aí descemos, subimos com a mala, puxando, e falamos: “Mano, tá bom, até que enfim! Agora a gente passa para outra etapa. Tem que arrumar um trampo, ver o que a gente vai fazer”. Aí, a gente foi no mercado Mini Preço, que era o Dia aqui, que tem aqui no Brasil. Mini Preço lá. Aí a gente foi e, sei lá, acho que cinco reais você fazia compra para a semana inteira. Então, salsicha, molho de tomate, atum, esses bagulhos, macarrão, essas paradas assim. Um suco, um negócio para tomar café. Falei: “Puxa, uma semana. A gente administra isso aqui. Então, para a comida a gente já resolve e guarda uma moeda aí para pegar condução, alguma coisa”. Aí a gente ficou com dez euros para os dois. Meio que cinco para cada um, não é? Aí, beleza, voltamos, fizemos, guardamos, tinha um armário para cada um guardar suas coisas, tal, mas sempre tinha um nego que pegava do outro, dava treta. Roubava um do outro, era fogo, não é? E a gente sabia que tinha que sair dali. Mas, ao menos, estava bacana. Se não dormia, tinha um tiozão que era - puxa, mano, esqueci o nome do tiozão - o pior, só desanimava, falava: “Tá ruim pra caramba aqui, já foi bom, agora está cruel, que não sei o quê, que eu vou voltar para o Brasil”. O tiozão ficava nessa. Eu falei: “Puxa, esse tiozão vai acabar conosco”. (risos) E a gente nem ficava no lugar, não é? Ficava sempre dando um rolé. Aí, procurando trampo, jornal, tal, não sei o quê, e andando pelos lugares. A gente não sabia muito bem o que a gente ia trampar. Não tinha uma diretriz, mano. Falava: “O que vier aí, a gente vai trabalhar”. E aí eu lembro de conhecer um dos caras que moravam em outro quarto, ele morava num quarto com mais um só, era ele e mais um, era uma dupla. A gente o chamava de Souza. Um goiano. Aí ele falou: “Cara, no restaurante onde eu trabalho está precisando de gente, tal, achava bacana vocês irem lá, está precisando de um na cozinha e outro no salão”. Eu falei: “É mesmo?” “É”. Ele falou: “Legal”. Ele trabalhava na cozinha, era ajudante de cozinha. Aí meio que cozinha e salão, tal. Aí falei: “Tá bom”. Marcamos na primeira semana. A gente já tinha passado uma semana meio que procurando trampo, aí a gente foi nesse restaurante. Sentou lá na frente, era um tailandês, o Nup. Na verdade, é um tailandês que é uma tailandesa, na real. É um travesti. Depois que eu fui entender. Ele é casado com o cônsul português na Tailândia. Depois. Eles moram em cima e o restaurante é embaixo. É o primeiro restaurante tailandês de Portugal. Depois eu fui entender a importância do bagulho em que estava e tal. E quem era. E parece, era uma mulher, assim, mesmo. Uma menina. Não tinha traços masculinos mais, e os dois eram casados. Ele chamava sempre de... Como ele chamava? O português chamava de patrão, não sei o quê, sempre falava assim. Sempre falava um Português bem, para quem mora na Tailândia, mas sempre bem enrolado, com um sotaque bem arrastadão e perguntando para a gente - perguntou para mim - se eu sabia falar Inglês. Eu falei: “Sei. Sei falar Inglês”. Aí perguntou para o Dico e tal. No final da entrevista, beleza, a gente foi embora, ele falou para o Souza me avisar que era para eu começar a trabalhar no outro dia. Aí, o Dico não. Aí, beleza, a gente falou: “Um já está ok, mano, pelo menos. Se tem um trampando, não é?” Beleza, cheguei lá, ele me colocou no salão para trabalhar. Aí, não sabia nada de cozinha também, me colocou no salão, então eu recebia. Aí pediu para eu raspar a cabeça, que eu parecia... Tinha uns traços de tailandês, assim. Para eu cortar o cabelo. Rapar. Parecia um tailandês, mesmo. E falava bem Inglês, até, já. Tinha estudado, tinha umas coisas até que falava bem, naquela altura. Então, foi o primeiro trabalho, assim. E aí eu ganhava, naquela altura, não lembro se eram 500 ou 600 euros. Era alguma coisa assim, mas eu trabalhava... Era horário repartido, não é? Lá eles chamam de part-time, tal, que você trabalha no almoço. Entrava às dez, almoçava, o restaurante abria - almoçava às 11 - o restaurante abria ao meio dia e aí trabalhava até as três; depois voltava às cinco e ia até meia-noite, uma da manhã. A gente fazia o horário repartido, que o português chama. Aí, beleza, o que acontecia? Eu fazia o quê? Ia, chegava lá, limpava, arrumava tudo, a gente sentava para almoçar. Aí eu guardava parte da comida e levava para casa, para o parceiro, e o Dico almoçava, e sempre no ‘corre’, atrás de outro trampo, e ele ficava num restaurante ao lado, insistindo com o outro cara que estava lá e precisava de lavador de prato e tal e ele sempre ficava, sei lá, cinco restaurantes à frente do que eu estava trabalhando, na rua do Atalaia. E aí ele sempre ia nesse restaurante insistir lá, porque a placa estava sempre lá. E esse menino nunca o atendia. E aí eu levava comida para casa, no almoço e no jantar. Aí, depois da primeira semana de trampo, o Nup perguntou para mim para quem eu levava comida e tal, que ele percebeu que eu guardava. Eu falei: “É que eu moro com um amigo”. Ele falou assim: “Então, a partir de hoje, você faz a sua comida e depois leva para ele. Você come e a gente faz para você levar para ele”. Eu falei: “Beleza, legal”. Eu comia e levava para ele almoço e jantar. Então, a gente comia comida tailandesa todo dia. Todos os dias a gente comia. Ficamos nisso acho que uns 30, 40 dias. Porque aí, o que aconteceu? Pagamos 15, deu, a gente pagou os outros para ficar mais 30 dias na pensão, para ir para outro quarto, nós dois. A gente tinha os caras para sair do quarto, para ir os dois. A gente falou: “Não, mano, vamos para um lugar para a gente”. Porque como eu estava trampando e pegava a grana só para pagar essas despesas, então a gente resolveu ir para um outro quarto, nós dois. E eu estava no restaurante. Nessa, o Dico conseguiu um trampo também num outro restaurante. Uma vez, o dono estava passando e ele falou - não sabia quem era e falou: “Eu estou aqui todos os dias e ninguém nem me chama para trampar ou para colocar lá para trabalhar”. O cara falou: “Tá bom. Eu vejo você todos os dias aqui”. Nem sabia que era o dono. “E ninguém me atende”. “Tá bom”. Colocou, ele ficou lavando prato nesse restaurante. Mais para frente, ele casou com a cozinheira, teve um filho com ela e tal, bababá, morou com ela, ficou com a Lena e tal, com essa mina. No restaurante tailandês a gente dividia a caixinha. Eu lembro que uma vez, logo no segundo mês, aí já estava dominando tudo: o cardápio, os clientes, tal, o que tinha que ser feito e nas caixinhas o Nup... Ele bebia muito. Cozinhava pra caramba, muito, o cara cozinhava sozinho, tinha umas pessoas que ajudavam um pouco, mas ele era muito ninja. É até hoje muito ninja na cozinha, assim, muito f... e eu dividi as caixinhas, as gorjetas uma vez. Aí teve uma vez que ele se confundiu, estava bêbado até, foi contar e faltava dinheiro das caixinhas, não sei o quê, ele falou que tinha sido eu. Aí a gente arrumou uma treta, discutimos lá dentro e não voltei mais para o trampo, não é? E ele tinha se confundido, até. Porque o asiático é fogo, você trampar com o asiático, ele é muito sistemático, não é? Se todos os dias, sei lá, dá dez euros de caixinha, todos os dias tem que ser dez euros. O dia que der nove e noventa, alguma coisa de errado aconteceu. Ou o café está faltando, não sei o quê. Depois, mais para frente, ele descobriu, depois que eu já tinha saído, que ele tinha feito m…., que tinha deixado o dinheiro não sei onde. Um tempo depois, quando eu voltei para comer, inclusive, que ele se desculpou, assim. Eu nunca mais voltei para trampar. Mas só que, nesse momento, quando a gente já estava os dois trabalhando, a gente saiu da pensão. E alugou uma casa, tipo um apartamento, em outro lugar. A gente saiu, juntou a grana dos dois e alugou um apartamento com uma mina que era brasileira, perto desse outro. A gente viu que era brasileira e ela não ficava muito lá, ela viajava. Então, ela tinha o quarto dela. Mas ela ia de vez em quando. E ela alugou o outro quarto para a gente. Então, a gente já tinha um lugar. Que era um espaço, a sala e tal, aí já fazia festa, aí já estava maluco, já. Esse já tinha outra parada, já tinha um dinheiro. E eu saí do restaurante, fiquei pouco tempo até sem trabalhar, fiz uns trampos na internet e aí já tinha um dinheiro, conseguia administrar diferente. Porque o nosso problema era pagar o lugar onde morava e a alimentação. Era isso. Se tem dinheiro para pagar essa parada, acabou. Alimentação é muito barato, a moradia era um pouco mais caro, mas você garantiu, pronto. E aí a gente já estava mais à vontade. Nesse apartamento dela, ela tinha umas outras amigas e ela vinha, sei lá, de dez em dez dias, de 15 em 15 dias, e depois ela começou a ficar mais tempo lá em Lisboa. Então, ela vinha com as amigas, eu conheci a mãe da minha filha, assim, nessa casa onde eu morava. A mãe da minha filha lá, que nasceu em Portugal, a Isabelly, numa dessas meio que festa e tal. Aí, beleza, eu a conheci lá, mas a gente quase que não ficava junto, eu a conheci uma vez, depois em outra festa e beleza. E aí, a gente arrumou um trampo nas Páginas Amarelas. Eu arrumei, não é? O Dico estava no restaurante, ainda. Tinha vendido internet, estava entregando jornal de manhã, aí conheci uma parada que chamava Recibos Verdes, que é o quê? Um trampo que é tipo o MEI, aqui, agora. Tinha lá. Um trampo que você faz, entrega, os caras te pagam. Tipo um MEI, assim. E a gente estava legal de turista e ilegal para trabalhar, mas ainda você podia emitir recibo. Então, essa parte a gente nem se preocupava tanto. Aí começamos a conhecer outras paradas, os rolés, onde iam os brasileiros à noite. Aí comecei a tocar numa casa, à noite, meio que de graça, assim. Só para a gente entender o que era, como era, para entrar e trazer os parceiros para dar um rolé. Então a gente começava a fazer outras ligações, não é? E aí comecei a trabalhar nas Páginas Amarelas, que tinha um anúncio que era para entregar lista telefônica. Que era uma empresa irlandesa. Chamava Home to Home, mas era Casa a Casa, em Portugal. Era uma parada assim. E aí, nas Páginas Amarelas fui, fiz a entrevista, era um pouquinho longe de onde a gente estava em Lisboa, o escritório dos caras. E aí, nas Páginas Amarelas, eu fui sozinho primeiro, entendi qual era o processo. Mas antes disso, espera aí, antes das Páginas Amarelas, eu lavei carro. Estava lavando carro. Vendia jornal, entregava jornal, depois lavava carro na Exponorte, que é um bairro tipo novão, assim, bem mais novo. E a gente lavava carro a seco. Não podia usar água, porque era dentro de uma garagem, era uma bombinha com produto, você jogava o produto, o deixava lá um tempo, vinha esfregando. Você é louco? Em uma, duas horas você lavava um carro. E você ganhava por carro. Era a maior treta. E aí você tinha as lâmpadas e tal, para você lavar carro. Aí, beleza, fiquei um tempo nesse trampo e saí. Eu já estava mais decolado, então eu fazia um trampo de dia, pegava uma moeda, fazia outro à tarde e a gente ia fazendo esses trampos esporádicos, assim. Quando veio o da Páginas Amarelas já meio que era uma coisa mais fixa, assim. O que era? Você ganhava por lista telefônica entregue. Então, você ganhava dez cêntimos por lista, era um cêntimo por qualidade de serviço, então eles faziam uma auditoria. Se ligasse lá e a lista estivesse bonitinha na porta, ok. Aí eu falei: “Pô, é um trampo bacana, dá para rolar”. E aí não exigiam documentação, só o passaporte. Beleza. Aí conheci o cara que era o dono dessa empresa, tinha um coordenador que eu não lembro o nome do cara, tinha as operadoras de telemarketing, que faziam essas auditorias, era um prédio, separados por biombos. Você vai contando as histórias, vai revivendo vários bagulhos na mente, porque eu voltei agora, revisitei todos esses lugares, assim, e as pessoas, inclusive. E aí, beleza, a gente recebeu o mapa de Lisboa para fazer a entrega. E eles montavam a equipe. Então, o motorista, normalmente, era um português, por causa da carta, tal, e a minha primeira equipe fomos eu, o Cláudio, que até hoje tenho contato no Facebook - Cláudio Carrara - e esse português, não é? Caraca, como é que é o nome dele? Era um tiozão, loucão, bebia pra caramba, mas era um cara tipo gente boa, que não sabia que era gente boa. Mas ele era meio doido. A primeira equipe nossa, tal. Aí, em Lisboa, eu fazia o mapa, tinha trampado no Correio, no Brasil, Lisboa era o quintal da minha casa, maior boiada fazer. Então, a gente já montava os itinerários, montava os bagulhos, entregava, os caras falavam: “Você é rápido”. Eu falei: “Não, cara, vamos por aqui, desce aqui”, tal, montava, a gente arrebentava e começamos a ganhar muita grana, não é? Porque era muito rápido. Então, quanto mais rápido você terminava um mapa, os caras te davam outro. Aí você terminava o outro, te davam outro. E aí a gente era a equipe mais f…. Aí, teve uma vez que, numa das entregas, estávamos eu e o Cláudio, aí não sei o que aconteceu, que a gente tretou com esse cara, mano, com o português, e era com outra equipe, deu a maior treta. No meio da Câmara Municipal de Lisboa, da Prefeitura, sabe, a gente saiu na porrada com os caras, eu não sei se a gente estava invadindo mapa, foi um bagulho assim. O bagulho deu até polícia, assim. Nós saímos na porrada por causa de lista telefônica (risos) e aí, esse maluco português achou que a gente estava errado. Depois até a gente que foi entender que não estava e tal, ele conversando com a gente. Porque os caras queriam brigar com a gente porque a gente estava invadindo mapa. E correndo dentro dos becos de Lisboa, com lista voando para tudo quanto é lado, e polícia. E fomos parar na delegacia explicamos a situação e tudo bem, foi e tal, apaziguou, a empresa meio que deu um castigo para a gente, mas a gente, de boa. Aí o Cláudio saiu da equipe e eu chamei o Dico para trampar, não é? Porque ele estava no restaurante e eu falei: “Mano, vamos para esse bagulho aqui, que o bagulho dá um dinheiro, cara”. Aí a gente estava no apartamento da mina lá ainda. Ele falou: “Beleza”. A gente montou essa equipe: eu, o Dico e esse outro português, que eu não lembro o nome dele, vou perguntar depois para o Dico. Porque o Cláudio saiu, aí ficamos eu e o Dico nessa equipe, a gente fez um pouco de Lisboa, um pouco dos arredores de Lisboa e eles precisavam mandar alguém para o Norte, as equipes para o Norte. Então, como a gente era uma equipe que tinha terminado aquela parte de Lisboa e entregue o trampo, a gente foi para o Norte de Lisboa, não é? Fizemos a parte do Ninho. Uma parte mais para o Norte e Nordeste ali de Portugal. Essa equipe foi a que foi viajar e tal. Lá, as vans, os caras chamam de carrinho. Quando não é um carro grande, chama de carrinha. Carro pequeno, chama de carrinha. A gente foi para o Norte - eu e o Dico, e ele. Aí foi o primeiro contato com uns bagulhos que, sei lá, para a gente era surreal assim: você chegar num lugar que tem uma aldeia - como os caras chamam - sei lá, com o carro lotado de lista que, em Lisboa, você descarregava o bagulho em meia hora, lá você demorava um dia, porque era uma casa aqui e a outra lá na casa do chapéu. Eu falei: “Nós estamos ferrados, ‘meu’, como que vai ganhar nessa droga, dinheiro?” E aí a gente começou a montar estratégia, porque aí tomava banho no rio para não gastar dinheiro. Dormia dentro da carrinha lá, os três. Você pegava os bagulhos que era surreal, assim. Entrava num lugar lá. E nisso, antes de viajar, a gente conheceu um cara que chamava Condutor, porque a gente começou a pesquisar sobre rap em Lisboa, que era o que a gente fazia aqui. E esse Condutor, tal, a gente falou: “A gente fez o filme do Dexter, um rapper no Brasil, assim e assim”. “Puxa, conheço, mano, venha aqui”. O cara chamou a gente para ir na casa dele, o Condutor, e aí a gente foi na casa dele, ele era produtor, tinha uns bagulhos, produzia e tal. Mais para frente, até, virou _________ [32:38] The System, que é um grupo ferrado, foi um grupo ferrado em Portugal, fez vários festivais, veio para o Brasil, inclusive, e esse cara era produtor. E muito bom. Uns caras muito bons de produção, que era um angolano que vivia lá. E aí a gente conheceu esse cara e esse cara deu a primeira máquina fotográfica da gente, assim. Por isso que eu estou contando essa história. Tinha dois megapixels, sei lá, o bagulho. Falava: “Caramba, a máquina”. Era uma máquina zoada, mas naquela altura era fogo. Eu tenho as fotos dessa máquina, guardadas. Era Orkut ainda. A gente tinha Orkut para colocar as fotos. E aí eu lembro que, antes de viajar, de fazer essa viagem para o Nordeste, a gente pegou uma grana - eu e o Dico - tinha um outro parceiro que a gente conheceu, o Ronaldo, que eu conheci entregando jornal, que acabou indo morar com a gente também, e aí a gente alugou um veleiro. Eram 400 euros. Pegamos o bagulho e fomos conhecer essa droga, nunca nem andamos de barco. Minha mãe falava que a gente estava na Disney, a essa altura. Não tinha dinheiro nenhum, depois tinha dinheiro pra caramba e queria só fazer m….., não é? E aí, comprei um carro até. Um corsinha de outro mano que estava vendendo. Não tinha nem carta. Comprei um carro. Mano, eu era louco, mesmo. Já tinha pago minhas contas, já comia, agora vamos zoar. E aí era isso. Antes de viajar. Aí, a gente viajou com um pouco da grana que tinha, lá para o Norte, e o Ronaldo ficou na casa. Ele foi morar com a gente, esse parceiro aí, ficou na casa. Aí, meio que a mina vinha, ele ficava na casa com a gente, a gente dividia e tal. E a gente foi para o Norte, almoçava nos restaurantes, sei lá, no meio do mato. Assim... Os bagulhos tipo na casa de alguém, as pessoas deixavam a chave do lado de fora, para falar que não estavam em casa. Aí vinha o pão de manhã, ficava pendurado. Você via uns bagulhos e falava: “Caramba, mano, que droga é essa? As pessoas ‘saem fora’ e deixam a chave do lado de fora?” Aí, entre meio dia e duas horas da tarde ninguém abria p…. nenhuma, então, em horário de almoço não precisa incomodar ninguém, você só volta a trabalhar depois e aquilo, para a gente, era muito surreal. E aí, sei lá, vi azeitona pela primeira vez. Nunca tinha visto uma oliveira, pera, maçã, marmelo. Eu lembro de ver marmelo, pé de marmelo, e aí eu começava a ver várias coisas. A lista telefônica, a gente não tinha estratégia para entregar. Quando vi, uns dois ou três predinhos, tinha deixado tudo lá. Falei: “Caramba, como nós vamos ganhar dinheiro?”. Aí, o que aconteceu? A gente começou a descobrir que havia festas. Meio que os bailaricos, como eles chamam. É meio que uma festa junina. Aí casava, sei lá, cinco pessoas na igreja, dez pessoas, de uma vez. Aí, o que a gente começou a fazer? Ia nessas festas, montava uma pilha de listas e entregava para essas pessoas no casamento. Tipo na festa do bagulho. Deixava uma porção num bar, assim. Deixava um montão nesses lugares. Aí eu lembro numa das festas, de chegar uma senhora e eles achavam estranho o jeito como a gente falava. A gente ia comer e falavam: “Nossa, esse aí fala igual à novela”. Porque a novela sempre teve por lá. “Os caras falam como na novela, não sei o quê, que engraçado!” E aí eu lembro de uma senhora oferecendo a filha dela para a gente levar embora. Falando: “Você quer levar minha filha para Lisboa? Eu acho que ela já tem que sair daqui, porque aqui não tem futuro para ela, não sei o quê”. A gente não entendia p…. nenhuma: “Como assim, a senhora quer dar sua filha para levar embora?” Aí a menina lá, quieta, sem falar nada. Eu falei: “Caraca, não”. Aí o português falou para a gente que aquilo era comum. Porque era um lugar que era muito distante e as pessoas achavam que Lisboa, sei lá, era a salvação daquelas pessoas. Eu falei: “Caramba, em pleno século XXI você tem ainda coisas assim”. E aí tretava, mano, com os caras. Imagina, três caras juntos, sem casa, às vezes sem ter o que comer, a gente discutia com o cara. E teve uma vez que a gente discutiu, aí o Dico discutiu com ele, eu nem discuti, o Dico saiu para o meio, sei lá de onde, eu falei: “Você vai para onde, ‘meu’? Nós vamos sair dessa p…. como, se não for com o cara?” Não sabia nem onde a gente estava. Só tinha a p…. de um mapa. Como a gente volta? Não sei o quê. E a bebida é muito barata. Então, esse maluco bebia pra caramba. Você sentava no lugar para tomar uma tacinha, que era, sei lá, 50 cêntimos de euro, o cara tomava tipo umas 20. Aí, depois, como é que ia dirigir, ‘meu’? Era fogo, era treta. Aí, teve uma vez que a gente se organizou, se apaziguou e falou: “Vamos voltar para Lisboa”. Aí a gente voltou para Lisboa, trabalhamos mais um tempinho juntos e os caras demoraram para pagar a gente nessa altura, mas esse cara era muito bacana. Ele bebia, mano. Aí eu lembro até depois ele montar uma... A gente descobriu... Ele levou a gente para o pai dele, que tinha um restaurante... Que ele tinha problema com droga, mesmo. Ele nunca passou dificuldade, em si, mas o pai dele queria que ele trabalhasse. O pai dele tinha uma grana. Então, era um cara bacana, mas que tinha alguns problemas. E levou no restaurante, conhecemos o pai dele, e ele falando, e aí, depois, a gente entendeu qual era a do cara, assim, na real. Ele tinha problema com bebida e era isso, com drogas. Tinha passado um tempo internado, o pai dele deu um carro para ele trabalhar e tal, uma diretriz para ele e aquele momento, com a gente, acho que foi um dos melhores momentos da vida dele, em si. Aí, para o pai, que o tinha tirado dali. Aí a gente foi entender. Depois virou nosso amigo. Depois ele montou outra equipe, tal. Eu lembro que a gente trampou, voltou, mas não tinha trampo mais. Ficou um tempo sem, porque você fazia as entregas e ficou um tempo sem. E aí a gente tretou com a mina da casa, por conta dela querer que a gente pagasse mais e não que dividisse com ela, tipo o bagulho, como se a gente tivesse que pagar tudo sozinho, tal. E aí teve essa treta e a gente estava sem grana, porque não estava trampando, tinha gastado todo o dinheiro, só festa. E aí a gente ia sair da casa e ia para a casa de um outro parceiro que morava num bagulho que a gente chamava, zoando: “Isso aqui é o Capão Redondo”. Que era um terreno com um barraquinho, uns bagulhos, mas era um bagulho que ele pagava só para ficar lá. E era um terrenão, num quintalzão, que tinha uns negócios. E ele falou: “Vamos lá! A gente fica lá um tempo”. A gente o conheceu, junto com o Ronaldo e tal, que foi um outro trampo que a gente fazia, de jornal, na internet. A gente tretou com essa mina, essa mina chegou a chamar a polícia, se não me engano, para a gente sair da casa, porque foi uma treta, uma discussão assim, não é? Eu não lembro o nome da mina e a mina morou em São Paulo, inclusive. E aí, numa discussão, chamou. Mas a polícia, você chama lá: “Vamos resolver. Era isso? Vocês vão sair?” “Vamos”. “Então sai”. A gente pegou as nossas coisas que tinha e foi para essa casa desse mano aí. Ficamos lá um tempo, fazendo trampo esporádico. A gente não sabia se voltava para ____[40:20], se não voltava. Voltou meio que no limbo, assim. E como lá pagava pouco de aluguel, a gente ia fazendo o trampo para comer. E aí eu comecei meio que namorar com essa mina que eu tinha conhecido, que é a Daiana, que é a mãe da minha filha. E aí ela ia lá na casa também, levava algumas coisas. Ela cuidava de idosos lá e ela ia e ficava lá com a gente um tempo. Isso em 2006. Então, abril que a gente chegou, maio, junho, julho, agosto, setembro, outubro, novembro, dezembro. 2006 ali até... Então a gente ficou quatro meses trabalhando muito, bastante, depois uns dois meses e meio, puxa, sem trampo, meio sem saber o que ia fazer. Então, maio, junho, julho, agosto, setembro, outubro. Aí volta a trabalhar em outubro, ali, mais ou menos, que era a temporada 2006/2007, das entregas em outros lugares, porque eram pontuais. Você abria, entregava, fechava, abria outra região e tal. Eles iam fazendo assim. E aí eu voltei a trabalhar mais ou menos em outubro, com uma outra equipe, com um moleque que tinha trabalhado comigo lavando carro, e montamos uma equipe com o Ronaldo também, que era esse mano que morava comigo, que aí eu fui colocando, assim, montando equipes, duas ou três, com esses outros caras. E aí, trampando com o Emerson, que tinha lavado carro comigo lá atrás e com outro cara, um português. E aí voltei, montei essa equipe e a gente ia entregar a lista telefônica nos arredores de Lisboa, como se a gente estivesse em São Paulo e fosse entregar lá em Osasco, Diadema, essas paradas, não na cidade. E eu estava nessa outra casa, saí dessa outra casa, conheci outros parceiros também, saí dessa outra e fomos morar com a mãe da minha filha em outro. Era um quarto. Tinha, sei lá, uma porção de gente, tudo junto: no outro quarto as meninas; no outro quarto os caras, assim. E a gente decidiu morar junto, eu e ela, porque o Dico estava namorando com a cozinheira do outro restaurante e ia morar com ela, porque ela é portuguesa. Ela é cabo-verdiana, mas nasceu em Portugal. A família é de Cabo Verde. E aí ia pegar a documentação dele, tal, para estar com a mina, e eu falei: “Mano, demorou”. Acho que é isso. Eles não estavam mais entregando a lista e tal e foi pegar a documentação dele, para trampar e tal. Aí ele foi morar do outro lado do rio e eu estava ainda em Lisboa e fui morar com ela. E aí o Ronaldo ficou nessa outra casa, que estava morando tudo junto, eu voltei a trabalhar nas Páginas Amarelas e ela tinha uma amiga que morava com um cara em outra casa, em Lisboa, não é? No Centro de Lisboa. Era 600 euros que pagava por mês e a gente dividia. Aí eu voltei a trabalhar nas Páginas Amarelas, ela estava trabalhando cuidando de idoso e tinha um casal na frente. A gente morava num quarto nos fundos, eles na frente. Era uma casa... Do ‘seu’ Lima, que era um sobrevivente da guerra, um tiozão. E aí voltei a trabalhar nas Páginas Amarelas e um frio da bexiga em outubro, novembro, um frio da p….,Voltei, aí o primo do Ronaldo... O Ronaldo estava morando com o tio dele, que estava lá no apartamento, e o primo do Ronaldo saiu de São Paulo para vir para Lisboa e precisava de um telefone, porque telefone era muito importante àquela altura, você não tinha... Você tinha SMS, não é? Não tinha esses bagulhos. SMS e MMS, que você podia mandar foto ainda e tal. E aí criou uns telefones assim. A gente não tinha telefone, você comprava telefone na rua e os caras vendiam mais barato e não sei o quê, a gente comprou um telefone para dar para o primo do Ronaldo, que ia chegar, e ele estava trabalhando com obra, o Ronaldo. Eu estava trabalhando na Lista, o Dico estava sem emprego, mas estava na casa dessa mina. Então, eram os amigos que estavam juntos. A Daiana, que é a mãe da minha filha, estava trabalhando, cuidando de idosos, e a gente comprou um telefone para o primo do Ronaldo. Quando ele chegou, a gente entregou, tal, fizemos um churrasco em casa, porque a minha casa era meio que independente, não era apartamento, nem nada, e era no Centro. Aí, beleza, compramos o telefone, bababá, voltei a trabalhar na Lista Telefônica, tinha ficado um período sem trabalhar, voltei, e aí eu estava trabalhando com o Emerson e o português lá, longe de Lisboa, assim, duas horas e meia, longe. Uma vez, a gente estava trampando, era meu aniversário - 28 de dezembro - a gente estava trabalhando do outro lado do rio. Eu levava comida - a gente ia de trem, de comboio, eles falam de comboio - daí se encontrava na estação, o cara pegava a gente, a gente ia para onde a gente tinha que trabalhar. Ali já se ganhava pouco, na Lista Telefônica, porque eram arredores e então você não tinha prédio, tal, não dava para você ganhar muita grana, mas dava para você ganhar. Não era muito bacana, mas dava para ganhar, tirar um dinheiro, para não ficar sem, não é? Então era isso. Porque a gente não sabia administrar. Tipo: se você não ganhava muito, tinha que administrar o bagulho, porque você ganhava pouco. Aí, eu estava trabalhando com o Emerson - os dois e o português - estava descendo a rua, vejo encostando assim uma... De longe... A gente estava descendo, eles estavam parando. O Emerson estava vindo numa rua, eu vinha de outra, o motorista... Aí ia encostando um carro, os caras descendo, de óculos escuros e tal, falando com o motorista. Aí desci, ele falou: “Ele que é o Edson”. “Tudo bem? Você que é Edson?” Falei: “Sou”. “Então você acompanha a gente”. Eu falei: “Acompanhar para onde?” “É Polícia Judiciária, a gente vai para Lisboa. Pega as suas coisas. O que você tem aí no carro?” “Só a marmita, com a comida” “Então acompanha a gente, no meio do caminho a gente te explica”. Avisei o Emerson e falei: “Mano, avisa a Daiana”, que era a mãe da minha filha. Falei: “Já avisa”. E falei para o... Esqueci o nome do outro motorista. Caramba, esqueci o nome dos caras, mano. Esqueci o nome do motorista, o português, que era outro, era um cara bacana também, sempre dava uma força para a gente. E aí acompanhei os caras sem falar. Aí ligaram a sirene, um carro à paisana, eu sem falar nada, os caras sem falar nada e fomos. Saímos desse lado do rio até Lisboa, demoramos uma hora e meia de carro, mais ou menos, uma hora e 20. Aí fomos, chegamos ao Centro de Lisboa, era perto da minha casa a Polícia Judiciária - de onde eu morava. Sei lá, na mesma rua, assim. Chegamos lá, tal, os caras sentaram, trocaram ideia, o chefe dos caras que tinham me pego: “Você sabe por que você está aqui?” Eu falei: “Não faço ideia”. E aí o cara: “Você tem certeza?” “Tenho. Não faço ideia porque eu estou aqui” “Você conhece o Ronaldo?” Eu falei: “Conheço”. Ele falou: “Você conhece o Diego?” “Conheço”. Que era o primo do Ronaldo. “Você conhece esse telefone aqui?” E colocou o telefone na mesa, que era o telefone que a gente tinha comprado para dar para o Diego. Eu falei assim: “Conheço”. Ele falou: “Então, o Ronaldo está na outra sala, o Diego está nessa outra sala. Você conhece a...” – falou o nome da mulher, uma foto da mulher e eu falei: “Não conheço, não sei quem é”. “Você não sabe?” Eu falei: “Não”. E aí ele falou: “Você tem certeza que você não sabe?” Eu falei: “Tenho”. “Mas aí o Ronaldo já falou que você sabe, o Diego falou que você sabe”. Eu falei: “Não. O que eles falaram eu não sei, eu estou falando o que eu sei. Não sei nem do que você está falando”. “Mas, e esse telefone?” “Esse telefone a gente comprou e tal, assim, assim, assado. Eu vou roubar na rua para dar para ele?” Ele falou: “É?” “É”. Aí eu lembro de pegar, ele sair da sala, me deixou lá, aí já estava algemado na sala. Era uma cadeira tipo essa aqui. Aí me deixou algemado, entram mais outros dois caras que tinham ido lá, dois policiais, um carequinha, baixinho, e outro que eu não lembro o rosto - lembro o rosto desse outro cara. Aí os caras perguntando para mim, eu falei que não sabia. Os caras começaram a me bater. Sei lá, isso era umas quatro horas da tarde... não, mentira, os caras me pegaram umas dez horas da manhã lá, do outro lado do rio, e aí eu cheguei lá meio dia, porque eu não tinha comido. E os caras começaram a me bater, sei lá, depois disso - umas duas horas da tarde - até umas dez horas da noite. Então, entrava um, batia, entrava outro, batia. Os caras colocaram uma lista telefônica para não marcar. Os caras pegavam a lista telefônica, até, para não marcar, porque aí você não deixa marca, não é? Você batia por cima da lista e eu algemado e falando: “Mano, não sei”. E eu estava com um agasalho do Corinthians, inclusive, que era da camiseta 12, que eu tinha um moletom. Aí estava escrito atrás camisa 12, e 12 era alguma coisa de um artigo sei lá do quê, dos caras, que não era o mesmo da gente. Os caras zoando, assim. Apanhava, apanhava, apanhei, apanhei, apanhei, apanhei a tarde inteira, assim. Até, à noite, os caras colocarem a gente num... na Polícia Judiciária é como se fosse um CDP. Aí eu entrei e, quando eu entrei, eu vi o Ronaldo, assim. Com a cara também toda zoada. E os caras já tinham falado para mim, os policiais: “O Ronaldo já falou o que vocês fizeram, que roubaram”, não sei o quê. E aí, quando a gente se viu, que era uma parte que você entrava para ir para a cela e tal, eu perguntei para ele: “Mano, você é louco? Você falou um bagulho que você nem fez?” E aí ele falou: “Mano, não estou te ouvindo”. Os caras bateram nele e ele não estava ouvindo. Aí os caras separaram a gente. Ele ficou em cima, eu desci para a cela debaixo, que era a cela número um, de entrada, como os caras chamavam. Ele ficou em cima, eu desci. E o primo dele não estava ali. Tinha meio que sido liberado e tal, nesse trâmite todo aí. Tinham soltado ele. Mas eu não sabia, não é? Aí a gente foi ser ouvido por um juiz no outro dia, no TIC, que era o Tribunal de Instrução Criminal e, por ironia do destino, a cadeia era aqui, o Tribunal era aqui e a minha casa era aqui. Era tudo muito perto. Isso já era no outro dia de manhã. Então você ficava... Deixa eu ver se a gente passou o final de semana... 28, 29, 30, 31...A gente foi ouvido no sábado até meio dia, porque se você fosse preso num horário, só na segunda-feira para ouvir o juiz e tal. Eu não lembro direito, mas pouco tempo para ser ouvido no tribunal. Aí a gente entrou junto. A gente ficou junto, os caras deixaram a gente na mesma cela, juntos, eu perguntando para ele o que tinha acontecido, ele falou: “Mano, eu falei para os caras que fomos nós. Eu não aguentava mais apanhar e é isso”. Eu falei: “Como é que reverte esse bagulho? Você confessou um bagulho que não fez e agora, como é que a gente reverte isso?” Aí explicamos para o advogado que estava lá, não é? O advogado é estagiário, quer que se dane você. Estava lá só porque precisava ter um representante legal. E aí ele falou: “Faz uma carta aí para o juiz falando que vocês não fizeram”. Então, vamos lá! A gente fez, o juiz escutou a gente, mas mandou prisão preventiva. Eram, no mínimo três meses, renovava por mais três e renovava até por nove. Três, seis, nove. Então você podia ficar nove meses até o juiz proferir uma sentença. Então, três meses a gente já sabia que ia ficar. O advogado já saiu falando: “Três meses vocês vão ficar, porque vocês estão em prisão preventiva”. E aí alegou que a gente não tinha residência fixa, imigrante ilegal, bababá, várias coisas. Não tinha como reverter. Aí fomos para a Polícia Judiciária, para a sede, em Lisboa, na sede da Polícia Judiciária... Essa história eu contei uma vez só, mano, aqui. Quem sabe disso é minha mãe, a mãe da minha filha, que estava comigo lá, e minha tia. Só. Nem no livro a gente colocou isso. Eu não coloquei, não era legal colocar. Aí já era, não é? Você caiu dentro do bagulho, é isso: você tem que viver o que está aqui dentro desse Sistema que está aqui. Eu estava na cela de entrada, na um, que era onde todo mundo entrava e o Ronaldo estava em outra que era, normalmente, quando você ia a passeio, para outras - aí você meio que se acomodava e ficava lá. Então, ele ficou nessa, um pouco mais para cima. E aí eu lembro de cair a ficha de que eu estava lá, com a mesma roupa, os quatro dias até... Não tinha outra, aí você tomava banho e colocava a roupa. Aí vinha um kit de manhã, era um café da manhã, um almoço, tal, e o jantar. Nessa cela de entrada, sempre tinha gente. Sempre tinha mais gente. Porque era onde a pessoa ia presa. E final do ano, não é? Tinha gente para caramba sendo presa. Entrava gente e saía. Entrava e saía. Então, entrava um que tinha saído para o juiz. Saía, depois voltava de novo porque ficou em preventiva, e assim ia. E eu escrevi isso, eu tenho isso escrito, não é? Todas essas histórias que passaram, escritas desse o primeiro dia em que entrei, até o último, em que saiu. Aí, lá dentro, eu lembro que tinha um cigano, um tiozão já, velhão, tinha uns 70 anos; tinha um guineense, que entrou por causa de droga - tinha colocado droga na palmilha do tênis, da Nova Guiné para Portugal; tinha uns caras do Sri Lanka, os três que eram especialistas em cartão de crédito pelo mundo, de fraudar cartão de crédito; tinha o Derick, que era um holandês, especialista em levar droga no estômago, na América do Sul e Europa. Fazia isso sempre, só fez isso da vida dele. Ele colocava um quilo de cocaína no estômago do guri e lá tinha ele. Os caras que eu lembro que estavam comigo nessa altura. Depois eu fui para a cela dois. Passei o Ano Novo nessa cela um. Os caras mandaram um copinho de vinho e uma coxa de frango e os pratos eram de alumínio e então, sei lá, tinha fogos, você batia o prato na grade, tipo comemorando o Ano Novo, assim. Então eu passei meu aniversário... Eu lembro da foto tirada quando eu voltei do Tribunal, que era 28/12/2006. Aí o policial ainda falou assim: “Bela prenda de aniversário para você”. De ano, na verdade, porque eles não chamam aniversário: “Bela prenda de anos para você”. Daí estava 28/12/2006, assim. Passei o Ano Novo lá preso, nessa cela um, e fui para a cela número dois - eu e o Derick - que era esse holandês aí. E tinha uns caras que tiravam cadeia maior, de boa, não é? Eu lembro do cigano falando: “É isso. A vida é a cadeia, a droga, foi o que eu construí para mim. É isso. Sei lá quantas vezes já fui preso, bababá, estou aqui”. Eu lembro de uma frase que nunca esqueço, que ele me falou assim: “A cadeia conserva um homem. Acaba com a família”. O tiozão, sei lá, tinha 70 anos e não parecia que tinha 70 anos. Ele falou: “Aqui você come, dorme e não tem preocupação. É isso. Agora, minha mulher está acabada, de tantos anos que ela teve que viver esse processo. Não fala que ela tem a idade que tem, parece que tem bem mais” Como ele falava: “A cadeia conserva um homem”. E eu gravei isso. Falei: “É isso. Acaba com quem está fora dela, que está preso junto com você”. E aí eu lembro de estar...A cela um tinha um vazamento na privada e a dois ficava muito encostada na minha orelha. Eu dormia em cima desse vazamento, assim. Aí eu lembro do ‘seu’ Rebelo, que era chefe de ala, que era um guarda - porque cada corredor é uma ala, então você tem as celas, tem a ala um, ala dois, ala três, aí sobe e você tem as alas quatro, cinco, seis, e assim vai. E você tem um chefe de ala por andar. Tem os guardas que abrem e o chefe de ala. Aí o ‘seu’ Rebelo era o chefe de ala. Aí eu falei: “’Seu’ Rebelo, eu preciso sair daquela cela. Não aguento, mano, o bagulho. Não durmo a noite inteira. A água...”. Ele falava: “Finge que você está no mar e aí você consegue dormir”. E aí era assim. E aí a gente descobriu que você podia trampar na cadeia, não é? Você podia trabalhar na cadeia. Daí eu comecei a mandar pedido de trabalho, porque você tinha um papelzinho que chegava para você, que era pedido de coisa que você gostaria, não é? Para visita. Então estava lá: pasta de dente, escova de dente, chinelo, algumas coisas que você pedia. Ou, sei lá, dominó. E eles iam atendendo seus pedidos, ou não. E aí eu pedia emprego. Todo dia. Trabalho, trabalho, trabalho. E aí a Daiana, que estava namorando comigo àquela altura, foi na primeira visita, não é? Que aí soube, tal, foi me procurar, foi na primeira visita e, como era muito perto, a gente morava perto, na mesma rua e ela trabalhava - depois já não estava mais com os idosos e ela trabalhava num café lá - e aí ela foi, tal, falamos e ela já sabia. E aí, trocando ideia, ela começou a visitar, então levou as roupas, tal, as coisas, e um dos chefes dos guardas, que não era de ala... Então tinha o chefe de ala e o chefe dos guardas e tinha um chefe dos guardas, geral, tomava café lá. Na maioria, na real, tomava café, porque o Tribunal era do lado, então a maioria tomava café nesse lugar, não é? E ela conhecia alguns caras. Que um dos principais era o ‘seu’ Agostinho. E aí, conversando com ‘seu’ Agostinho, ela falou uma vez, ela contou e tal. Eu mandava mensagem, os papéis, sempre pedindo trampo e ela conversou com o ‘seu’ Agostinho, falando que eu estava lá. Aí, saí dessa cela dois e fui transferido para outra, que era uma cela com 15, mas era grande, tinha uma TV e aí estavam os manos do Sri Lanka lá. Quando a gente entrou tinha uns outros caras malandrões, então você ia parar lá no fundo. Tinha dois chuveiros e aí você ia parar lá no fundo, mas essa cela já tinha - como os caras já eram mais malandros - baralho, dominó. Era isso, já era uma cela mais feliz, não é? Tinha mais gente, então você interagia, mas também tinha mais treta. Era isso. Até por comida, às vezes. Daí esses caras foram transferidos com a gente: os Sri Lankas - eram três amigos do Sri Lanka que foram presos juntos. Eu lembro que a novela que passava àquela altura, lá em Portugal, era Pé na Jaca. Os caras rachavam o bico e pediam para eu traduzir a novela para o Inglês, o que eles falavam. E os caras riam. Os portugueses assistiam e os caras pediam para traduzir a novela para os caras. Aí, os caras começaram a pedir: “Sua mulher está aqui, vem o nosso advogado de Londres, traz um dinheiro, ela não pode comprar umas roupas, uns negócios para nós?” Falei: “Caramba, tem um mercado aí, mano”. Aí eu começava a dar dinheiro para ela e ela trazia as roupas, na visita, para os caras e para mim. Aí começou a virar um dinheiro, porque o advogado trazia um dinheiro para os caras, de fora, eles davam o dinheiro e trazia. Aí começamos a entender que a gente era meio... É isso: se você tem uma pessoa do lado de fora, você consegue fazer um outro ‘corre’ com o canal. Então, a gente começou a fazer isso, assim. Dava um dinheiro para ela, ela ficava com o dinheiro, comprava uns bagulhos para mim e ainda trazia os bagulhos para os caras, porque também para os caras era importante. Eu falei: “Ah, então tem uma paradinha aí”. E aí, para você fazer ligações tinha um cartão telefônico, você tinha que colocar dois milhões de códigos no cartão, lá. Então, a gente começava a trocar por cartões telefônicos, para fazer chamadas também, começou a trocar cartões. Os brasileiros que entravam, a gente começou a acolher os caras, falar, não era como a gente, que ficou meio perdido: “Tem isso aqui, o cartão é isso aqui, o consulado brasileiro vai vir aqui para trocar ideia, se você não tiver advogado tem esse aqui”. A gente começou meio que virar o consulado dentro do bagulho, da parada. Os caras entravam e a gente ia trocando essa ideia. Aí, uma vez, os caras me chamaram, eu estava nessa cela já, o chefe-geral me chamou e falou: “O que você sabe fazer?” Eu falei: “Sei fazer uma porção de coisas, tal. Fiz isso, fiz isso, fiz aquilo”. Ele falou: “Quem sabe fazer muita coisa, não sabe fazer nada. Um exemplo: eu só sei ser chefe-geral. Há 20 anos trabalho com isso aqui, nunca cheguei atrasado, então eu tento fazer isso bem. Agora, se você faz muita coisa, é porque você não sabe fazer nada. Veio uma ordem aqui para você ir trabalhar, tem uma vaga aí”. Eu falei: “É mesmo?” ‘Seu’ Agostinho, que era o chefe, tinha falado com a Daiana lá, que aí tinha pedido para eu trabalhar, entendeu? Para colocar uma vaga para mim, porque quem não trabalhava dentro desse espaço - eram só 120 empresas - era transferido e, se eu fosse transferido, ela não ia conseguir me visitar. Aí não ia ter para outros bagulhos. Se você trabalhava, você ficava até o seu julgamento ali, entendeu? Que era um lugar menor e tal. Aí consegui e era uma área de esportes. O que aconteceu? Os caras tinham um grupo, que era de trabalho de faxina, que os caras estavam com um telefone celular lá dentro e aí os guardas descobriram. Então pegaram esse grupo e todo mundo que tinha usado esse telefone celular e mandaram embora. Portanto, precisavam de outro grupo de trabalho. Eu fiquei com uma outra dupla de trabalho, que era o Nélson, que era um doido lá também, cuidando da área de desporto - como os caras falavam - de esportes. Então, tudo que era esporte e entretenimento lá era a gente. Aí eu fui para essa área. O Ronaldo também mandou pedido e, depois de um tempo em que eu estava, ele foi para a cozinha. Então, nessa altura, a gente estava uns dois meses preso já, estava convencido de que era aquilo, então a gente tinha que viver aquilo. E os caras também estavam convencidos de que a gente era de confiança. Porque brasileiro não era, os caras queriam fugir, não sei o quê, bababá. Então eu fui para uma cela em cima, saí dessa ala em que eu estava, que era o setor um, fui para o setor sete, que era o setor de faxina, não é? Os caras que trampam. Aí, no setor sete, na cela 77. Então eu sempre brinco: “No sete do sete de 2007 eu estava no setor sete, na cela 77”. Lá. Aí fui morar com outro mano, que entregava comida, que era faxineiro também, que era o Corte Real, que aí eu fui conhecendo histórias. E fui escrevendo sobre elas. Todas as histórias eu tenho escritas. E os caras... O Corte Real era um maluco que buscava mala de droga dentro do aeroporto de Lisboa e aí foi descoberto e tal. E ele dormia comigo. Ele falava assim: “Brazuca, é o seguinte: você tem que dormir primeiro, porque, cara, eu ronco pra caramba. Então, você tem que dormir primeiro”. E o maluco era grandão, assim. Falou: “Você dorme primeiro”. Aí, beleza. Eu falava: “Tá, mano”. Mas era uma cela só nós dois, tinha uma TV, uns bagulhos, outro nível, não é? Beleza. Aí eu dormia, ele dormia. ‘Meu’, ele roncava que tremia as camas dos vizinhos, o bagulho era fogo. Aí não dormia. Uma semana sem dormir. E eu era responsável pelo futebol. O futebol era terça, tinha vôlei quarta, e quinta era futebol. E domingo, que era visita, também não tinha. Era de manhã. Então eu tinha que ir, varrer o pátio, montar a tela, pegar as bolas lá, depois acabava na hora do almoço, recolhia tudo, aí vinha o período da tarde, fazia tudo e aí, no final, quando fechava todo mundo, o ‘faxina’ era aberto mais cedo e solto mais tarde. E você ainda ganhava, tinha um dinheiro que ficava em um depósito dentro da cadeia, tipo um banco. Quando você saísse, você pegava essa grana. Aí, meio que você tinha uma conta lá e tal. O ‘faxina’ era isso: você tinha a regalia de conseguir fazer ligação sem ter fila, trocava ideia, ficava duas horas mais aberto, você podia circular em todos os espaços, então, você tinha algumas regalias. E aí o Ronaldo ainda não estava trampando, na cozinha. Então, vai ter um dominó, os caras queriam dominó dentro da cadeia. Eu passei a ser um cara que andava com chave, meio que importante, junto com o Nélson. Então era: “Olha o Brazuca, não sei o quê”. Porque futebol, o bagulho é fogo. Se não tinha futebol, os caras ficavam loucos, não é? Aí chovia, você tinha que dar o dominó para os caras, tinha que administrar algumas situações. Aí, o Corte Real foi, também, transferido, porque tinha uma chamada que era dele, um número que era dele no telefone, que os caras tinham achado. Aí eu fiquei sozinho um tempo na cela e aí depois, o Ronaldo conseguiu emprego na cozinha e a gente ficou junto na cela pela primeira vez. A gente ficou junto, assim, dentro do mesmo lugar. Só que aí não tinha TV, não conseguia televisão. Aí troquei ideia com os caras da manutenção, os caras arrumaram uma televisão que era maluca, ela ligava e desligava sozinha. A televisão era doida, muito louca aquela televisão era. Ela, literalmente, ligava e desligava sozinha. E aí, beleza, mas a gente já tinha um conforto ali. Aí, deu três meses de prisão preventiva e nessa, quando chamava você no alto falante, a gente dizia que era um pombo: “Chegou um pombo para vocês aí”. Aí chamou meu nome e do Ronaldo, era a renovação da prisão preventiva. A gente já tinha escrito, tinha arrumado uma advogada e contado a história para ela. Sem cobrar. A Adelaide. Aí fez isso, a gente dentro do bagulho, leu e falou: “Mais três meses vai ficar aí”. Aí fez a renovação da prisão preventiva. Nessa renovação da lei preventiva saiu uma outra lei em Portugal, que era prisão em flagrante. Você só podia ficar em preventiva se você fosse pego em flagrante. Se você não fosse pego em flagrante, você não ia em preventiva. Só que não era retroativa. E a gente já tinha sido preso, não tinha flagrante, mas a gente ia continuar preso. Eu falei: “Puxa, que droga! Então, quer dizer que agora a gente vai ter que continuar. Saiu a lei”. Beleza. E aí a gente foi vivendo naquele lugar. Entravam brasileiros, a gente ia auxiliando e então conhecemos a maioria de brasileiros que entrava, entrava com droga na mala ou no estômago. Porque... O que acontece? Você vai com droga para a Europa, é assim: você tem, normalmente, alguém que comanda esse bagulho; e aí, você tem outras pessoas aqui que precisam de grana ou querem ir para a Europa. Então, você vai juntar dez pessoas, você tem, sei lá, dez quilos de cocaína, vai dividir, vai colocar na mala de alguém, no estômago de alguém e, durante essa viagem, alguém vai ser preso. Você coloca dez quilos de cocaína no mesmo voo, derruba um quilo e passam nove. Essa é a tática, então. Normalmente é assim que funciona. Um quilo, sei lá, de cocaína, em Portugal, você faz cem mil euros. Em Londres, você faz 300 mil libras, entendeu? É muita grana, não é? E aí o cara se sujeita, muitas vezes, até a cair, para receber auxílio. Esse movimento acontece num bagulho que a gente não vê. Num mundo que a gente não vê. O cara que está aqui passando necessidade, humildão, vai para lá para levar droga. De repente, é preso. Depois, volta para cá. Então, esse movimento existe e é meio que invisível, assim, quando você não está dentro do bagulho, entendeu? E aí eu conheci outros monstros também, conheci caras que traficavam toneladas de cocaína para a Europa - três espanhóis, a maior apreensão de tonelada de cocaína do mundo! Foram 15 toneladas - os caras tinham uma lancha rápida para levar. Da Colômbia passava para o Brasil, saía do porto de Santos e ia para a Europa. E aí, toda cocaína entra por Portugal porque a cadeia é menor. Dava menos tempo de cadeia. Sei lá, na Espanha são 15 anos o tráfico de cocaína; em Portugal são nove. Então, entra ali, porque se cair, cai lá. E os caras contavam altos bagulhos para nós. Falavam: “Mano, tem prefeito, vereador, tem polícia federal, todos esses caras aí, mano”. E os caras eram os f…. do bagulho de cocaína. Tinha dois franceses - eu estudei Francês também - dois tiozões, que a visita deles chegava de helicóptero, entendeu? Os caras tinham uma cela só para os caras. E os dois tiozões falavam: “Minha vida também é essa daqui”. Quatro toneladas de cocaína num container, os caras entravam na Europa. A gente conheceu uns caras muito f…. e os caras brincavam, falavam: “Pega meu número” - tinha uma agenda - “vocês vão sair rapidinho, não sei o quê. Aí você vai procurar fulano lá, fulano de tal aqui nesse país, outro fulano nesse outro país, esse aqui, que rapidinho vocês estão na rua, não sei o quê”. Uma relação de confiança com esses caras, que eram monstruosos, assim. E aí os caras que trabalhavam eram o chef da cozinha - esse espanhol era o cara que trabalhava na cozinha - o Ronaldo trabalhava com ele, os franceses tinham uma cela só para eles, f….., e as visitas deles eram em dias separados. Eles eram meus professores de Francês. Eu aprendi a falar quatro línguas na prisão. Eram os caras mais f….. Conheci os milionários da Universidade Independente, que foram uns caras que deram um golpe nas universidades em Moçambique. Que eram dois tiozões muito loucos lá. Vários caras que eram importantes, assim, porque ali, naquele lugar, só tinha pessoas que eram presas e continuavam ali porque fizeram um crime muito grande.
P/1 – E na mesma situação que vocês, que foram presos por injustiça?
R – Porque, na real, quando você está dentro da cadeia, ninguém é culpado ou é inocente. Você vive num mundo à parte. Então, você não julga o outro, porque você vai ser julgado, entendeu? Não interessa o que os caras fizeram ou não fizeram. Porque como alguém vai julgar você, se você julgar ali, é um bagulho que não interessa o que o cara fez, entendeu? Não interessa o que ele fez, a gente está junto aqui, mano. Uma coisa que os moleques, principalmente a molecada, não perdoava, era, sei lá, estupro, abusos. Os moleques não perdoavam, zoavam os caras, não sei o quê, entravam falando que o cara, de repente, abusou da filha. Teve um tiozinho que os caras puseram fogo na roupa dele lá, sabe? Então tinha algumas coisas assim que era meio que imperdoável, mas ninguém o julgava pelo que você fez. É isso. Então, não interessa se você é inocente ou se você não é. Na hora que bater o martelo lá... É muito louco. a gente passou a morar juntos - eu e o Ronaldo - numa cela, a comer melhor porque ele estava na cozinha, então trazia outras coisas, a gente não fumava - nunca fumei - não tinha vício, então nosso dinheiro ficava guardado, usava uma ‘merreca’ para comprar um chocolate, um suco. Montamos uma geladeira lá dentro, porque aí o ‘seu’ Raul, que trabalhava no bar ali da faxina... A gente tinha uma visita a mais, os ‘faxinas’ tinham uma visita a mais. Se tinha duas vezes por semana, a gente tinha uma a mais, na segunda. Eram três vezes, na verdade. As pessoas tinham terça, quinta e domingo, a gente tinha segunda, terça, quinta e domingo. A gente tinha uma visita a mais. Então, podia ter quatro vezes na semana. E como era perto, a maioria das vezes a Daiana ia e então dificilmente ela não ia me visitar. A gente passou a ter esse jogo de cintura ali dentro. E a gente tinha uma geladeirinha, que a gente pegava e congelava o _________ [1:14:54] lá, fazia um bagulho com uma coberta e um cesto de lixo e então a gente sempre tinha água gelada, refrigerante gelado, estava sempre ali. A gente vivia um momento que era mais bacana ali. Até numa treta de pátio... Porque, no pátio, é assim: se você olhasse por cima, você tinha um sul-americano, tipo, venezuelano, junto; um bolinho de brasileiro; um bolinho de cabo-verdiano; outro bolinho de guineense; outro bolinho de português; outro bolinho de estrangeiro, tipo meio espanhol ali; outro bolinho... É muito... Assim... Vários bolinhos. A gente circulava entre todos esses, porque as pessoas meio que dependiam de algumas coisas para se divertir, da gente. Mas tinha uns momentos tensos. Eu lembro de uma treta... Duas tretas. Uma foi que um dos caras... Eu estava tomando banho para ir para a visita, um dos caras entrou na minha cela, em cima, dos ‘faxinas’. E saiu. Um cara entrou e saiu, mas eu não vi, estava tomando banho. Aí, um maluco viu - que era outro brasileiro, tal - foi lá, me chamou: “Mano, o cara entrou aí, colocou alguma coisa na cintura dele”. Aí chamei já os guardas, porque o guarda e o ‘faxina’ eram muito parceiros, porque quem fazia a comida dos guardas eram os ‘faxinas’ e tudo, então, os caras estavam fazendo o trabalho deles, mas de uma maneira diferente: “O que aconteceu?” Eu falei: “Aconteceu isso, isso e isso” “Onde o cara está?” “Está lá no primeiro”. Aí descemos lá na cela do cara: eu, o guarda, os caras e falei: “Mano, mas nos roubar, parceiro? Certeza? Aqui dentro?”. Aí eu levantei a camisa, o maluco estava com duas camisetas minhas, se não me engano. E aí o guarda perguntou: “Edson, o que você quer fazer?” Eu falei: “Nada, mano”. Ele falou: “Não vai fazer nada? Nós trancamos ele aí”. Eu falei: “Nada. Já devolveu o bagulho, já era. É isso”. Aí foi um desses momentos. E aí, os caras queriam arrebentá-lo na pancada. Você está em um lugar tenso, não é? Qualquer estopim que acende, você quer descontar em alguém. A gente voltou para lá. Eu acho que, nesse dia, correndo, foi onde eu torci meu pé, até. E eu usava aparelho também e aí, meu aparelho todo zoado, não tinha manutenção. Eu arranquei os ______ [1:17:27] do aparelho sozinho. Olha os bagulhos! Aí torci meu pé, nesse dia, coloquei uma tala no pé. Aí, nessa, teve uma treta no pátio, o maluco pisou no meu pé, um angolano - era cabo-verdiano o moleque - era um moleque, a partir dos 16 você é preso. Tinha uns 17, 18 anos o moleque. Aí o moleque veio, juntou um bolinho maior, tenso assim, que geralmente os caras sempre tinham mais, entendeu? Sempre era um volume maior cabo-verdiano, o volume é maior; brasileiro é um pouco... É o segundo. Assim... Brasileiro e português. Os caras juntaram em cima e começamos a sair na porrada, aí ferrou. Briga, cadeia, é transferência. Não tem desculpa, entendeu? Não tem desculpa. Já era. Você pode estar certo ou errado, estar o que for. Briga, cadeia, transferência. Esse moleque que tinha roubado, no outro dia foi transferido. As transferências eram às terças. Todas as terças. Então, o máximo que você passava lá era uma semana, não é? Para ir para outro lugar. Os caras chamam de cadeia de passagem. Aí fui, fiquei trancado por dois dias. O Nélson, que era um outro parceiro, que fazia comigo o futebol, que estava _____ [1:18:43]. Fiquei uns três dias trancado, até ser ouvido. Fui ouvido pela assistente social, que era uma brasileira, me escutou, falei o que tinha acontecido e o que não tinha acontecido, depois escutou o moleque, depois o chefe dos guardas, que era o ‘seu’ Agostinho, escutou, fez relatório, escutou o moleque, aí o moleque foi transferido. Eu fiquei, não é? Aí, nessa, você já começa a pegar um outro status dentro da cadeia. Porque os caras falam: “Mano, como assim? O bagulho aconteceu, não saiu. Alguma coisa tem aí, porque o cara não saiu, não foi transferido, continua aqui”. Mas o moleque estava errado e tal, dentro dos relatórios os caras decidiram isso e eu fiquei. Aí ficamos, eu e o Ronaldo, lá dentro. A Daiana ia visitar na maioria das vezes, a gente acompanhando vários processos, vários caras, vários que passavam e saíam. Eu nunca, no telefone... Quando eu falava com a minha mãe... Eu tinha contado para ela, depois de um mês ou mais, que estava preso. Não tinha contado para ela, exatamente, o que era, em si. Falei que era por causa de uma carteira de motorista, que eu estava dirigindo sem carta, eu já tinha sido pego sem carta e tal, mas nunca explicava para ela tudo . Mas falava com ela sempre, ligava e tal, trocava ideia, não é? Aí, nosso julgamento foi marcado, a prisão preventiva foi renovada pela segunda vez e o julgamento foi marcado para o dia 30 de outubro. Não, foi marcado em setembro, ali, no meio de setembro. 30 de outubro foi a data em que eu saí. Meio de setembro, mais ou menos. Beleza. Aí, o Ronaldo é quem ia - os dois foram presos juntos - a gente ia a julgamento, a advogada já estava ciente, tinha feito o processo, ela sempre ia visitar a gente. A advogada, maior firmeza, abraçou a causa. Ela tirava cópia dos bagulhos com o dinheiro dela, tá ligada? Era fogo. A Adelaide. E aí, num desses momentos, chamaram meu nome e não chamaram o do Ronaldo. Sempre chamavam o meu nome e o dele, porque era o mesmo processo. Mas, chamaram meu nome sozinho, não é? Fui ver, era um outro processo. De um outro assalto, a mão armada, e tinha o meu nome no bagulho, não é? Um outro processo dentro do barato. Aí fui ler, tal, babá, e era uma convocação para ser ouvido pela polícia. Mas não era polícia judiciária, era polícia municipal. Era outra polícia. Não era essa que tinha prendido a gente. Aí, levei para a advogada e tal, mostrei o dia, ela falou: “Edson, não sei o que é, você sabe?” Eu falei: “Também não faço ideia”. Ela falou: “Então... Mas eu não vou poder ir nesse dia”. Foi uma estagiária, que era dela, e tal. Aí eu cheguei lá... Porque aí você vai dentro do carro, fechadão, tal, estava a advogada já falando com o outro processo do policial: “Os caras têm aqui uma impressão digital sua, de um assalto e tal, e está aqui”. Estava lá a impressão digital. E um negócio que não falou onde era. E aqui é o reconhecimento da vítima e tal, para reconhecer as pessoas. Eu falei: “Como assim?” Ela falou: “É, hoje é isso, para ser feito aqui”. E aí, eu fui para a sala - um dos policiais era um brasileiro, inclusive. Aí tinha uma sala de vidro, você entra na sala... Fui para o reconhecimento... Éramos eu e mais uns quatro caras. Fui, tal, lá, fez o processo, bababá, saí. A advogada acompanhando do outro lado, não é? Ela voltou e falou: “Ninguém reconheceu você. A vítima, na real, não reconheceu. Até apontou para outra pessoa, mas eles têm essa impressão digital aqui que a gente não sabe o que é, vai ter que esperar finalizar o processo”. Aí os caras vieram: “Essa impressão digital sua, bababá”. Falei: “Mano, não sei do que se trata, não sei o que é”. Aí estava a advogada, os caras conversaram, falaram, mas eles precisavam fechar o processo. Aí, beleza, quando fechou o processo, a advogada o trouxe inteiro. O que aconteceu? Era um assalto a mão armada que aconteceu numa ourivesaria e, dentro disso, os caras pegaram um cara, que era o motorista, e tinha uma garrafa de água dentro do carro, que era com uma impressão digital minha. E um CD que era impressão digital minha. Esse cara era um outro parceiro, que foi lá onde a gente foi morar, na casa, junto, eu e o Dico, lá, naquela outra casinha, que era um barraquinho, não sei o quê. Era esse mano e eu tinha dado o CD para ele e, sei lá, tinha andado no carro e tal, também. Então, tinha impressão digital minha e aí tinha, junto desse processo também, uma queixa da mina em que a gente morava. Junto, no processo. A queixa da menina onde a gente morava. Daí, junto, ainda estava falando que a gente... O depoimento dela era que a gente, em São Paulo, fazia parte do PCC, que não sei o quê, não sei das quantas, vários bagulhos, que ela achava que a gente não sei o quê, que a gente ouvia umas músicas... ‘Meu’, vários bagulhos dentro desse processo dos caras, porque os caras precisavam engordar o processo. Era muito louco. Era o CD da trilha sonora do Gueto, que tinha. Imagina, só falava mal de polícia a música! E aí os caras anexaram no processo, mas era isso o que os caras tinham: uma impressão digital numa garrafa d’água, dentro de um carro, não é? Porque a vítima falou que eram duas pessoas. E aí, então, já tinha mais um processo para responder, entendeu? Tinha esse que tinha sido julgado e tinha mais um para ser respondido. E a advogada falou: “É isso”. Aí, a gente foi ouvido nesse processo, do primeiro, em que estávamos eu e o Ronaldo. E aí fomos para o julgamento - eu e mais o Ronaldo. No dia, esse cara já estava preso - o que era motorista do outro carro - em outro lugar. Mas já estava preso havia um tempo e eu não sabia. Até, inclusive... E aí, quando a gente foi para ser julgado, a gente saiu junto - eu e o Ronaldo - fomos para o tribunal. E aí, o tribunal estava vazio. Tinha o juiz, o promotor, advogado e tal. E a gente chamou para testemunhar a Daiana - que morava comigo - o tio do Ronaldo, chamamos uma outra mulher também, que era amiga da Daiana e que também morava com a gente e que morou um tempo lá e tal, para testemunhar. Aí, a juíza gritava e falava, e não sei o quê. E tinha a vítima também, que era do telefone e tal. Um ano depois, o julgamento. Um ano quase depois que a gente tinha sido preso. E falando e tal, babababá. No final, beleza, ouviu, e depois, na outra semana, era a sentença. Ouve, tal, faz tudo, aí é a sentença. A gente volta para o tribunal para ouvir a sentença. Aí a juíza falou e tal e eu lembro uma frase dela, que eu já tinha escutado na televisão até, em que ela falou assim: “Aqui, os fatos não são congruentes, não há provas, bababá. Tem queixas aqui da polícia, da agressão”. E os policiais estavam também. Falou, leu tudo lá o que ela tinha que ler e, no final, ela falou assim: “Independentemente de qualquer coisa, é preferível aqui, nessa situação e na Justiça, um culpado solto, do que um inocente preso. Porque o culpado, a qualquer momento vai voltar aqui para dentro. O inocente preso jamais a gente vai reparar o estrago que foi feito na vida dele. Então, que sejam postos imediatamente em liberdade os dois, tal, Edson, bababababá, e Ronaldo”. Falou nosso nome, beleza, mas eu não podia ser solto naquele momento, porque eu tinha outro processo. Então, saiu só o Ronaldo, está entendendo? Eu não podia ser solto naquele momento. Então eu tinha que voltar, o Ronaldo saía, voltou, pegou as coisas dele, saiu e eu estava preso ainda. Continuava. E ia ser julgado no outro mês, pelo outro processo. Não podia sair. Então, ele saiu, mas a minha missão estava meio que cumprida, por tirar o cara dali, que confessou um bagulho que nós não fizemos lá atrás e arrastou isso, não é? A vontade de qualquer outra pessoa era matá-lo. Realmente, na cabeça de outras pessoas... Falei: “Não, mano, é isso. Era meu parceiro, que entregou um bagulho que não fez, e é isso. Está fora”.
P/1 – E o sentimento que ficava em você, qual era?
R – Não, acho que era mais frágil do que eu, na altura. Acho que era só de sair. Não tinha raiva, não tinha nada. No entanto, hoje em dia, sempre que eu falo disso, eu penso um bagulho que é assim: não posso falar que aquele momento tenha sido ruim. Isso é muito louco, entendeu? Você passar dez meses preso e não achar que foi ruim. Eu tirei experiências e aprendizados que não tiraria em outro lugar. Em outro momento. Então, é muito louco você não poder falar que aquilo foi muito ruim, na época. Porque ficar preso é ruim até dentro da sua casa. Aí saiu e eu fui, em outubro de 2007, para ser ouvido em tribunal. E aí, foi a primeira vez que eu encontrei o outro mano, que era o motorista, e no processo dele tinha o meu nome e ele falando que eu estava junto. Vários bagulhos também começaram a juntar no dele... Depoimento dele, mais o que estava escrito, mais a impressão digital. E aí a gente foi no julgamento primeiro - foram vários julgamentos juntos - e o nosso era um deles. E ali tinha um advogado meio maluco, e a minha advogada já tinha feito o nosso processo, já tinha colocado em liberdade a gente, praticamente absolvido no outro processo. E o advogado dele, desse cara, era meio louco, até um tiozão, que eles quiseram montar um esquema de um álibi, que ele não estava em Lisboa naquele dia, que tinha sido o dia do roubo, montar um negócio meio louco. Aí, trouxeram um depoimento de um outro mano que nem sabia o que estava fazendo lá, que era irmão de não sei quem, sabe? Um negócio meio louco. Um negócio meio nada a ver. E o juiz até olhou bastante para isso. E além de ser uma confusão... E ele perguntou ao juiz se podia falar, não é? Ele falando, esse outro mano. E aí o juiz: “Pode falar”. “A César o que é de César, eu vou contar que é assim: eu estava no dia que foi isso, que foi aquilo”. E aí foi contando a história dele, da maneira que ele achava que ia safá-lo. A advogada tinha me orientado a não falar nada. A juíza, quando perguntou para a vítima se reconhecia as pessoas, a vítima apontou para mim. “São os dois, mesmo, não sei o quê”. Aí a advogada já pediu para eu falar. Eu falei assim: “Como são os dois? Esse aqui estava no reconhecimento e a senhora falou que não reconheceu. A senhora está falando porque viu os dois aqui juntos quando vieram para cá e agora a senhora está falando que são os dois? Porque no reconhecimento está aqui, documentado, que não é”. E a advogada já estava injuriada, não é? O juiz ouviu e eu desci, porque eles nos colocaram juntos, dentro do que a gente chamava de calabouço. Assim... Onde ficava todo mundo que ia subir para o tribunal; em outra cela. E aí a gente saiu na pancada depois, não é? Antes de eu ir embora. Daí os caras fecharam a porta, porque acontecia treta direto, os caras sabiam. Os caras fecharam a porta, a gente saiu na pancadaria, juntos, e eu falei: “Mano, como você vai falar meu nome num bagulho que nem era, e tal?” Aí, esse maluco era policial aqui no Brasil, inclusive. Ele era desertor em Lisboa. Beleza. Entramos na pancadaria lá e tal, saí e voltei e depois fui para a sentença. Era uma segunda-feira que era a sentença e isso foi numa quarta. Era a final minha, desse outro processo. Aí eu fui para ser ouvido e tal e aí eu falei para o barbeiro que estava lá: “Mano, eu vou cortar meu cabelo” – era um sábado, ele cortava o cabelo aos sábados de manhã – “porque segunda-feira eu vou embora, mano”. Os caras riam. “Eu estou falando. Pode cortar meu cabelo que segunda-feira eu vou embora, mano. Eu estou falando para vocês”. E aí ele cortou e segunda-feira a gente foi para o tribunal. Eu entrei, o Ronaldo estava também, foi assistir a sentença e tal, aí a juíza falou, leu o processo, as incongruências que tinha, não sei o quê e aí disse meu nome e falou: “Edson Leite, que seja posto imediatamente em liberdade, é isso”. Na hora em que ela falou, eu falei para o Ronaldo: “Você me espera lá que eu vou arrumar meus bagulhos e já era”. Entrei, que era o Vitor, o guarda mais f…. d. p... que tinha na cadeia, assim. Ele queria me algemar na volta. Eu falei: “Não, você não vai me algemar, você é louco? Não vai. E agora você não vai e é isso, entendeu?” Beleza, a gente saiu e lá, com o cara, só eu, peguei, arrumei minhas coisas lá dentro, porque você arruma suas coisas, não pode mais falar com ninguém, você sai. Arrumei minhas coisas, passei lá na secretaria para pegar o dinheiro que tinha e esse dinheiro ainda pagou meu aluguel por dois meses, fora disso, depois. Aí saí, peguei minhas coisas que tinha, o Ronaldo estava lá fora, saí com meu saco preto. Aí, a Daiana não sabia que eu tinha saído, porque ela estava trabalhando. Cheguei lá, ela estava, ela morava numa pensão do lado do tribunal onde a gente estava, depois da primeira, porque ela tinha saído da casa, não dava para ela pagar a casa lá em que a gente estava, sozinha. Ela estava numa pensão. Aí cheguei lá e tal, troquei ideia com ela e aí começa outra...
P/1 – Trocou ideia com ela. Como foi quando ela te viu?
R – Na verdade, eu entrei, ela estava tomando banho, ela meio que tomou um susto, assim. Não teve meio que reação. Não sabia meio o que fazer. Não sabia o que fazer. Aí a gente trocou ideia, naquela noite a gente saiu, eu fui na igreja, ver o pastor que tinha trocado ideia comigo na prisão e tal. É isso: ela meio que ficou sem saber, não é? Um ano, quase, visitando. Aí começa uma outra fase. Na verdade, ali, a advogada perguntou se a gente queria processar o Estado e recomendou não fazer, inclusive porque era a primeira vez, sei lá, na história do país, onde você tirava dois brasileiros de dentro de uma prisão, ilegais, absolvidos, sei lá, era muita coisa. Daí ela falou: “Se a gente processa o Estado, nessa altura, eu não sei se é bom ou se é ruim. Não sei se vai ser bom, mas se vocês quiserem, a gente pode”. Ela abriu as opções e falou: “Eu não sei, mas a escolha é de vocês para fazer isso, porque a gente não sabe se vai ser bom ou ruim”. A gente optou por deixar como estava. E era isso, entendeu? Aí começa uma outra fase das ideias e do que a gente tinha que fazer, sabe, ali. E você toma força para fazer outras coisas. Aí eu voltei para as Páginas Amarelas, a menina que era operadora já era coordenadora do processo e tal. Então, 2007... Saí dia 30 de outubro, novembro, dezembro eu volto para a outra campanha do outro ano, que abria para 2008.
P/1 – Como foi comemorar seu aniversário esse ano?
R – Eu lembro que nesse dia - eu tenho fotos até - a gente fez churrasco. Tinha uns outros caras que tinham saído da cadeia e viraram amigos. Tinha uns caras muito bons, fizeram m..., e aí? Viraram amigos e tem uma porção de fotos. Antes de voltar para as Páginas Amarelas trabalhei num telemarketing que os caras fizeram nesse ano aí, meio que uma surpresa, que não era surpresa, que eu descobri que os caras iam fazer a festa e aí eu voltei para casa. Essa grana que eu tinha na cadeia deu para pagar um outro aluguel, voltei para a casa onde a gente estava, não é? Então, foi diferente, assim. E eu estava, sei lá, na melhor fase física da minha vida: comia certo, dormia certo, estava certo. Quando pega uma foto, assim, tem as fotos de antes e depois, é engraçado, até. E aí foi tipo isso, assim. Nesse momento, era o recomeço de outras ideias, de se refazer. Voltei, fiquei com a Daiana, junto, morando junto, nessa casa. E, como eu voltei para as Páginas Amarelas e viajava bastante, assim... A gente ficava pouco junto, então era um relacionamento perfeito. Você passa pouco tempo com uma pessoa, então é muito bom. Quando está tenso, você ‘sai fora’. Depois ela viajou, inclusive, ficou cinco dias junto com a namorada do Ronaldo, que era uma portuguesa que também estava com ele. Viajaram juntas, ficaram um tempo lá com a gente, sabe, e aí, quando eu volto para Lisboa, para trabalhar – 2008 - trabalhava mais ali, estava mais junto, começam as tretas. Assim... Porque a gente nunca ficou tanto tempo junto, não é? Não ficava. A gente ficava pouco tempo junto. Então, eu estava trampando nas Páginas Amarelas e quase um ano depois eu saí, a gente meio que eu querendo sair de casa, não queria mais estar lá, não é? Minha mãe me perguntava: “Mas você gosta dela ou você é grato a ela por tudo que ela fez?” Você começa a questionar o relacionamento. Você fala: “Puxa, mas eu estou com ela porque eu gosto dela mesmo ou porque, sei lá, é obrigado, assim?” Aí foi o aniversário dela, eu estava nas Páginas Amarelas ainda, ela queria tirar carta, eu comprei um carro, tinha dado um carro para ela dirigir, que era de um outro mano que trabalhava comigo nas Páginas Amarelas. Um português queria vender e eu falei: “Esse carro aí”. E aí a gente acabou meio que se separando, assim. Então, eu tinha minhas coisas lá, mas aí fui morar com um amigo, que era o Felipe, um outro mano que eu conheci entregando lista, mas depois a gente foi trabalhar em um restaurante, juntos, em 2009. Aí a gente foi morar junto. O Ronaldo já estava com a portuguesa, o Dico estava lá trampando... Onde ele estava trampando a essa altura? Acho que estava no restaurante, de volta. E aí eu saí de casa e fui morar com esse amigo meu, um ano depois, e a Daiana continuou na casa e trampando. E aí eu estava no Porto, trabalhando fora. E a coordenação das Páginas Amarelas falava muito comigo, porque eu montava as equipes e direcionava. Era uma boiada para trabalhar aquilo, era muito fácil, a gente ganhava dinheiro muito rápido e entregava... E terminava as ações muito rápido. Aí eu começava a falar direto com eles e não estava em casa. Minhas coisas estavam em casa e eu morava meio que com amigo, era meio que um relacionamento que não era mais um relacionamento de viver junto. Porque não dava. Era briga, briga, briga. Era treta sempre. E aí, nesse buraco aí de morar com esse parceiro, a mina que era atendente quando eu fui preso - isso em 2009 - era coordenadora já... Não era de equipe, era tipo de zonas, cidades, um bagulho assim, a Marisa. E aí eu me envolvi com essa mina, que era diretora da empresa. Eu era entregador de listas e a mina era diretora da empresa. Aí, uma vez, ela pegou um trem e foi para o Porto, para a gente se encontrar e tal. Aí eu estava com essa mina, uma portuguesa...E eu e o Felipe, a gente estava num lugar, tinha alugado nós dois, ela falou: “Não, vocês têm que sair daí, têm que ir para outro lugar melhor, não sei o quê”. Aí, a mina começa a pegar até o apartamento no nome dela, uns bagulhos, para fazer para a gente, assim. Aí, carro. A mina era diretora da empresa, nós entregávamos lista. Para mim, a gente ganhava o dinheiro que era. Só que aí - isso foi dezembro de 2008, janeiro de 2009, fevereiro - eu estava no Porto, a Daiana descobriu que estava grávida. E ela me mandou a foto do teste de gravidez, assim. Aí chamei essa mina com quem eu estava, falei, expliquei, ela falou: “Não, ‘meu’, você quer fazer o quê? Você quer ficar comigo?” Eu falei: “Não, vou ficar”. É isso: ela ficou grávida e a gente nem estava junto. Estava meio sem saber o que fazer, na real. Não sabia o que eu fazia, se eu voltava para casa ou não. Trocava ideia com o Felipe, que é esse parceiro: “Mano, você é louco? A mina aqui, maior firmeza, não sei o quê, te dando a maior assistência, falando que vai continuar com você, inclusive”. E eu falava: “Mano, mas eu cresci sem meu pai, parceiro. Imagina eu ter uma filha e tal”. Ele falou: “Não”. E a gente ficava trocando ideia. Aí 2008, início de 2009, eu já comecei a trabalhar, acabou a ação das Páginas Amarelas, ela continuava nas Páginas Amarelas, a menina, aí comecei a trabalhar em um restaurante, de garçom, e comecei a trabalhar no outro lavando pratos. E ainda estava com a menina das Páginas Amarelas. E ela viu a gente.
P/1 – Mas como surgiu essa oportunidade?
R – De garçom é porque tinha acabado a ação no Norte e o Felipe já estava como garçom no restaurante, tipo meio fazendo extra, assim. Aí, ele me chamou. E a outra, no outro restaurante, que era lavando pratos, eu conheci um outro mano, que era o Bruno, entregando lista, ele fez parte da equipe e foi trabalhar nesse restaurante, lavando pratos. Ele me chamava de vez em quando. Ele trabalhou. E aí depois eu comecei a ser chamado direto para ir lavar e tal, junto com ele, assim, o Bruno. Aí, beleza, o que eu fazia? Eu ia para um de dia e para o outro, de noite. E aí estava morando com o Felipe e tal, nessa outra casa. E aí comecei a juntar uma grana, porque ela estava grávida, não é? Então, começamos a juntar um dinheiro, ia de bicicleta trampar e tal, aí juntei um dinheiro, minha mãe foi para lá - minha mãe e meu irmão. Meu padrasto pagou uma parte da passagem, eu paguei a outra e eu estava na outra casa, e aí falei para a mina, a Marisa, portuguesa, que ia sair da casa e tal e que ia voltar para onde eu estava, com a Daiana. Essa mulher surtou, quebrou tudo dentro de casa, tudo. Tudo, tudo. Porque ela tinha comprado televisão, tinha feito vários bagulhos, a casa era a cara dela. E a mulher surtou, assim. Muito. Colocou fogo nos bagulhos. Eu nunca vi a mulher daquele jeito. Voltei. Nesse voltar para casa, aí minha mãe ficou um tempo lá nessa casa comigo, ficou três meses, até minha filha nascer. Minha filha nasceu em agosto de 2009 e aí eu, com o Felipe morando junto, a gente trampando junto, a gente fazia alguns extras, até. Aí, o que aconteceu? Nesse meio tempo, fevereiro, março, abril, maio, junho, julho, agosto, eu saí mais ou menos de casa, em março, que eu acabei com essa mina e aí, nesse meio tempo, eu estava no restaurante, como garçom, e no outro lavando prato. Juntei uma grana, fui. Nesse meio tempo, fui convidado para ir para a cozinha desse outro, no qual eu era garçom. Porque as meninas não foram trampar e tal e ela queria um cozinheiro. E ela achava que eu cozinhava no outro restaurante, a dona não sabia o que eu fazia no outro restaurante, que eu só lavava prato. E o outro chef de cozinha tinha me colocado nas áreas das entradas quentes e tal. E aí, nessa das entradas quentes, eu fui pegando alguma coisa e a dona me chamou para trampar na cozinha. Eu falei que sabia. Não sabia droga nenhuma. Nem fazer arroz. E aí eu liguei para o chef de cozinha, para o Edson, que era do outro, onde eu lavava prato. No dia, liguei para ele, falei: “Mano, seguinte, parceiro: aconteceu isso, isso e isso e tal”. Aí ele falou assim: “Qual é o prato?” Eu falei: “O prato é polvo a lagareiro”. Não tinha nem comido o bagulho, não sabia nem o que era. Tinha comido acho que uma vez, na cadeia, ainda, sei lá. Aí ele explicou como fazia. Eu tenho foto desse bagulho. Ele explicou como fazia e eu comecei a fazer. Então, todos os dias eu falava para ele o cardápio e fazia. Aí, tinha um outro moleque que lavava pratos, acabou virando meu ajudante depois - porque as meninas não voltaram mais, as cozinheiras, a dona mandou embora – aí todo dia a gente trocava ideia e eu ia fazendo o prato, mano. Depois eu criei um cardápio junto com ele e estudava antes o bagulho, não é? Então, antes de fazer, eu estudava os pratos, não era mais ligando. E aí, depois, a gente começou a fazer feijoada junto, ele ia comigo lá, me ajudar. Alguns baratos que eram assim. Aí fazia extra lá com ele, depois eu fiz uma jogada que foi o seguinte: uma vez eu estava nas entradas do Olivier, que era o dono do restaurante onde eu trabalhava, aí ele pediu para eu fazer umas postas lá, com salmão lá de não sei de onde, com caviar da p... q.. p…. lá, sei lá que droga que era. Aí deu uma latinha para mim e falou que era para eu fazer as postas para os convidados. Todo mundo ficou olhando e eu falei: “Tá bom”. Fui lá, torrei o negócio, peguei o caviar, mexi, fiz um tempero louco lá, dei para ele, montei e ele mandou. No final da noite, ele já entrou na cozinha gritando estilo português: “Quem fez essa merda? Dane-se. Não sei o quê, não sei o quê, não sei o quê”. Gritando, na cozinha. Aí eu falei: “Fui eu”. Ele falou: “É a melhor merda que eu já comi na minha vida. Por que você não está trabalhando comigo? Não sei o quê, bababá”. Eu falei: “Porque você não me propôs nada”. Ele falou: “Então vamos conversar, não sei o quê”. Eu falei: “Tá bom”. Eu ganhava 600 euros no outro restaurante e 25 por noite nesse daí. Então, se eu fizesse 20 dias seguidos, às vezes eu ganhava mais do que quem trabalhava dentro do restaurante com documento e tal. E aí eu falei para a outra dona: “É o seguinte: eu recebi uma proposta de uns caras” – nem tinha recebido nada – “os caras querem me pagar 800 euros e tal, como a gente faz?” Ela falou: “Deixa eu conversar com o doutor”, que era o outro, João, que era sócio dela. Beleza. Fui conversar com o Olivier, expliquei para ele que eu trabalhava no (centro de informática?) [1:48:48], que ela falou que vai me pagar 800 euros lá, não posso ficar aqui com você, entendeu? Ele falou: “O que eu posso te pagar aqui é 900, para você entrar, para não ser mais que isso, e aí você vai colocar”. Beleza. Ela chamou, eu voltei e falei: “Ele me ofereceu 900 para eu ficar lá”. E ela falou: “Então, eu chego aqui pelo menos nos mil e aí você trabalha aqui comigo e só fica aqui e pronto”. Eu falei: “Tá bom”. Aí eu saí do outro, o Olivier ficou p... porque ele achava que tudo tinha que estar no restaurante dele. Aí fui trampar e fiquei lá, na Leitaria Gourmet. Beleza. Fiz teste de cardápio, a coisa toda, mudamos o cardápio, minha mãe foi lá, acho, comer. Meu irmão... A minha filha não tinha nascido ainda, a Daiana foi lá, a gente montou uma mesona, para saber o que a gente ia colocar, mesmo, no cardápio. Tenho esse cardápio também até hoje. O que a gente ia colocar e tal. E aí fechamos. Nos primeiros quatro, cinco meses, a gente saiu na Time Out duas vezes, em Lisboa, com a Leitaria diferente, mas nunca apareceu meu nome, não é? Apareceu o nome do restaurante, não apareceu o nome de quem cozinhava. Para mim, tudo bem. Eu não sabia nada, nem tinha essa noção. E aí a gente cozinhou e tal, fiquei um ano e meio lá, quase dois, um ano e acho que oito meses, mais ou menos. A gente colocou o restaurante num lugar muito bacana, não é? Aí, vim de férias para o Brasil, em 2010. Minha mãe foi lá e em 2010 vim para o Brasil. Minha filha já tinha um ano - a Isabelly já tinha um ano. E aí já tinha comprado um carro lá e a cozinha começou a fazer outras coisas. Daí eu começava a fazer extra em outros restaurantes, porque Lisboa é um lugar muito pequeno, então, se você faz uma coisa bacana, você tem um destaque muito rápido. Apesar de ser um lugar muito tradicional. Para você se destacar, você precisa quebrar algumas barreiras. E aí eu começo a cozinhar para outros lugares, e lá. Aí vim para o Brasil entender o que era, o que estava fazendo aqui em relação à comida, em relação a várias outras coisas que se tinha, que eu não tinha noção. Eu comecei a cozinha na Europa, não foi no Brasil. Aí, peguei o dinheiro das férias, vim para cá. Quando eu volto... Não, foi assim: eu peguei dinheiro porque tinha que pegar minhas férias e aí o restaurante... A dona queria vender, junto com o sócio. Eles entraram em acordo para vender. Ou a gente ficava no restaurante ou a gente saía e recebia tudo. Aí eu peguei minhas férias, peguei o que ia receber, falei ok, acho que deu, legal, ela pagou todo mundo que trabalhava junto, foi bacana, eu peguei a grana, vim para o Brasil, fiquei um tempo com a minha filha. Quando minha filha nasceu, lá em Lisboa, só para eu voltar um pouco, um ano antes disso até, minha mãe ficou lá, esperou nascer, deu um auxílio, ficou mais um tempo com a gente e eu me queimei, até, nesse restaurante, caiu uma panela de água quente na minha barriga, eu fiquei 40 dias em casa e foram 40 dias que eu fiquei com a minha filha também. Um ano depois eu venho de férias para o Brasil com essa grana que eu tinha pego no restaurante, que tinha mudado de dono, vendido, e aí, quando eu volto para Lisboa, recebi um e-mail dela falando que ela tinha pego um outro restaurante, queria que eu estivesse e tal. Eu e o Wesley, que era outro parceiro que trabalhava comigo e tal, e as coisas aconteceram muito rápido. Quando eu volto, eu já volto empregado no outro restaurante, que era do lado desse, assim, que era o ______ [1:52:49], era um restaurante de bife, massa e salada. Aí o Wesley, que estava comigo no outro, veio, fez parte dessa primeira equipe, e aí esse cara, que era o dono, junto com ela, que era a dona Ana, que era sócia, era um cara que só me pagava, ele não pagava os outros. Ajudante, ele enrolava e pagava só a mim, assim, para meio que manter, não é? Não pagava quem trabalhava no salão. Então, era meio que uma mentira. Esse cara era meio que pilantra assim, eu fui meio que descolando que era. Então eu fiquei, sei lá, quatro, cinco meses nesse restaurante, aprendi também várias coisas. Não deixava de ir para os outros, fazia extra nos outros e aí, quando resolvi sair, que era para pagar os direitos, essas coisas que ele devia, o cara não quis pagar para mim. Aí, já não pagava para os outros, todo mundo o colocou na Justiça e tal. O cara era pilantra mesmo, o português. E aí ficou na Justiça. Eu nunca nem recebi isso. E como eu já tinha mais experiência, já estava no meio, rodava: trabalhava em um restaurante, depois trabalhava no restaurante do hotel e tal e aí, no final do ano, eu recebi uma proposta de uma agência para trabalhar no restaurante do hospital. Dentro do hospital. Eram 90 ou 60 dias, para cobrir férias. Era uma agência. Eu falei: “Eu vou, cara, na experiência, acho que é bacana”. Aí fui viver experiência do restaurante de hospital. Foi onde eu entendi o que era aproveitar as coisas, cozinhar limitado, porque você não podia usar pimenta, não podia usar muitos temperos. Era vinho, sal, louro. O que você ia fazer para arrancar sabor dos alimentos? Tinha um chef de cozinha, que era o Baltazar. F…... Já aproveitava, me ensinou a cortar peixe, carne. O primeiro dia ele ficou comigo, que ele entrava às sete e saía às cinco. Eu entrava às dez e saía às sete da noite. O primeiro dia ele ficou comigo até o final, explicou tudo. No segundo dia, ele falou: “Agora você fica sozinho, já”. Eu falei: “Como assim?” Tinha que fazer cinco pratos para os médicos e enfermeiros. Aí comecei a ficar sozinho lá no hospital. Esse cara era muito correto, me ensinou muitas coisas em relação a aproveitar, desperdício... Era o cara que falava que desligava todas as tomadas de casa antes de dormir, para aquelas luzinhas da televisão não ficarem acesas. Que colocava um balde na hora em que abria o chuveiro, para aquela água gelada, ele aproveitar no vaso. O cara f…., mesmo. Era um cara louco, que não desperdiçava absolutamente nada. Então, aquilo ficou muito marcado em mim, assim, nessa coisa do desperdício. Ele era f.... E não era desperdício só de comida, era de tudo. De tempo, de energia, de dinheiro, de água. Um cara que tinha o ciclo completo de desperdício. Então, isso ficou marcado em mim, dentro da cozinha. Aí fiquei lá um tempo, depois acabaram as férias, a menina voltou, eu lembro desse cara chorar. Ele falou: “Eu queria muito que você ficasse”. Só que para ficar dentro do hospital tinha que fazer tipo um concurso. Podia ficar temporada, mas ficar não podia. Uma parte que eu esqueci: na real, a minha documentação quem deu foi a Leitaria Gourmet, o restaurante onde eu virei cozinheiro. Minha documentação saiu por aquele restaurante, então, a doutora Ana, que era do restaurante, fez todo o processo para eu conseguir meus documentos e me legalizar. Eu tirei minha carta, comprei o carro e tal, não sei o quê. Para eu ter a minha documentação, não é? Então, quando minha filha nasceu, nasceu com a documentação dela e tal. Isso foi muito legal. Então, a cozinha é que me deu oportunidade de várias outras coisas que outros lugares não tinham me dado, entendeu? Apesar de trabalhar bastante. Aí é isso. Saí dali, estava com restaurante de hotel, fazendo extras, então trabalhava aos finais de semana e aí, nesse meio tempo, a gente conheceu um cara, que é o Eduardo, da Rádio Tropical de Lisboa - eu e o Dico - acho que foi numa balada que a gente o conheceu. É. E aí a gente trocando ideia e tal, falando que os caras queriam trazer os Racionais para a Europa, tipo num rolé. Falamos: “A gente conhece os caras, sabe como é que é”. “É mesmo?” “É”. “Então, vamos”. Daí a gente foi num show que eles organizaram pela rádio, que era do... Caraca, esqueci o nome do cara, puxa, esqueci... De samba, que ele estava levando para a Europa. E a gente conversando, ele falou: “Cara, vocês não querem fazer um programa? Acho legal vocês fazerem um programa de rádio”. Nesse meio tempo aí, de trabalho já estava estabilizado, a gente conseguia pensar em outras coisas e tal. Eu falei: “Pô, legal. Aí a gente traz os Racionais para cá. Como é que a gente vai fazer?” A gente fez todo esse trâmite, essa ponte aí deles levarem o Racionais para a Europa, fecharam um pacote com empresa aérea, com hotel, com restaurante, com cinco países e a gente fez um esquema aqui para fazer essa ponte para ir para a Europa. Porque os Racionais não tinham nem um site àquela altura. Não tinha nada, coisa nenhuma. E aí a gente conseguiu fazer essa ponte e lançou um programa de hip hop, de língua portuguesa, dentro do show do Racionais. Então, era o primeiro programa de hip hop de língua portuguesa. E um dos caras que ajudou a gente pra caramba, a ter músicas de rap em língua portuguesa - e aí foi que eu entendi quantos países falam Português, aquilo foi importante pra caramba - foi o Condutor, que era aquele produtor lá que deu a câmera para nós, lá atrás, e a gente foi atrás dele e falou: “Está aqui, isso aqui é tudo rap português de Angola, da Guiné, tal, tal, tal, tal”. Ele falou: “Que legal que vocês vão fazer esse bagulho. É isso, está aqui”. Ele deu, tenho esses DVDs. Ele falou: “Está aqui. É isso aqui que vocês têm que tocar”. Eu falei: “Puxa, é isso”. Então, a gente começou a fazer programa numa rádio lá na casa do chapéu, longe pra caramba, que foi onde a gente lançou. Racionais a gente fechou, foi para lá. Eu estava trabalhando nos restaurantes ainda, a gente levou os caras em 2011, 2010, fez cinco países de show e aí a gente teve um destaque nessa outra rádio - era uma rádio menorzinha - a gente foi parar na outra, maior, que era em Lisboa. A princípio, era meia hora de sábado o programa, depois ficou uma hora de sábado, depois eram duas horas de sábado. Depois começou a ser duas horas de sábado e domingo. E ao vivo, não era mais gravado. A autoescola onde eu tirei minha carta era um dos patrocínios; o café em que a outra trampava era um dos patrocínios. Depois a gente começou a fazer meio que umas ligações malucas. A gente fez um primeiro carnaval da Tropical, que era da rádio. Pegamos uma casa e fizemos, organizamos uma festa à fantasia. Que a gente já tinha essa ‘expertise’ daqui, não é? Aí, deram oportunidade para a gente fazer: a gente fez uma festa que era para juntar todo mundo, Gueto em Festa que chamava o programa. A gente fez a festa do Gueto em Festa: era samba, funk, rap, dentro de uma Associação, no centro de Lisboa. No centro, mesmo. Juntamos com os caras, fizemos, para os caras faziam girar. Aí fiz a festa do aniversário com os caras, da minha filha. Minha filha fez dois anos, a festa dela tinha, sei lá, 200 pessoas no negócio. Aí, a gente começou a articular dessa maneira as coisas e os restaurantes, mais a música, a rádio e ficamos dois anos, três anos. 2009 começamos o programa, 2010, 2011, 2012. É. Quase três anos ali fazendo o programa, todos os sábados e todos os domingos. Desse restaurante eu fui... Recebi uma proposta para trabalhar no _______ [2:01:02] Inglês, que era aquele que eu fui lá comprar um negócio _____ [2:01:07], não sei o quê, e tinha uns restaurantes em cima, um restaurante espanhol, que era essa mesma agência que me colocou dentro do hospital, me chamou para fazer uma entrevista com o perfil desses caras. E aí, os caras vinham da Espanha para Portugal para fazer esse treinamento de um chef de cozinha que ficasse nesse restaurante. Janeiro de 2011. Fui, passei na entrevista, saí dos outros lugares em que eu estava fazendo tipo extra, fiquei, aí o Ramón que veio, que era o Cinco Rotas Gourmet, que é uma marca de presunto do Pata Negra, os dois são os melhores. Aí fui descobrir história de outra cozinha, de outras coisas, que a alimentação do Porto é importante e vai refletir no seu paladar depois... Várias paradas. Aí fui para a Espanha conhecer os bagulhos que eram de lá, estudar outro tipo de comida e tal. E fui treinado para estar dentro desse restaurante. Então, foi muito louco. Voltei a falar espanhol, o que já tinha feito dentro da cadeia para caramba. Aí, foi muito louco estar em um restaurante espanhol, dentro de Portugal. Você pegar aquela mistura toda, ser um cozinheiro brasileiro, mais revista, mais destaque, mais outras coisas entre os restaurantes também. Foi muito legal a experiência. E aí acabou que não ia ficar como chef de cozinha desse restaurante, saiu um outro português que trabalhava comigo, aí eu fiquei de férias, fui para Madri, voltei, fui de carro com a minha mãe, minha mãe voltou também, depois, de férias, peguei minha mãe, minha filha, a mãe dela, fui para Madri de carro, fiquei lá uns dias, comi no restaurante que era da base do Cinco Rotas, demos um rolé lá, voltei para Lisboa e acabei não querendo estar no restaurante de Lisboa. E recebi uma proposta de navio, para ir trampar num navio. E aí, de novo, eu estava em casa com a Daiana, não era uma relação bacana. E aí, agora, eu tinha uma filha, mas eu decidi não estar com ela, falei que achava que tinha, sei lá, que dar um tempo, precisava sair dali. E a gente precisava estar meio que separado. Recebi a proposta do navio, fiz a entrevista e falei: “Eu vou para esse bagulho aí”. Saí desse trampo, peguei um auxílio-desemprego lá de 18 meses, era até 24 que você pegava - você se apresenta ou faz um curso - e então, ali tinha o auxílio-desemprego. E aí recebi essa proposta. Eu falei para ela: “Você fica aqui com o auxílio-desemprego e eu vou para esse bagulho, ficar um tempo fora aí, no navio”. Aí, para assinar um contrato de seis meses, não é? Aí fui para o navio, embarcava aqui, porque meu passaporte é brasileiro, passei na entrevista, fazia a entrevista por Skype, tal, fui, vim para cá, fiz o curso, que você tem que fazer um curso de SEW, que é segurança de navio, fiz o curso, entrei, embarquei e comecei a trabalhar dentro do navio. Como cozinheiro de navio, que o navio é uma cadeia na água, que tem um monte de nacionalidade, um monte de outras coisas. E aí ia desenrolando, assim. O navio é um mundo à parte. É terra sem lei. Você tem o filipino, o indonésio, o grego, o italiano, o chinês, brasileiro, tudo. É um mundo inteiro dentro de um lugar só. Imagina 900 tripulantes, cada um de uma nacionalidade diferente, mais 4 mil passageiros dentro de um lugar, não é? Então, foi uma experiência diferente. Nesse meio tempo, o que aconteceu? A Daiana, que é a mãe da minha filha... Antes de ir, eu deixei autorização de viagem - tinha um carro que estava no nome dela, o outro eu dei para o irmão dela, o outro era meu, tinha várias coisas lá. O que ela fez? Ela pegou, nesse meio tempo em que eu estava no navio, vendeu todas as coisas que a gente tinha. Tudo: carro, as coisas da casa, tudo, pegou o dinheiro e voltou para o Brasil, entendeu? Sem eu saber. Eu não sabia que ela tinha voltado para o Brasil. Eu fui saber que ela estava no Brasil - e eu falava com a minha filha por Skype até, no navio – quando eu desembarquei do navio. Desembarquei mesmo, porque eu estava no navio, parava em Santos, a gente fazia a costa do Brasil. E aí minha mãe ia visitar no navio e tal, bababá, não sei o quê. Eu desci do navio... Eu tenho três cirurgias na coluna, com dor até, que eu falei para a minha mãe: “Eu vou voltar. Vou descer e vou voltar, não vou esperar”. Porque eu ia esperar o navio voltar para a Europa, para descer em Portugal. Desci em Santos. Eu descobri, quando cheguei na minha mãe, que ela estava no Brasil - não sabia que ela estava - com a minha filha. Ela decidiu vir e ficou na casa da mãe dela, em Vitória. E aí ela vendeu tudo e voltou para o Brasil, entendeu? Eu não sabia que ela tinha feito isso. E aí eu já tinha comprado minha passagem para voltar para Lisboa, não é? Eu peguei, falei um montão no telefone, bababá, porque eu não ia lá em Vitória, eu só ia ficar uns dias em São Paulo e voltava para Portugal. Aí ficaram ela e a minha filha em Vitória e eu voltei para Portugal. Não tinha casa mais, fiquei na casa de um outro parceiro, tinha dois sacos pretos com as minhas roupas e os meus documentos. Estava na casa de um outro amigo, fiquei na casa desse parceiro, e aí eu tinha conhecido uma menina no navio, que ela tinha ido para Londres, até, no curso das Olímpiadas de 2012. Aí, fui para Londres, fiquei um tempo lá, mas aí voltei para Portugal porque saiu o negócio da minha cirurgia, o tratamento da cirurgia na coluna. Era um vale cirurgia, para eu escolher o hospital para ser operado, mas eu estava, nessa altura, sozinho. Meus amigos estavam trabalhando fora, eu estava na casa de um outro parceiro que era meu ajudante de cozinha no outro restaurante, na casa da mãe dele, num quarto. Cheguei ainda a visitar o navio, lá em Lisboa, em que eu trabalhava. Aí falei para a minha mãe da cirurgia, ela falou: “Como você faz uma cirurgia na coluna morando, estando sozinho? Ou você volta ou eu vou. Não dá para fazer a cirurgia”. E aí eu falei: “Então eu vou voltar”. Ainda estava com dois meses de seguro-desemprego lá para receber, fiquei mais esses dois meses e recebi. Aí tinha a passagem de volta para São Paulo e aí voltei. Minha mãe fez um contato no Hospital das Clínicas, para eu ser operado lá. Aí, trouxe todos os documentos e os meus equipamentos que tinha, que a gente usava para tocar também e trouxe... Aí voltei para o Brasil, em 2012. Não foi por uma escolha, não escolhi, não queria voltar. Aí volto e começa tudo de novo. Acaba meio que aquele ciclo da Europa. Então, em abril de 2012, acaba o ciclo europeu. Eu volto para cá. Foi isso.
P/1 – Então, esse marco de fim de Europa ficou uma coisa pendente. Qual o nome da sua filha?
R – Isabelly.
P/1 – Por que Isabelly?
R – Então... Uma vez eu estava com a mãe dela assistindo TV e aí... Agora chegou aqui a moda no Brasil, na real, que era muito moda de reality show de cozinha. Começou lá na Inglaterra, depois Portugal e não sei o quê. E era muito essa coisa de assistir séries. E tinha uma que chamava Top Model. E era... Até esqueci o nome da mina modelo que fazia e tinha outras meninas que eram modelos, essa moda do reality show e tinha uma das modelos que se chamava Isabelly, que foi uma que ganhou lá e acabou. A gente concordou de que seria Isabelly e o nome dela é Isabelly Nataly Leite. Só tem l (ele). 2 ls (eles) em Isabelly, Nataly é da mãe dela e Leite é meu. Ficou só l (ele). Aí ficou Isabelly Nataly Leite. É isso. Então, ela veio com esse nome porque a gente estava assistindo a um reality e a gente concordou. Legal. Aí ficou. Ela nasceu lá, estudou lá até um ano e pouco, dois, mais ou menos, quase três, até os três anos ela estudou e aí, agora, que ela está morando lá agora, com a mãe dela, a gente voltou na escola em que ela estudou e foi muito legal. Ela queria saber. Ela está com nove, vai fazer dez anos e isso foi muito bom, poder ir, ter a oportunidade de você rever sua história é importante, muito importante. Na cabeça dela, imagina: uma criança que nasceu na Europa, estudou, vem para o Brasil, conhece Vitória, no Espírito Santo, depois mora com o pai, em São Paulo e depois, agora, volta para a Europa. Ela estudou em três cidades diferentes, em dois países diferentes, então ela tem a cabeça muito diferente de uma criança que está ali, com os pais e tal. Ela tem uma outra visão e um outro impulso em sentir as coisas.
P/1 – E o nascimento do Edson pai, como se deu a descoberta da paternidade?
R – Na verdade, meio que teve um treinamento para isso. Tinha até falado, quando a Amanda, que é minha filha de coração, que não é biológica, que foi a primeira parte que a gente falou lá atrás, até. Aos 17 anos eu conheci a mãe dela. Era meio que um treinamento. Depois meu irmão, que tem 13, 14 anos de diferença. Então, quando nasceu minha filha lá, eu lembro de receber a notícia, contar para a minha mãe que era uma menina e tal, chorava. Aí, quando nasceu eu estava junto, não é? Eu filmei e tal. Ia à noite. Eu morava muito perto do hospital, então ia andando com ela, voltava. Até a médica falou que era bom e não sei o quê, ir andando. Aí, quando nasceu, assim, que eu estava filmando, eu falei: “’Meu’, é outra coisa. Não posso mais fazer merda”. É isso. Não posso mais bater cabeça. As coisas precisam ser certas. Então, acho que aquele momento serviu, e casa com a cozinha, de que as coisas tinham que ser diferentes. Não dava mais para errar, entendeu? Se aventurar nas ideias. Mas foi importante. As minhas filhas, para mim, são muito importantes. Então, foi um processo muito bom de se viver lá, sabe? É um lugar onde você consegue criar sua filha com calma. Depois, quando veio para cá, para o Brasil, foi meio turbulento. Então, ela passou dos três, quatro, cinco, seis, sete... quatro, cinco anos aqui, mais ou menos, o ano passado comigo, um ano inteiro. Então, aqui você está sempre preocupado com o que você vai poder oferecer para o seu filho, o que vão oferecer. Agora ela estar lá de volta, para mim fica mais tranquilo, entendeu? É muito louco isso. Eu acho que esse é o melhor momento para uma criança estar fora do país, entendeu? Muito louco isso.
P/1 –Se você puder desenvolver por que...
R – Então, na real, acho que a gente vive um momento no país agora, com uma criança... Eu tenho uma filha de três - vai fazer três agora - uma que está com 18 e a outra que está com dez. Eu lembro de trocar ideia quando a Isabelly tinha três para quatro, morava na Europa, e a Amanda, que estava aqui, tinha dez. E a discrepância de colocar uma menina na escola pública aqui e outra na escola pública lá era muito grande. Da atenção que se tem e do cuidado que se tem, da participação que se tem, da preocupação que se tem, porque as crianças que estavam nessa fase da Isabelly, lá na Europa, de três, quatro anos, é o que segura uma crise dentro de um país 15 anos depois. A criança que estava dentro da escola pública, lá atrás, aqui no Brasil, jamais vai segurar uma crise. A gente tem que segurar essa criança para que não entre na crise. Não é preparada para segurar uma crise de um país inteiro. E aí, nesse momento que a gente vive no país, tendo essa filha menor aqui, que estuda numa escola bacana, inclusive, com três anos, o momento que a gente vive aqui, neste país, é preciso trazê-la para nossa realidade de casa, de família, que tem outras coisas que acontecem, que sua irmã está fora e você consegue ir para outros lugares, você tem escolha. É preciso mostrar para essa criança que ela pode escolher ser quem ela quiser, fazer o que ela quiser. Porque a gente vive em um momento que parece que não pode escolher mais, entendeu? Então, estão deixando a gente à mercê das coisas. Toma aqui, é isso aqui que você vai estudar. Toma aqui, é com isso aqui que você vai trabalhar. Toma aqui, é isso aqui que você vai fazer, entendeu? Então, a gente tem que trazer para essas crianças, neste momento, que elas podem escolher. Porque o não escolher é muito, muito ruim. Então, minha filha que tem nove mora na Europa, sabe que ela pode escolher vir me ver, que eu posso escolher ir vê-la. Que não é o dinheiro que vai nortear isso. Se você tiver uma escolha, você vai fazer. Não são outras coisas que vão nortear ou alguém que vai dizer que você não pode sair. Se quiser estudar música, você vai estudar música porque escolheu estudar música. Em algum momento da sua vida você pode não querer escolher música, entendeu? Pode ser capoeira, mas você escolheu. E aí, mostrar para essa, que é a menor, que é isso e ela é desse jeito, mesmo: ela tem três anos e se ela escolher aquilo, é aquilo e acabou. Mesmo que ela coloque o chinelo errado, ela escolheu colocar errado e aí você vai explicar para ela porque ela tem que trocar. Não quer dizer que ela vá trocar, entendeu? Então, isso, respeitar escolhas, é muito importante. Então, neste momento, o nosso país não está respeitando escolhas, entendeu? Isso é difícil.
P/1 – Obrigada, Edson, por ter trazido este momento! Nossa memória é assim mesmo: às vezes, a gente precisa fazer uma reflexão sobre o agora, depois a gente volta e eu vou voltar, quando você está em São Paulo, nessa fase que sua filha está em Vitória e você decide que o ciclo Europa foi encerrado. E aí, qual o primeiro passo que você toma em São Paulo?
R – Então, na real, fiquei perdido. Não tinha nem RG mais. Não sabia como era viver em São Paulo, no Brasil, novamente. Eu saí da Europa com dores, estava com uma dor na lombar, juntou a dor da coluna, mais a cervical, que era a cirurgia na coluna que teria que ser feita, e saí de lá com dores. Então, na primeira semana já fui para o hospital aqui. Eu fui parar no Hospital M’Boi Mirim, que é um hospital público, não tinha convênio, não tinha mais nada, não é? Documento, nada, então nem sabia. Aí fui, tomei um remédio e tal e eu estava com um cisto pilonidal, que é um cisto meio que de guerra, que você passa muito tempo sentado, que é um pelo que inflama, cresce para dentro e você, depois, é muita treta. A dor é muito forte. Os caras falam que é doença de guerra, porque você passa muito tempo em uma posição, agachado. Aí, não sabia o que era a dor, o que era isso, qual era a diferença, passei meio que cuidando disso, porque o caminho para ir para o Hospital das Clínicas, para fazer uma cirurgia, que era onde minha mãe estava tendo um contato, o caminho para eu entrar no Hospital das Clínicas, para fazer a cirurgia na coluna, é: UBS faz, hospital aprova, para depois ir para o Hospital das Clínicas. Então, minha mãe meio que encurtou esse caminho, fez o laudo da UBS com a médica e depois já levou direto para o Hospital das Clínicas, para uma assistente social, que colocou o médico, uma equipe ali. Meio que encurtou esse caminho. E esse cisto, eu fiz uma cirurgia. Quando eu voltei para o Brasil, em 2012, era uma cirurgia com segunda intenção, então, eraq uma cirurgia que fica aberta. Você corta, tira o cisto e ela fica aberta, não fecha. E aí eu fiquei meio que em função daquilo, sem saber exatamente o que eu ia fazer. Não sabia. Sabia que eu tinha uma ‘expertise’ ali, sabia cozinhar, sabia alguns bagulhos, tinha estado na Europa, em si, mas não sabia o que eu ia fazer. Aí eu lembro de levar meu irmão para um curso que estava tendo perto da casa da minha mãe, ele fazia um curso lá, aí fui lá e um cara falou assim: “Tem umas ______ [2:20:28] para faculdade, não sei o quê, uma parada agora do governo que chama FIES e bababá, bababá, não sei o que lá”. Eu falei: “Mano, que é esse bagulho?” Aí explicou e tal, que era um fundo estudantil e eu falei: “O que eu preciso fazer?” “Você precisa fazer uma redação e aí você pode pagar com trabalho voluntário”. E foi exatamente essa explicação: “Se não for pago, é um outro financiamento também”. Mas era tudo muito novo. Ninguém sabia o que era um FIES. Falei: “Tá, vou fazer essa prova aí”. Fiz a redação, fiz o bagulho: “Que curso que você queria?” Falei: “Mano, vou fazer Hotelaria, que acho que é o que eu tenho que fazer”. Fiz a prova, fui encaminhado para a Uniesp, no Centro, cheguei lá, passou a prova, para fazer a matrícula. Não estava trabalhando, mas aí não tinha vaga em Hotelaria, não tinha vaga em outros bagulhos, aí tinha vaga lá em Serviço Social. Falei:"Vou fazer esse bagulho aí, mano”. Não sabia nem o que era. No entanto, no primeiro dia de aula, fui parar em Rede. Fiquei dez dias tendo aula de Rede, sem saber o que era o bagulho. Era Serviço Social. Beleza. Fiz a matrícula, a cirurgia já tinha cicatrizado, aí comecei a procurar emprego. Meu primeiro trabalho, em 2012, quando eu volto, é num restaurante italiano lá na Leopoldina. Eu ia estudar de manhã, ia fazer um trabalho voluntário para pagar a faculdade. Não tinha grana, não tinha mais nada. Estava na casa da minha mãe, de volta, hospedado. Aí eu peguei, fui para esse restaurante, fiquei um tempo lá até... Eu fui operado em abril, maio, junho, fiquei operado em junho, fiz os exames no Hospital das Clínicas, para ver a coluna, fiz ressonância, fui fazendo os exames para saber se tinha que operar mesmo e tal. Fui sendo acompanhado e trabalhando nesse restaurante e estudando na faculdade. A princípio, era de manhã. Depois mudei o horário para a noite, porque eu estava no restaurante à tarde. Então, trabalhava na Leopoldina e ia direto para a faculdade, no primeiro semestre. Daí, descobri que era aquilo que eu queria fazer. Estudar Serviço Social. Falei: “Puxa, esse bagulho é f..., mano. Fala de direitos, de deveres, do que as pessoas precisam reivindicar”. Eu falei: “Não, é esse bagulho aí mesmo que eu quero fazer. É isso. Eu quero estudar isso aqui”. E aí, entender como a comida poderia fazer essa amarração social, sabe? Até aí, então, eu estava estudando, tinha as matérias na faculdade e estava trabalhando nesse restaurante italiano. E aí vai e cai naquele bagulho que o dono não pagava direito, não recebia lá, bababá, aí recebi uma proposta de uma cooperativa, procurando emprego, para abrir o bar Brahma, da Vila Olímpia. O bar Street Brahma, da Vila Olímpia. Para montar a cozinha e tal. Falei: “Vou lá”. Saí do outro, Olímpia era mais perto e fui procurando algumas coisas de gastronomia, fiz um curso de azeite na Anhembi Morumbi, que era ali perto, aí fui voltando para esse lugar de comida. E estudando. E aí fiz esse bar lá na Vila Olímpia, montei uma equipe, montei a cozinha do jeito que eu achava que tinha que ser, fui articulando e aí fiquei lá no final do ano, fiquei lá no final do ano de 2012, o início de 2013 e aí conheci um outro pessoal nesse meio tempo, que minha mãe conhecia da política ali, nesse meio, era ano de eleição, troca de prefeitura, vereadores, não sei o quê, 2012 para 2013, e um desses coordenadores de campanha de um dos vereadores, que é Police Neto, que hoje é meu amigo pessoal, tem um instituto que tinha aula de gastronomia. E aí, conversando comigo, ele falou: “Você precisa dar aula, cara”. Em 2012. Eu falei: “Por quê?” Ele falou: “Você tem que mostrar o que você fez. Para a molecada é muito importante, porque você saiu daqui e fez isso, isso e isso e tal e você precisa dar aula. A gente tem agora um curso que é assim, assim e assado”. E aí fez a proposta de dar aula em janeiro de 2013. Aí montamos, me registrou, falou: “Quando você terminar a faculdade, acho que você tem que ser Assistente Social aqui”. Começou a prospectar algumas outras coisas, montou a equipe. Só que o Hospital das Clínicas me chamou para ser operado e eu estava com esse processo de já dar aula, já estava dentro da empresa, saí do Brahma. E muito louco que, no bar Brahma, eu conheci uma mina que era caixa, hoje ela trabalha no Sesc Belenzinho, e eu fiz um trabalho para o Sesc Belenzinho, essa mina estava na coordenação, ela falou que me conhecia, não lembrava de onde e aí, agora, a gente vai fazer uma curadoria para o Sesc, de um trampo, e essa mina que estava lá junto e a gente trabalhou lá atrás. Daí falei: ‘Puxa”. Eu não lembrava de onde conhecia a mina e ela falou: “’Meu’, a gente se conhece de algum lugar”. Depois foram várias coisas que vão encaixando anos depois, não é? E aí fiz a primeira turma, aceitei a proposta, a primeira turma dos alunos tinha que ter 240 adolescentes, a gente tinha 120 num curso que a gente chamava de gastronomia. Aí eu estava agendado para ser operado em 2013, janeiro. Tinha o agendamento da primeira operação. Só que em 2012, nesse meio tempo de eu estar nesse restaurante na Leopoldina e estudar, eu escrevi um projeto que chamava Gueto em Festa, o mesmo que a gente tinha feito lá em Portugal com rap. Tinha escrito um projetinho fuleiro, na época custava, sei lá, dois mil reais, e aí entreguei na Fábrica de Cultura do São Luís e, um pouquinho antes, em 2012, eram modelos oficinas e então oficina de DJ, oficina de música, oficina de dança, oficina de produção musical, que depois terminava dentro de um teatro, com um show de rap de uma outra mina, que era ex-mulher de um amigo meu, que tinha morrido, e ela queria lançar o CD. Eu falei: “A gente vai lançar o seu CD”. Aí produzi isso e queria alguma coisa na gastronomia. Os caras falaram: “Mano, como assim você vai colocar gastronomia dentro da cultura aqui? Os caras nem reconhecem isso, a gente vai ter que fazer outra coisa, babababababá”. Falei: “Então, a gente coloca a oficina dentro desse negócio aí, mano, dentro do contexto geral do projeto”. O projeto chamava Gueto em Festa e tinha várias oficinas e, no meio delas, tinha uma oficina de gastronomia periférica. No meio. Que era para falar de aproveitamento dos alimentos e tal, bababá. E aí, o que eu fiz? Dentro desse processo, eu chamei uma amiga minha, que estudou comigo, uma outra mina que trampou comigo no navio, que era boa pra caramba para produzir, a Priscila, para fazer esse trampo. Mas o que eu fiz? As inscrições da gastronomia eram feitas previamente e confirmadas por telefone. Então, a gente foi amarrando. Eram 90 pessoas, mais 30 querendo entrar e a gente não conseguia mais. A gente amarrou isso de uma maneira diferente, criou um outro sistema de trabalho: a gente usava o telefone para confirmar essas pessoas. Aí fizemos as oficinas e tal, bababá, ok, passou. E esse ficou um projeto lá, marcado, escrito, fizemos com uma ‘merreca’ de dinheiro. E ficou muito bacana, porque foi a primeira vez que tinha 300 pessoas dentro da Fábrica de Cultura, que estava inaugurando naquele ano e teve muita gente. Foi muito legal. Então, no outro ano eu fui operado, em janeiro, da coluna, já tinha montado o esquema das aulas, estava meio que decepcionado e tal, porque ia começar a dar aula, mas aí fui operado, a primeira cirurgia, na cervical, fiquei 40 dias em casa, em 2013, depois volto já dando aula para a molecada. O que eu fazia? Montava as aulas em relação ao que a gente tinha no almoço. Então, chegavam algumas coisas, a gente fazia uma aula de corte. A gente pegava as coisas que iam para o almoço, cortava para ir para o almoço, entendeu? Aí, ia fazendo isso com essa molecada. Isso em 2013. Aí ficaram seis meses e depois teve uma treta com a Prefeitura, por causa dessa troca de Prefeitura, não sei o quê, bababá, não aportaram mais o espaço. A gente fez manifestação dentro das conferências, levei a molecada, mas não adiantou e é muito louco, porque isso foi em 2013. Hoje tem uma ex- aluna minha, desse curso, fazendo curso dentro do Sesc. Ela é ex-aluna minha, tinha 16, tem 21 hoje. Esses dias, eu fui almoçar em outro restaurante no Centro, na Casa do Porco, tinha uma ex-aluna minha lá, trampando. Mano, o bagulho é muito f... quando você faz as coisas com essa energia, para você colocar nessa molecada que tinha 16 e tem 20, 21 e vem, mesmo que o bagulho não teve continuidade e parou. E aí eu fiquei meio desorientado de sair, porque eu não tinha para onde ir, não é? A gente estava dando aula, era o que queria ter feito e, procurando emprego, eu fui parar no Clube Pinheiros. E aí, fui contratado por uma empresa e tal, o currículo, lá fiquei, dentro do Clube Pinheiros. Na altura, era sub-chef de cozinha, servindo refeições coletivas e estava na faculdade. E aí entendendo, naquela altura - 2013, final, para 2014 - o que eram as refeições coletivas do Clube de Pinheiros, sei lá, aquele monte de babá andando de branco e eu estudando Serviço Social, morando no São Luís, falei: “Caramba, que droga é essa, ‘meu’?” A conta não batia. Você começa meio que se questionar os processos. Estava estudando Mílton Santos. Estava estudando Marx, Gramsci, Paulo Freire. Estava lendo só os monstros, entendeu? Sei lá, o primeiro trabalho que eu fiz com o Mílton Santos: preconceito de origem geográfica. Que droga é essa? Quer dizer que existe preconceito? Claro. Eu chamava os meus amigos de baianos quando eu era pequeno. Então, entender o que era isso, assim. Puts, entender o que era mais valia. A gente vende nossa mão de obra para fazer um produto que a gente nem consegue comprá-lo. Então você começa a se questionar, mano. Como assim, mano, eu estou neste lugar? E aí, dentro desse restaurante que aportava, administra as cozinhas de um monte de lugar em São Paulo, inclusive do Clube Pinheiros, onde eu estava à frente dessa cozinha, junto com mais outros chefs de cozinha. Aí eu comecei a querer entender o que era aquilo. Eu venho da cozinha que era dura, rígida, europeia, que você tem que fazer e já era. Mas entender trabalhar com pessoas, sabe, diferenciar, conhecer gente, que era a Vanessa, que é uma pessoa muito bacana, e a dirigir equipes, como seria aquilo? Meu primeiro ano, 2014, completo, lá, eu participei de um concurso de receita, que era a nível Brasil, da empresa. Fiquei em quarto lugar com um polvo que eu tinha feito lá. Saiu um livro, aí conheci a dona, o pai dela, que era o dono da empresa e tal, aí fui para a final do negócio, foi feito na Unilever, dentro da cozinha dos caras, conheci o Sérgio, que era um chef de cozinha na Unilever, naquela altura, que anos depois foi chef de cozinha na Nestlé, que a gente fez um negócio juntos, fez agora, tudo meio que se encaixando. Anos depois que você vai entender o porquê daquelas pessoas. Aí fiz, fiquei dois anos e meio, quase três no Pinheiros e aí eu passei por todos os turnos do Pinheiros, eu queria entender toda a cozinha. Acho que eram quatro turnos: trabalhei de manhã, de tarde, de noite, de madrugada, em todos, para eu entender qual era o processo, o que se fazia e como fazia. Então, eu fui estudando, depois mudei para de manhã a faculdade, depois mudei para a tarde, depois mudei para a noite, para eu conseguir encaixar e entender o que era o Clube Pinheiros. No último ano lá, em 2016, eu fui para outro concurso de receita e ganhei, que era sobremesa. Ganhei com a receita que eu fiz lá em Portugal. Fazia em um restaurante, que era um cheesecake. Aí fiz meu cheesecake de maracujá, ganhei, fiz o livro de receitas, ganhei lá dentro, de novo a dona e tal, conheci, beleza. Depois eu tive um acidente de carro, em 2016, porque a minha cirurgia, em 2013, foi feita uma intervenção por trás e mesmo assim eu continuei com dores. Então, em 2014, eu já estava no Clube Pinheiros e tive que fazer uma intervenção pela frente, então eu tive que fazer uma segunda cirurgia. Então eu fiz uma segunda, pela frente. Os caras puxaram a traqueia para acertar aqui. Aí, beleza, fizeram a cirurgia, ok, volto para o Pinheiros. Aí, no final do ano de 2015, ali, eu tive um acidente de carro. Eu já estava fazendo estágio na faculdade, estava trampando e fazendo outras coisas, tive um mal súbito no carro, puf, apaguei, acordei com as pessoas me chacoalhando, ligando para o meu padrasto e tal, para ele buscar - o carro era dele - e aí cheguei em casa e falei para a minha mãe: “O guincho, acerta com quem eu bati no carro, não sei o quê. Eu estou com uma dor, acho que vou ao médico”. Achei que não era nada. Fui e fiquei internado: “Vamos fazer um exame na sua coluna, não está bacana”. Fiquei sete dias internado. Naquele momento ali eu decidi que eu não queria mais voltar para o Pinheiros, para fazer o que eu estava fazendo. Pensei pra caramba e falei: “Não quero mais”. Voltei ainda para fazer essa parada do concurso de sobremesa, fiz, e aí comecei a procurar lugares para eu dar aula. Fiquei procurando lugares e aí descobri a Fundação Julita, que é do lado da casa da minha mãe. Tinha um curso, falei: “Quero visitar aí”. Fui visitar nesse momento em que eu estava em casa, tinha sofrido o acidente. A princípio, ia ser voluntário, tal, bababá, entendi, troquei ideia com o gestor. Aí, em janeiro de 2016, me ligam: “Tem uma vaga aqui, começa em fevereiro, para trabalhar aqui no curso de Gastronomia”. No curso Gestão de Alimento, que chamava. “Opa, que legal, vou aí nessa entrevista”. Aí falei no Clube Pinheiros que eu ia na entrevista, fui, aí a Adélia, que hoje é minha sócia, que me entrevistou, que era coordenadora do projeto dos adolescentes, falou assim: “Edson, você tem uma coisa que eu acho que jamais vou ver em ninguém”. Falei: “O que é?” “Tem um chef de cozinha e um assistente social numa pessoa só. Ou a gente tem um assistente social, que é muito bom, ou vai ter um cozinheiro, um cara que entende de cozinha, muito bom. As duas coisas vai ser impossível a gente ter. Então, é isso: a gente tem as duas coisas numa pessoa só”. E eu nunca tinha parado para pensar nisso. Naquele momento, ela me fez pensar nisso.
P/1 – E para que faz sentido isso?
R – Aí você vai descobrir depois. O que você liga a Assistência Social com a gastronomia. Você vai entender que, pela comida, você entende uma família, mano. O jeito que o moleque come ou que não come, pelo que não tem, pelo que tem, pelo que fazem, pelo que falam da comida, pelo que querem comer, é isso, entendeu? E aí você vai fazendo costura: por que está comendo com colher? Por que você deseja comer um hambúrguer? Por que você não está comendo carne? Você não escolheu não comer carne para ser vegetariano. Você escolheu não comer carne, porque não tinha. Não tem dinheiro para comprar o bagulho. Você não escolheu comer de colher porque é bonito ou feio. Porque de colher parece que eu estou comendo mais. E se eu estou comendo mais, eu não como em casa. E aí você começa a fazer várias outras amarrações: que quem é só cozinheiro não vai entender e quem é só Serviço Social, Assistente Social, não vai perceber. Então, você começa a juntar as coisas e fazer umas amarrações que, normalmente, não seriam feitas pela alimentação, entendeu? E aí fui parar na Fundação Julita, a princípio com um curso que já estava pronto, então eu tinha que tocar o curso da maneira que estava lá e isso, nos primeiros seis meses, no primeiro semestre, foi muito difícil, porque eram adolescentes e eu pegando um bagulho que já estava pronto, que não era meu e pá e tal, mas rolou e ainda foi bacana. E a Adélia sempre dando vários toques e, para mim, assim... Se um desafio é dado, ele tem que ser cumprido e entregue. Nunca, para mim, crítica foi ruim. Você me critica, eu devolvo. É isso. Então, vai ser ruim para quem está criticando, entendeu? Não vai ser ruim para mim porque estou sendo criticado. Vai ser ruim para quem está criticando porque eu vou devolver da maneira que você falou que veio a crítica: “Isso aqui acho que está muito salgado”. Tá bom, então vou te dar aqui. Agora, vai ser do jeito que você falou que achava que tinha que ser. Então, foi isso, essa construção. Aí foram 60 adolescentes no primeiro semestre, no segundo semestre mais 60. Começa já a criar uma metodologia diferente, trabalhar com eles de outra maneira. No terceiro semestre mais 60 e aquilo já começa a rodar do meu jeito, ter a minha cara, eu colocar a cozinha com a minha cara, buscar as coisas com a minha cara, trazer, e aí a gente criou uma metodologia muito completa e diferente para analisar todo aquele contexto social, não é? De como é, de fazer visita junto com o educador, em casa, de você ir ver essa molecada, levá-los para o mercado, para a feira, para não sei o quê, não sei o quê, não sei o quê, e aí entender o que estava dentro do contexto daquele território. E aí, paralelo a isso, quando eu estava no Clube Pinheiros, eu começava a descobrir as oficinas que já tinham feito lá na Fábrica de Cultura. Dentro da quebrada eu conheci o Buiu, que era um projeto viela, que era futebol e leituras, os moleques jogavam futebol e depois não tinham o que comer e eu já estava no Pinheiros, não tinha ido para a Fundação ainda. Eu começo a cozinhar para esses moleques, de vez em quando: no final de semana, aniversário do projeto e aí chegamos a fazer comida para 200 crianças em quatro casas diferentes, levar fogão dentro do ônibus, emprestado. A gente parava o ônibus, colocava um fogão e levava para fazer. Meu primeiro fogão, mesmo, assim, de dar, foi a dona Hilda quem me deu, que do Cieja Campo Limpo, falou: “Vocês têm que parar de fazer isso, de carregar fogão dentro do ônibus”. Ela me deu um fogão e aí, junto com o Murilo, a gente começou a cozinhar para essa molecada. Então, tinha um formato sendo desenhado, de oficina ali, que a gente não entendia o que era e tal e aí, junto com TV DOC Capão, com outro parceiro, o André, a gente começa a filmar essas ações de cozinha. Então, estava estudando, estando no Clube Pinheiros, fazendo essas ações de cozinha, para essa molecada não ficar com fome e tal, e a gente começa a gravar. E eu, depois que saí do Pinheiros, na Fundação Julita, continuo fazendo isso e levando essa molecada que era aluna da Fundação Julita, às vezes, comigo, entendeu? Para fazer essas outras ações. E essas ações foram tomando proporções maiores, porque daí era a molecada que estava junto, fazia oficina, vinha... Aí começou a vir imprensa, a fazer entrevista falando das oficinas, o que a gente estava fazendo. Saiu entrevista no jornal, na televisão, no rádio, não sei o quê, até que em agosto de 2017 a gente vai gravar um programa sobre essas oficinas, para a Fátima Bernardes. Agosto de 2017. Para falar das oficinas num programa. E nisso, a Adélia era coordenadora lá ainda, era da Fundação Julita, comigo - eu era educador lá dentro - a gente conversando, ela estava lá na Fundação e, num rolé da gente, a gente queria comer na quebrada e não tinha onde comer. A gente falou: “Puxa, mano, tem que trocar ideia como que a gente faz, como a gente vai saber dos lugares daqui. Vamos criar um aplicativo que mapeie essa parte aí, então”. A gente não sabia de nada, não entendia de tecnologia, de nada. No princípio, tinha um aluno que fez, na Fundação Julita, uma oficina sobre aplicativo. Então a gente chamou, colocou dentro da fábrica de aplicativos, e dez dias depois era capa da Folha de São Paulo: “Gastronomia Periférica cria o iFood da periferia”. Na capa de um jornal de domingo. Dez dias depois que a gente tinha tido a ideia. Aí a gente lançou o aplicativo, o iFood mandou um representante para lá, dentro da quebrada, para entender. E a gente estava com um espaço dentro do bairro, que estava gravando dentro das quebradas, em alguns espaços de referência, para a gente falar da gastronomia: “O que você têm aí, nesse lugar, para a gente cozinhar?” “Tenho isso, isso e isso” “Então a gente vai fazer um prato. O que você tem aqui? A gente vai fazer”. Gravando dentro dessas referências, das ONGs e tal. Então, era um aplicativo nascendo e a gente ainda gravando vídeos. Eu tinha feito isso com a Adélia, lá na Fundação Julita, programa de TV e tal. E essa ONG, que é a Orpas, dentro do território. Eu, conversando com o Daniel, falei: “Mano, as oficinas de gastronomia têm que ser aqui, vamos fazer algo aqui”. Porque tinha um espaço que era um bar e outro espaço que era da ONG. Esse bar meio que sustentava a ONG. Comprava umas coisinhas para lá e tal. Aí, fazendo oficinas para as crianças na ONG também. No bar. Aí, uma vez, a dona desse restaurante, aquela mesma do Clube Pinheiros, mandou uma mensagem no Instagram, que viu a matéria, e falou: “O que você precisa, Edson? A gente precisa conversar”. Eu falei: “Tá bom, vem aqui”. Ela foi lá na laje, na favela da Chácara Santana, subiu e falou: “O que você quer?” Eu tinha conversado com o Daniel, que é o gestor lá da Orpas, e eu falei: “Mano, a gente precisa fazer um bagulho ‘da hora’ aqui”. Ele falou: “O que você faz já é maior de tudo que eu já vi. Tem um prospecto muito grande, dá para fazer outras coisas maiores”. Falei: “Mano, vamos fazer uma escola de gastronomia na quebrada, então. É isso”. “Então, vamos”. Aí, quando ela chegou lá com o X6 BMW, lá, subiu, tirou o sapato, subiu na laje e perguntou: “O que você quer fazer?” Eu falei: “Quero fazer uma escola de gastronomia”. Ela falou: “Onde?” Eu falei: “Aqui, neste espaço” “Como é que funciona?” “O Miguel é dono do espaço, aí a ONG tem isso e tal”. Ela falou: “Tá bom. Vamos fazer”. Eu falei: “Vamos. Mas qual é a contrapartida?” Ela falou: “A contrapartida é você dar formação para as pessoas, porque eu tenho um número muito grande de funcionários e, às vezes, a gente acaba gastando 200 mil reais numa formação de um ano para as pessoas e elas vão embora. É isso”. Eu falei: “O que precisa?” Ela falou: “Nada. Eu vou falar com a arquiteta aqui, o engenheiro, e a gente começa a fazer a obra”. Isso em outubro de 2017. Falou: “Tá bom. Quanto que é a obra? Vamos ver. A arquiteta vem aí e a gente faz”. Falei: “Tá bom, a gente faz”. Ela mandou a arquiteta, a arquiteta viu, provisionou o espaço, colocou lá, foi 45 mil reais para fazer, mais o engenheiro, que era da Engenharia lá, para fazer o espaço. Arrumou lá os pedreiros, a gente começou a reformar o espaço para ser uma escola de gastronomia. Isso em outubro. A obra era para durar dois meses, durou seis, quase. A gente iniciou o ano passado com uma escola de gastronomia em que não existia cozinha. A gente fez uma escola de gastronomia que não tinha cozinha. Porque em 2016 eu estava com a Adélia, virou minha amiga, que era coordenadora da Fundação Julita, minha coordenadora lá, e as coisas acontecendo muito rápido. Imagina: você aparece na televisão em agosto, daqui a pouco você está outra coisa acontecendo, você vindo, oficina, bababá, tal, precisa sistematizar aquilo e entender: aquela era a potência daquele lugar, não é? O que a gente tinha. Aí eu fui mandado embora da Fundação Julita, em dezembro de 2017, peguei minhas férias em janeiro de 2018, ainda tinha um dinheiro, um fôlego ali para eu aguentar e sistematizar o processo. A Adélia também saiu da Fundação e a gente tinha, então, uma escola de gastronomia sendo feita e um aplicativo de gastronomia. E aí, a gente começa a desenhar uma metodologia para uma escola de gastronomia. Aí fizemos as inscrições para a escola, tivemos os alunos, criamos uma metodologia de aula, de como ia ser, fui convidando pessoas, chefs de cozinha, outras pessoas que eu conhecia, para vir, para fazer dentro do processo, até nossa cozinha ficar pronta para receber. Aí a cozinha ficou pronta, a gente abriu a escola de gastronomia e um restaurante. Tudo que era comprado dentro desse restaurante ia para a ONG, dentro da Orpas, para as crianças da Orpas. Então, todos os nossos alunos que estavam lá não pagavam - não pagam até hoje - para estar dentro da escola de gastronomia e a contrapartida é cozinhar para essas crianças à tarde e participar dos eventos para a gente conseguir arrecadar dinheiro para que essa escola funcione. Então, o maior aporte financeiro veio dessa empresa que era dona do restaurante da empresa em que eu trabalhava quando era no Pinheiros e, mensalmente, ela tinha uma cota que ela dava também para a gente manter os educadores que estavam nessa escola. Então, foi assim que nasceu um aplicativo de gastronomia mapeando as partes gastronômicas da periferia e uma escola de gastronomia dentro da periferia. É isso. Desse projeto, que era uma oficina, nasce uma escola de gastronomia dentro da quebrada. E aí, ano passado, várias coisas aconteceram: fiz uma parada com a Nespresso, um aporte financeiro veio, a gente conseguiu comprar equipamentos que são caros para caramba; depois fizemos uma parceria com a Suvinil, a Suvinil pintou a escola toda, mais um aporte financeiro onde banca um livro sobre gastronomia periférica; aí, fiz um outro bagulho com a Nestlé, que o chef de cozinha que tinha me julgado lá atrás, na Unilever, que era o cara que estava dentro da Nestlé, me chamou, a gente começou a receber alguns produtos da Nestlé para fazer para as crianças sobremesas e tal. Aí, a gente começou a fazer esse movimento meio que orgânico, não tinha uma diretriz assim.
P/1 – De que forma a vizinhança ou a comunidade no entorno começou a enxergar a escola? Como a escola era vista diante _____ [2:48:20] da comunidade?
R – Então...A importância nossa, o nosso objetivo, sempre foi juntar a quebrada, porque a gente fala: “Quem tem dinheiro reconhece esse processo muito fácil; quem estudou na FGV conhece o processo muito fácil. De você olhar de fora e falar: ‘Puxa, esse cara está fazendo um bagulho f….. ali, mano’”. É muito fácil. Quem está no território é difícil entender o que está fazendo, porque não se pertence àquilo. Acha que não. Então, você começa a fazer ações para que aquelas pessoas se pertençam àquilo. Trazer os pais das crianças, trazer as crianças para visitar, fazer feijoada, fazer um evento que chamava Pague Quanto Puder, uma vez por mês: o cara vem comer uma comida diferente e paga quanto pode. Começa a envolver a quebrada desse jeito. Hoje, a gente tem uma feira às terças e quintas, em que a gente pega os alimentos que seriam descartados nos supermercados e faz uma feira de graça para as famílias. Então, tem que começar a envolvê-las dessa maneira. Para pertencer àquilo, porque você não está acostumada a ter um restaurante bacana, uma escola legal, uns bagulhos bacanas e acha que não é para você. Então, você tem que arrumar estratégias para envolver aquela quebrada e as próprias pessoas que estão ali, entendeu? E é um processo de vai e volta muito difícil, não é fácil, entendeu? Porque os caras na FGV vão estudar lá e falar: “Não, 70% do público do restaurante é no entorno” Não, não é, mano. 70% do nosso público lá, é de fora. O entorno não entende. Nossa estatística é diferente, entendeu? É muito diferente. Porque é isso: você precisa envolver essas pessoas para juntar pessoas no aplicativo. Tem o senhor Osvaldo, que até hoje é o cara mais desconfiado, que é o cara que vende tapioca na moto. Eu lembro de colocá-lo no aplicativo: “Mas quanto eu tenho que pagar?” Eu falei: “Não, o senhor não tem que pagar nada, senhor Osvaldo. Vou colocar aqui”. “Não, esse negócio de não pagar nada não existe. Não tem, não. Todo mundo quer alguma coisa, esses caras que estão aí no governo querem alguma coisa, uma hora alguém vai cobrar alguma coisa”. Falei: “O senhor não tem que pagar nada”. A gente tem até que convencer as pessoas de que a parada é boa e você não tem que pagar. E aqui que os caras estão num bairro, que estão esclarecidos, a primeira coisa que o cara faz é fazer a carteirinha do Sesc e ir lá, mano. Nem é comerciário, mas “eu vou nadar de graça, entendeu?” “Eu vou buscar uma bolsa, eu vou andar de bicicleta compartilhada”. Porque é isso. Mas para a gente entender o quanto o bagulho é difícil, você quebrar essa barreira é difícil. E aí nasce uma escola de gastronomia, um livro, um espaço, uma metodologia, um serviço de catering, que é o que a gente cria dentro, a gente ganha dois editais de ___________ [2:51:08], com esses processos e começa a estudar sobre negócios. Até então eu não reconhecia isso como negócio. E é isso.
P/1 – Falando nessa barreira que você comentou das pessoas se sentirem parte daquilo, você sente que essa barreira já foi quebrada? E, se sim, qual foi o momento em que você falou: “Nossa, foi dado”?
R – Na verdade, ela é quebrada todos os dias, porque o pobre não é inimigo do rico, o preto não é inimigo do branco, um bairro também não é inimigo do outro. Eu costumo dizer agora que a gente precisa estar junto. As duas coisas. Você precisa entender o que o rico tem, o que o pobre tem, porque daí você cria uma potência. Então, para essas pessoas quebrarem essa barreira, nada melhor do que a comida. Porque nenhum desses dois lados deixam de comer. Não vai ser o dinheiro que vai quebrar isso, não vai ser o carro, não vai ser a casa, não vai ser o ‘eu tenho mais, eu tenho menos’, ou a roupa. É a comida que vai quebrar isso. Colocar essas pessoas, simplesmente, para comerem juntas, já vai ser importante. Que elas começam a trocar, entendeu? Então, a gente tem uma missão muito forte, que não é criar muros, é criar pontes. Mesmo. Literalmente. Hoje, falar de gastronomia periférica é falar em qualquer lugar. Se a gente vai cozinhar em Pinheiros, _____ [2:52:24] vão cozinhar no São Luís ou no Capão Redondo. Então, Gastronomia Periférica pode ser dito em qualquer lugar. Às vezes, eu não posso dizer que moro no Capão. Mas eu posso dizer que faço gastronomia periférica no Capão. Então, a barreira é quebrada todo dia. Porque tem a outra coisa: o pobre, o preto, o periférico, mesmo quando ele consegue algo muito louco, muito importante, ele se auto sabota nos bagulhos. Você acha que você não tem que estar lá, entendeu? É isso, a síndrome do impostor. Você acha que não é para você. Você vai sentar num restaurante bacana, que custa cinco paus: “O que eu estou fazendo aqui?” Você acha que aquilo não é para você. E isso a gente precisa quebrar. Quem vai fazer isso é a comida. Eu não posso fazer algo que eu estou cozinhando e nunca nem comi o bagulho. Nunca nem sentei na mesa para saber o que é. Não posso. Porque senão é mais do mesmo, não é? Não posso fazer só para mim. Tem um monte de gente atrás. Não faz sentido.
P/1 – Eu posso chamar tudo isso de transformação? Só para ver se o jeito de fazer a próxima pergunta pode fazer sentido.
R – Eu acho que sim. Eu acho que é transformar um modo de pensar, um modo de viver, de enxergar as coisas. Acho que sim, acho que é uma transformação isso.
P/1 – No dia a dia, em contato com esses adolescentes que vão para a aula, você já percebeu algum tipo de transformação ali acontecendo?
R – Acontece quando você já coloca os moleques para ir comer num restaurante diferente ou para cozinhar, sei lá, ou fazer um evento na FGV, um evento internacional dentro desse negócio, recebe pessoas e você entende o quanto ele se valoriza, sabe? Ele é importante. Ou um comércio que se vê na TV: “Caramba, como é que eu ia aparecer na televisão? Aquilo que eu faço é bom”. Porque a gente acha que nosso bagulho é ruim. A nossa autoestima está ferida, entendeu? Todo mundo achava que nossos baratos eram ruins. Nós mesmos achamos. A gente sai da quebrada para comer no MacDonalds. E aí eu vou dar dinheiro para quem já tem dinheiro? A transformação passa quando as pessoas começam a enxergar isso. Falar: “Nossa, quanta potência eu tenho aqui! Eu não preciso sair daqui. Já que querem que eu fique, vamos ficar de uma maneira que a gente se auto sustente”. Então, isso é importante. Isso é muito importante, a gente se valorizar no processo.
P/1 – Quando você vê isso acontecendo, o que passa dentro de você? Qual o sentimento, a sensação que fica?
R – Eu acho que muitas coisas eu planejo depois que faço. Porque só vou fazendo e acho que tem que ser daquele jeito, eu acho que a gente tem que gastar o dinheiro com a gente e estar ali. Quando o cara, o senhor Osvaldo, da tapioca, entende isso, que fala: “Não, que legal, eu estou vindo aqui”; quando um aluno entende: ‘Puxa, que legal, eu estou indo para lá, mas eu vou voltar para cá para fazer”, não é sensação de dever cumprido, porque tem um montão de outras coisas para fazer, mas é a sensação de que o que você está fazendo reverbera. Quando você tromba um ex-aluno seu lá atrás, que fala: “Eu voltei aqui porque eu estou acompanhando e eu quero estar nesse nível aí”, é importante, é algo que você fez, toca. Então, tem que reverberar, fazer com que essas pessoas multipliquem e isso se torne em outros lugares, porque o que eu vejo são ações pontuais, sabe? De você provocar e frustrar a pessoa. Não é: “Vou fazer aqui um negócio, uma oficina de não sei o quê”. E aí? Para onde? Para quê? Onde vai sair isso aí? Qual é o resultado? O resultado pode sair cinco, seis anos depois. É isso que a gente está vendo. Então, é gratificante você entender que a gastronomia ganhou a luta contra o crime, contra o tráfico, entendeu? É isso. Contra um sistema opressor. Ganhou a luta contra o Estado, que não lhe dá esse aporte. Que você entenda que a merendeira é uma chef de cozinha, entendeu? É isso.
P/1 – Edson, em respeito ao nosso horário, eu vou precisar terminar. Tem mais duas perguntas finais, a gente tem mais 15 minutos, mas antes de eu partir para essas perguntas, tem alguma coisa que você queira falar, que a gente não tocou?
R – Não sei. Não lembro. Não, não tem, não. Acho que não.
P/1 – Posso partir para essas duas?
R – Pode. Pode seguir, cara, na boa.
P/1 – Se vier alguma coisa que você fala: “Nossa, tenho que falar isso”, super à vontade, tá? Então, a primeira pergunta é: como foi para você contar a sua história para a gente esse dois dias?
R – Eu acho que visitar canais da memória é importante. São coisas que a gente não pensa todos os dias. E aí, o revisitar sua história é explicar o presente. Que você consegue pegar das pessoas o porquê delas terem aparecido na sua vida em alguns momentos. Você consegue encaixar porque você fez alguma coisa ou viveu aquilo. Porque há momentos que não explicam, você não consegue explicar, você sofre porque aquilo está acontecendo. Quando você para conscientemente e fala: “P... q.. p…., eu já passei isso, isso e isso, para explicar isso, isso e isso, para que eu não sofra aqui, aqui e aqui”. Então, foi muito importante poder acessar a memória e encaixar, sabe? Pegar momentos presentes para encaixar coisas que já aconteceram. Então, foi importante. A gente não faz isso. A gente visita relações anteriores, visita lugares anteriores, visita, sei lá, comidas. Mas, se revisitar, a gente não faz isso, entendeu? Então, esse é um exercício importante para todo mundo. É legal.
P/1 – E a última pergunta, então: quais são seus sonhos?
R – Na verdade, hoje fazer o que a gente faz localmente, e tem que dar certo. Porque eu costumo dizer que, se dá certo num lugar que tem 300 mil pessoas, dá certo em qualquer lugar, tá ligada? Então, essas pessoas aqui, essas 300 mil precisam entender que aquilo é importante, e pertencerem àquilo. Para mim, o maior sonho é que todos os outros lugares, todas as outras periferias tenham o que a gente tem hoje, façam o que a gente faz hoje. E entendam a potência que ela tem como periferia. Que não é ruim ser periférico, não é ruim ser favelado. Então, essas pessoas, quando entenderem isso, eu acho que eu acordo, entendeu? E deixo de sonhar. Isso é importante.
P/1 – Equipe, desculpa, eu não abri para vocês, vocês querem fazer alguma pergunta? Mesmo? Então, Edson, em nome do Museu da Pessoa, muito obrigada por ter vindo esses dois dias aqui. Foi um presente te ouvir! Muito obrigada, mesmo.
Edson – Que bom! Para mim foi ótimo falar. Obrigada também.
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