P/1 – Está preparada, querida?
R – Sim, sempre. (risos)
P/1 – Você já nasceu preparada, né? (risos) Então vamos lá. Preta, eu vou pedir pra você fechar um pouquinho seu olho, respirar fundo, pra dar uma acalmada, pra gente poder ir entrando na entrevista. Se puder inspirar, expirar, vai entrando em contato com seu passado e tenta evocar as imagens mais longínquas que você tem, que você mais lembra, assim, ou que vêm à sua cabeça quando você pensa. Pode ser na barriga, depois da barriga da sua mãe, alguma imagem que te remete com mais proximidade ao seu nascimento ou quando você era pequena, o que te vem à mente, mergulhando nesse passado. Vai tentando vir com essa imagem, voltando aos poucos, abrindo os olhos. Como é que é o seu nome completo?
R – Joyce da Silva Fernandes.
P/1 – Qual local e data de nascimento?
R – Eu nasci em Santos, no Hospital Guilherme Álvaro, no dia treze de maio de 1985.
P/1 – Preta, quando a gente fez esse exercício inicial, que imagem que te veio à cabeça?
R – Nossa, veio a imagem da minha mãe me levando pra escola. E não tinha a _______ [2:20], então eu tinha uns quatro, cinco anos.
P/1 – Como você estava? Como era a imagem? Estava de mão dada, no colo?
R – É, minha mãe estava preparando as coisas, porque a gente acordava muito cedo. Aí me veio essa imagem dela preparando as coisas e eu puxando a minha irmã, a gente abrindo a porta e saindo pela rua de barro, indo para a escolinha.
P/1 – Preta, como é o nome do seu pai e o nome da sua mãe?
R – Sim. Meu pai, o nome dele é Jairo Fernandes; a minha mãe é Maria Helena da Silva Fernandes.
P/1 – Eles nasceram em Santos?
R – Meu pai nasceu em Santos; minha mãe nasceu em Minas, Uberaba.
P/1 – E você conheceu seus avós maternos e paternos?
R – Meus avós maternos eu conheci quando eu tinha seis anos, e os meus avós paternos eu conheço, são...
Continuar leituraP/1 – Está preparada, querida?
R – Sim, sempre. (risos)
P/1 – Você já nasceu preparada, né? (risos) Então vamos lá. Preta, eu vou pedir pra você fechar um pouquinho seu olho, respirar fundo, pra dar uma acalmada, pra gente poder ir entrando na entrevista. Se puder inspirar, expirar, vai entrando em contato com seu passado e tenta evocar as imagens mais longínquas que você tem, que você mais lembra, assim, ou que vêm à sua cabeça quando você pensa. Pode ser na barriga, depois da barriga da sua mãe, alguma imagem que te remete com mais proximidade ao seu nascimento ou quando você era pequena, o que te vem à mente, mergulhando nesse passado. Vai tentando vir com essa imagem, voltando aos poucos, abrindo os olhos. Como é que é o seu nome completo?
R – Joyce da Silva Fernandes.
P/1 – Qual local e data de nascimento?
R – Eu nasci em Santos, no Hospital Guilherme Álvaro, no dia treze de maio de 1985.
P/1 – Preta, quando a gente fez esse exercício inicial, que imagem que te veio à cabeça?
R – Nossa, veio a imagem da minha mãe me levando pra escola. E não tinha a _______ [2:20], então eu tinha uns quatro, cinco anos.
P/1 – Como você estava? Como era a imagem? Estava de mão dada, no colo?
R – É, minha mãe estava preparando as coisas, porque a gente acordava muito cedo. Aí me veio essa imagem dela preparando as coisas e eu puxando a minha irmã, a gente abrindo a porta e saindo pela rua de barro, indo para a escolinha.
P/1 – Preta, como é o nome do seu pai e o nome da sua mãe?
R – Sim. Meu pai, o nome dele é Jairo Fernandes; a minha mãe é Maria Helena da Silva Fernandes.
P/1 – Eles nasceram em Santos?
R – Meu pai nasceu em Santos; minha mãe nasceu em Minas, Uberaba.
P/1 – E você conheceu seus avós maternos e paternos?
R – Meus avós maternos eu conheci quando eu tinha seis anos, e os meus avós paternos eu conheço, são tudo pra mim, assim. Tenho muito contato com eles, os dois.
P/1 – A sua mãe veio de Minas. Os pais dela faziam o que lá? Em que lugar de Minas?
R – Então, minha mãe veio de Uberaba. Minha mãe tem uma história bem complicada. Ela veio de Uberaba e ela não conheceu o pai dela, só a mãe, mesmo. A mãe também é mineira.
P/1 – Por que ela não conheceu o pai?
R – Até onde eu sei, a mãe dela não sabia quem era o pai. E a mãe dela tinha muito problema com alcoolismo, minha avó materna. Aí, em algum momento engravidou da minha mãe e nunca soube quem era o pai.
P/1 – E quem criou sua mãe? Foi sua avó, mesmo?
R – Quem criou minha mãe foi... Uma parte minha avó e outra parte minha bisavó. Minha mãe teve uma história mega complicada, assim. Aos sete anos ela já estava trabalhando como doméstica, porque uma mulher passou na casa da minha avó, viu que ela estava no quintal, brincando com os irmãos dela, aí bateu lá e pediu pra minha bisavó, perguntando se minha mãe podia brincar com os filhos dela. Aí teve um dia que minha mãe foi lá, brincou, no outro dia minha mãe já foi, brincou, a mulher pediu pra ela arrumar algumas coisas dentro de casa, até o momento que chegou que ela raptou a minha mãe e trouxe minha mãe, aos sete anos, escondido da minha avó, pra São Paulo. Aí a minha mãe foi escravizada aqui, escravidão moderna. Ela fala que ela dormia num quartinho... Num quartinho, não, dormia numa telha, numa casinha, igual casinha de cachorro. Ela falou que tinha casinha de cachorro do lado e minha mãe dormia nessa casinha, assim, de cachorro. Então, minha mãe teve... A infância dela durou só até os sete anos.
P/1 – Com sete anos essa mulher raptou sua mãe e trouxe pra cá, e a sua avó, ninguém veio atrás? Como é que foi isso?
R – Não, pelo que minha mãe fala, a minha avó ficou desesperada, tentou ir atrás, quando chegou, não tinha nada na casa da mulher, e não tinha nenhuma informação, nem os vizinhos lá de Uberaba sabiam para onde a mulher tinha levado a minha mãe. Aí minha mãe ficou aqui dos sete até os doze anos. Aos doze [anos] ela ainda estava trabalhando... Não dá nem pra chamar de trabalho, ela era escravizada nessa casa, e aí, a patroa dela foi viajar, fazer uma viagem – todo mundo da família –, e deixou minha mãe sozinha alguns dias, nessa casa. E aí, nesses dias, minha mãe menstruou pela primeira vez. Ela menstruou e ficou desesperada, porque ninguém nunca tinha avisado pra ela que ela ia menstruar. Ela achou que estava morrendo. Aí ela começou a gritar, gritar, gritar, e os vizinhos viram. Um vizinho... Ela fala que um vizinho subiu o muro e viu que ela estava lá, aí começou a falar: “Neguinha, o que você está fazendo aí, neguinha, sua ladra”, tal. Ela assim: “Não, eu moro aqui”. Aí o vizinho: “Não, eu frequento todo domingo, quase, a casa deles, nunca vi você” – porque, quando chegava visita, eles escondiam a minha mãe no quartinho, falando que ela não podia gritar senão ela ia morrer, e aí, tudo isso, o vizinho descobriu, aí chamou o bombeiro, retirou a minha mãe dessa casa, e, com doze anos, minha mãe falou que era de Uberaba, tal, aí conseguiram encontrar a família dela. Mas ela ficou pouquíssimo tempo na casa da minha bisavó, ela fala que voltou com dezesseis anos para São Paulo, já para trabalhar como doméstica de novo, só que numa condição um pouco melhor.
P/1 – O que ela conta desse período dos seis anos? Ela tinha saudades da sua avó? Ela entendia o que estava acontecendo? O que ela conta, desse período?
R – Sim, ela falava que sofria muito, sofreu muito com a distância, porque a mãe dela, em si, não era uma mãe presente. Tem as coisas dela, sei lá, bebia muito. Então, não era uma mãe presente. Minha mãe já tinha que tomar conta, desde muito nova, dos irmãos mais novos que ela. Então, tem várias coisas que refletem desse período, assim, e eu consigo entender como minha mãe é hoje. Por exemplo: ela fala pra gente... Minha mãe come pimenta, qualquer tipo, como se fosse maçã. Não arde a boca dela. Por quê? Porque ela falou que, na infância, tinha um pé de pimenta na casa dela, a mãe dela sumia, e era aquilo que ela tinha pra se alimentar, pra não morrer. Então, ela come pimenta como se estivesse comendo maçã. Ela fala que, nesse momento, passava várias coisas na mente dela. Ela achava que nunca mais ia ver a avó dela, o avô dela, que ela gostava muito. São essas lembranças, assim, que ela tem. E isso ela foi contando aos poucos. Ela contou um pouco mais quando eu escrevi o livro Eu, Empregada Doméstica, aí ela contou um pouco mais. Mas assim, dos 35 anos que eu tenho, até eu chegar nessa parte de eu saber quase tudo... Porque tem muitas coisas que ela ainda não falou, foi todo um processo.
P/1 – Preta, e o que ela conta dessa época dos seis aos doze anos, até antes de chegar o bombeiro lá na casa? Como ela era tratada? Tem alguma história que ela te conta, específica, desse período?
R – Tratada dessa forma, acho que isso resume muito, né? Acho que isso já resume tudo, toda a questão de como ela era tratada. Ela morava na casinha do cachorro. Ela falou que era uma casinha, mesmo, de madeira, do lado da casa do cachorro, que aí, pra se alimentar, eles jogavam resto de comida num prato igual ao prato do cachorro. Ela fala que, quando era criança, ela mostrava – hoje em dia, até, agora, conversando com você, que eu lembrei dessa história – que tinha uma marca, uma cicatriz que o cachorro mordeu a mão dela, ‘saca’? Tipo: brigava por comida com o cachorro. Então, eram essas as condições. Os filhos da patroa batendo nela e achando graça, a patroa dava risada. Foi um momento bem punk, assim, na vida dela, que ela foi falando aos poucos algo que a gente nem comenta muito. Depois, até, uma parte eu fiquei... Tem que ser ao máximo cuidadosa. Eu sou historiadora, gosto muito dessa questão da oralidade, também, no meu trabalho. Parte do meu trabalho é muito envolvido com essa questão da oralidade, e aí peguei algumas técnicas de como entrevistá-la, porque, meu, era minha mãe, né? E eu não queria que ela ficasse mal. Aí, pra você ver, depois da entrevista que eu fiz com ela para o meu livro, ela teve febre no outro dia, ficou mal, porque essas lembranças são pesadas, de algo que ela ainda não conseguiu trabalhar. A gente conversa com ela, da questão que ela precisa fazer terapia, já arrumei pessoas, mas ainda não é algo que ela se sente à vontade de falar.
P/1 – Preta, depois ela voltou, então, pra lá, com doze anos. E por que ela decidiu voltar pra São Paulo, aos dezesseis?
R – Por questão de ‘trampo’, né, oportunidade. Se hoje em dia as pessoas ainda falam que São Paulo é a terra da oportunidade, imagina naquela época! Minha mãe tem 58 anos. Então, imagina naquela época! Sei lá que década que era, acho que anos setenta, década de setenta. Era muito mais difícil, né, para uma mulher, preta, retinta. Aí ela veio pra cá porque era oportunidade de trabalho.
P/1 – E ela veio pra São Paulo, São Paulo, ou já foi pra Santos?
R – Ela veio pra São Paulo, mas aí o restante da história da minha mãe está no livro. (risos)
P/1 – Eu vou ler.
R – Eu estou falando muito da minha mãe. Não é sobre ela, né? (risos)
P/1 – Não, é que a gente vai volta um pouquinho pra entrar na sua história.
R – Entendi. Mas aí ela foi, arrumou trabalho como doméstica aqui e ficou, até conhecer o meu pai, até criar a família maravilhosa que ela tem hoje.
P/1 – E você sabe como ela conheceu seu pai?
R – Sim. Eu gosto dessa história. (risos) Porque a gente não é só dor. Começa a falar de dor, já vai dando um negócio. Então, como ela conheceu meu pai: minha mãe gostava muito de balada, né, tipo que nem eu, assim. Minha mãe é uma pessoa que gosta muito de música. E ela, empregada doméstica, a diversão dela era ir pro baile aos finais de semana. E tinha um baile muito conhecido na década de oitenta que se chamava Beira, lá na baixada santista, em Santos. O baile se tornou tão conhecido que, naquela época, até algumas pessoas saíam de São Paulo pra ir para a esse baile, lá em Santos, que era uma balada black, um baile de pessoas pretas, com música negra e tudo mais. Minha mãe fala que todo salário dela era pra gastar com maquiagem, cabelo, sapato, toda produzida pra ir pra esse baile. Já o meu pai, ele também gosta muito de música. A minha família paterna, que é a família que eu tenho mais contato, é totalmente musicada e tal, meu pai colecionava disco, já, na época. E ele também trabalhava pra ir todo nos trinques – porque ele chama assim, ‘nos trinques’ –, todo bem arrumado para o baile. E aí, em um desses bailes, minha mãe foi, e, na volta, ela voltou no mesmo ônibus que o meu pai; aí meu pai ficou olhando pra ela, ela ficou também olhando, mas até então ela fala que não deu nenhuma moral, só que ela lembra que meu pai estava olhando pra ela o baile inteiro. Aí começou a chover, minha mãe tinha um guarda-chuva. Ela desce no ponto, bem próximo da casa da minha avó, na casa do meu pai, e meu pai desce, também, junto, (risos). Aí meu pai pergunta o nome dela, se apresentam e ele fala assim: “Nossa, desculpa, é que eu tenho bronquite” – nossa, é muito a cara do meu pai! – “e eu não posso pegar chuva. Amanhã eu começo no Correio e não posso perder essa oportunidade”. Minha mãe: “Não, tudo bem”. E meu pai fala que não era cantada, que realmente ele estava com medo de pegar bronquite. (risos) Ele falou que não era cantada. Ele a achou muito bonita, mas se minha mãe podia fazer isso por ele. Aí minha mãe o levou até três quadras de onde ela morava, pra deixar o meu pai lá, guardadinho, pra ficar bem. E aí começaram a trocar... Sei lá, acho que devem ter trocado endereço, se reencontraram e ficaram. E quando meu pai foi apresentar minha mãe pra minha avó... A família do meu pai é mega – essa palavra, hoje em dia, confunde, né? – conservadora, mas não os conservadores que votaram no Bolsonaro (risos), mas mega tradicional. Aí a minha avó já achou estranho, pelo fato – ‘meu’, isso eu estou falando da década de oitenta, né? – da minha mãe ser sozinha no mundo, tipo: “Mas ela não tem mãe? Não tem pai? Mas como ela está aqui? Ela é de Minas e está aqui”. Aí minha avó já ficou mega preocupada, achando que minha mãe era garota de programa, que ia tirar meu pai do caminho certo. Então eles tiveram que ter essa luta aí com a família, e a minha bisavó também falava muito – a vó do meu pai – sobre essas questões, pra tomar cuidado, porque de repente era mulher da vida. Enfim, aí minha mãe falou que foi conquistando todo mundo, foi mostrando quem ela era, que realmente ela estava atrás de um serviço bom, de dignidade, de construir uma família, e assim eles ficaram namorando durante dois anos. Aí, depois de dois anos, eu nasci. O meu avô materno fala que eu sou a faculdade de Engenharia do meu pai (risos), porque meu avô tinha guardado dinheiro para o menino fazer Engenharia Civil, aí descobre que ele engravidou a namorada e, naquela época, meu avô falou que eles tinham que casar e ficar juntos, porque meu pai era um cara íntegro, e meu avô não ia deixar uma neta aí, voando, sem casa, sem moradia. Então eu sou a primeira filha do casal e a primeira neta, também, dos meus avós paternos.
P/1 – E seu pai e sua mãe, quando casaram, foram morar onde? Ficaram morando onde?
R – Então, eles casaram. Primeiro eles ficaram dois anos namorando e, depois de dois anos, minha mãe engravidou de mim e eles foram morar lá próximo, também, da casa da minha vó, na zona noroeste, periferia de Santos. Depois – eu acho que já tinha uns quatro anos – eles casaram na igreja, no civil, para poder batizar a minha segunda irmã, algo assim. Não, minto! Eles se casaram no civil, mesmo, porque minha mãe queria casar na igreja. E aí tem uma foto da minha mãe em que eu estou lá de testemunha, com a mãozinha, assim, junto com os padrinhos. (risos)
P/1 – Você tem essa foto?
R – Tenho.
P/1 – Legal, depois eu vou pedir pra Ane ver com você, da gente colocar essa foto, porque quando vai... Depois a sua entrevista vai com as fotos todas. Fica super bacana.
R – Massa!
P/1 – Preta, e de qual casa você se lembra? Onde você morou?
R – ‘Vixe’, de todas.
P/1 – Qual é a da primeira lembrança?
R – ‘Lembrança’, que você fala, é de infância? Minha primeira lembrança de infância?
P/1 – É, da primeira casa.
R – Sim. Era um chalé de madeira, azul – bem bonitinho, por sinal. Lá no Bom Retiro, que é um bairro de Santos. Um chalé de madeira. Minha mãe fala que acho que foi a primeira casa que eles foram morar juntos, eu lembro disso. Aí, quando eu falo pra minha mãe, também, algumas lembranças que eu tenho de infância, ela fica assustada, porque ela fala assim: “Como você lembra do chalé? Não tem nem foto!” “Eu lembro também da surra que a senhora me deu, que a senhora colocou um vestido bem bonito e falou que era pra eu ficar sentada no sofá, e eu lembro que eu levantei e fui andar numa valinha”, porque naquela época as ruas eram todas de barro, e aí, na porta da casa da minha mãe tinha uma vala de esgoto e tinha uma pontezinha de concreto. Aí eu fui andar na ponte, eu caí dentro da vala! E eu lembro que eu estava com um vestido tão bonito e toda suja de barro, e apanhando horrores, uns tapas. Apanhando horrores! Com certeza minha mãe deu um tapinha, né? Mas quando a gente é criança, aumenta tudo (risos). Ela fala: “Credo, menina! Você tinha três anos, como você lembra disso?” Eu falei: “Então a senhora deve ter batido com força, né? Me traumatizou, porque eu lembro”. (risos) Aí eu lembro dessa casa, do chalé azul. Mas eu já morei em várias casas.
P/1 – E a sua mãe trabalhava? Ela continuava trabalhando?
R – Em que época?
P/1 – Quando você era pequena?
R – Sim, sim, ela sempre trabalhou. Eu tive várias babás, também. Porque é isso, né? Minha mãe era empregada doméstica. Naquela época, muitas das vezes ela não conseguia vaga em creche, aí ela tinha que contratar outra pessoa pra poder trabalhar lá em casa, assim, pra poder cuidar de mim – de mim, das minhas irmãs, até eu ter uma idade em que eu pudesse cuidar de outra criança... Que hoje em dia não é a idade certa, mas eu lembro de cuidar da minha irmã. Quando eu tinha uns dez anos, minha mãe já dispensou esse negócio de babá, aí eu já assumi a ‘responsa’ da casa.
P/1 – Quantas irmãs você tem?
R – Eu tenho duas irmãs e tenho um irmãozinho – o Lucas, meu irmão adotivo.
P/1 – E seu pai trabalhava em quê?
R – Meu pai é carteiro, até hoje.
P/1 – Ah, ele estava indo naquele trabalho! (risos)
R – É, naquele trabalho. (risos) Ele estava com medo de pegar bronquite.
P1 – Eles estão casados até hoje?
R – Sim, sim, graças a Deus são casados. E é tudo filho do mesmo pai e da mesma mãe.
P/1 – Como era na sua casa, quando você era pequena? Tinha um dos dois que exercia mais autoridade? Como era a relação entre eles e a casa?
R – Sim. Minha mãe orquestrava tudo, né? Minha mãe é leonina. Eu sinto uma dificuldade com a galera desse signo. (risos) A minha mãe é leonina, entendeu? A casa é dela, as coisas são dela, o que ela fala tem que fazer. Então minha mãe que organizava tudo, assim. As ordens, também. Primeiro eu pedia para o meu pai, meu pai falava: “Pede pra sua mãe. Se sua mãe deixar...”. Então era sempre encaminhando pra ela, né? A autoridade maior, até hoje, é ela. Até na minha casa, mesmo eu morando sozinha. (risos) Gente, a mulher está longe, está me ligando pra saber se eu desliguei o gás. Que nem, amanhã eu vou pra Bahia. Ela já me ligou aqui: “Desliga o gás. Não deixa comida na geladeira. Faz isso”. Eu: “Gata, eu moro sozinha há mais de dez anos!” (risos)
P/1 – Preta, e você acompanhava sua mãe no trabalho, quando ela trabalhava fora? Você chegou, tipo assim, [não] tinha uma babá, ela precisou te levar?
R – Sim, sim, já fui ‘a filha da empregada’ tanto na infância. Tinha alguns lugares também que, antes da minha mãe ter alguém trabalhando lá em casa, ela chegou a me colocar em algumas escolinhas próximas do trabalho dela, então nos bairros nobres lá de Santos. E aí tinha aquele período intermediário, que acabava minha aula, minha mãe ia me buscar, levava pro serviço pra ficar esperando ali umas duas, três, às vezes até quatro horas. Ela terminar a faxina e ia embora. Então, eu já fui ‘a filha da empregada’. E aí é isso: ficar na área de serviço. As mesmas coisas de quando eu era doméstica, eram as mesmas coisas quando eu era filha da doméstica. Então, de não poder utilizar o banheiro, de não poder comer a comida. Muitas das casas, também, eu não podia brincar com o filho da patroa. Às vezes a gente ficava... O filho da patroa chegava até a porta da cozinha e eu na área de serviço. A gente inventava algumas brincadeiras de longe, sabe? Mas eu lembro de uma vez que uma patroa da minha mãe viu que a gente estava brincando, e ela deu um beliscão no menino e falou: “Eu já falei que não é pra ficar na cozinha. Eu não quero você com graça com ninguém. Vai pro seu quarto, estudar”. E aí a gente inventava brincadeira, mesmo. Lembro de fazer brincadeira de mímica, de longe, pra descobrir e tal. Então, eu já fui ‘a filha da doméstica’. Na infância e depois, na adolescência, eu ia com a minha mãe, pra ajudar, né? Porque minha mãe pegava muitas casas para trabalhar e aí, pra ela terminar logo, pra ela não ficar tão cansada, ela me levava pra eu ajudá-la.
P/1 – Quando isso acontecia com você, você já tinha noção que isso era preconceito? Ou você achava isso normal?
R – Não, não vou falar que eu achava normal, porque me incomodava. Eu lembro que eu ficava com muita raiva, detestava. Eu ficava pensando: “Meu, por que minha mãe trabalha disso? É horrível! Eu não gosto. Por quê? Será que ela gosta?”. Eu lembro de uma vez que eu cheguei e perguntei: “Mãe, a senhora gosta de trabalhar disso? Por que a senhora não trabalha em loja e tal?” Minha mãe sempre assim: “Menina, para de graça! Eu gosto, sim. É o que está pagando sua comida, as contas de casa”. Mas eu questionava. Mas eu não sabia tipo: “Isso é racismo, preconceito”. Essas coisas assim eu não sabia, mas era algo que me incomodava, já naquela época.
P/1 – E você presenciava, também, cenas da sua mãe, em algum momento, sendo destratada?
R – Sim, eu presenciava, sim. Porque, sei lá, desde muito tempo, desde que eu me conheço por gente, eu sempre fiquei atenta à expressão facial das pessoas, ‘saca’? Eu tenho muito essa questão. Até na época que eu era professora, também. Leitura labial é algo que, se eu enxergo, eu sei o que a pessoa está falando. Até brincava, na época dos meus alunos, eu fingia que não estava prestando atenção, olhava, eles estavam falando baixinho, eu chegava e dava continuidade ao que eles estavam falando. (risos) Eles ficavam: “Ai, professora, como a senhora sabe?” Eu falei: “Tenho sexto sentido, eu sei o que vocês estão falando”. Então eu percebia que minha mãe tinha uma face muito triste, sabe? E percebia que algumas coisas que as patroas dela falavam e eu ouvia, ela ficava triste, assim. Então, eu tinha essa percepção.
P/1 – Mas a sua mãe reclamava, em casa? Contava pro seu pai?
R – Sim, já cheguei a ouvir algumas conversas deles, dela reclamando, assim: “Fulana fez o maior barraco porque eu quebrei um negócio lá. Agora, provavelmente, ela vai descontar do meu salário. Do jeito que ela é, vai descontar três vezes mais o valor”, sabe? Essas conversas, assim, eu lembro.
P/1 – Preta, e na escola? Que lembrança você tem da escola, a primeira vez que você foi na escola?
R – Então, na escola eu tenho poucas lembranças boas. Eu fico até caçando algumas, mas elas existem. Eu lembro da questão das minhas amigas, da gente fazendo música, da gente imaginando como seria o futuro, sabe? “Você vai casar com quem?” “Eu vou casar com fulano”, e passa as características. “Eu vou morar não sei onde”. Aí a outra fala: “Eu não vou casar” e algumas ficavam: “Mas como você não vai casar?” Então, eu lembro dessas conversas, assim. Isso ensino fundamental II, ou seja, com doze, treze, catorze anos. Mas também tenho outras lembranças de [mim] bem menor, assim, na escola.
P/1 – Que lembranças de bem menor você tem?
R – Então, uma lembrança que eu tenho, que é essa que não é boa, é de uma dessas escolas que minha mãe me colocou, próximo do serviço dela. Era uma escola particular, né? Minha mãe fala que era prezinho, e tal. Aí eu lembro de uma atividade que a professora falou que era pra fazer com quem mais gostava, né? Falou: “Olha, agora você escolhe quem você gosta e senta com ele, que a gente vai fazer uma atividade”. Aí eu vi todo mundo numa movimentação, assim, na sala, e sentando com quem gostava. Aí eu vi que eu estava sozinha, assim, tipo, no meio da sala. Eu comecei a olhar e tentar procurar qual era a diferença. Aí via que uma mesa tinha menina com menina; a outra menino com menino; a outra mista, menina e menino, aí ficava assim: “O quê? Será que ninguém gosta de mim?” Foi aí que eu olhei pro meu braço, e foi nesse momento que eu percebi que a minha cor era diferente das outras crianças. Tipo, eu tenho essa memória muito forte. E aí, de eu perguntar pra professora e falar: “Professora, eu vou ficar sozinha? Ninguém gosta de mim?”, e ela falou: “Não, não esquenta com isso. Olha, pega aqui”. Aí ela me dá uma folha e uma caixinha de giz de cera, pra eu pintar. E até hoje eu não sei qual foi essa atividade que os outros alunos fizeram. E aí eu contei isso pra minha mãe, né, aí minha foi na escola falar que eu estava sofrendo preconceito. Ela não sabia que era racismo, naquela época englobava tudo, falava que era preconceito, que estavam destratando a filha dela. Isso nunca se comentou na minha família, nem nada. Aí eu, com essas manias de ficar lembrando das coisas do passado, me veio essa memória, eu perguntei, contei pra minha mãe, aí ela falou assim: “Onde que você viu isso?” Eu falei: “Mãe, eu não sei se é sonho, se eu estou sonhando ou se é alguma cena de filme. Isso realmente aconteceu?” Ela começou a chorar e falou que aconteceu. Aí eu fiquei assustada. Ela falou assim: “Joyce, você resgata umas coisas que eu não consigo entender como você consegue”. Ela fala que nessa minha lembrança eu tinha três anos. Porque ela fala que eu comecei a falar muito, muito cedo, tipo: com dois anos eu sabia falar tudo perfeito, assim. (risos) E essa lembrança ela fala que eu tinha de três a quatro anos.
P1 – Como era o ambiente dentro da sua casa? A relação entre seu pai e sua mãe?
R – Olha, era uma relação de muito amor. Era uma afetividade bem presente. Meu pai sempre com essa questão, até hoje, né, do cuidado com a minha mãe, sabe, de presenteá-la fora de datas comemorativas. Eu lembro dos comentários das mulheres, também. A minha mãe já trabalhou de várias coisas, né? Em um período da infância, ela começou a trabalhar com coisa de beleza, então fazia cabelo, unha, manicure, pedicure, tudo. Aí ela atendia as clientes lá na casa dela, e eu lembro dos papos, das clientes falando: “Nossa, Helena, você tem sorte, queria eu ter um marido assim! Olha como o Jairo te trata!” Uma vizinha, também, uma vez, falou: “Helena, eu tenho inveja de você! Você sai toda de mão dada com seu marido. Meu marido vive no bar”. E a gente ia pra igreja, todo mundo de mão dada, assim: minha mãe, meu pai e as três filhas. Então era um ambiente muito de carinho, de entrega. A minha mãe... Por isso que hoje eu fico pensando: como ela aprendeu ser da forma que ela é, né? Porque ela não teve referência nenhuma de infância, de pai, de mãe. Ela não teve essas figuras presentes. E aí hoje eu entendo como minha mãe se dedicava nas brincadeiras, que as minhas amigas todas queriam ir lá pra minha casa, porque na minha casa, tudo podia. Então, se vai brincar de casinha, é com comidinha de verdade. Minha mãe, você vai brincar de casinha, ela vai construir, mesmo. Antes, tinha os beliches, ela colocava um lençol e construía uma barraca. Na época tinha o programa da Eliana, dos dedinhos, que ensinava a fazer um monte de brincadeira, um monte de brinquedo manual, minha mãe fazia todos, ela se entregava mesmo. Quando meu pai comprou nosso primeiro vídeo game, aí ela não conseguia fazer nada em casa, ela ficou viciada, (risos) porque eram coisas que ela não tinha [tido]. Então, realmente, ela brincava com a gente, e ela conseguiu dar todo esse amor e toda essa estrutura familiar pra gente, mesmo sem ela ter. Meu pai era mais reservado, ele estava ali presente, mas com a gente ele era mais reservado. Mas também eu via que minha mãe cobrava muito dele, ficava: “Ai, Jairo, brinca com elas. Você não brinca com elas, com as suas filhas”. Mas pô, meu pai trabalhou o dia inteiro, ‘saca’? Minha mãe também trabalhou o dia inteiro, mas era porque meu pai era mais fechado, assim, do que a minha mãe.
P/1 – Vocês comemoravam datas na sua família? Natal, aniversário...
R – Sim, até hoje. Nossa, minha família gosta muito de festa. Por isso que está todo mundo sofrendo muito com essa questão da covid. Sei lá, se eu não estou fazendo show, se eu não tenho agenda, eu estou na casa da minha avó, eu falo pra todo mundo que é o melhor lugar do mundo pra mim. Aí está todo mundo lá, fazendo churrasco, falando alto, todo mundo falando tudo junto, diversos assuntos. A minha família é muito dessa, de comemorar tudo, assim. Minha família, de dentro de casa – minha mãe, meu pai, minhas irmãs –, a gente, em todas as datas, até nos momentos mais difíceis da vida, assim, quando faltava grana, minha mãe dava um jeito de comemorar os nossos aniversários e aí, se ela não tinha, minha madrinha com certeza ia fazer um bolo, minha avó aparecia com um bolo lá em casa, sempre. Tem essa frase: eles falavam que não podiam deixar passar em branco. (risos) Então, sempre passava ‘em preto’. Sempre os pretos tudo juntos, lá, festejando. Todas as datas.
P/1 – E você teve, tinha formação religiosa?
R – Sim, tive, sim. Dos seis anos até os dezoito eu fui da igreja evangélica. Hoje minha mãe é pastora, e aí, na época... Ah, fiz tudo da igreja evangélica, na escola dominical; aí depois fui para o grupo de jovens. Depois virei ministra de louvor, que é a pessoa que canta e vai ministrando, falando. Era uma igreja pentecostal. E aí eu fiquei lá até os dezoito anos, porque minha mãe falava que ela ia segurar a gente na religião dela até os dezoito, depois dos dezoito a gente ia escolher qual seria melhor, qual seria nossa crença. Então eu tive, sim, essa formação. Hoje não é mais o que eu resolvi seguir, não é uma das coisas que eu acredito, porém eu agradeço bastante esse tipo de ensinamento, porque me livrou de várias coisas que eu vi que, se eu não tivesse lá, não sei qual seria o meu destino, pelo fato de eu morar em um bairro periférico, mega perigoso, sem estrutura, sem acesso à educação, sem acesso à cultura, sem acesso a várias coisas. E aí a igreja também me deu esse norte da questão de como falar em público, sabe? Como se comunicar com as pessoas, também. Foi importante.
P/1 – Como era esse bairro? Quanto tempo você morou? É nessa casa que você nasceu, que era o chalezinho azul, que você continuou morando?
R – Não. Então, a gente morou em muitas casas, porque até hoje meus pais moram de aluguel. Mas o maior tempo que a gente conseguiu ficar foi no Tancredo Neves, que era um conjunto habitacional. Lá eu morei dos seis até os quinze anos, se eu não me engano. Não, dos seis até os treze. Aí, depois, eu morei em muitos bairros.
P/1 – Por que vocês mudavam sempre?
R – Então, porque a minha mãe conseguia alugar casa sem fiador, sem dinheiro da caução, porque a gente nunca tinha. Minha mãe conseguia, ela falava que Deus revelava, ajudava, e ela conseguia as casas. Só que muitas das vezes eram casas que a pessoa estava alugando, mas depois de três meses o filho ia casar, aí ia pegar a casa de volta ou casa de herança, que a gente estava morando, aí o povo queria vender a casa. Então, eram mais essas confusões, assim. Tipo, não tinha um contrato de: “Você vai ficar um ano nessa casa”. Não, a gente entrava e logo em seguida a galera pedia a casa. Então, teve um ano que eu mudei de escola quatro vezes, em um único ano. Então, pra você ver como era conturbado. E foi o ano mais difícil da nossa vida também, foi quando meu pai foi mandado embora do Correio, na época do Fernando Henrique Cardoso, do FHC. Ele fez greve e saiu lá no jornal principal da minha cidade, aí ele foi mandado embora e tal. Ele ficou oito anos afastado do Correio, e foi um dos momentos mais difíceis, porque no Correio ele tinha uma estrutura, tinha um salário bom, tinha plano de saúde pra todas nós, ticket alimentação, tinha os benefícios todos. Aí ele se viu desempregado, já com uma idade onde as pessoas já não estavam querendo contratar, e a vida inteira ele foi carteiro, então não tinha experiência em outras coisas. Então foi bem complicado esse momento. Por isso que a gente até passou... Eu passei por quatro escolas em um ano.
P/1 – Ô Preta, e o que você mais gostava de fazer na escola?
R – Escrever. Eu gostava muito, muito de escrever. Eu amava quando a professora dava redação. O povo ficava com raiva, assim. Quando eu era mais novinha: “Ai, professora, passa redação, passa redação”. E depois, no ensino médio, quando tinha alguma coisa pra escrever, eu falava: “Ai, que bom!”, porque eu gosto muito da escrita. Eu tinha as minhas matérias preferidas, que sempre foi História (risos) e ai, meu Deus, Língua Portuguesa também. Então a parte mais ‘da hora’ da escola era escrever.
P/1 – Quais eram suas brincadeiras de infância? Você brincava com as suas irmãs? Brincava na rua? Como era?
R – Então, minha mãe não deixava a gente brincar na rua, por conta do bairro ser violento, ela tinha medo, então a gente brincava tudo em casa. E eu fico pensando que, por ter um espaço minúsculo pra brincar – porque era um apartamento de dois quartos, mas era um conjunto habitacional, o apartamento muito pequeno –, a gente tinha que inventar as brincadeiras ali. Então muitas das vezes eu ficava com raiva: “Por que a minha mãe não deixa eu brincar?” Eu queria ir pra rua. O povo brincando de pega-pega, de taco, de empinar pipa, e nada disso eu podia. Mas, com relação a essa questão de não poder, foi que também ativou a nossa criatividade gigantesca, sabe? A gente inventava umas brincadeiras que, quando meus primos iam lá pra casa, eles ficavam: “Nossa!” Então eu e minhas irmãs, a gente inventava jogo de tabuleiro com as nossas regras. Às vezes inventava jogos que tinha a ver com as passagens da Bíblia. Eu lembro de um jogo que eu inventei, que até minha mãe falou pra eu fazer, eu tive que fazer cinco tabuleiros pra outras crianças da igreja, e ainda os adultos elogiando, o pastor da época falava: “Nossa, mas como ela teve essa ideia, irmã Helena? Caramba, isso é muito legal, vou trabalhar na escola dominical”. Então a gente teve essa parte da criatividade muito aguçada, pelo fato de ter pouca coisa. E eu sou uma pessoa que, desde pequena, enjoo rápido das coisas, então eu ficava sempre procurando fazer algo e tal. Foi nessa época também que eu escrevi meu primeiro... Eu chamo de texto, hoje, a minha mãe chama de livro. Se a minha mãe fala que é livro, é livro – livro de infância, que era o Jantar da Bicharada. Eu escrevi e tive uma tirinha desse Jantar da Bicharada publicada no jornal da cidade, na Tribuna, que todo domingo saía a Tribuna e a Tribuninha, que era um jornal pra criança. Aí eu lembro que foi publicado. Isso, nossa, sei lá, eu acho que eu tinha uns dez anos. Isso. Então, as nossas brincadeiras eram dentro de casa, com a ajuda da minha mãe, pra toda essa criatividade. A gente brincava de cabaninha... Outras coisas que a gente gostava muito de brincar, eram duas: essa questão dos jogos de tabuleiro, e a gente tinha alguns. Alguns, não, a gente tinha dois, que a gente tinha ganhado de Natal, que era muito caro o jogo de tabuleiro, naquela época. Hoje ainda é, para algumas pessoas não é acessível, né? Então, a gente inventava com papelão. E outra coisa era desfile de moda. A gente gostava de se produzir com as roupas do meu pai, de serviço, misturando com as roupas da minha mãe. A gente falava: “Olha, pai, mãe, vai ser a hora do show, tá?” e eles: “Ai, tá bom”. Aí meu pai: “Mas vai desfilar sem música? Eu vou escolher a música”. Meu pai colocava música na vitrola – uma vitrola igual essa aqui (risos) –, e a minha mãe: “Está pronta?” Eu: “Não”. Eu ficava produzindo as minhas irmãs, que são a Raquel e a Jaqueline. Aí eu produzia as roupas: “Pronto”. Meu pai: “Tá, vou soltar a música”, soltava a música e a gente ia desfilando (risos) com as roupas, e a gente brincava muito, assim. Acho que, nossa, minha mãe e meu pai tinham uma paciência! Porque às vezes era no horário do Jornal Nacional. Se eu tivesse filho e gostasse de assistir jornal, eu não sei como ia ser, mas meus pais tinham paciência. E a outra brincadeira era de vendas. A gente gostava muito de vender. A gente pegava um móvel quase igual a esse daqui da minha sala, um rack, pegava as bugigangas, assim, de casa, e colocava tudo – preço –, falava: “Mãe, está aberta a vendinha”. Aí minha mãe e minhas irmãs iam lá comprar as coisas que eu estava vendendo. Então são três brincadeiras que eu lembro, que era tabuleiro, o desfile de modas e as vendas.
P/1 – Como era esse texto, o Jantar da Bicharada? O que falava esse texto que foi publicado na Tribuninha?
R – Sim. O Jantar da Bicharada era um encontro (risos) – deixa eu ver se eu lembro – de vários bichos, assim, na floresta. A jararaca fez um jantar convidando todo mundo, porque os bichos estavam todos brigando e ela queria a paz na floresta, aí ela convida todo mundo. Era numa mesa de jantar, assim, com um monte de bicho jantando. É isso que eu lembro, era uma historinha assim. Gente, faz muito tempo! Acho que foi em 1994 isso.
P/1 – E como é que foi parar na Tribuninha?
R – Porque a minha mãe assinava jornal, porque tem esse outro lado também: minha mãe é analfabeta, mas ela sempre incentivou a gente a ler e tal. E ela assinava jornal. Ela era viciada em comprar coisas na porta. Então, tudo que vendia, tudo que batia lá na porta, ela comprava. E naquela época tinha os vendedores de livros, aí, minha mãe comprava trocentos livros. Inclusive, o livro que eu tenho aqui do Eric Hobsbawm, como que é? A Revolução dos Sistemas? Esqueci o nome.
P/1 – A Era das Revoluções.
R – Isso. Minha mãe comprou nessa época. Eu cheguei a usar esse livro quando eu cursei História. Então, comprando o jornal, meu pai lia e via que tinha lá: “Envie suas historinhas, seu desenho”, que era publicado nesse jornal. Aí meu pai falou... Eu li também, aí meu pai falou pra gente enviar e a gente enviou. Eu lembro que eu fiz um desenho, assim, do jacaré, dos bichos lá, da forma que eu conseguia, e um trechinho dessa historinha que eu criei. Aí eles enviaram pro jornal.
P/1 – Preta, nessa idade, quando você era... Com dez anos, doze, você tinha alguma coisa assim: “Quando eu crescer, eu quero ser tal coisa”?
R – Hum, hum. É muito louco isso! Porque eu falava que, quando eu crescesse, eu queria ser o que eu sou hoje, assim. (risos) E eu ficava imaginando. É muito louco, porque, assim, todas as coisas que eu já conquistei na vida, eu sempre soube que eu ia conquistar. E as coisas que eu ainda não conquistei, eu sei que eu vou conquistar. É algo interno. Eu sou uma pessoa muito ansiosa e, então fico tentando segurar a minha ansiedade para que isso aconteça. Mas eu fico pensando: “Não, meu, eu quero ser apresentadora de TV, mas eu vou ser. Eu sei que ainda não surgiu o convite, mas eu tenho certeza que eu vou ser, em algum momento”. Então, na infância, eu ficava imaginando isso: eu apresentando o programa, falando com as pessoas. Lógico, naquela época não tinha internet, né? Mas eu me via, assim, falando pra câmera, e falando, dando opinião. Me via com unha grande, toda colorida, maquiada, me via escrevendo um livro, que eu gostava muito de escrever. As coisas que eu gostava meu pai que dava nome, né? Porque eu era criança, ia fazendo, não sabia muito bem o que estava fazendo, aí meu pai falava: “Isso aqui que você está fazendo, você está escrevendo uma história. Quem escreve história é escritor. Então, você, quando crescer, pode ser uma escritora”. Eu: “Ah, o nome de quem escreve isso é escritor? Beleza”. Da mesma forma quando eu deixei o caderninho, assim. Sempre tive muito contato com papel e caneta, e sempre quis desenhar, mas eu não conseguia, então eu comecei a desenvolver a escrita. Aí, uma vez, eu deixei um caderninho no sofá, meu pai pegou esse caderno e viu que tinha um texto lá, rimado, e falou: “Nossa, o que é isso que você escreveu rimado?” Aí eu falei: “Ah, pai, é uma poesia”. Aí ele falou: “Sabia que poesia com ritmo é rap?” Eu: “O que é rap?” Ele: “Essas músicas que eu escuto aqui. Isso daqui é rap”. Eu falava: “Mas eu não entendo nada”, porque ele só escutava rap americano. Aí eu lembro dele pegar o texto e começar a cantar, assim, pra mim, porque todos os finais estavam rimando. E eu comecei e falei: “Cara!”. Aí eu gostei e comecei a fazer mais textos com poesia rimada, e trazendo ritmo. Então meu pai sempre, também, foi fundamental para essa questão artística, de falar: “É isso. Você pode isso, você pode aquilo”. Quando eu comecei a pesquisar pra escrever rap, ele falava: “Nossa, essas letras aí são conteúdo histórico. Você pode fazer faculdade de História”. Então ele sempre direcionava, ia dando nome e direcionamento para as coisas que eu estava, ali, criando sozinha, no quarto.
P/1 – Preta, quando ele achou esse caderno que você tinha, que ele falou: “Isso aí é poesia rimada”?
R – Acho que com uns doze ou treze anos. É. Porque aí, depois, também, nas férias, ele ia para a casa da minha avó, e a irmã do meu pai, mais nova, gosta muito, também, de música e tal, aí a gente começou a escrever umas músicas juntas. Na época estava bem no auge o axé, né, então a gente começou a escrever umas músicas, assim, de axé e tal.
P/1 – Essas poesias rimadas, de quando você tinha doze anos, você lembra o que você escrevia, alguma coisa? Você lembra alguma dessas poesias rimadas, dessa época que você escreveu, com doze anos?
R – Nossa, eu não lembro. Não tenho essa lembrança. Só lembro da música que eu escrevi com a minha tia, que minha família toda canta. (risos)
P/1 – Como que é?
R – Eu lembro do refrãozinho, só. Era (cantando): “Olodum, ooo, quero mais Olodum. Olodum, ooo, quero mais Olodum. E na Bahia tem o acarajé nananananana...” Ai, eu não lembro. Inclusive, na websérie que eu produzi, primeiro episódio se chama Pesadona, eu conto a história da minha família. Aí aparece eu e essa minha tia que escreveu, a gente tentando lembrar também. Acho que, na websérie, ela lembra de mais. Ela canta um pedacinho a mais. Eu só lembro do refrãozinho.
P/1 – Ô Preta, e na adolescência? Quer dizer: você disse que você ia pra igreja. A sua vida social, assim, era ir pra igreja?
R – Era. Minha vida social era a escola e igreja, a igreja e a escola. Aí, depois, também, joguei handebol, então ia treinar. Fiz aula de piano durante um tempo... Então esses lugares, assim. Mas onde eu via mais pessoas, convivia com mais pessoas, era na igreja, mesmo, e na escola. E no handebol também.
P/1 – Você passeava pela cidade? Ia na praia?
R – Então, eu ia na praia quando os meus primos de São Paulo desciam pra Santos, mas aí já era na adolescência. Eu tinha grandes problemas em relação ao meu corpo; tinha vergonha do meu peito grande, do meu braço que balançava, da minha coxa que era grossa. Então eu ia pra praia toda coberta, e aí eu só ia nessas épocas mesmo, em que os meus primos iam pra Santos. E os passeios que a gente dava eram, tipo, depois do culto. “Vamos pra pizzaria”, vai todo mundo da igreja para a pizzaria (risos), sabe? Nada além, assim. Eu já queria fritar, porque eu via as minhas amigas indo para os bailes. Na época o funk estava comendo solto, assim, em Santos. Tinha vários bailes. Santos tem uma conexão bem forte com o Rio de Janeiro, né, musicalmente falando. Então tinha os bailes que eram bailes Santos e Rio de Janeiro, e os MCs do Rio vinham pra Santos, de Santos iam para o Rio. Então tinha umas festas muito legais, assim, que eu queria estar, mas a minha mãe não deixava. Aí eu comecei a frequentar os bailes com dezesseis, dezessete anos, mas com meu pai. Meu pai ia comigo. E, pra mim, eu não tinha vergonha nenhuma. Minhas amigas não queriam ficar perto de mim, porque meu pai estava. Mas eu gostava, eu achava o máximo. Já chegava toda grandona no baile: “Nossa, meu, eu estou com o meu pai!” A gente dançava junto. E aí, se meu pai fosse me levar, minha mãe deixava. Agora, ir sozinha não podia ir não. Nem nas festas de quinze anos das minhas amigas – que eram fora da igreja – eu fui. Era bem rígido.
P/1 – Preta, e você disse que você tinha problemas com seu corpo. Por quê?
R – Porque eu sempre fui gorda, né? E eu não via as pessoas gordas na televisão. Quer dizer, via, mas sempre motivo de chacota e tudo o mais, então eu tinha vergonha de ser gorda, grande, e tudo o mais. Aí, na época da adolescência, na escola, eu via que as meninas já começavam a ficar com os meninos. Eu tinha vontade de ficar com os meninos, e eu sempre fui corajosa, nunca tive medo de tomar [a iniciativa] não, assim. Eu chegava lá e falava que queria ficar com ele, que gostava dele, aí alguns falavam de boa: “Não, pô, sou suave, não quero”. Outros já chegavam me tirando: “Ah, imagina, vou ficar com você? Credo! Macaca, gorda”. Então tinha essa questão da autoestima bem baixa, perante tudo isso. E foi até nesse momento que eu comecei a desenvolver técnicas pra poder ficar mais próxima dos meninos, pensando que, de repente, por algum momento, algum deslize, eles poderiam se interessar por mim. Então, foi nesse momento que eu fui entender pra caramba de futebol, fui saber quando era falta, quando era pênalti, ‘saca’? Fui entender de fórmula 1, de basquete, que os meninos gostavam. Do próprio hip hop, rap, funk, fui entender de tudo isso. E aí, o que aconteceu? Transformou no: “Ah, a Preta Rara é a mina da hora, meu, você é louco, essa mina aí é tipo meu mano, tipo homem. A gente a respeita igual eu respeito os caras”. Então, me tornei a amiga ‘da hora’, a mina descolada, legal, mas não pra criar alguma coisa com ela, não pra ficar com ela, e sim pra ser aquela amiga, que é mulher e conhece o dito universo masculino – porque isso não é só pra homens, né, hoje sabemos.
P/1 – Você teve alguma paixão nessa época, algum namorado?
R – Então, não. Tive paixões platônicas diversas. Ah, gente, eu sou taurina, né? (risos) Não dá pra fugir muito. (risos) Então, sim, me apaixonei por diversas vezes, mas não namorei. Fui ficar com um menino depois dos dezoito anos. Antes dos dezoito, todos os meninos que eu pedia pra ficar, não queriam ficar comigo. Então, já fui apaixonada por vários meninos, sei lá, acho que dos sete até quase os dezessete, uns dez anos de paixão enlouquecida, que eu me arrumava... Quando a minha mãe falava: “Joyce, vai lá no Seu Garcia comprar um ovo, um quilo de carne”, aí eu tomava banho, me arrumava toda, me ajeitava – coração acelerado, porque eu sabia que o menino estava jogando bola lá na rua –, aí eu passava, assim, ele olhava, eu ficava: “Nossa, ele me olhou!” Chegava lá, escrevia no diário: “Querido diário, hoje eu passei, ele me olhou e deu um sorriso. Será que eu tenho chance?” (risos) E quando meu pai passava, também, ele cumprimentava meu pai; eu falava: “Nossa, meu Deus, ele falou com meu pai! Não acredito”. (risos) Tive essa paixão, assim, nossa, que aí, depois, eu encontrei a pessoa – há muitos anos, já era a Preta Rara da internet, da vida. Ele falou comigo e eu tomei um susto, porque eu nem lembrava. Eu olhei, assim, nos olhos, falei: “Gente, é o menino que eu gostava. Meu Deus do céu! Não, preciso avisar pra ele. Não vou deixar passar”. Aí falei: “Meu, já fui apaixonada por você, doente!”. Ele: “Caramba, sério?” Eu falei: “Sério!” Ele: “Pô, por que tu nunca falou?” “Ah, tu acha que é assim, que eu ia falar?” (risos) Não era tão simples naquela época. Ele: “Caramba, meu! Mas e aí, como você está? Está solteira?” Eu falei: “Não, querido. Fui apaixonada por você naquela época. Hoje não mais. Hoje é outro rolê”. (risos) Mas achei muito engraçado. Falei: “Nossa, acho que daí que inventaram que o mundo dá voltas, mesmo”, porque tipo: o menino queria ficar comigo, há pouquíssimo tempo atrás. Mas não, gente, era só uma paixão de infância, mesmo. Mas tive.
P/1 – Preta, você disse que aí você desenvolveu essas técnicas pra atrair os meninos, pra ficar próxima deles, e eles falavam: “A Preta Rara é mano”. Você já tinha esse nome? Quando foi que surgiu esse nome, ‘Preta Rara’?
R – Surge na infância, porque minha mãe me chamava de Rarinha. Porque, pra minha mãe, eu gostava de coisas diferentes de outras crianças. Minha mãe não tinha essa questão de gênero e tal, então ela achava que: “Ela gosta de futebol, de Fórmula 1, de UFC, então essa menina gosta de coisas de menino”. Aí depois: “Mas ela só quer ficar escrevendo. Escreve, escreve, escreve, escreve. Toda hora, todo mês. Nas compras, pede pra gente comprar um pacote de folha de sulfite”. Porque até hoje eu tenho essa coisa: eu não gosto de escrever em caderno com linha. Eu gosto de escrever na folha de sulfite, aí eu pedia pra minha mãe e ela achava diferente, sabe, as coisas que eu queria brincar e tal. Aí ela falou assim: “Essa pretinha é rarinha, Preta Rara” e ficou. Aí, na escola, começaram a me chamar de Preta Rara, porque eu tinha um All Star que minha mãe ganhou, a patroa deu um All Star velho pra ela, usado, e meu sonho era ter All Star, naquela época era o tênis ‘bãbãbã’. Aí o All Star tem aquela parte branca; eu pichei, peguei a caneta e escrevi, em um pé ‘Preta’, e no outro ‘Rara’. E só ia com aquele tênis, me achando toda, na escola, toda estilosa, e com uma correntinha atravessando, bem anos noventa, né? Um monte de colar colorido e ia pra escola, ‘toda, toda’. E com a minha camisa do Tupac, que é um cantor de rap americano. Aí eu ia toda mano, gingando. Tinha uma calça jeans também, que minha mãe me deu duas caças jeans, e em uma eu escrevi também, com caneta, na perna: ‘Preta Rara’. Então a galera achava diferente, né? Ninguém escrevia no tênis – pelo menos na minha escola – e escrevia na roupa, assim. Então, já tinha meio que a identidade das pessoas verem quem eu era. Já tinha essa questão. E a galera começou a me chamar de Preta Rara, desde a época do ensino médio e tal. Lógico, alguns chamavam de Joyce, mas tinha uns que reconheciam, por conta das duas calças jeans – que era o uniforme da escola – e o tênis All Star, que eu não tirava.
P/1 – Preta, com quantos anos você começou a trabalhar?
R – Olha, na real, eu comecei a trabalhar com uns treze anos, com a minha mãe. Na mesma velocidade que minha mãe teve da gente se mudar, ela teve também de ter inúmeras profissões. Minha mãe é uma pessoa que gosta muito de vender, então a gente já vendeu marmita na praia; a gente já vendeu cloro e Cândida, na rua. Esse ‘trampo’ eu não gostava, porque a galera da escola me via e começava a zoar, porque minha mãe ia com aquelas carrocinhas, igual da galera que cata reciclado na rua. Aquelas de madeira. Então, ia com aquelas carroças gigantes, pesadas, com vários tonéis de cloro, Cândida, materiais de limpeza. E aí, eu que ia gritando: “Limpeza. Cloro e Cândida. Olha o cloro! Olha o cloro! Temos cera líquida”, e aí, quando eu chegava na escola, os moleques ficavam: “Olha o cloro! Olha o cloro!”, zoando. Ela já teve vários trabalhos. Então, desde os doze anos. Agora, pra fora, pra além da minha família, eu comecei a trabalhar com dezoito, que aí foi trabalho doméstico. Mas trabalhando com a minha mãe, ela me pagava salário, era toda organizada.
P/1 – Ela que fazia a Cândida, o cloro? Como é que era?
R – Sim, a gente tinha uma distribuidora que entregava em casa os produtos concentrados, aí ela misturava água pra fazer o produto de uma forma certa. Tanto ela vendeu, assim, na rua, que depois ela conseguiu alugar uma loja de materiais de limpeza, aí tinha as prateleiras, direitinho. Era bem bonitinho. Aí era mais tranquilo, porque era dentro de uma loja e tal. E eu trabalhava lá com ela.
P/1 – E marmita na praia? Ela que cozinhava?
R – Sim, ela que cozinhava. Aqui em Santos existe uma lei que proíbe a galera que é dona daqueles quiosques de lanche, de fazer comida ali dentro. E aí, muitas das vezes, o próprio proprietário ou o funcionário fica trabalhando ali oito, doze horas, sem poder se alimentar. Não tem restaurante, ali, próximo. Os restaurantes que têm são caros. Então, pra galera ficar pagando dinheiro, maior grana, pra se alimentar... Então minha mãe começou a vender marmita pra essas pessoas. O nosso público-alvo eram as pessoas que trabalhavam nos quiosques de lanche, porque a galera não aguentava mais sentir cheiro de hambúrguer, os que não comiam comida. Só que era um trabalho que minha mãe fazia, que ela não tinha licença para trabalhar dessa forma, então a gente tinha que burlar os fiscais, porque senão o fiscal ia, pegava a marmita, jogava dentro de uma perua e ia embora. Multava a minha mãe. Então minha mãe colocava as marmitas dentro de um isopor e o isopor dentro de um saco de lixo preto. Aí, pra chegar até os quiosques, a gente ia andando pela água, como se a gente fosse catadora de latinha, entendeu? Nunca iam imaginar! (risos) ‘Mano’, minha mãe é muito criativa, ‘cara’! Nunca iam imaginar que aqueles sacos de lixo tinham comida. Aí, quando chegava nos quiosques... A gente direcionava e ia até lá nos quiosques, tirava a marmita muito rápido. Nossa, parecia que estava contrabandeando algo, mas era só comida, gente. Trabalhei assim também.
P/1 – E aí, o primeiro trabalho que você teve, assim, sem ser esse junto com a sua mãe, foi de empregada doméstica?
R – É, aí já foi como doméstica.
P/1 – Onde é que foi? Você que decidiu: “Quero trabalhar, vou ser empregada”?
R – Não, não foi assim não. Eu decidi que eu queria trabalhar, porque eu queria comprar as minhas coisas. Tipo: meus pais não deixavam faltar as coisas, mas tinha outras coisas que eu queria comprar e não tinha dinheiro. E eu queria trabalhar, sabe? Ser independente, ter o meu dinheiro, não ficar falando pra que eu precisava do dinheiro. Então eu entreguei currículo em diversos lugares lá em Santos, mas não me chamaram pra trabalhar em nenhum lugar. Aí teve uma amiga que falou que a tia dela tinha acabado de operar e que ela precisava de alguém pra fazer algum trabalho leve na casa dela, que a tia dela ia até ajudar essa pessoa, tal. Era mais para os lugares mais altos, que ela não ia poder alcançar por conta da operação. E assim eu trabalhei, durante uma semana, duas, três; aí, na terceira semana já pediu pra eu fazer algo a mais, pra limpar mais coisas do que já estava combinado. Depois de um mês eu tinha horário pra entrar, mas não tinha pra sair, e aí eu comecei a ver os abusos. E quando eu arrumei esse emprego, eu falei pra minha mãe, minha mãe não quis deixar eu ir, a gente teve uma discussão feia. A minha mãe até propôs que ela voltaria a trabalhar com faxina, porque nessa época ela não estava trabalhando mais, ela teve tendinite muito forte – inclusive até hoje ela tem –, e ela não conseguiu mais dar conta de limpar uma casa sozinha. Daí ela falou: “Eu volto, então, a trabalhar, eu dou um jeito, pra você não ter que ir, porque eu não quero que você siga o mesmo caminho que eu e tal”. Mas foi isso, porque currículo com boa aparência nunca era pra uma pessoa igual a mim. A boa aparência que eles pediam eu não me enquadrava, pra eles. Então, eu não conseguia arrumar emprego em nenhum lugar, aí eu fui doméstica durante sete anos.
P/1 – Na mesma casa?
R – Não. ‘Ixi’, passei por diversas casas. Nossa, sei lá, não sei nem contar. Tem patrão aí que, depois que eu fiz o livro, vem querer pedir desculpa, e eu falo: “Gente, mas quem é você? (risos) Não lembro de você, não” “Ai, Preta, comprei o seu livro, que maravilhoso! Nossa, fiquei com medo de ter algum relato da minha casa”. Eu falei: “Olha, pode até ter, mas é que eu não lembro quem é você. Se tivesse, eu falaria também”. (risos) Porque, inclusive, de tudo que foi criado, a página, o primeiro relato – que foi o meu – que deu origem a tudo isso [foi] do meu último emprego como doméstica, em 2009. Eu mandei o livro pra minha ex-patroa. Eu mandei. Não tive nenhuma resposta, mas eu sei que o livro chegou até ela. Porque, quando eu criei a página, a filha dela me mandou uma mensagem, falando que eu estava envergonhando a família dela, porque eu fui na Fátima Bernardes e falei. Eu falei: “Gata, falei Jussara, não falei seu sobrenome, não falei o nome da empresa dos seus pais. Então, você é que está querendo, aí, que eu dê o nome da sua mãe para o povo. Não estou envergonhando ninguém. Na realidade, quem tem que se sentir envergonhados são, realmente, vocês. Eu espero que vocês não tenham continuado com essas práticas, com as novas trabalhadoras aí na casa de vocês”.
P/1 – Que história que é?
R – Referente ao meu último emprego. Eu fui contratada pra ser cozinheira, e a patroa me impedia de me alimentar da própria comida que eu fazia. Ela não me dava ticket de alimentação, não podia comer lá na casa dela. Aí, no dia que eu levei marmita, teve uma reunião na casa dela, né, referente à empresa dela e uma mulher lá da reunião resolveu ir pra cozinha, levar um prato, sei lá. Era eu que era pra tirar a mesa. Essa mulher, não sei por que até hoje, resolveu ir pra cozinha. Ela viu que eu estava comendo tipo na porta da área de serviço, num pote. Aí ela falou: “Menina, senta com a gente. Sobrou um monte de comida lá, por que você não foi lá comer com a gente?” Eu falei: “Não, eu vou comer aqui mesmo”. Aí essa mulher chegou brava e cobrou a minha patroa, falou: “Nossa, sua empregada está comendo lá na área de serviço, num pote. Por quê?” Aí no outro dia minha patroa me mandou embora, falando que eu envergonhei a família dela perante a visita dela. E foi esse relato que eu coloquei na internet. Esse relato é de 2009, que foi meu último emprego como doméstica, eu postei na internet em 2016.
P/1 – Que outras passagens você tem, assim?
R – Tem várias, né? Casa que eu não podia ir ao banheiro. Tinha uma patroa que falava pra mim que já tinha combinado com a padaria – porque a casa dela era um apartamentaço, assim, grande, e embaixo tinha uma padaria – que as domésticas e as diaristas que trabalhavam na casa dela podiam usar o banheiro dos clientes da padaria, que o dono da padaria deixava. Então, às vezes, eu estava apertada, precisava usar o banheiro, aí tinha que ir lá, sair do apartamento pra ir ao banheiro de cliente da padaria, porque eu não podia usar o mesmo banheiro que o dela. Várias lembranças. Tem uma lembrança também de uma vez – que, inclusive, é a mesma casa de 2009, que deu origem ao relato – que as filhas dessa minha ex-patroa iam fazer uma viagem. As meninas já eram grandes, tinham vinte e poucos anos. Aí elas chegaram e falaram... Compraram um monte de coisa pra levar pra essa viagem, pra essa casa na praia: “Joyce, não tem espaço pra guardar as coisas de comida”. Eu: “Não tem espaço porque sua mãe acabou de fazer compras”. Ela: “Tá, mas eu vou guardar onde? Eu quero guardar as minhas compras”. Eu falei: “Não sei. O armário está lotado, a sua mãe acabou de fazer compras”. Aí Essa menina pegou um saco de lixo e começou a jogar as coisas fora, que ela achava que tinha que jogar pra poder guardar as coisas dela. Aí a bolacha que estava no pregador, assim, que estava com o negócio fechado, uma bolacha só que eu tinha visto a mãe dela abrindo no mesmo dia, embalagens fechadas, arroz. Ela começou a pegar um monte de coisas e ela falou assim: “Isso aqui é pra você jogar no lixo, tá? Joga no lixo, porque a minha mãe é exagerada. Pra que comprar tudo isso?” Aí eu: “Mas a sua mãe acabou de comprar” “Não, ela nem vai perceber. Joga fora. Eu estou falando que é pra jogar fora, é pra jogar fora”. Eu falei: “Tá bom”. Aí eu amarrei e deixei ali no canto e, quando eu ia embora, eu jogava os lixos todos da casa, embaixo, no condomínio, aí eu peguei esse saco de lixo e levei pra minha casa. Eu fiquei chorando a viagem inteira, né? Falei: “Meu, tantas pessoas passando fome, cara. Eu não acredito que essas meninas fizeram isso”. Elas pegaram coisas do freezer também, porque elas fizeram uma compra que elas iam ficar, sei lá, uma semana, parece, nessa casa de praia. E coisas do freezer, tipo peixe, carne, que tudo estava bom, a mãe dela tinha acabado de comprar, elas jogaram tudo isso fora. Eu levei pra casa. E já era casada, nessa época, chorando a viagem toda pra chegar em casa, me tremendo, aí meu ex-marido falou: “Nossa, o que está acontecendo?” Eu lembro que eu estava bem nervosa, eu rasguei o saco todo e joguei no tapete da sala e falei: “Olha, a gente vai se alimentar de lixo. Isso é lixo”. Aí ele: “Está maluca, como assim lixo?” Eu falei: “Isso é lixo. Para as filhas da minha patroa, isso é lixo. Ela falou pra eu jogar isso fora”. Aí ele também ficou emocionado, a gente começou a chorar e falar: “Meu, quantas pessoas devem ser assim, que nem essas meninas, né?” E essa passagem é bem nítida e recente, assim, na minha vida.
P/1 – Preta, quando você começou a trabalhar de empregada doméstica, você pensou assim: “Vai ser temporário na minha vida, não quero ser isso”? Em que momento você falou: “Vou mudar de vida”?
R – Eu falei que ia ser temporário desde o primeiro dia que eu cheguei na casa da tia da minha amiga, porque não era uma profissão que eu queria. Porque eu lembro que eu sempre fui muito ligada com essa questão de estilo de roupa e tal, e aí, quando eu era criança, eu me imaginava indo, trabalhando com a bolsa combinando com o cinto, com o sapato, imaginando uns looks, uns terninhos. Eu ficava me imaginando dessa forma. E até quando eu fiquei, eu vi que eu estava há muito tempo já, eu falei: “Caraca, sete anos que eu sou doméstica”. Sei lá, depois de um ano eu já fiquei desesperada. Aí eu comecei a comprar essas roupas pra ir trabalhar. Tinha patroa que dava risada. E eu lembro de uma patroa que cutucou o marido, assim, na minha frente, e falou: “Olha isso! Essa mina está achando que é professora! Está achando que é advogada. Olha como ela vem fazer faxina aqui em casa! Está mais arrumada do que eu, quando vou dar aula na universidade. Menina, para de graça!” Porque eu ia toda arrumada, e pra ela eu era uma doméstica que não tinha por que andar assim. Então eu entrei nessa profissão já sabendo que eu não ia ficar pra sempre. O ‘para sempre’, ali, não ia existir.
P/1 – E em que momento você largou e falou: “Não quero mais isso”?
R – Eu só consegui largar quando eu consegui arrumar uma coisa melhor. Em 2009 eu consegui ingressar na universidade, com muito esforço, juntando grana pra matrícula e para a mensalidade – tinha que dar as duas, assim, de uma vez, na faculdade privada, na Universidade Católica de Santos, na Unisantos. E aí, o primeiro semestre da universidade, do curso, eu continuei sendo diarista, porque eu ganhava mais do que doméstica. Porque diarista, cada dia estava numa casa, e aí era o valor na hora, então ganhava mais. Aí, até o primeiro semestre eu era diarista. No segundo semestre eu consegui um estágio muito bom na universidade, e aí eu fui ser educadora lá no museu, no Monumento Nacional Engenho dos Erasmos. É um museu a céu aberto que existe lá em Santos. E ali foi muito bom pra mim, porque eu fiquei trabalhando ali durante dois anos com o que eu estava pesquisando, uma área de pesquisa muito forte também na parte de Arqueologia, que, na época, era o que eu tinha interesse. Mas também a universidade, quando eu ingressei, eu já entrei sabendo que eu queria ser professora de História. Diferente dos meus amigos, que queriam ser Indiana Jones. (risos) Queriam descobrir dinossauros. Legal, mas eu queria ser professora de História. Então, no segundo semestre do primeiro ano, eu deixei de ser doméstica.
P/1 – Por que você escolheu História, fazer faculdade de História?
R – Eu escolhi História porque, na época da escola, mesmo, eu comecei a me interessar, assim, sei lá, umas viagens que eu fazia – e faço, ainda, hoje. Eu ficava assim: “Caramba, meu, todo mundo tem uma história, né? Como que é a história de outros países? Porque aqui, o Brasil, se deu dessa forma. Mas no Japão, é a mesma forma? E os países têm, todos, a mesma idade? Como surgiram as coisas?” Então eu sempre fui curiosa nesse sentido, desde muito cedo. Aí, no ensino médio mesmo, eu tive uma professora muito boa para aquele momento. Hoje (risos) eu não concordo com o que ela passava, a forma de falar, o conteúdo, mas era uma pessoa que me instigou a querer, realmente, estudar História. E aí, quando eu conheci o movimento hip hop e comecei a escrever e escutar rap, eu percebi que também eles contavam uma história de um povo que eu não via na TV, que eu consumia bastante, né. Quando eu dou palestras, eu vou falar em diversos lugares, e falo um pouco sobre a minha infância. Eu sempre começo falando que eu tenho pai e mãe presentes, mas que quem me criou foi a TV brasileira, porque era algo que eu assistia muito. A televisão era todos os dias. Só era desligada quando a gente ia dormir. Então, as minhas referências eram essas, a TV. Por isso é que me deu essa vontade de estudar História, ouvindo as músicas de rap. Pelo que eu percebi, eu falava: “Caraca, mas de que eles estão falando? Nossa, mas já aconteceu isso comigo! Caramba, que música louca, que está dando vontade de me sentir bonita”. Aí eu bati o martelo mesmo, falando assim: “É isso que eu vou fazer”. Quando eu fui escrever a música Falsa Abolição, que eu escrevi em 2007, eu fiz uma pesquisa profunda sobre parte da história do Brasil, porque na escola falava muito que os africanos vieram pra cá para serem escravizados. Eu falava: “Meu, mas como assim alguém vai vir, sabendo que vai se ferrar? Vai vir sabendo que vai ter a vida ceifada e tal”. Comecei a pesquisar: “Mas espera aí, o que aconteceu depois do dia treze de maio de 1888?” Eu fiz uma pesquisa e me vieram várias coisas: lei do Sexagenário, lei do Ventre Livre. Algo que eu nunca tinha escutado na escola e que fez total diferença, assim, pra eu entender o mundo na época, entender o Brasil que eu estava vivendo em 2007. Aí eu falei: “Nossa, é isso”. Aí, conversando com meu pai, meu pai falou: “Olha, existe uma faculdade chamada História”. Aí eu: “Nossa! Tem isso?” Ele: “É, História, que aí você pode ser professora de História, pra dar aula na escola pública e escola privada, ou você pode ser pesquisadora, você pode trabalhar em empresas, em veículos de comunicação, fazendo pesquisa”. Aí eu: “Uau!” Então, em 2009 eu ingresso num curso de História por conta disso, pra entender o passado, compreender o presente e escrever o futuro. Porque coisas que já aconteceram estão voltando agora (risos) em 2020. Então, pra não cometer os mesmos erros dos nossos antepassados.
P/1 – E aí, na época da faculdade, você continuou morando com seus pais? Você foi morar sozinha?
R – Não, na época da faculdade eu já era casada. Eu fui casada durante dez anos.
P/1 – Como você conheceu seu marido?
R – Então, o Ricardo é meu ex-marido, o conheci em Santos. A gente tinha vários amigos em comum, a gente tinha um amor, assim, que nos unia, que era através da música. Então, os dois gostavam muito de rap, de música. Mas, para ser mais preciso, o rap. Eu gostava muito de rap nacional, e ele gostava muito de rap internacional. Rap americano, rap libanês, japonês, enfim. Aí a galera falava: “Meu, caraca, velho, você tem que conhecer um cara que vocês têm tudo a ver. Nossa, eu, conversando com você, parece que eu estou conversando com ele”. E a galera falava isso também dele. Mas a galera que falava queria que a gente conversasse mais pra ter a união de música, sabe? Das afinidades musicais. Pelo menos a galera falava isso pra gente. Nunca era pensando que um dia a gente ia ficar, namorar e tudo o mais. Aí a gente se encontrou em um show, no meu, eu estava cantando e ele apareceu nesse show. Uma amiga nossa, em comum, falou assim: “A mina que eu falei é essa daí do Tarja Preta, a Preta Rara, pô. Vocês têm que trocar ideia, vocês são os maiores loucos por música”. E aí, nesse dia, eu o conheci, subi pra cantar, e aí ele disse que, quando eu desci do palco, tinha uns caras querendo tirar foto comigo, e um cara perguntou pra ele se podia tirar foto comigo. Falou assim: “Pô, licença aí, boa noite, eu posso tirar uma foto com a sua mina?” Ele: “Não, pô, pode ir, (risos) de boa”. Eu falei: “Como assim?” Boy todo territorialista. Eu não tinha dado nem um beijo no garoto, ele já passando só a posição dele ali perto, fez com que as pessoas já entendessem que ele tinha algo comigo e tal. E a gente se conheceu dessa forma. Foi num show meu. A gente ficou dez anos juntos, e foi muito legal. Ele foi um cara mega essencial para as coisas relacionadas ao corpo. A minha aceitação, de aceitar que eu sou gorda, que eu sou bonita, de ir à praia de biquíni, foi através do Ricardo, mesmo. Ele me ajudou em tudo, assim, e ele acompanhou vários processos importantes da minha vida. Ele acompanhou quando eu era empregada doméstica, quando eu deixei de ser empregada doméstica e ingressei na universidade. Acompanhou, também, um pedacinho, quando eu parei de dar aula, decidi parar de dar aula pra só fazer as coisas que eu faço ligadas à arte. Então, hoje em dia, a gente se fala dessa forma. Ele é meu ex-marido e meu melhor amigo agora. (risos) Está morando em Barcelona, está super bem, com a mulher dele, com a Verônica, que é outra mulher incrível, também.
P/1 – Você começou daquela época a fazer os versos rimados, que seu pai pegou, e quando é que você começou a assumir para si que fazia rap, e daí começar a dar shows?
R – Eu comecei a assumir essa questão do rap profissionalmente em 2005. Eu montei um grupo de rap feminino lá em Santos, que chamava Tarja Preta que, naquela época, a gente não falava, não utilizava muito essa palavra ‘diversidade’. É uma palavra que eu também não gosto muito, mas as pessoas utilizam muito. Mas já tinha diversidade no nosso grupo, naquela época, em 2005, porque eram duas mulheres pretas, uma mulher branca e uma mulher indígena. Eram quatro mulheres fazendo rap, em 2005, numa cidade onde o funk imperava. Eu via que os caras, quando viam a gente se apresentando, tinham uns caras que falavam assim: “Nossa, meu, por que vocês não vão cantar funk? Vocês não vão ser ninguém com rap, vocês não vão ganhar dinheiro. O funk que dá dinheiro. Da hora, a Preta Rara tem uma voz forte, da hora pra cantar, então a Preta Rara canta e vocês três dançam”. Por quê? Porque a Preta Rara era gorda, aí, pra ele, a gorda não podia dançar, e as outras três meninas eram magras, de corpo padrão, que a sociedade gosta. E sempre falavam isso pra gente. A gente persistia falando: “Não, a gente quer fazer rap, fazer rap” e aí, meu primeiro evento foi num show numa quermesse, aquelas festas juninas de bairro. Foi lá no meu bairro, mesmo. Chamaram a gente pra cantar. A gente já estava ensaiando há um tempo, e foi um nervosismo. A gente cantou e a galera ficou assim: “Nossa, meu! Quem são essas meninas?” Teve uma época que a galera chamava: “Aquele grupo lá das meninas de São Paulo”. Porque São Paulo sempre foi o berço do hip hop. Aí todos os artistas que eram bons no hip hop, a galera achava que era de São Paulo. A gente era de Santos e a galera falava: “Aquelas meninas do Tarja Preta, de São Paulo, que cantam rap?” Eu falava: “Não, a gente é daqui de Santos”. Aí a galera: “Nossa!” Então, meu primeiro show profissional foi em 2005, quando eu acreditei que: “Não, é isso que eu quero fazer. O rap, pra mim, é uma palavra da periferia. Então, eu vou relatar os problemas sociais através da música”. Isso lá em 2005.
P/1 – Me perdi um pouquinho na data. Você já estava dando aula?
R – Não.
P/1 – Foi bem depois?
R – Não, é assim: o rap foi em 2005; eu entrei na faculdade em 2009 e comecei a dar aula em 2011.
P/1 – Mas aí você dava aula e continuava nos teus shows de rap?
R – Isso. Quando eu era doméstica, eu já cantava rap. Inclusive, teve até uma entrevista que não foi ao ar lá na filial da Globo, que é a Tribuna, eles indo na casa de uma patroa minha, filmando. Tinha umas matérias de jornal também falando... Como é que é... ‘Da faxina direto para os palcos’. (risos) Tinha essa questão da cidade falar sobre isso, sobre o meu trabalho, já.
P/1 – Alguma patroa tua reclamava que você fazia show, rap?
R – Não. Nessa parte, não, porque, não sei, acho que não tinha uma grande visibilidade, assim, na cidade. Era algo mais da periferia, do bairro. Então, a maioria nem sabia. As dificuldades que eu tinha era quando eu falava que queria estudar, que ia ter que sair mais cedo. Aí tinha esses problemas, assim. Agora, com relação a show, elas nem sabiam.
P/1 – Depois, você começou a dar aula e ficou quanto tempo dando aula?
R – Eu dei aula durante seis anos. De 2010 a 2016, seis anos.
P/1 – Que escola que era? Sempre na mesma?
R – Não. Eu dei aula, um pouco, no Estado, em três escolas estaduais, e depois fiquei o maior tempo numa escola privada, lá na periferia de São Vicente, no Colégio Exemplo. Dei aula lá. Foi muito boa essa passagem por lá.
P/1 – Como é que foi essa experiência, de você dar aula?
R1 – É uma das coisas que eu sinto mais saudade, assim, do meu passado, é de mim dentro da sala de aula, mesmo. Eu gostava muito. A questão, também, do ensino cíclico, né? Eu sempre falava para os meus alunos: “Gente, eu venho aqui pra aprender, porque eu acho que pouca coisa eu ensino. É mais vocês que me ensinam, do que eu ensinar algo”. Então era muito gratificante ver a evolução também, né, dos adolescentes, a construção do pensamento, a construção do pensamento crítico, sabe, deles reconhecerem alguma coisa, sei lá. Assistirem uma notícia e depois, no outro dia, querendo trazer aquela notícia para a sala de aula, e eles já terem uma opinião diferente do que o que eles viram. Então eu ficava muito feliz quando isso acontecia. Tipo: eles viram o jornal em um sentido, aí eles organizavam o pensamento e tinham uma opinião contrária do que eles viram, sabe? Não era pegar aquela informação e notícia já mastigada. Não, eles ficavam destrinchando. Aí eu ficava feliz, assim. Gostava muito.
P/1 – Você deu aula para o quê, fundamental II? Qual faixa etária?
R – Hum, hum. Sim, eu dei aula para o ensino fundamental II e ensino médio. Então, era de onze a dezessete anos.
P/1 – E nesse colégio particular você teve algum tipo de preconceito? Ou já não tinha mais isso, nessa escola?
R – Eu tenho algumas dúvidas com relação a isso. Quando eu ingressei nessa escola, eu já era a Preta Rara, né? Lá em Santos as pessoas já me conheciam, a escola também. Então, vamos dizer, assim, houve um alvoroço, tipo: “Nossa, a Preta Rara vai dar aula aqui”. Até perante alguns pais, né, porque eu já tinha um trabalho consolidado na cidade, já fazia oficinas de rimas, já fazia um trabalho social, assim, em diversos lugares. Então até hoje eu não sei o quanto isso também me favoreceu para que eu pudesse trazer coisas novas para as salas de aulas, sabe? Todos os projetos pedagógicos que eu via que estava dando certo em outros lugares, conversando com outros professores ou projetos que eu criava, eu conseguia ministrar lá na minha escola e a diretora amava, entendeu? E repassava para outros professores. Falava: “Gente, vocês têm que trabalhar com a lei 10639, que obriga o ensino de África nas escolas”. Então meio que eu já trazia tudo mastigado para os outros professores também. Tipo: não é só História; Matemática, para os jogos africanos; Ciência, todas as outras matérias. Já trazia os projetos interdisciplinares, e a escola amava. Então eu não tive problemas com relação a isso, e aí está a minha dúvida: não sei se é porque eu já era Preta Rara, conhecida dessa bolha de Santos, ou se realmente a escola estava disposta.
P/1 – Preta Rara, e quando é que você sai da escola e fala: “Eu vou viver só da minha arte”, e que você também começa a estourar nas redes sociais? Enfim...
R – Em 2016 eu saio da escola, porque estava impossível, um processo desumano de conseguir dar conta de tudo. Eu morava em Santos ainda, tinha muitas atividades aqui em São Paulo, e vinha fazer shows, às vezes entrava no palco duas horas da manhã – sei lá, na Vila Madalena, na zona leste – só que oito horas da manhã, em Santos, eu tinha que estar na sala de aula, bonita, acordada, bem, como se nada tivesse acontecido, como se eu tivesse dormido as oito horas normais da noite. Então estava muito, muito desgastante, assim. Aí eu vi que eu não estava conseguindo me dedicar ao máximo à licenciatura, que era algo que eu gostava. Eu não estava conseguindo preparar as aulas da forma que eu gostava de preparar, aí já estava dando uma embolada, sabe? Às vezes acabava preparando aula no meio do caminho, assim, pesquisava alguma coisa na internet, criava, só pra poder passar, e eu falava: “Não. Isso não é justo, comigo, com a carreira que eu construí, academicamente falando. E muito menos justo com os alunos que estão ali para receber o conhecimento e tal. Tipo: se eu faço dessa forma, eles vão passar de ano e vão deixar de ter esse conteúdo que eles deveriam ter com a idade que eles têm hoje”. Então, foi uma cobrança minha, mesmo, de perceber e falar: “Não dá”. A diretora ainda insistiu, falou: “Não, a gente pode mudar, te dar uma carga horária menor”. Quando eu entrei lá, ela já foi bem solícita, assim. Por exemplo, ela sabia que eu fazia shows aos finais de semana, então, na hora de distribuir as aulas, ela já não me dava aula na segunda-feira. Isso me ajudou muito, né? Então, tipo, segunda-feira era o dia que eu tinha pra descansar do final de semana intenso, mas também era o único dia que eu tinha pra ficar em casa, pra organizar a minha casa, preparar as aulas da semana inteira, porque se eu já tivesse show na quinta-feira, já deixava a aula preparada na segunda-feira, que eu sabia que ia ser pauleira. Mas me ajudou bastante. E aí, por exemplo, também, de terça-feira a sexta-feira – que eu dava aula terça-feira, quarta-feira, quinta-feira e sexta-feira –, ela não me colocava nas primeiras aulas, pra eu já pegar as primeiras aulas. Não. Eu entrava a partir da segunda aula, que era oito horas da manhã. Então, já ajudava um pouco. Mas aí, mesmo assim, em 2016 realmente eu tive um divisor, assim, na minha vida, muito difícil. Acho que foi uma das escolhas mais difíceis que eu tive que fazer, assim. Duas, né? A questão de parar de lecionar e sair de Santos e vir morar em São Paulo. Quem é taurino vai entender. (risos) A gente é difícil – você é taurina também? – de tomar decisões, né? A gente gosta dessa questão do fixo, do sólido, da segurança. Então, pra mim, foi uma das escolhas mais difíceis, porque, imagina, eu sou mulher, preta, retinta, morando num país que é mega racista, mega gordofóbico; estou deixando de ter a minha estabilidade financeira, querendo ou não, mesmo não sendo o valor ideal que eu ganhava na escola, mas existia um valor, tinha os benefícios, carteira registrada e tal, registro em carteira. Então, tinha uma estabilidade, né? Você sair dessa estabilidade pra viver de arte, num país como esse, que você não sabe como vai ser, se vai dar certo, como é que vai... Mas aí, graças a Jah, aos orixás, deu tudo certo, e eu também tenho um grande leque de trabalhos, que aí também essa questão que me consome um pouco, por conta dessa minha escolha. Eu não pude viver só de uma coisa, né? Eu não parei de dar aula pra cantar rap, somente isso. Porque senão não estaria morando onde estou, não ia conseguir pagar o aluguel do apartamento que eu moro. Realmente, foi uma série de fatores. Eu faço oficina de turbantes; faço oficinas de rimas para as escolas, utilizando o hip hop como ferramenta pedagógica para os professores e como ferramenta de ensino para os alunos. Então, vários projetos. Dou consultoria pra empresas, sobre essa questão da igualdade racial. Então, é um combo de coisas que me fez ter essa garantia que eu tenho hoje, que também não é nada garantido, né, mas me deixa um pouco mais tranquila, assim, de ver que ainda é possível viver das coisas que eu acredito, que eu crio e faço.
P/1 – Você fala de oficina de turbante?
R1 – Sim, eu sou turbanista. Eu conto a história de parte de África através das amarrações de turbantes. Porque cada amarração, em alguns países, vai dizer qual estado civil da pessoa, a condição social, a classe social, enfim. Eu dou esse tipo de aula. Já fiz esse trabalho que é pra chamar atenção tanto da estética negra, como contando um pouco da nossa história, que é a história do Brasil também. Eu já fiz essas oficinas em penitenciárias, em lugares mega inusitados. Penitenciária foi um lugar ok, porque eu já tinha realizado outros trabalhos, tem muito a ver também, né, que fala sobre essa questão da estética, da autoestima dessas mulheres. Mas eu já dei, por exemplo, na oficina de rima, pra uma empresa de segurança (risos), em Curitiba. Até hoje... Quando eu recebi esse convite, eu falei: “Gente, mas será que eles entenderam que é oficina de rima? Que eu vou dar oficina de rima para os seguranças de Banco lá de Curitiba?” Mas porque, na época, veio com essa estranheza. Mas foi muito legal essa oportunidade que eu tive, porque aí eu criei uma outra coisa, aí eu vi as possibilidades que tem. Eles queriam algumas atividades onde os funcionários pudessem se aproximar e falar sobre diversos temas. Estava rolando alguns casos de violência contra mulheres de alguns funcionários, então a gente utilizou oficina de rima como um chamariz, pra chamar atenção desses caras que gostavam de rap e tal, pra falar sobre feminicídio, machismo e tudo o mais. Então, meu trabalho vai ganhando essas ramificações. Muitas vezes eu crio uma coisa, mas alguém me contrata para uma coisa e eu tenho que ressignificar isso, pra fazer sentido para aquela empresa, para aquele lugar. E a oficina de turbante eu aprendi com a Dona Mamady, que é uma mulher maravilhosa que eu tive a sorte de conhecer, uma senegalesa, que inclusive trabalha junto com o Isaac Silva, que é um grande estilista. A Mamady também é uma grande estilista, e ela vende os tecidos africanos aqui na República, no Centro de São Paulo. Eu aprendi com ela em 2007, numa conversa, de tarde; conversando ela foi me ensinando, eu perguntado, perguntando, perguntando... Foi bem importante.
P/1 – Preta, a gente pode falar aqui por três dias; você tem uma história maravilhosa, é um privilégio estar aqui te entrevistando. Olhando pra sua trajetória, se você tivesse que mudar alguma coisa, você mudaria alguma coisa na sua vida?
R – Sim, mudaria. Por exemplo: esse lugar que eu ocupo é importante, porém é um lugar que tem uma marcação social muito pesada, assim, que é algo que eu estou tentando, há algum tempo, virar essa chave. Ou seja: eu me tornei essa ativista que as pessoas me chamam de militante, outras de ativista, pelo fato de defender algo simples, que era a minha humanidade, e os meus direitos. Então eu comecei a expor as minhas opiniões na internet, numa época onde eu não tinha dinheiro pra pagar uma terapia, aí eu colocava lá as coisas que eu estava sentindo, sofrimento, as minhas alegrias, pra ver se alguém estava passando pela mesma coisa que eu estava passando, com uma busca desenfreada de saber se: “Meu, só eu que passo por isso? Eu preciso saber se tem outras pessoas que passam pelas mesmas coisas que eu passo, pra saber como elas estão se organizando na vida, como elas conseguem ir além do que já estava predestinado”. E aí, com isso, vieram muitas pessoas, se identificaram, através de um post, um texto, e falaram: “Nossa, Preta Rara, eu sempre pensei isso, mas eu nunca tive essa ideia de escrever. Nossa, eu nunca soube falar o que eu estava sentindo, mas é exatamente isso que eu estou sentindo, que você está falando”. E isso me levou para esse lugar onde as pessoas acham que Preta Rara é só dor, que eu só falo de racismo, das coisas ruins que aconteceram na minha vida. E também me levou pra esse lugar, de algumas pessoas, ainda em 2020, acreditarem na meritocracia. Então, existem muitas pessoas que usam minha história como um grande case de sucesso: “Olha a Preta Rara, era empregada doméstica, conseguiu fazer História, quando entrou na faculdade era faxineira e conseguiu pagar a faculdade, aí venceu na vida”, como se as oportunidades para as mulheres pretas fossem iguais para todas, né? Sendo que cada pessoa tem a sua história, a sua narrativa, é protagonista da sua própria história, e não somos todos iguais. Então, eu mudaria essa questão, sabe? Se eu pudesse voltar o tempo, eu não sei se eu ia me expor tanto da forma que eu me expus na internet, que me leva a esse lugar, de algumas pessoas acharem que eu sou a guerreira, a fortaleza, que não se abala, sabe? De várias marcas ainda me procurarem quando o assunto é sobre diversidade, desigualdade. Sempre a partir das minhas dores, e nunca das coisas que eu tenho e faço ou tenho vontade de fazer, que muitas das vezes ficam escondidas, não tenho abertura pra poder mostrar quem é a Preta Rara além da dor, além do sofrimento, além das coisas ruins que aconteceram na minha vida. Então, as redes sociais vieram pra isso, né? Uma rede mais precisa, que é o Instagram, tem facilitado muito essa nova narrativa que eu estou trazendo para as pessoas, de perceber que: “Gente, Preta Rara erra, porque ela é humana”. Então é um momento que eu estou tentando humanizar quem eu sou, porque eu vejo que muitos meios de comunicação, muitas marcas, muitas empresas querem o que eu tenho pra falar, e não realmente quem eu sou, de fato. É super raro alguns trabalhos que eu faço, que vão além da expectativa que as pessoas já esperam. Se eu estou num lugar, as pessoas: “Preta Rara vai falar de racismo, sobre as coisas que aconteceram no trabalho doméstico”. Não, eu sou muito além. E aí, nessa questão de ser muito além, uma coisa que me chamou muito a atenção, que acho que foi em 2018, se eu não me engano, foi um convite maravilhoso, o primeiro e até agora único. Não, tiveram outros, mas foi o primeiro convite importante que me chamaram: o Instituto Tomie Ohtake me convidou pra fazer uma crítica de duas obras. Uma crítica presente, né, dentro de uma exposição deles. Eram dois quadros que eu tinha que chegar lá, analisá-los, e falar a minha percepção daquela obra, perante os estudantes de História da Arte de algumas universidades que estavam lá. E aí, quando eu recebi esse convite, minha produção me passou, eu falei: “Caraca!” Tipo: abriu um mapa, assim, né? Abri um mundo de possibilidades. Então eu fiquei pensando: “Caramba, se não houvesse racismo, gordofobia e todas essas questões que me atingem, provavelmente era isso que eu estaria fazendo: uma crítica de arte, um show falando sobre outras coisas, não falando sobre violência, falando sobre natureza, sei lá. Falando das coisas que eu gosto. Eu tenho, hoje – contando aqui em casa –, eu fui molhar as plantas e, nesse momento de isolamento social, eu percebi que eu comprei mais plantas ainda, aí eu fiquei contando e falei: “Nossa, eu tenho 29 plantas. Gente, é muita planta para um apartamento pequeno desse”. E eu poderia estar falando sobre isso: sobre essa minha conexão de cuidar das plantas, dessa questão da culinária afetiva que eu gosto, que são as lives que eu chamo de Rara Rango, que eu estou ali cozinhando para as pessoas, me vendo cozinhando e falando das histórias da infância ligadas à alimentação, como era na casa da minha vó, e as pessoas também falam das histórias delas. Então, eu estaria falando sobre isso, e o único meio de comunicação que me deixa, me dá abertura pra eu falar, é o meu próprio perfil no Instagram, porque quando eu falo sobre as outras coisas que eu faço também, as pessoas só querem essa parte mais... Como que eu vou falar? ‘Embativa’, né, que é a questão da luta contra o racismo e tal. Mas, na realidade, nada disso foi programado. Eu não me programei pra crescer, ter 35 anos e ser ativista, ‘saca’? E, para mim, também, isso não é nem profissão. Na realidade, todas as coisas que eu falo, é na questão de tentar garantir o meu direito e o direito das outras pessoas, né; opinar e falar sobre as coisas que me atravessam. Então, as coisas que eu falo, da questão de racismo, machismo, e todas as outras opressões, é pra dizer que nós estamos aqui. Então, se eu tivesse que mudar alguma coisa, eu mudaria isso. Eu falaria sobre outros assuntos pra tentar me humanizar a cada dia. A Preta Rara de 2020 está nesse exercício de humanizar, de que eu não sou a guerreira. Todo mundo escreve lá: “Guerreira, perfeita, nunca errou”. Eu erro pra caramba e tenho o direito de errar. Essas nomenclaturas que as pessoas colocam na internet é um peso gigantesco para as mulheres pretas, ‘saca’? Porque outras pessoas podem errar, né, várias pessoas erram. E mega feio. Aí erram, às vezes escrevem uma nota de esclarecimento, falando que não foi a intenção, pede desculpa; passa uma semana, todo mundo esqueceu. E aí eu fico pensando: “Gente, se um dia eu cometer um erro, será que, também, se eu soltar uma nota de esclarecimento falando que não foi a minha intenção, vão me desculpar?” Porque me colocam nesse lugar de perfeita, que nunca errou. Então, eu acho que eu mudaria isso, assim. Eu traria uma nova narrativa. Se eu tivesse o poder, lá atrás, de prever o que estaria acontecendo, assim. Porém, também não me arrependo de nada que fiz. Foi importante, foi necessário, não só pra mim, mas para várias outras mulheres também.
P/1 – Preta, o que você achou de ter sua história... Contar sua história e deixar registrada no Museu da Pessoa?
R – Uau! (risos) Eu achei muito importante. Quando eu comecei essa entrevista, falando que sou uma mulher adoradora... Se criar uma seita de oralidade, lá eu estarei. (risos) Eu gosto muito dessa questão da oralidade, da história das pessoas, e gosto muito também desse lugar chamado museu, onde guarda e preserva a história humana, da humanidade. E fico muito lisonjeada de ter o meu relato registrado nesse Museu da Pessoa, dessa forma, com todos os cuidados também que você teve, de trazer a história. Você viu que eu fiquei um pouco, no começo (risos), porque é assim que a gente é, né? A gente não sabe onde está pisando, e até criar uma confiança com quem está fazendo a entrevista, demora um pouco. Então, no começo, eu já falei: “Não, mas espera aí: a gente está falando de mim, não está falando da minha mãe”, porque eu não sabia pra onde que eu estava caminhando essa entrevista, e agora entendi que sim, era realmente necessário esse mergulho na história da minha mãe para poder chegar com propriedade na minha história. Então, eu gostei muito dos processos que a gente fez aqui, dessa questão da memória. Falei de coisas que eu nunca mencionei em outros lugares, nesses quinze anos de carreira: essa questão de falar, assim, abertamente, sobre a história da minha mãe, eu ainda não tinha mencionado. Falo uma parte no livro, aqui acabei falando até coisas que não tinha no livro. Mas fiquei feliz com essa possibilidade, esperando que outras pessoas terão acesso a essa entrevista e possam se inspirar também nas coisas que eu falei, da gente ver que é possível, sim, por mais que as dificuldades estejam aí, a população preta resiste durante tanto tempo, né? Na realidade, não era nem para nós estarmos aqui, mas estamos, existimos e resistimos a tudo isso. E que a população preta, mesmo a gente sangrando todos os dias, mesmo que a bala perdida sempre dê um jeito de encontrar os corpos pretos, a gente consegue ressignificar tantas coisas, ainda consegue dar risada, criar, interagir e falar sobre outras coisas, a partir das nossas experiências também. Outras coisas boas, não só a partir do campo da dor. Então, foi importante esse exercício da memória aqui.
P1 – Ai, Preta, quero ficar três dias falando com você! (risos) E hoje eles falaram: “Ela vai estar em Santos”. Eu falei: “Eu vou, porque...” Régis, obrigada, querido!
P/2 – Foi incrível! Gostei muito.
P/1 – Não foi?
P/2 – Foi muito legal.
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