Projeto Kombiblioteca Poética
Depoimento de Emerson Alcalde de Jesus
Entrevistado por Lucas Turigoe, Jonas Worcman e Rosana Miziara
São Paulo, 14/05/2015
Realização Museu da Pessoa
KOM_HV011_Emerson Alcalde de Jesus
Transcrito por Mariana Wolff
P/1 – Boa tarde, Emerson, tudo bem?
R – Boa tarde.
P/1 – Você podia falar pra gente o seu nome, sua data de nascimento e o local também?
R – Emerson Alcalde de Jesus, nasci no dia 20 de abril de 1982 em São Paulo.
P/1 – Qual é o nome do seu pai?
R – Vicente de Jesus.
P/1 – Ele nasceu onde e em que data?
R – A data não sei, cara. Ele nasceu no Pará, no estado do Pará, provavelmente, não tenho certeza, mas na Ilha de Marajó, que é uma ilha ali, um recôncavo de várias ilhas, um lugar chamado Chaves, a idade exatamente eu não sei agora.
P/1 – A família inteira dele é de lá, ele veio de lá, mesmo?
R – É. Ele veio de lá, ele foi adotado, eu tenho a minha avó, mas uma mulher que teve ele não tinha condições e essa minha avó pegou ele pra criar. Isso na Ilha de Marajó, então não tenho certeza absoluta, ele nasceu lá, né, mas se a família dele é de lá, deve ser por ali, naquela região.
P/1 – Conta mais um pouco dessa história, ele cresceu por lá, viveu até que ano por ali?
R – Ela pegou ele pra criar, não tinha filhos ainda, depois ela teve alguns filhos e aí, ela quis sair de lá, são várias ilhas, tem os búfalos e tal, museuzinhos e aí, ela quis ir para a cidade, foi para Belém do Pará, a cidade mesmo, foi para a periferia de Belém, morou lá. Só que aí, ele com 17 anos, ele conheceu um cara que andava pela cidade, um andarilho e aí, ele decidiu também viajar. Aí ele pegou a mochila um dia e falou: “Estou indo embora”, com 17, 18 anos, mais ou menos. Aí, foi para Bahia, ficou um tempo na Bahia, não gostou da Bahia, não achou legal e veio para São Paulo. Aí chegando em São Paulo, no ônibus, ele conheceu um cara que era irmão de um cara que tinha acabado de casar com a irmã da minha mãe. E aí: “Está indo para onde?” “Não sei, para São Paulo, vou ficar lá em algum lugar”, não tinha destino nenhum, não tinha nada. Aí, ele falou: “Não, é muita loucura”, aí ele foi para uma pensão e esse cara combinou: “Vou te apresentar o meu irmão”, aí ele foi lá conhecer o irmão, marido da minha tia , da Nena e aí, eles se conheceram, gostaram dele: “Vem morar aqui”, aí ele foi morar lá e lá, ele conheceu a minha mãe.
P/1 – Foi morar perto da sua mãe, aqui em São Paulo?
R – É. No mesmo bairro.
P/1 – Onde que era essa pensão? Onde que morava a sua mãe?
R – A pensão provavelmente no centro, não sei, devia ser no centro de São Paulo, ele deve ter procurado alguma coisa ali perto da rodoviária, talvez, só que aí, a casa desses meus tios era no bairro de Engenheiro Goulart, Cangaíba, na Penha. E aí, ele foi morar ali com eles e depois de um tempo, ele foi morar na casa do lado, ele alugou uma casa que tinha ali e fez a sua vida naquele bairro a partir de quando ele chegou.
P/1 – Já do lado da sua mãe?
R – Umas três ruas para trás. Mas a minha mãe frequentava porque a irmã dela era casada com… então, aí eles se conheceram, namoraram e casaram.
P/1 – E o seu pai fazia o quê?
R – Metalúrgico, tanto lá em Belém quanto aqui.
P/1 – Onde que ele trabalhou?
R – Cara, trabalhou em alguns lugares, o último que ele trabalhou foi no Eldorado, Shopping Eldorado.
P/1 – E a sua mãe? Qual que é o nome dela?
R – Helena Martins Alcalde, depois Jesus que é o dele.
P/1 – Ela nasceu aqui em São Paulo?
R – Nasceu. Nasceu no bairro onde sempre morou, no mesmo lugar.
P/1 – Em Cangaíba.
R – Cangaíba.
P/1 – E eles se conheceram por ali, o que ela estava fazendo?
R – Ela estava indo visitar a irmã dela, indo lá e conheceu ele, conheceu ele nessas visitas aí que ela fazia, estava muito próximo, era um numa casa e o outro assim… ela morava na casa da mãe dela, da minha avó, então tinha esse trânsito muito grande, então começaram a namorar e aí, casaram e aí, mudou para outro lugar, foi para Itaquaquecetuba, comprou um terreno lá e aí, a gente se mudou para essa outra cidade.
P/1 – Você nasceu em Itaquaquecetuba ou você nasceu em…?
R – Nasci lá. Casaram lá, até dois anos de idade, um ano e meio mais ou menos, uns dois anos, eu morei nessa casa da minha madrinha, que era no fundo de onde ele tinha alugado o quartinho. E aí ele comprou um terreno com uma casa, a gente foi para lá, morar lá, aí morei lá até os oito anos.
P/1 – Até oito anos onde? Desculpa.
R – Morei até oito anos em Itaquaquecetuba, esse município.
P/1 – E como é que era a sua casa lá?
R – Era um lugar bem deserto, cara, não tinha nada, uma pessoa comprou tudo e dividiu e loteou e vendeu, não tinha luz, não tinha água e aí, era um terreno dividido com uma cerca e aí, uma casinha, dois cômodos só e aí, a gente morava ali naquela casinha sem reboco, sem nada, bem simples. Aí com o tempo, chegou a luz, chegou a água e foram se criando casas, tinham poucas, tinham umas quatro casas no bairro.
P/2 – Você tem irmãos?
R – Não, sou filho único.
P/1 – E como é que era o bairro, o que você fazia na rua? Como é que era a sua infância?
R – Era uma vida quase interior, não tinha nada, eu lembro que eu ia muito numa bica d’água, tinha a pedreira e tinha uma bica, aí a gente ficava brincando ali, não tinha água, a gente pegava água, as crianças brincavam ali, ficavam correndo, descalço na rua de terra, era uma vida bem... porque eu tive a chance de ter uma vida de quem morou no interior há muito tempo atrás, não essa vida urbana. Só fui ter vida urbana depois dos oito anos, que aí eu fui para a casa da minha avó, mas lá eram só vacas, cavalos, eu tenho uma imagem de vaca passando em frente de casa, pegando roupa no varal, essas coisas assim, a gente criava galinha, tinha mais galinha só, galo, galinha e os cachorros e tudo muito solto, não tinha portão, o portão veio depois.
P/1 – E você tinha amigos nessa época já, você fez amizade na rua?
R – Sim, sim! Tinha muitos amigos, tinham umas crianças que brincavam em casa, na casa deles, na rua ali em frente.
P/1 – Do que vocês gostavam de fazer nessa época?
R – Jogava bolinha de gude, gostava de bolinha de gude, pião não cheguei a brincar não, esconde-esconde, a gente brincava muito disso, bicicleta, jogar bola, tinha um campinho, né? Brincava mais de jogar bola.
P/1 – Como que era a sua casa, ficava você e a sua mãe só? Quem que era a autoridade da casa?
R – Era o meu pai, naquele tempo era um pouco mais tradicional, meu pai não deixava a minha mãe trabalhar, ela trabalhava quando a conheceu, mas aí não queria que trabalhasse. Ele era autoridade, mas também ele trabalhava em São Paulo, em Pinheiros, que é aqui próximo e ia até Itaquá, duas horas, três horas, então ele não ficava em casa, ficava eu e a minha mãe no dia a dia, só nós dois e as crianças do bairro, vizinhos. Tinha um casal do lado, no outro quintal do lado tinham duas crianças, a gente ficava muito próximo.
P/1 – O que mais tinha em Itaquaquecetuba naquela época que você se lembra? Para onde é que vocês iam? Tinha algum parque, alguma coisa?
R – Não, não tinha nada, não tem nada. Era essa lagoa com esse campo de futebol, ia até o centro da cidade, tinha uma praça, tinham uns shows de vez em quando, eu lembro de uns shows, rodeio, fui a rodeio…
P/1 – Rodeio lá?
R – É.
P/1 – Você já foi lá?
R – Fui, fui no rodeio.
P/1 – Como é que foi?
R – Pô, super cheio, eu lembro que tinham uns pôneis, eu andei no pônei, tinha corrida, eu não cheguei a ver o rodeio em si, eu me lembro daquela arquibancada lotada, os cavalos passando, vi um pouco. Tinha o desfile de 7 de Setembro também, eu desfilava, cheguei a desfilar uma vez naquele desfile de escola, minha mãe me fantasiava e tal, eu fiquei desfilando naquela praça de homem da caverna, enfim…
P/1 – Carnaval também você passou lá?
R – Não, carnaval eu não tenho memória, não, de lá, mas essas festas assim. Festa Junina era na rua, no nosso quintal, a gente fazia fogueira no quintal, montava barraca de madeira, isso tinha.
P/1 – No quintal da sua casa, mesmo?
R – É. Nosso quintal era um pouco grande, então a gente fazia ali, as pessoas vinham, ou faziam as vezes, em outro lugar.
P/1 – Quem que vinha? Família, amigos?
R – Não, a família não ia muito não. Amigos de todo o bairro.
P/1 – Do bairro mesmo?
R – Família, tinham períodos que eles vinham, porque é uma cidade próxima até de São Paulo, dá para ir de trem, não sei se naquela época era um pouco distante, mas ia de vez em quando, os parentes, tal, ficava lá um pouco e voltava, dormia lá sábado e domingo, mas o nosso dia a dia ali era com as pessoas ali do bairro mesmo, da cidadezinha.
P/3 – Já tinha televisão nessa época?
R – Não. Não. Pô, será que…? Não me lembro de televisão. Olha, nasci em 82, até 88… na minha casa não tinha.
P/1 – Entendi.
R – Não estou lembrado, cara, acho que chegou a ter sim, uma simplesinha, se eu não me engano, mas eu não tenho memória disso não, cara, engraçado. No meu quarto, eu não me lembro de ter uma televisão… tinha, tinha sim, tinha uma foto, eu lembro de uma foto que tinha uma televisão, uma televisão pequena, tinha.
P/1 – Você não assistia?
R – Pois é, nada que lembre que… não assistia tanta televisão, não, mais à noite, sei lá, tinha televisão, sim.
P/1 – Rádio também vocês tiveram alguma relação?
R – Sim, sim. Minha mãe ouvia muita rádio AM.
P/1 – Sua mãe?
R – É. Muita rádio AM.
P/1 – Ela gostava?
R – Gostava. Até hoje, ela escuta só rádio AM…
P/1 – O que ela ouve?
R – Como que é o nome do cara? Eli Correa, sabe, uns radialistas que contam histórias, Gil Gomes na época das narrativas enormes, dramáticas, eu achava até curioso, mas escuto uma narrativa muito interessante. Ela ouvia isso e música caipira, né?
P/1 – Tocava muito na sua casa?
R – Tocava, música sertaneja, era aquela vida de interior de São Paulo, então a tradição é a música caipira.
P/1 – A família dela é de onde?
R – Cara, aí é dividido, parte de avô e de avó. Vamos lá, o pai dela, meu avô Emílio, ele veio da Espanha, ele chegou aqui na época da Segunda Guerra Mundial, mais ou menos ali, de navio, aquele lance, chegava ia ali na Bresser, onde é o Museu do Imigrante, fazia o cadastro e eles foram para o interior em Girassol, ele foi para Girassol. E acredito que ali conheceu a minha avó que é descendente de português, mas que aí já estava no país há mais tempo. Aí se conheceram, aí vieram para Cangaíba, isso há 70 anos atrás, sei lá, era sitio. Aí, morou na casa de um, morou na casa de outro, aí até comprar um terreno com o irmão dele, dividiu, a família dele veio bastante para cá, veio mais do que a da minha avó.
P/1 – Eles faziam o que aqui, a família?
R – Meu avô era pedreiro e minha avó fazia trabalhos, cozinhava para fora. Depois, tiveram muitos filhos, 13 filhos, então acabou ficando em casa depois, mas sempre trabalhou.
P/1 – Escuta Emerson, você teve alguma educação religiosa na infância?
R – Tive. Bem maluca, minha avó era católica, depois virou evangélica, minha mãe continuou sendo católica, indo sempre na igreja, tal, sempre frequentando e o meu pai era espírita. Eu achava estranho, tinha que rezar, mas tinha… ele ia em mesa branca, tal, não tive tanto contato, mas eu lembro que ele se vestia de branco, ele ia para uns lugares e tal, minha mãe católica e minha avó evangélica, fui de mesa branca algumas vezes, chamava de mesa branca, não saberia se é esse nome hoje que se usa esse nome ainda, fui na igreja evangélica, mas só para ver como que era e na católica, eu frequentei mais.
P/1 – Mais a católica?
R – É, mas não acredito em nada, cara …
P/1 – Mas foi uma briga, nessa época para ver o que você…?
R – Não, não… é que o meu pai faleceu com oito anos, eu tinha, então não tive muita relação com isso, eu lembro, tenho imagens dele, pedia para eu rezar, sentava ali no chão, tinha uma certa cerimônia, tal, que tinha que fazer, eu fazia, não tinha muita escolha, mas aí depois, eu fui para casa da minha avó, minha avó é evangélica, voltei para o mesmo bairro onde a minha mãe nasceu e aí ali, ela ia na igreja mas não chamava a gente para ir, fui uma vez, olhei, achei muito sério, muito, era Congregação do Brasil, homem de um lado, mulher do outro, sabe, é bem dividido, lenço, eu não curti muito não. Mas eu respeitava, eu gostava da minha avó, tinha um posicionamento politico, já que os outros, minha mãe, meus tios não tinham. Então, eles: “Não, só manipulam, isso está errado”, tinham uma certa… isso me interessava, achava curioso. No católico era tudo mais solto, mas fui muito em igreja católica, sempre missa de sétimo dia, domingo de Ramos, minha mãe ia, me levava.
P/2 – Seu pai morreu do quê?
R – Infarto, provavelmente, né? Foi um infarto. Estava indo trabalhar, ele passou mal e indo perto do trem e morreu.
P/1 – E o que mudou na sua vida depois que ele morreu?
R – Puta, mudou muita coisas porque a gente tinha os planos, um dos planos era voltar para Belém do Pará, onde ele tinha a família e nunca mais voltou, ele veio para cá e nunca mais voltou para lá. E aí, a gente ia morar ali, tinha comprado a casa, estava construindo, aí depois, no final, já tinha muro, já tinha portão, já estava se estruturando, aí ficamos um ano lá, mas aí ficamos com medo de ficar ali na cidade, estava crescendo, estava virando já uma periferia, violência, esse tipo de coisa, aí nós voltamos para São Paulo. Só que aí, acho que mudou muito, eu fiquei durante muitos anos magoado com isso, que eu acho que a gente perdeu a nossa vida, ali estava construindo uma identidade, não tinha contato com a minha família, tem aquela geração ali, fui crescendo ali, minha relação de família, foi em outra vida, meu pai e minha mãe ali, os dois juntos. Depois que eu fui para casa da minha avó com a minha mãe, era uma casa grande e meu avô ficou doente, teve mal de Alzheimer, então a minha mãe dedicou a vida a ele e eu fiquei meio sei lá, ali…
P/2 – Nessa casa deles na…
P/1 – Cangaíba.
P/2 – Cangaíba.
R – Cangaíba, é! Uma casa… sei lá, tinham uns cinco, seis cômodos, mas um monte de gente, minha avó teve 13 filhos, aí uns casavam, outros voltavam, se divorciavam, ficavam ali e eu também não tinha quarto, dormia na sala ou também dormia com mais três, quatro tios, sabe?
P/2 – Financeiramente, como é que a sua mãe fez?
R – Muito difícil, aí o que ela fez, ela pediu aposentadoria, a pensão depois de dois anos, ela ganhou a pensão que ela passou a receber por isso, né? Eu sei que foi tudo muito simples, aí a minha avó tinha… como tinha muita gente, tinha ali o básico, mas não viajava, não fazia nada, roupa, era tudo muito simples, não tinha… demorou um tempo para a gente poder evoluir, para eu poder sair dali, respirar, fiquei um pouco preso a essa realidade, pouco depois, minha avó ficou doente, minha mãe sempre cuidando de alguém doente, sabe, você fica meio ali, vou falar o quê? Se o mais serio é a pessoa que está doente e eu estou bem, né?
P/1 – E nessa época, você já ia para escola, quando o seu pai morreu?
R – Sim, lá em Itaquá e isso foi muito conturbado, minha mãe não teve tanta estrutura, ela não sabia o que fazer, na verdade, e aí, a gente ia muito para a casa da minha avó, a gente não mudou de vez, continuou morando ali, ela falava: “É perigoso, vem para cá, fica ai”, ela ia e voltava, ia e voltava e aí, escola eu perdi, eu repeti dois anos esse ano, eu tinha oito anos, começo do segundo ano, aí repeti por falta, aí ia, não ia, ia, não ia, repeti mais um ano, aí eu fiz o segundo ano três vezes, aí mudei para uma escola perto da onde morava, mas decidiu, nunca foi uma decisão, foi aos poucos até chegar de fato, morar lá. Aí jogavam na cara: “Vocês estão aí, mas você não tem uma casa lá?”, né, uns queriam, outros já não… a gente estava atrapalhando, mais duas pessoas na casa, dava trabalho, enfim, eu era criança, tinha oito, nove, dez anos, né? Enfim…
P/3 – E você já tinha contato com os livros nessa época?
R – Não, não. Em casa tinha um pouco, meu pai tinha, meu pai sempre quis que tivesse uma vida diferente, ele veio par São Paulo para ter um vida melhor, sabia que em Belém era uma pobreza enorme, sempre não teve nada, então falou: “Agora, eu vou ter algumas coisas”. Então, quando ele podia, comprava coleção de livros, só que isso se perdeu, isso ficou lá, porque a gente não mudou, como eu falei, nunca fez uma mudança, então ia aos pouquinhos, as coisas se perdiam, as pessoas invadiram, e roubaram, aí uma hora chovia dentro, tudo se perdeu, esses livros eu não tive mais acesso. Uns eu peguei e guardei. Livro demorou um pouco mais para eu ter acesso, foi mais na biblioteca, sim e eu fui comprando. Essa casa era grande e quase ninguém tinha livros, meu tio só que estudava Matemática, estudava para passar num concurso, ele tinha alguns livros ali que eu dava uma olhada, mas não fui eu que comprei.
P/1 – Quando você aí… você foi estudar lá em Cangaíba, na escola?
R – Foi.
P/1 – Como é que era essa escola?
R – Uma escola muito legal, chama Cecília Meirelles. Aí eu repeti, porque eu entrei meio que no final, no meio assim, só que eu estava desanimado, estava triste, demorou para eu assimilar a morte do meu pai, fiquei uns dois, três anos, alguém falava, eu chorava, minha mãe também não sabia como lidar com isso, ela falava: “Deixa, não vamos também…”, as pessoas: “Você tem que superar isso”, mas ela também não superava, ela demorou para superar, aí então, só no terceiro ano da escola que eu comecei a me dedicar a escola mesmo, a frequentar mesmo a escola. Era uma escola que eu tenho muita memória dos amigos que eu fiz, logo foi um lugar de… ali que eu me relacionei, na verdade, porque pessoas da minha idade, eu era dois anos mais velho, mas…
P/1 – Não tinha nenhuma criança na sua casa, mesmo, né?
R – Não.
P/1 – Só os seus tios…
R – Só os meus tios, só eu. Todo mundo trabalhava, tocava a vida e eu era a única criança. Na rua, não queriam muito que eu saísse, porque era perigoso, ainda mais que é periferia também, e aí, a escola era o lugar onde eu tinha essa relação, conheci pessoas…
P/1 – Quem que você se lembra, que você conheceu, de amigos que você fez lá?
R – Fiz amizades, cara, lembro de algumas pessoas, o Wesley, lembro de alguns nomes, um japonesinho, tinham umas pessoas, eu lembro… e aí, fui me arrastando, foi bem legal, um momento… aí estudei um pouco a Cecília Meirelles, poeta, uma escritora. Esse nome sempre ficava na memória.
P/2 – Na escola?
R – É.
P/2 – E matéria, qual matéria você mais gostava?
R – Poesia e Matemática. Gostava mais de Matemática, de número, gostava de pensar, gostava de… depois, Português, veio depois.
P/1 – Algum professor te marcou lá nessa escola?
R – Sim. Uma professora de leitura, ela pegava a gente e ela dava a ideia: “Vocês têm que crescer como seres humanos, vocês têm que evoluir, vocês não podem ficar nessa aí”, porque só converso com pessoas que têm mais conhecimento que eu, ela falava umas coisas, tem uma frase que ela falava: “Eu só converso, só tenho amizade com pessoas que sabem mais que eu”(risos), eu ficava: “Pô, como é que você faz isso, né, como é que você sabe?’, e ela martelava a gente. E uma outra de Ciências, Biologia, acho que na época era Ciências Biológicas, não lembro qual era o nome, ela falava umas coisas que eu achava muito curioso, eu sempre penso nela, eu não me lembro o nome dela, lembro de noz moscada, ela pediu um dia pra gente noz moscada, eu fiquei com isso na cabeça, eu fui na casa, peguei noz moscada, levei e eu tenho muito ela na memória. A pessoa dela, a figura dela, ele olhar pra gente, aquilo me tocava, o jeito como ela lidava com a gente.
P/3 – Ela era de leitura?
R – Não, essa era outra, essa era de Ciências Biológicas, Biologia, sei lá, era outro nome na época, eu acho.
P/1 – Como é que era essa escola, você ficou muito tempo lá?
R – Até o sétimo ano. Tinha o palco, dois banheiros atrás, aí subia as escadas, aí a minha sala era em cima, outras em baixo, tem vários lugares, vários lados. Aí tinha uma quadra atrás. Jogava bola de domingo também, a gente ia lá de sábado e domingo para jogar bola. Aí tinha um campão, tinha uma área verde, na época não era tão habitado. Aí eu lembro… enfim, tinha o muro, a gente pulava, tinha o portão, tinha um jeito de pular diferente, que as pessoas batiam o pé, colocavam a mão e dava quase que um mortal…
P/1 – Você pulava pra quê? Pra matar aula?
R – Não, não. Nem dava, esse portão já era para rua, a escola era quase uma prisão mesmo, era um quadrado, não tinha como fugir, não tinha como pular. Esse portão já era do lado de fora, só para ir na quadra, pulava para ir na quadra de domingo, sábado, a escola estava fechada, a gente pulava o muro e jogava bola.
P/1 – Você gostava de jogar futebol?
R – Gostava. Jogava bola sempre!
P/2 – Como é que era Cangaíba nessa época?
R – Era um lugar bem agitado, perto da escola aparentava ser mais tranquilo, mas na nossa rua era um lugar que tinha muita violência, sempre marcado por violência, chacinas, não tinha nada… depois construíram um teatro, depois eu posso contar o momento que… mas fora o teatro, não tinha nada. Tinha um parque ecológico, mas me mercou muito que as pessoas… na esquina da minha casa usavam muita droga, se jogavam, ficavam cheirando cola e vendiam e polícia e era uma biqueira do lado, uma do outro, eu não ficava muito na rua, se eu ficava muito na rua, tinha que entrar. Na escola era mais protegido, mas na rua em si, tinha momentos, tinha épocas que não dava. Eu lembro que tinham certos chefes do bairro, tinha certas amizades, eles gostavam até dos meus tios, então eu nunca tive problema, mas era um clima tenso, minha mãe falava que não era assim antes, logo quando eu estava com uns dez anos é que foi piorando a situação, né?
P/1 – Depois do Cecília Meirelles, você foi para onde, que escola?
R – Fui para uma outra escola chamada República do Uruguai, aí não conseguia estudar…
P/1 – Lá em Cangaíba também?
R – É. Mas chegou até o sétimo ano, eu caí numa sala, não sei o que fizeram, botaram os piores alunos, os mais bagunceiros numa sala só.
P/1 – E você caiu nela?
R – É, eu estava lá. Eu não achava que eu era tanto, não me enquadrava nisso, mas tinham uns sete, oito que eram terríveis, terríveis! Jogavam bomba na escola e pichavam, quebravam, destruíam a escola. Aí pegaram todos esses e colocaram numa sala só. E foi terrível, não deu certo, foi… não conseguimos estudar, eu ia mal em todas as provas, fui mal pra caramba, passei de ano não sei como, uma hora eu passei no sufoco, fiquei de recuperação em quatro, cinco matérias, foi na época em que começaram as recuperações e aí, fiquei em dezembro, janeiro e aí, passei. Chegou uma hora: “Não quero mais, cara, esse negócio é muito chato, não vou aprender nada. Não vou estudar mais”, aí a minha mãe: “Não, não pode fazer isso, você está maluco?” “Não, não vou estudar”, aí começou o ano, não me matriculei em escola, março, abril fiquei sem estudar, aí depois de um tempo que eu… minha mãe: “Você precisa voltar”, aí arrumou uma vaga numa outra escola e aí, uma escola menor já, uma escola mais fria, era só um andar, poucas salas, aí foi do oitavo até o terceiro ano.
P/2 – Escola estadual?
R – Estadual, mais velha, mais detonada. Essa escola era arrumadinha, Cecília Meirelles, uma prisão, mas uma prisão bacana, bem arrumadinha, tudo certinho, hoje também, hoje está top.
P/3 – Emerson, você lembra se você tinha bastante sonho enquanto você dormia?
R – Sim, muitos sonhos, cara. Sempre sonhei muito, sonhei muito com o meu pai, acordava chorando e tinha um sonho surreal, tinha uma imagem andando e umas coisas caindo na minha cabeça, uma estrada, uma rua de terra, tinham os postes de madeira, sabe, e eu ia passando e os postes pá, caíam na minha cabeça e eu afundava. Aí, eu levantava, aí outro poste vinha e pum na cabeça e eu afundava e ia… tive esse sonho muitas vezes
P/3 – Mas você não caía nunca pro fim assim?
R – Não, só caía, afundava e levantava e continuava andando (risos).
P/1 – Mas aí como você estava nessa nova escola, você começou a ter mais contato com a literatura, com a poesia?
R – Sim, aí foi com o Rap, né?
P/1 – Com o Rap?
R – É, eu saí um pouco brigado dessa escola também, para falar bem a verdade, se eu posso falar a verdade (risos), mas saí um pouco brigado. Tinha uma namoradinha, eu tinha uma namorada…
P/1 – Isso o quê? Na oitava série?
R – Sétimo, só que eu era dois anos mais velho, então eu tinha 15 anos, por aí, eu tinha uns 15 anos, por aí, já era adolescente, né? Aí, tinha uma namorada, só que aí vários problemas, ela morava um pouco longe, só que aí, eu ia até esse lugar, e tinham umas meninas lá também e aí foram também, então a gente tinha esse grupo que ia para o outro bairro a pé. Aí teve um desentendimento, nós brigamos, eu briguei com esse cara, a gente brigou e tudo mais, aí roubaram a minha mochila na escola, deu um problema na escola geral. Eu entrei na sala, a minha mochila não estava, aí fui na diretoria falei: “Olha, roubaram a minha mochila”, o professor: ‘Não quero saber, vocês arrumam confusão, vocês quebram tudo, vocês não entregam quem é, vocês se viram, vai lá e tenta resolver”, falei: “Caramba, né, cara”, fui na escola, xinguei todo mundo da sala, chutei, xinguei, aí no outro dia apareceu em casa a minha mochila: “A sua mochila está aqui, cara, foi fulano que pegou”, aí eu falei: “Puta e agora, né, cara? Agora você vai ter que resolver”, aí a gente foi e brigou, aí o pessoal da minha rua quis brigar com ele, arranjei uma briga de dar risada, muita gente se envolveu, saiu na mão e tudo mais, na porrada, eu falei: “Não rola mais, tenho que sair dessa escola”, aí faltava mais um ano, tinha o oitavo ano que podia ter feito lá ainda, mas não dava mais, parei um tempo, parei de estudar. Aí para essa escola foram outras pessoas, era muito próxima até, essa ficava pra cima… eu morava na rua, ficava na parte de cima, essa escola era para o outro lado, só que é meio que já outro bairro, mais ou menos, Engenheiro Goulart, é um subdistrito desse Cangaíba, um bairro um pouco menor, aí foram outras pessoas e aí, eu gostava de Rap, ouvia nessa época Rap, outras músicas também, aí lá, eu…
P/3 – Quem você ouvia?
R – Racionais, De Menos Crime, tinha um CD do De Menos Crime e uma fitinha do Racionais. Ouvia, ouvia, mas também ouvia música eletrônica, que a galera da escola gostava mais de música eletrônica, tinha umas baladinhas e a gente ia com essa turma. Então era uma turma especifica, tinha contato. Tinham os roqueiros, mas não tinha tanta amizade, era mais com os da música eletrônica, na época era… chamava de clubber, já ouviu falar? Eram coloridos, vestiam uma roupa meio colorida e tal e eu ia também junto, eu era da turma da escola, a gente ia para os bares. Aí, essa outra escola era diferente, essa escola já era perto de uma favela, chamada Caixa D’Água, bem próxima e ali eu fiz outras amizades e ai era um pouco diferente, já, não era tão longe, mas o pessoal gostava mais de Rap. Eu conheci muita gente dessa comunidade, eu morava no bairro, na vila, era uma casa muito pobre, mas era no asfalto, vamos dizer assim, e depois, esse pessoal do morro, mesmo, morro das favelas. E metade da escola morava lá, eu fiz amizades, comecei frequentar esse morro e aí eu fiz um curso de DJ em Guarulhos, DMM Slick, estava começando a dar um curso aí eu fiz e aí lá, tinha uma galera que tinha um grupo de Rap. Aí eu falei: “Pô, queria tocar também”, aí a gente montou um grupo no nono ano, mas não se apresentamos, a gente tinha vergonha, mas dessa favela que a gente ia e vinha, conheci outra pessoa que me levou para outro bairro, Vila Sílvia, que aí lá eles tinham um grupo que já era mais um grupo de Rap mesmo. Aí entrei como DJ do Grupo, fizemos apresentações, cantávamos na escola, aí meu contato com a música, comecei a escrever, aí eu já escrevia, aí no oitavo ano eu já escrevia poesias, letras, tinha já a produção. Eu era DJ e até escrevia, até a hora que os caras não cantavam direito, não tinha letra, tinha só uma música, eu falei: “Põe um monte que músico tem uma pasta” “Pô, mas como que canta essa música? Que ritmo que é?” “É assim” e cantei “Puta, você tem que cantar com nós”, aí deixei de ser DJ e passei a ser MC.
P/3 – E você lembra de algumas das letras?
R – Lembro. Tinham umas duas que eu lembro. Tinha uma que a gente falava das mina, cara, era assim, a gente falava (risos) das mina que só gostava… é uma indignação, só gostava de… hoje também é assim, né, nas periferias, só saem com cara que tem carro, tem moto, tem status e a gente que não tinha nada não tinha… não era visto, né? Aí, eu fiz uma música lá que chamava “Mina Vadia” (risos). Depois: “Porra, você não pode falar isso, cara, como que você fala isso das meninas?”, mas foi… hoje se as meninas virem, elas vão me matar, mas eu falava de certo tipo, falava dessa questão de que não tenho carro, não tenho moto. Era assim o refrão: “Menina vadia, paga pau da burguesia/ Menina vadia, roda banca dos playboys/ Todo santo dia”, era péssimo, falava palavrão pra caramba, sentamos o pau nessas minas. Era o que eu tinha para falar no momento, né? Relacionamento, adolescente e tal. Aí tinha uma outra sobre drogas, chama “Química Infernal”: “Química infernal, química infernal"…”, e aí ia desenvolvendo em cima dos caras que usavam drogas, né?
P/3 – Mais uma crítica assim?
R – Uma crítica.
P/3 – E como por exemplo…
R – Essa “Menina Vadia” também era uma crítica social, não sabíamos falar, não era a melhor maneira de ter dito aquilo, mas queria dizer que não é pelo status que você é alguém, observando os caras que na periferia tem uma coisa, então ele tem um destaque pelo material que tem, não pelo o que é.
P/3 – E como foi recebida, como as meninas, por exemplo, receberam a música?
R – Muito mal, cara, muito mal assim, xingavam a gente, mas mobilizou, a gente fazia shows, a galera adorava, essas meninas adoravam: “É isso mesmo”, eu tenho um DVD, cara, gravado no…
P/2 – Onde vocês faziam show?
R – Na escola, em quermesse, fizemos um show num grupo, mesmo, num palco. Isso já… eu estava no primeiro ano da escola, cantamos com grupos grandes que aí, tinha grupo do bairro. Na quermesse, era terrível, que as pessoas xingavam a gente, as meninas: “Para com isso…”…
P/1 – Quermesse da escola mesmo?
R – É, quermesse do bairro, mesmo, cheia assim, aquelas quermesses de bairro, sabe, lotadas, aí: “Chega de cantar isso, canta Rap?” “Canto, tem aqui”, a gente tinha as bases, comprava o vinil, era o vinil nessa época, e na escola também cantava, as meninas ficavam putas, mas aí os caras cantavam junto, cantavam o refrão, sabiam cantar: “Menina vadia…”e elas ficam de braços cruzados olhando feio pra gente, né?
P/3 – Mas tinham algumas minas que não eram vadias? Tipo…
R – Tinham, as meninas que cantavam com a gente mesmo, que gostavam de Rap entendiam, falavam: “É isso mesmo, são essas minas, a gente não gosta delas também”, porque não era das minas do modo geral e aí, teve um show que encheu, que a gente levou todos os nossos amigos, aí foi o Ndee Naldinho e mais um outro moleque conhecido, não me lembro quem era. Só que na hora do nosso show todo mundo cantou essa música, aí todo mundo cantou e aí: “Quem são esses caras?” “Pessoal é do bairro”, aí começou a dar um destaque para a gente…
P/1 – Tinha nome já?
R – Tinha, era Legião de MCs. Antes, era Primeiro Ato. Aí depois, esse grupo mudou para Legião de MCs.
P/1 – E como é que começou essa visão critica?
P/2 – Ele estava contando como que eles começaram a dar destaque, quem começou a dar destaque?
R – Foi a gente, essas duas músicas que tinham sobre droga e sobre mulher, nesse show grande que teve, fora a escola e fora a quermesse, foi um show mesmo, palco grande, luz, fumaça, e abrimos o show, só que aí tinha muitos amigos nossos que já conheciam e cantaram junto. E aí, a produção, tinha político envolvido na produção do evento e começou a chamar a gente para outros lugares, indicar a gente para a gente gravar, chegamos a gravar, mas não tive esse… não pegamos essa cópia da versão gravada e aí…
P/2 – Por que não?
R – A gente era muito desorganizado, a gente não tinha… gravamos em algum lugar, em algum estúdio e nunca voltamos pra buscar, a gente era adolescente, era bem desorganizado, eu fui me organizar bem depois, que eu passei a me organizar e aí, não pegamos. A gente fazia… eu peguei em VHS, eu tenho esse show gravado, uma mina gravou em VHS. Aí, tiramos cópia, eu tenho guardado, mas não… precisaria passar para o DVD isso, se tivesse passado, eu ia lançar no YouTube esse show, a maior galera cantando, até arrumei uma namorada no dia, saí do palco, aí todo mundo: “Aeeee…”, aí as meninas vieram… as meninas gostavam, aí fiquei com uma menina, saí do palco, mal saí do palco ela… o Rap na época era a música do momento, onde o Rap estava crescendo, estava começando a ascender em 99…
P/3 – E foi pelo Rap que você então, arranjou as primeiras namoradas?
R – Sim, sim. Tinha antes, com 15 anos, já tinha arrumado com a música eletrônica.
P/3 – Mas pela música também?
R – Não. Fazendo música, não. Fazendo música foi pelo Rap.
P/3 – Mas na vida, não foi vinculada arte os seus primeiros relacionamentos?
R – Não, não. Foi frequentando bailes.
P/1 – Como é que eram esses bailes que você frequentava?
R – Os primeiros?
P/1 – É.
R – Eram bailes que eram matinês, rolavam, chamava Warrior…
P/1 – Tinha um lugar especifico?
R – É, era um baile… tinham dois lugares, um era o Warrior que era um baile mesmo, ficava na Vila Buenos Aires ali e um baile comum com DJs, tal, escuro, iluminação e tal e só molecadinha, né? E era essa música eletrônica e a galera ia e dançava, óculos colorido, roupas coloridas e aí dançava lá de uma maneira meio… aí depois, começou a ficar um eletrônico mais pesado, era uma música eletrônica punk, era uma música underground, os DJs, depois, ficaram famosos, o que tocava lá era hoje é o Marky Mark, né…
P/1 – Patifes, esses caras?
R – Não, o que tocava nesses bailes era o Marky Mark, o Mau Mau e o Animal, depois foram tocar em casas grandes, o Mark hoje mora na Europa, não sei. Ele morava no meu bairro, ele nasceu no Cangaíba também, DJ Mark agora ele chama, na época era Marky Mark. A gente ia lá no Toco que era próximo também e tinha um que a gente ia mais também que era o Anjinhos que era uma EMEI que é uma creche e que à noite, virava um bailinho, aí misturava Rap com música eletrônica. Esse era mais roots, era engraçado de ver, as cadeirinhas e virava um puta show, iluminação, Anjinhos porque a escola chamava Anjinhos, era uma creche.
P/1 – Limpava de madrugada?
R – Alguém organizava, não sei quem era o louco que fazia. Esses outros eram bailes com DJ mesmo, esse não, esse era bem caseiro, né? Mas era bem legal, arrumava namoradinha ali também, era uma coisa assim, era mais descontraído, não tinha ideologia nenhuma nessa época, porque eu não pensava… as músicas que não diziam nada, eram só sons, né, tum, tum, tum…
P/1 – Batidas.
R – E todo mundo ia para namorar, ninguém tinha outro objetivo além arrumar uma namorada, arrumar um…
P/1 – Quando que começou essa visão mais crítica, social?
R – Depois que eu comecei a ouvir mais Rap, né? Aí que eu comecei a pensar mais nessa critica a sociedade, Gog, ouvia muito Gog. Gog, Consciência Humana, grupo de rap da zona leste, o Gog pela ação política tinha uma música chamada: “Assassinos Sociais”: “Assassinos sociais, é, os poderosos são demais!”, ele falava sobre Brasília, os políticos em Brasília que não trabalham, enfim, isso 88, 89. E depois, Consciência Humana aqui da Zona Leste que é onde eu me identifiquei, falei: cara daqui faz sucesso também, cara, tinha os Racionais que eram da Zona Sul e o Gog e eles mais próximos. Aí eu comecei a escrever também sobre o bairro, sobre o que eu vejo e tal…
P/2 – Você começou a escrever nessa época?
R – Nessa época.
P/2 – Quantos anos você tinha?
R – Quinze. Comecei a ouvir com 12. Com 12, foi um pouco de um misto, ia para essa música eletrônica, mas eu também ia para shows de rap, com 12 anos, eu fui no show do Racionais, o meu primeiro. Eu tinha uma prima que namorava, sempre gostou de namorar com malandro, bandido, tinha um frisson, eu odiava e ela namorava, então eles gostavam de rap, na época estava estourando e aí, eu ia junto com ela, fui num show no Anhangabaú, histórico, foi em 93, chamava Reggae e Rap Festival, era um grupo de rap e um grupo de reggae, quem apresentava era o Primo Preto, depois eu vi numa gravação. E eu estava ali no show, não sabia o que era, primeiro show que eu ia, os caras criticando, tal, falei: “Pô, interessante”, voltei. Mas aí eu ficava com a turma que eu achava mais legal, ouvia rap, sabia das coisas, mas achava mais divertido, show de rap era mais sério, todo mundo de braços cruzados, olhando o show, ou pulando no máximo e a música eletrônica era mais dançante. Aí fixou nesse misto. Quando eu fui para a outra escola que aí, de fato, eu esqueci a música eletrônica, nunca mais fui num baile de música eletrônica, nem tive contato com esse grupo, eu esqueci totalmente, ali era só rap e shows e aí, virei um fanático por rap e a partir dessa escola, deixei música eletrônica de lado.
P/1 – E nessa época que você tinha um grupo de rap, você já sabia mais ou menos o que você queria fazer, você já almejava alguma coisa, profissão, sei lá…?
R – Então, estava na escola, primeiro, segundo ano, comecei a estudar mais para escrever melhor, depois que eu virei MC, falei: “Preciso escrever mais”, aí passei a escrever e a estudar mais literatura, aí foi a época que eu comecei a ler os livros mesmo: Drummond, Shakespeare, fui lendo, aí até entrar na universidade. Aí eu parei de cantar rap, aí fizemos show só um tempo, aí eu fiz um cursinho pré-vestibular e lá, a minha mente abriu mais e eu prestei vestibular, passei e ganhei uma bolsa.
P/1 – Prestou para onde?
R – Anhembi Morumbi, o curso era nessa universidade, só que tinha um cursinho lá para alunos de baixa renda e aí, eu entrei, não pagava nada e aí, a escola falou pra gente se a gente queria prestar vestibular, a gente prestou e aí, a gente passou, mas enfim, teve que pagar, mas aí, eles resolveram dar uma bolsa e aí, deram pra gente, para esse grupo de 30 pessoas, 100%, não pagamos nada, não tinha ProUni, não tinha nada na época, ProUni veio depois com outros projetos sociais. E aí, eu fiz Teatro, Artes Cênicas.
P/1 – Artes Cênicas na Anhembi?
R – Na Anhembi Morumbi.
P/1 – E como é que foi fazer lá?
R – Foi um choque de realidade, de cultura, que eu estava ali nesse bairro, só vivia ali, não viajava, era assim, uma coisa muito simples, só ia para o centro em show de Rap ou em Pinheiros aqui quando tinha outros bares aqui que a gente vinha, mas só vinha e já voltava para lá, eu não tinha nenhuma vida aqui, não vinha aqui para outras coisas. E aí, na faculdade, já conheci pessoas que moravam aqui, também tive um contato que eu não tinha…
P/2 – Qual que era a unidade da Anhembi? Na…?
R – Bresser.
P/2 – Na Bresser.
R – É, no Brás. Então, era perto até… você estudou lá?
P/2 – Não.
R – E aí apesar de ser ali, próximo, ninguém morava ali, a galera morava em Pinheiros, Vila Olímpia, interior, muita gente do interior, tive o choque dois, um foi pelo social, pessoas ricas, primeira vez que eu tive o contato e a amizade com pessoas com muita grana e ter viajado, até então, os meus amigos eram todos muito simples. Diferente foi o contato com homossexuais, não tinha. Lógico que no bairro tinha, é aquele lance de preconceito, de xingar e as pessoas excluíam, ninguém andava com… os grupos eram separados, são guetos: grupo do rap, grupo dos gays, grupo do rock, e na universidade, isso estava mais junto. Confesso que no começo isso me fez me sentir um pouco mal, falei: “Como assim, né, cara?”, e todo mundo junto ali e não tinha esse contato. Mas aí, com o tempo, fui aprendendo e fui convivendo e os primeiros meses, eu acho que eu não tinha muito contato, então era diferente pra mim, mas depois, eu fiz amizades que tenho até hoje com duas pessoas que são meus amigos desde do primeiro ano e pessoas fantásticas, aí você percebe: “Pô, não leva a nada esse preconceito que a gente tem de não conhecer e discrimina, exclui”. Aí esse contato… o teatro me proporcionou isso, o toque, né? Teatro é muito toque, corpo, tocar, então para mim era estranho, tanto outra pessoa, enfim, eu não gostava, enfim, não tinha toque, né? Rap então, todo mundo de jaqueta, comprimento duro, você aperta a mão forte e lá não, tinha abraço, beijo… tem uma coisa assim, de evangélico no rap, tem esse lance meio… apesar de ser revolucionário por um lado, também é muito conservador para o outro, quase todo mundo é evangélico no rap, se não é, a família toda é, então tem um direcionamento… aí já é um outra conversa, mas (risos)…
P/2 – Você trabalhava nesse período ou você só estudava?
R – Qual? Com 15 anos?
P/2 – Não, na faculdade.
R – Comecei… aí, no primeiro ano, eu arrumei um trabalho no Parque Ecológico, que era do governo também, de apoio, não era um trabalho, frente de trabalho que chamava, ganhava bem pouco, 190 reais eu ganhava por mês, mas eu guardava, eu ganhava pouco, mas eu tinha dinheiro o mês todo e aí, eu trabalhava de monitor numa sala de informática, movimento social e orientava ali a molecadinha, era um trabalho bem tranquilo.
P/1 – O que você fez com o seu primeiro salário, você se lembra?
R – Pô, comprei uma roupa, cara pra mim. Eu comprei uma camiseta. Ajudei em casa, dei um dinheiro para minha mãe, uma parte e comprei uma roupa e guardei. Aí, eu guardei para ir no teatro, também não ia ao teatro e aí guardei dinheiro, vi quanto custava as peças, aí eu nem sabia que existiam esses guias culturais, eu não tinha acesso a guias, aí na primeira semana, falaram: “Tem guia, tal”, falei: “O que é isso?” “Negócio que vem no jornal, tal”, aí eu anotei, vi os endereços, quanto custava, custava dez, aí fiz uma conta e aí todo mês, um vez por semana quase, eu ia numa peça. Aí conseguia o mês todo, com 190 reais, eu via peça, comprava roupa e…
P/1 – E da onde que vinha esse interesse, por teatro nessa época? Você estava lendo antes…
R – Boa pergunta (risos). Eu ia em muitos shows em Guarulhos, os grupos de rap de lá eram muito teatrais, eram diferentes dos da Zona Leste, Zona Sul. Eu ia leste e sul que eu frequentava, era o rap mais gangster na época, crime, falar de violência. Em Guarulhos, não, em Guarulhos, eles tinham um lance, eles entravam com outras roupas e tal, capacete, entrava, fingia que era polícia no palco, era um teatro, toda a brincadeira, eu ficava: “Pô, mas os caras estão fazendo teatro, pô que legal”, bolamos umas cenas para fazer com o grupo de rap mas nunca conseguimos executar. Aí, na hora, olha como eu escolhi, tinha um teatro perto de casa, eu assisti algumas peças e tal, minha mãe falava que era chato: “Teatro é chato pra caramba”, aí na hora do curso tinha Comunicação e Teatro, aí eu falei: “Vou fazer teatro”, aí eu me inscrevi em teatro para a primeira opção, entrei meio e não saí mais, acho que foi a melhor escolha que eu fiz.
P/1 – Quais foram as primeiras peças que você assistiu e qual que te marcou muito, nessa época?
R – Eu vi uma peça do França Júnior que chama “Caiu o Ministério” no Teatro Municipal, primeira vez que eu vi peça grande, peça no teatrão, não me marcou, tanto, mas foi o momento mais de teatro, de entrar no Municipal, fui sozinho. Peguei, vi, comprei ingresso e falei: “Vou nesse lugar aí, falaram que é um lugar muito bonito”, e aí fui à noite, fui andando a pé, à noite, mas não tinha medo na época, não e aí me marcou, me marcou o momento de estar lá no teatro. E depois, as peças pela faculdade mesmo, que indicavam, peças muito… qual que mais me marcou, deixa eu ver… porra, não lembro assim, uma peça especificamente, mas em face do teatro, acho que foi mais os exercícios que a gente fazia que me mudou quanto ser humano, radicalmente. Se eu não tivesse feito isso, eu seria outra pessoa mais duro, mais…
P/1 – E como é que você se adaptou, você acha lá no curso de Artes Cênicas?
R – Foi depois dos primeiros seis meses, eu acho. Os primeiros seis meses foram bem difíceis, depois eu já comecei entender o que eu já podia fazer também, eram mais tranquilas as aulas e aí, o segundo semestre, eu acho que já fui melhor, fui me aceitando ali, aceitando todo mundo e eles foram também me… foram coisas muito diferentes, e aí foi muito bom, acho que depois, segundo ano, aí comecei a fazer teatro com tudo, fazia quatro peças por ano!
P/1 – Falando da parte de adaptação no curso, como é que foi, depois dos seis meses, você já estava habituado um pouco, conhecia as pessoas mais?
R – É, entendendo como é que eu ia fazer, porque as pessoas, principalmente, na minha casa, não entendiam porque que eu fazia esse curso, as pessoas: “Por que você vai fazer teatro? Você ganhou uma bolsa, podia ter feito, sei lá, Medicina! Fisioterapia”, tem cursos caríssimos na Anhembi, sei lá, Ciências da Computação, “Por que você fez teatro, cara?”, mas aí aos poucos eu fui entendendo porque que eu tinha escolhido, eu não podia falar: “Escolhi porque sei lá eu vi uma cena e achei legal e quis, achei que podia fazer isso”, e aí foi interessante, me envolvi no mundo, na verdade, comecei a frequentar, a viver a cidade, mais as pessoas, a ir em festas, a ir encontros fora desse bairro. Aí, eu saía, foi quando eu saí do meu bairro, não vivi mais no meu bairro, só dormia, quando dormia, né? Vivia essa vida mais de classe média, nesse sentido…
P/1 – Teve algum professor ou matéria que te marcou lá?
R – Muitos, muitos! Desde o primeiro, da recepção, Professor Paulo de interpretação… porque tinha muita aula prática, e a aula prática era a que eu tinha mais medo de me expor, de tocar, o tempo inteiro era tocar, era corpo, e toca e toca o outro te toca e fazer cenas e eu tinha muita vergonha de fazer uma cena. Então eram as aulas mais difíceis, mas ao mesmo tempo, as aulas desse professor, ele conseguia deixar a gente mais à vontade, entendia onde as coisas… então no final do ano a gente fez uma cena interessante, ele me elogiou muito, me marcou bastante. Viu que eu era possível de fazer. Aí nos outros anos também, esse professor, as partes de corpo, foram todas muito marcantes.
P/3 – Então foi a parte de corpo mesmo que você sentiu que modificou você…
R – Sim. Aí eles falaram: “Pô, você cresceu, cara! Você entrou aqui você era mais baixo, mais… depois, abriu assim, peito, braço, está mais vivo”, cara tímido, olhando para baixo, meio carrancudo, sabe, sempre estava com boné, não mostrava o rosto, sabe? Fechado, a sociedade é uma merda, tudo é ruim, tem que mudar! Mas eu percebi que eu tinha que mudar também, então lá eu percebi que eu tinha que mudar, lógico que o social é totalmente importante, mas eu tenho que me abrir, me abrir para o mundo, outras pessoas diferentes, outras classes, outro sexo, outro tudo, né?
P/3 – E o teatro te deu essa visão também de mudar o social?
R – Na Anhembi Morumbi, não, foi de eu mais me mudar, acho que foi uma grande coisa assim, eu considero que pra mim foi fundamental. Depois, eu voltei para a questão social, lógico que algumas matérias teóricas, mas não foi um momento que eu pensei tanto nisso, pensei mais… vivi mais eu e as pessoas que estavam ali, de construir esse mundo imaginário, essas peças, vivi as peças na verdade. Vivi ali montando peças, sempre em exercício. Era uma faculdade quase que na prática o meu curso.
P/3 – Existia alguma coisa de timidez que foi também rompido?
R – Sim, sim, eu também era muito tímido, né? Eu não conseguia falar em público, sou tímido ainda eu acho assim, mas eu era bem mais tímido e não conseguia falar, não. E aí, essas aulas, essas pessoas que fizeram comigo foi fundamental.
P/1 – Que peça que te marcou lá dentro que você fez?
R – Olha, a primeira muito forte que era um exercício, mas a segunda já foi uma peça do Brecht muito boa também. A terceira, na terceira eu fui o protagonista, fui o principal já, comecei bem ruinzinho, bem mal conseguia falar, aí no segundo ano, eu já fui melhor, mas ainda não era assim, aí no terceiro no, eu fiz uma peça mesmo assim, Nelson Rodrigues, eu fazia um cara lá o Edgard, não, acho que era o Edgard, e a história bem pesada, uma peça… a peça mais forte que eu fiz, eu acho…
P/1 – Qual que era a peça?
R – Sexo, beijo, tal, tinha… chama “Bonitinha, mas ordinária”, duas horas e meia de peça, era texto pra caramba, aí eu aprendi a falar melhor. E muita gente que viu as minhas peças antes e que foram assistir, meus parentes, minha mãe, meu padrasto também, ele falou assim: “Pô, foi a primeira peça que eu vi dele que tinha emoção”…
P/1 – Eles iam te assistir, então?
R – Minha mãe foi nas peças… no show de rap ela foi, nesse primeiro show que eu falei que eu fiz, ela foi e na peça, ela falou: “Essa peça, você fez essa peça mesmo, me emocionei vendo a peça”, foi muito marcante também para mim. Os amigos falaram assim: “Você tem que ser o personagem” “Não, não” “É o seu momento, você é o único na sala que tem condições de fazer esse personagem de tanto texto que tem” “Mas eu nunca fiz” “Não”, e aí todo mundo incentivou e eu fiz e eu acho que fez bem, né, enfim…
P/3 – Qual era o personagem?
R – Então, ele chamava Edgard, era um cara contínuo que trabalhava numa firma, na qual o patrão dele tinha um filha que foi violentada, supostamente, por cinco homens negros e aí, o pai pegou esse contínuo que era um carinha certinho para namorar com ela, para ela não ser um escândalo para a sociedade, enfim, e aí ele… só que aí, ela tinha mentido, ela tinha pagado para os cinco caras violentarem ela porque… (risos), Nelson Rodrigues, e a peça tinha flashbacks, então aparecia ela com o negão, pegava ela, tirava a roupa dela toda, ficava nua e eu via e falava: “Não, para”, eu era o personagem que ficava no meio dos dois, aí tinha uma namoradinha de bairro e tinha essa que ele tinha que casar, que ele tinha que namorar porque era o patrão dele e ele não tinha grana e aí, ele ficava com uma e ficava com a outra, ficava com uma e aí, ficavam as duas na mente, a memória, vinha essa daqui e essa daqui, e a galera ria, não era uma comédia, mas era muito divertido de ver essa ação. Aí, beijava uma, beijava outra, e caía no chão e apanhava, então uma peça que eu fiz mesmo. O que a minha mãe falou, ela tem razão, que eu fiz com o corpo, com a voz, me entreguei assim.
P/1 – Aí, você convenceu a sua família que era isso mesmo?
R – Aí, não tinha jeito, é isso que ele quer fazer e faz bem, está fazendo, não tinha como… mais o que… eu estava para me formar, já, né?
P/1 – E aí, o que aconteceu depois que você se formou?
R – Assim que eu me formei, eu consegui um trabalho de Oficinas de uma professora lá na faculdade. Ela era política, ela era envolvida, era vereadora, não sei o que, ela fez um projeto de arte e educação no Sambódromo do Anhembi e aí, eram uns camarotes e rolavam as aulas: teatro, dança, música e aí chamou a gente para dar aula, aí fomos os cinco dar oficinas. E a partir dali, fiz contatos e acabou o projeto, fui para outro projeto e fui sempre dando oficinas e fazendo umas peças ali…
P/2 – Oficinas do quê? De arte, educação, teatro?
R – Teatro. Teatro para crianças e aí, dei muitas oficinas em muitos lugares depois desse projeto…
P/3 – Para crianças mesmo?
R – Criança, sempre crianças e pré-adolescente.
P/3 – E como era para você trabalhar com criança?
R – Foi muito bom, trabalhei desde os menorzinhos, eu gostava muito de ver e foi o meu contato com a inserção social que aí esse projeto, as crianças vêm de favelas da Zona Norte, escola de lata, lugares bem distantes e aí, eu ia até esses lugares e aí, voltei a ter esse contato novamente. Aí, fiquei criando peças com eles, improvisando teatros, jogos teatrais e eles se expondo, se colocando. Aí foi muito rico, até hoje me move, eu trabalho com isso até hoje, hoje sou coordenador de um CEU que é na periferia também, trabalho com arte educação.
P/2 – Você continuou escrevendo?
R – Sim.
P/2 – Na faculdade, depois da faculdade?
R – Sim, aí letras de rap eu parei, assim que eu entrei na faculdade que eu fui para esse outro mundo, parei de escrever e comecei a escrever peças de teatro e aí, eu vi que era interessante, no meio colocava uma música, colocava um rap, colocava alguma… tinha professores que incentivavam, falavam: “Você tem que falar sobre você” “Então, eu sou essa pessoa aí”, eu escrevia. Aí, eu sai da faculdade, fui dar aula e também fazer algum curso, fui fazer escola livre de teatro em Santo André. Fiz a Dramaturgia também com o Luís Alberto de Abreu um pouco e depois, com o Quiu e sempre fiz curso de dramaturgia e escrevia as minhas peças nesse mesmo tema, eu fiz peças para eu mesmo atuar, nunca cheguei a alguém atuar, mas eu atuei em duas peças minhas, dois monólogos que diziam o que eu quero, com poesia, com rap…
P/3 – Poesia?
R – Sim, poesia também e sempre dando aula, paralelamente, dando aula que é onde eu vivia, que eu vivo, que é onde eu ganho dinheiro para viver e paralelamente, fazendo peças e cada vez mais autorais assim, chegou um momento que eu fiz algumas montagens, mas com o tempo, em 2007, 2008 foi cada vez canalizando mais para uma… esse professor Paulo voltou, eu chamei ele para encenar uma peça minha, um monólogo, ele falou o seguinte: “Cara, você tem que fazer o seu teatro, cara. Você não tem que ficar fazendo peças burguesas, peças assim, eu sou burguês.”, ele falou, ele é do grupo Tapa, ele falou: “Você tem que buscar o seu teatro", fazer o que te move, o que te interessa”, aí ele teve uma conversa comigo de uma hora e meia assim… pô, eu escrevi umas peças, ele falava assim: ‘Essa peça aí qualquer um escreveria, por que você não faz a sua peça? O que só você pode falar? Isso aí eu poderia falar, eu nunca morei no seu bairro, não moro na Vila Mariana e você está falando coisas que eu sei, então faça algo que seja seu” e aí, isso me moveu, isso me tocou e eu comecei a escrever o que eu queria e aí, em 2008, escrevi a peça “Pichologia”, sobre a pichação, eu comecei a falar sobre pichação, histórias que eu vivi, que amigos meus viveram e depois, fiz o “Boneco de Marcinho”, infantil, baseado nas histórias que eu ouvia das crianças, poesia, rap, até hoje eu faço essa peça desde 2007, 2009, faço até hoje. “Pichologia” eu parei, porque era mais adulto, era mais… mas era o que eu queria falar.
P/3 – E você pichava também?
R – Sim. Nessa mesma época, com 15 anos, eu pichava, os podrão.
P/3 – E foi nessa época que você encontrou os saraus?
R – Encontrei o sarau em 2006, 2007. Dois mil e seis, fiquei sabendo da existência. Aí eu escrevia mais dramaturgia, escrevia rap um período, depois dramaturgias e aí, foi no saraus, vendo que eu falei: “Acho que a parada é mais escrever quase um rap meio que uma dramaturgia, vou misturar os dois”, e eu acho que os meus textos estão um pouco nessa linha mesmo.
P/3 – Qual sarau você ia no começo?
R – Cooperifa.
P/3 – Você lembra qual texto que você mandava? Já mandava Massa?
R – Não, não, não, eram outros textos. Aí, fiz algumas peças desse meu tempo, eu fiz várias peças e escrevi alguma letra, escrevi alguma coisa, trechos de peças, aí eu lia esses trechos, eu ia e lia um trecho de uma peça, mais tímido. Eu chegava lá, eu lia, ficava com medo, tinha certo receio: não sei se o cara vai me aceitar, eu ia para Zona Sul… até escrever uma poesia, não lembro agora, exatamente, qual eu falei, mas eu lembro, aí o Zap, aí onde me marcou. Um amigo meu da faculdade, eu terminei a faculdade só que eu decidi que fazer uma adaptação na Licenciatura, eu não queria fazer Licenciatura no começo, mas depois, comecei a dar aula, que eu terminei, eu voltei a fazer a Licenciatura, fiz e aí, faltavam umas disciplinas, eu conheci uma menina chamada Roberta e aí, ela estava nesse Bartolomeu como estagiária, não Roberta Estrela D’alva, uma outra Roberta, Roberta Marcolini e ela falou: “Emerson…”, mandou e-mail: “Emerson seguinte cara…”, aí era época que eu estava meio que no rap, sai da faculdade, eu voltei meio para o rap, mas não voltei cantando, mas dando aula, periferia, ouvindo as músicas, os novos MCs, aí a galera falava assim: “Pô, Emerson…”, ela falou assim… eu tenho ainda esse e-mail, eu vou procurar, ela falou assim: “Emerson, seguinte, vai rolar uma parada aqui, eu faço estágio num lugar que mistura hip hop com teatro, pô, é a tua cara, é novo isso aí, é um festival, vem, tal dia e tal hora”, eu li e falei: “Porra, um festival, cara, pô”, aí eu tinha um texto chamado “Teatro dos Bonecos Reais”, uma coisa assim, baseado em Woyzeck, meio no hip hop, enfim. Eu sabia que existia teatro hip hop, eu tinha visto Bartolomeu e peças, e pesquisei nos Estados Unidos algumas coisas e nesse dia, eu fui e iniciei essa poesia, não passei nas fases, tinha a escrita, mas não era potente e nem eu falava direito e aí, eu falei: “Porra, esse aqui é o lugar”, aí não parei mais de ir, desde 2008, novembro de 2008.
P/3 – Você pode falar um daqueles seus textos para a gente, então?
R – Qual?
P/3 – “À Massa”.
R – Aí, “À Massa” foi o primeiro poema que eu escrevi para slam, quando eu fui no Zap eu vi, eu escrevi essa poesia, não passei, fui duas vezes, fui três vezes, fui quatro vezes, aí eu fiquei observando: como é que esses caras estão passando de fases, né? Aí eu comecei a observar, aí eu vi que tinha um certo ritmo, aí eu vi que tinha uma história, mais ou menos, que era decorado, que precisava falar mais solto, falavam poesia de uma maneira super leve, aí eu: hum, é por aí! Aí eu comecei a escrever no Zap mesmo, comecei a rascunhar num papel, coloquei “Massa, massa…”…
P/1 – O que você observava que você gostava na época?
R – Então, era o ritmo das pessoas, o ritmo de falar, você diz isso?
P/1 – Quem que foi?
R – Quem? Na época, quem estava mais atuante era o Dugueto Shabazz, o Rafão, o Rapper, o Rocha, o Rocha foi na mesma época do que eu, mas enfim…
P/3 – Rocha Miranda?
R – Rocha Miranda, mas ele era rap, então ele lia, pá, pá, pá… enfim, essas pessoas, eu acho, e a Roberta falando, ela falava de um jeito também; ela participava, mas às vezes, ela mandava no começo e os vídeos, sempre no Zap passavam vídeos, filmes sobre slam. Aí eu fui pesquisando, fui indo atrás, aí eu vi o que eles falavam, tinha que ter ritmo, tinha que ser decorado, tinha que ser atual, tinha que ter lugar. A dramaturgia era outra história, pode ser um texto, pode interpretar lá na frente, enfim, na peça você tem tempo para falar ele, tem um adereço, faz toda a diferença. Lá tinha que ser você e a palavra, mais nada e aí essa poesia que eu escrevi meio que observando o que rolava.
P/3 – Manda bala.
R – É bem simples, né:
“M-A-S-S-A. Massa. Amassa. A massa. À massa!
Eu sou a massa. Volumosa. Pastosa. Máxima!
Pega, joga, passa o rolo ôôô
Aperta eu cresço apareço pronta pro bolo
Quanto maior melhor. Com a farinha e pó. Espalhada mais fraca e mais fina
Fácil pra ser cortada, moldada e dividida. Consumida. Amorfa sem cristalina.
Eu sou grande, mas não importante.
Eu sou igual ao barbante
Que serve pra amarrar e não é valorizado o bastante
Eu protejo o recheio que vai no meio
Eu fico na borda. Sou jogada pra escanteio
Pego a uva passa o argamassa na taça, ai que graça!
Massa. Amassa. A massa. À massa!
Eu sou da massa vou ao estádio ver uma partida
Com a torcida é pinga é briga pra ida economizo até na comida
Meu time massacrado. Volto pra casa amassado na lotação para um bairro amontoado
Exausto pro barraco sentado no sofá quebrado
Eu assisto a televisão, eu fico feliz tenho a última distração
Pra mim existe uma comunicação!
Eu não sou cão eu já disse que sou massa e vou deitar
Eu como massa, preciso esfriar
Pra depois ser usada se não acabo revoltada e aí não dá
Quem fica muito quente pode queimar e estourar
Mas eu não fui feita pra pensar, filosofar. Só enrolar, amassar, rechear.
Amanhã é segunda e tudo há de continuar
Massa. Amassa. A massa. À massa.”. (palmas)
P/3 – E aí você passou?
R – Passei.
P/1 – Foi a primeira?
R – Foi a primeira.
P/2 – Foi a primeira que você passou?
R – Foi a primeira que eu passei de fase. Aí eu vim, decorei, escrevi e falei, ela: “Porra!”, foi a maior reação: “Foi massa, foi massa”, fizeram uma piada, aí passei, aí falei: “Opa, dá certo”, entendi o jogo, né?
P/2 – Como que faz? O que é fase?
R – É assim, o slam, todo mundo se inscreve, dez, quinze pessoas e aí, todo mundo fala e aí, cada vez que… e aí quando termina a vez de cada pessoa falar, são cinco jurados escolhidos na hora que dão notas de zero a dez e aí, a maior e a menor cai e soma a nota, então os cinco melhores classificados passam de todo mundo que falou. Essa é a primeira fase, cinco e depois, três. E eu nunca passava, ficava em oitavo, décimo, mas esse dia fiquei em quinto, quarto, eu consegui passar.
P/1 – Quais são as regras do slam para a gente que é leigo?
R – Poesias autorais, com duração máxima de três minutos, não pode usar adereços, nem figurinos, nem instrumentos musicais, é isso. Basicamente essas.
P/3 – E você criou o seu slam nesse ano?
R – Não, demorou!
P/1 – Depois desse que você passou, como é que foi?
R – Aí passei, aí motivei, aí eu fiquei empolgado, feliz para casa, comecei a escrever mais, escrever, tinha só uma, aí eu fui e fiz… tinha uma segunda que era ruinzinha, aí eu fui um dia e fiz uma terceira, aí eu passava de fase… aí eu comecei a segunda fase, passava de fase e perdia, mas aí quando chega no final, aí perdia. Aí um dia, estava bem ruinzinha, o clima estava… os jurados, pegaram uns jurados bem cri-cri, cinco, uma nota super baixa. Aí por algum motivo, ele gostou de mim, eu falei de um jeito que… aí, eu ganhei, aí a vez que eu ganhei, aí eu fiquei…
P/3 – Com qual texto?
R – Eu não lembro, foi com “À Massa”, eu acho também. Aí criei umas outras poesias interessantes, não me lembro qual era… ah não, fiz uma poesia sobre o meu bairro, Diário do Cangaíba, essa é grande. Você conhece?
P/2 – Não.
P/3 – O Museu está fazendo uma coisa de histórias sobre São Paulo.
R – Ah sim, aí um teatro que tinha lá que eu assisti quando eu era criança que foi fechado e aí, esse teatro ficou fechado e a gente queria reabrir ele, aí eu fiz um manifesto, na verdade, para entregar para a Prefeitura para reabertura do teatro, eu escrevi e lembrei do slam, eu falei: “Vou usar para as duas coisas, vou escrever, mas vou fazer meu slam, um jogo de palavras, tal e aí comecei a fazer a poesia e fiz, ficou forte, deram duas poesias fortes e uma mais ou menos. Aí quando eu entendi o jogo, eu falei: “Vou mandar uma melhor no começo, uma mais ou menos no meio e a melhor no final”, aí eu dei sorte, eu até então não conseguia, eu errava, no meio eu perdia. Aí um dia, eu consegui essa mais ou menos fraca de um jeito que eu passei em terceiro, e fui para final. Aí eu mandei a forte e aí, eu ganhei. Aí eu falei: “É isso a parada”.
P/1 – Em que ano você ganhou?
R – Dois mil e nove.
P/3 –Quer falar essa poesia?
P/1 – Você se lembra dela?
R – É grande! Pode falar?
P/2 – Claro.
P/1 – Pode. Fica à vontade.
R – Vou ver se eu lembro, vamos lá.
P/2 – Essa do teatro Cangaíba?
R – É. Chama “Manifesto por um teatro num lugar maldito”
“Teatro em Cangaíba. Mas Cangaíba fica em São Paulo? E lá tem teatro?
Fica em São Paulo e tem teatro municipal (Uau) Porém fora do circuito da capital (Mal)
Cangaíba que do tupi guarani significa dor de cabeça ou cabeça ruim ou terra maldita
Lugar que não dá nada, segundo os índios, quando sementes eram plantadas
Órgão cultural do nosso subdistrito
Foi inaugurado pela migrante do sertão da Paraíba
Mas homenageá-lo em Cangaíba? Um lugar longínquo demais
Não precisa pedir desculpa bem, esse lugar tem tudo a ver com seus ideais
Interditado por quem Ama São Paulo que não é arquiteto é engenheiro
E que soube bem investir o nosso dinheiro. $uiçeiro!
Deixou tudo pronto para o seu sucessor que continuou com tudo que o turco apitou
Pra reabrir foi preciso que uma nova Estrela brilhasse na cidade
Mas pera aí, vem cá, será que só as mulheres têm sensibilidade? Era Arte Contra e agora é Pela Barbárie
Atores em cooperação pela ocupação Estável teatral
A Cia. residiu interferiu na comunidade local
Os amigos da multidão celebram a vida e saem no jornal.
A dramaturgia é do saudoso Reinaldo Maia do Folias
A Zhaneta no ensaio grita e berra, mas o que incomoda o poder vem e Serra.
E com a serra reparte deixa em parte dividido melhor pra ser controlado e dirigido
Aqui aristocrata acredita ser democrata, só pode estar iludido.
Entra e sai partido e continuamos esquecidos
Mas pera aí, vem cá, onde será permitido? No Céu? Não lá dizem que é subdividido
Um Deus separou cultura e educação, política e religião criando hierarquias e fragmentação
Burocracia que funciona para os que estão no plano superior
E nós aqui embaixo ainda estamos esperando Godot
A reforma virá, é só esperar! Não senhor
As ruas pedem urgência! Cadê o telefone pra eu ligar? S.O.S Flávio Império você tem que voltar!
Pois saiba que os Fuzis da senhora Carrar estão guardados pra hora que precisar
até a Falecida de Nelson vai reencarnar e convocar os Poetas da Vila e seus amores
Donas de casa, operários e artistas amadores
Pra fazer a Oficina da antropofagia periférica na sua portaria
Electra, Prometeu prepare o fogo e Dionísio a orgia
Porque se isso não for do povo aí sim irão ver o que é exercer cidadania
Vão sentir o amargo dos Mais Doces Bárbaros de Gals, Marias
Gils e Caetanos. Os coletivos de artes estão ensaiando
Pintando sua aldeia e cantando Zumbi
A Periferia é Invisível até a hora de explodir
A revolução cultural permanente
Do Brás a Cidade Tiradentes
As Pombas Urbanas pedem paz ao som de Racionais na guerra que parece do Oriente Anonimamente encenando a vida no Cortejo Livre Leste na avenida Itinerante. Vamos avante! Vem comigo!
Por um teatro num lugar maldito. (palmas)
R - Essa poesia foi enfim, foi também… aí o que aconteceu? Eu ganhei, 2009 que eu falei. Aí essa poesia, ficaram duas fortes, tinha uma terceira que eu não gostava tanto, mas rolou. Aí eu ganhei. Aí eu falei: “Puta, acho que agora…”, aí foi logo perto da final, aí fizeram a primeira final do ano, não tinha, foi o primeiro ano do ZAP, em 2008 começou, mas foi um mês só, 2009 que foi. Aí foi a final, aí eu cheguei na final, falei aqui, dez. Aí eu preparei uma outra poesia, não lembro agora, não era também legal, chamava “Coma”, decorei rápido. Aí o que eu fiz? Falei… só tinha cara bom, né, todo mundo tinha ganhado, então não era… o dia que eu ganhei foi um dia meio fraco, estava até chovendo, tinham poucas pessoas, tinham sei lá, seis pessoas concorrendo só e aí, eu acho que eu dei uma sorte.
P/1 – Em 2010 foi diferente, né?
R – Não, foi em 2009. Aí quando eu ganhei a segunda edição mensal, são edições mensais, aí eu ganhei num dia meio fraco, mas ganhei e aí, tem a final de 2009 e aí tinha todo mundo que ganhou. Eu falei: “Pô, só tem monstro aqui”, pessoas que eu gostava, que eu admirava, ia competir com eles, aí pensei na estratégia: vou mandar as duas melhores porque não vou nem passar, um dos jurados era Marcelino Freire, sabe, chamou um monte de gente, foi na Casa das Caldeiras, uns amigos, eu chamei… aí eu mandei “À Massa”, aí pá, rolou, não, mandei esse agora do teatro, tinha uma galera de teatro, pô, vibravam, pô… ganhei, passei, mandei “À Massa”, passei, cheguei na final, estava eu, o Zinho Trindade e o Dugueto, esses caras mandavam poesia rasgando, inflamado, aí eu mandei essa terceira que era fraca mas fiquei em terceiro, fiquei super feliz, fiquei: “Porra, caralho, fiquei na final com esses caras, mano”, e aí comecei a me dedicar, aí me dediquei, aí em 2010 foi diferente, aí foi um ano em que eu entendi mesmo como é que rolava, aí eu ganhei uma vez, fui para final e ganhei a final.
P/3 – Ah, você ganhou 2010, fio campeão mesmo anual.
R – Sim.
P/3 – Com qual você ganhou?
R – “Senhor da Limpeza”.
P/3 – “Senhor da Limpeza”? Quer aproveitar?
R – Pode ser, vamos lá. Aí me preparei um ano. Aí eu mandei essa poesia:
“Não pode ter metro em Higienópolis porque vocês... esta vocês vão ter que responder.
Eu sou o senhor da limpeza. A minha função é tornar a cidade uma beleza. Um lugar que não haja sujeira, nem ali nem aqui, nem lá nem cá, poeira. Comigo tudo ficará puro e limpo, um campo limpo sem Ângela, sem Miriam, sem Missionária em um grande Olimpo. Juntarei toda a Bela Cintra sem semita num monte azul, um paraíso igual no sul com Mariana, Madalena, Ana Rosa formando a árvore genealógica de ótica verde e azul. A Liberdade será assistida da ponte estaiada acabando com a sabotagem, queimando o canão do Brooklin Sul.
Joga água lá pra cima! Vem, vem chegando a faxina! Varre, varre! Vou varrer! Tá me olhando assim por quê? Estou trabalhando e você? Vá pra lá! Onde ninguém possa te ver, lá sim poderás viver!
Vou tirar da Augusta a angústia da puta que pariu os filhos do café e que agora abriga os da cana que parecem o povo de Gana que vêm no arrasta-pé.
Na Paulista vou deixar a Bela Vista com o branco casarão e o negro barracão Vai-Vai, Vai-Vai lá pro Capão com o seu Bixigão. Só consolação, os jardins, os pinheiros, os campos belos. E uma nova Luz com missa de Frei Caneca abençoando esse novo castelo.
Tenho que deixar essa praça sem mancha, sem jaça. A República vai parecer Colônia. A garoa vai cair como neve sobre cedros, igualzinho na Polônia.
As palavras de ordem são: revitalizar, desanuviar, clarear. Uma política que realmente se diga; transparente. Aliada com o meio ambiente em uma separação por cor, reciclando ideias arianas que o socialismo gelou. Pela maneira mais correta e disciplinar da coleta seletiva, também apagarão dos muros grafite e pichação e no lugar, reprodução de obras renascentistas com frases de Goethe e Nietzsche, educando os leigos pobres e tristes.
O comércio agora terá uma estética refinada, referência a Bauhaus e uma arquitetura fascinada. Vidraças, cerâmica germânica. Nas rádios, só se escutarão canções wagnerianas ditando um novo ritmo para o avanço da raça humana.
Ruas imaculadas moradores sentirão orgulho de residir e poder dar um passeio ver o asseio de madrugada ao lado de pessoas polidas e bem asseadas. E para completar esse processo de higieniopolização só vai faltar adotar como idioma local o alemão.” (palmas)
Eu falo mais inflamado. Essa é onde eu usei a dramaturgia e atuação, eu falo meio nazista assim, pá, pá, eu inflamo quando eu estou…
P/2 – Aí você ganhou?
R – Aí eu ganhei. Aí mudou, aí a galera passou a me conhecer, até então nesse cenário, eu não era conhecido. Meus amigos: “Tá indo bem”, aí nesse dia tive uma projeção já, aí fui convidado para participar de eventos no Sesc, para circular pela cidade, convite para antologias, enfim, comecei a aparecer em 2010, muito forte. Aí me dediquei só a isso, aí comecei a…
P/1 – Você chegou a lançar livros?
R – Aí, logo na sequência… aí, uma projeção grande dentro do rap, eu cantava rap como falei no começo, era um grupo pequeno, tive uma certa faminha no bairro, aí o Emicida e o Kamau estavam no… aí onde eu ia era o que ganhou, eu chegava nos lugares, outro dia eu fui num lugar: “Pô, o cara aí ganhou”, os caras não paravam de olhar para mim: “Fala aquela poesia lá, À Massa”, e todo mundo dava aquela atenção, qualquer palavra que ia as pessoas vibravam. Aí, estava o Gog, vários poetas: “Pô, quem é essa cara? Vamos chamar ele com a gente, vem com nós”, aí eu participei de um CD do Kamau, chamado Entre, um EP dele e teve muitos fãs, enfim e eu comecei a fazer shows com ele, eu abria shows, fazia aquelas poesias e o público dele passou a me conhecer e começou a ficar estranho, andar na rua e as pessoas me reconhecerem, foi 2011 já, final de 2010 eu ganhei, aí isso tudo em 2011, 2011 foi um outro ano de entrevistas e matérias de jornal, foi uma coisa absurda, estou na rua, autógrafo: “Autógrafo, deixa eu tirar uma foto com você?”, pra que tirar foto comigo, né, cara?
P/1 – Acontece bastante, mesmo?
R – Na rua, é, metrô: “Não é aquele cara lá que ganhou?”, 2010 ainda… e aí, fui no Sesc e eu fiz um que chama Circuito Sesc de Artes, rodei, incrível, era um grupo de teatro da Espanha, um grupo de música do Rio, King Combo, um tipo James Brown do Brasil, que ele canta música negra, um grupo de dança de Goiás, eu fui recitar poesia com o Buzo, o Buzo me chamou para fazer o evento. Aí eu ganhei uma grana nesse dia, foi um mês de viagem, cada dia uma cidade. E aí, com esse dinheiro, aí o Buzo falou: “Pô, lança um livro, cara”, falei: “lançar livro, cara?” “Tenho três poesias só, quatro que eu falo”, aí eu tinha mais coisa guardada, aí eu peguei tudo que eu tinha escrito antes no rap, no teatro, as dramaturgias, aí eu juntei, com esse dinheiro eu paguei e fiz o meu livro “A Massa”, em 2011, abril de 2011 eu lancei meu primeiro livro.
P/3 – Bilíngue, né?
R – Não, aí o primeiro foi só português, saiu uma versãozinha bem simplisinha, paguei, não tinha onde ir e fiz. Foi muito legal e aí também já deu uma… lancei em muitos lugares, uma projeção bem legal. E aí, nessa viagem, eu aprendi também, tinham os espanhóis desse grupo de teatro e aí, eles me falaram: “Você tem que promover o seu trabalho, você tem um trabalho muito legal, mas se você não promover ele, não vai acontecer”, e foi onde eu comecei a me preocupar mais na divulgação para fazer com que o trabalho acontecesse, porque até então, eu só ia em slam e falava, né, e isso acontecia, não programava a minha carreira, não pensava ela, programar, o que fazer para… programar projetos, né?
P/1 – Além do livro, você passou a fazer o quê? A partir dessa vitória?
R – Palestras, oficinas, 2011, muitas antologias, participei de umas 12, 13 antologias de literatura, feira de livro, 2011, é foi mais nesse sentido, né?
P/1 – E você estava se sustentando praticamente com isso, só?
R – Sim, sim, chegou uma época que vivia só disso. Aí eu entrei numa escola, escola de teatro… quando eu cheguei na final de 2009, eu falei: “Puta, eu preciso me dedicar mais a escritura”, aí eu entrei no curso de dois anos de dramaturgia, foi também muito bom, professores feras, tinha uma Bolsa de estudo.
P/2 – Onde esse curso?
R – SP Escola de Teatro.
P/2 – Ah, na SP.
R – Foi a primeira turma, a escola estava abrindo, foi uma coisa também, primeira turma, fiz parte e aí, era só escritura, dramaturgia, mas eu fazia dramaturgia pensando na poesia, me ajudou muito, fui dirigido por algumas atrizes, tinha lá o Roberto Alvim, o cara que mudou bastante a nossa vida, radical, da arte e a mulher dele, a Juliana Galdino, não sei se você conhece, uma atriz? Aí, uma das aulas era falar… tive quatro aulas com ela de atuação, ela é uma atriz incrível, muito reconhecida no meio de teatro, mesmo! E aí, tinha que escrever um texto e aí eu escrevi um poema, aí ela gostou: “Porra, do caralho”, e ela me dirigiu, ela foi, me pegou e falou: “Fala”, foi me dirigindo, e ela falou o texto, sabe, ela falou de uma maneira foda e eu vi ela falando, fui para o ZAP e ganhei também e aí, eu ganhava um dinheiro com isso, a escola, ganhava bolsa e depois, que eu entrei nos CEUs, mas um ano e meio só.
P/3 – E a Guilhermina?
R – A Guilhermina vem em 2012, fevereiro de 2012, com a necessidade de criar um outro slam, porque tinha o ZAP que eu ganhei, mas chega uma hora que você tem que dar uma outra coisa, não tinha outro slam, ninguém entendia que era uma linguagem, entendia que o ZAP fazia isso, uns achavam que era burguês, o sarau da periferia, alguns iam, outros falavam: “Porra, é fechado, só tem galera de teatro”, que iam os amigos deles, o Bartolomeu no Bar Pompeia, eles são uma parte é do movimento negro, outra parte do teatro, simplesmente e os grupos iam se… e também a galera dos saraus iam. Alguns tinham uma certa crítica, teve uma época que bombou, teve uma época que começou a não ir tanto, eu sempre adorei, sempre fiz a minha carreira lá, mas a Roberta falou assim: “Queria um outro slam, cara, pra gente poder ter esse outro ponto”, aí eu fiz na Leste, resolvi fazer lá, criei um sarau em principio, só que aí, ela falou para fazer slam, slam, eu falei: “Então vamos tentar fazer slam”, no começo recebi muitas criticas: “ZAP, cara, você vai fazer um ZAP?” “Não é ZAP, vou fazer um slam” “Mesma coisa, nada a ver, cara, competição, divide as pessoas, movimento não é isso”, a galera tinha crítica: “Divide as pessoas, o sarau que é comunhão, onde todo mundo se aceita”, aí fizemos o slam, aí no primeiro dia já foi bastante gente, é mensal, Roberta foi, as pessoas foram e aí virou uma referência na Leste, eu acho, e as pessoas começaram a fazer slam, aí veio o segundo, terceiro, quarto, quinto, sexto…
P/2 – Onde que acontece?
R – Metrô Guilhermina Esperança, faz do lado do metro, sai do metro, tem uma pracinha, praticamente, dentro do metrô, acho que é até anexa e aí, levamos lampião, fazemos em roda, tem 200 pessoas, 300 pessoas que se encontram, né? Movimento até dá problema de tanta gente que vai. Mas rolou porque queria fazer um outro slam, eu queria fazer isso e aí, deu uma aquecida aqui, com o Guilhermina e outros que foram surgindo, né?
P/1 – E seus primeiros vídeos, como foram?
R – Foi também de criar essa outra mídia, de chegar na… eu tinha que ter um material também, ter algo para as pessoas poderem assistir, aí pesquisei na gringa, vi algumas pessoas que faziam, aqui no Brasil não vi e aí, tinha um amigo que estava fazendo vídeo, comprou uma câmera, tinha uma mesa de edição, e aí ele falou: “Vamos fazer uns vídeos”, e aí começamos a gravar, gravamos o áudio e fomos para a rua, começamos a gravar o vídeo, “Oqueelatinha” primeiro, depois fizemos outras coisas, isso me ajudou muito a divulgação.
P/3 – Quer falar do “Oqueelatinha”?
R – Você fala melhor que eu. Eu ganhei o ZAP também com ela, mas depois eu parei de falar ela, eu acho ela legal, minhas primas falam, eu tenho um vídeo… eu tenho vários primos que eles falam a poesia, o maior barato, né?
“A senhora estava andando pela rua quando caiu
O que ela tinha?
Tonturas, dores, fome, frio? Oqueelatinha? Não se sabia. Ela não dizia o que tinha
Nossa, você viu, mas o que ela tinha?
Lá tinha um cãozinho deitado tremendo de frio
latia lambia a tia
A multidão parou pra perguntar o que ela tinha
oqueelatinha
Antes ninguém queria saber o que ela tinha
Mas agora todos querem saber O QUE ela tinha
Lá tinha, Do tinha, ré tinha, fá tinha, sol tinha, pre tinha
Mas afinal de contas o que é latinha?
Uma lata pequena o antônimo de latão
Não. Não?. Não!?
A senhora morreu deitada no chão abraçada com a única coisa que tinha
Suas latinhas” (palmas)
P/3 – Ainda tem a “Flor” também pra declamar.
R – Tá, aí foi um clipe também que eu fiz, têm muito acesso, as pessoas falam junto, aí eu chamei as meninas para fazer, foi o mesmo cara que fez, o Binho.
P/3 – O Binho?
R – Não, o Binho Santana. E aí fizemos também os vídeos, aí parei de fazer, aí não fiz mais, foi em 2011, se eu não me engano.
P/3 – Mas aproveita e fala a “Flor”.
R – A “Flor”? Não me lembro mais não, cara, vamos ver.
P/1 – Você quer falar a “Flor”, você se lembra?
P/2 – Como é que foi?
R – O quê?
P/2 – Você não foi para França, que foi selecionado? A Roberta contou…
R – Posso falar, sim, sim. Posso falar a poesia ou quer que eu…
P/1 – Pode ser a poesia antes, se você quiser.
P/2 – O que você preferir.
R – Mas posso falar, isso é importante.
P/3 – Pode falar os dois, também (risos).
R – Posso falar a poesia:
“Seja como for
Seja como flor
Em seca que for cultive o amor
Que ele ou ela virá
Beijará AfroDite dirá
Se precisar afrô afrontará
Mas quem vier pra sentir sem tirar sentirá
Se te plantaram tu és planta
Então seja como flor
Tua semente foi plantada em terra preta
por mãos sofridas
E não no algodão branco artificial do cientista
Eu falo em nome das rosas despedaçadas
pelos cravos cravinhos cravocratas
Ossain olha a mim não esqueça
Seja como for cresça Seja como flor floresça
Não é pra ser florido é pra ser floral
Igual uma cereja no imenso cerejal
Simbolize a paz a morte em maços de florais
Mas principalmente os desejos sexuais
Você tem preço só pro vendedor de flor
Pros amantes tu tens valor
Seja como for negô Seja como for negá
Mas não vai negar
A sua raiz
Ela cresce pra baixo pra você poder subir
No verão se feche pra se nutrir
Depois se abrir e ajudar as outras a florir
Você nasceu na rua foi pisada e tachada de feia
Cresceu fora da mata foi usada e largada após a serenata
Entendeu agora por que não da pra ser florzinha
Que ao ver o guardinha gela?
Tem que ser forte que nem a planta favela
Reagir Resistir
Proteger a sua floribela na primavera
A reprodução
E quando mudar a estação
Não fique parado na anterior
Seja como flor
Floração
O mundo não para girassol
Cai a chuva e vem o sol
Não se preocupe se isso vier a desbotar a sua cor
Porque a sua essência é vermelha
e será sempre afro”. (palmas)
P/3 – E aí, conta a história da França então, como foi.
R – Vamos lá, França.
P/2 – Como é que chegou nisso?
R – Eu falei, 2010 eu ganhei, aí 2011 eu não ganhei, aí 2012 também não, mas continuei fazendo, aí fui fazer outros projetos, poesias, aí 2013, falei: “Bom, agora é a minha vez… agora eu acho que eu tenho que ir, minha vez de ir, as pessoas foram, tal”, e aí me preparei bastante, eu fiquei me preparando como que eu ia falar, que tipo de poesia que eu ia falar, o que eu ia falar e aí, eu ganhei no final do ano também, ganhei uma vez e ganhei o slam SP que eram com vários outros slams, tinham cinco slams e tinha pessoas de fora e aí, eu ganhei uma poesia que falava da França, um texto falando dessa relação do Brasil com a Europa, enfim, e aí, fiz essa poesia e falei lá, ganhei aqui e aí, chegando lá, são 20 países que a princípio tinha e eu queria passar de fase, os dois últimos poetas que foram, eles não passaram da primeira fase. A Roberta foi a primeira, ela ficou em terceiro, só que aí ela é atriz, tem uma… é uma pessoa performática, tal, ficou em terceiro, quase ganhou. Aí foi o próximo, o Boca, ficou em último, não em último, mas não passou da primeira fase. Aí foi o Lews, também não passou da primeira fase e os dois falaram: “Muito difícil, cara, os caras não entendem o que a gente fala, os caras são meio atores, não sei, são engraçados”, são meio stand up mais ou menos, “…e não sei se rola”, e eu fiquei com isso na cabeça, aí me preparei, me preparei bastante, a “À Massa” que eu falei foi a poesia… foi o dia em que eu falei melhor ela, aí eu fiz uma terceira parte, adaptei umas coisas, “À Massa” agora, eu falei duas partes, aí eu falei: “Vou lá…”, foi perto da Copa do Mundo aqui, aí eu fiz uma terceira parte falando sobre: eu sou a massa das obras dos estádios da Copa do Mundo”, fiz uma crítica a Copa e aí, foi a primeira que eu mandei, mandei trincando, entrei no palco e pá, mandei e a galera: “Wow”, foi a nota mais alta dada, aí eu falei: “Opa, a galera gostou, entenderam”, era bem direto. Aí eu passei a primeira fase e aí eu fiquei super emocionado, chorei na hora, eu sou uma pessoa que não choro tanto, mas chorei, aí comecei a lembrar de tudo, lembrei do Cangaíba, lembrei de falar no sarau que às vezes, não tem quase ninguém, chovendo, e estar na Copa do Mundo, no teatro, com os melhores de cada país, Inglaterra, Estados Unidos, França, Bélgica, enfim, países do primeiro mundo, que estudam muito, Noruega, Dinamarca, eles têm um acesso ao estudo tão grande que eu não tive tanto e estou de igual a igual com esses caras, né? E aí, foi a semifinal, a semifinal passei de fase, aí falei: “Bom, agora tenho que ganhar, agora é o momento”, aí eu foquei nisso e aqui no Brasil foi numa campanha… os outros, eu não sei se chegaram a acompanhar, mas não tanto, mas eu tinha o sistema online, só que dessa vez, como já tinham ido várias pessoas, isso já estava começando a se espalhar um pouco pela cidade, então a galera começou a assistir ao vivo e começou a comentar, aí fizeram a campanha… cheguei na final, todo dia que eu acordei, cara, peguei o celular, liguei, eu vi, tinha sei lá, umas 300 mensagens, todo mundo comentando, foto, aí fizeram uma campanha: “Somos Todos da Leste, o Alcalde me representa”, um monte de… na escola que eu estudei, cara, pô, aí eu comecei a chorar quando eu vi na República do Uruguai, uma professora de Português, que me ajudou muito, ela me incentivava, tal e aí, ela fez, ela pegou os alunos dela todos e fez uns cartazes, um monte de cartolinas, colocando: “Emerson, na Copa do Mundo, estamos com você”, caralho, falei: “Não acredito, mano”, então parou para assistir, sabe, jogos e uma mulher grávida, uma anã, escreveu na barriga dela, na hora que eu vi aquilo, eu falei: “Que loucura, cara”, fiquei mal, você fica um pouco responsa, todo mundo torcendo, eu não vou conseguir ganhar, são seis poetas, os melhores países estão na final, aí fiquei malzaço, não conseguia sair de casa, mal de feliz, pra caramba de poder representar e aí a final foi muito emocionante, fiquei treinando o dia todo as poesias, só que uma eu errei, para falar a verdade, eu ensaiei quatro, são três só que eu estava na dúvida de uma, da França, eles não gostaram tanto, é uma poesia que fala mal da Europa, ficaram meio… “Aquela poesia é meio pesada, cara”, mas aí eu fiquei nela e uma outra e ensaiei quatro, fiquei ensaiando, ensaiando, ensaiando e na hora eu decidi, aí eu sentei, era última, mandei uma, plá, foi, segunda, pá. Aí, a terceira, mandei essa, aí a minha nota foi mais baixa, nas duas estava indo bem e os caras tinham, um passou o tempo, o outro… o canadense estava me seguindo, foi engraçado, ele estava no meu quarto e pediu para mudar, lá, a gente fica hospedado na casa de alguém, aí chegou eu e esse canadense, aí ele pediu para trocar de quarto, ele falou que foi porque ele não falava português, ele queria se comunicar, eu não falava inglês, agora estou estudando, mas na época, não falava nada e ele não sabia falar outra língua a não ser o inglês e aí, ele pediu para trocar de quarto, mas ele estava meio assim comigo, ele já sabia que eu ia ganhar, aí ele ficava de lado, eu ficava meio da lado, sabe, a gente se via, aí as pessoas comentavam: “Quem vai ganhar é Brasil ou Canadá…”, um pouco antes de começar a final, “… está entre vocês e se você ganhar, vai ser o primeiro país na história a ganhar que não fala inglês e nem francês, até hoje só ganhou Estados Unidos, Canadá, França e Inglaterra, você seria o primeiro”. Aí, eu fui nas duas melhor do que ele, nas duas, fui na frente, primeiro, aí na terceira, eu falei: “Qual que eu mando?”, aí falei: “Eu estou aqui já, vou falar da França”, estou aqui, né, pô, venho até aqui, eu tinha falado, na verdade, depois eu fui um pouco adolescente, eu podia ter deixado quieto, eu já tinha falado ela nas eliminatórias, eu já tinha dado o efeito, já tinha dado a pancada, né? Tinha uma outra mais leve, essa que eu fiz com a Juliana Galdino, que era mais leve, mas a galera gostou, ela é meio surreal, fala assim, acordes grafitados, fala de pichação, fala de… é meio Van Gogh, meio Artaud, e aí eu treinei ela, ela tem umas imagens, sabe, bem sútil, bem europeia, aí eu falei: “Não, vou na pancada, vou acertar o pau”, aí eu estava na primeira e ele aqui, aí ele foi super bem na última, ele subiu e empatamos, falei: “Porra, fudeu”, aí chamaram nós dois no palco: “Vem cá Emerson e Ikenna”, Canadá, aí fiquei pensando o que ia acontecer, aí o apresentador fala francês e ele é um cara meio dark e eu entendo francês muito pouco, estudei francês mas não chega a ser para entender uma pessoa que fala no dia a dia e aí ele… começou a falar inglês, pior ainda, o inglês dele era mais estranho do que tudo, e aí, o que eu faço? “Vai” “Vai o quê, cara? O que eu tenho que fazer?”, ficou um tempão sem eu entender o que eu tinha que fazer, aí ficou um silêncio, sabe, e a gente se olhando ele tentando falar comigo e eu não entendia, ele meio bravo, aí veio um cara lá do fundo… e a Mirian estava, só que ela ficou super nervosa, ela não conseguia se mover da cadeira, ela estava lá no fundo e não conseguia me ajudar. Aí veio o cara de Nicarágua: “Eu sou de Nicarágua, ele quer que você faça jokenpô, sabe jokenpô?”, eu falei: “Ah sim, vamos lá”, aí eu perdi, ele colocou pedra eu acho e eu coloquei tesoura eu acho e ele colocou pedra e ganhou. Aí, Puta! Aí ele falou: “Você começa”, ele mandou eu começar e sentou, aí eu falei: “O que eu falo?”, aí eu tinha esquecido que eu tinha ensaiado essa, tinha ensaiado quatro, certo? Mandei três, tinha uma que eu sabia muito de cor, muito boa, eu ganhei. Aí eu fiquei: “Porra, o que eu falo?”, aí ele foi lá e falou: “É a sua vez, vai, um, dois, três”, eu: “Escolhe a poesia”, olhei para o computador, fiquei olhando e não vinha nada, sabe, olhava assim, como se eu tivesse olhando para o teto, aí olhei, falei: “Essa”, chutei qualquer uma, sabe? Mas mandei a “Meus Heróis”, é uma poesia que não dá, aí falei: “Essa aqui é forte também”, uma poesia que fala, pá, uma certa inflamada, aí eu fui nessa, aí falei, aí não rolou, aí falei, fui bem, minha nota foi super alta e tal, aí ele veio com uma que ele tinha ganhado, esse Ikenna, ele foi dois anos antes com o Fabio Boca e tinha ficado em segundo e ele foi preparado, ele foi para ganhar e ele tinha poesia com a Nigéria, ele senta o pau, ele também já tinha falado antes, uma poesia tipo dichavando a Europa, mas no sentido mais racial, do lance que teve do zoológico, zoohumano, teve uma exposição de humanos na França uma época, de pessoas diferentes: um negro, um aborígene, enfim e o avô dele tinha participado, sabe assim? Mas foi pancada, ele veio e pau! Falando inglês também e à medida que ele falava, o pessoal começou a vibrar, aí eu falei: “Já era”, aí eu perdi e fiquei em segundo nessa parada, mas fiquei mal, fiquei triste para caramba, falei que eu não queria mais saber dessa merda, os caras: “não, você fixou em segundo na Copa do Mundo, cara, 20 países ali, só país grande” “não, não quero saber”, fiquei mal, fiquei uns dois meses no Brasil sem ir mais em sarau, quase desisti porque sabe, você quase chega, se eu tivesse mandado aquela que eu tinha preparado, mano, não sei também, podia ter perdido também, mas você fica com essa, né: “Aí que merda”, fiquei mal para caralho. Mas aí foi legal, depois eu fiz amizade com ele e agora, eu estou indo para o Canadá, ele me chamou para um evento dele, em Toronto, que ele organiza um evento e então vou para lá agora, no mesmo período da copa, final de maio. Então, pode ser que um dia eu volte também, não sei, hoje em dia, tá outra cena, tá maior difícil, né, mas…
P/3 – Quer falar da França?
P/2 – Aí depois, a gente caminha para a parte final que ele tem que sair.
P/3 – Tá, final aí depois fazer uma retrospectiva, da Guilhermina, tudo. Então vai.
R – “Vocês nasceram no mesmo ano em que nos descobriram
Nos pegaram sem roupa não falávamos o seu idioma
Tomaram para si nossos tesouros
Natureza, mulheres, ouros
Envelheceram e apodreceram cultura e economicamente
E o que irão fazer? Voltar a explorar o novo mundo?
Mas vocês levaram quase tudo
Diferente do passado
Estamos vestidos iguais a vocês
Falamos o seu inglês, francês.
Lemos os seus livros e dizemos:
Teu Joyce não é melhor que nosso Guimarães
Vou falar com toda franqueza
Me desculpe a tua revolução foi burguesa
Mas neste lugar apesar dos pesares
ainda tem glamour e elegância
Faz com que muito de nós sonhe
E que fique cego de ganancia
Assim como as companhias de comedia dell’arte italiana
O sonho era chegar em Paris
O sonho de todo menino de pés descalço
é jogar no Barça, Real, Milan, PSG, Chelsea
Ele não estuda se dedica apenas ao futebol
Mas da peneira, que é pouco diferente do tráfico negreiro,
só saem alguns, dentre os milhões
que voltarão a andar com os grilhões
Iludida com renda fácil
O trabalho era dá. De primeira eu incitei. Chorei. Mas depois DEI
Estou presa num hotel pensei em regressar mas fiquei
O sonho para travesti é entrar ilegal no teu país pra se prostituir
Estar na pior lá? Prefiro tá bem, merci.
Hoje eu sou o menino, sou a puta, sou o travesti
Aceitei o seu jogo estou aqui
Com as pernas abertas dentro das suas regras
querendo competir
Mais um macaco que veio pra te distrair
No teu estádio, no teu teatro na tua boate
Me deram apenas a bola então tive que roubar a caneta
Rasguei a bola e passei a treinar com a escopeta
Não foi você que explorou não fui eu que sofri
Eu sei, mas eu e
Todos os Latino-americanos pagamos
E você não, então fecha o bico já acabou a hora do show.
Pediram tanto capital emprestado e não pensaram
Com tantos pensadores até Antes de Cristo
e Hoje em crise
Pega este troféu
simbolizando as igrejas, os castelos DEVOLVA-NOS
Aquela mesma matéria que de nossas terras foi tirada por escravo
Escravo que hoje faz seus tênis
Que esta retorne à Minas mesmo que Minas não exista mais.
Este troféu será exposto no boteco da periferia
ao lado dos times de várzeas
Pois é assim que entendemos o slam.
A poesia oral redigida com sangue
Resignificou o seu aristocrático sarau
E voltou pras ruas pras rodas, ao ritual
E se quiser a literatura viva de volta para cá
Terá que vir batalhar lá
com os espíritos herdeiros
Dos Bantos, dos Incas, dos Maias e dos Guaranis
Eu praticarei o suicídio se for preciso
mais isso vocês não roubam mais de mim”. (palmas)
P/1 – Como é que está o cenário hoje de slam e de sarau em São Paulo? Você falou que está mais difícil em 2015.
R – Ah, tem muito mais, hoje já existem… tem cerca de 13 slams no Brasil, em são Paulo deve ter dez, nove, dez, comunidades slams, , então agora, final é… quando eu fui para a final, tinham cinco só, cinco slams, então a pessoa precisa ganhar o slam do mês, precisa ganhar a final daquele slam e ir para essa final e ganhar desses 12, desses 13.
P/2 – Mas o seu continua lá?
R – Continua.
P/3 – Como que está o Guilhermina?
R – Sim, todo mês, ele faz, eu apresento, eu não posso competir, eu sou o apresentador, todo mês tem, a gente faz em escolas também, ganhamos um edital Proac que a gente vai fazer o slam interescolar em seis escolas na região, fazemos naquela escola e os dois melhores classificados vão disputar na Guilhermina o slam entre eles. Então o projeto continua, os slams, contatos com outros lugares, pessoas que vêm para cá e vão no slam para conhecer e vou para o Canadá agora, vou fazer outros contatos lá, a gente também tem contato, a gente… o slam, ele deu uma unificada, eu acho na nossa cena, sabe? Tinham muitos saraus, só que o sarau unificou as periferias, os coletivos e o slam unifica o mundo, todo mundo usa esse nome Poetry Slam na África, Japão, Estados unidos, Canadá, então, Guatemala vai aparecer, Brasil, então a gente está em conexão. E eu acho que eu indo para lá fortaleceu também nosso slam, lógico, saber e a outra cena também, as pessoas que vão no nosso vão em outros e o fato de eu ter ido para lá e ter ficado em segundo mostra que é possível, né, pessoa pensa que eu moro aqui, fui até lá e quase ganhei, então porque eu que moro aqui, posso fazer também, né?
P/1 – Vocês querem fazer pergunta?
P/2 – Quais são os seus maiores sonhos hoje? (risos) Sonhos pequenos também. Quais são os seus sonhos?
R – Meu sonho? Eu quero que cresça mais, penso em fazer cada vez mais eventos, que isso seja uma… que o lance com as escolas dê mais certo, sonho em um dia fazer um interescolar com 200 escolas, 300 escolas, estadual, interior num ginásio, no Pacaembu (risos) e fazer um grande slam com a molecadinha, acho que seria o meu sonho no momento. Ter um filho também, eu queria ter um filho, não tenho ainda. Acho que em breve, gostaria, meu sonho é ter um filho.
P/1 – Como é que foi contar a sua história para a gente hoje?
P/2 – Para o Museu da Pessoa?
R – Ô, cara, foi difícil falar, é uma chance de poder se expor. Agora, eu lembrei de várias coisas, de coisas que eu não lembrei, mas que… muita abertura, senti agora nu, não tanto, mas acho que eu consegui me colocar, explicar algumas coisas e foi muito bom, muito obrigado aí.
P/2 – Qual a importância que você vê de deixar um depoimento aqui registrado no Museu?
R – Fundamental pela nossa história, acho que a gente contando história, eu creio que é o mesmo que ouvir esses depoimentos pelas pessoas que a gente não tem acesso, acho que o que vocês estão fazendo é fundamental para a humanidade, daqui 50 anos, 100 anos, uma pessoa vai ouvir e falar o que a outra pessoa disse, o jeito dela se vestir, o jeito de olhar, isso é riquíssimo, uma coisa genial. Tomara que enfim, já existe, né, queria que existisse antes, né, para poder ter acesso, vai ser um material que nem um quadro de artes onde ficaram as pessoas falando é fundamental.
P/2 – Obrigada.
R – Agradeço.
FINAL DA ENTREVISTA
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