Projeto Kombiblioteca Poética
Depoimento de Marco Antonio Iadocicco (Marco Pezão)
Entrevistado por Jonas Worcman e José Santos
São Paulo, 23/04/2015
Realização Museu da Pessoa
KOM_HV006_Marco Antonio Iadocicco (Marco Pezão)
Transcrito por Karina Medici Barrella
P/1 – Boa tarde.
R – Boa tarde.
P/1 – Queria começar a entrevista perguntando o seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Meu nome é Marco Antonio Iadocicco. Nasci na Vila Sônia, São Paulo, em 5 de fevereiro de 1951.
P/1 – E você podia falar o nome dos seus pais e que atividade eles faziam?
R – João Iadocicco, funcionário público, falecido. Minha mãe, Iolanda Iadocicco, doméstica.
P/1 – E você tem quantos irmãos?
R – Somos quatro irmãos. Além de mim, três
P/1 – E qual o nome deles?
R – Chicão o mais velho, Francisco. A minha irmã abaixo de mim, Maria Antonieta, e o mais novo Luís Alberto
P/1 – E vocês foram criados, passaram a infância na Vila Sônia?
R – Isso, a Vila Sônia.
P/1 – Então, Pezão, conta pra gente como é que era a Vila Sônia da sua infância?
R – Ali era periferia na minha época. Eu sou de 50, então, o ônibus, por exemplo, ia só até o Caxingui, não tinha ônibus até a Vila Sônia. Francisco Morato que hoje é uma tremenda de uma avenida era um viesinho de nada aí. Eram os terrenos da City tudo descampados, aí o meu nonno Francisco, a minha família veio do Itaim Bibi, os filhos casaram, o pai, os irmãos, uma família grande. Aí o nonno fez com que todos comprassem, compraram um quarteirão inteirinho, então ficou todo mundo vizinho, a família toda na Rua Manuel Jacinto. A infância foi muito bacana. Lógico, construímos um campinho de futebol atrás, na Rua Mandiçununga que, por coincidência, dava fundo a casa de todo mundo, o campo, o terreno. Eu lembro muito bem da infância, teve um grande sucesso, morava no fundo da casa, um crime passional, o cara matou a esposa, aí foi preso, detenção e lá ele gravou um sucesso da época, dos anos 60, ele falava do Crime da Vila Sônia, “Luar em Vila Sônia”. (cantando) “Luar, mas nada me seduz”. Ele fez isso dentro da cadeia, foi um sucesso aquilo. Aí ele contava as badaladas do sino. E a Vila Sônia virou, Luar de Vila Sônia ficou muito conhecido na época, Luar de Vila Sônia, por causa da canção de um prisioneiro.
P/1 – Interessante, hein?
R – É.
P/1 – E de que vocês brincavam lá, além do futebol?
R – Ah, brincava de tudo. A molecada da época era jogar taco, empinar pipa, rodar pião, bolinha de gude. Os rios eram limpos, a gente nadava bastante.
P/1 – Tinha rio!?
R – Muito! Esse Pirajuçara que hoje dá enchente, imagina, a gente ia pra lá para nadar. Na época de enchente ia nadar no rio. O caminho do São Paulo, que Vila Sônia é próximo do estádio do Morumbi, a gente viu o estádio sendo construído. Então onde hoje é a avenida que leva ao estádio era um riacho também, então a gente ia lá pescar. Vimos tudo isso aí passando quando começaram a cobrir pra fazer o estádio, o campo, era uma diversão. E também na época soltava-se muito balão, essas coisas. Tudo que era brincadeira mesmo de moleque a gente praticava.
P/1 – Então a turma que você brincava, uma boa parte dela, era tudo parente?
R – Parente. Muitos primos, família grande. Mas claro, meu pai sempre foi ligado a futebol, minha família foi ligada a futebol. Como eles vêm do Itaim Bibi, que foi chamado depois de Parque do Povo, tinha o campo do Marítimo, Marechal Floriano, Quarto Centenário. E os meus tios, meu tio Antônio, eles tinham time lá, seja o Marítimo, seja o Marechal Floriano. Aí meu pai era ligado a essas coisas desde lá. E quando ele vai pra Vila Sônia, em 1957 ele funda o Alviverde da Vila Sônia, Sociedade Esportiva Alviverde da Vila Sônia. Claro, família de italiano, aí foi um time que viveu dez anos só jogando fora. Para mim, como eu tinha seis anos de idade, então pra mim foi uma aventura porque eu conheci São Paulo através de um caminhão – como eles não tinham campo, só jogavam fora. Então todo domingo estava com meu pai no caminhão, andando pra tudo quanto era quebrada de São Paulo.
P/1 – Que quebrada que você ia?
R – Ah, toda, a gente andava muito. Eu conheci São Paulo, Santo Amaro, tudo que é lugar. A gente tem até um livro, de um primo mais velho, o Rui, que depois se tornou advogado, tudo, ele escreveu contando essas histórias do Alviverde. Nossa, aqui, Vila Madalena mesmo, aqui no final da Fradique Coutinho, onde tinha o campo do Leão do Morro, Sete de Setembro, Primeiro de Maio. Vila Madalena era o frevo total da época. Eu lembro que nós viemos jogar aqui, era bem moleque, no Alviverde ficaram com medo, o Leão do Morro era um nome muito forte por causa de brigas, por causa dessas coisas. Eu lembro que meu pai trouxe uma corbélia de flores, fazer a graça, entregaram, deram flâmula. Aí o time perdeu, levou o troféu simbolizando a festa. Depois moleque ainda, logo em seguida, Brasil de Pinheiros onde é o Shopping Eldorado, lá a gente chamava de Areião, era o campo do Brasil de Pinheiros. Depois do lado, saíram daqui quando perderam aqui começaram a construir os prédios e eles foram pra lá, pro Areião. Então tinha o América, tinha o Ameriquinha, tinha o Sete de Setembro, Primeiro de Maio e o Brasil de Pinheiros. O Brasil de Pinheiros que era o grande time, era o time do Varcas, Camisaria Varca, os grandes caras. Valdemar Carabina do Palmeiras. Aí o Alviverde vinha de caminhãozinho, era engraçado, um caminhãozinho Ford veinho, ainda a molecada subia tudo no caminhão e apelidaram o caminhão de Caravelle porque naquela época quando surgiu o avião Caravelle era a coisa mais fantástica, e o caminhão era tão lento e os caras: “Caravelle! Olha o Caravelle!”. Viemos aqui, ganhamos de 1 a 0, quebramos 71 partidas invictas do Brasil de Pinheiros. Eu lembro do gol perfeitamente porque tinha um outdoor atrás do gol e o campo estava totalmente tomado de gente e eu subi na estrutura do outdoor e fiquei atrás do gol. E lembro exatamente o lance do gol, do Pedro Tapuia, que cruzou, Mão de Onça falhou, ele de calcanhar puxou a bola e fez 1 a 0. Meu amigo...
P/1 – Calcanhar!?
R – De calcanhar. Quando passa ele estica o calcanhar e puxa a bola pra dentro do gol.
P/1 – Mão de Onça o nome do goleiro?
R – O goleiro era o Mão de Onça. A gente rodava muito, todo domingo era um campo, era Rio Pequeno, em qualquer lugar.
P/1 – E você começou a jogar pelo time quando?
R – Ah, já vinha, moleque. E naquela época a várzea tinha uma coisa bacana que a várzea tinha Mirim, incentivava. Hoje o que as escolinhas de futebol fazem, naquela época eram os próprios varzeanos que faziam isso aí, estimulava a molecada a jogar. Então comecei a jogar muito cedo, principalmente por causa do campinho, fazia rua de baixo contra rua de cima, então era jogo o tempo todo. Aí quando veio uma geração também veio uma geração boa de bola.
P/1 – E você gostava de jogar de quê?
R – Eu sempre fui volante, meia, armador, sempre meio de campo. Depois um pouco mais velho fui parte de zagueiro, central, fui de tudo (risos).
P/1 – E quando você era pequeno já era mais alto que os outros meninos?
R – Era, era. O próprio apelido foi por causa disto também. Não tinha quem me emprestava chuteira, aí Pezão. Pro meu pai comprar chuteira era uma dificuldade, 43, 44 na época era difícil achar, até hoje é difícil achar 44. Aí ficou Pezão, Pezão. E o gozado é que o apelido me acompanhou. Quando eu mudo pro Campo Limpo, eu casei muito cedo, com 18 anos, mudamos pro Campo Limpo, e gozado que o apelido acompanhou, o futebol acompanhou. Eu jogava na Vila Sônia, depois uma vez fui jogar no Rebouças, Santo Américo, São Geraldo, era boleiro mesmo, como a gente costuma falar. E quando fui pro Campo Limpo, lógico, fui me entrosando, fui jogar, em 71 fui pro Martinica e aí: “Quem que é?” “É o Pezão, é o Pezão da Vila Sônia. Pezão”, e ficou Pezão. Aí vai no Taboão da Serra, a mesma coisa. E o prefeito, todo mundo lá, não tem jeito de me chamar de outro nome. O prefeito: “Ô Pezão, ô Pezão”. Um dia eu fiz uma matéria, já trabalhando como jornalista, foi uma final do cacete, isso foi em 95, que eu comecei a escrever pro jornal lá, fiz a matéria e coloquei o meu nome, Marco Iadocicco assinei. Foram na sede, o jornal tudo lá, aí vem o Maurão: “Pra que caralho, Pezão, você foi lá, fiquei na foto, não vejo nada no jornal, não vejo nada!” “Pô mano, mas olha aí, está tudo na página” “Que é isso, esse é um tal de Iadocicco, sei lá o nome desse porra” “Não, mano, mas sou eu!” “Pô, então muda o nome, você é o Pezão, senão ninguém sabe quem você é” (risos). Aí eu fui no jornal e falei: “É o seguinte, tira aí o Iadocicco, põe o Pezão que é mais fácil” (risos).
P/1 – E Pezão, você morou na Vila Sônia até os 18 anos, foi isso?
R – Dezoito anos.
P/1 – Conta mais um pouquinho, você estudou na Vila Sônia?
R – Eu fiz ginásio na Vila Sônia. Mesmo o próprio futebol e o estudo, como eu casei muito cedo e assumi a paternidade desse filho que está na foto. Aí assumi, casamos, tive a idade emancipada pra poder casar com a menina, ela tinha 15 anos. Teve uma confusão naquela época. Mas assumi. Mas deixei de estudar porque tinha que trabalhar, essas coisas, tinha que sustentar e tudo. Aí também futebol atrapalhou, eu estava na Portuguesa essa época, também atrapalhou, aí deixei.
P/1 – Então vamos falar do início da leitura. Você aprende a ler na Vila Sônia, você lê os seus primeiros, o que você leu primeiro? Gibi, jornal?
R – Gibi. Muito gibi. Lembro também que o meu pai tinha uma coleção do Monteiro Lobato que eu gostava muito, Dom Quixote também.
P/1 – Dom Quixote?
R – É. Meu pai tinha esse na estante com uns livros. Mas a minha pegada da poesia, mesmo, veio já depois de casar quando eu volto a estudar. Aí eu vou pro Campo Limpo, estava com meus 20 anos, 21 anos mais ou menos e falei: “Vou voltar a estudar”. Já era época da ditadura, nos anos 70 isso, na ditadura. Aí tinha lá o Kennedy, como tem até hoje o Colégio Kennedy, tinha muito aluno, fizeram lá um anexo, perto de casa, continua tudo sendo perto de casa, eles chamaram de Ginásio Estadual do Campo Limpo. Eu fui terminar a terceira série e quarta série lá. Ali eu conheci uma professora chamada Lai Diniz, professora de Português. Jovem, ela tem a minha idade, vou até contar o caso dela. Aí lógico, época da ditadura, uma efervescência muito grande, ela esquerda, boa cabeça, mulher bonita. Aí começa a passar poesia, pra gente ler poesia e fomos fazer teatro. Fizemos teatro de rua, formamos o grupo, Grupo Semente chamava-se. Criamos uma história chamada Pequenas Fotografias. Pegava a fotografia de imigrantes, das situações da periferia e contando, música de Luís Gonzaga, uma coisa, e saía pros lugares apresentando, em igreja. Nessa época a igreja começava a dar abertura pra essas coisas, então a gente ia pros salões das igrejas, em bar, na rua, em outros colégios. E a poesia começou a vir através disso aí. Escrever, o hábito de escrever. Eu me entusiasmei e fui fazer teatro profissional.
P/1 – Mas antes do teatro profissional deixa eu só voltar. Até os 18 anos você está na Vila Sônia, aí você conheceu a sua primeira esposa.
R – Isso.
P/1 – Que se chama?
R – Vilma.
P/1 – Vilma. Aí vocês se casam e se mudam.
R – Isso.
P/1 – E por que vocês mudaram de lá?
R – Meu pai também. As coisas vão mudando e a situação financeira do pai também já não estava boa, aí decidiu vender porque a gente morava no fundo, era uma casa grandona e a gente morava no fundo. Decidiu vender: “Vamos vender”, o meu irmão mais velho já ia casando e tal. Aí disse: “Vamos comprar um casa no Campo Limpo, o Marco fica lá, depois nós vamos...” E aí eu acabei ficando com o Campo Limpo, indo pra lá.
P/1 – Então aí você vai morar no Campo Limpo, em 68 mais ou menos?
R – Em 68, 69.
P/1 – E como era o Campo Limpo nessa época? Diferente?
R – Nossa senhora! Não tinha nada. Não tinha luz de rua, não tinha nada. Também o ponto final não era nem próximo de casa, era anterior, onde é Bar Nosso Ponto chama hoje. Não tinha nada no Campo Limpo, nada. Era uma ruazinha, uma escuridão. Era outro mundo. Hoje a gente vê o Campo Limpo, ainda tenho algum vizinho que é da mesma época que eu, a gente fica relembrando e fala: “Meu senhor!”, uma cidade hoje. A gente brinca, eu ainda brinco com o Binho, que o Binho também foi meu vizinho. Eu falo: “Ô Binho, hoje tem McDonald’s, China in Box, Bradesco”. O Binho até tem um poema que ele fala de “Vieram as Casas Bahia, os puteiros”, o Binho tem um poema desse aí. Foi muito, muito louco. A evolução muito grande e a periferia se estendeu muito rapidamente, muito rapidamente mesmo.
P/1 – E você foi trabalhar com o que lá?
R – A minha profissão era mecânico de máquina de escrever. Porque a minha família, meu tio, tudo, eram mecânicos de máquina de escrever e somar. Ele era gerente de uma firma na Rua Francisca Miquelina, na Bela Vista, chamado Addo Máquinas de Escritório, que era uma firma alemã que representava uma máquina de escrever chamada Siemag e a máquina de somar Addo. Ali eu aprendi a profissão de mecânico de máquina de escrever.
P/1 – Conta aí, a maioria das pessoas que vão assistir a esse depoimento nunca viram uma máquina de escrever. O que é esse maravilhoso invento? Conta pra gente. (risos)
R – Rapaz. Mano. É o seguinte, mano, era aprender no primeiro teclado asdfg çlkjh, tudo tinha... na época todo mundo tinha que fazer datilografia, era um degrau a mais.
P/1 – Tinha que fazer um curso mesmo, né?
R – Um curso de datilografia, claro. E era a evolução. A gente conserta máquina manual, os tipos, o teclado, tal. Mas quando chega a primeira máquina elétrica foi uma loucura, o motor, você tocava, tak tak, disparava. Quando chegou a primeira IBM de esfera então foi uma loucura, aquela (faz barulho como se estivesse datilografando), virando e batendo. Essas coisas acompanhei tudo e ia consertando.
P/1 – É, porque a IBM de esfera foi um marco, né?
R – Foi um marco.
P/1 – Porque você mudava a tipologia tirando a esfera, né?
R – A esfera. Enquanto as outras, Olivetti, Facit, Olimpia eram o berço com os tipos, tum tum. Então clap, tum batia, tum batia. E a IBM girava, foi bem doido isso daí.
P/1 – E o seu trabalho era dar manutenção.
R – Manutenção e conserto. Ah menino, trabalhei muito tempo nisso aí, muito tempo. A máquina de escrever perdurou durante muito tempo, negócio do computador vem a partir dos anos 2000, 2001 que começou a proliferar. Aí como eu sempre fui, tinha que sobreviver pra consertar as coisas, pra poder fazer teatro, não parava, trabalha e estuda, faz teatro, poesia, então a vida toda consertei, até já com idade mesmo, onde aparecia um bico eu ia fazer, um conserto em máquina de escrever.
P/1 – Você tem máquina de escrever em casa?
R – Tenho, tenho. Tenho uma Olivetti (risos).
P/1 – Você contou que você começou a estudar de novo, conheceu essa pessoa, criaram o grupo Semente e aí rolou uma coisa de teatro na sua vida.
R – Isso, foi. Aí fui fazer teatro profissional. Durante esse tempo também, com essa professora mesmo, ela criou um grupo chamado Juntando Isso Dá Poesia. As pessoas reuniam e ficavam falando poesia, treinando e tal, não era uma coisa aberta, era um grupo que se encontrava pra falar poesia e tal. Eu fui fazer teatro profissional, fui fazer Cartas Chilenas, com o grupo de Agosto, chamava-se o grupo. O diretor era José Antônio de Souza, escritor, tudo. Foi lá que eu fui me aprofundando mais. Estudo as Cartas Chilenas, os poemas, tudo essas coisas e acabei me aprofundando mais. E foi onde eu acabei pegando gosto maior pela poesia mesmo, o fato de escrever. Porque o negócio da máquina de escrever me auxiliava, né? Eu estava sempre experimentando máquinas e fazendo os versinhos. Eu lembro, eu fui consertar uma máquina, uma mulher bonita, lindíssima, lá no Campo Belo. Aí uma máquina antiga, Remington, mas antiga. Ela me chamou, um amigo que me indicou, falou: “Vamos lá funcionar”. Ela não funcionava, aí limpei, lubrifiquei. Ela falou assim: “Mas você acha que dá pra escrever bem numa máquina dessas e tal”. E a máquina era muito antiga. Eu falei: “Cara amiga”, até lembro o nome dela, Letícia chamava. Eu falei: “Letícia, é o seguinte, se você quiser bater uma nota fiscal com certeza não vai funcionar, fica difícil, os alinhamentos, tudo já estão corroídos, mas para uma coisa ela serve, para fazer poesia”. E aí escrevi assim: “Estou só e é meu querer estar só/ Mas estando só/ falta faz a companhia do meu só/ SOS amor”. Ah, meu amigo, namorei com ela (risos).
P/1 – É mesmo? E você fez na hora?
R – Na hora, na hora. Você vê (risos). Era lindíssima.
P/2 – O que mais você escrevia na época?
R – Ah, de tudo. No livro tem, tem um poema até que eu fiz para uma máquina de escrever, era uma Royal. Eu estava numa dureza, mas lógico, com o tempo a vida foi mudando, aí larguei os estudos, as coisas foram mudando, eu acabei me separando, me divorciando, fui dando cabeçada (risos), não dava para conciliar uma coisa com outra. É muito difícil uma vida normal, né? Aí deixei. Estávamos nos separando e a vida foi me levando pros lugares. Teve uma época que estava numa dificuldade da porra, morava lá. Eu consertava as máquinas, aí eu já estava escrevendo bastante. Não tinha dinheiro, eu tive que vender a máquina. “Não tem jeito, tenho que vender a máquina, preciso arrumar um dinheiro” (risos). Falei: “Bom, como eu sou mecânico eu vou, compro outra e conserto, agora estou precisando de grana”. Vendi a máquina e fiz até um poema na máquina: “Vai-te pretinha...”, era uma máquina pretinha. Aí gravei esse momento da venda da máquina.
P/1 – Está no livro?
R – Está no livro.
P/1 – Quer ler? Porque a gente pode misturar poesia...
P/2 – Este livro é uma coletânea de tudo, desde o começo até agora?
R – É esse aqui. Despedida. “Vai levar o meu sonho/ as batidas do meu coração/ o toque das minhas mãos/ o meu silêncio/ Vai levar a esperança que em mim se desespera/ É o tempo/ é a fase/ é a crise/ os anos passam e nada muda/ A mesma manha/ a mesma mamata/ a mesma treta./ Ricos e mais fortes/ pobres e mais famintos/ Vai, por que ficar?/ Você é tudo o que eu quero/ mas não posso te manter./ Sentirei saudades do teclado/ do alinhamento,/ das letras/. O mecânico vende a máquina,/ mas não perde a vontade de escrever./ Vai-te pretinha/ Vai-te pretinha/ O som de tuas teclas/ eu ouço outro dia” (risos).
P/1 – Porque é bacana, fica ambíguo no início, né?
R – É.
P/1 – Quem que é, né?
R – Parece que está falando de uma mulher, né?
P/1 – É (risos).
P/2 – O Alisson comentou que você tem muitas histórias das peladas.
R – É, por causa do jornal.
P/2 – Mas foi nessa fase da vida que isso aconteceu?
R – Também. Aqui também tem umas também do jornal. Tem um poema também que é muito louco. Vocês me desculpem, eu fico meio emocionado ao ver essas coisas. “Nem o cansaço do jogo/ A derrota do Esporte Clube Jardim Roberto 1 a 0/ Descaso de alguns jogadores/ Nem a bebedeira, única alegria/ Nem a roubalheira do juiz/ Jogar em campo adversário é barra/ Nem a dor no meu tornozelo,/ a bolada no meu dedo,/ o gol não feito/ Minha chuteira nova não deu sorte/ Nem a decepção da torcida/ O pega-pega,/ a bronca,/ a nossa força/ Feriado, primeiro de maio de 1982/ Dia do Trabalho, não do trabalhador/ O dia desse é nunca/ Entre tantas contrariedades a gota/ o derradeiro desprazer naquela tarde típica domingueira/ Foi ver você, atracada,/ aos beijos,/ com aquele meia-esquerda pipoqueiro” (risos). É, essa é de 82.
P/1 – Muito legal. Vamos tentar só ajudar aqui a botar uma cronologia nisso aqui. Então você escrevia depois de adulto quanto a essa história lá da máquina da Letícia e tudo o mais, você sempre fazia uns poemas, mas ainda não pensava em fazer livro, fazer sarau, nada disso.
R – Nada, nada. Escrevia mesmo, por gostar mesmo. Lógico, é do teatro e tudo, teatro é escrita, aquela coisa toda. Mas não pensava. O livro, a coisa do livro já vem depois mesmo, com a Cooperifa. O fato de eu começar a escrever, por exemplo, quando eu fui fazer jornal lá em Taboão eu tinha uma coisa na cabeça: “Não, preciso aprender a escrever”, eu sabia das minhas deficiências. “Cara, eu preciso aprender”. E o único jeito de aprender era escrever bastante, eu falei: “Não, é prática. Voltar pra faculdade eu não vou voltar, mano. É bobagem, eu não vou voltar mais pra faculdade”. A coisa gozada foi que eu já conhecia a Otília, aí nós montamos, claro, eu mecânico, ela precisando trabalhar, aí montamos uma floricultura na garagem de casa.
P/1 – Aí você já estava casado com a Otília.
R – É.
P/2 – Que é a segunda esposa?
R – A segunda.
P/1 – Vamos por partes, como é que você conheceu a Otília?
R – Menino, essa é uma história bem louca, vocês não vão acreditar (risos). Meu, aí, lógico, os filhos grandes, adolescentes.
P/1 – Quantos filhos você tem?
R – Eu tenho dois filhos, Marcos César e Andréia. Aí eu já estava separado e a ex-esposa, a Vilma, morava no Umarizal, um bairro lá próximo do Campo Limpo. E a Otília, a família também era do Umarizal. Aí os dois começam a namorar, a minha filha e o filho da Otília, o Duda. Pa pa pa. Meu, aí vai, tuf, engravida a minha filha. Lógico, boleiro da região. E todo mundo: “É o Pezão”. E o nome soa muito forte, porque aquele Pezão (risos). “Porra, é filha do Pezão” (risos). Pô, os caras me pintaram (risos). Aí foi na minha casa a Otília, os filhos, foi uma coisa de louco. Eu sou um cara tranquilo. “Filha, tudo bem, vão viver junto e tal”. Eu morava sozinho: “Se quiser vir morar até em casa”, ela tinha quarto no fundo, a casa era grande. Bom, aí começou o nosso relacionamento. Aí me convidaram para ser o padrinho da neta Luanda. A Luanda está com 27 anos hoje. E a Otília madrinha. Nessa época eu jogava bola, estava com 36 anos, bem fino, estava bonitão. Ela também era bonitona e tudo. E eu trabalhava em Pinheiros, ali na Teodoro Sampaio, consertava máquina pro seu Melar, era uma oficina de máquina, e ela trabalhava na Teodoro Sampaio, era vendedora de móveis. Batizamos a neném, a Luanda. Aí passa na loja, pum, aí começou o flerte (risos) entre nós. Um dia eu falei: “Não tem chance, a portuguesa é muito bonita”. Aí comecei a sair. “Ah, vamos sair”, começamos a sair. E o gozado de tudo é que minha filha separou do filho dela, separaram e nós dois continuamos juntos, foi a coisa mais gozada. A nossa neta realmente, ela é neta original dela e minha, é filha do filho dela e filha da minha filha. Os dois acabaram se separando e nós ficamos juntos. Aí montamos uma floricultura e a gente se curte até hoje.
P/1 – Que legal, vocês estão há 20 e quantos anos juntos?
R – 27 anos.
P/1 – Que beleza! E a história da floricultura, vocês fizeram a floricultura na garagem, é isso?
R – Na garagem. Nós fechamos ela faz dois anos. Que aí foi cansando, começou a abrir muito mercado, a concorrência fica desleal. E com as flores ficando muito cara e tudo. E como eu estava trabalhando, eu tenho outra maneira de viver, eu falei: “Deixa quieto, vamos curtir outra coisa”, aí fechamos a floricultura (risos).
P/1 – E Pezão, você disse que chegou a fazer Comunicação, é isso?
R – Isso, isso. Fiz lá na FIAM.
P/1 – Que época foi isso?
R – Acho que foi década de 80.
P/1 – E aí que você começou a gostar de fotografia?
R – A fotografia veio em decorrência do que eu optei. A história da floricultura foi a seguinte, aí me aparece um japonesinho lá que fazia um jornal de bairro. Ele vai vender a propaganda: “Quer fazer propaganda da floricultura?”, aí eu falei pra ele: “Tá bom, eu faço a propaganda da floricultura, só que o meu time, o Martinica, está fazendo aniversário. Posso contar a história do aniversário?” Ele falou: “Claro, claro”. Eu pá, com a máquina de escrever botei a história do time. Ele publicou e falou: “Porra mano, ficou bom. Você não quer continuar colaborando com a gente?” Aí me despertou aquela coisa. Aí pum, comecei a fazer ele, aí tinha outro jornal, A Folha do Campo Limpo, quando viram a matéria que eu tinha criado me convidaram para eu fazer lá na Folha do Campo Limpo. Aí eu descobri que eu precisava da fotografia, não era só o texto, porque era muito dinâmico. Eu falei: “Eu vou dar outra cara na coisa”. Eu comprei uma máquina Yashica, paguei em 12 vezes, mano, tinha um amigo que trazia coisa lá de Miami. Meu, dei 12 cheques, maluco. Mas eu saía com aquela Yashica, tenho essa máquina até hoje. Eu fui indo pros campos, fazendo foto e criando, meio que criou uma página. Foi uma loucura, aí eu não parei mais, falei: “Não, isso aí vai ser importante pra mim, eu vou treinar. É que escrevendo que se aprende”. Em 96, 97, por aí, eu fiz uma crítica lá em Taboão, me pediram para eu fazer uma matéria e eu fiz uma crítica no jornal e tal. Aí o prefeito, que é até o prefeito que está hoje lá. Eles viram lá (risos). Chegou o assessor dele e falou assim: “Orra, Pezão”, nessa época era Marco Iadocicca: “Pô, você conhece esse cara que está fazendo essa matéria aí?” “Claro, Marco Iadocicca sou eu” “Porra, Pezão, cara, tu quer fuder o prefeito?” (risos) “Mas como assim? Eu vou assistir o jogo, os moleques não têm calção, um calção diferente, meia diferente. Ah, dá licença, você fala que a escola é municipal? Não, a primeira coisa é ter um uniforme, tem que ter uniforme pros moleques” “Prefeito quer falar com você” “Vai lá, vamos conversar”. Aí acabei indo trabalhar pra eles, fui pra lá, fui trabalhar nas escolinhas, aí ajudei bastante. Curti muito, fizemos café da manhã, fizemos uma escolinha bacana.
P/1 – Mas você foi trabalhar fazendo o quê, propriamente?
R – Como jornalista. Comecei a criar as matérias. E lá eles eram o Jornal Independente, que era o jornal da cidade. Quando eu cheguei o editor falou assim: “Porra, pensei que você ia escrever sobre o Palmeiras, sobre o Corinthians. Vai escrever sobre esses times aí, mano, ninguém conhece esses times”. Eu falei: “Meu irmão, escrever sobre o Palmeiras, sobre o Corinthians, tem um monte de gente que escreve. Você acha que eu vou ter dinheiro pra ir lá no Morumbi assistir jogo do Palmeiras, do Corinthians? De que jeito eu vou fazer a matéria? Se eu escrever deles todo mundo escreve, não vai ter diferença. Aqui ninguém conhece o Morro, aqui ninguém conhece a história da Ponte Preta, e é eles que jogam, eu estou na cidade”. Os caras não acreditaram. Eu comecei, fiz a página e tum. Meu, aí virou um sucesso, virou uma febre. É claro, as pessoas nunca se viram. A relação é a mesma coisa da poesia, começamos a falar das pessoas, essa foi a ideia. A coluna era “Falando de Nós”. “Vamos falar de nós, pra que falar do Pelé, pra que falar dos caras? Todo mundo fala deles, mano. Eu vou falar aqui do Pelezinho, dos caras daqui, mano”. Aí pegou essa coisa pegou. Foi nesse movimento todo que veio, a própria poesia, o próprio sarau também, foi a coisa da autoestima, eu falei: “Não mano, vamos falar de nós, somos nós, vai ficar falando sobre os outros? Vamos nos valorizar”. A ideia era da gente se valorizar. Porque a periferia sempre foi escrachada, né? Droga, traficante, bandido, essa coisa sempre pra baixo. E a ideia da gente foi exatamente fazer diferente. “Não, vamos levantar a moral, vamos fazer, porque na periferia tem gente boa, tem gente que escreve, tem gente que é artista”. E realmente, na região do Taboão, só dali você vê, Mano Brown, do Rosana, é próximo. Rosana, Mano Brown, Ferrez, Sérgio Vaz, é tudo próximo um do outro. Binho. É uma região fortuita de movimento, de pessoas que trabalharam em torno dessa coisa da autoestima da periferia, trabalha até hoje.
P/2 – E como se deu propriamente esse começo de sarau?
R – Então, que cada um fazia, o Sérgio tinha o trabalho dele, ele fazia a chamada Quinta Maldita, era um encontro de poetas lá no Bar do Português, na Praça Nicola Vivilechio, lá no Taboão. Depois que a gente se conheceu na rádio, tal...
P/1 – Conta aí do encontro, como vocês se conheceram.
R – Foi na rádio, num programa de rádio. O Davi da Silva fazia um programa de rádio, uma rádio pirata que tinha lá no Parque Pinheiros, era às oito horas da manhã. Ele fazia o noticiário local, geral e eu falava sobre esporte e da cidade. Mas só que como o negócio era poesia, declamar, no final do programa eu inventei um negócio de falar poesia, então eu sempre falava uma poesia. Aí o Davi, que gosta muito de som até hoje, tudo, ele pegava as bolachas, os LPs, e criava um fundo musical. Um dia ele chamou o Sérgio Vaz, porque ele conhecia o Sérgio Vaz, pra fazer uma homenagem pro Sérgio. Eu peguei um poema do Sérgio, do livro dele. Ele falou: “Estuda um poema do Sérgio Vaz aí”. Estudei e fizemos, declamei o poema, o Sérgio Vaz participando do programa e tal. Declamei. E começou a amizade da gente. “Você trabalha onde?” Ele trabalhava na Câmara Municipal e eu trabalhava na Secretaria de Esportes. Começamos a nos encontrar, aí ele já fazia a Quinta Maldita, eu comecei a participar da Quinta Maldita. Mas era uma reunião, colocava uma mesa de um lado e do outro, uns amigos, era cerveja, comida, era curtir. Aí levantava um, falava um poema, metia o pau no governo, era uma curtição. Foi daí que a gente começou, tum tum. Coincidência da vida, ou lampejos da vida, a coisa foi ficando forte. Eu fazia poesia na Cultura, com o pessoal da Cultura. A Naruna, a Naloana, que são do Teatro Clariô. Naruna hoje está na Globo, né? Eu fui trabalhar poesia com eles porque eles não conheciam poesia, conheciam as peças de teatro. “Não, mano, a poesia é uma pecinha de teatro”. E comecei a mostrar Drummond, fiz Vestido de Noiva, comecei a trabalhar a poesia com eles. O Sérgio fazia outro trabalho. Foi indo, várias amizades, aí um dia eu estou passando no Bar do Garajão, o Bodão, eles montaram um bar novo na Estrada São Francisco. Eu, tum, passei para tomar uma cerveja, bar bacana e tal e o Bodão falou: “Porra Pezão, estou montando um bar, quero montar um bar cultural. Tem samba na sexta-feira, tem um rock no domingo, tem um pessoal do Embu que vai expor pintura, vai ter o forró”. Ele falou assim: “Você tem alguma ideia pra colaborar e fazer aqui?” Mano, foi um lampejo, eu falei assim: “Orra, Bodão, faz o Sarau dos Poetas”, ele falou: “Mas que porra, Sarau de Poetas, Pezão?” “Os poetas vêm aqui declamar”. Eu falei: “Vou te apresentar o poeta da cidade”. Aí marquei um encontro com o Sérgio, levei o Bodão na Câmara. Falei: “Serjão, o cara tem um bar assim, ta ta tum, vamos lá ver”. Aí fui no Sérgio e falei: “Vamos tomar uma cerveja hoje de noite lá”. Aí mano, o bar era um encanto. Tinha o bar aqui, o balcão e tinha um anexo que era fechado com uma porta de vidro, um puta de um jardim. O bar era um encanto. Aí o Sérgio ficou doido. As datas livres eram segunda, terça e quarta. O Sérgio falou: “Quarta-feira é o dia consagrado da poesia”. Quarta-feira, vamos fazer. Toda semana. O primeiro sarau levamos eu e ele uma quantidade de poesia, o que levamos de papel e tudo, lemos cada um acho que umas 15 poesias, tinha uns quatro convidados, a minha mulher, a mulher dele. Nós lemos poesia pra cacete!
P/1 – Você lembra o que vocês leram no primeiro?
R – O meu foi Mina da Periferia, que era o grande sucesso na época. Que foi o que ele votou, que tinha ganhado na época o concurso lá na cidade. Então semana que vem vamos.
P/2 – Você sabe Mina da Periferia?
R – Tem no livro aqui. Aí meu amigo, começou a pegar. Na semana seguinte... havia, lógico, um preconceito muito grande negócio de poesia, poesia é coisa de viado, poesia é negócio de bicha, um puta de uns homão aí. Mas quando os caras começaram a chegar, começaram a ver o teor da poesia, as brigas: (berrando) “O chicote vai estalar. Silêncio que o chicote vai estalar!!!” Meu, era muito louco (risos). Aí veio, tem umas coisas, umas histórias. Tinha um traficante que depois foi preso, agora soltou, ficou muitos anos na cadeia, o Montanha. Montanha é enorme, apelido, né? Montanha, ele se incorporou e ia lá pra assistir o sarau. Quando o Montanha chegou acabou o nosso problema, era o maior silêncio (risos). Aí de alguém (risos). E aí foi pegando. Na semana seguinte foi chegando mais gente, chegando mais gente. Aí o Sérgio tem uma, até hoje, o Sérgio tem um conhecimento muito grande, coisa de marketing mesmo, a primeira vez que foi o Mano Brown lá mesmo foi uma loucura.
P/1 – Conta isso aí.
R – Mano Brown foi uma loucura. Quando o Mano Brown chegou lá, meu, foi uma polvorosa. Tem até foto dele aqui, quer ver?
P/1 – E vocês iam convidando pessoas a cada...
R – Convidando na boca. Eu ia fazendo matéria pro jornal, falando do sarau, boca a boca, pum pum pum ia chamando, ia levando as pessoas. E as pessoas começaram a se encantar. Aí fomos indo. Isso aqui foi lá, ó (mostra foto), isso foi o início, Mano Brown.
P/1 – Depois nós vamos juntar. Conta o dia do Mano Brown, como foi? O que ele fez lá?
R – Então, nós fomos lá no Sarau, ninguém falou: “O Mano Brown vem”. Ele havia convidado o Mano Brown e o sarau está rolando. Daqui a pouco, mano, quem é que entra? Lotado o negócio. Tum. Mano Brown. Que é isso, Mano Brown, mano. Aí começou. Naquela época não tinha celular com essa facilidade. “Vou ligar pra Fulano”. Meu, a cidade do Taboão é pequeninha, meu, começou a lotar. “Mano Brown está lá. Mano Brown”. Rapaz, mas lotou, foi uma loucura isso aí.
P/2 – E ele declamou poema lá?
R – Nesse primeiro dia não, ele ficou lá, sentou, ficou tomando cerveja com a gente, ficou até tarde. Aí depois, uma outra vez que ele foi, aí falou, tudo. Foi duas vezes lá nesse Garajão. Eu tinha uma coisa por causa das letras das músicas, negócio de branco, na época era muito forte. Eu branco, e os caras: “O branco, é branco”. Eu falei: “Pô, eu estou fudido, o que eu vou falar?” Quando ele foi eu falei: “Putz, o negão vai me odiar. Ele odeia branco” (risos). Rapaz, na madrugada, que a gente saía só de madrugada. Aí ele com um puta de um carrão, que ele só andava com esses Landau, aqueles carrões. Aí o Sérgio falou: “Ó Pezão, vamos ter que levar o Fulano lá”, ele falou: “Onde é que você mora, Pezão?” “Moro no Campo Limpo” “Não mano, eu vou lá pro Rosário, eu te levo lá, pode deixar que eu te levo”. Eu entrei no carro, maior vapor. Ele fez questão de levar na porta de casa: “Não, não, na porta de casa”. Eu nunca esqueci, poucas vezes que eu o vi, mas toda vez e pá: “Ô veio, ô Pezão”. Nunca vou esquecer. Foi um cara que deu uma força. A presença dele foi muito, muito importante. Caralho, agitou. E uma coisa que eu nunca esqueço, que foi na época também, que ele era rapper e tal, ele veio e falou: “Pezão, é o seguinte: o movimento de vocês é muito bonito, não deixa o rap entrar, senão o rap estraga, Pezão. O movimento de vocês é de poesia, mantenha assim”. Falou isso pra mim e pro Sérgio Vaz, cara. “O movimento é de poesia”. O rap naquela época era muita briga, mano, eles se encontravam, era pau, só faltava se matar. Ele falou: “O rap não, não deixa o rap entrar, aí é poesia”. Tanto é que o Sérgio, ficou uma coisa que era lei. O rapper vai lá até hoje, o cara declama a letra, ele faz à capela, não tem nada de som, não tem nada, ele faz à capela, ele faz o verso dele, como se fosse falar um verso rimado, né? Mas nunca teve o negócio da música, do DJ, essas coisas. Mas o Mano Brown, depois ele foi lá no Batidão também, tinha muita foto dele, do Mano Brown, lá. Mas foi um cara que deu uma força danada.
P/1 – Pezão, vamos reconstituir mais a história. Então esse é no Garajão, certo?
R – Garajão.
P/1 – Descreve pra gente como era o Garajão, cabia quantas pessoas mais ou menos, como é que era esse ambiente?
R – Então, vamos dizer assim, o bar eram duas salas contíguas. Três. Uma ficava lá uma mesa de bilhar de um lado, aí tinha um balcão como se fosse essa entrada, aí tinha uma porta de vidro e tinha uma sala um pouco maior que essa, assim, do lado, e tinha um jardim, assim. Era um posto de gasolina que é de uma família que tem um puta de um casão, que hoje fechou tudo, continua lá, mas virou tudo parte da casa, virou um outra coisa. Então era naquele espaço que a gente colocou microfone, as faixas, bandeira do Brasil e depois o Sérgio trouxe a frase “O Silêncio é uma Prece”, que veio depois, e ali que a gente começou a se reunir.
P/1 – E como é que era o ritual do sarau?
R – Eu fazia, por exemplo, uma coisa que ficou decidida entre nós. Eu recepcionava as pessoas, eu era o fotógrafo, que eu fazia as fotografias pro jornal, essas coisas, trabalhava e eu recepcionava. E o Sérgio apresentava. Eu recebo as pessoas e você apresenta e vamos tocar. Foi isso que deu. Então ficava recebendo as pessoas, gentilmente, colocando nas cadeiras, fazia o mestre sala. Aí foi dando, mano, foi vindo gente, professores. E tudo acho que foi muito, a coisa do bom acolhimento, a gente começou a acolher as pessoas. E começou a entusiasmar a leitura, sempre a ideia, tanto é que a pegada até hoje é isso, minha pegada lá no Sarau da Casa é esse, do incentivo à leitura, à poesia escrita e falada, entendeu? É até um verso que eu falo: “Poesia é a arte de quem não tem idade. Leia, pratique”. Então é a coisa, hoje nós somos bem mais velhos e estimula, a pegada sempre foi de estimular a leitura. E, lógico, a poesia falada, oralidade, isso a gente lutou. Eu acho que o que difere o nosso movimento é exatamente na oralidade, tanto que a gente está falando a poesia, a gente vai pra rua e fala poesia, o que difere dos outros movimentos que tiveram.
P/1 – O Sarau da Cooperifa começa em 2000 e?
R – E um. Foi setembro, outubro de 2001.
P/1 – E sempre quarta-feira, nunca parou.
R – Nunca parou. Nunca parou. Isso em 2000, ficamos lá até 2003 no Bar Garajão. Em 2004 ia ter eleição na cidade e os donos do bar que era o Doriano, o Bodão, o Renato, os caras estavam envolvidos com política, houve lá um desacerto entre eles, resolveram vender o bar. Aí o Sérgio arruma o bar do Zé Batidão, que o Sérgio nasceu na Piraporinha, perto desse bar, o pai trabalhou nesse bar, tem essas coisas todas, a história dele lá. Então o Sarau da Cooperifa sai do Taboão, do Garajão, vai lá pro Zé Batidão, isso em 2003 pra 2004. Na época o Zé Batidão dava até uma força e colocava lá uma van pros poetas, que os poetas eram tudo de lá da área, né? Então ia tudo de van pra lá pro Zé Batidão, aí começou a fazer lá.
P/1 – E como é que é lá? O espaço também, igual você descreveu o Garajão, como é que era o Batidão?
R – O Zé Batidão, a princípio também bar, vamos dizer, lá era bem maior, tem uma, duas, vamos dizer, quase três salas como essa assim, um palcão no fundo, aí tinha uma área com ar, uma área aberta, que com o tempo ele fechou, ele meteu uma laje, fechou tudo. Agora em cima eles fazem inclusive um cinema na laje. Mas lá é um belo de um bar, um puta de um barzão.
P/1 – E cabe quantas pessoas, mais ou menos?
R – Ah lá, menino, nossa, teve evento da gente que é isso, era mais de 200 pessoas. Eles estão tendo problema, o Sérgio vai falar isso, é a primeira coisa que o Sérgio vai comentar. Sempre foi de quarta-feira. Chegou a tal ponto, de tanta gente ir na Cooperifa toda quarta-feira que acabou virando um point na praça, que tinha uma praça bem em frente ao bar. E acabou virando um point. E tá ligado, point é foda, nego vai pra beber, outro já vai pra fumar, só vai pra curtir. Aí a própria poesia, já não ia pra dentro do bar, entendeu? Já vai lá pra curtir, pra ver não sei o quê e tal. Aí começou a dar problema com a vizinhança, foi um trabalho duro quando a gente foi pra lá de conversar com a vizinhança, com a comunidade, pra eles entenderem, a gente convidava eles. Meu, foi um trabalho intenso pra ganhar a comunidade. E agora está tendo problema lá, a última vez que eu encontrei com o Sérgio na Vila Fundão ele falou: “Cara, estou tendo de fazer de terça-feira e não estou falando pra ninguém. Eu só ligo para os poetas, para os poetas irem lá falar. Não estou nem divulgando porque estava virando uma loucura”. Porque os caras ficam até a madrugada lá, acaba o sarau e os caras não vão embora, ficam lá na praça zuando o cacete. E a vizinhança atribui aquilo ao sarau, quando na verdade não é, porque quem vai pro sarau está lá pra dentro do bar, fala poesia e vai embora. Mas é que tem muito, né? O Sarau do Binho no Campo Limpo foi a mesma coisa, fortíssimo, fortíssimo, mas chegou num tempo que virou um point lá fora que nego fazia de tudo, mas não entrava no bar, depois que acabou atrapalhando o Binho que também teve que mudar.
P/2 – Qual foi a sua relação com o Sarau do Binho?
R – O Binho foi pelo fato... o Binho até antes, imagina, o Binho volta da Inglaterra e monta tipo uma pastelaria. Ele mora na Estrada do Campo Limpo, aqui tem o Kennedy, é bem pertinho o Kennedy. E o Binho montou uma pastelaria bem em frente ao Kennedy. Aí pá, eu estou lá na rua trabalhando, fazendo matéria de várzea. Aí eu passo e vejo lá um poema no poste, e junto: Postesia. Eu lembro até do poema. “De aham em aham, de aham em aham esgole-se muito sapo”. Aí eu falei: “Caralho”, aí no outro poste. Ah mano, não tive dúvida, com a minha maquininha, claque, comecei a fotografar aquilo lá. Eu falei: “Pô, é o Binho”. Peguei as fotos, pus no jornal, tenho o jornal até hoje, outro dia eu mostrei pra ele. Ele falou: “Porra, Pezão”. Aí ele fez a tal da Noite da Vela. Ele fechou toda a frente da pastelaria, fechou a calçada, colocou tudo um plástico preto, aí colocou as velas, tudo escuro. Levou um cara com uma guitarra e um saxofonista. Fui eu e a Otília, minha mulher. Nessa época eu tinha esse poema, “Meia-noite, a mina na periferia”, que era o meu poema, o meu forte lá na época. Declamei aquilo ao som de saxofone, aquilo foi uma loucura. Isso bem antes da Cooperifa, a Cooperifa é de 2001, isso foi mais ou menos em 97, 98, o Binho fazia o trabalho dele, mas não tinha o nome de sarau. O nome sarau aconteceu comigo e com o Sérgio Vaz quando a gente faz lá no Garajão.
P/2 – E de onde vocês pegaram o nome sarau?
R – A gente recriou. Na verdade outro dia eu escrevi sobre isso aí. Era uma palavra em desuso e é isso que eu digo que foi a coisa do lampejo. Lógico, a gente sabia o que era um sarau por causa da burguesia antiga, o piano de cauda, aquelas coisas todas. Mas não tinha, sarau, aí foi uma coisa de estalo, “Sarau dos Poetas”. Os poetas vêm declamar, então transformamos a palavra sarau numa outra coisa, a gente costumava dizer que colocamos o nosso palco dentro do bar. Nós não tínhamos local pra fazer isso, nunca tivemos dentro da cidade Casa da Cultura, esse tipo de coisa nunca teve, como não tem até hoje, aí fomos para dentro do bar. E a palavra sarau, na verdade nós recriamos a palavra sarau.
P/1 – Deram outro significado, né?
R – Isso, outro significado. Digo, não vou dizer: “Ah não, que a gente tinha o objetivo”. Não, mano, foi tudo espontâneo, tudo muito pa pum, sarau, e a palavra pegou. Pra vocês terem uma ideia, essa professora que eu falei, a Lai Diniz, na década de 80, ela passou num concurso da Universidade Federal de Santa Catarina e ela, pum, vai embora. Nunca mais vi, isso faz quase 40 anos. Aí um menino que por coincidência chama-se Marco, Marco Miranda, que faz o Sarau do Binho, um menino que usa piercing e declama bem, ele fez teatro lá comigo também no Clariô. O menino passou no Enem e escolheu fazer Letras e Arte lá em Foz do Iguaçu. Aí o menino, vu, vai pra lá. No primeiro dia de aula, aquela coisa de onde você veio, essas coisas, esse Marco Miranda – isso ele me contando que ele veio passear esses dias aqui: “Meu padrinho de sarau foi o Marco Pezão. Foi o Marco Pezão que me pegou pra falar poesia”. Aí uma professora lá falou assim: “Marco Pezão? Eu conheço esse nome”. Aí ele falou assim: “O nome dele é Marco Antonio Iadocicco, mora lá no Campo Limpo, é o Pezão”. Ela falou: “Lógico que eu conheço o Pezão, fui professora do Pezão”. Ele escreve depois: “Pezão, você não vai acreditar, tem uma professora dando aula aqui, ela que fez o curso”. Olha que coisa de louco, 40 anos depois.
P/1 – O mundo é pequeno, né?
R – Nossa, se é! Aí mandei e-mail, tudo. Até hoje escrevi pra ela, até falei que vinha aqui. “Você não acredita, eu vou Museu”. E ela vai vir agora em maio, ela falou assim: “Ah, estou louquinha pra ir pra São Paulo pra te encontrar, quero ir no sarau” (risos). Estava falando por causa da palavra sarau. Aí contei pra ela o negócio de sarau. Ela falou: “Uma coisa gozada, que aqui eu faço, aí eu marquei ‘Encontro Poético de Sexta-feira’ ‘Encontro de Poesia’, e as pessoas não usam o que eu falo, usam: “Vamos fazer sarau, vamos pro sarau”. Então a palavra sarau foi uma coisa que pegou, foi uma coisa que pegou.
P/1 – Pegou mesmo.
R – E tudo virou sarau, qualquer encontro virou sarau.
P/1 – Pezão, eu queria que você falasse um pouquinho mais de uma intenção de trabalhar no sarau a autoestima da comunidade. Conta mais isso pra gente.
R – É como eu te falei, o princípio de tudo foi isso claramente pra nós tínhamos em mente trabalhar a autoestima das pessoas, revelar, estimular a leitura, que as pessoas escrevessem e fossem lá falar a sua poesia. Lógico, a gente chama hoje de literatura periférica, como se fala em literatura marginal, mas a meu ver é literatura periférica, é um outro momento. Literatura marginal foi um outro tempo, década de 70, ditadura, foi um outro tempo. Agora hoje é diferente. E o que a gente procurou fazer? Você pode ver é um cunho social, é sempre um cunho social, sempre buscando aquela coisa do onde os pés pisam, entendeu? Falar daquilo que a gente conhece. O Leonardo Boff fala muito isso aí, do voo da águia, onde os pés pisam. E a gente começou a estimular isso, as pessoas falarem do seu bairro, falarem das coisas que acontecem, seja do lado do amor, seja não sei o quê, mas falando da sua região, da sua rua, dos seus problemas, começamos a estimular. E lógico, um escreve, outro escreve, vai estimulando. E essa coisa da autoestima é o fato da gente poder, a quantidade de gente que voltou a estudar, que foi estimulada a voltar a estudar, que acabou escrevendo livro. A quantidade de pessoas que lançou livros, se agregou ao lance da literatura, foi essa coisa da autoestima mesmo, que a gente foi, até hoje essa é a pegada, seja na Casa das Rosas. Por exemplo, quando eu fui trabalhar, fazer sarau na Casa das Rosas, lógico, eu recebi um monte de crítica: “A periferia na Avenida Paulista, ô cacete”. Mas aí eu soube purgar tudo isso, entendeu? Está certo que a Casa das Rosas é na Avenida Paulista, mas de ir ao centro, aí vem poetas da Lapa, vem poeta da Mooca, vem poeta de Barueri, vem gente de tudo quanto é lado. No último sarau, lá de Sorocaba uma mãe me escreveu: “Minha filha fez um livro, tem 11 anos de idade”. Levamos lá na Casa, lançamos o livro dela numa festa, agora dia 2 ela vai voltar. Isso é coisa do estímulo, da autoestima. E a pegada nossa é a oralidade, é falar, entendeu, então ir lá, escrever e falar. Transforme o pensamento em poesia e tenha a coragem de dizê-lo, esta é a ideia, transformar, transformar o pensamento em poesia e mandar bala (risos).
P/1 – Falando em oralidade você vai ler então o poema que o Jonas estava pedindo, que era o?
P/2 – Mina da Periferia.
R – Esse foi o grande poema da época. Você imagina escrevi isso aqui em 80... bem antes. Isso aqui foi uma aventura também, uma aventura. Eu fiz esse poema dentro da favela do Catanduva, Favela do Olinda. Lá no Campo Limpo tinha um bar que chamava O Caverna, aí tinha baile a noite toda. Era uma caverna, escuro. Aí estou lá, estava separado já. Aí conheci uma garota, Angela, e saí com ela, dançamos, tal e fui levá-la em casa. Eu não conhecia essa quebrada do Campo Limpo, Catanduva, Olinda. Meu irmão, de madrugada, quando cheguei no topo, subi no morro, assim, mano, era um vale, mas era barraco apiado em cima, meu... mas era barraco que não acabava mais. Aí fui pra lá, passei a noite com ela. No outro dia (risos), quando eu vi, meu Senhor, que mundo é esse? Aí eu comecei, acabamos nos encontrando outras vezes, eu acabei indo lá, ela tinha um filho. Curtimos lá uma paixão. Aí nasceu esse poema, é dessa época esse poema, 83 ou 84 isso aí. (declama) “É noite.../ Noite que dá arrepio/ Olhar a cara do tempo./ A saudade é água’ardente,/ Cachaça’alma que no espaço me acalenta.../ A fantasia e o real que tua presença traz/ Eu sinto o frio da solidão./ E o pensamento goteja,/ Como pingos da chuva,/ No caminho que me leva a tua morada./ Os barracos se apinham pelas beiras/ Formando uma enorme favela/ As condições precárias de vivência/ Amaldiçoam qualquer existência.../ No entanto é ser humano, / E isso explica o samba enredo/ Dessa gente brasileira; /Dona de inesgotável riqueza, / Mas, por egoísmo do homem criador/ Se fez não soberana de uns metros de terra,/ Umas tábuas e alguns tijolos... / Chora minha cuíca,/ Quando meu sonho invade teu cobertor... / E teu corpo por mim amado/ Se enrola feito caracol,/ E meus braços se tornam cachecol,/ O vento frio passa entre brechas e vãos... / É úmido o ar/ Tomo teus lábios, / E penso apenas em te beijar... / A minha amada então é flor... / Embebo na pétala que me é concedida. / Amor é dom divino!/ Onde bate limpa, mancha!/ Eu escorrego na alegria do teu ritmo,/ E não penso mais no sub emprego,/ Na sub fome, / E a dor terrível da miséria, / É nada mais que glória, / No aconchego do teu abraço/ Te amei intensamente./ Teu corpo todo fiz em partes,/ E eu tomei as partes,/ E às transformei num todo só meu./ Palavras vindas do inconsciente/ Rumorejam em nossos ouvidos:/ Nossa fé que a malfadada vida/ Não consegue esgotar!/ O vento assobia entre telhas/ Que pingos não conseguem conter/ Minhas mãos tomam as tuas:/ E eu agora só penso em te proteger./ Mina.../ Mina água do chão/ Mina filha da terra!/ Em teu seio me alimento doce,/ Em tua boca bebo do veneno,/ Sangue de teu ventre,/ Germina, Mina, paixão.../ Já se esvai a tempestade,/ Aos poucos a fúria louca se ameniza;/ Nosso compasso nos transborda dentro,,/ Além, Mina! O total delírio!/ Mina explode atômica em consciências mil.../ Dança parceira da noite/ Samba, rap, pagode, rock.../ No balanço do teu corpo me ligo na idéia:/ Mina do Brasil/ Mina que não é de ouro, nem prata/ De gente, Mina gente! Mina de muita gente/ Que ainda não se tocou o que a Mina é!/ A aventura em teus cabelos ralenta a madrugada./ Mina que agita, trabalha e se maltrata./ Mina sujeita aos tantos ditos males da vida./ Mina! Quero te amar como manda o figurino./ Quero você ao meu lado/ Seja qual for o nosso destino/ Quero você acima de tudo/ Quero você criando nosso mundo./ Você que batalha sem sobremesa,/ E que enfeita a nossa mesa.../ Menina se liga que é injusto/ Padecer de tantos abusos.../ A negligência rouba tua beleza.../ Você! Minha Mina da periferia!” (risos)
P/1 – Uau, que beleza! Você tinha lido esse poema maravilhoso, Mina da Periferia, e você vai falar o nome da musa inspiradora?
R – Angela.
P/1 – Angela.
R – Falecida Angela.
P/1 – Que legal, hein? E Pezão, conta um pouquinho mais, a gente ainda quer conversar sobre o Cooperifa, só que depois da Cooperifa você está fazendo várias outras coisas.
R – Isso.
P/1 – Mas então, como ficou um sarau emblemático, porque foi aí um dos primeiros saraus, foi uma coisa pioneira.
R – É, o primeiro sarau.
P/1 – E que gerou essa coisa toda. Você esperava que essa coisa fosse acontecer igual está hoje, 2015?
R – Ah, acho que não. A gente trabalhou pra isso, uma coisa gratuita. A gente trabalhou bastante na divulgação. Eu, por exemplo, eu fiz o Mapa da Poesia, andei bastante, muitos dos...
P/1 – O que é o Mapa da Poesia?
R – Foi um projeto que teve, foi do poeta Frederico Barbosa. Eu já estava me desligando da Cooperifa, aí eu fui fazer Sarau da Cultura em Taboão da Serra, Sarau do Departamento da Cultura, na época. Eu fui lá, fiz algum tempo e depois ele me convidou pra fazer o Mapa da Poesia. Aí eu comecei rodar São Paulo indo nos saraus, fotografando saraus e tudo e alimentando essa ideia. Naquela época, em 2009, 2010, mais ou menos, eu registrei naquela época 60 e poucos saraus e eu fiquei assombrado. Foi muito, muito legal. E tudo a partir de uma ideia nossa.
P/1 – E tudo chamava sarau?
R – Tudo sarau, tudo virou sarau (risos).
P/2 – E Pezão, antes da gente entrar nisso, só pra manter um pouco a cronologia, queria que você falasse duas coisas. Uma é, falasse um pouco, pra você qual foi o momento mais emocionante que você viveu na Cooperiva e um pouco de como foi o seu desligamento.
R – A Cooperifa, meu amigo, até hoje se eu vou me dá dor na barriga. É um trabalho que sempre me emociona muito, Cooperifa me emociona muito. Então já foi muitos, o tempo todo, sempre fui muito envolvido, sempre estive com sentimentos e tudo, a ligação, a luta pela poesia. A gente brigava, né? Tinha uma coisa da Cooperifa, o Sérgio Vaz falava isso desde o início: “Vamos questionar! Temos que questionar! Questionar! Questionar!” Meu, a gente se questionou tanto que a gente acabou até discutindo, entendeu? Foi uma coisa louca. E a coisa foi mesmo se questionando e as coisas foram pra rua mesmo. A coisa do sarau, do movimento, do questionamento. Tanto é que hoje a gente vê vários projetos como Vai, alguns, e tudo, a nascente toda, o agito todo vem dos saraus, entendeu? O sarau que fez essa ebulição toda, foi esse trabalho. Claro, a Cooperifa é um grande, a mãe, Cooperifa é a célula maior, né? Mas todo mundo, Binho, o Sarau do Binho está fazendo dez anos agora. A Cooperifa faz 15, o Sarau do Binho faz dez, é uma pegada, entendeu? Mesmo entusiasmo. Lá hoje na Casa das Rosas faz quatro anos, eu vou pra cinco anos, e tem todo mundo essa pegada. Agora estou montando lá, no Campo Limpo, I Love Laje.
P/1 – Boa! (risos)
R – É, I Love Laje. Onde que nós fizemos a despedida do poeta Valmir Jordão segunda-feira, o bota-fora dele. Então também vai virar sarau, agora estamos trabalhando pra... comprando microfone, comprando umas coisas lá para fazer, vamos começar a fazer sarau. Lá nós queremos fazer toda sexta-feira, ter um sarau lá, Campo Limpo. Mas aí embasando com cursos. Uma coisa que a gente também vai notando com o tempo, que precisa ter uma base, é preciso estudar, é preciso, entendeu? É legal, tudo, pá, mas é bom que se embase, entendeu? Eu digo isso por mim, eu aprendi muito. No meu desligamento da Cooperifa, aí eu falei: “Não mano, eu tenho que continuar aprendendo”. Minha pegada era outra, os meus poemas da época tinham uma pegada diferente. A minha saída, andar, comecei a estudar, falei: “Não, vou estudar”. E tum e tum. Hoje é outro, hoje eu busco outra possibilidade da palavra, som, o ritmo, entende? E começa, claro, se for buscar, começa (declama): “Nós é ponta”, é um ritmo que já estava criando, e quando eu saio eu vou fazendo outro e vou buscando outras coisas, entendeu? Agora, o desligamento, acho que tudo...
P/1 – Foi que ano isso? O desligamento da Cooperifa?
R – Foi mais ou menos em 2007, por aí. Em 2007, 2008, por aí.
P/2 – Por que se deu?
R – As coisas vão rolando. Meu irmão, tem uma coisa, um negócio, que chama vaidade. Vaidade é uma coisa foda. O Sérgio falava: “Vaidade tem que ficar do lado de fora”, mas cuidar dessas coisas é sempre problemático. Aí foi havendo um desgaste na relação nossa, entendeu? E a mudança, de Piraporinha passou pra Campo Limpo, foi havendo um desgaste. Desgastou, beleza, aí eu tum. Falei assim: “Não, mano, vou continuar na minha, vou embora”. Ajudei a fundar, ajudei a fazer, trabalhei pra caralho.
P/2 – Mas por que você saiu? Se vocês criaram juntos por que você saiu e ele continuou?
R – Ah, porque ele se tornou a peça forte, o Sérgio Vaz é a peça forte. Por exemplo, quando fundamos o sarau da Cooperifa, o Sérgio já era um poeta, ele já estava com dois livros, três livros, entendeu? Eu era um cara que escrevia, que eu estimulava, fazia teatro, fazia matéria de jornal, mas eu não tinha livro nenhum, e ele já era um poeta, já tinha livros e tudo. O cara é muito forte, o Sérgio Vaz é de uma força fudida, entendeu? Mas eu achei que a princípio foi doído, foi desgastante pra mim, principalmente. A minha mulher falou: “Você tem certeza que você vai fazer, cara? Você tem certeza?”, eu falei: “Não, eu vou. Nessa eu não aguento mais, vou mudar, preciso de outros ares, mudar e fazer outra coisa”. Eu vou continuar a fazer poesia, mas eu preciso andar, eu preciso andar. E meu amigo, pra mim foi ótimo, aprendi pra caralho! Aprendi muito com eles, claro, eu tenho o maior respeito pelo Sérgio Vaz, por todo mundo, aprendi muito. Se hoje eu ganhei o prêmio Troféu Governador do Estado é graças a esse trabalho, entendeu? Os caras foram buscar minha trajetória. Minha trajetória vem de onde? Vem da Cooperifa, da Fundação, de tudo o que eu tenho feito, então, não tem jeito, de renegar, não foi bom. Não, foi bom, aprendi muito, aprendi a escrever muito, aprendi a desenvolver ali.
P/2 – Você quer contar desse troféu que você ganhou?
R – Foi agora em fevereiro, ganhei o troféu Governador do Estado. Ganhei em Territórios Culturais. Em Territórios Culturais o Vaz ganhou o primeiro, ganhou faz dois anos, eu agora fiquei surpreso, quando eu vi na internet que eu vi que estava indicado ao prêmio Governador do Estado. Eu falei: “Mas o que é isso? É gozação”, estava eu e a Lids, da Cidade Ademar. Falei: “Lids, vê se isso é sério, é verdade que me indicaram”. Aí fomos no site, estava lá, eu concorri com a ONG Ação Educativa, o pessoal lá de São Mateus, pessoal do interior. O único solo era eu, o resto era tudo grupos. Era pela internet, voto popular e voto dos jurados. Aí pela internet eu fiquei em segundo lugar e ganhei pelos jurados. Foi uma loucura, no Theatro São Pedro. E aí volta essas coisas, as minhas coincidências são muito fortes. No Theatro São Pedro, no dia da premiação, foi exatamente o teatro onde fiz Cartas Chilenas, quando eu comecei, há 40 anos. Mano, aquilo me deu uma emoção que, meu. Na hora que ela falou: “Pelos jurados o vencedor é Marco Pezão”, mano! Eu falei: “Não acredito”, minha mulher do lado. Mas eu dei um berro, meu! (risos) Aí fui pro palco, falei, meu, eu vou falar. “Eu ganhei aqui como agitador e poeta, eu vou é falar poesia, que é a coisa que eu mais gosto” (risos). Eu falei “Nós é ponte e atravessa qualquer rio”, foi uma loucura. Aí em teatro ganhou o, aquele de cabelo branco?
P/1 – Zé Celso?
R – Zé Celso. Meu, aí, lógico, li Zé Celso no tempo que fazia teatro, né? Aí lembro do Rei da Vela, lembro do verso do Oswald de Andrade, “Só a antropofagia nos une socialmente, economicamente, filosoficamente”, aí no meu discurso eu olhei pra ele e falei assim: “Né, Zé Celso, Rei da Vela, só a antropofagia nos une”, fiz a minha graça lá. Aí quando eu desci pra cumprimentar ele, ele beijou a minha mão, eu beijei a mão dele. Meu, foi doido. Aí veio uma menininha, acho que tinha uns sete anos, veio assim pra mim: “Ô Pezão, gostei muito da sua poesia, gostei muito da sua poesia”. Eu falei: “Que maluco, se eu conquistei a menina”, aí a mãe veio e falou: “Olha, ela quer tirar uma foto com você, ela gostou, ela gosta”. Eu falei: “Beleza, gostou da minha poesia e ganhou livro” (risos).
P/1 – Que bacana! Então vamos voltar, 2007. Aí você está caminhando sozinho. Você foi fazer o quê?
R – Continuei lá como jornalista, repórter, aí fui fazer outra... fiz o Sarau da Cultura lá no Taboão e depois vou pro centro, é aquele negócio de atravessar ponte, fui fazer o Mapa da Poesia. Foi um trabalho bacana e do trabalho do Mapa da Poesia que nasce esse sarau na Casa das Rosas, o A Plenos Pulmões, que é um poema do Maiakovski. Inclusive quem deu o nome foi o Frederico Barbosa. Numa reunião ele falou: “Um nome bacana seria um puta de um vozeirão, A Plenos Pulmões”, pô, aí o poema do Maiakovski, tem tudo a ver. E ficou A Plenos Pulmões. Também foi uma luta pra fazer pegar. No último sarau tínhamos 52 participantes, casa lotada. E, lógico, por experiência eu sei, o Cooperifa pra pegar mesmo demorou quatro anos, três, quatro anos que ela consolidou. A Cooperifa consolidou quando a gente foi chamado pra fazer o programa da Regina Casé na Favela Heliópolis, isso lá em 2005, por aí. Ali foi uma loucura, que quando estourou na Globo, no programa da Regina Casé, aí virou uma loucura. Aí bombou, não tem mais jeito.
P/2 – E rolou alguma transformação política, você sentiu, pela Cooperifa? Quando eu fui eu vi que tinha muito conteúdo político. E aí, por exemplo, a partir das coisas que eram ditas, debatidas e lançadas lá rolou alguma transformação no bairro mesmo?
R – Ah, no bairro em si eu já não posso dizer porque eu estou meio afastado, mas nas pessoas com certeza. As pessoas, sim. Teve uma vez, uma coisa que eu senti que a Cooperifa estava madura, que a gente estava num debate, negócio de negro, escravidão, rola um debate, conversa e tal. Aí uma pessoa, um senhor levanta e: “Viva a Princesa Isabel!” Meu, gelou assim. A gente está falando de Martin Luther King, falando, entendeu, outra, e viva a Princesa Isabel! Eu falei: “Meu senhor, os caras vão vaiar, vão xingar”. Meu, ficou todo mundo quieto. Pa pa pa pa (bate palmas) começou a aplaudir. Aí todo mundo percebeu que o cara havia aprendido aquilo, ele aprendeu aquilo na escola, estava nele, ele não tinha consciência do que estava rolando lá, ele era mais velho. Eu falei pro Sérgio: “Olha a maturidade que atingiu o sarau, pessoas maduras”, todo mundo bateu palma. Opa, tudo certo. Foi amadurecendo, essas coisas foram amadurecendo. Agora as divergências políticas vai havendo, entendeu? Os conteúdos políticos, PT, essas coisas. E também porque, aqueles que a gente batalhou tanto pra colocar lá em cima dá umas mancadas dessa, negócio de corrupção, essas coisas todas, vai gerando divergências em tudo, né? Mas eu acho que o importante de tudo até hoje lá é o crescimento das pessoas. Acho que o grande lance político nosso foi exatamente dar voz ao poema, foi a gente, com o microfone. Esse menino que acabou de me ligar, o Fernando, que é da Fundão lá. Eles estão agitando o negócio da programação cultural com a prefeitura e tal, lutando. Mas o grande lance político foi lá, quando a gente botou a voz, começou a falar de si mesmo, batalhar a autoestima, escrever, estudar, esse foi o grande lance político. Eu vejo, claro, né?
P/1 – E que poetas que surgiram ali por essa influência da Cooperifa?
R – Eu acho que Allan da Rosa é um bom poeta que surgiu. O Allan, a Akins Kinte é ótimo, que também vem da geração mais nova. Akins. O pessoal do Ademar, você pega uma Lids Sikeleli também é ótima, uma boa declamadora, bastante gente, meu. Não tem como lembrar todos de memória, mas tem muita gente, muita gente lançou, tem bastante gente.
P/1 – E o seu sarau atual, A Plenos Pulmões, como é que é a pegada dele? Ele acontece que dia?
R – Sempre o primeiro sábado de cada mês. Ele é um sarau mensal. E a temática, ele mantém a forma original da Cooperifa, então as pessoas se inscrevem, eu sou o agitador, o cara que apresenta, aí vou chamando os inscritos. E também o negócio da música a gente, quer dizer, existe um cara de violão ali, como é outro local eu tento encaixar, mas eu sempre falo que o negócio é poesia, o barato lá é poesia. Porque o músico leva vantagem, como o Sérgio falava, o músico leva vantagem, um violão solitário e pum. E ele faz relaxar, a música relaxa, as pessoas começam a conversar, e tal. E dentro de um bar então, aí começa a beber, quer sair pra fumar. E a poesia, o poeta é ele, a voz, a dramatização. O cara canta, demora muito, na hora do poeta, o poeta, entendeu? O A Plenos Pulmões segue a mesma pegada, é poesia, a gente trabalha com poesia. E é a mesma pegada, não modificamos em nada do original.
P/1 – E a Argentina?
R – A Argentina foi uma conquista também, todo mundo, todos os saraus, os coletivos dos saraus. Fomos em 18 saraus, se não me engano.
P/1 – Isso foi o quê, Salão de Buenos Aires?
R – Foi na Feira Internacional do Livro em Buenos Aires.
P/1 – Ano passado.
R – O ano passado. Está fazendo um ano agora, dia 1º de maio.
P/1 – O tema seria a literatura da periferia, não foi isso?
R – Exatamente, eles tinham lá o stand de São Paulo. São Paulo é uma cidade incrível, mas normalmente pra lá iam os poetas tradicionais, os grandes editores, era uma coisa assim. E esse ano, por causa do movimento da poesia da periferia eles resolveram mudar, entendeu? “Não, vamos levar os saraus”, aí fizeram um trabalho de chamar os saraus, reunião e tudo e foi vendo os saraus. Aqueles que tinham mais de dois anos de existência, porque tem muito sarau, então a primeira coisa, quem tem mais de dois anos de sarau. Chamou os que tinham mais de dois anos, os mais velhos. Aí foi uma loucura, foram mais de cento e poucos poetas pra lá.
P/1 – É mesmo? Cento e poucos?!
R – Foi louco. Nossa senhora, foi gente pra caralho. Meu, foi muito louco. E assustou. Depois você olha no pendrive, saiu a matéria do Clarín, o principal jornal argentino, eles cobrindo a feira, foi o dia da nossa estreia, chegamos lá e o jornalista lá. Meu irmão, eles não acreditaram, a euforia. A hora que eu fui declamar, o cara depois escreveu, ele me comparou a um rock star, foi muito gozado. Meu, eu nunca esperava uma coisa daquelas. Aí tem umas frases de efeito que eu costumo falar, quem é da poesia diz aí: (fala com entonação forte) “Quem é da poesia diz aí!”, os caras: “Aííí”. Lá eu conheci um cara que estava fazendo a ponte lá, jornalista, eu falei: “Mano, traduz pra mim aí”, aí ele: “Quien es desde la poesía, grita ae!”. Aí tinha uma outra que eu falo: “Deixa a poesia entrar em sua vida, não dói nada”, tem um outro verso que eu tenho que fala isso aí. Aí ele traduziu: “Deja la poesía en su vida , no duele nada”. Beleza. Ah, meu irmão, na hora que eu cheguei lá no palco, lotado aquele bagulho. Tierra e agua, meu, aí eu fui cifrar. O cara depois escreve assim: “E Marco Pezão gritou pelado, quien es”. Eu falei: “Mas que diabo gritou pelado, mano?” “Arancou el saco”. Eu falei: “Mas que porra, esse cara está tirando o barato com a minha cara?” Aí a Lucy que estava lá, eu falei: “Meu irmão, explica pra mim”. Ela falou: “Não, saco é o paletó, que você arrancou o paletó”, que feito um rock star, arrancou le saco e gritou, que todos os pavilhões ouviram. Meu, aquilo foi um marco pra nós. Ficamos na feira, aí ela arrumou locais para a gente ir fazer sarau. Fomos dentro do presídio, que foi o Presídio Federal dos Presos Políticos da Argentina. Meu, muito, olha, irmão, quando for lá, vai. Toda história da ditadura, tudo o que aconteceu, as revoltas, está tudo lá, tudo explicado. E dentro do presídio tem uma faculdade, tem a universidade. Tem Direito, tem Literatura, tem Economia. Os presos, pum, vai pra lá. Aí pá, entra no presídio, chega lá no outro lugar já é faculdade. Aí abre o portão e entra. E como eu sou fumante, eu vejo um cara de canto fumando, eu falei assim: “Oi irmão, beleza aqui fumar?”, ele: “Aqui pode tudo, se quer fumar marijuana fume, se quer cheirar, fula, polícia aqui não entra” (risos). Dentro do presídio (risos). Polícia aqui não entra. Fomos pro sarau. Aí passou um filme que os meninos fizeram do Curta Sarau, aí passou lá pra o presídio inteiro. Aí o mais velho sempre: “Pezão declama, Pezão abre o sarau”. Aí eu declamo Nóis é Ponte, Atravessa Qualquer Rio. Foi emoção, porque os caras, os presidiários e estudantes aprenderam de cara “Nóis é Ponte”, aprenderam o refrão.
P/1 – Ah, é?
R – Ah meu irmão. Aí todos, ficou assim oito nossos e oito deles, estudantes deles e oito nossos. Aí ia intercalando um deles e um nosso, um deles e um nosso, declamando. Aí todos, cada um que saía, toda a platéia gritava: “Nóis é Ponte, Atravessa Qualquer Rio!” Meu, uma loucura. Saí de lá bobo. Passado uma semana foi outro grupo, porque foi dividido em dois grupos, a primeira remessa nove saraus, a segunda remessa nove saraus. Aí a Lids, do Ademar, o pessoal da Brasa foi no segundo. E a Lids vai lá fazer a visita no presídio. E quando eles entram no presídio, que eles chegam, como é que os caras receberam ele?: “Nóis é Ponte Atravessa Qualquer Rio!”. E os caras falaram: “Pô, o que os caras estão gritando?”, aí a Lids, que conhecia o poema falou: “Orra, mano, é o time do Pezão que está aí” (risos). Meu, foi bem louco isso aí lá no presídio, esses versos. Aí tinha levado uns livros, deixei lá. Porra, foi uma viagem proveitosa demais. Fomos na Bombonera, fomos em um monte de lugar.
P/1 – Ah, foi na Bombonera?
R – Opa. Um grupo da periferia que nunca saiu, imagina, nunca tinha andado de avião. Imagina, chegar na Argentina. Foi louco, foi uma história (risos), foi muito bacana, muito proveitoso. E lá, se você pegar matéria de jornal, ele compara, aí ele critica o conservadorismo, a tradicionalidade e fala assim: “Como estava lá na abertura Fulana, Fulana”, aquela coisa todo empolado da poesia e falou: “Não, mano, isso é um sarau. Vocês não conhecem, isso é um sarau”. Meu, porque parou. Aí eles ficaram com ciúmes porque começou a juntar gente no stand e virou uma festa, todo mundo, vai, fala rap, outro fala... é pauleira mano, tudo. Os caras ficaram enciumados, enciumados. Aí abaixavam o som nosso. Meu: “Manutenção, não tem problema, vai na voz mesmo, não precisamos de som de nada” e pau (risos). Foi muito bom aquela Argentina lá (risos). E tudo através desse trabalho. Pra nós. Eu com 64 muito feliz, de ter visto acontecer tanta coisa, entendeu, nesse tempo que a gente começou esse trabalho.
P/2 – E o lançamento do livro, como foi?
R – Ah, foi bacana. Um cara que eu tenho que falar é Marcelino Freire, uma puta figura, Marcelino Freire, tá louco, é a mãezona, mãe Celina. É a mãe Celina. E aí ele me pega, estava no Sarau do Binho, ele falou: “Pezão, você vai morrer, os caras vão ganhar dinheiro com o seu poema, Pezão. Você não tem nenhum livro? Cara, por que você não lança um livro?” “Mano, as coisas da vida, é um corre do caralho. Claro que tem tudo um fundo financeiro, né?” “Cara, não, não, vamos dar um jeito, vamos dar um jeito”. Aí ele aprontou com uma editora e tal, ele falou: “Reúne seus poemas o mais rápido possível e vamos lançar na balada”. Aí pum, reuni, e lancei na balada. Aí trouxe o Miró. O Miró, esse negócio do I Love Laje o Miró tem participação, o Miró veio uma época aqui. Eu conheci o Miró no Sarau do Binho também. Aí nos juntamos lá pra dormir, que já era madrugada, ele e o Valmir Jordão. Eu falei: “Mano, vocês aqui, Campo Limpo pro Centro da cidade”, eles estavam em pensão, estavam no centro da cidade, “Vamos chegar, mano. Vamos lá pra casa”. Ele ficou desconfiado, cara. Ele foi pra casa. Meu, dessa vez ele ficou três meses (risos). No outro dia ele: “Porra, que lugar”. Ele ficou doido, aí endoidou, aí ficou três meses lá em casa. Porque ele também estava trabalhando o livro dele aqui. O negócio da laje, ele subia pra laje, ele ficava olhando: “Eu não acredito! Recife não vai acreditar que eu estou no I Love Laje. I Love Laje, I Love Laje, Campo Limpo, a Laje”. Aí um ficou I Love Laje, eu falei: “Ah mano” “Faz um espaço cultural aqui, Pezão, o espaço é bom”. Aí cobrimos, com o tempo fomos cobrindo, agora está bem bonitinho já. Agora quero trazê-lo de volta, conversei com ele, vou ver se eu trago ele. Mas o nome I Love Laje vem do Miró.
P/1 – Eu estava te falando ali no intervalo, então nós estamos pensando em fazer esse mapa de São Paulo, cravar endereços marcantes da sua vida. Conta pra gente aí os cinco endereços que têm que estar nesse mapa de São Paulo.
R – O Garajão, acho, lá de Taboão da Serra, que é o nascimento.
P/1 – Garajão.
R – É.
P/1 – Você sabe o endereço?
R – É Estrada do São Francisco, o número que eu não sei, mas depois te passo. É Estrada do São Francisco, Jardim Helena. Lógico, a Cooperifa, claro, o Zé Batidão.
P/1 – Qual o endereço?
R – Lá é Piraporinha, o endereço só pegando, agora não vou lembrar, depois eu passo.
P/1 – Dois.
R – Eu acho que por exemplo um local que acho que vocês têm que ir é o A Brasa, Sarau da Brasa também, muito louco, na Brasilândia. É um espaço bacana, uma pegada diferente, pegada de tambor. É um ritual, eles abrem o sarau cantando tipo um candomblé, chamando os poetas, entendeu, o batuque. Quando vai embora, a mesma coisa, saudando os poetas, também é muito forte, um sarau político muito forte. A Raquel, lá é Pirituba, Elo da Corrente e Brasa, são dois saraus co-irmãos. A Raquel vai lançar o livro agora, dia 2 de maio lá na A Plenos Pulmões, também é um povo muito forte. Três, né?
P/1 – Não, mas endereço seu. Por exemplo, qual o seu endereço da Vila Sônia, lá do quarteirão da sua família?
R – Lá é Rua Manuel Jacinto, lá onde eu nasci é 469, na Vila Sônia.
P/1 – E o seu time, fica onde?
R – Campo Limpo, esse é perto de casa, o Martinica. Também é, bom, lógico, estou falando de ponto, o Sarau do Binho também, o Espaço Clariô também é um local muito importante para ir ver. No ano passado eu fiz uma peça com eles, eu escrevi. Ensaiei um ano com eles. Aí eu estava estressado por causa do trabalho, cansado, aí tinha machucado a vista, estava com problema pra fotografar porque tinha dado sangramento, aí estava com o saco cheio. A Naloana, que eu treinei poesia virou atriz. Falei: “Naloana”, tinha lá oficina de teatro, eu falei: “Pô, veio pode participar da oficina de teatro?”, ela falou: “Você quer participar?” “Claro, mano, estou estressado, preciso fazer alguma coisa. Preciso ensaiar, preciso fazer alguma coisa”. Aí comecei a participar, tudo moleque, o mais velho acho que tem 22 anos. Ensaiamos pum pum pum e eu curtindo. Ainda um velho, fui relembrar tudo as coisas de teatro, foi uma oficina maravilhosa. Quando chegou não tinha a peça porque eram 14, é difícil achar uma peça com 14 personagens. Aí o que vai fazer, o que vai fazer? Eu falei: “Pô, o sarau nasceu aqui no Taboão e tudo. Vamos fazer uma peça Nasce um Sarau? Como nasce um sarau? Como é que nasce o sarau?”. Começamos a trabalhar, cada um fez uma gênese, o que cada um queria ser. Eu falei: “Bom, o ponto é o bar, então o sarau vai nascer no bar, em um bairro tal, um bairro que existe, o que cada um quer ser dentro da peça, da história?”, cada um foi escolhendo. Aí tem uma menina de menor que queria ser traficante, escreve a gênese. O outro batia na mulher. Eu falei: “Gente”, tudo moleque novo. “A menina de menor quer ser traficante, o pai dela vai assistir a peça, eu vou ser preso, que é isso?” (risos) Aí eu falei: “Não, vou bolar”. Em cima da gênese de cada um aí criamos: “Nasce um Sarau, Clariô no Verso”. Eu fui fazendo, criei a história, tudo, aí montamos. No ano passado levamos nas bibliotecas, naquele projeto Veia e Ventania, aí foi do cacete, mano. E agora vou começar a remontar, porque agora o grupo dispersou, cada um foi estudar, Martin está fazendo faculdade, deu uma dispersada, mas agora a gente está trabalhando já com outros atores pra montar de novo.
P/1 – E Pezão, tem dois assuntos que a gente ainda podia falar um pouquinho. Um é fotografia, que é uma coisa importante na sua vida, fotografia.
R – A fotografia é como eu te falei, ela veio como um recurso pra mim por causa das matérias jornalísticas. Eu precisava sempre atualizar porque eu via os outros fazerem matéria da várzea, mas pegava uma foto antiga. Vai falar do time lá do morro, aí pegava uma foto de anos atrás, com uma foto antiga demais. Eu falei: “Não, tem que atualizar, se a gente quiser motivar tem que ser coisa fresca, coisa que os caras se veem”. Aí eu comecei a fotografar muito. Foto de papel, no mínimo umas quatro mil eu tenho, no arquivo, de papel. Agora digital, quando eu comprei a primeira máquina digital, que eu tenho hoje tem mais um tanto assim também. É muita, muita foto, tudo guardada, estão arquivadas.
P/1 – E os seus poemas com foto de futebol? Como é que surgiu essa ideia?
R – Coisa, né? Eu vou olhando e falo: “A foto ficou bonita, isso merece alguma coisa mais”, aí comecei a escrever. Eu falei: “Ah, eu vou inventar”. Foto poesia, foto poema. Comecei a criar, aí eu curti. E também foi essa coisa, eu tenho essa coisa do querer aprender. Ai, pô, Corelreaw, falei: “Pô, isso é um barato”, aí comecei a trabalhar, mano, fui aprendendo sozinho, na marra. Então estica daqui, corta de lá, escreve, essas coisas foram criando imagens. Pode ver as fotos, eu adoro fazer, forma uma gota de água dentro da flor, isso tudo fui criando esse tipo de como comunicar, de como fazer. E a fotografia veio e ficou mesmo muito forte em mim. Tanto é que no Taboão vai, eles não falam “O Pezão poeta, o Pezão escritor, nos jornais, é Pezão Fotógrafo”, tudo é Pezão Fotógrafo, Pezão Fotógrafo. E vai Pezão Fotógrafo. Nem fala que eu escrevo, é Pezão Fotógrafo (risos).
P/1 – Pezão, e o futebol? Você é palmeirense?
R – Palmeirense.
P/1 – Desde criança?
R – É, desde moleque.
P/1 – Conta uma história, uma grande alegria que você já teve com o Palmeiras.
R – Ah, boa lembrança foi a época da Academia, na época da Academia a gente curtia muito o Verdão. Grande time Ademir da Guia, Dudu. Até em futebol de botão eu era palmeirense. Meus botões eram Dudu, Ademir da Guia, os caras, né? Muita alegria e muita tristeza também (risos). Mas acho que a grande fase do Palmeiras foi mesmo na década de 60. Naquela época, molecão, a gente tinha duas opções na realidade, ou era Santos por causa do Pelé, a partir de 57 o Pelé, o grande Santos, e o Palmeiras que conseguia quebrar o Santos naquelas campanhas. E lógico, isso vem também por causa da família, meu, família descendente de italiano, meu pai, tios, tudo palmeirenses. Então era costume da meia, da camisa, essas coisas tudo do time, vai pegando. Mas eu sabia o nome dos jogadores. Do Santos eu me lembro até hoje, eram os dois grandes rivais, mas eram a nossa alegria. Djalma Santos, ele levantava a bola de um jeito, aquele lateral, jogava a bola no meio da área.
P/1 – Ele foi um cara que inovou com essa coisa do lateral de longa distância, né?
R – Foi, foi. Hoje eu vejo, estava assistindo ontem o futebol, o cara foi dar um lateral, vaaalll, arremessou como se fosse um escanteio, arremessou na pequena área para o outro subir e cabecear. Eu falei: “Porra, Djalma Santos que fazia isso aí”. E aquilo também de levantar a bola na frente do zagueiro, do atacante, ele levantava assim e toim, tirava, uma coisa de louco. Nossa.
P/2 – E outra coisa que é importante falar também é: Qual é o poeta que mais te inspira?
R – A gente tinha falado lá fora, Solano Trindade. Acho que pra mim é o que mais, pra minha poesia tem muito a ver com o mundo dele, o mundo que ele escreveu, como tendo o mundo da periferia, de tudo, da humildade. E a maneira de escrever os versos, tudo. Tenho muito apego. Eu costumo dizer que é o meu livro de cabeceira. Eu leio tudo, tudo o que me cai na mão eu leio. Mas ele eu tenho ali, onde que eu vou eu sempre levo o livro, levo um poema dele pra lembrar, eu costumo dizer, é bom lembrar dos outros pros outros lembrarem de nós, né?
P/1 – É verdade. E pra quem não conhece conta aí, quem é o Solano Trindade?
R – Um poeta negro, pernambucano, ele sai de Pernambuco com dificuldade, vai pro Rio de Janeiro. Ele é da terceira geração dos modernistas, 45. Lá ele conhece Drummond, conhece o fervo da época. Ele veio pra São Paulo comemorar o quarto centenário de São Paulo, foi 1954, ele veio pra São Paulo. Aí ele conhece um outro poeta que é do Embu, o Assis. Aí o Assis leva pra Embu pra conhecer a cidade. Agora imagina que graça devia ser Embu em 1954, 55. Se hoje você vai no centro do Embu e ainda é muito bonito, imagina naquela época. Ele se encantou com Embu. Ele volta pro Rio, os filhos dele, tudo, ele vem pra São Paulo e vai se fixar lá. Ele era artista, pintor, grande poeta e fazia o Teatro do Negro. Era o Teatro Brasileiro, TBC? Não. Teatro Brasileiro dos Negros, alguma coisa assim. Aí ele funda e faz, a Raquel participou, tudo, os filhos. É a poesia dele, entendeu, essa grande poeta. É o poeta das coisas simples, o poeta do povo, poeta das coisas simples.
P/1 – E como é que é essa história que ele vai morar perto da sua casa?
R – Então, houve lá um problema lá no Embu, essas coisas de vaidades, essas coisas, ele tum, larga tudo e muda. “Não vou ficar mais aí, não”, e muda pra Vila Sônia. Eu morava na Manuel Jacinto, ele foi morar o quê, não dava 200 metros da minha casa. Aí, lógico, a gente tudo ali, tudo molecão, aí ele chamando o Banzo, os caras do batuque, o Candomblé, o Teatro, a Poesia. Meu, aquela malandragem, a gíria, os negros bonitos, esguios. Meu, aquilo nós falava: “Meu senhor, que mundo é esse?”. Aí menina, foi lá que eu vi andando, não saía dali, né? Aí via sempre eles ali. Lógico, aí veio cair na consciência quem era ele, lógico, quando eu comecei, foi quando eu conheci FDP, o poema. Eu vi a fotografia e falei: “Pô, é o cara, Solano Trindade. Porra, é o cara que morava lá”. Aí me interessou. Mas na verdade me entusiasmou. Olha a coisa louca, eu conheci sem querer criança. Aí eu estava na oficina de um amigo meu, oficina de torneiro mecânico, tornearia, aí eles vão fazer uma limpeza. Cai lá de cima, os caras jogando fora os papéis, bababu, aí caiu um monte de folha (risos). Eu vou pegar, pô, poema do Solano Trindade. Comecei a juntar, eu tenho essas folhas até hoje. Não tinha livro dele, não tinha nada. Aí peguei, juntei, falei: “Ah, não acredito”. Aí através dos poemas dele, daquelas folhas, eu comecei a ler, trabalhar e tudo. Aí peguei, a gente estava querendo, isso há 27 anos. Estávamos com um movimento, foi quando a Erundina, a gente votou pra Erundina, a Erundina foi prefeita de São Paulo. Naquela época a gente estava batalhando pra ter a Casa de Cultura no Campo Limpo, que era o Casarão do Gastão, que era uma antiga chácara que foi desativada, acabou virando tudo terreno da prefeitura, praça, tudo e a gente trabalhando pra transformar aquilo numa Casa de Cultura. Ia ter o negócio da Consciência Negra, eu falei: “Ah não, vamos ensaiar, eu tenho os poemas do Solano Trindade, vamos ensaiar”. Aí peguei tudo rapaziada, nunca tinham falado poemas. Em casa: “Vamos ensaiar”. Tomada, Lilian, maluco, vagabundo, louco. Tinha um grupo lá que eu conhecia que era de garotos, tudo jovens, adolescentes que cantavam pagode, aí juntei os dois com música que tenha como conteúdo negro, aí peguei, montamos e fizemos Solano Trindade na praça, foi marcante aquilo pra mim, foi marcante. A minha neta estava no colo da Oti, isso aí. Solano é um cara que depois veio me seguindo, tudo. Cooperifa, sempre declamei desde o início na Cooperifa, pá, Solano Trindade.
P/1 – Você lembra alguma coisa dele, mais curta?
R – Não sei se eu lembro FDP. Esse poema deu, ele acabou sendo preso... passada a ditadura do Vargas, quando entra o próximo presidente, foi antes do Juscelino, aí ele toma uma cana por causa desses poemas. Ele foi preso, tem no livro dele, agora eu não estou lembrado exatamente, mas tomou a cana por causa desse poema. É mais ou menos assim: “Amor/ Um dia farei um poema/ como tu queres/ dicionário ao lado/ um livro de vocabulário/ um tratado de rimas/ um tratado de métricas/ terei todo o cuidado/ com os meus versos./ Não falarei de negros/ de revolução/ de nada/ que fale do povo./ Serei totalmente apolítico/ no versejar.../ Falerei contritamente de Deus/ do presidente da República/ como poderes absolutos do homem./ Neste dia amor/ Neste dia amor/ serei um grande filho da puta. (risos)
P/1 – Muito bom!
R – Esse é Solano Trindade. Os poemas dele são muito fortes, tem uns poemas muito loucos.
P/1 – E Pezão, nós estamos chegando no fim dessa rodada de entrevista, que vai ter outra na Kombi. Eu queria que você falasse aí um poema pra finalizar.
R – Uma coisa aconteceu comigo, a possibilidade da palavra. A partir do Nóis é Contra eu comecei a buscar sonoridade, a sonoridade da palavra. Aí eu comecei a curtir, aí a coisa começou a vir forte. Eu estou escrevendo um trabalho chamado Episódios. Então quando vejo um episódio é um personagem que eu estou criando e conforme as situações ele vai contando em forma de poema. Esse aqui é um que eu achei que ficou bem louco, é um dos que eu gosto, chamado Episódio 5. Foi quando aconteceu a chacina do Je suis Charlie na França, pouco tempo atrás. Então ficou assim, aí também é a mesma coisa, fiquei ouvindo, ficava lendo as matérias, o Charlie, je suis, je suis Charlie. Eu falei: “Porra é um som”. Charlie, je suis, Charlie. A tônica onde está? Está no i, je suis Charlie, e ficava brincando, je suis Charlie, je suis, aí fui trabalhando com a temática. O que aconteceu? Eu fui buscando conteúdo, aí ficou assim: (declama) “Je suis Charlie/ Je suis Charlie/ Je suis Charlie/ Je suis Je suis Je suis/ Do lápis o risco/ Contorno de arte/ A charge/ de humor amor humor amor/ Sombra caneta/ Pintados olhos/ Tiros borrados de horror/ horror horror horror/ Je suis Charlie/ Je suis Charlie/ Je suis Charlie/ Je suis je suis je suis/ Ousadas figuras/ Manchadas de fel/ Chiste de ódio/ Babel Eiffel/ Babel Eiffel/ Confusas palavras/ Usados profetas/ Exaltam o martírio/ tinto de sangue a flor/ a flor a flor/ Je suis Charlie/ Je suis Charlie/ Je suis Charlie/ Je suis Je suis Je suis/ A intolerância cega/ Discrimina e emprega valores/ Que a inteligência nega/ A intolerância cega/ Planeja e prega/ Maomé Jesus/ Na mesma cruz/ A intolerância cega/ Discrimina e emprega/ Valores que a inteligência nega/ A intolerância cega/ Planeja e prega/ Maomé, Jesus na mesma cruz/ Je suis Charlie/ Je suis Charlie/ Je suis Charlie/ Je suis Je suis Je suis Je suis/ Liberdade, igualdade/ E fraternidade/ Eu sou, eu sou, eu sou, eu sou, eu sou/ Mas os homens não se entendem!/ Charlie!!!”
P/1 – Uau. Recentíssimo.
R – Agora eu estou fazendo umas coisas. Esse também, se você me dá licença de ler, esse eu acho...
P/1 – Claro.
R – Esse eu estou andando na Estrada do Campo Limpo. E pá, pensando, (risos) lógico, pensando em poesia. Aí me veio um cara, com esses celulares modernos, microfone, você não vê o celular. E o cara andando na rua, na Estrada do Campo Limpo, estou passando por ele, aí ele grita assim – conversando e brigando com uma mulher do outro lado: (berrando) “Você está louca, não está vendo que eu estou vendo!?”. Eu falei: “Que é isso”. Aí eu entrei assim, entrei no boteco de um amigo e falei: “Ô Irmão, dá uma cerveja, uma caneta e um pedaço de papel”. E aí, você está louca, não está vendo que eu estou vendo. Aí fiquei, vou escrever um poema sobre isso aí. Aí saiu esse daqui: Briga de Casal. (declama) “Você está louca/ não está vendo que eu estou vendo/ Você está louco/ Não está vendo que eu estou vendo/ Você está louca/ não está vendo que eu estou vendo/ Você está louco/ não está vendo que eu estou vendo/ Você está louca/ Você está louco/ Você está louca/ Você está louco/ Eu não me rendo/ Eu não te rendo/ Eu não te vendo/ Eu não me vendo/ Você está louca/ Não me diz o que se vê/ Você está louco/ Não me diz o que se vê/ Você está louca/ Não me diz o que se vê/ Você está louco/ Não me diz o que se vê/ Você está louca/ Não me diz o que se vê/ Eu não me vejo/ Eu não te vejo/ Eu não te vejo/ Eu não me vejo/ Eu não te vejo/ Só quero um beijo/ Eu não te beijo/ Só quero um beijo/ Então me beija/ Você está louco?/ Então te beijo/ Você está louca/ Você está louco não está vendo que é amor? / Você está louca não está vendo que é amor?/ O que é amor?/ O que é amor?/ O que é amor?/ Então me beija/ Eu não te beijo/ Então me deixa/ Eu não te deixo/ Então te deixo/ Então me deixa/ O que é amor?/ O que é amor?/ O que é amor?/ O que é amor?/ Você está louca/ Você está louco/ Você está louca/ Você está louco/ Então me beija/ Então te beijo/ Então me beija/ Então te beijo/ Então me beija/ Você está louco e está vendo o que eu estou vendo/ Você está louca e está vendo o que eu estou vendo/ Você está louco e está vendo o que eu estou vendo/ Você está louca e está vendo o que eu estou vendo/ Então me beija/ Então me beija/ Então me beija/ Então me beija-me boca louca”.
P/1 – Nossa! Na hora ali?(risos). Lápis, caneta, papel e cerveja.
P/2 – Então aproveita e manda Nóis é Ponte.
R – Isso, vamos fechar com Nóis é Ponte. Esse foi, eu acho o grande, os meninos fala mantra, a mantra do Pezão.
P/1 – E qual a história dele antes de você ler?
R – Então, a história foi... nós estávamos ajudando a Ponte a fazer a festa das crianças, aquela foto que está eu, o Sérgio e o Binho. Foi naquele dia que, a primeira vez que eu falei o Nóis é Ponte. Aí tinha um...
P/1 – O Ponte Preta, né? Que é o clube.
R – Isso, o clube, que é lá no Leme. Que tem aquela foto que está todo mundo em volta. E aí o Marco Preto é o cara que organiza. Eu já estava fotografando eles desde o início, de boa, ia lá, levava minha máquina, fazia a matéria, tirava foto, três, quatro rolos de filmes pra eles, a história deles. Aí nesse ano eu falei: “Porra, o Marco sempre trabalha pra cacete, nunca ganha nada, um cara que faz pelos outros”. Aí eles estavam lá na Cooperifa e estava o Roberto, que é o Nego Buia do Z'África Brasil. E discussão de futebol, futebol varzeano. E na região do Leme a Fortaleza que é tricampeã da cidade e a Ponte Preta que havia subido pra primeira divisão não havia ganhado nada ainda. E eles eram tudo jovens, a juventude era tudo Ponte Preta, aí eles metendo pau no Fortaleza. Eu como repórter podia, conhecia, joguei bola com o Fortaleza, também tive minha história por aquele lado, aí eu brincando com o Buia, tomando cerveja com o Buia, eu virei e falei: “Buia, nóis é Ponte e atravessa qualquer rio”. Aí o Buia olhou assim pra mim: “Porra, Pezão, mas é forte, Pezão”. Assim, conversando no bar do Zé Batidão. Eu falei: “Porra, caralho, mermão, de onde saiu isso daí? Nóis é Ponte a atravessa qualquer rio”. Aí tum, eu falei: “Porra, mano”. E a festa é toda, eu falei: “Pô, vou fazer uma homenagem pro Marco, pro nego Marco”. Aí comprei uma bola, levei uma bola no campo, pedi pra todo mundo assinar, os poetas, todo mundo assinar. Eles estavam filmando, fazendo aquela coisa pra reportagem lá. Aí eu declamei a primeira vez lá, entendeu? Foi uma homenagem pra Ponte Preta, pras crianças e pro Marco. O poema. O poema era maior e tudo, essa coisa, uma coisa que me ajudou muito, a coisa da oralidade dos saraus foi de perceber a sonoridade. Então quando estava grande a gente, pá, não precisa enxugar, entendeu? Trabalhar. Precisa melhorar e tal. E isso me ajudou, me ajuda sempre a coisa do sarau, o fato de falar. Então ficou assim esse poema. E também o fato do nóis, né? Aí na periferia eu fui notando, nóis, nóis, nóis. Não é nós vamos, é nóis é, tudo nóis. Se apegou a essa palavra nóis, ficou nóis, tudo é nóis. Eu falei: “Pô, vou brincar com o nóis, então, nóis é ponte, entendeu? Aí eu brinquei no verso assim: (declama) “Conjugue esse verbo/ Errada consonância/ Na maneira de dizer.../ Nóis é Ponte e atravessa qualquer rio.../ Nóis é Ponte e atravessa qualquer rio.../ Nóis é Ponte e atravessa qualquer rio.../ O nóis pra nós/ É singular/ O nóis pra nós/ O plural é pessoal/ Nóis é Ponte e atravessa qualquer rio.../ Nóis é Ponte e atravessa qualquer rio.../ Nóis é Ponte e atravessa qualquer rio.../ Criança/ Não odeie/ Não se subestime/ Ame sua própria idade/ Mostre força/ Encare a real/ Deixe de lado o mal/ Sem ser bom de todo/ Senão o mundo te faz tolo/ E ninguém é biscoito/ Pra se deixar comer.../ Nóis é Ponte e atravessa qualquer rio.../ Nóis é Ponte e atravessa qualquer rio.../ Nóis é Ponte e atravessa qualquer rio.../ Busque outra margem/ Ser esperto não é vadiagem/ Arco-íris, lagoa, numa boa/ Segure o leme/Atravesse a ponte.../ Venha periferia/ Venha periferia/ Nóis é Ponte e atravessa qualquer rio.../ Nóis é Ponte e atravessa qualquer rio.../ Nóis é Ponte e atravessa qualquer rio.../ Nóis é Ponte e atravessa qualquer rio...” (risos). Esse poema na Cooperifa era uma loucura. O Marcelinho andou me contando, eu não lembrava nem do Marcelinho naquela época, a gente não tinha amizade, não tinha nada. Ele falou: “Pezão, eu te conheci você declamando Nós é Ponte. Era uma loucura aquela Cooperifa, todo mundo gritando, todo mundo: Nóis é Ponte. Aquilo, quando eu vi você declamar foi uma coisa de louco”. Tanto é que o título, tudo, ele falou: “Não, o título do seu livro tem que ser Nóis é Ponte e Atravessa Qualquer Rio” (risos), não tem outro, faz o Nóis é Ponte. Então é isso.
P/1 – Muito legal.
P/2 – E a última pergunta, né?
P/1 – A gente sempre faz aquela pergunta de final que é: O que você acho de contar a sua história aqui no Museu da Pessoa?
R – Meu irmão, só posso dizer a imensa gratidão, entendeu? Não é só história minha, é a história de um monte de gente, de um movimento, entendeu? Acho que é um movimento que está se articulando. Eu costumo falar o seguinte, esse movimento vai projetar ainda muita gente, entendeu? Ele vai se projetar. Tem muita gente boa. Eu costumo comparar, como eu sou o mais velho do pessoal, eu falo assim, futebol brasileiro era restrito pros ingleses nos clubes e tal. Aí um inglês ruim de bola deu um bicão na bola e a bola foi cair no meio da rua. Aí passou o negão, passou os caras, pegaram a bola, esconderam a bola, aí começaram a jogar no meio da rua. Fizeram dois golzinhos ali de tijolo e começaram a jogar, e desde então acabou, o domínio da bola caiu no pé do povo. É o que eu acredito que vai acontecer com a literatura, com a poesia. Ela está caindo na boca do povo, na mão do povo, nos dedos, no teclado do povo. E ela vai se desenvolver. E a gente luta em cultura, lógico, o único jeito de salvar esse país, acredito piamente nisso, de melhorar esse país é culturalmente, educação e cultura. Porque não é possível tanta corrupção. Mas consumir essa imensa cultura que eles impõem pra gente. Eu acho, acredito exatamente nessa coisa da cultura. A cultura está caindo na boca, cada vez mais se fala poesia, onde que eu vou eu escuto alguém falar poesia, eu acho um barato as pessoas falando poesia. E acredito piamente nisso aí, acredito na poesia, acredito nisso trabalho. E eu acho que é uma coisa que é progressão, entendeu? O Pezão vai embora, mas acho que é uma coisa que vai continuar. Você, por exemplo, jovem, fazendo esse tipo de trabalho. Eu tenho certeza, eu tenho certeza. Uma vez eu fui lá numa entrevista com, o Marcelinho convidou eu e o Sérgio Vaz, aí ele falou pro grupo de alunos dele, falou isso aí: “Porra, vocês não conhecem nem o Pezão, nem o Sérgio Vaz. Mas lá no futuro vocês vão ver a importância deles hoje, entendeu, e desse trabalho que eles estão fazendo, que vai desenvolver, que vai acontecer no futuro. Vocês vão ver que essa coisa vai parar neles, tem uma passagem deles aí”. Eu também fui ver lá no Sarau do Binho aquele menino Paulo, Paulo Lins.
P/1 – Paulo Lins.
R – Ele foi lá no Sarau do Binho segunda-feira passada. Também fez uma palestra lindíssima, é ótimo. Aí ele fala também do movimento. Nas perguntas ele fala: “Olha, o movimento hoje é dos mais importantes que nós já tivemos dentro da literatura”. Aí um menino falou: “Pô, mas assusta, é só os acadêmicos”, então essas perguntas sempre que acontecem: “Acadêmico não gosta, diz que a gente não tem qualidade”. Essas coisas tolas. Literatura é uma coisa só, não existe literatura periférica, literatura brasileira é literatura brasileira, começa lá atrás, do Quinhentismo, e vem vindo, literatura brasileira. Nós estamos vivendo o nosso momento, assim como viveu literatura marginal, vivemos esse momento. Aí ele fala da importância, ele fala assim: “Lógico que assusta. Se pensa em aparecer um ou dois poetas, três poetas, mas o movimento está aparecendo poeta de tudo quanto é lado, é muita gente falando de poesia, e isso assusta, causa uma estranheza. Mas a importância é muito grande desse movimento hoje de poesia, desse trabalho que está sendo construído, dentro das escolas, tudo”. Eu acredito pra caramba. Beleza?
P/1 – Muito obrigado!
R – Beleza, brigadão! Brigadão.
FINAL DA ENTREVISTA
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