Projeto Kombiblioteca Poética
Depoimento de José Alisson da Paz Alves
Entrevistado por Karen Worcman e Jonas Worcman
São Paulo, 21/05/2015
Realização Museu da Pessoa
KOM_HV012_José Alisson da Paz Alves
Transcrito por Mariana Wolff
MW Transcrições
P/1 – Alisson, bom dia, tudo bem?
R – Bom dia, tranquilo.
P/1 – Eu queria começar uma parte muito simples de você dizer seu nome, lugar e a data em que você nasceu.
R – Meu nome é José Alisson da Paz Alves, mais conhecido como Alisson da Paz. Eu nasci em Maceió, Alagoas no dia 14 de julho de 1975, às quatro e quarenta e cinco da tarde, quando o sol se põe.
P/1 – E você sabe a história do seu nome, Alisson? Por que se chama Alisson e da Paz e essa história? O que você conhece dessa história?
R – O José veio por conta do meu avô, pai da minha mãe, um negão, dois por dois. O nome dele era José Flor, mais conhecido como Zé Fulô no interior de Alagoas, quer dizer, Pernambuco. E Alisson foi porque quando a minha mãe estava indo para a maternidade, ela viu uma placa de um politico lá que chamava Alisson, ela achou que Alisson era um nome bonito. Paz é por causa da família da minha mãe também e Alves por causa da família do meu pai. Essa é a história do meu nome.
P/1 – E qual é o nome dos seus pais?
R – O nome do meu pai é Paulo Ferreira Alves e o nome da minha mãe é Nilza Ana da Paz Alves.
P/1 – E eles são da onde? O que eles faziam? Me conta um pouquinho cada… primeiro do seu pai e depois, da sua mãe.
R – O meu pai era de Alagoas, interior de Alagoas, uma cidade chamada Igaracy, um bairro chamado Lagoa do Felix, ele quando adolescente, era mais jogador de futebol do que qualquer outra coisa, ele jogava futebol, jogava, segundo reza a lenda, jogava muito bem, enfim, trabalhou como peão de obra, trabalhou em alguns lugares, veio para São Paulo, aí voltou para Alagoas de novo, quando ele voltou para Alagoas de novo, conheceu minha mãe.
P/1 – Quantos anos ele tinha, mais ou menos, quando ele conheceu sua mãe?
R – Ah, eles se conheceram pequenos, mas eles começaram a se relacionar, a namorar, deixa eu olhar, acho que era coisa de 20 e alguns anos, assim, 25, alguma coisa assim, mais ou menos.
P/1 – Ele nunca trabalhou no campo? Os pais dele faziam o quê? Você sabe?
R – O meu avô, ele trabalhava no campo, até onde eu sei. Aí depois, foi para Maceió e começou a trabalhar como pedreiro.
P/1 – O pai dele?
R – O pai dele. A mãe dele era dona de casa, só ficava na casa mesmo. Ele gostava muito de trabalhar na terra, era um taurino mesmo, tinha uma ligação muito grande com esse trabalho do campo, mas não para trabalhar com os outros, ele não gostava muito dessa coisa do empregado.
P/1 – Ele fazia o que para ganhar a vida?
R – Ele trabalhou muito como pedreiro. A principal profissão dele foi como pedreiro. Quando jovem, ele trabalhou em metalúrgica, trabalhou na Caloi, mas ele trabalhou na Caloi mais porque jogava futebol para defender o time da Caloi do que para trabalhar, mesmo.
P/1 – Então, você cresceu com ele em casa, casado com a sua mãe?
R – É, ele ficou casado com a minha mãe até falecer agora, em 2012.
P/1 – E você conheceu ele como pedreiro? Era isso que ele fazia?
R – Eu conheci ele como pedreiro, meu pai sempre foi meio idealista, ele tinha uns planos, ele trabalhava como pedreiro, em situação apertada, quando ele ganhava uma grana, ele tentava investir em algum projeto dele, pessoal. Ele já tentou vender hot dog, já tentou fazer um abatedouro de frango, já sei lá; já tentou várias coisas na vida dele.
P/1 – E nenhum deu certo? Nenhum empreendimento deu certo?
R – Não, não, quando o negócio começava a dar certo, ele bebia tudo (risos).
P/1 – Ele bebia?
R – Ele bebia bastante.
P/1 – Ele era alcoólatra?
R – É, ele era alcoólatra, ele era malandro, digamos assim (risos), ele era muito dessa vida do boteco, então rodava muito, acordava cedo, ia beber, voltava, dormia, ele tinha muito problema assim, com a bebida.
P/2 – Mesmo na época do futebol?
R – Então, mesmo na época do futebol, inclusive, teve uma fase que ele ia jogar no Criciúma e tal, estava jogando bem e tal, foi chamado para jogar no Criciúma, ele não conseguiu se manter lá exatamente por causa disso, por causa da cachaça, bebeu muito.
P/1 – Você tem lembrança dessa coisa da cachaça na sua casa? Dava algum problema especifico?
R – Dava, dava muito problema!
P/1 – Tipo o quê?
R – Tio ele chegar, ele gastar, ele ia trabalhar, trabalhava na feira em Alagoas, era feirante, um dos empreendimentos dele, aí ele pegou e torrou toda grana na cachaça, toda grana que ele ganhou naquele fim de semana, a gente não tinha nada em casa pra preparar, de comida, ele chegou em casa só com hot dog assim, para dividir para mim e para as minhas duas irmãs, cachorro-quente, em Alagoas é hot dog e aí, a gente olhou aquilo, pra gente que era criança, foi fenomenal, quase nunca podia comer hot dog (risos), mas para a minha mãe assim, aquilo ali foi…
P/1 – O que ela fez?
R – Minha mãe, ela sempre foi porreta, então falava um monte, brigava, xingava, essas coisas, falava que ele não prestava e o meu pai, por mais que ele fosse alcoólatra, ele era o mais da paz que ela que era da Paz, mesmo. Então, ele só ficava calado e ia dormir. E aí, ela xingou, brigou muito com ele nesse dia. Foi uma das poucas vezes que eu vi a minha mãe chorando para falar a verdade, em ver a nossa alegria com aquela coisa que era tão besta e ela sabendo que depois daquela coisa meio efêmera, que é a novidade do hot dog, não ia sobrar nada. Enfim, ela que ia ter que se virar depois.
P/1 – Então, vamos conhecer assim, como que é o nome dela?
R – Minha mãe? Nilza Ana da Paz Alves.
P/1 – E ela nasceu?
R – Ela nasceu em Pernambuco.
P/1 – Então, ela não era de Alagoas?
R – Não, ela nasceu em Pernambuco, mudou-se para Igaracy eu acho que com seis anos de idade…
P/1 – Com os pais dela?
R – Com os pais dela.
P/1 – Sabe qual foi o motivo? O que eles foram fazer em Alagoas?
R – Então, esse meu avô José Flor, aí, José Flor da Paz, acho muito bonito esse nome, e aí o Zé Fulô era quebrador de fumo, ele tinha um terreno lá, a família dele tinha um terreno lá em Recife, tal, e aí acho que por conta do falecimento do pai dele, separaram a terra, ele pegou e vendeu o pedaço de terra dele e foi lá para Alagoas, porque lá, falam que lá em Igaracy é um dos melhores lugares para se plantar fumo, e aí enfim, ele foi para lá, levou a minha mãe e…
P/1 – Quantos filhos ele tinha? Quantos tios você tem, você sabe?
R – Sim. Tem um, dois, três, quatro, cinco, acho que eram cinco.
P/1 – Aí levou todo mundo?
R – Então, levou todo mundo, acho que levou quatro porque o meu tio mais novo não tinha nascido ainda, ele nasceu lá em Alagoas.
P/1 – E aí, ele plantava fumo?
R – Ele plantava fumo, mandioca, tinha uma casa de farinha, que eu cheguei a conhecer depois. Eu não cheguei a conhecer esse meu avô, porque quando eu nasci, ele já havia falecido, então enfim, pelo o que eu lembro, ele era um cara muito apaixonado pela mulher dele, pela família e tinha essa coisa de trabalhar muito. Então tinha essa terra lá, ele cultivava fumo e mandioca para fazer farinha.
P/1 – Isso não é perto de Maceió, é?
R – Em Alagoas, tudo é perto, comparado a São Paulo, mas uma coisa de algumas horas, só. Umas duas, três horas, numa velocidade razoável, você chega em Igaracy.
P/1 – E a sua mãe que era dessa família, ela trabalhava na terra?
R – A minha mãe trabalhava, ela ia lá quebrar fumo, ela…
P/1 – O que é exatamente quebrar fumo?
R – Quebrar fumo é… porque o fumo é a folha, do tabaco. Então, você tem que saber como quebrar. Eu também não conheço muito, porque eu não participei desse processo, mas quebrar fumo é tirar folha do tabaco, enrolar e fazer aqueles fumos de rolo. Então, tem os quebradores de fumo. Inclusive, tinham umas canções, mas eu não me lembro mais de nenhuma que eram canções das quebradeiras de fumo lá de Alagoas.
P/1 – E a sua mãe ficou trabalhando nisso desde criança, você sabe?
R – Minha mãe trabalhou nisso desde criança, assim, até os seus 20 e poucos anos, quando ela casou com o meu pai, ela só pode casar com o meu pai depois que o meu avô morreu, porque o meu avô não gostava muito do meu pai e tinha um irmão mais velho dela também que inclusive, sumiu, ninguém sabe mais dele, que ele não deixava o meu pai namorar com a minha mãe de forma alguma (risos).
P/1 – Por quê?
R – Porque o meu pai sempre teve essa coisa, né?
P/1 – Ele já bebia?
R – É, ele bebia, era malandro, catava várias mocinhas de lá, eu falo que o meu pai sempre foi um alegrista, a frase do meu pai era essa: “O que eu quero é ser feliz”, se você perguntar para qualquer irmão, essa é a frase dele, porque ele sempre foi um cara muito feliz, ele sempre foi muito voltado à felicidade, a essa coisa de festa e tal. Então, o meu avô não queria, o irmão mais velho da minha mãe não deixava, que ele era mais forte que o meu pai na época, meu pai era magrinho e aí enfim, ele não deixava e depois que esse irmão saiu, minha mãe se engraçou com o meu pai, aí se apaixonaram e foram para Alagoas, fizeram a minha irmã mais velha e foram para… para Alagoas, não, para Maceió.
P/1 – Eles saíram do campo, foram para…?
R – É, foram lá para Maceió. Aí lá em Maceió, principalmente, os pais do meu pai ajudaram bastante, deram a casa para eles, que eu não cheguei a conhecer, era uma casa que ficava perto de uma encosta de um morro, aí lá morou a Paula, que é a minha irmã mais velha, a Juliana enquanto bebê ainda. Aí no ano em que eu nasci, a casa foi abaixo, assim, teve uma chuva…
P/1 – A casa caiu?
R – A casa caiu. Inclusive, a primeira lembrança que eu tenho de vida assim, foi morando no acampamento, eu não tenho lembrança dessa casa, eu era muito pequeno, quando eu era pequeno assim, essa casa caiu, a gente foi morar no acampamento, né?
P/1 – O que você lembra desse acampamento?
R – Eu lembro que a gente tinha uma cachorrinha dessas compridinhas tipo hot dog, sabe, chamada Sheila, eu lembro que a gente tomava banho numa bacia e era maior legal, porque para mim era como se fosse numa piscina, numa baciazinha que tomava banho nós três e que mataram essa cachorrinha no acampamento. Mas essa é a primeira lembrança que eu tenho assim, minha mãe gritando com a gente, cachorrinha girando ao lado da bacia e olhando tudo assim e não entendendo muito bem, achava a coisa mais divertida do mundo, para mim era uma brincadeira aquilo ali, eu não tinha lembrança da casa.
P/1 – Você se lembra onde você dormia, como que era o colchão?
R – Era no chão assim, minha mãe colocava uns negócios, uns panos, um colchãozinho no chão para gente, dormíamos nós três assim, se eu não me engano era um tijolo com uns papelões assim no colchão. Mas o que eu me lembro era mais isso, dessa fazer do acampamento.
P/1 – Você tinha mais ou menos, quantos anos nessa época?
R – Eu não lembro. Não me recordo, sei que eu era muito pequeno, era muito pequeno, mesmo. Se eu tivesse, sei lá, um ano, um ano e pouco, alguma coisa assim.
P/1 – Antes da gente continuar, eu queria saber o nome da sua mãe.
R – Nilza Ana da Paz Alves, essa daí que levou a gente nas costas (risos) durante muito tempo. Minha mãe, depois que ela chegou lá em Alagoas, ela já sabia costurar e ela enfim, costurava, essa era a profissão dela, é a profissão dela até hoje, né? Trabalha com costura. Então, depois que a gente saiu desse acampamento que é onde eu me lembro mais das coisas assim…
P/1 – Vocês foram pra onde?
R – A gente foi para uma casa chamada Chã da Jaqueira, num bairro chamado Chã da Jaqueira. Aí ali, ela começou a garimpar um pouco, conseguir montar esse material dela de costura, até então, ela saía, ia costurar para fora, costurava para os outros, era uma casa pequena, era quase um cômodo só a casa, porque tinha uma sala, tinha uma parede, a cozinha, que era um corredor, um banheiro…
P/1 – Vocês dormiam onde?
R – A gente dormia na cama. Eu, quando era pequeno, minha mãe montava um… colocava uma cadeira de um lado, outra do outro, colocava só o estrado em cima, o colchão e aquela era a minha cama, e todo mundo queria dormir ali, as minhas irmãs mais velhas queria dormir ali, tinha cama mesmo, mas ninguém queria dormir na cama, queria dormir naquela caminha improvisada que parecia ser mais bacana. A gente dormia lá.
P/1 – Então, você dormia aqui, aí tinha um outro colchão…?
R – É, tinha um outro colchão, onde dormia minha, mãe, meu pai e as minhas irmãs.
P/1 – No mesmo colchão?
R – No mesmo colchão.
P/1 – E a cozinha ficava no outro cômodo?
R – Não era um cômodo, para falar a verdade, aqui era mais ou menos como se fosse a sala, aí tinha uma abertura aqui, atrás da sala tinha uma parede que nem chegava até o teto e esse corredor de trás era a cozinha.
P/1 – E o chão era de quê?
R – O chão era de alvenaria, porque depois que a casa caiu, o prefeito, governo, não sei que instância do estado deu essas casas assim, pra gente.
P/1 – Então a casa não era de… não era barraco? Era uma casa?
R – Não era barraco, era uma casa assim, uma quase casa.
P/1 – E todo bairro era de casas assim?
R – É, todo bairro era de casas assim, casas pequenas, era um bairro bem bacana, inclusive, bem violento (risos).
P/1 – Era muito violento?
R – Muito violento.
P/1 – O que você lembra disso? Como você sabe que era violento? Você lembra de coisas violentas?
R – Eu lembro. Lembro do meu convívio, convívio de criança lá que já era um convívio violento entre as crianças e das histórias que eu ouvia, histórias que eu ouvia nos bares, assim…
P/1 – Tipo?
R – De brigas. Eu lembro uma vez que eu fui… eu acho que eu tinha que sair atrás do meu pai, alguma coisa assim, eu sai só acompanhando ele mesmo, meu pai estava tomando uma birita lá, e um cara que estava passando assim também era um amigo deles lá falou uma brincadeira e eles estavam tão bêbados assim por causa de uma brincadeira, eu não entendi qual foi o motivo que eles começaram a brigar, começaram a brigar, eu acho que foi a primeira vez que eu vi alguém saindo sangue, assim, sabe?
P/1 – Brigaram de soco?
R – Brigaram de soco.
P/1 – De faca?
R – De faca não, porque não deixaram, meu pai mesmo, segurou o cara porque o meu pai, por mais que ele andava nisso aí, ele não brigava, nunca brigou, histórias de violência do meu pai nunca teve, só brigou uma vez quando ele trabalhava de cobrador e aí, o cara foi folgar com ele, ele já não tinha muito esse negócio de aguentar, não gostava de ser empregado por causa disso, para não aguentar as coisas, ele foi para cima do cara, mas aí o outro cara… eu lembro que tinha… que lá, a gente pegava, caçava animal para vender no boteco para tira gosto. Aí tinha um pratinho lá com um preá esquartejado que eles tinham fritado e aí quando os caras estavam brigando, esse cara foi pegar a faca lá que estava no pratinho do preá, meu pai segurou assim, falou: “não, aqui não”, aí enfim, o cara soltou a faca, o meu pai soltou o braço e aí ele foi pra cima do cara, ele deu um soco, tinha um montinho de terra assim, ele deu um soco para o cara cair, eu olhei assim e falei: “Caralho”, o que deu o soco era muito menor, conseguiu bater num cara que era muito maior (risos), mas o cara estava tão bêbado que enfim, ele caiu. Aí, ele sangrando, aí ele começou a chutar, aí enfim, por isso que eu…
P/1 – Por exemplo, entre as crianças que você falou que era muito violento, como era essa violência de criança?
R – Era violência porque tinha… porque a gente morava num bairro pobre, mas mesmo bairro pobre tem sempre quem é mais pobre, né? Tem sempre quem tem um pouquinho mais e quem é mais pobre, assim, e lá tinha que meio essa divisão e eu era meio dessas crianças que era mais pobre, a gente foi para lá porque a gente tinha perdido a casa, quando a gente perdeu a casa a gente perdeu tudo, caiu tudo, foi tudo morro abaixo. Então, a gente teve que reconstruir tudo, a gente não tinha nem cama para todas as crianças, tinha um fogãozinho. Eu lembro que o guarda-roupa era uma coisa improvisada que a minha mãe montou, que nem guarda-roupa tinha, eram uns bloquinhos que ela colocou umas madeiras, a gente colocava as roupas e ela colocava uma toalha assim na frente, porque não tinha, o resto ficava guardado embaixo da cama num baú. Então, quando a gente saía na rua, tinha os moleques que brincavam, que tinham brinquedo, que eram os playboyzinhos da favela (risos) e a gente não tinha nada. A gente inventava as nossas brincadeiras, e é obvio, quando você não tem e você vê, você quer. E aí, tinha muito essa coisa desses moleques que iam brincar, saía na rua, tinham os grupos quando se trombava na rua, era porrada certa. Eu lembro que eu tinha um amigo, o Samuelzinho, que a gente saía muito junto, tinha um moleque na frente que a família dele era um pouco mais abastada, digamos assim, e esse moleque era muito folgado, ele gostava de se sentir maior que os outros, folgado mesmo e aí, era sempre briga, a gente se trombava na rua, era sempre briga.
P/1 – Era briga assim, de porrada, física?
R – De porrada, era briga física e pedra, né? Porque na época, não tinha faca e a gente era pequeno.
P/1 – Você lembra da sua primeira briga, assim?
R – Lembro. A primeira briga… acho que a minha primeira briga… eu lembro desse Alex aí, que eu lembro que eu estava na rua e ele era maior que a gente e aí, eu sai sozinho, a gente se trombou sozinho, quando eu era pequeno, eu era bem bravo, não levava desaforo pra casa e aí, ele fez uma brincadeira comigo, eu peguei um pedaço de tijolo, só um pedacinho mesmo que era o que eu podia jogar na época (risos) e joguei, ele veio pra cima e me bateu. Aí, eu fui para casa, tal, meio fodido da vida, que eu não gostava… ninguém gosta de apanhar, aí minha mãe, para fazer a gente se alimentar bem, ela preparava uns sucos, tal, ela preparava um suco de beterraba e ela falava que aquilo deixava a gente mais forte. E eu pensei que ia ser tipo Popeye, sabe? (risos) Você tomava o suco de beterraba, tã, tã, tã. Aí eu lembro que ela tinha preparado esse suco de beterraba, eu tomei esse suco de beterraba e eu voltei para a rua com tanto ódio desse menino que eu não esperei ele contar até três, eu vi ele, já não falei nada, só fui para cima dele, essa foi a primeira briga que eu me lembro assim, e aí, eu apanhei de novo, mas eu bati mais (risos). Ele era maior que eu.
P/1 – E depois seus pais souberam? Isso teve alguma consequência?
R – Sim, minha mãe soube porque ele morava bem em frente da minha casa. Aí eu lembro da mãe dele também que era meio burra, usava óculos, e aí a mãe dele foi lá, foi falar com a minha mãe. A mãe dele foi reclamar de mim, para falar a verdade.
P/1 – A sua mãe, como ela era com vocês?
R – Minha mãe, ela representava meio que o pilar da família, porque o meu pai tinha essas oscilações, eu lembro que enfim, a gente confiava nela. Meu pai, ele ficou próximo da gente na nossa infância, mas ele sempre foi muito mais reservado. Minha mãe resumiu ele… (risos) em uma palavra esses dias, meu pai amava com os olhos, mas as palavras eram brutas, sempre, sabe? Ele tinha um olhar amoroso, mas as palavras eram sempre duras. Era o hábito dele. E a minha mãe, não, ela tinha essa coisa da amorosidade mesmo, ela…
P/1 – Ela era carinhosa?
R – É, ela acolhia a gente, se precisasse, sempre foi muito de conversar, ela nunca chegava impondo, ela sempre perguntava, ela dialogava, sempre foi muito desse diálogo, mas precisava punir, meu pai, por exemplo, nunca bateu na gente…
P/1 – E ela?
R – Ela batia.
P/1 – Batia como? Com o quê?
R – Batia. Por exemplo, nessa primeira fase de Alagoas, eu lembro que eu sempre fui meio esquentado quando eu era pequeno, e a gente brincando de esconde-esconde e ela se escondeu de uma forma que eu não consegui achar, aí eu fiquei desesperado porque eu não conseguia achar a minha mãe (risos) e quando eu fiquei desesperado, fiquei nervoso e pá, dei uma bicuda no fogão. E ela estava escondida num lugar que eu nunca pensei em procurar, ela apareceu meio que rindo do meu nervoso e falou: “Olha, mas isso você não pode fazer, você não pode quebrar as coisas, eu vou te bater por causa disso”, ela me explicava porque ela ia me bater e rindo (risos). Ela não estava com raiva, mas ela sabia que ela tinha que me punir por causa de uma coisa que eu fiz que era muito errado, que era sair quebrando as coisas porque eu estava nervoso. Então, era isso assim, tipo, ela me batia, mas ela explicava, eu sempre sabia por que eu estava apanhando, eu nunca apanhei sem saber o porquê que eu estava apanhando, só na rua.
P/1 – E aí, ela que cuidava também da comida? Como que era esse cotidiano? Que comida vocês comiam assim? Qual era o seu… você lembra, mais ou menos, na sua infância?
R – Na minha infância, eu lembro que o meu pai… porque lá em Alagoas tem muita lagoa, tem muito rio, praia, então meu pai pescava também. Então ela preparava o básico: arroz, feijão, aí tinha uns dias que o meu pai ia pescar que aí, enfim, a gente tinha um quintalzinho atrás da casa que não era bem nosso, mas estava lá a terra e a gente plantava. Aí ela preparava um feijão tropeiro quando o meu pai…
P/1 – Vocês plantavam o quê?
R – Feijão e milho, principalmente.
P/1 – Quem cuidava dessa plantação?
R – Minha mãe. Era minha mãe, ela cuidava, ela costurava, cuidava da gente, cuidava da plantação, energia que naquela época, eu não sei de onde vinha. Para falar a verdade, se eu fosse calcular agora (risos), não tenho muita noção de onde vinha. Mas uma comida muito especial assim, que ela preparava era esse feijão tropeiro quando o meu pai levava sururu pra casa, que é a lagoa Mundaú, que é a maior lagoa que tem lá em Alagoas e ele voltava assim, a gente ficava com uns baldão assim. Sururu é como se fosse… conhece? Como se fosse marisco. Aí, a gente cozinhava o sururu nessas latas de tinta no quintal de casa, aí ele abria e aí, a gente ia tirando casquinha, tirando o sururu de dentro da casca. Aí, ela preparava… os frutos do mar, quem preparava mais era o meu pai, para falar a verdade, ele fazia, preparava ensopado no coco e a minha mãe preparava o feijão tropeiro. E aí, a gente sentava em torno da minha mãe e ela fazia os bolinhos de feijão tropeiro e aí, a gente pegava uma conchinha com o sururu dentro, aí pegava os bolinhos mergulhava no sururu e ia comendo. E a gente tentava preparar, mas não era a mesma coisa, tinha que ser ela que preparava pra todo mundo, ficavam os três sentados assim, em torno dela e ela preparando um bolinho para cada assim. E de comida especial em Alagoas é o que eu mais me lembro.
P/1 – Mas por exemplo, fome mesmo, com toda essa dificuldade, você não lembra de ter passado?
R – Sim, a gente passou momentos em que não tinha nada de comida em casa.
P/1 – Você lembra assim, qual que era a sensação? Se você entendia o porquê que você estava com fome?
R – Então, nesse primeiro estágio, quando eu morava… porque eu me mudei muito, então esse primeiro estagio lá na Chã da Jaqueira, eu lembro que inclusive foi uma promessa que eu fiz para a minha mãe naquela época, eu falava que quando eu crescesse, eu ia mudar tudo aquilo, que eu ia dar uma casa para ela, eu tinha essa vontade de mudar, eu lembro que eu ficava muito revoltado quando não tinha nada para comer em casa. E ficava revoltado muito com o meu pai, a gente sabia, não, a gente calculava que a responsabilidade de levar coisas para casa era do homem e o meu pai não cumpria essa responsabilidade ou cumpria male e male, sabe, levava de vez em quando e de vez em quando, não tinha nada. E era uma sensação terrível assim, você sair na rua e ver o Alex lá comendo o seu picolé e você olhava assim para a sua barriga e falava: “Porra, nada!”, aí a gente saía, se metia no meio do mato, ia procurar alguma fruta, alguma coisa assim, mas…
P/1 – Isso era algo que você sentia muitas vezes ou…?
R – Não. Não sentia muitas vezes, porque a minha mãe não deixava, a minha mãe sempre foi muito batalhadora. Ela sempre saiu e tipo quando não tinha, ela ia buscar, eram raras as vezes que ela não conseguia dar um jeito, eram esses dias em que a gente se ferrava, todo mundo. A sensação da fome e da impossibilidade de você mudar isso dá uma revolta muito grande, dá uma revolta muito grande. Eu acho que grande parte da minha revolta na infância era isso, a impossibilidade de construir coisas. Tanto que quando a gente mudou da Chã da Jaqueira e aí enfim, teve uma época em que a gente conseguiu vender essa casa e foi morar em outro bairro, que era Morada do Bosque. Ali foi graças a um dinheiro que o pai do meu pai, meu avô arrumou uma parte do dinheiro e a outra parte da venda da casa. A gente conseguiu comprar uma casa maior, a gente tinha dois cômodos (risos), não era um cômodo só, tinham dois cômodos e era um terreno meio ilegal, assim.
P/1 – Era uma ocupação?
R – Era como se fosse uma ocupação, porque era bem assim, na frente, tinha um sítio, atrás tinha um sítio e a gente chamava… não era nem uma favela, era um arruado que a gente chamava e nesse arruado, tinha em torno de umas 14 casas, embaixo da fiação elétrica, por isso que era ilegal, não podia ficar lá por causa da fiação elétrica. Eram todas casas pequenas, tal. Eu lembro que quando a gente mudou para aí, a gente deu uma melhorada de vida, muito por conta da família e uma figura especial, doutor Samuel, que era o dono do sítio da frente. Esse doutor, ele era médico e ele não sei porque ele gostou muito da nossa família, ele ajudava a cuidar desse arruado, ele cedia, ele abria alguns espaços lá para a gente plantar, não só a gente, a galera do arruado. Tinham umas… ele colocava as regras de comportamento para que pudesse entrar no sítio…
P/1 – Tipo qual é uma regra, você lembra?
R – Nunca entrar na piscina (risos), é verdade, porque ele não tinha como garantir que a criançada ia… por mais que a gente nadava pra caralho, eu parecia um peixe, que tipo, essa era uma das regras, para pegar fruta tinha que falar com ele, ele nunca falava não, mas ele gostava de ter esse controle, tal. E nunca mexer nas coisas, óbvio!
P/1 – Dele? Dentro da casa?
R – É, então, na casa. Tinha a casa dele… lá, tinham três casas, tinha uma casa que era a casa do Zé Carlos, que é o filho mais novo dele, que ele criava peixes, que eu fiquei muito próximo desse Zé Carlos, adorava peixe, adorava ajudar o Zé Carlos a cuidar desses peixes ornamentais, de aquário, inclusive até hoje sou fissurado em peixe, quando eu vejo, eu paro. Aí, tinha uma outra casa que era a casa do caseiro que ficava bem de frente assim, para a galera do arruado mesmo, era um cara muito terrível, o próprio caseiro que roubava as frutas do doutor Samuel para vender na feira inclusive ele contratava a gente que… é porque a gente era meio macaquinho, mesmo, tinha uma brincadeira lá que era pega-pega na árvore, assim, era como se fosse pega-pega só que era em cima da árvore. Era lindo e eu era um dos campeões, sempre magro, esticado, então eu ia nos lugares que ninguém ia, eu conseguia passar de uma árvore para outra tranquilamente.
P/1 – E o caseiro pedia para vocês pegarem as frutas?
R – Era eu e o filho dele. E aí, o filho dele, o Pita, que era o apelido do menino e nós que éramos os campeões ali do pega-pega na árvore, ele pegava e chama a gente pra subir no pé de jambo que eram essas árvores um pouco mais altas, para pegar os melhores jambos e ele pegar na mão, para não machucar assim. Então aí, ele conseguia vender mais caro e aí, eu lembro que ele dava uma merreca, um quase nada pra gente, mas para mim que não tinha porra nenhuma, já era uma grande coisa. E eu sempre tive essa coisa assim, a respeito de querer fazer coisas. Então sei lá, tinha oito anos, eu ia na feira vender picolé porque se fosse contar só com o meu pai, não dava. Então, eu pegava fruta… no sítio de trás que eles estavam loteando, eu ia lá no sítio de trás, roubava a jaca, esquartejava a jaca e saía com o carrinho de mão do meu pai vendendo jaca na rua, no arruado, no bairro do lado, Jardim Glória e tinha que ir com cuidado, porque criança é pior que cachorro nessa coisa de gangue (risos), no bairro do lado tinha gangue de lá e tinha gangue dos playboyzinhos da sede e tinha gente do arruado. Então…
P/1 – E vocês brigavam?
R – Muito! Até os meus 12 anos, eu briguei muito, é engraçado. Eu não fazia… eu falava que até os meus 12 anos, eu era Alves, depois dos 12 anos, 13, 14 que eu passei a ser da Paz (risos).
P/1 – Me conta agora da escola. Você entrou na escola com que idade? Você entrou na escola?
R – Eu entrei na escola. Entrei na escola um ano atrasado… eu lembro que a escola, eu tinha um desejo muito grande para a escola porque eu via que as minhas irmãs saíam e iam para a escola e eu ficava em casa sozinho e elas voltavam cheias de histórias para contar e eu tinha muito essa vontade de ir para a escola e minha mãe injetava muito na gente essa vontade de estudar, porque a minha mãe, ela queria ser professora quando ela era pequena. Aí, ela começou a estudar, quando chegou na quarta série, o meu avô tirou ela da escola para que ela não ficasse escrevendo carta para namoradinhos e aí, ela ficou com esse desejo guardado…
P/1 – Ela fez só até a quarta série, então?
R – É, ela ficou com esse desejo guardado assim, ela injetou muito isso na gente: “Vai para a escola, estuda, vai, a escola é legal”, enfim…
P/1 – Seu pai, ele estudou?
R – Meu pai estudou até a terceira. Estudou muito pouco. Estudou até a terceira série, se eu não me engano, isso!
P/1 – Daí, a sua mãe que foi a pessoa que queria que vocês fossem para a escola?
R – É. E aí ela colocou a gente na escola, eu não pude entrar assim, de cara, eu entrei um ano atrasado na escola.
P/1 – Com quantos anos?
R – Eu acho que eu tinha uns sete, foi logo quando a gente mudou para Morada do Bosque, que eu entrei na escola e aí, entrei, se eu não me engano, o nome da escola era Marco Maciel e a minha tia, minha tia madrinha, ela era merendeira da escola, aí como diria o comercial: “Aí, eu se dei bem” (risos), porque enfim, eu tinha todo esse problema de comida em casa e a minha tia sempre preparava a marmitinha… eu e as minhas duas irmãs, no mínimo, a gente tivesse uma marmitinha. Então, quando a gente entrou na escola, eu tinha essa coisa, essa vontade de estudar, era um pouco competitivo na escola, eu queria ser sempre um dos melhores alunos e também era muito brigão. Essa coisa tipo… porque aí eu não tinha uma roupa bonitinha para ir, aí os moleques tiravam sarro e tal e aí, eu não via tamanho, foda-se a série, eu nunca fui muito de levar desaforo para casa, ia em cima deles, então a minha mãe tinha muita reclamação por causa de briga, de eu bater nos moleques na escola.
P/1 – E as suas irmãs faziam alguma coisa? Cuidavam de você, por exemplo?
R – Então, minha irmã mais velha, ela que cuidava mais da gente, a minha irmã do meio, ela sempre foi mais tranquila. Um pouco mais rabugenta, muito mais fechada, bem estudiosa, a Paula, que era a mais velha, ela conseguia juntar essa coisa de estudar bem, se destacar bem nos estudos e ter uma responsabilidade muito grande, ao mesmo tempo que tinha esse ímpeto, essa força da minha mãe também, essa coisa que ela falava e mesmo os moleques respeitavam muito ela. Então, quando eu estava em apuros, aparecia a super Paula pra me salvar (risos) e aí, enfim, minha irmã… eu sempre tive esse relacionamento muito legal com a minha irmã lá no Marco Maciel, que isso aí era coisa de segunda série, segunda, terceira série. Aí depois, enfim, ficou um pouco difícil de ir lá para o Marco Maciel, porque o Marco Maciel ficava lá na Chã da Jaqueira, aí a gente foi estudar no CEPA. O CEPA era um complexo de várias escolas que tinham lá em Alagoas, era Centro de Educação, pá, pá, pá, não lembro o que era. E aí, tinham várias escolas assim, aí eu fui estudar numa que chamava Instituto de Educação e a Paula e a Juliana… isso eu já estava na quarta série, e a Paula e a Juliana, elas estudavam numa chamada Premen. Eu adorava o Premen, eu amava porque a merenda de lá era melhor e eu me dava muito melhor com as pessoas. Eu sempre me dava bem com pessoas mais velhas e sempre tive uma relação conflituosa com pessoas da minha idade, quando eu era pequeno. Eu acho que eu tinha vontade de ser mais velho (risos). Então eu ficava presente, basicamente, no Instituto de Educação quando tinha trabalho e prova. Quando não tinha, eu pulava o muro na hora do intervalo, ia pro Premen, entrava pelo portão da frente, porque até os guardinhas já me conheciam, eu tinha o apelido de Pial, que era nervosinho mesmo, então a minha irmã era muito bonita, os meninos ficavam brincando comigo assim, tipo: “Cunhado, cunhado”, eu ficava muito puto com isso e aí, enfim, mas eu tinha livre acesso no Premen.
P/1 – Mas você ia no Premen assistir aula ou só…
R – Eu assistia, assistia aula. Minha primeira aula de inglês foi no Premen. Eu lembro como se chamava caneta, pen (risos) em inglês no Premen, e tinha uma menina, Vitória que eu era todo encantado por ela, ela era mais baixinha, tal, muito meiga e aí, eu ficava na sala de aula com ela, tinha uma outra também que era a Silvanildes, ela era goleira do time de futebol, bem forte e tal, mas muito animada, muito pra frente. E aí, eu lembro que eu assistia aula, principalmente, com a sétima série na época, que a Paula é três anos mais velha que eu, ela estava na sexta ou na sétima série e aí, eu ficava lá dentro da sala de aula, os professores me conheciam, eu cabulava aula junto com a Silvanildes, ficava lá no muro, a gente ficava vendo o trânsito, conversando. Eu treinava junto com a Paula no handebol que tinha um professor que era muito bom, Lourival. Eu acho que eu nunca vou esquecer o maior exemplo de professor porque eu tive, porque ele conseguia mobilizar o colégio inteiro por conta de uma aula, sabe? Tinha o Cepa lá, o Cepa inteiro conhecia ele, ele que promovia os campeonatos, eu lembro que chegou uma época em que o Premen era o segundo melhor colégio, tipo, medalha de prata do estado de Alagoas de handebol, era um colégio público, isso tudo pelo empenho dele, só perdia para o Anglo, não porque o Anglo tivesse a melhor Educação Física, mas porque ele podia pagar jogadoras, então ele dava bolsa para algumas jogadoras. Eu lembro que nessa época, a minha irmã, a Paula, ela foi destaque, inclusive, eles tentaram corrupiar a minha irmã para o Anglo por causa disso, ela não saiu por causa da amizade que ela tinha lá no Premen. Ela foi a melhor jogadora e ela sempre era baixinha. O apelido dela era formiga, inclusive.
P/1 – E isso tudo em torno do handebol?
R – Isso tudo em torno do handebol.
P/1 – Você jogou handebol?
R – Eu joguei handebol, mas eu era melhor no futebol. Menos no arruado, no arruado, eu era o pior do futebol, porque eu era o menor, no arruado onde eu morava eu era zagueiro, mas eu jogava com os moleques muito maiores do que eu, eu tinha oito, jogava com os moleques de 11, 12 anos. E aí enfim, eu era zagueiro, eu segurava bem ali na zaga, mas lá na escola, eu jogava mais handebol por causa do Lourival, eu nem fazia Educação Física no meu colégio mesmo, fazia proforma.
P/1 – Mas isso você estava com quantos anos, Alisson, nessa época?
R – Eu estava na quarta série nessa época.
P/1 – Uns dez anos, assim?
R – Uns dez, é!
P/1 – E aí, o quê que aconteceu? Você aprendeu a ler, escrever, frequentava a sua aula?
R – Sim, frequentava. Na minha escola eu tenho poucas histórias. Frequentava… eu só ia para fazer prova, eu nunca tive problema com nota, o meu problema maior era a frequência, nunca tive problema com nota. Aí, minha nota baixava porque eu não tinha caderno, porque eu faltava, eu cabulava aula ou enfim, por indisciplina, coisa de briga porque aí eles tiravam ponto. Mas na prova, eu sempre me dava bem porque era isso, eu sempre tive a coisa de estudar sozinho. Eu sempre gostei de aprender sozinho, de ler, minha mãe colocou isso aí na gente, né?
P/1 – E como foi que você aprendeu a ler? Você lembra como foi?
R – Não, esse processo de aprender a ler, não. Esse processo de aprender a ler eu lembro que foi muito essa coisa tipo, eu ia na escola, o bê-á-bá, mas eles davam um livro e eu gostava de chegar em casa, eu gostava de tentar adivinhar o que era aquilo. Eu aprendi o básico: dá para juntar isso com isso e dá isso, comecei a aprender sílabas, eu olhei, falei: “Caramba, se juntar isso com isso, dá isso”, aí eu chegava em casa, eu tentava aprender sozinho, juntar sozinho para quando chegasse na escola, eu surpreendia: ‘então, quando a professora for ensinar, eu já sei’, eu gostava de fazer essa brincadeira, isso para mim era uma diversão. Então, o meu aprender a ler foi muito assim, eu em casa, a Paula era uma pessoa com quem eu conversava bastante, então eu perguntava para as minhas irmãs que já estava uma série… a Juliana estava uma série a frente, a Paula estava três, então, eu perguntava muito pra elas e como eu ia muito no Premen, eu conseguia pegar umas lógicas porque eu via a aula da sétima, sexta série quando eu estava na quarta. Então, eu conseguia pegar umas lógicas assim, que me ajudavam um pouco.
P/1 – O que foi acontecendo depois disso? Você continuou, foi no Premen, como é que você continuou o estudo depois que terminou a quarta série?
R – Então, depois que eu terminei a quarta série, eu acho que eu nem cheguei a terminar a quarta série, estava dez para 11 anos, aí a gente se mudou para São Paulo, foi quando a gente veio para São Paulo.
P/1 – Vocês vieram para cá por quê?
R – Ah, típica história da família retirante, primeiro veio a Juliana. Minha irmã do meio, por ser assim, essa figura mais pacata sempre foi meio que a queridinha dos tios. Aí minha tia pegou e trouxe ela para São Paulo. Aí o meu pai também, viu que a situação estava meio difícil lá em Alagoas, tal, que não estava muito bom para ele, ele veio para São Paulo para descolar um emprego para tentar juntar grana porque a gente… tentar manter a gente lá em Alagoas. Aí não passou muito tempo, minha mãe teoricamente, com saudades da minha irmã, mas eu acho que era muito do meu pai (risos), pegou, juntou todos os cacarecos que a gente tinha, vendeu tudo, menos a casa e trouxe a gente para São Paulo e aí, a gente chegou no bairro do Monte Azul em São Paulo.
P/1 – Como é que foi essa chegada?
P/2 – Só perguntar uma coisa. Queria saber se lá em Alagoas, você teve algum contato com a cultura popular.
R – Então, de cultura popular, lá em Alagoas, a gente tinha muito festa junina e eu cheguei a ter… foi lá que eu tive o meu primeiro contato com a poesia também, mas muito sem querer, muito nessa coisa da leitura, de ler sozinho assim, eu me apaixonei por uma menina, não sei porque cargas d’água na cabeça aqui, se eu desse uma poesia para ela, ela ia querer ficar comigo (risos), não ficou (risos).
P/1 – Mas você fez a poesia para ela?
R – Não, eu não fiz, eu copiei. Eu lembro dessa poesia até hoje, que segundo reza a lenda agora, eu vim descobrir quem é o autor na Cooperifa, que era o… como é que é? Esqueci o nome dele, Alceu não sei das quantas, lá, seu Lourival.
P/2 – Que é da Cooperifa?
R – Que era da Cooperifa, ele faleceu há pouco tempo, agora, mas era um velhinho, seu Lourival e a poesia era bem assim: “Eu queria que chovesse/ Uma chuva bem fininha/ Para molhar a sua cama/ E você dormir na minha.” (risos) Era Poliana, foi a minha primeira paixãozinha e aí, eu fui lá e entreguei para ela, ela tinha me dado um caderninho desses de perguntas e respostas, aí eu coloquei essa poesia lá dentro e na pergunta que fazia para ela: “Você quer namorar comigo?”, ela falou: “Não, porque você está indo para São Paulo”, aí eu pensei duas coisas na vida: uma, ‘puta, me fodi’ (risos); a outra é ‘nunca é tarde muito para fazer a coisa que você quer’, se eu tivesse falado antes, talvez eu tivesse namorado com ela, porque eu gostava dela já há bastante tempo, mas nunca tinha tido a coragem de falar isso para ela, quando eu tive, já era tarde demais.
P/2 – E você teve algum caso de namoro, de ficar com alguma menina lá em Alagoas?
R – Lá em Alagoas, não. Inclusive, é um tabu na minha vida, nunca fiquei com alagoana.
P/1 – Mas também, você saiu de lá, você tinha quanto?
R – Onze anos. Tinha 11 anos.
P/1 – Era pequenininho, né?
R – Era pequenininho. Mas nessa idade, na pré-adolescência que a gente começa a ter esse negócio, primeiro beijo. Meu primeiro beijo foi em São Paulo. Foi uma brincadeira, foi bom, inclusive. A Luciana, o nome da menina, porque quando eu cheguei em São Paulo, teve muito preconceito por causa do meu sotaque, mas só que aí eram moleques todos do meu tamanho, aí lá em Alagoas, era meio que saco de pancada no arruado, porque eu era o menor de todos, então não adiantava ir para cima dos moleques. Eu ia pra cima porque eu sempre fui muito de não levar desaforo para casa, mas apanhava, apanhava muito e aqui, quando cheguei em São Paulo, eu lembro da primeira situação em que eu comecei a me impor, foi nessa coisa de brincadeira, jogando futebol. Cheguei, estava na frente da casa da minha tia, os moleques estavam jogando futebol e eu olhando com aquela cara de cachorro pidão, tipo, quero jogar também e um dos moleques perguntou: “Você quer jogar também?”, eu falei: “Quero”, e aí os moleques: “É muito perna de pau”, e aí tinha só um moleque que jogava mais ou menos assim, que estava no outro time, então ele estava arrebentando. Aí, eu entrei, óbvio, sempre gostei dessa coisa do desafio, fiquei nesse time mais fraco que foi o do moleque que me chamou para jogar. Foi um moleque que inclusive, eu passei a proteger ele depois. E aí, entrei no time dele e aí, quando entrei no time dele, outro moleque tentava e quando eu era pequeno, eu marcava moleques maiores que eu, marcar um moleque da minha idade era a coisa mais fácil do mundo, a não ser que ele fosse muito habilidoso mesmo, o que não era o caso e aí, eu marcava ele e eu sempre fui muito veloz assim, então marcava ele, quando eu tomava a bola, o time dele estava todo aqui, eu jogava a bola na frente, quando ele foi ver, eu já estava na cara do gol. Aí fiz um, dois, três, aí o moleque começou a entrar duro em mim. Eu pegava a bola, ele vinha e canelava, eu pegava a bola, ele vinha e canelava. Aí meu, na quarta vez que ele veio assim, que ele canelou, eu falei: “Tá bom”, esperei, quando ele veio, eu tomei a bola dele, aí puxei a bola assim para trás, só rolei a bola assim para frente, quando ele veio pegar a bola, eu plac, aí ele: “Não sei que lá”, aí eu lembro que na época, eu cheio de sotaque, eu nem lembro o que eu falei na época, eu só falei: “mano, se você for entrar assim em mim eu vou entrar assim em você, você está achando que você é quem? Eu estou jogando e você em vez de ir na bola, você vem na minha canela”, aí a gente meio que teve um atrito, mas a gente não brigou, consegui me impor. Aí eu gostei muito disso daí, falei: “Não, aqui são pessoas da minha idade, então tem como eu me impor”. Aí tinha essa coisa do futebol também, porque aí comecei a fazer gol e todos os moleques queriam que eu jogasse no time, aí me chamavam para jogar videogame na casa deles, que era uma coisa, putz, lá em Alagoas, onde eu morava, videogame, a gente tinha que pagar 50 centavos pra jogar uma hora no Super Nintendo, e 50 centavos era dinheiro pra mim (risos), era bem foda, a gente ia vender picolé na feira, voltava, aí eu dava uma parte para a minha mãe e a outra parte, basicamente, eu jogava videogame, sempre quis ter um videogame, e aí a minha mãe não podia dar, todo Natal era um chororô: “Cadê o videogame?”, minha mãe chorando porque não podia me dar, eu chorando porque não tinha o videogame e aí, quando eu cheguei aqui em São Paulo, mudou com esse negócio de eu conseguir me impor junto aos moleques, eu era um dos melhores jogadores de futebol da rua, se não era o melhor. E aí, os moleques me chamavam para jogar videogame, as meninas gostavam de mim…
P/1 – Nossa, sua vida melhorou muito?
R – Melhorou pra caralho! E aí, tipo, foi numa dessas de jogar videogame na casa de uns amigos lá que eu acabei dando o meu primeiro beijo. A gente estava jogando lá, eu lembro que era um Atari, tal, jogando lá, aí no videogame eu era péssimo, gente, óbvio, né? Aí, a menina estava lá, tal e rolou da gente… cada um meio casalzinho, sabe? A gente se beijou. Foi um beijo bem gostoso, lembrando hoje, ela beijava bem e aí, enfim, depois disso, nossa, uma cena! Eu estava lá, bateram lá na casa da minha tia, desço lá, era uma mulher assim: “Você que é o Alisson?”, falei: “Sim” “Você que é o namorado da minha filha?”, aí eu olhei assim para o lado, vi que era a mãe da Luciana (risos), gente, eu fiquei pálido, que eu não consegui nem falar sim, e nem não, nem talvez, nem porra nenhuma, eu só olhei assim, ela começando a bater na menina na minha frente, gente, o que é isso, a menina tinha 11 anos, a gente só deu um beijo (risos). E aí, a mãe dela batendo assim, fiquei com medo da porra daquela situação, aí depois disso, até a Luciana ficou meio com vergonha de sair na rua durante um tempo, aí enfim, foi mais ou menos isso. Na escola, aqui em São Paulo, foi uma coisa muito fácil, para falar a verdade, nessa coisa, porque aí, eu terminei a quarta série aqui, eu sai na metade do ano, aí foi mais um ano que eu perdi, inclusive. Perdi o ano porque entrei atrasado, perdi essa quarta série aí que a gente saiu na metade do ano, antes do ano acabar e a educação em Alagoas, eu acredito que era muito mais puxada que aqui em São Paulo, porque quando cheguei aqui em São Paulo, só tirava A e B assim, eu lembro disso, a minha mãe tinha o maior orgulho de mostrar o meu boletim, era só A e B, não tinha um C. Eu adorava esse negócio de A e B (risos), tirar A de Alisson (risos).
P/1 – E tinha alguma coisa que te interessava especialmente?
R – A escola aqui em São Paulo? Não. Não tinha. A Educação Física era péssima, então tipo, a estrutura também não era legal, tinha os amigos, né?
P/1 – Você tinha bons amigos?
R – Sim, aí diferente do arruado, não comecei a brigar com ninguém. Quando eu fui crescendo, eu acho que eu fui acalmando e aí fiz bastante amizade. Aí, tinham as coisas dos trabalhos que eu sempre gostava de fazer bons trabalhos, eu tinha essa coisa, eu gostava de conseguir me destacar nessas coisas. Era meio que uma brincadeira minha comigo mesmo, não falava para ninguém que eu queria fazer, mas na hora de entregar um trabalho, eu gostava de fazer um trabalho bom, um trabalho que a professora olhava e dava um A de Alisson (risos), era meio como a marca do Zorro, sabe? Eu gostava de fazer isso. Aí eu percebi que isso meio que incomodava as pessoas, depois de um tempo, eu percebi que as pessoas gostavam de competir comigo nessa coisa do trabalho. Eu lembro que uma vez, eu fui apresentar um trabalho que a gente tinha que fazer uma coisa de propaganda, mas aí já foi um pouco mais acima da quarta série. E aí, a gente tinha que fazer a propaganda de uma cebola e aí, a gente foi lá, a gente preparou… era eu e umas três meninas, a gente formava o quarteto, cada uma tinha o conhecimento meio que especifico, eu sempre fui da improvisação, da criação, a coisa da palavra, eu sempre gostei, o meu hobby, e eu também era muito bom em Física e Matemática. Aí tinha uma que entendia mais de Química e outra que era especialista em Inglês e Inglês eu sempre fui péssimo. E aí (risos), a gente juntava ali os quatro, uma menina que escrevia muito bem, e a gente montou lá um negócio, preparou uma dança, preparou um jargão, fez como se fosse uma peça de teatro o nosso trabalho. A gente fez um trabalho escrito e montou uma peça para apresentar o trabalho. E aí, eu lembro que tipo, antes da gente apresentar o nosso trabalho foi uma menina, apresentou um trabalho lá, né, um outro grupo e a menina olhou assim para mim e falou: “Quero ver você fazer melhor”, e ela falou para mim (risos). Eu olhei assim, eu pensei só comigo: “Acho que ela falou para a pessoa errada, porque a gente preparou algo melhor”, eu não estava nem pensando em competir com ela, o meu negócio era tirar o A de Alisson, era meu hobby. E aí, a gente foi lá e apresentou e a sala aplaudiu, porque era uma coisa meio teatral, mesmo e aí, eu cheguei na menina assim e falei: “Da próxima vez, fique no meu grupo” (risos), é verdade: “Se você tem vontade de fazer um bom trabalho, na próxima vez, fica no meu grupo”, e aí foi legal porque aí, eu comecei a criar meio que essa coisa na escola, conhecer bastante gente, meio com essa imagem. Aí eu lembro que uma vez, eu fui até convidado para participar do grêmio, concorrer no grêmio da escola, mas aí eu não quis, eu não concordava muito, para falar a verdade, com aquele grupinho.
P/1 – Por quê?
R – Então, primeiro, quando você é pequeno, adolescente, tem muito essa coisa da empatia, antipatia, então não tinha muita empatia pelo grupo. Segundo, eu achava que aquelas pessoas, o que eles propunham e tal, queria puxar para uma coisa mais artística, tal e eles eram muito da discussão com professores, e matéria e tal, não: “Vamos abrir um espaço aqui pra gente fazer um teatro”, pensavam umas coisas mais ou menos assim, mas isso quando eu já estava com uns 14 anos que enfim, grande parte da minha educação, ela se deu mesmo depois dos 14 anos, que foi quando eu conheci a Trópis.
P/1 – O que foi isso?
R – A Trópis? Associação Trópis que se chama. A gente, nessa época, estudava no Zulmira aqui em São Paulo, aí a minha irmã Paula, a Paula nasceu com vários talentos, ela era talentosa para jogar, ela era cheia de talentos e um dos talentos é cantar. Isso aí a gente fala que ela puxou do nosso pai, porque o meu pai também, ele parecia um passarinho, ele começava a assobiar, você já sabia a música. E aí, ela puxou esse talento do meu pai e aí uma vez, ela estava cantarolando assim na escola, aí o Guna ouviu ela cantando e ele estava montando uma banda. Aí chamou ela para cantar nessa banda. E essa banda, eles ensaiavam na Trópis, a Trópis é uma associação que um educador chamado Ralf Rickli estava montando assim junto com o Gil, Gil Marçal, Anabela, assim, uma galera e aí a Paula começou a frequentar, eles montaram um grupo de teatro, além dessa banda que era uma banda chamada Provisório Permanente, eles montaram um grupo de teatro que era o Grupo Submundo de Teatro. Aí eles apresentaram uma peça chamada… duas, uma chamada “Triangulo” e outra chamada “Esquina Brasil”, depois dessa peça “Esquina Brasil”, eles resolveram montar um segundo núcleo de teatro, aí a Paula me chamou para participar desse grupo. E a Trópis, ela era uma associação diferente, o Ralf tinha uma pedagogia que ele estava desenvolvendo, hoje ele já tem formulário, essa pedagogia, tal, chamava Pedagogia do Convívio, então ele tinha uma biblioteca, um espaço que ele dava várias atividades, e abria para que os adolescentes desenvolvessem as próprias atividades, então ele era tipo como se fosse um consultor, tinha a OCA, que era Oficina de Conhecimentos e Artes, que ele dava sobre conhecimentos gerais, falava desde a ordem dos templários até física quântica. Ele dava aula sobre tudo, o Ralf. O Ralf posso considerar como o meu grande mentor, para essa coisa do social, da poesia, da arte em geral.
P/1 – Foi lá que você encontrou a arte assim?
R – Foi lá que eu encontrei a minha paz, digamos assim. Depois que eu entrei na Trópis que eu parei de brigar, nunca mais entrei na porrada com ninguém, que eu fiquei tranquilo. Enfim, depois que eu entrei na Trópis eu meio que encontrei essa coisa de… que eu me achei, para falar a verdade, vou falar bem isso, porque eu me sentia meio deslocado nesses grupos, porque eu queria fazer coisas, eu não sabia muito bem o que eu queria fazer, mas tudo o que me convidavam, não era bem o que eu queria fazer, mesmo futebol que era algo que eu adorava, quando eu sai lá de Alagoas, era para eu jogar em três times, fui convidado para jogar em três times do campeonato alagoano, da minha idade, no caso, né? Mas mesmo ali, tipo, não era onde eu me encontrava, não era onde eu me sentia mais feliz. Cheguei aqui em São Paulo, tinham esses grupos, entrei no CJ, aí foi aí que eu comecei a conhecer um pouco, a me envolver com a arte, entrei num grupo de dança, fiz ballet, fiz street dance, fiz escultura, mas a forma de educação era uma coisa que… eu gostava de fazer a arte, sempre tive essa coisa de gostar de mexer com arte, mas eu não gostava da forma que eles ensinavam, quando eu cheguei na Trópis, para mim, tinha essa coisa completa. Essa coisa que eu conseguia conversar com as pessoas, as pessoas tinham uma amorosidade, até os 15, eu fiquei passando assim, muito tempo na Trópis assim, a gente…
P/1 – Você entrou na Trópis com quantos anos?
R – Com 14, de 13 para 14.
P/1 – E ficou lá até?
R – Ixi, fiquei lá até os meus 25, porque depois eu passei a morar na Trópis, literalmente, com os 14, eu descobri o grupo, a gente montou uma peça que era o “Quarenta e cinco minutos de amor”, aí a gente montou um grupo de quadrinho, os quadrinhos japoneses, estilo japonês, que a gente montou uma história com personagens, tal, tinham as aulas do Ralf. Aí, com 15 anos, teve uma história meio trágica na minha família que fez com que a minha família meio que se separasse.
P/1 – O que aconteceu?
R – Meu pai trabalhava num bar e aí, mataram o meu primo na frente desse bar. Meu primo era meio brigão, mas não era tipo… aí, ele descolou um briga com um pé de pato e aí, enfim, o pé de pato matou ele. Esse primo era como se fosse um filho para o meu pai, era o companheirão dele, sabe? Porque ele era mais velho, próximo da idade do meu pai, inclusive, os dois tinham o mesmo nome, os dois eram Paulo e aí, meu pai era muito apegado a esse negócio, mataram o meu primo no bar onde o meu pai trabalhava, era sócio do cara lá. E enfim, o cara que matou sabia que o meu pai sabia que ele tinha matado o meu primo e na época do pé de pato tinha muito essa coisa do revide, você fez aqui, você toma ali, meio “Abril Despedaçado”, e aí enfim, só que o meu pai nunca foi violento, mas o cara ficou com medo que o meu pai fosse reagir e antes que o meu pai fosse reagir, ele pensou: “Vou matar o Paulo” e aí, eu lembro dessa cena assim, a gente estava em casa e chegaram dois ou três caras no portão da nossa casa, era se eu não me engano, a quarta casa que a gente estava morando já em São Paulo, de aluguel, e o cara chegou: “Paulo está aí?”, e visivelmente com o volume da arma aqui assim, sabe? Aí minha mãe olhou assim, minha mãe sempre foi muito respeitada, ela sempre teve essa coisa de se impor muito diante das situações adversas. Ela olhou e falou: “Você acha que ele é besta? Você acha que ele ia ficar aqui esperando vocês virem atrás dele? É óbvio que não” “Então a gente vai entrar aí para ver”, minha mãe falou: “Não, você não vai entrar na casa, você não vai entrar na minha casa. Eu estou aqui com os meus três filhos, você vai entrar armado na minha casa? Pra quê? O Paulo não é besta, o Paulo não ia ficar aqui esperando vocês”, e o meu pai estava escondido embaixo da cama. E a minha mãe falou um monte para os caras e não deixou os caras entrarem em casa, os caras foram embora, no meio da madrugada, meu pai foi para Barueri, para a casa do irmão dele e aí, a gente mudou de casa de novo, ficou morando uns meses lá, meu pai em Barueri e aí a minha mãe ficou meio sentindo a sensação da hostilidade das coisas, porque direto, os caras passavam lá, assim, e aí ela falou: “Vou voltar para Alagoas”, porque a Paula tinha engravidado, eu estava com 15 anos, a Paula estava com 18, ela engravidou do Gunnar, filho do Ralf (risos) e aí, a Paula decidiu ter o filho lá em Alagoas, na casa que a minha mãe ainda não tinha vendido a casa da nossa infância lá, estava meio que alugada para o primo dela. Aí, eles decidiram voltar. Aí o meu pai ficou morando lá em Barueri pra meio que ter uma grana para mandar para eles, minha família, minha mãe, minhas duas irmãs e o Gunnar foram lá para Alagoas e eu não me identificava lá com Alagoas mais, eu já achava que aquilo não era pra mim, já tinha me descoberto ali na Trópis, queria ficar na Trópis, a Trópis era tudo pra mim na época e aí, eu bati o pé, descolei um trampo com 15 anos, o primeiro trampo registrado, falei: “Não, eu descolei o trampo, vou ficar aqui”.
P/1 – O que você foi fazer?
R – Eu fui ser auxiliar de um artista plástico, o cara produzia esses quadros em alto relevo, Mário Lopomo, o nome dele (risos), com um artista plástico capitalista, a gente discutia muito, porque eu já tinha entrado na Trópis com essas ideias socialistas, comunidades, pá, pá, pá, e ele falava: “Sou capitalista, sou capitalista”, falava palavrão pra caralho e a gente discutia, a gente ia trabalhando e discutindo assim. Era muito legal.
P/1 – Você fazia o quê?
R – Ele montava as telas em alto relevo, então era uma técnica, então ele montava, inventava as telas assim, e aí, a gente reproduzia as telas para ele, ensinava a gente a fazer e a gente ia reproduzindo, então uma empresa X pedia: “Eu quero 30 quadros desse”…
P/1 – Ele vendia pra empresas?
R – Para empresas, lojas de decoração, encomendas, a gente também fazia relevo em paredes, fachadas de lojas, essas coisas. Trabalhei com ele três meses, se eu não me engano, porque eu não consegui mais (risos), depois de uma cena, porque a gente aprendeu, no primeiro mês, a gente aprendeu a fazer, foi trabalhar eu e um amigo meu também da Trópis, o Tiago e aí enfim, quando a gente estava lá, teve uma época que ele pegou e deu umas telas assim: “Faz aí”, para a gente fazer livremente, a gente fez, montou uma tela, criou baseado no que a gente tinha aprendido com ele, óbvio, mas era uma tela que a gente tinha criado, e aí, meu, uma tela grandona, o cara pegou e vendeu aquilo ali. Na época, o salario mínimo era 180 reais, era o que a gente ganhava, 180 reais. O cara vendeu aquilo ali quase que era três vezes o meu salário e não deu um puto pra gente.
P/2 – Capitalista mesmo.
R – Capitalista, filho da puta! Eu falava pra ele: “Capitalista filho da puta”, aí como trabalhava eu, o Tiago e um outro cara lá só auxiliando ele, a gente começou a falar: “Vamos sacanear”, né, vamos falar que ele está louco. Então, ele chegava, ele dava… ele não anotava, a ordem era só verbal, então, ele falava: “Prepara 30 telas dessa e monta mais não sei quantas telas”, a gente invertia os números, aí quando ele chegava: “Eu falei para você fazer 30 telas dessa”, a gente: “Não, Mário, você falou pra gente fazer 30 dessa, não é não, Tiago?” “É”, eu e o Tiago, a gente tinha muita coisa do teatro, porque a gente ainda estava fazendo teatro, então a gente… a vida para a gente era o teatro, tudo, a gente fazia com o teatro assim, então: “Não é Tiago?” “É, você falou para fazer tanto", não é fulano?” “É”, eu nem lembro o nome do outro fulano, aí: “Tá bom, então”, tipo, a gente convencia ele que ele tinha dado a ordem errada, até que chegou uma época que ele falou bem assim: “Preciso tirar uma folga”, aí pegou e deixou tudo anotado lá o que a gente tinha que fazer e foi passar cinco dias no Rio Grande do Sul e aí, a gente começou: “O cara está ficando louco, literalmente”, a gente foi invertendo tudo assim, tudo que ele falava, a gente mudava e os três concordavam e era três contra um, o cara começou a avaliar assim, meio mal. A gente ficou muito puto com aquela situação dele ter vendido a tela e não ter dado nada.
P/1 – E aí, você acabou indo embora?
R – Aí, acabou que a gente saiu, né? Sai de lá e aí, a gente ficou trabalhando só na Trópis.
P/1 – E aí, você mudou para a Trópis?
R – Mudei para Trópis. Já tinha mudado para Trópis quando eu morava lá, eu fui morar na Trópis, pedi para o Ralf e para o Gil, na época, que cuidava da Trópis e aí, eu fui morar lá na Trópis e aí, era legal, porque a gente tinha a biblioteca lá, a gente dava festas também, então uma coisa que…
P/1 – Tinham outras pessoas que moravam lá?
R – Tinham, tinham os adolescentes também que moravam… jovens e adolescentes, principalmente, que moravam lá. E o próprio Ralf também…
P/1 – Mas aí, vocês iam para a escola também?
R – Sim. A gente ia para a escola, a gente não parou os estudos, nunca… para falar a verdade, eu só parei os estudos nessa época de transição mesmo, de Alagoas para cá, no mais foi sempre estudando e sempre com o mesmo problema, frequência. Eu ia para a escola, mas em dias pontuais, então já até tinha um cálculo na quantidade de aulas que eu podia faltar, então eu ia faltar o máximo possível, até que chegou uma época, mais no segundo ano que aí, para mim era mais interessante ir para a escola que a gente estava montando um grupo lá na escola para estudos e tudo mais, e foi nessa época do grêmio, que eu quase… falei bem assim: “Vou montar a minha chapa e vou concorrer eu mesmo aqui”, meio que a gente estava se preparando para isso, para montar um chapa mais da ala artística do colégio, que aí eu ia com mais frequência.
P/2 – Foi com 15 anos também, que você se tornou poeta, né?
R – Então, essa coisa de escrever mesmo poesia, de eu escrever poesia veio muito da saudade da minha mãe, porque eu lembro que eu tinha descolado um trampo, tal, fui morar sozinho, mas quer queira, quer não, era um adolescente, era o filho mais… o único homem e o caçula de casa, então era muito mimado numa casa de quatro cancerianos, essa coisa do signo, minha mãe, minhas duas irmãs e eu somos cancerianos, então a gente parecia um ninho de gato de tanto afeto, sabe, a gente era muito carinhoso, essa coisa do toque, do beijo, tanto que eu comprimento minha mãe até hoje com selinho, várias namoradas já tiveram ciúmes disso daí, da mãe (risos). E aí, quando minha mãe se mudou foi um choque muito grande, foi um choque para ela eu falar que queria ficar em São Paulo e um choque pra mim também, viver distante da minha mãe. Aí eu lembro que o primeiro salário que eu recebi lá do Mário, eu comprei um caderninho vermelho e eu estava preparando carta para mandar para a minha mãe, mas só que eu não queria… ela era a minha mãe, não queria mandar qualquer carta, queria mandar uma carta bonita e eu fui meio que me inspirando em textos de teatro, aí enfim, conheci Vinicius de Moraes, eu tinha roubado um livro que a minha irmã tinha roubado da biblioteca da escola que era do Mário Quintana, então tipo, Mário Quintana foi o primeiro grande poeta, assim, que “Aaaah”, do caralho assim, ele era de uma simplicidade e precisão que eu não via nos outros, os outros pareciam um pouco dispersos ainda, o próprio Vinícius para mim era um pouco disperso, ainda, mas o Mário Quintana, não, ele tinha uma comunicação, ele tinha uma coisa, sei lá, o que ele falava, eu entendia, até coisas que assim… aí, Chico Buarque também, Chico Buarque, eu falo que se eu não fosse eu, eu queria ser Chico, queria mesmo (risos), eu me inspirava muito nesses dois, principalmente, para tentar mandar cartas para a minha mãe e aí eu escrevia a carta, aí eu ia mostrar para o Gil que era um grande amigo meu na época, na época não, até hoje, ia mostrar pro Gil e o Gil falava: “Mas isso é poema”, aí até que na Trópis a gente começou… eu acho que era 2001, em 2000, a gente conheceu o Caviar, que estava rolando sarau lá no Caviar em 2001, a gente resolveu montar o sarau da Trópis e aí, eu comecei a apresentar meus textos, essas quase cartas que eu tentava escrever para a minha mãe.
P/1 – Você se lembra de algum, primeiro, marcante, assim?
R – Não, as cartas da minha mãe eu não lembro, porque eu nunca mandei.
P/1 – Você nunca mandou?
R – Eu nunca mandei (risos), eu nunca conseguia concluir a carta para ela, sempre ia contando, aí nunca consegui mandar para ela, até que um dia, eu perdi o caderno quando eu estava voltando do trabalho, eu perdi o caderno. Aí, tinham umas cartas que aí, a gente montou de casa, na Trópis, a gente montou um cyber café, a gente montou não, né, tinha um patrocínio lá da… a mulher do FHC tinha um projeto social, “Redes…”, não sei o que lá…
P/1 – Lembra o nome do projeto?
R – Não, era não sei o que lá de redes, assim…
P/1 – Comunidade Solidária?
R – Não, tinha a Comunidade Solidária também, mas era um mais voltado para essa coisa de formação de espaços de internet mesmo, assim. Por isso que tinha alguma coisa a ver com redes. Foi quando começou essa ideia do protagonismo juvenil, das redes, de formar redes de protagonistas juvenis, tal, até participei de alguns encontros, UEMA, Faxinal do Céu, essas coisas assim. E aí, a gente montou, era Trance essa rede… não, Trance essa Rede era um outro, da Marta, aqui em São Paulo, e aí, a gente montou esse cyber café, nesse cyber café foi quando começou a aparecer as salas de bate-papo, e aí enfim, eu lembro que nessa época, digitando, porque eu sempre fui muito preguiçoso para escrever mesmo, não preguiçoso, minha caligrafia era muito feia, eu não conseguia fazer uma caligrafia bonita, por mais que eu escrevesse devagar, eu não conseguia. E aí, quando chegou o computador que eu podia escolher a caligrafia que eu quisesse, tinham várias fontes, aí eu comecei a escrever, aí eu comecei a me comunicar mais com a Juliana, que é a minha irmã do meio, aí eu mandava poemas para ela, ela mandava para mim, mas os poemas da minha mãe, mesmo, que eu fiz para a minha mãe, eu perdi todos. Mas aí, eu fazia poemas mais geral, mesmo, tinha essa coisa de adolescente de querer falar de amor, principalmente. Teve um que eu escrevi para Juliana, só que esse eu não tenho de cor, que era bem como eu me sentia nessa situação, mesmo de estar sozinho em São Paulo e eles lá em Alagoas, essa coisa, meu pai distante, lá em Barueri, que para ir eu ficava meio que olhando assim para o lado, cruzava favela, tal. A minha mãe que eu não via há muito tempo, que era um elo muito forte entre nós dois, e a Juliana, que na época, na minha pré-adolescência, que a Paula já era muito mais velha, então ela ficava com um grupo mais velho mesmo, e eu e a Juliana, a gente trocava muita ideia, que a Juliana é só um ano mais velha que eu e a gente… enfim, a saudade que eu tinha dela e das nossas conversas.
P/1 – E daí que começou a nascer as suas poesias, então?
R – E daí que… é…
P/1 – Dessa falta?
R – Dessa saudade da minha família que estava lá em Alagoas.
P/1 – Você lembra de alguma que foi marcante para você, que você ficou impactado: “Puxa, uma poesia que diz o que eu estou sentindo”, alguma foi marcante para você nesse período?
R – Então, foi, mas que eu lembre assim para recitar… que eu consigo recitar, nenhuma. Essa da Juliana, essa que eu mandei para a Juliana foi uma. Eu lembro de uma que eu fiz que era sobre a paixão, que aí eu também mandei para ela, porque eu fazia isso, eu pegava, montava as poesias, tinha uma parte meio escrita, que aí eu me baseava muito nas crônicas do Vinícius, tal, essa coisa de escrever, falar do tempo, do sentimento, falar sei lá, até da unha quando encravava, dos objetivos que eu tinha, os que tinham dado certo, porque tinha dado certo, o que tinha dado errado. A impressão que eu tinha dos outros, a descrição das coisas, assim, sabe? Era uma coisa que eu gostava muito. Agora, no sarau eu lembro um dessa época que foi o que pegou muito no sarau.
P/1 – Qual foi?
R – Que chamava: “O que fazer quando a paixão acaba”, foi depois da minha primeira paixão, eu tinha 16 anos, aí namorava com uma menina de 22 (risos), nessa época, conseguir namorar com uma menina mais velha e ter relação sexual é uma coisa maravilhosa! E aí, tipo, ela terminou comigo do nada e eu fiquei meio com essa coisa de o que fazer quando a paixão acaba? E aí? O que fazer? É assim:
“O que fazer quando a paixão acaba?
Vai se esvaindo gota a gota
Como se houvesse um vazamento
Como se algo perfurasse veia a dentro
E o coração, aos poucos, retarda.
O que fazer com tanto sentimento?
Depois de ter chorado tantos ais
Depois de encerrado o último ato
Depois de se ter comido, cuspido
E lavado o prato?
O que fazer quando a paixão se vai
Quando na boca arde um gosto
Se não quero mais
E o tempo de outrora
Não mais maltrata
O que era luminoso, hoje é sucata
Onde só a ferrugem vem brincar”
Mais ou menos assim. E aí, eu comecei a escrever essas poesias, as poesias de saudades…
P/1 – E aí, você foi fazer um sarau, como é que foi ampliando a sua vida na poesia, o que você foi fazendo a partir daí?
R – Então, depois desse sarau que a gente montou na Trópis, aí eu fui mais conhecido como poeta, a gente… meio que desisti dessa coisa de ser ator, até porque eu não queria muito ser ator, eu gostava de fazer teatro, só isso! E a poesia, não, eu queria fazer poesia, mesmo. E aí, eu comecei a estudar poesia, foi uma coisa que me veio muito como estudo, que eu gostava de estudar, que eu pesquisava, com 17 anos, eu estudava soneto, métrica, rima, movimentos literários desde o quinhentismo com a carta de Pero Vaz Caminha…
P/1 – Você estudava sozinho ou você tinha um grupo?
R – Eu estudava sozinho, eu estudava na Trópis. Tinha essa coisa do Ralf, que o Ralf trazia muito isso essa coisa do convivialismo, da educação convivial, era muito de você aprender e eu ia muito tirar dúvidas com ele. Aí eu lembro que o Ralf… porque o Ralf também morava na Trópis, a Trópis era a casa do Ralf, ele abriu a casa dele para que outras pessoas pudessem morar também, mas principalmente, para que jovens pudessem desenvolver atividades e ele era meio que esse orientador. E aí, aconteceu que em 2002, 2003, a gente conseguiu um espaço lá em Praia Grande, um terreno, aí a gente se mudou lá para o litoral…
P/1 – Todo mundo? Inclusive o Ralf?
R – Principalmente o Ralf. A Trópis era o Ralf, sem o Ralf, não era a Trópis, basicamente. Quer dizer, antes disso, em 2002, uma parte tinha isso lá… porque ele estava meio de saco cheio de São Paulo, uma parte foi lá para Peruíbe, outra parte ficou em São Paulo, que foi onde a gente tinha o cyber café, aí a gente tinha um programa da LÁ – Liberdade Assistida em parceria com a Associação Comunitária Monte Azul, que a gente realizava as atividades…
P/1 – Essa casa ficava ali na…
R – No Monte Azul.
P/1 – No Monte Azul.
R – Ficava bem próximo do Centro Cultural. E aí enfim, a gente tinha uma biblioteca com cinco mil livros, a gente tinha uma viniloteca com mil vinis, a gente tinha um espaço em cima onde acontecia, a gente ensaiava teatro, onde acontecia o sarau e além disso, embaixo, tinha o cyber café com sete computadores, o Gunnar dava aula de violão, tinha atividades do LA, a gente fazia atividades esportivas, também, mas muito mais proposta do que qualquer outra coisa, a gente que propunha fazer os adolescentes… então, era uma coisa que a gente… o Ralf pegava bem essa coisa do protagonismo juvenil, ele incentivava, ele sabia trabalhar muito bem isso daí, tanto que as pessoas são como se fosse uma família até hoje e todas elas desenvolvem algum papel, muito importante nos grupos que atuam, as primeiras pessoas que começaram a trabalhar com audiovisual na periferia de São Paulo foi o Pê e o Davi, que montaram o filme Panorama, Arte na Periferia, o Gil que trabalha na Secretaria de Cultura, a gente Correspondência Poética, então a gente sempre meio que se destacava mesmo, por conta dessa pedagogia do Ralf. O Ralf tinha muito isso, porque ele acreditava mesmo na gente, ele dava esse espaço para que a gente até errasse, errava mesmo, adolescente erra, e se a gente não se possibilita o erro, o quê que a gente vai fazer? E aí, enfim, mas voltando a história lá, em 2002, a gente se mudou, juntou de novo, né, estava um grupo em Barueri, outro lá no Monte Azul, a gente ganhou esse terreno lá em Praia Grande, só que era um terreno ainda que precisava trabalhar muito e aí, a gente montou uma casa de cultura lá em São Vicente, bairro Beira Mar que ficava bem na rodovia, a gente resolveu mudar também, porque tinham assaltado o cyber café, tinham roubado os computadores, tal, foi uma coisa muito triste para a gente, que a casa ficava sozinha, quando a gente voltou, estava aberta lá, aquele negócio, né, porta aberta, arrombada…
P/1 – Vocês sabiam quem foi?
R – A gente desconfiou que era um dos moleques do grupo, que participava do LA – Liberdade Assistida, tinha um moleque lá, que inclusive, nunca mais voltou para a Liberdade Assistida e a gente meio que desconfiou que foi ele que deu a fita, não ele sozinho, mas pela descrição, porque a gente saiu perguntando se alguém viu, tal: “Até vi, mas pensei que era de vocês, porque sempre tem adolescente ai”, aí deu a descrição e aí… Marcelo, o nome do menino. A gente meio que desconfiou que era ele. E foi triste pra gente, porque a gente acreditava muito no… tipo, todos os outros moleques estavam muito entrando ali dentro, sabe? Brincando, participando. Esse moleque, inclusive, construí uma relação muito especial com ele, porque ele era da minha idade e eu ensinei ele a jogar xadrez, o moleque era muito estratégico, o filho da puta. Ele levou o xadrez que a gente tinha ganho um xadrez maravilhoso que eu adorava, sempre adorei xadrez, era um xadrez chinês que as peças eram todas elas esculpidas com figuras chinesas, desde os peões até hibisco, torre, era um xadrez lindo e o tabuleiro, ele tinha as peças pretas e um desenho do lado, assim, tinha as gavetinhas com um acolchoado para você guardar as peças. Os computadores, eu não senti tanta falta, mas aquele xadrez, eu lembro como se fosse…
P/1 – E por causa disso, vocês decidiram se mudar?
R – É, por causa disso e por causa da novidade, esse negócio, a gente perdeu isso, mas também ganhou um terreno lá embaixo, a gente falou: “Pô, vamos tentar uma vida nova” e aí, a gente montou essa casa de cultura, assim, aí foi também quando eu comecei a ter um pouco mais de responsabilidade na Associação, que até então, eu conduzia algumas atividades, mas eu era um adolescente lá, não cuidava da contabilidade, não cuidava dos projetos, não escrevia projetos e aí, quando a gente mudou lá para São Vicente, até por conta… o Gil já estava trabalhando na secretaria, então ele não pode descer, que o Gil era uma das lideranças lá, e foi logo na época em que se estavam montando os CEUs aqui em São Paulo, e aí o Gil foi um dos responsáveis por organizar esses CEUs, gerir esses CEUs, o Gunnar também que era o filho do Ralf, ele acabou trabalhando em um desses CEUs, acho que o CEU Butantã e aí, essas duas figuras que eram figuras referências lá para a gente não puderam descer e aí, ficou um grupo lá e aí, precisou-se criar outras referências e outras pessoas assumirem a responsabilidade que era deles, e eu fui uma dessas pessoas. E aí, a gente conseguiu recuperar os computadores, o Sírio Libanês doou os computadores para a gente, a gente remontou o cyber café, a gente montou a biblioteca lá embaixo, mudou com tudo, piano, tinha um piano, o Ralf tocava piano, então esse piano, eu lembro que ele tinha pesadelo, porque a Trópis era muito cigana, então eu já vinha de uma família cigana, quando gente chegou aqui, a gente meio que ficou sem lugar, então mudou muito de casa. Mudei para Trópis, a mesma coisa e aí, enfim, a gente… toda vez que ia mudar, eu tinha pesadelos com piano, porque precisava de oito caras para pegar o piano, quando você saía, o músculo estava tenso de tanta força que a gente fazia. Mas aí, a gente mudou para lá e foi muito especial assim, lá, porque foi quando eu comecei também a tomar essa frente.
P/1 – Quantos anos, Alisson, nesse período?
R – Em 2002, eu estava com 17 anos.
P/1 – Você nasceu em…
R – Oitenta e cinco.
P/1 – 2002, você está falando, certo?
R – Em 2002 foi quando a gente mudou lá para São Vicente. E aí, enfim, eu tinha que estudar, continuei estudando, mas aí eu comecei a fazer essa eliminação de matéria lá embaixo, lá no litoral e trabalhar lá na Trópis, que a gente tinha ganho um projeto chamado Oca Mundi, que era em parceria com um grupo alemão, tal, e a gente desenvolvia essas atividades lá, muito legal, assim, o envolvimento que a gente conseguiu da comunidade. Eu lembro que quando foi a abertura da casa, quando chegou aquele grupo, meio que chegou o circo na cidade porque o bairro era pequeno. Então todo mundo tinha curiosidade de saber quem era a gente e a gente alugou meio que um cortiço completo porque a gente morava lá também, então tinha um espaço que eram as casas lá, e o espaço que era o espaço de atividades que a gente chamava de Espaço de Convívio, que tinha o cyber café, a biblioteca e o espaço para os saraus e as aulas.
P/1 – E lá, vocês organizavam um monte de sarau?
R – Lá, a gente organizava o sarau, lá a gente dava aula de violão, lá eu criei o xadrez coletivo, porque tinha muito isso, eu comecei a ensinar xadrez lá para os meninos e aí tinha muito: “Sei mais do que você, eu sou melhor que você”, eu falei: “A gente vai fazer o xadrez coletivo, que é o xadrez de dupla. Então, cada um da dupla vai fazer um movimento e o seu parceiro da dupla só pode te questionar duas vezes, nunca pode falar o que você vai fazer e se você for fazer o movimento e ele vir que é o movimento errado, a única coisa que pode perguntar é: ‘tem certeza que é esse o movimento mesmo?’ e só pode perguntar até duas vezes”, e aí a gente fazia, porque também só tinha o xadrez e todo mundo queria jogar, é engraçado, foi uma das oficinas que mais pegou lá, a de xadrez, e aí, para jogar mais gente, eu inventei essas regras e foi muito legal porque acabou que um acabava ensinando o outro, essa coisa do “Não faz isso” “Não, pensa melhor, vê aí, analisa”, eles acabaram criando códigos entre eles para falar, então foi uma coisa bem interessante. E essa coisa do convívio, ele trazia não só conhecimento de uma matéria ou de algo especifico, ele trazia muito essa coisa do relacionamento humano. Então do lado da nossa casa de cultura tinha uma boca e a molecada… é uma boca de família (risos), sabe, é uma família que vendia drogas, tinha atividades ilegais ali. E a molecada, elas iam de lá, saíam de lá e vinham para a Trópis, e tipo, todo esse conflito, esse cara da boca vir querer bater no moleque lá na Trópis e a gente: “Como a gente vai dialogar com esse cara? Como é que a gente vai lidar com isso? Como é que a gente vai lidar com essa criança? Com os traumas dessa criança aqui dentro?”, sabe, porque era um moleque que tinha 12 anos, mas era uma das pessoas mais amorosas que eu já tinha visto na minha vida e naquele meio. E você saber que quando ele crescesse, se ele só ficasse ali, ia ter todo um processo de endurecimento e fora isso, outra menina que era lésbica e que tinha problema na casa dela e que era professora de capoeira e como é que a gente ia lidar com isso? Porque é isso, as pessoas iam para ali, era uma casa que ia desde crianças que não era muito o nosso público, mas ia, porque nós tínhamos criança também, a gente compartilhava desde essa coisa do conviver comunitário, de arrumar a casa, cuidar de criança, correr atrás de grana para ter coisas para todo mundo, não só para mim…
P/1 – Então, cada um tinha que arrumar dinheiro?
R – Não, a gente arrumava através dos projetos, então, todos nós éramos responsáveis por aquilo, o dinheiro que entrava do projeto não ia pagar o Alisson, não, ia pagar a existência da gente ali. Aí no mais, a gente tinha um dia de folga que a gente fazia, que a gente tinha uma ajuda de custos mínimo, até porque a gente tinha noção do orçamento que era para sei lá, tomar uma cerveja, dava para tomar três cervejas na beira da praia. Mas mesmo assim, a gente tinha pouco contato até com essa coisa da bebida, até por conta da nossa filosofia ali, e aí enfim, tinha tudo isso assim, foi muito especial morar lá naquela época e desenvolver esse trabalho, acredito que a gente conseguiu deixar várias sementes muito boas assim, inclusive nesse menino da boca aí, o Wanderlei.
P/1 – E aí, Alisson, como foi? Você voltou para São Paulo? Como você começou seu trabalho da correspondência? Como foi que começou?
R – Então, aí de lá de São Vicente, a gente foi lá para Praia Grande, que a gente construiu, né, porque a gente tomava conta da casa de cultura e construía o espaço lá de Praia Grande, e em Praia Grande não deu muito certo, aí enfim, voltei para São Paulo em 2005 por conta de outro fato que poderia ser até tragédia se a gente tivesse ficado lá.
P/1 – Que foi?
R – Eu tinha uma namoradinha lá, o Carlinhos também, que era outro que trabalhava, aí o cara passou na rua e roubou… porque eles roubavam de bicicleta, roubou a bolsa da namorada do Carlinhos, a gente saiu correndo atrás do cara e tal, a gente conseguiu encontrar a polícia muito próximo, entrou no carro da polícia, foi atrás e pegou um dos moleques e o Carlinhos sempre foi um cara muito esquentado, então começou falar um monte para o moleque, pá, pá, pá, meio que humilhar o moleque ali, só que o menino era réu primário e dali uns dias ia estar na rua, e daí a gente descobriu que o menino era réu primário, o irmão dele era do PCC, era do bangue e que eles moravam muito próximo de onde estava a atividade e tinha uma visibilidade muito grande e o menino sabia de onde a gente era, isso que é foda. A gente pegou, saiu de lá de Praia Grande, uma parte da Trópis continuou lá, a gente saiu e eu voltei para São Paulo. A correspondência poética, o que começou de exato quando eu voltei para São Paulo? Quando eu voltei para São Paulo, eu conheci… foi quando eu comecei a ter contato com esses saraus periféricos que eram com características diferentes dos saraus que a gente realizava, até por ser nossa associação, não tinha bebida, não tinha nada disso e esses saraus periféricos, grande parte deles acontecia no bar e tinha uma influência de uma linguagem muito forte que era o rap, essa linguagem do rap tomava muito conta desse movimento e eu, por mais que tinha contato com a poesia, eu não tinha contato com esse tipo de poesia periférica, eu vinha de um outro estudo, tanto que a poesia periférica, ela me fez mudar muito, eu vinha dessa coisa do estudo, de estudar, de estudar metrificado, então eu gostava de ousar fazer um soneto, de fazer com métrica, de buscar a rima perfeita. Eu era meio que parnasiano (risos), perto da galera, eu sou um parnasianista, sabe? Então, eu lembro que eu escrevia sonetos que a minha mãe, mesmo que estudou até a quarta série não entendia e eu gostava de trabalhar as palavras e descobrir novas palavras, quando eu cheguei no sarau do Binho, falei: “Não, mas isso também é poesia, é um fato”. E aí eu comecei a frequentar muito o sarau do Binho, entrei em contato com a postesia e enfim, comecei a participar das intervenções que o Binho fazia, até que um dia, conversando com o Gil, a gente conversando sobre “O Carteiro e o Poeta”, o livro e o filme, o Gil perguntou se eu tinha assistido, eu falei": “Não”, aí eu olhei assim e falei: “seria bom ter um carteiro e um poeta, já imaginou, um carteiro que ao invés dele aprender poesia, ele ia entregando poesia, em vez de chegar conta, chegar uma poesia na caixa de correspondência assim dos outros? Seria uma coisa muito interessante”, e aí, essa ideia ficou matutando na minha cabeça de 2007 até 2009. Aí, em 2009, eu tinha descolado um trabalho muito interessante, estava trabalhando na produção de uma peça que estava me pagando muito bem e aí, foi quando a gente teve a ideia de fazer o filme “Curta Saraus”, eu e o Davi. A gente falou: “Vamos fazer”, a gente mandou, eu falei assim: “Porra, mas já está na hora, já trabalho tanto nesse meio, eu queria fazer um projeto meu”, aí ele falou: “E aquele lá, o Correspondência Poética, por que você não faz?”, falei: “Pode crer”, eu estava ganhando bem, até estava sobrando uma grana, pensei: “Então posso tocar”, né? “Posso investir nesse projeto” e foi quando a gente montou, comprei os papéis, já conhecia os poetas, falei com os poetas, pedi o poema deles, a gente imprimiu e foi colocar as primeiras correspondências. Aí, tinham seis pontos de ônibus do Terminal João Dias até o Terminal Capelinha e aí, a gente saiu… e ah, aí a gente passou na frente do cemitério São Luís, que a gente montou os pergaminhos e lá tem muitas flores assim, que a galerinha que vende flor lá na frente, quando fecha algumas flores que sobram que já estão cortadas, eles jogam. A gente pediu essas flores para a galera, então a gente montou uma caixa de papelão, eu mesmo grafitei, fiz uma arte em todos eles, preenchi todas elas com pergaminhos de poesia, e fui colocando algumas rosas aleatórias, a gente colocou no ponto de ônibus e aí, a gente foi gravando isso daí, o Davi ficava meio distante gravando e eu ia lá colocar, o pessoal pensava que era pegadinha (risos), era engraçado. E a gente colocou esses negócios lá e saímos, fomos comemorar, começamos uma coisa assim. Aí, quando a gente estava voltando já, às cinco horas da manhã… porque a gente foi colocar à noite, já, aí às cinco horas da manhã que a gente viu dois caras que visivelmente trabalhavam na empresa de ônibus pela roupa, eles estavam passando ali na frente do Hospital Campo Limpo, um cara passou meio distraído, foi, voltou, olhou assim, era a única caixa que tinha sobrado dos seis pontos, isso foi engraçado, o cara foi e voltou assim, aí eu falei: “Diminui, diminui, Davi”, a gente estava de carro, diminuímos, ele abriu, o cara deu uma gargalhada, mas tão gostoso, eu falei: “Caralho, isso dá certo”, mas aí eu pensei também: “Em vez de colocar à noite, a gente tem que colocar mais de dia”, porque também, enfim, eu trabalhava e eu olhava, falava… tinha uma teoria de que nos pontos de ônibus e nos traslados de ônibus era onde tínhamos a maior perda de tempo da nossa vida, os moradores de São Paulo, pensava assim: ‘então, como é que a gente faz para preencher esse tempo perdido?’, porque é isso mesmo, a gente fica lá, não faz nada, agora tem celular, o caralho a quatro, antes não tinha isso daí, a gente ficava lá ocioso e só pensando em contas, em trabalho, em problemas, você não via ninguém muito feliz, era raro, nos pontos de ônibus, as pessoas estavam mais preocupadas em se dar cotoveladas, brigar por espaço do que conviver e aí, a gente começou a colocar nesses horários, era uma coisa muito engraçada ver a reação das pessoas, porque não tinha ninguém ali para te entregar, era um convite, assim, sabe?
P/1 – E aí, vocês gravavam as reações?
R – Não, a gente só gravou no primeiro dia, depois, eu olhei e falei: “Isso é uma coisa que sei lá…”, alguns a gente fotografou, quando a gente ganhou o VAI depois, a gente fotografou, registrou, mas porque precisava registrar mesmo. Mas a gente percebia que quando tinha essa coisa de gravar, você tinha que se esconder muito, porque se a pessoa via, a reação era outra, mas quando você deixava, isso era engraçado, quando a gente ganhou o primeiro VAI que a gente colocou o poema do Giovani Baffô, “Em casa de menino de rua, o último a dormir apaga a lua”, foi uma coisa louca, que a gente colocou, no dia seguinte, quando a gente foi encher a caixa, porque ali já era uma estrutura mais fixa mesmo, no terminal, quando a gente foi encher a caixa, tinham três meninos de rua perguntando: “Quem está colocando isso aqui?”, aí a gente foi lá, conversou com eles e eles perguntaram quem tinha feito a poesia, pediram mais poesias. Aí, outra vez, o segurança veio perguntar… era um poema do Binho, assim, que é uma indígena, como é que é? “Tacar fogo em mendigos indígenas/ É o hobby da playboyzada/ Foder povos e países com uma canetada só/ É o hobby do pai da oyzada/ A herança é um roubo/ Parafuseando”, e aí só porque tinha essa palavra “foder”, o cara feio… o segurança do terminal João Dias veio perguntar para mim como se isso fosse uma ofensa, eu disse: “Mas o que você entende desse poema?”, aí o companheiro: “Aquele lá que tem o ‘foder’”, eu: “Foder?”, eu demorei para encontrar o poema (risos), “É, que fala lá do mendigo lá”, eu: “Ah tá! Eu acho esse poema muito importante das pessoas lerem”, aí ele: “Mas colocar palavrão?”, falei: “Não, tudo bem, pode ser palavrão, mas poderia ser ‘ferrar’. Poderia ser qualquer outra palavra, mas ‘foder’ se você for ler no sentido dessa palavra é uma coisa que qualquer pessoa de nível intelectual ao menino de 12 anos vai entender, você não acha?” “Mas vamos conversar aqui, e o conteúdo dessa poesia?”, então tinha muito isso nessa segunda fase, que era o diálogo, as pessoas pegavam a poesia e elas vinham dialogar com a gente quando elas trombavam a gente enchendo a caixa lá, elas vinham tirar as dúvidas, elas vinham questionar e uma coisa também que acontecia, porque a gente sempre perguntava: “Você vê alguma poesia dessa jogada no chão? Jogada no lixo?”, e nunca tinha. Isso era uma coisa que a gente gostava porque a gente não entregava na mão, a gente não dava, a gente convidava as pessoas a virem pegar e a gente intervia no espaço com uma coisa que era bonita, que era um papel reciclado que a gente dava da oficina da reciclagem de papel, ressignificação de papel, então era um papel reciclado, era uma coisa bonita e aí, a gente intervinha no espaço com uma coisa bonita e que não era comum. Eu falava: “A gente fomentava a curiosidade da pessoa”, e quando a pessoa toma a iniciativa de ir lá e pegar, nossa, eu já ouvi várias histórias de pessoas que grudavam na parede como parte de decoração da casa, pessoas que iam nos saraus e falavam: “Caralho, peguei o poema que a madrinha da minha filha fez para a minha filha”, aleatório no meio de tantos e era… o Correspondência veio meio com esse intuito de conseguir levar a poesia para um lugar que não necessariamente, as pessoas têm o hábito de ler poesia, mas instigar com a beleza, com a curiosidade das pessoas para que elas comecem a ter esse hábito, é meio que esse primeiro passo. Aí depois, a gente foi desenvolvendo outras atividades.
P/1 – O que mais foi acontecendo nesse seu projeto? Para onde ele foi indo?
R – Então, a gente foi montando outras coisas, primeiro que foi crescendo um pouco essas coisas, a gente acompanhou a expedição do “Donde Miras”, foi um projeto que surgiu através do livro do Binho e do Serginho, que aí, a gente fez quatro caminhadas assim, mas aí foi uma das coisas especiais também que eu vivi na minha vida (risos), essa caminhada de sair andando pelas cidades, parando e realizando saraus, fazendo pesquisas, porque eu também ia com um grupo de audiovisual, a gente saía pesquisando na cultura local, gravando, convidando para participar do sarau, a gente saiu acompanhando eles, entregando, aí gente chegou no conceito que a gente, enfim, não era só uma ação, a gente era um coletivo de pesquisar, a gente queria saber quem estava produzindo poesia, a gente queria difundir porque não tinha acesso a esse conteúdo e a essa linguagem de poesia, principalmente, que é a poesia periférica, que por eu ter estudado as outras linguagens antes, eu fiquei muito encantado por essa, em especifico, porque ela comunicava. Eu sempre achei que a função da arte, em si, era comunicar, que ela tinha que comunicar as coisas, que era uma ideia a ser comunicada e claro, aí você trabalha o lirismo, as várias formas de fazer poesia para fazer isso, mas essa linguagem em si, ela meio que era o revide dessa linguagem, essa barreira das palavras na academia, ela revertia, essa barreira, ela passava para cá, porque era a linguagem daqui que as pessoas que não tinham acesso a essa academia, da ponte para cá, todo mundo compreendia e a academia não conseguia compreender o que estava sendo dito, era meio que esfregar na cara: “Olha o que vocês fazem com a gente!”, mas com a mesma base, com o mesmo conteúdo, com a mesma possibilidade de aprofundar conteúdo que qualquer outra linguagem tem. E a gente começou a pensar essas várias formas, até mesmo o “Curta Sarau” surgiu disso daí, de conseguir expor isso daí e aí, a gente começou a pensar: “O audiovisual é uma linguagem que comunica todo mundo”.
P/1 – Foi aí que vocês começaram a gravar?
R – É, a gente… foi uma brincadeira minha com o Davi (risos), a gente estava assistindo, a gente gostava muito de assistir o programa “Ensaio”, a gente estava assistindo o programa “Ensaio”, assim e aí, era da Elis Regina e a Elis tinha uma… ela falava, ela tinha uma presença, sabe? Naquilo ali, a gente começou a desenvolver sobre a importância do movimento da música popular, da Tropicália, que assistindo depois o do Gilberto Gil, da Tropicália, a gente chegou a conclusão que esse movimento da cultura periférica, em geral, mas principalmente da literatura periférica, ele era meio que uma Tropicália na literatura, sabe, era um revide na literatura muito grande. Então, a gente falou assim: “Mas não tem nada, nenhum programa, nenhum registro de som audiovisual com essa qualidade, vamos fazer um programa, vamos fazer o Ensaio Poético” (risos), e foi aí que a gente começou a fazer o Ensaio Poético, muito mambembe, claro, tentando explorar com pouco, como diria o Drummond: “Com pouco, sem muito recurso”, a gente foi fazendo esse Ensaio Poético. Aí, registrando um pouco dessa cena, porque até mesmo quando a gente começou a fazer o Ensaio Poético, tinham poucas pessoas que tinham publicado livros, não era uma coisa tão comum publicar um livro.
P/1 – Isso nós estamos falando de 2000 e?
R – Ah, 2010, 2011.
P/1 – Nesse momento todo, você estava morando onde?
R – Então (risos), como eu te falei, eu sou meio cigano, então nesse momento eu já casei, já tive meu primeiro casamento, isso aí entra um pouco também. Porque quando eu voltei, em 2005, eu fui morar com o Gil e com o Peu, numa casa que eles tinham alugado, aí morei lá durante um tempo, a gente alugou uma outra casa que passou a ser Trópis de novo, que o Ralf subiu de novo lá do litoral para cá, a gente começou a fazer atividades da Trópis aqui também, eu me casei com a Katia, foi o meu primeiro casamento.
P/1 – Ela era da Trópis também?
R – Não, ela não era, passou a ser depois que eu apresentei a Trópis para ela. Ela foi uma paixão fulminante! Uma coisa linda que aconteceu na minha vida, a gente namorou um mês e casou (risos), foi mais ou menos isso. E a gente morou junto… morou junto, não, teve um relacionamento por cerca de cinco anos, assim, 2005 a 2011.
P/1 – Cinco anos? Ah, 2005 a 2011?
R – É, mais ou menos e aí, enfim, é que eu morei em muitas casas, se eu for contar, estou com 29 anos agora, eu já morei em mais casas do que a minha idade. Se eu for contar das casas que eu morei…
P/1 – Aí você foi mudando?
R – A gente foi mudando.
P/1 – E em termos…
R – Mas geralmente, era tudo em termos do Monte Azul, entre Capão…
P/1 – Tudo por ali?
R – É, São Luiz, Capão, Campo Limpo, geralmente, nunca fora dessa área, a não ser quando eu mudei para o litoral, e aí…
P/1 – Ali é o seu pedaço?
R – Ali é a minha área (risos). E ali enfim, ali também é onde eu conheci todo esse movimento, e construí também assim, esse movimento dos saraus, claro, foi crescendo muito depois, mas por exemplo, em 2007, quando o Peu estava realizando o filme “Panorama, arte na periferia”, que esse filme… a intenção desse filme era discutir as sete artes, pensar nas sete artes e ver como elas se expressavam na periferia, que autores periféricos, sabe, que artistas periféricos representavam essa arte, desde a arquitetura com o… como é o nome dele? Eu sei que o pessoal apelidou ele de Gaudí, assim o Gaudí ali de Paraisópolis, até o cinema mesmo, que aí era mais representado pela gente que não era nem cinema, era audiovisual, naquela época, a poesia, que aí ficou evidenciada, essa coisa do sarau, Sarau da Cooperifa, o Sarau do Binho, que eram os únicos que existiam em 2007, basicamente, sabe? Com referência e com público, tal. O teatro, a dança, essas coisas, a gente foi buscando as sete artes assim, então, eu nem sei porque eu cheguei aí (risos), a gente foi desenvolvendo essas várias atividades assim, no meio do caminho. Porque você perguntou da Correspondência Poética, o Correspondência Poética começou principalmente em 2009, antes de 2009, ainda teve essa coisa do panorama, teve a coisa da formação da caminhada, principalmente, a primeira caminhada em 2008, que foi, na minha opinião, a melhor e a principal, que também deu essa possibilidade, sei lá, deu essa concepção de juntar coletivos, não só juntar em coletivos, juntar coletivos. Então, a gente juntou vários coletivos e teve a ousadia de sair do Campo Limpo e ir até Curitiba caminhando.
P/1 – Esse foi… quem foi o líder desse movimento?
R – Isso daí começou em torno do livro do Binho e do Serginho, eles estavam lançando… a Edições Toró tinha ganho um VAI e aí, eles… o Allan da Rosa convidou o Binho para, enfim, publicar um livro, aí o Binho falou: “Mas eu não tenho poemas suficientes, eu posso chamar alguém para fazer junto comigo?” “Pode”, aí ele chamou o Serginho. Aí o Serginho foi fazer esse livro, aí eles queriam fazer um livro trilíngue: português, espanhol e guarani. Aí não conseguiram, não deu tempo de fazer o guarani, eles fizeram só em português e espanhol e o nome do livro é “Donde Miras: os dois poetas e um caminho”, e aí, tinha saído não fazia muito tempo o “Diário de Motocicleta”, eles falaram: “Vamos sair de moto, a gente vai lançando o livro em algumas cidades”, tal, e aí o Binho: “Não, vamos a pé” “Tá, então tudo bem, então vamos de bicicleta” “Não, não, vamos a pé”, aí o Binho começou a meio que distribuir essa ideia: “Vamos a pé, vamos a pé, vamos a pé”, e aí juntou, na época, o Peu morava com a gente na Trópis, aí o Peu trouxe essa ideia, eu: “Puta, pode crer”, aí eu estava trabalhando num trabalho que não tinha nada a ver comigo, que eu estava cuidando de pessoas especiais na época. Aí, estava puto com o lugar onde eu estava trabalhando, aí eu falei: “Pode crer, vamos caminhar, vamos caminhar”, a gente foi nas reuniões, aí juntou o coletivo Arte na Periferia, juntou a galera da Trópis, juntou a companhia de teatro, Brava Companhia, juntou o grupo MCA de audiovisual, vários poetas dos saraus, do Sarau do Binho, no caso, e aí enfim, o Gil que era um puta de um produtor cultural já, já trabalhava com produção cultural, juntou em torno de 30 pessoas e vamos a pé. E foi mágico, eu lembro que eu dei um pé na bunda do trabalho, fiz até um poema pra isso também, quando eu resolvi me despedir do trabalho, inclusive, esse poema que vai dar nome ao meu livro que eu estou pretendendo fazer esse ano (risos).
P/1 – Como que é o poema?
R – É “Coletivo”, é assim:
“Acordo,
Ainda na asa do sonho
O corpo mecânico
Liga o chuveiro
E é o meu sono que vai pelo ralo.
Já desperto, mas não consciente
Acelero o passo
Num compasso alegro
Meu corpo nem branco, nem negro
Pardo pelas ruas.
O trabalho me espreita
O patrão me espera
O primeiro ônibus rejeita
O segundo acelera
O terceiro passa lotado
Mas no quarto eu entro
Nem que seja apertado
Peço licença
Pra entrar no enlatado
E já na malemolência desconjuntada
Do biarticulado
Eu rolo a catraca
E é o meu suor que vai pelo ralo
Desfeito no grande embolo
Somos farinha da mesma massa.
Somos um grande coletivo
Aflito com a hora que passa
E com o dinheiro que não regressa.
O engarrafamento
Acelera a pressa
Retarda a impaciência…
Não, espera aí, eu só consigo lembrar dos negócios agora com o celular (risos).
P/2 – Quer voltar do começo pra ver se…
R – Eu quero. Pode?
P/1 – Pode.
R – É assim: “Coletivo”
“Acordo,
Ainda na asa do sonho
O corpo mecânico
Liga o chuveiro
E é o meu sono que vai pelo ralo.
Já desperto, mas não consciente
Acelero o passo
Num compasso alegro
Meu corpo nem branco, nem negro
Pardo pelas ruas.
O trabalho me espreita
O patrão me espera
O primeiro ônibus rejeita
O segundo acelera
O terceiro passa lotado
Mas no quarto eu entro
Nem que seja apertado
Peço licença
Pra entrar no enlatado
E já na malemolência desconjuntada
Do biarticulado
Eu rolo a catraca
E é o meu suor que vai pelo ralo
Desfeito no grande embolo
Somos farinha da mesma massa.
Somos um grande coletivo
Aflito com a hora que passa
E com o dinheiro que não regressa.
O engarrafamento
Retarda a pressa
Acelera a impaciência
O correr do tempo
Desenha minha sentença
Na cara-carranca do patrão exaltado
Meu salário será descontado
Terei que pedir emprestado
Sem saber como pagar
E é minha saúde que vai pelo ralo
Ainda alado
Enlaçado com a imaginação
Desfaço a carranca do patrão
E o coloco ao meu lado
No busão lotado.
Será que ele viraria gente
E esqueceria seu sangue europeu?
Será que seria como eu
Distante do seu papel de presidente?
Mas existe um papel social
Que nos mantém separados
Ele na poltrona dele
E eu no busão amassado
E é meu orgulho que vai pelo ralo.
Chego no ponto
Ainda apressado
Peço licença pra sair do enlatado
Penso em acelerar o passo
E me contenho
Num compasso moderato
Cansado da rotina
Desgarro-me do contrato
Acendo um cigarro
E deixo fluir o passar da hora
Sem arrependimento ou aflição
E é a minha vida que transborda
E vai pro ralo meu patrão.”
Isso daqui eu escrevi como despedida do meu último emprego formal.
P/1 – E você mandou para ele?
R – Para ele, não. Mas para todo mundo (risos), mas para todo mundo, depois.
P/1 – E aí, você saiu de lá e foi para o… foi caminhar?
R – Fui para o “Donde Miras”. Eu lembro que nessa época, eu já tinha começado as atividades do Correspondência Poética, e na época, dava uma oficina chamada Oficina de Literatura em Ação, em que estudava os movimentos e tentava montar uma ação em torno daquele movimento para apresentar ele, barroco, apresentava o barroco através do carnaval, uma poesia, enfim…
P/1 – Você dava esse curso onde?
R – Na Fábrica de Criatividade, que é um espaço que tem lá no Capão Redondo, é a Mafê, que inclusive, hoje faz parte do coletivo Correspondência Poética, tinha me convidado. Eu lembro que foi a oficina que eu dei, que eu melhor ganhei assim, um dia só de trabalho (risos) e fomos eu e a Katia, que na época, trabalhava com fotografia, almejava trabalhar com fotografia, a gente tinha ralado pra caralho, ela comprou a primeira Canon dela, X-não sei o quê, a gente juntou tudo o que a gente tinha lá, todos os cacarecos, fez um combinado com o Ralf, na época, a gente morava na Trópis, até para diminuir as nossas contas, que não estaríamos consumindo e fomos no impossível lá para o “Donde Miras”, a gente saiu, foi para o “Donde Miras”, apaixonados pela ideia completamente, a gente, naquela época, acreditava que a gente podia andar a América Latina inteira, que a pé era a coisa, e quando a gente começou a vivenciar essa coisa de cada três dias, uma nova paisagem, uma nova forma de se relacionar socialmente, o se aproximar da fronteira São Paulo– Paraná, a mudança do sotaque, as paisagens que iam mudando, era uma coisa louca, a cultura que a gente ia conhecendo no meio do caminho, a própria poesia do Binho e do Serginho, o quanto elas influenciavam nessa época, eu também acabei escrevendo um poema meio… eu falo que esse poema aqui do patrão foi muito inspirado num poema do Serginho, depois, eu fiz um muito inspirado na linguagem do Binho, também, chama “Meu Caminho”, que eu fiz na caminhada, que foi bem legal.
P/1 – Se você quiser, pode falar que é legal ter uns poemas que marcaram as coisas da sua vida.
R – Esse “Meu Caminho”, ele… eu sempre gostei de trabalhar muitas linguagens, né, então cada poema é uma linguagem diferente (risos), isso é engraçado. Esse “Meu Caminho” é:
“Me sou sabido que existo
E me duvido
Me acreditando mais.
Me sou sabido corpo
inda que parco
permaneço capaz
E me puxo do longe
Nos caminhos que me permeiam
Eu me atalho, me sou súbito
Na vida que me permito, eu me espalho,
Sou horizonte de mim mesmo
E me acordo Sol
Pra brilhar na retina do mundo
E me acordo Sol
Pra brilhar na retina do mundo."
Esse daí foi muito… eu lembro que eu terminei de escrever, eu estava na caminhada, fui mostrar depois da Katia, claro, que ela estava do meu lado quando eu escrevi, a primeira pessoa que eu fui mostrar foi o Binho, eu falei: “Binho, olha, escrevi”.
P/1 – E ele?
R – Ele gostou pra caramba, tanto que é um que ele sempre fala para eu falar nos saraus (risos) “Alisson da Paz, ah, fala aquele…” (risos) E a caminhada teve essa coisa assim, muito especial, inclusive de aproximar os laços entre as pessoas que fizeram essa caminhada, era muito mais que simplesmente um encontro de coletivos que você vai, não, eram vários coletivos e um objetivo coletivo realmente, sabe? E aí, os problemas do convívio…
P/1 – Teve muito problema? Vocês iam dormindo onde? Como foi…?
R – Então, o primeiro problema foi exatamente esse, da produção. Aí eu lembro que na produção ficou eu, a Dani, o Gil, a Mari, tinha uma galerinha que ficava na produção. Então, a gente conseguiu… quando a gente saiu lá do Campo Limpo, a gente conseguiu pré-produzir Embu das Artes, Taboão, Embu das Artes e Itapecerica da Serra, três cidades. Então, a gente tinha alguns dias, então quando a gente estava lá em Embu, a gente pá, ligou, eu lembro que esse aí foi até o Binho que ligou lá em São Lourenco, tal, muita gente ia indo, o grupo de produção ia na frente na cidade, entrava em contato com a Secretaria de Cultura, Esporte e Lazer, que geralmente, é tudo junto, nas cidades do interior e a gente ia dialogando com as pessoas, daí a gente dormia, acampava em escolas, centros culturais, nesses espaços públicos, e a gente que ia fazendo mesmo, ligava, se a ligação na maioria das vezes, não dava resultado, tinha que ir lá…
P/1 – Antes?
R – Antes assim, porque tinham os carros de apoio, somos artistas, não somos atletas, então, não era essa coisa de caminhar… o objetivo era conhecer a cultura do caminho…
P/1 – Vocês foram de carro, na verdade?
R – Não, não. A gente foi… tinha o carro de apoio, o carro de apoio que levava as malas e ficava com esse pessoal da produção, para o pessoal da produção que ia lá na cidade, então, a gente estava lá em Embu das Artes, a gente já ia lá em São Lourenço para conversar com eles, porque Taboão, aí tinha Embu, aí tinha Itapecerica para chegar lá e já estar pronto. Aí, a galera estava lá em São Lourenco, a gente estava… sabe, já estava no Alto Ribeira, ali, conversando com a galera, pré-produzindo isso. Era bem na caruda, cara larga mesmo, uma cartinha, a gente nunca tinha feito essa atividade antes, então não tinha nenhum registro, só tinha um pouco da base do histórico de cada grupo que foi para lá e um blog que a gente tinha montado, não era nem um site, era um blog que a gente ia alimentando com todas as atividades que a gente ia fazendo, e era muito legal, tinham umas cidades que nos recebiam muito bem, outras cidades que… teve uma cidade que o delegado foi receber a gente (risos), isso foi muito engraçado que a gente tentou conversar, meio que conversou com a Secretaria de Cultura, aí a menina falou: “Pode chegar que tem a escola tal que vocês podem ficar lá”, só que quando a gente chegou que a gente foi na prefeitura no fim de semana, não estava ninguém trabalhando na prefeitura, na época, como era fim de semana, geralmente, aumentava o numero de pessoas, que tinham os volantes, né, pessoas que no podiam fazer a caminhada inteira e só ia no fim de semana, porque quando tinha esse espaço de tempo. E aí, enfim, quando a gente chegou lá, não tinha ninguém pra receber a gente, a gente ficou lá em frente a secretaria e o cara pensou que estava tendo motim, que estava tendo alguma coisa, 40 caboclos, assim, mal vestidos, suados, depois de terem andado o caminho inteiro, chamou óbvio, para receber a gente, o delegado, foi muito engraçado esse dia.
P/1 – E aí depois, vocês conseguiram ficar?
R – A gente explicou que tinha conversado, falamos o nome da mulher que trabalhava lá, aí eles conduziram a gente até a biblioteca. Nessa cidade foi onde a gente conheceu o cururu, esse ritmo musical de improviso muito interessante. A gente colocou Zinho Trindade que é free style pra fazer um duelo com esse cara do cururu, foi muito especial, assim.
P/1 – Cada cidade em que vocês paravam, vocês faziam uma atividade?
R – Então, a gente dava contrapartida nessa cidade, inclusive, esse sarau. Só que era um sarau diferente dos saraus que acontecem aqui, inclusive foi… acho que o melhor sarau que existe é o Sarau Donde Miras, porque ele engloba todas as linguagens, inclusive, as que a gente não está acostumado, ele engloba música, ele engloba o audiovisual, então a gente montava um espaço para fazer projeção, tinha sempre uma galera da música que acompanhava a gente, tinha a galera do teatro que fazia os sketches teatrais, tinham os próprios grupos do local que vinham interagir com a gente, tinha a poesia como carro-chefe, sempre, né? Esse negócio do sarau da poesia é o carro-chefe, sei lá, a coisa da dança também, em vários momentos, a dança acompanhava a gente, a gente sempre terminava com a ciranda. Isso era uma das coisas mais mágicas que acontecia, eu lembro que Itaoca, se eu não me engano, a gente foi muito bem recebido lá em Itaoca, o cara da Secretaria de Educação, Cultura, Esporte e Lazer, do pacote completo (risos) recebeu a gente, mas ele era muito interessado mesmo, inclusive, desenvolvi um grupo lá que era o Fandango de Tamanco, uma apresentação linda, eles fizeram lá e a cidade é aquelas cidades que a gente fala: “Uma cidade de primeira”, porque quando você passa a segunda, acabou a cidade (risos), piada de caminhoneiro e aí, quando a gente chegou lá, foi meio que a atração da cidade aquela noite e ele tinha montado, montou até um lugar pra gente estender um negócio para passar o vídeo, que enfim, a gente sempre passava, mas quando não tinha estrutura, a gente pendurava no poste, não tinha problema. Aí, ele montou uma estrutura, tal, quando a gente terminou, a cidade estava tão envolvida no sarau, e o negócio foi feito com uma paixão tamanha que quando a gente foi fazer a ciranda, a gente deu a volta na praça, a gente abraçou a praça, a praça ficou pequena para a ciranda assim, era uma coisa linda, todo mundo, desde o policial ao bêbado. Policial na roda de ciranda (risos), desde o policial ao bêbado lá, todo mundo dando a mão e a gente cantando, na época, era “Mestre Ambrósio”, aquela música: [cantando] “Já faz tempo que eu sai de casa para lhe ver…”, enfim, e as outras a gente começou a aperfeiçoar mais, tinha a galera do pandeiro, o Manuel também foi, o Manuel Trindade, aí ele sabia cantar algumas cirandas, aí a gente foi cantando cirandas, mas era lindo, tinham manifestações, tinham pessoas que conheciam a caminhada e queriam acompanhar a caminhada. Em Cesário Lange, eles receberam a gente com a banda marcial, muito maior que o grupo que a gente levou, a gente fez um sarau na praça, a praça estava lotada de gente, foi maravilhoso e aí, tiveram dois jovens que viram aquilo, participaram do sarau e falaram: “A gente quer ir com vocês”, a gente estava indo rumo a Botucatu, foi a segunda, não, foi a terceira… a gente estava indo rumo a Botucatu e a gente falou: “Vamos, tá bom, vamos”, e eles foram assim, acompanharam a gente até Botucatu, autorização dos pais, e tudo mais, porque eram menores de idade e foi muito legal! Outras situações como essa aconteceram no caminho, de pessoas que conheciam e queriam fugir com a gente (risos)…
P/1 – O circo.
R – É, queriam fugir com o circo. Isso era uma coisa muito legal e também essa coisa de conhecer o caminho andando, você conhecer a história da Rio–Santos através de um quilombo, o cara que morava ali antes da Rio–Santos, um quilombo que tinha tradição de passar as histórias de uma forma oralizada, então a gente parou, ficou lá no Quilombo do Campinho, ficou lá ouvindo a história daquele quilombo, o cara tinha 80 anos contando a história daquilo ali para você chegar do Quilombo do Campinho em Paraty, você tinha que esperar a maré do rio baixar para conseguir chegar lá, chegava… sabe, quando abriram o primeiro caminho, a expansão da Rio–Santos, era uma coisa mágica, sabe? Você descobrir também um outro trecho dessa mesma história, mas por um vendedor de coco (risos), o cara que estava vendendo coco ali: “Ah, moro aqui já há 50 anos”, meio século de história naquele local e é isso. Vendo essas histórias, tem história contada e tem história das pessoas que moram lá ainda e a gente… era essa coisa que passava, mas ia levando, de todos, a gente ia levando um pouco. Quando chegava lá na cidade para fazer o sarau, a gente sempre tinha história nova para contar para as próprias pessoas da cidade, que era da cidade deles que eles não sabiam que a gente ia descobrindo no caminho. E era mágico! Quando a gente foi no Quilombo Ivaporunduva, que ficava próximo de Eldorado, o Lacerda fugiu para lá (risos), para aquela região do Alto Ribeira, e aí conhecendo as histórias, esses mitos sobre ele que aconteceram lá, prováveis filhos e parentes, sabe, então essas coisas, a história da resistência do quilombo contra a Votorantim que está querendo fazer uma barragem lá e eles estão fazendo de uma forma que os seus habitantes possam ter acesso à educação superior, para que se tornem advogados para defenderem os espaços deles, sabe? A mesma coisa nas aldeias, então ver como essa luta social e étnica está se armando, sabe, como eles estão se armando ali, isso tudo caminhando. É diferente, você está lá de carro, você passa e você não vê, você vai caminhando e você vai descobrindo, você vai chegando, era bem isso assim…
P/1 – Quanto tempo vocês ficaram caminhando?
R – Aconteceram quatro caminhadas, elas aconteciam em torno de um mês, a gente passava um mês caminhando, essa primeira, a gente passou literalmente, um mês. A gente saiu dia cinco, chegou dia seis do outro mês em Curitiba. Dia cinco de janeiro de 2008, um grupo de 30 poetas… que a gente montou a narração para o vídeo que a gente está montando. Isso foi uma coisa muito especial, Donde Miras foi marcante. Foi depois que o Donde Miras acabou, finalizou que putz, final de 2010, que a gente também começou a dar… enfim, a gente pensou no Curta Saraus por causa do Donde Miras, também, por ver o quanto de coletivo estava…
P/1 – O que é o Curta Saraus?
R – O Curta Saraus foi um filme que a gente fez, coletivo Arte na Periferia, depois, o Panorama, esse Panorama, eu participei meio que como a 30ª lua de distância, meio que na órbita disso, não participei diretamente. Aí no Curta Saraus, a gente percebeu quanto esse movimento dos saraus estava crescendo, estava se tornando uma política pública para a cultura, não só em São Paulo, mas principalmente em São Paulo, mas a gente via pedaços disso sobrando em outros lugares. Eu lembro que nessa época também foi quando começou um pouco essa internacionalização dessa ideia dos saraus, porque vinha muita gente estudar, tal e a gente falou… aí surgiu o edital Nós na Tela do governo federal e aí, a gente falou: “Vamos mandar isso do Donde Miras”, aí o Davi, a gente sentou lá um dia na cadeira, começou a escrever o projeto, mandou e fomos um dos dez aprovados no Brasil inteiro, eram só dez projetos aprovados no Brasil inteiro e a gente ganhou um dos dez. E foi mágico pra gente, porque em 2010, você ganhar 40 mil para você fazer um curta metragem de 15 minutos, pra gente, na periferia, era grana pra caralho! Era uma possibilidade de realizar um trabalho maravilhoso. E aí, foi legal que a gente conseguiu comprar o material, um APD, Tascam, conseguiu o equipamento, pouco, mas pra gente já era muito, conseguiu comprar um mac para editar, era muito! E aí, a gente fez a pesquisa, enfim, registou 60 saraus na grande São Paulo, contando Santos também, a gente conseguiu mapear 60 saraus, desses 60, a gente escolheu sete que contasse um pouco dessa história desse movimento, da importância desse movimento no desenvolvimento da arte na periferia e aí, a gente pegou a Cooperifa, o Sarau do Binho, Sarau do Fundão, Elo da Corrente, Sarau da Brasa, Sarau do Ademar e tinha um que o Serginho estava fazendo, chamava Poesia de Esquina, que não existe mais. Acho que a gente pegou, principalmente, esses seis, o Poesia de esquina, a gente pegou umas imagens lá, mas nada que a gente fosse trabalhar mais no filme. E a gente fez esse filme para pessoas que não conheciam sarau, a gente não quis mostrar tipo: no sarau, acontece isso, a gente quis fazer meio como um filme convite para conhecer os saraus e aí, foi mágico essa produção que a gente conseguiu contato com todo mundo, então a gente interviu um pouco, mas conseguiu pegar a peculiaridade de cada sarau, o que acontecia, esses artistas que se encontravam e utilizavam a arte para interferir na sua comunidade e a potencialidade disso daí, nos saraus, porque lá eles se encontravam: “Eu trabalho com audiovisual” “Eu trabalho com teatro” “Opa, vamos casar fazer um trabalho juntos”, trabalho com literatura e dança, então esses atores sociais, eles conheciam ali e cada um que tinha um tipo de arte que trabalhava com isso se juntava e potencializava e a gente percebeu que no sarau se potencializou muitos coletivos pelo encontro das diferentes pessoas que trabalhavam com a arte para interferir na sua comunidade, isso daí foi o mais importante, assim. E aí, a gente falou: “Porra, é necessário que a gente traga mais pessoas para o sarau”, a gente fez esse filme que teve uma boa repercussão não só nos saraus, mas a gente ganhou prêmio Outros Brasis, em Jericoacara, a gente ganhou, já é o segundo que a gente ganhou em Jericoacara, ganhou Nós na Tela, foi bem interessante e aí, a gente teve a ideia também, porque graças a esse último poema que eu recitei o “Meu Caminho”, a gente conheceu a Lucía Tenina e a Nazaré e a Nazaré é uma periodista espanhola e a Lucía, ela tinha acabado de chegar no Brasil e ela estava fazendo uma pesquisa, ela era da UBA – Universidade de Buenos Aires e ela estava fazendo uma pesquisa de conclusão, se eu não me engano, doutorado dela sobre a literatura marginal. E aí, enfim, eu fui lá apresentar todo inflamado esse poema, o “Meu Caminho”, e aí quando eu sai, ela veio me cumprimentar: “Oi, parabéns”, e aí a gente se conheceu e eu falei para ela, que a gente já desenvolvia o Correspondência Poética, ela estava pesquisando ainda, tinha acabado de chegar, aí eu falei pra ela que a gente já tinha um pouco dessa pesquisa encaminhada com o Curta Saraus e o Correspondência Poética, na verdade, na ordem inversa, Correspondência Poética e depois, o Curta Saraus. Aí, ela passou a acompanhar a gente nessas gravações que a gente foi fazendo e foi conhecendo as pessoas e os lugares que a gente foi registrar. Depois que a gente terminou, ela foi uma das pessoas que traduziram, a gente conseguiu traduzir, fazer legenda para esse Curta Saraus em espanhol, inglês, francês e alemão e a gente colocou como objetivo também, a gente foi um dos primeiros coletivos da periferia que pensamos assim: “A gente tem que montar aqui, mas tem que mostrar para o mundo”, então em todos esses idiomas, países que falavam… não em todos os países que falavam esses idiomas, mas a gente conseguiu passar esse filme em festivais nos quatro idiomas, no mínimo, sabe? Então a gente tinha muito esse objetivo de precisar fazer, mas de difundir, que foi meio um pouco dessa ideia do Correspondência Poética de pensar formas de fusão com a ideia do Arte na Periferia, que era essa coisa do registro e da arte na periferia. Aí, a gente juntou esses dois no Curta Saraus e conseguiu fazer isso daí, e é legal, porque até hoje, cinco anos depois que a gente fez esse filme, você vai perguntar para o Sérgio Vaz quando ele sai lá, vai dar palestra na Alemanha, qual o filme que ele mostra? Curta Saraus, o Binho? Curta Saraus. E é uma coisa muito legal. E isso foi muito legal, porque esses encontros formaram uma coisa tão importante que foi essa Lucía que a gente conheceu em 2010 que levou, não só ela, claro, teve todo o trâmite, mas que levou esses saraus para ir no ano passado na feira de livros de Buenos Aires, que foram trocentos saraus lá para Buenos Aires, depois foi uma parte só lá para o México. Então, esses encontros, eles vão gerando coisas, né?
P/1 – E aí, todas essas coisas que foram geradas, você está me contando um pouco depois, período de 2010, né?
R – É, 2010… isso, não, essa coisa do…
P/1 – De viajar, dos idiomas aconteceu depois disso?
R – De viajar no caso, para feira de livros foi ano passado.
P/1 – E aí, o que foi acontecendo com todos esses trabalhos antes de 2010 e agora, até 2015?
R – Então, aí a gente foi diversificando um pouco isso quanto Correspondência Poética, a gente foi diversificando um pouco essa forma de atuar, a gente começou a ir nos lugares da Oficinas, do Correspondência Poética, preparar uma forma de apresentar essa poesia para as pessoas e pensar essa forma de interagir no espaço uma poesia, aí a gente começou a pensar o Ensaio Poético, de registrar isso daí, então além de difundir, a gente também queria ter um registro disso, óbvio, para difundir e enfim, a gente foi um pouco diversificando, teve as intervenções, teve o Ensaio Poético, a gente também foi trabalhando de 2012, 2013, a gente foi trabalhando mais na área audiovisual, também. A gente montou um filme chamado Música na Periferia, a gente montou alguns trabalhos junto com o Laboratório Cultura Viva, da URFJ e aí, enfim, a gente montou um trabalho muito interessante que foi chamado de “A Greve”, esse trabalho que participou na Estéticas da Periferia de 2012, esse é um evento que acontece em parceria com o Sesc Santo Amaro, para falar a verdade, era só um projetinho que era só para fazer um mini documentário sobre as artes plásticas na periferia, aí a gente pegou assim… foi logo na época em que o meu pai faleceu, então… e o meu pai faleceu decorrente de um acidente de trabalho. Estava trabalhando, aí ele caiu…
P/1 – Ele trabalhava de pedreiro?
R – Trabalhando de pedreiro. Aí, ele estava cuidando de um galpão, no teto de um galpão, ele caiu, ele ficou paraplégico, aí foi morar na minha casa, porque eu era o único que conseguia transportar ele, os três últimos meses de vida dele, ele ficou na minha casa, eu cuidando dele e tal e nesse processo e eu estava fazendo essa criação e o meu pai lá, minha família e todo esse negócio. Aí, três meses depois, por conta da inflamação da cirurgia que fizeram nele, ele teve um AVC, aí faleceu. E eu estava muito revoltado com essa situação do trabalho e o que era para ser um documentário sobre artes plásticas na periferia, se tornou uma exposição muito legal que foi “A Greve”, porque eu comecei a pensar, pirar, mesmo: “Pô, a gente vai falar um negócio só porque o edital fala pra gente falar isso? Cadê aquela essência que tinha no começo da gente falar o que a gente queria falar, o que nos incomodava, o que tocava a gente? Vamos falar do trabalho, bicho, vamos pegar e linkar artes plásticas com o que a gente quer falar, não ao contrário, sabe, se render ao tema”, aí a gente foi pensando, pensando e aí pensou no Eisenstein, tipo, a gente não está falando as artes plásticas, a gente está falando das artes visuais, então arte visual é uma arte visual, o que a gente quer falar nas artes visuais? Vamos falar do Eisenstein. Aí, a gente convidou um amigo nosso que é grafiteiro, Beto Silva e a gente montou cinco painéis de dois e meio de altura por cinco de largura, a gente grafitou o filme do Eisenstein, “A Greve”, a gente assistiu trocentas mil vezes, decupou, pegou as principais cenas que contavam a história, chamamos o Beto, fizemos um layout ali, tá, o Beto foi grafitando, no que o Beto ia grafitando, a gente ia filmando e na edição, a gente animou essa filmagem, esse grafite. Aí, a gente fez uma parceria com o Cesar Santo Amaro em que a gente reconstruiu a caixa preta do cinema, a gente montou uma caixa preta, quase caixa no Sesc Santo Amaro em que as pessoas entravam e tinham painel um, dois, três, quatro, cinco e aqui tinha um painel em branco. As pessoas entravam dentro, estava tudo escuro. Aí, tinha um jogo de 56 luzes no teto, que aí iluminava a luz um, começava a música, aí iluminava na primeira cena, apagava e iluminava na segunda e eram 56 cenas, aí as pessoas iam andando, andando, andando, painel um, dois, três, quatro, cinco, quando chegava nesse painel branco, apagava todas as luzes de novo, ligava o projetor, aí mostrava a animação que a gente fez da construção desses painéis. Era automático, bicho, terminava a animação, as pessoas saíam e iam para o primeiro painel e iam entendendo todo caminho, era muito legal, essa aí foi a exposição “A Greve” que a gente fez, foi muito legal, inclusive, a gente quase ganhou um prêmio com ela da Academia Brasileira de Críticos de Arte, Marisa Bertolli apostou na gente, escreveu fãs das defensoras lá, mas tinha um Portinari em exposição (risos), lá no Memorial da América Latina, nunca que ia chegar aqui, claro! Mas foi muito interessante, assim, esse trabalho. A gente foi trabalhando, no período de 2000… porque eu trabalho muito com o Davi, Davi Alves, é um cara com quem eu trabalho muito, grande parceiro de trabalho meu. Então, desde sei lá, 2008, que a gente começou a trabalhar junto, que a gente vem realizando vários trabalhos juntos: Correspondência Poética, Curta Saraus, A Greve…
P/1 – Mas isso tem um nome, assim, é um coletivo ou vocês dois se juntam…
R – O coletivo… a gente tinha o coletivo Arte na Periferia, que era um pouco maior, só que aí por questões mesmo de ideologias de trabalho, a gente meio que se separou, aí a gente ficou meio como Correspondência Poética. A gente tem o coletivo Correspondência Poética, mas a gente trabalha vários tipos de trabalho, não necessariamente só aquela primeiro trabalho do Correspondência poética que era essa coisa de intervir com a caixinha, que além da caixinha também, a gente começou a fazer várias intervenções. As intervenções saíram dos pontos de ônibus, a gente começou a entrar nas comunidades e era uma coisa muito legal, principalmente, quando a gente ia dar oficina, a gente vai dar oficina, a gente não pega a caixa, monta a caixa e põe no ponto de ônibus. A gente monta os pergaminhos e entra nos becos e vielas, sai colocando poesia em baixo da porta, na caixinha do correio, atirando pela janela, é muito engraçado, porque a criançada se empolga, se empolga muito, a coisa de… eu lembro que no ano passado, a gente fez lá na Fábrica de Cultura do Capão Redondo, era em torno de 80, 90 crianças fazendo oficina com a gente. Quando a gente saiu para entregar, a gente foi junto com a Bicicloteca, tal, algumas pessoas, quando a gente saiu para entregar, o menino chegou, era na época em que estava tendo as manifestações, né, aí o menino chegou: “Nossa, tio, muito legal a nossa manifestação” (risos), não deixava de ser uma manifestação. Aí, era isso, coisa que ele podia fazer, qualquer outra pessoa podia fazer, mas por estarmos em 90 pessoas na rua jogando, entregando poesia para todo mundo, eu falava: “Você surpreende as pessoas com beleza, as pessoas ficam sem reação”, eu lembro que nessa mesma, tinha um menino que estava levando a Bicicloteca, que é um projeto do Binho, uma biblioteca na bicicleta, aí ele sai distribuindo, dando livros e o menino tinha 16 anos, uma coisa assim, aí estava passando a polícia, óbvio, Capão Redondo, 16 anos para a policia é B.O., menino ali, naquele negócio tinha alguma culpa, não sei porque, menino estava numa bicicleta com um monte de livros, aí eu cheguei nos menininhos menores e falei: “Entrega a poesia ali para a polícia”, porque a polícia estava passando toda ostensiva assim pra gente, falei: “Entrega a poesia ali para a polícia”, meu, foram uns dez assim, cercaram o carro de polícia: “Toma, poesia, poesia”, o policial fixou assim, sem reação. Cheguei no moleque que eles estavam olhando e falei: “Vai lá agora e dá um livro para eles”, ele foi lá, entregou o livro assim: “Olá, vocês querem um livro?”, policial saiu com acho que uns dez poemas e um livro na mão, assim (risos), o que estava olhando, o que estava dirigindo, não, mas o que estava do lado e a gente desarmou o policial, o policial que estava todo ostensivo ali, estava prestes a enquadrar um menino que estava numa bicicleta toda cheia de livros, gente! Essa é a verdade. A gente desarmou ele. Ele ficou sem reação, ele não sabia o que fazer, era beleza demais, ele não está acostumado com isso e aí, essas coisas assim, a gente vai diversificando, no Correspondência tem isso, tem desde fazer o negócio mais intimista, que é um sarau poético até sair na rua gritando, entregando poesia e agora, em 2014, agora, a gente diversificou ainda mais que foi montando, a gente montou, inclusive foi uma coisa ousada, a gente falou: “A gente precisa montar o primeiro festival de poesia da cidade de São Paulo”, cheguei para o Davi, a gente estava meio que pensando: “O que a gente faz agora?”, porque é isso, né, você faz uma atividade, você faz a intervenção, você termina de fazer, você enjoa de fazer, você quer fazer outra, você quer criar, você quer criar, a gente tem essa coisa da mente inquieta e também conseguir surpreender as pessoas, a surpresa aproxima também, a curiosidade chama, todo mundo quando tem curiosidade, vai querendo se aproximar para ver o que é. E aí, a gente falou: “Vamos fazer o primeiro festival de poesia da cidade de São Paulo”, porque tem festival de cinema, festival de curta metragem, no caso da cidade de São Paulo, festival de teatro da cidade de São Paulo, festival de… por que a poesia não tem um festival para ela? Por que a poesia que agora, atualmente, está sendo o carro-chefe desse movimento cultural periférico, está sendo a nossa “Primavera de Praga”, como diria o Sérgio Vaz, está sendo a nossa “Tropicália”, por que ela não tem esse espaço? Então, vamos criar um espaço para ela, é óbvio, se não tem, a gente cria, porque se não tem, é porque não criaram, simples assim. Então, a gente falou: “Vamos fazer”, a gente mandou para o VAI, conseguiu aprovar, aí depois do VAI, a gente fez várias parcerias, a gente quase pagou para trabalhar, para falar a verdade, no ano passado, para conseguir fazer esse festival e foi uma coisa linda, essa intervenção ali no Capão, a gente fez intervenção no Capão, São Luiz e Vila Nova Cachoeirinha, a gente fez uma feira livre de livros, a gente chamou vários autores para fazer uma feira como se fosse feira livre, mesmo, para venderem os seus livros, como se fosse uma feira livre, mesmo, mas com esse tema poesia e periférica, principalmente, ou marginal, nessa linha na contramão da literatura, sabe? E a gente fez o dia do festival, a gente fez um Ensaio Poético com o Sérgio, a gente fez um dia de festival que foi lindo, que eu queria um dia como aqueles festivais de música, sabe? Que quando aplaudia lá: “Agora Caetano” “Eeeeeee”, as pessoas gritavam, as pessoas aplaudiam, as pessoas estavam ali para aquilo e eu me surpreendi porque eu tinha essa vontade, a gente trabalhou pra caralho, mas quando chegou no dia, é óbvio, a gente está tão imerso ali no querer realizar, tal, tal, tal que a gente não tem noção, a gente, de vez em quando, perde a noção da proporção dos lugares que a gente chega e quando a gente chegou lá no Centro Cultural São Paulo, sala Adoniram Barbosa cabiam 600 e algumas pessoas, 640 pessoas era o limite, assim, e a gente falou: “Se chegar nas 400 está ótimo”, porra, chegou a mil pessoas, sabe, gente sentada no chão, gente em pé, e o primeiro prêmio tinha além do voto do júri, que a gente montou um júri com um puta de um respaldo, caso foi Sérgio Vaz, o Binho, a Rosa Falzoni, da Biblioteca de Poesia, a Raquel Trindade e o Marcelino Freire, esses cinco compunham a comissão julgadora, além dessa comissão julgadora, o primeiro prêmio era aclamação do público, as pessoas até me questionaram, as pessoas questionaram muito assim, essa nossa ousadia: “Primeiro Festival de Poesia da cidade de São Paulo?”, eu falava: “É, por que não? Você já viu um festival de poesia na cidade de São Paulo com esse nome? “Não.” Então, se não tem, eu posso fazer, posso criar, se eu não estou copiando de ninguém, se ninguém pode me cobrar judicialmente, eu posso fazer, não precisa ser a Secretaria de Cultura que tome essa iniciativa, a gente pode tomar e a Secretaria de Cultura abarca ou não, ou outras pessoas abarcam”, primeira coisa que vieram questionar a gente, a segunda: “Mas quem são vocês para julgar a poesia na cidade de São Paulo?”, eu falei: “Não, mas não é a gente, a gente montou uma comissão julgadora e a comissão julgadora, principalmente, nesse movimento literário, muito bem embasada, inclusive, foram os fomentadores desse movimento através dos saraus, então por que não?”, e outra coisa: “Aclamação do público?!?”, eu falei: “Amigo, para mim a arte tem que se comunicar, se ela não se comunica com o público, tem algo errado nela, ou ela está muito fora do tempo, muito aquém, que são raros, ou ela não cumpriu a sua função como arte. E como a sua função é difundir, a gente quer que essa arte se comunique com o público”, também questionaram muito a gente pela forma de inscrição, a gente por valorizar essa poesia oralizada da periferia, não só da periferia, se você for ver, todas as poesias periféricas, não dessa periferia só de São Paulo, mas ao longo do tempo, eram todas elas oralizadas, desde o trovador ao embolador, sabe, até agora, ao cordel, são poesias oralizadas que sim, podem ser escritas, mas ganham sua máxima beleza quando são faladas e aí, a gente falou: “Não, a gente quer essa poesia periférica dos tempos, não é essa poesia periférica só de agora, a gente quer isso”, então, para se inscrever, a pessoa tinha que gravar no mínimo um vídeo com no mínimo um áudio dela recitando ou de uma pessoa que fosse interpretar a poesia dela, recitando aquela poesia e aí, foi muito legal, que a gente fomentou uma produção de no mínimo, uns cem vídeo poemas no ano passado, se inscreveram 180, 140 foram habilitados a concorrer, porque tinham umas pessoas que mandavam uma musiquinha lá: “Isso é poesia”, falei assim: “Sem o violão, talvez fosse”, mas visivelmente era uma música, classificaria como uma música, era uma poesia cantada, não era uma coisa que era só a poesia e foi muito legal e desses 140 que se inscreveram, através do voto do público e da comissão julgadora, a gente selecionou 30 que foram apresentar nesse dia lá no Centro Cultural São Paulo, dia 22 de outubro de 2014. E aí, foi lindo assim. Quem ganhou foi o Akins Kinte e eu lembro que estava o Akins Kinte que mora nas quebradas aqui do centro, conhece tudo ali, é um menino que já vem trabalhando poesia há muito tempo, foi um dos primeiros a lançar um livro, lançou o “Punga” junto com a Elizandra, com um menino novo, lá do Grajaú, Márcio Ricardo o nome do menino, fez uma poesia maravilhosa, Brasil de A a Z, assim, que ele vai fazendo uma poesia com todas as letras do alfabeto, muito lindo, você vai ler escrito, claro, ela perde um pouco a força, mas quando você ouve, a palavra ganha alma ali, sabe, ela sai… se evidencia quando você recita o poema e era isso que a gente queria valorizar, não era só essa estética erudita, tal, da escrita poética, para a poesia com a palavra almada, a gente queria isso. Aí enfim, quando a gente anunciou: “Márcio Ricardo” “Aaaaaaaa”, foi abaixo assim, tipo, eu chorei, vou falar, eu chorei ali quietinho na minha porque eu não esperava aquilo, eu esperava 400 pessoas, foi mais que duas vezes isso daí, ver as pessoas no entorno, porque essa Adoniram Barbosa, ela tem dois pisos, em cima parecia uma arena, sabe? Era bem a imagem que eu tinha visto lá no começo, falei: “Quero a Tropicália da poesia”, e veio isso, veio o festival da poesia, veio o público interagindo com a poesia e era uma coisa que não era o sarau, no sarau também tem a euforia, tem um público, mas não era aquilo, era outra coisa, você via no espirito uma outra coisa. E esse foi o festival que a gente realizou no ano passado que…
P/1 – Vocês vão fazer mais?
R – Sim, esse ano, a gente vai fazer o Segundo Festival de Poesias da Cidade de São Paulo, com esse nome grandão assim (risos) e estamos planejando aí fazer outras coisas, inclusive, um dos resultados desse Festival de Poesias foi que a gente foi convidado para participar do Festival de Poesias de Londres. A gente não tem como ir (risos), esse é o drama de quem trabalha na periferia, também, com esse tipo de arte mais militante, mais voltado para o social. Essa falta de incentivo para essas possibilidades, essa falta de possibilidade até de viver disso. Fico até conversando com o Jonas: “Pô, Jonas, não dá para ir todos os dias que você me chama para ir no Museu, porque, quer queira, quer não, agora vou ser pai também, tenho que economizar grana, tem que fazer isso, tem que fazer aquilo, a situação está preta, com essa redução no orçamento da cultura, meu amigo, está foda mesmo”.
P/1 – E hoje você vive do quê?
R – Principalmente, dos projetos, assim.
P/1 – Você vai fazendo projetos e…
R – É, vou fazendo projetos e é isso, tem o Festival de Poesias agora, mandei um projeto para dar oficina literária nas bibliotecas, que enfim, é uma coisa que muito me interessa também, conseguir passar essa coisa do ziriguidum da poesia, além da estrutura, das formas, dos movimentos, essa particularidade, do construir poético. Fazendo isso, trabalho com audiovisual também, então, volta e meia, faço freela de câmera, de edição, enfim, então são coisas que eu faço, e agora, o meu grande objetivo esse ano, particular, é fazer o meu livro, fazer essa antologia de mim mesmo, porque não é um livro que tem uma… eu não tenho uma linguagem certa, como eu estava falando para o Jonas na hora que você desceu ali, eu escrevo desde sonetos… essa coisa assim, quando eu era menor, eu escrevia soneto, assim, tinha um que eu nem me lembro agora, é que eu nunca sei quando eu fiz as coisas, então… (pausa) aqui. Isso daqui é na época em que eu fazia estudos de soneto, de poesia metrificada, é assim:
“E se ele visse o verso do meu ser?
Tão adverso a tudo que já lhe disse
E se admirasse, risse
Ainda valeria me querer saber?
E se o não saber pleno não lhe abrisse
Nenhuma porta, não fizesse aceno
E se eu gritasse e você me seguisse
Ainda me olharia seu olhar heleno?
E se eu lhe parecesse assim, dubitável
Fogo fullgás a uma chama durável
Me desejaria chama ou sereno?
E se por ironia, eu lhe fosse afável, amável
Quem sabe, talvez, cadeno
Me amarias com viço ou veneno?”
P/1 – Bonito. Essa você fez desde quando você fazia soneto?
R – Essa daqui eu fiz, eu tinha 19 anos, dez anos atrás. Mas era um outro tipo de poesia, assim, eu gosto de ir brincando com essa coisa, gosto do poema imagético, fico brincando, tem poemas que eu faço por causa da imagem da palavra, não sei lá, porque… meio Manoel de Barros, de brincar assim, gosto bastante de um que chama “Paisagem”:
“Todas as janelas
São olhos da casa
Que olham a rua
As ruas, todas
São rios de gente
Passando entre as casas
Os automotores
Negociam espaço
E não podem parar
A nuvem, informe
Passeia sombra sobre a terra
O vento se desenrosca
Na alma das árvores
Um “ainda criança”
Bebe larga dose de Sol
Vira menino.
Há um grande coágulo azul no céu
Hoje até Deus é nobre”.
P/1 – Muito bom.
R – Enfim, brincadeiras assim, brincadeiras, é sério, mas é brincadeira, eu gosto de ir mudando, tato que essa coisa da ideia do livro, eu quero colocar o nome do livro “Coletivo”, por causa disso, que é o coletivo de vários estudos que eu fiz.
P/1 – Você continua estudando, assim, poesia?
R – Agora, eu resolvi entrar para a academia, depois de duas vezes que eu já tranquei, aí eu falei: “Não, agora eu vou continuar”, com essa coisa da paternidade, eu quero conseguir tirar esse estigma que eu tenho do meu pai, não posso herdar isso de ter várias ideias e não concluir, por mais que eu já conclui várias que tive. Aí, agora eu estou estudando Letras e eu continuo estudando poesia, enfim…
P/1 – Você está fazendo letras, agora?
R – Estou fazendo Letras.
P/1 – Onde?
R – Eu estou fazendo EAD na Uninove para falar a verdade, para não ter o problema que eu sempre tive na escola que era a presença, então, para não ter esse problema, vou estudar a distância, que enfim, é mais para ter um título mesmo, para essa coisa de trabalho, essas coisas, do que uma coisa mais formal mesmo, de querer me aprofundar, porque eu acabo estudando por conta do trabalho com Correspondência Poética, foi o que mais me fez me aprofundar em todas as linguagens que eu trabalho até hoje: o cinema e a poesia, principalmente, então é mais para ter o titulo, porque alguns lugares… essa coisa da paternidade recente…
P/1 – Você vai ser pai ou você já é pai?
R – Eu vou ser pai.
P/1 – Quando você vai ser pai?
R – Novembro.
P/1 – E aí, o quê que isso está significando para você, fora voltar a estudar, o que muda na sua vida?
R – Ah, precisa criar uma estrutura, é bem isso, essa imagem que eu tinha do meu pai, tal, na época, de não sustentar a casa, de não dar essa base para que a criança possa ter uma infância, mesmo, enfim, ao mesmo tempo foi legal, que eu já comecei a trabalhar, mas é isso, eu quero ter uma casa, não ter uma casa, mas quero que ele tenha uma casa, quero que ele não precise trabalhar aos oito anos, começar a trabalhar aos oito anos de idade, quero que ele tenha possibilidades de desenvolver essa infância. Eu acho que a vida meio que se volta para ele, quero concluir, eu quero ter um livro, sabe, eu quero ter essa faculdade, para quando ele nascer, ter também a possibilidade de ter trabalhos mais rentáveis, ou até mesmo que eu possa ter mais tempo para ficar com ele. Eu quero realizar logo os projetos, pra mim, a vida ganhou uma urgência maior, penso isso.
P/1 – E você está casado, então?
R – Estou. Segundo casamento (risos), que é com a Ane.
P/1 – E ela é poeta também?
R – Ela não faz muita poesia, não, já fez. Ela trabalhou com sarau durante um tempo, Sarau da Ademar, agora ela está trabalhando no CEU Paraisópolis, ela é coordenadora de cultura lá, coordenadora do núcleo de cultura, enfim, ela é voltada também para esse movimento, é uma pessoa que conhece bastante desse movimento também, e até fica mais fácil explicar para ela, porque fica difícil para eu falar… “Com o que você trabalha, Alisson?”, falo: “Trabalho com ideias, sou poeta, mas trabalho com ideias”, que é isso, a gente tem ideias: vamos fazer um festival, vamos fazer um filme, vamos fazer isso…, era isso, eu fazia mais pelo objetivo de fazer, e agora, com essa perspectiva de ser pai, eu estou pensando um pouco em juntar esse ó que eu quero fazer’ com ‘o que vai me dar de retorno’, não só o que eu posso dar para o mundo, mas o que eu posso receber, sobreviver no mundo com isso que eu estou dando, porque a arte é uma doação, mas a vida é cíclica, a gente dá, mas a gente precisa receber também e aí, eu estou cada vez mais pensando nisso, assim. E também estou com uma urgência de me transformar no melhor ser humano do mundo, porque precisa ser exemplo (risos), é verdade, né?
P/1 – Falando em ser humano, assim, exemplo, e a sua mãe? Onde que ela está?
R – Então, eu consegui cumprir a promessa que eu fiz quando era pequeno. (risos)
P/1 – Conseguiu?
R – Consegui.
P/1 – O que você fez?
R – Em 2000… foi 2000 e quando, meu Deus? Consegui dar a casa para ela (risos), foi um objetivo que eu tinha quando era pequeno. Engraçado, porque quando eu consegui dar a casa pra ela que ela me lembrou que eu tinha falado isso, que eu não lembrava mais, quando ela me lembrou, aí eu me lembrei que eu tinha dito, mesmo.
P/1 – Então, em que ano, você lembra? O quê que você fez?
R – Acho que foi 2007… não, foi mais ou foi menos, puta que pariu!
P/1 – Tudo bem!
R – Foi 2007, foi em 2007, por volta de 2007, isso. Que eu já tinha voltado para São Paulo, aí o meu pai… foi quando eu voltei a me aproximar do meu pai. Meu pai tinha descolado um terreno ilegal lá em Embu das Artes, na favela da Caixa D’água, que é uma favela que só tem alagoano, basicamente, me sinto em Alagoas quando eu chego lá e aí, eu consegui a grana pra gente construir a casa.
P/1 – Lá ou aqui?
R – Lá e, Embu das Artes.
P/1 – Mas a sua mãe não estava em Alagoas?
R – Ah, ela voltou. Ela ficou com saudades do meu pai, aqueles dois ali não se resolviam, que aí quando o meu pai ficou lá em Barueri, eu ia lá visitar ele, a única família que eu tinha perto, aí a gente meio que ficou próximo eu já tinha 16 anos, então, a gente já podia tomar uma cerveja junto, que facilitava, o álcool é um lubrificante social e aí eu saía com ele. Tinha um amigo dele chamado Arimateia que saía nós três para fazer tudo que é rolê. Ele chorava de saudade dela (risos), era uma coisa linda o amor que eles tinham e é uma coisa estranha o quanto eles não conseguiam ficar próximos, que quando era próximo, era um conflito, quando era distante era uma saudade. Próximo, conflito, distante, saudade. Eles não se resolviam assim. E ela veio de saudades dele.
P/1 – Então ela morou com ele?
R – Morou com ele lá em Barueri durante um tempo, aí quando ele estava lá em Barueri, quando ele descolou esse terreno em Embu das Artes, porque tinham os familiares da minha mãe que moravam lá em Embu das Artes, nessa favela lá, ele comprou. Eu lembro que na época foi 700 reais que ele comprou o terreno, era um terreno de cinco por 20, era não, é, era porque a minha mãe comprou um pouquinho mais depois para fazer a hortinha lá e na época foi quando eu estava indo para o Donde Miras e o meu pai no trabalho e aí quando eu voltei do Donde Miras, eu não tinha resolvido ainda a minha situação com essa galerinha, lá. E aí, quando eu consegui resolver isso que eu ganhei essa grana, aí mais as minhas irmãs, mas principalmente eu ganhei essa grana e investi na construção da casa dos meus pais e fiquei na pindaíba de novo, mas é verdade, eles estavam já rodando há muito tempo e a minha mãe já estava cansada um pouco disso. E aí, para mim era mais importante que ela tivesse uma casa do que eu pegar essa grana e transformar em projetos ou em cachaça, que é isso, você transforma em qualquer coisa e juntar essa grana e fazer uma casa ali foi, até se acontecer alguma coisa na minha vida já tenho até para onde ir (risos), a casa da mãe é sempre um porto, né?
P/1 – E aí, agora ela está lá?
R – Agora ela está morando lá, já falou mil vezes em vender a casa, mas não vende a casa porque quer queira, quer não, é um pedaço do meu pai que continua vivo ali, que fomos nós dois que construímos aquela casa, que aí depois que a gente comprou o terreno que eu consegui a grana, aí fui lá, peguei insolação e o caralho a quatro e a gente foi construindo a casa.
P/1 – Vocês dois que fizeram?
R – É. Eu fiz, construí, até subi as paredes, o resto ele finalizou sozinho. E aí, foi meio baseado nisso que voltou o nosso laço de pai e filho, eu ia visitar ele, a gente ia nos botecos, muita poesia surgiu daí, inclusive, depois de dois anos que o meu pai morreu, eu consegui fazer uma poesia para ele (risos).
P/1 – Ah é? Essa seria bom se você tiver aí, seria legal.
R – Coisa que só se lembra de celular. Porque um dia, essa poesia… é engraçado como vem as coisas na vida da gente, é sempre absurdo e aí, um dia nessas brigas do meu pai com a minha mãe, minha mãe ameaçou colocar ele pra fora, porque sei lá, ela descobriu alguma coisa dele com outra mulher, meu pai era foda, não tomava jeito e aí, ela já estava colocando as coisas dele dentro da caixa e uma coisa que o meu pai nunca fez era me ligar, eu atendo o telefone, é o meu pai me ligando (risos): “Alisson…”, e era isso mesmo, ele só dava amor com os olhos, porque as palavras eram… eu: “Quem é?” “Sou eu” “Quem? Eu quem?” “Sou eu”, aí ele falou “Sou eu” duas vezes, pelo tom da voz, eu falei: “Pai?”, ele: “É” “O que você quer?” “Sua mãe está querendo me colocar pra fora da nossa casa”, a casa já não era dele, era nossa, porque a gente tinha construído (risos), mas para mim, a casa era deles, para ele, era nossa. Aí enfim, ele chamou, eu falei: “mas como assim pai?” “Ela está jogando as minhas roupas aqui fora” (risos), mas ele não falou: “Vem aqui, vem falar com a sua mãe”, não, “Espera aí que eu estou indo ai”, aí eu fui, na época, eu era casado com a Kátia ainda e aí, fomos eu e a Kátia lá, ficou a Kátia conversando com a minha mãe e eu conversar com o meu pai. Aí, cheguei lá, primeiro que a única vez que eu gritei com os meus pais foi naquele dia, que eles não conseguiram falar, me explicar qual a situação que estava acontecendo, gritei com eles: “Caralho, cala a boca, estão parecendo duas crianças”, parecia mesmo, pareciam duas crianças. Aí eu tratei eles como criança, coloquei cada um no seu lugar e: “Me fala. Agora espera aí, fala você”, aí eles falaram, aí a Kátia ficou conversando com a minha mãe e eu fui conversar com o meu pai. Aí estava lá conversando com o meu pai, dando a maior comida de rabo nele porque ele que estava errado, ele sabia disso e aí, ele olhando assim pra cima e eu: “Pá, pá, pá…”, falando, falando e falando, de repente, ele me corta assim: “Flor bonita da porra”, eu olhei assim pra ele, olhei para trás, um ipê amarelo maravilhoso (risos), tipo, olhei assim, ‘não tem jeito, eu vou amansar, mas…’, que bom que eu consegui resolver a situação para eles, que dali a um tempo, enfim, ela morre de saudades dele até hoje. Dia 13 agora foi… era para ser aniversário dele, ela me liga chorando: “Seu pai…”, tal… e o nome do poema é “Ipê para Paulo":
“Ipê para Paulo era:
Flor bonita da porra!
Era meu pai
De pouco carinho
E muita piada
Proseador de frases prontas,
marinada na sabedoria do povo.
Ele, bêbado de sorrisos
Tinha histórias calejadas nas mãos,
talhadas no rosto
Histórias de frustrações e felicidades
Ele, adivinhador de chuva
Emprenhador de terra
Face para mil apelidos
“Manga-rosa, coloral, veinho”
Mais conhecido que moeda de um real
Fazedor de amizades
Ignorante de desavenças
Palmeirense VERDE
Quase jogou no Criciúma
não fosse a marvada vida
Na dor sabia o silêncio
Lágrimas sua só na saudade
Fez mil planos
Abandonou mil vezes
Porque o que ele mais queria
Era ser feliz.”
Essa é a do Paulo. Era engraçado, ele tinha essa coisa assim, em Alagoas, vários apelidos assim e uma coisa que a Paula herdou dele é muito conhecido, muito popular. Então ele passava, eu lembro que quando eu estudava ainda no Marco Maciel, ele tinha uma bicicleta, bicicleta antiga com um bagageiro de ferro e aí, eu ia no bagageiro da bicicleta, ele quase que andava com uma mão só, porque ele: “Oi… eh, Manga Rosa, e aí, fulano…”, vários apelidos porque ele era branquinho, andava no sol o tempo todo e só descascava, isso aqui dele era tudo descascado, ele andava acenando para todo mundo, a gente sempre chegava atrasado, porque ele sempre dava uma paradinha no boteco (risos), eu adorava porque ele sempre tinha uma frase pronta para falar: “Cada uma aqui dá dez”, inclusive essa: “Mais conhecido do que nota de um real”, eu coloquei moeda porque não existe mais nota de um real e aí, essa várias frases, essa coisa, essa simpatia, essa alegria era uma coisa muito forte nele. Em todo lugar que a gente chegava, ele era respeitado, tirando essa briga na época de cobrador, nunca teve nenhuma desavença, todo mundo respeitava ele, ele era sonhador, tinha essa coisa.
P/1 – Alisson, falando em sonho, qual que é o seu maior sonho?
R – Agora? O meu maior sonho agora é ser um bom pai, fazer o meu livro, meu sonho é tudo de agora, não tenho um sonho que vai transportar para frente. Quer ser… fico imaginando o meu provável Benjamim, que a mulher não deu certeza, falou que provavelmente, vai ser menino e se for menino, vai ser Benjamim e se for menina, vai ser Açucena, mas o provável Benjamim, eu quero ser o melhor pai que eu puder ser para ele, eu quero… sei lá, eu quero que ele lembre de mim como exemplo de coisas que não deveria se fazer, como muitas vezes eu lembro do meu pai. Quero poder fazer a minha poesia tranquilo. Eu quero poder desenvolver o audiovisual também. Quero ter a minha casa, poder fazer esses trabalhos, poder ser um pai, poder cuidar da minha mãe, ainda, que está sozinha agora. Enfim, um sonho… assim, sonho, sonho megalomaníaco é só conhecer o mundo (risos), o resto… ah, nem contei da viagem, né? (risos) Que uma vez eu fiz uma viagem inspirado no Donde Miras, você falou de sonho, até lembrei disso daí. Em começo de 2012, meu pai tinha sofrido o acidente, eu estava me separando da Kátia e tal, e aí, eu resolvi fazer uma viagem com o Davi, que o Donde Miras tinha esse sonho de conhecer a América Latina, a gente falou bem assim: “Já que não consegue todo mundo, já que não consegue ir a pé, vamos nós dois de carro”, e a gente, na época, conseguiu um trabalho com o pessoal da Rede Solidária, tal, na rede de economia solidária e a gente foi fazer um vídeo para eles, a gente montou o vídeo, eles pagaram bem pra caramba pra gente fazer a edição, a gente engrossou o caldo da edição, porque era pós, então a gente falava assim: “A gente vai editando no meio do caminho. A gente pega e vai editando, vai recebendo isso daqui, sobe, manda para eles e vamos”, a gente pegou o carro dia 5 de janeiro de 2011 ou foi 2012? Foi 2011, que era uma data bem simbólica quando a gente saiu para fazer a primeira caminhada, a gente desceu todo litoral sul do Brasil, pegou todo o litoral do Uruguai, aí chegou em Buenos Aires, a gente subiu para Rosário, Córdoba, Mendonza, aí atravessou para Santiago, isso grosseiramente falando, atravessou para Santiago, de Santiago, a gente foi para Valparaiso, Valparaiso, a gente subiu para Coquinho que é onde tem um observatório de estrelas, o lugar em que eu vi mais estrelas na minha vida, de lá, a gente voltou para Argentina pelo Vale de Elqui e chegamos a 5.200 metros de altitude, primeira vez que eu vi uma geleira de verdade em pleno verão, era uma coisa intensa, você via água em todos os estados: água sólida, líquida, gasosa, o sol era denso, o vento era frio pra cacete, a gente mascando coca, a gente desceu, tal, aí voltou ali por cima, subiu para o norte da Argentina, até Jujuy, Quebrada de Hamahuaca, aí depois a gente desceu de novo ali, foi para Formosa, teoricamente, o lugar mais feio da Argentina, passamos pelo Aquífero Guarani, ali, caímos em Corrientes lá no Paraguai, aí de lá, a gente foi para Asunción, a gente voltou de novo e voltou para o Brasil. Essa daí foi uma das melhores aventuras que eu fiz na minha vida, a gente passou 60 dias viajando e dessa viagem, muitas coisas, né? Pessoas no meio do caminho, histórias, casas mal assombradas, carro quebrado, as coincidências da vida. A gente quebrou o carro, a gente estava com um Peugeot um ponto zero, a gente subiu e desceu a Cordilheira duas vezes (risos), a primeira vez assim, era asfalto de boa, Mendonza–Santiago, de boa, qualquer um faz, aí na volta, pelo Vale de Elqui eram cinco quilômetros de estrada pedregosa, sabe? A gente subindo, subindo, pedra, pedra, o carro esquentou duas vezes no meio do caminho e o Peugeot tinha esse problema de esquentar, no meio assim, tinha um lago gelado pra caralho, a gente pegou, o carro esquentou, a gente olhou o lago, olhou o carro (risos), pegou a bacia, ficou jogando água no motor do carro (risos), só depois que a gente foi descobrir que não podia, porque isso daí trinca a borracha, mas mesma assim, a gente subiu, aí quando chegou lá, aquele negócio, a gente viu aquele filetinho de água escorrendo, aí quando chegou lá embaixo, aquele filetinho filho da puta de água virou uma puta de uma areia movediça lá embaixo, quando a gente chegou tinha uma… aqueles carros que a polícia andava antigamente, que era o… sei lá…
P/1 – Brasília.
R – Não, não, não. Esses quatro por quatro, assim, é um carro quatro por quatro… Mercedes, um Mercedes quatro por quatro, tipo, atolada e a gente com um Peugeotzinho um ponto zero, a gente falou: “Como que a gente vai passar essa porra?”, aí atrás da gente tinha um casal de velhinhos, uns anjos que tinham comida, tinham cerveja (risos) e aí, deram comida pra gente, deram cerveja e a gente olhou assim, foi analisando, até que a gente desceu num ponto, a gente viu que tinha um ponto que dava para atravessar a pé, o negócio vinha aqui, assim, literalmente, você pisava, aquela areia, negócio pedregoso, aquela água passando bem de levinho, era areia movediça, bicho, se eu pisasse e ficasse ali… claro, vinha aqui, aqui, aqui, você tinha que fechar o olho e ir e aí, o que a gente fez? A gente primeiro ajudou a desatolar a Mercedes, amarrou a corda meio que sendo puxado pela correntezinha, a gente amarrou, aí o cara que estava com o quatro por quatro, também o casal de velhinhos, a gente puxou, eles dando ré lá e a gente puxando aqui, aí conseguimos tirar, aí éramos três carros em apuros, era um outro casal também que estava lá e aí, eu e o Davi, dois moleques, o casal de velhinhos e um outro casal lá, puta que o pariu, vamos lá, o casal de velhinhos… a gente estava com bagagem para 60 dias, mais o nosso equipamento e tudo mais, a gente pegou tudo, jogou no carro do casal de velhinhos, aí primeiro foi o casal de velhinhos, conseguiu passar, depois foi a Mercedes, conseguiu passar, aí foi só o Davi lá no carro, o carro era preto, o carro ficou cor de lama, assim, foi isso, jogou a primeira, fechou o olho e acelerou e não podia tirar o pé do acelerador, uma coisa que a gente descobriu com esse casal de velhinhos, se você for remando, ele não afunda, então aparte do carro de trás tesava prestes a afundar, a gente estava andando só com a frente, tração dianteira, saiu remando assim, não afundou, conseguiu passar. Eu tenho uma foto desse carro depois. O carro ficou coberto, você não via placa, você não via nada. Aí depois, a gente teve que parar para comer, todo mundo, porque não podia atravessar com comida na fronteira e foi uma aventura assim. A gente saiu era coisa de oito horas da manhã, foi chegar oito horas da noite, um trecho de 100 quilômetros e eu ficava refletindo: “Como é que essas pessoas conseguiam viver lá?”, tinha uma mulher que eu tirei uma foto muito linda dela, eu até coloquei o nome da foto: la niña sola, porque só ela e a Cordilheira inteira, descalça naquele negócio, eu não conseguia dar três passos, pensei: “Ela tem pé de bode, não é possível”, as pessoas que moravam lá, quando a gente chegou em Jujuy, essa cultura pré-Cordilheira indígena, maravilhosa, a quebrada lá, de correntes, a malandragem como é que era, foi lindo. Essa viagem foi mágica. Meu sonho? É fazer isso no mundo inteiro, talvez, talvez quando o meu burguelinho tiver maior, a gente vai junto.
P/2 – E teve algum sonho dormido que te marcou muito?
R – Sonho dormido? Engraçado. Esse sonho… quando eu tinha 18 anos, eu sonhei que eu ia ser pai. Teve alguns sonhos assim, teve dois sonhos, que eu falei do filho agora, eu sempre acreditei que eu ia ser pai de um menino, quando eu tive esse sonho aos 18 anos, porque eu sonhei e parecia muito real e engraçado essa coincidência de talvez ser um menino, mesmo e eu nunca quis ser pai, até conhecer a Ane, isso é um fato (risos), não queria, não era… não acreditei que eu ia ser pai, ser pai de um menino… teve um sonho assim, dessa coisa de vida, que fez eu mudar um pouco o meu comportamento também, que eu era uma pessoa um pouco medrosa da vida, eu ia, mas… a minha coragem era fechar o olho e ir, sabe? Não ia de olho aberto, ia de olho fechado na vida e eu tinha um sonho, essas coisas espirituais, tenho muita essa coisa com espiritualidade, eu acreditava mesmo que eu via coisas e era real, para mim era bem real aquilo que eu via, não era loucura ou medo, lucidez, sei lá, eu via e via mesmo.
P/2 – O que você via?
R – Via coisas assim, tipo pessoas, coisas, eu via. Uma vez, um moleque lá, a gente foi morar no Aracati, porque o meu pai descolou uma chácara pra gente tomar conta e se livrar do aluguel durante um tempo, ele ia trabalhar a terra lá naquela chácara e aí, eu levei um amigo meu, o Alexandre, a gente era do mesmo grupo de desenho, a gente fazia desenho e aí, ele tinha essa coisa meio espiritual e ele resolveu um dia, acender uma vela lá, verdade, ele acendeu uma vela lá, eu fui junto com ele, eu nunca fui… eu não tenho religião, nunca tive e aí, ele estava lá acendendo a vela, olhando assim, meio que assobiando, quando eu olho assim para ele, um eremita atrás dele e eu fiquei olhando, não foi um negócio que eu vi, pisquei o olho e sumiu, fiquei olhando, olhando, olhando e era atrás dele, está ligado, e aí enfim, eu desviei o olhar assim, depois de olhar bastante tempo, até ter certeza do que eu estava vendo era verdade, mesmo, então no mínimo, não sei se era verdade, se era real, se era palpável, não fui tocar, mas que eu fiquei vendo por alguns vários segundos…
P/2 – E ele te olhava também?
R – Não, ele estava que nem… o Alexandre estava sentado assim, ele estava em pé, só, atrás do Alexandre. Aí, enfim… teve uma época que eu fiquei com um pouco de medo disso daí, de ver essas coisas e de sonhar, sonhava, tinha muito pesadelo. Aí, uma vez eu sonhei, inclusive era como se fosse um personagem dos desenhos meus, era um cara com um capuz assim, coberto, não era eremita, era uma coisa mais ou menos parecida, um capuz verde musgo, que eu não conseguia ver assim, o rosto por completo, mas um rosto andrógeno, não falava se era homem ou se era mulher, não dava para ver. Era louco porque ele balançava, meio que parecia uma folha, o movimento dele, e tinha uma coisa como se fosse uns zumbis assim, sabe? Que iam chegando, era um lugar escuro, completamente escuro, não tinha cenário, tinha uma luz em cima dele como se fosse um teatro e esses zumbis, eles iam como se fossem atacar e ele escapava do ataque, ele colocava a mão no peito e o zumbi voltava a ser humano. Era louco, ele saía fazendo uma sequência de movimentos e tocava assim no peito e ia transformando todos os zumbis em humanos, assim e aí, sei lá, depois disso, aprendi a olhar na… acordei com essa coragem de olhar, por mais feia que fosse a coisa, eu olhava e falava: “Tem algo bom dentro de você ou dentro de mim que eu posso te passar”, eu meio que me inspirei um pouco nesse personagem, nesse sonho. Esse sonho me marcou.
P/1 – Alisson, pra finalizar nossa entrevista, eu queria que você falasse assim, se você sentiu ou se te despertou alguma coisa de especial contar toda a sua vida de novo, te trouxe algum sentimento? O quê que…
R – Trouxe uma saudade da porra do meu pai, eu quase chorei quando estava falando dele, eu não consegui falar direito, mas traz essa coisa da perspectiva, sei lá, o que era aquele moleque lá em Alagoas tomando banho na bacia, que era aquele moleque alegre com hot dog, que era aquele moleque alegre aqui em São Paulo falando: “Não, agora não vou deixar que fiquem me batendo mais”, que foi descobrir a Trópis, traz essa coisa, a gente vai criando a consciência de que com o tempo, a gente vai se dando estruturas, né? Claro, a gente também só fala as coisas boas, né, seria bom a gente fazer (risos) uma avaliação mais profunda, claro, mas sei lá, traz uma consciência maior do nosso processo de vida, me trouxe essa sensação de que eu estou bem (risos), de onde eu vim, eu estou bem pra caralho (risos). Verdade. Vamos aí…
P/1 – Obrigada.
R – Nada, obrigada você.
FINAL DA ENTREVISTA
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