P/1 – Qual é seu nome, local e data de nascimento?
R – Jorge da Cunha Lima. Eu nasci em São Paulo, em 14 de Outubro de 1931.
P/1 – Seus pais são de São Paulo?
R – Meus pais são de São Paulo. Toda família é de São Paulo, eu nasci no Hospital Santa Rita, ali no planalto da cidade.
P/1 – Você sabe a origem dos seus avós? O que eles trabalhavam, o que eles faziam?
R – Eu tenho diversas origens. Meu avô paterno, que é o Cunha Lima, era... Todos vêm de origem de fazenda ou negócio de café. Esse meu avô trabalhou no banco comercial, mas sempre viviam... Foi muito interessante essa história, porque o meu avô paterno queria casar com a filha de um fazendeiro de São Carlos. Lá eles tinham uma fazenda chamada Palmares, com três filhas solteiras: Georgina, Lídia e Clarisse. O meu avô era apaixonado pela Georgina e era comissário de café. Um homem bonito, era um partido – digamos aceitável – por quem vivia em fazenda. Elas viviam em fazenda, tocavam piano, sei lá. O meu avô foi pedir em casamento a Georgina e o meu bisavô falou: “Não, aqui se casa com a mais velha. Enquanto a mais velha não casar, não vai ter casamento da Georgina.” O meu avô acabou casando com a Lídia, que era a mais velha, e as outras duas irmãs ficaram solteironas. A Georgina acabou vivendo em São Carlos, em um sobradão que ela herdou. A Lídia morou em São Paulo e no fim da vida – para mim, que era criança, era o fim da vida, eles deviam ter seus quarenta anos e eu achava eles velhíssimos – todos vieram morar com meu avô Lima em São Paulo, na casa dele. Ele foi, a vida inteira, um homem triste e taciturno. Ele entrava em casa, quando voltava do banco, atravessava a casa... Todas o respeitavam muito, mas eu tenho a impressão de que ele nunca mais teve o que eu chamava de alegria. Um homem mal humorado, duro, enérgico. Cheio de princípios, eu me lembro. A Georgina, a Lídia e a...
Continuar leituraP/1 – Qual é seu nome, local e data de nascimento?
R – Jorge da Cunha Lima. Eu nasci em São Paulo, em 14 de Outubro de 1931.
P/1 – Seus pais são de São Paulo?
R – Meus pais são de São Paulo. Toda família é de São Paulo, eu nasci no Hospital Santa Rita, ali no planalto da cidade.
P/1 – Você sabe a origem dos seus avós? O que eles trabalhavam, o que eles faziam?
R – Eu tenho diversas origens. Meu avô paterno, que é o Cunha Lima, era... Todos vêm de origem de fazenda ou negócio de café. Esse meu avô trabalhou no banco comercial, mas sempre viviam... Foi muito interessante essa história, porque o meu avô paterno queria casar com a filha de um fazendeiro de São Carlos. Lá eles tinham uma fazenda chamada Palmares, com três filhas solteiras: Georgina, Lídia e Clarisse. O meu avô era apaixonado pela Georgina e era comissário de café. Um homem bonito, era um partido – digamos aceitável – por quem vivia em fazenda. Elas viviam em fazenda, tocavam piano, sei lá. O meu avô foi pedir em casamento a Georgina e o meu bisavô falou: “Não, aqui se casa com a mais velha. Enquanto a mais velha não casar, não vai ter casamento da Georgina.” O meu avô acabou casando com a Lídia, que era a mais velha, e as outras duas irmãs ficaram solteironas. A Georgina acabou vivendo em São Carlos, em um sobradão que ela herdou. A Lídia morou em São Paulo e no fim da vida – para mim, que era criança, era o fim da vida, eles deviam ter seus quarenta anos e eu achava eles velhíssimos – todos vieram morar com meu avô Lima em São Paulo, na casa dele. Ele foi, a vida inteira, um homem triste e taciturno. Ele entrava em casa, quando voltava do banco, atravessava a casa... Todas o respeitavam muito, mas eu tenho a impressão de que ele nunca mais teve o que eu chamava de alegria. Um homem mal humorado, duro, enérgico. Cheio de princípios, eu me lembro. A Georgina, a Lídia e a Clarisse viviam lá, a meu ver, como crianças. Eu me lembro que era pequenininho e ia lá, e elas me convidavam para tomar chá num quarto no fundo da parte térrea da casa. Tomavam chá em ‘xicrinhas’ de porcelana de brinquedo, de boneca. Eu era a única criança nesse chá, mas elas todas tomavam. Minha avó, com aquela idade, ainda aprendia piano, porque aprender piano e ter uma professora de piano era uma coisa normal na vida. Na fazenda tinha e em São Paulo continua a ter. Só que ela não tocava piano na frente dos outros, então me lembro que eu chegava da escola e olhava pela janela da sala principal, onde ela tocava piano, pulava a janela e ficava ouvindo. Tenho certeza de que ela sabia que eu estava ali, mas fingia que eu não estava. Depois dela tocar bastante, falava: “Ah, ratinho. Você está aí escondido.” Era uma cumplicidade, uma mentira, mas quis fazer. Nessa époc a a música começou a ficar importante pra mim, porque ela tocava Liszt, Beethoven e Gymnopédies, do Erik Satie. A Suite bergamasque, as Rapsódias húngaras e o Erik Satie ficaram gravados na minha cabeça como músicas importantes. Era uma coisa caipiramente proustiana elas tomando café ali. Ela era descendente de William Whitaker, que era um aventureiro inglês que veio para o Brasil com negócios de café e tinha um ou dois navios, trazia coisas e vendia. Acabou em Santos e sendo vice-cônsul ou cônsul da Inglaterra honorário em Santos, porque ele que trazia coisas e depois vendia café. Esse homem, que eu acho que era um ilustre oportunista, casou com uma Ângela Costa Aguiar, que era uma bisavó ou tataravó de uma família brasileira antiga. Esse William criou duas descendências: os Whitakers que são os meus, e depois os Whitakers que são do banco, que eram descendentes de uma – eu acho – escrava da fazenda. Os Whitakers que ficaram importantes foram os bastardos, que eram os do Zé Maria Whitaker, que era banqueiro, aqueles todinhos. Por ironia, meu tio acabou até trabalhando no banco do tio bastardo, do primo bastardo. Houve dois ramos desses Whitakers e hoje, depois de tantos anos, ficamos todos íntimos, amigos e primos. Agora na geração...
P/1 – A casa que morava você, seu pai e sua mãe... Em que bairro que ficava?
R – Era na Aclimação a casa do meu avô, onde teve tudo isso. O meu avô era super pão duro e o meu pai, apesar de engenheiro... Meu avô nunca dava grana. Morávamos também na Aclimação, mas numa casa bem mais modesta porque não saía grana daquele pedaço. Meu pai era engenheiro, era funcionário, e nós morávamos na Aclimação.
P/1 – Funcionário público?
R – Ele era engenheiro. Naquela época, os funcionários públicos como ele – que foi diretor de estrada e tudo – eram pessoas altamente respeitáveis. Era um bairro de juízes, médicos, funcionários e começando a ter japoneses. Moravam alguns milionários também, árabes, ou então os Kowarick. O avô do Lúcio Kowarick tinha uma casa que tinha 26 mil metros quadrados e um castelo feito com projeto austríaco. Engraçado que o Lúcio depois ficou grande, socialista e foi preso pela revolução. Eles tinham cachorros galgos, carros Tartra importados da Suécia... Como tinham poço artesiano, que era uma coisa que não existia, e faltava água no bairro, eles davam água pra todo mundo. A Aclimação era um bairro da classe média alta, mas respeitabilíssimos profissionais, no tempo que o Brasil tinha uma classe média em que as pessoas iam na cidade, as senhoras, a minha avó, de chapeuzinho e luva – e de ônibus – e iam tomar chá na casa alemã ou no Mappin. Como dizia o Antônio Candido, o Centro era o espaço de mediação entre a aristocracia e a classe média. Antes de haver a invasão da Rua Direita, de tudo isso até a guerra, o Centro era o grande espaço de mediação dessas classes sociais. Eu falo dessa parte paterna porque, nesse sentido, minha avó foi mais importante que o meu avô. Meu avô curtiu o mau humor dele, era pão duro... Eu me lembro quando o irmão mais moço do meu pai morreu de câncer, eu era criança e achei que eu tinha que ir muito bem arrumado pro enterro, me arrumei todo elegante, botei perfume, fui lá e tal. O meu avô, que estava passeando no quintal da casa dele, uma casa grande, passou perto de mim e falou: “Homem não usa perfume!” Foi a única coisa que eu me lembro do enterro, a bronca que eu tomei de estar todo perfumado para o funeral. A Aclimação tem uma coisa muito importante: tinha uma escola chamada Macedo Vieira. Era um curso primário de uma Dona Antonieta, que era filha de um juiz ilustre chamado Macedo Vieira, que fez uma escola. Essa escola era um curso primário e eu tenho uma ideia que é a seguinte: a grande lembrança do homem é a escola primária.
P/1 – Com quantos anos você entrou na escola?
R – A escola primária a gente entra com seis anos, sete anos. Eu me lembro do nome das professoras: dona Cristina, dona Sóstenes, dona Antonieta e dona Nívea. Nunca mais eu me lembrei do nome de todos os meus professores do ginásio e da faculdade, mas elas não. Eu me lembro da cara, do que elas ensinavam, eu me lembro do jeito exato, de quem tinha olho azul, quem tinha olho castanho, era uma coisa absolutamente inesquecível.
P/1 – Era uma escola estadual?
R – Era uma escola privada, particular, de altíssimo nível, em que a diretora era a coisa mais rigorosa no mundo. Nessa escola começou a minha interminável carreira de orador.
P/1 – Você ia como para a escola?
R – Nós íamos a pé, sozinhos. Não tinha o menor problema em ir pra escola a pé, nada disso. A única coisa que acontecia era que quando chovia a gente só podia sair da escola quando alguma empregada ou alguém vinha pegar e trazia um guarda-chuva. Eu me lembro que um dia estava chovendo, e no meio da aula alguém entregou alguma coisa para a professora e ela me deu um guarda-chuva. Foi a minha primeira sensação de liberdade, eu falei: “Puxa, agora eu vou sair da escola quando eu quiser.” Um dos ápices mais relevantes da minha vida foi quando eu ganhei esse guarda-chuva, foi o símbolo da minha autonomia, meu habeas corpus. Aconteceram duas coisas importantes. Uma coisa foi esse guarda-chuva, a outra coisa eu não me lembro se foi no segundo ou terceiro ano, estava com oito ou dez anos… Nós estávamos na guerra, que para nós era a BBC… Meu pai era fanático pela BBC, meu avô paterno, todo mundo era fanático pela BBC. Um dia resolveram fazer uma campanha na escola e nós tínhamos que catar lata na rua para que o exército pudesse reunir e mandar para a guerra pra fazer canhão. Nós saíamos para a rua e catávamos latinha de tudo quanto era jeito que tinha. Naquela época não tinha tanta lata de cerveja porque era no vidro, mas a gente achava sobretudo lata de azeite, que era para esforço de guerra. Um dia foi um capitão muito importante na escola, fizemos uma montanha de lata e eu fui convidado para fazer o discurso. Eu lembro que fiz meu primeiro discurso e nunca mais parei de falar na vida. A coisa onde eu sou mais bem sucedido do que na literatura é em discurso. Eu fiquei um imbatível orador de festas, casamentos, funerais e depois na política fiz muito discurso. Tenho uma boa facilidade de falar para auditório, eu me comunico facilmente. Foi nessa lataria que eu virei orador. Eu sou mais bem sucedido como orador do que como poeta, do que como escritor e até do que jornalista, eu acho que onde tem mais reconhecimento é essa coisa do fazedor de discurso. A escola primária foi essa coisa. Da parte da minha mãe, ela era filha de um visionário que era engenheiro agrimensor. Meu pai também era engenheiro, todo mundo era engenheiro. Meu avô era um homem da Paraíba que também chamava Lima, mas era Neiva de Lima. Era sensacional porque ele projetava submarinos. Ele inventou o teodolito, esse negócio de medir, porque ele era agrimensor. O submarino dele era um que saía e voava, era submarino-avião. Ele vivia com essas plantas, tudo isso... Era completo visionário, arranjou terras que nunca realizou, mas para fazer uma fábrica de cimento, que anos depois as jazidas foram compradas pela Camargo Corrêa, era um homem muito ativo. Só que, no meio do caminho, um ano antes de eu nascer, a minha avó, com quarenta anos, morreu. Ele perdeu completamente o pique: o grande inventor, o grande criador não resistiu à morte da mulher. Daí a família eram quatro mulheres e um homem. Mulheres incríveis, lutadoras. Minha mãe era muito bonita, uma sinhá moça, que viveu até noventa e quatro anos e que quando fez noventa anos, na festa dela ela trocou de vestido. Ela usou um vestido até meia noite, e para dançar a valsa ela subiu no quarto, trocou de vestido e veio com outro. Era uma sinhá moça. A outra tia, é genial... Eles empobreceram, porque com meu avô perdendo o pique saíram de um ‘Fausto’ para uma vida mais dura. Minha mãe casou logo, uma tia minha casou… É muito interessante essa história, ela casou com um fulano que era funcionário do Banco do Estado, que era uma coisa importante, mas ele era bêbado. Ela passou a vida inteira negando que ele fosse bêbado e fazendo de tudo pra que ninguém percebesse. Deu um duro na vida, fazia doce para esconder que ele era bêbado e para criar o filho. Tudo isso foi um exemplo na minha vida, sensacional. Além do mais, dos doces que ela fazia, ela fazia uma coisa que era uma bala de café. Antes de ela morrer eu fiz uma poesia muito bonita sobre a bala de café dela, que é a vida dela.
P/1 – Lembra da poesia?
R – De cor, não. É uma das poesias bonitas que eu acho que perdi num computador, onde sumiram todas minhas poesias de um período e essa também. Essa minha tia marcou a minha vida.
P/1 – Você era a única criança desse ambiente? Tinha irmãos?
R – Eu tinha um irmão. Nós éramos muito diferentes: eu era orador, ele era briguento. Ele era o machão da casa, brigava com todo mundo na escola. Ele foi para a escola pública, eu fui para o São Bento. Ele foi para a Politécnica, eu fui fazer Direito. Toda a nossa vida foi... Mas fomos irmãos muito próximos, sempre, nessa completa contradição. Eu sempre penso no que o Rilke diz, o seguinte: “Criar é lembrar-se profundamente.” Essa ideia ficou na minha vida, que lembrar é uma forma mais profunda de criar. Lembrar, a gente não lembra; a gente faz literatura com a memória. É muito difícil ser objetivo nisso tudo que eu estou contando, estou contando a visão poética que você tem da vida, a memória…
P/1 – Você lembra da professora? O que mais te marcou: alguma professora, alguma cena especial?
R – O que marcou muito foi a dignidade, a categoria literária da professora que chamava Sóstenes. Eu achava esse nome maravilhoso! Eu não sabia se ela era grega, de onde que tinha vindo aquela coisa... Você imagina uma pessoa chamar Sóstenes? Ter os olhos azuis no meio da mulatada que somos nós, foi uma coisa fantástica. Isso me lembrou uma coisa que parecia, para os meus modestos preconceitos, uma qualificação extraordinária. A escola era uma...
P/1 – No São Bento?
R – Isso era ainda o primário. No São Bento, marcante foi que a gente fazia exame de admissão. Eu tinha um colega no curso primário, um italiano de cabelo amarelo, eu e ele fomos nos padres para fazer a nossa iniciação no curso de admissão. Entro eu – era magrinho, com uma calça curta, uma perninha fina; super bonitinho, mas muito magrinho – e esse meu amigo loiro, do cabelinho, todo despachado. Quando entramos na admissão foi aquele desastre, um cara caiu na gargalhada e falou: “Olha a Olívia Palito e o Pimpinela Escarlate.” Era perfeito, eu com aquela perninha fina e aquela carinha, e o outro amarelinho feito trigo, um milho. Eu fiquei puto, falei: “Porra, aqui a gente tem que se defender porque não é mais brincadeira. Não sou mais o herói, o orador, virei a Olívia Palito.” Antes de ir para o São Bento foi muito engraçado. A minha família toda nunca parece a idade que tem, e a minha mãe queria matricular eu e meu irmão no São Luís, que era um colégio muito bom dos jesuítas. Ela foi com chapéu de palha, como se usava, chegou no São Luís, foi nos matricular. O padre falou: “Moça, eu não tenho tempo para brincadeira. Quando a senhora casar e crescer a senhora vem aqui matricular seus filhos.” Ela ficou ofendidíssima, bravíssima. O padre não reconheceu a sua condição de mulher casada porque ela era muito mocinha, muito bonita. O padre jesuíta despachou e fomos para o São Bento, um dos períodos mais fantásticos da minha vida. No primário era o espaço da descoberta até do amor. Tinha uma colega que era linda, Maria Sílvia, e no dia da primeira comunhão o colégio levava todo mundo, era soleníssimo... A gente ia de azul marinho, uma coisa assim [gesto] no braço. Íamos todos para a primeira comunhão e as meninas iam vestidas como noivas. Essa Maria Silvia – eu fiquei completamente apaixonado – foi com um terço de pérolas. Entramos na igreja e eu falei: “Nossa!” Eu fui para o nirvana, aquilo era a coisa mais deslumbrante que podia existir, aquela menina entrando na igreja com um terço de pérolas (risos). Incrível que muitos anos depois eu encontrei... Na TV Mix apareceu um cara que fazia publicidade, achei muito simpático e tive uma empatia muito grande e rápida, falei: “Engraçado, cara. Parece que eu te conheci sempre, essas coisas de empatia tão grande… Daí eu falei: “Quem é você e tal?” Eu fui descobrir ele era filho da primeira comunhão (risos). Eu achei genial, como o mundo é... Essa foi outra coisa importante.
P/1 – Na sua casa...
R – Você me perguntou de coisa importante no primário, eu tenho que voltar. Eu ficava disputando com essa Maria Sílvia. Ela era a primeira da classe e eu era o segundo. Eu nunca conseguia ser o primeiro da classe, eu só era o segundo porque ela era a primeira. Ela era super dotada, Deus baixou ali para dar tudo. Quando chegou na grande premiação no fim do curso ela ganhou tudo, mas a diretora falou: “Nós temos que dar um prêmio especial ao Jorge. Indiscutivelmente, ele merece esse prêmio, porque ele é o espírito mais religioso de toda a nossa escola, é a pessoa mais espiritual.” Me deram um negócio terrível: um Cristo com uma coroa de espinhos de bronze. Eu falei: “Deus!” Eu tenho até hoje. Isso foi a única coisa que eu consegui superar a Maria Sílvia. Não era nem o Cristo crucificado, era o Cristo coroado de espinho. Isso marcou um pouco, porque o São Bento foi o encontro da amizade. Era um colégio de homem, toda a veneração era os amigos e os ideais. Fundei a JEC, Juventude Estudantil Católica. Eu queria mesmo ser santo.
P/1 – Você tinha uma educação religiosa forte?
R – Tinha, por exemplo: eu ganhei esse Cristo no curso primário sabe Deus porquê. Minha mãe era muito religiosa. Meu pai era um religioso, mas ele era positivista, aquela formação... Meu pai era um homem que era engenheiro positivista e no fim da vida ficou muito católico. Conhecia as coisas: naquela época, ele sabia Virgílio, ele sabia Horácio, quando citavam latim ele sabia o que estava falando, mas não era um erudito, era uma cultura normal, o que era estranho, um engenheiro era muito culto. Esses politécnicos eram muito cultos, sabiam coisas, literatura... Ele lia Shakespeare tranquilamente, o irmão dele traduzia Shakespeare, ele achava ruim e jogava fora as traduções. Para mim tanto o ginásio quanto o colegial foi um tempo de amizade, de religiosidade, e de salvar o mundo misticamente. Eu era um místico...
P/1 – Você queria salvar o mundo misticamente?
R – Queria salvar completamente, eu queria ser santo. Santo era o que queria ser, mas não era um santo... Foi muito bom eu não ir para os jesuítas, eu não era um santo inaciano, que quer um exército de Deus, eu era místico. Para mim a santidade era um encontro místico, completo, era uma transcendência poética. Eu vivia na lua. Esse era um período contraditório, porque ao mesmo tempo a gente ia em muita festinha, a gente era chamado: “Esses meninos são católicos mas tudo Coca-Cola”, porque Coca-Cola era o adjetivo de uma pessoa que gostava de festa. Como é que a Coca-Cola surgiu no Brasil? Nós estávamos no São Bento e um dia ganhamos um cartãozinho para ir nas Lojas Americanas, que era a primeira loja no Brasil que ia ter uma lanchonete dentro, ali na Rua São Bento ou Rua Direita. Todo mundo que tomasse uma Coca-Cola ganhava um cachorro quente. Durante um mês nós comemos cachorro quente de graça com Coca-Cola, e foi assim que e a Coca-Cola entrou. Nós, que éramos garotos Coca-Cola, íamos tomar Coca-Cola com cachorro quente de graça, o que era marketing. A gente não sabia o que era marketing, nunca soube que eu ia, depois, trabalhar com agência, mas o grande marketing era a Coca-Cola. No São Bento teve diversas coisas importantes, além do Pimpinela Escarlate, da religiosidade. Os padres eram alemães e muito rígidos. A gente tinha a fardinha do colégio, um professor que era um Sargento do exército ia e a gente marchava para cá, para lá, coisa de alemão – no São Luis também tinha. A gente marchava na cidade, tinha bandinha e não sei o quê. Um dia, um padre baixinho apitou: “Pruuu.” Todo mundo foi lá, falou [com sotaque]: “Os aliados ganharam a guerra e a guerra terminou.” Começou a explodir coisa na cidade, fomos todo mundo para a cidade cantando, foi uma farra o dia da guerra. Esse dia foi muito forte. Outro muito forte foi a chegada dos expedicionários. Nós ficamos num canto na esquina da São João, eu vi os expedicionários chegando na esquina da São João com a Ipiranga, onde muitos anos depois eu fui ver o Caetano cantar num show. Foi muito forte. O São Bento era um colégio extraordinário, tinha um professor notável que eu me lembro, o Décourt, que era um professor de Ciências, e tinha um louco que era nosso professor, não sei se vocês ouviram falar de uma pessoa chamada Tranqüilo Tranquili, um italiano que era bedel. Andava de preto e ficava olhando no vidro se os alunos não faziam... Um dia o professor de Latim ficou doente. O Tranqüilo virou para o prefeito e falou: “Se o senhor quiser eu substituo ele na aula.” O prefeito falou: “O senhor sabe latim para dar aula?” Fez uns testes e ele era um latinista notável. Depois, ele perguntou se podia também dar aula de Inglês e depois de Francês. Ele ficou professor de Latim numa escola de padre. Foi professor de Inglês e foi meu professor de Inglês. Ele era completamente histriônico, porque chegava na aula e falava: “A língua inglesa é uma língua onomatopaica. Vejam Longfellow, veio The Charge of the Light Brigade: vieram half a league, half a league, half a league, os soldadinhos… De repente, into the valley of Death six hundred knights DIIIIIIIIE”. Os alunos ficavam assustadíssimos, porque tudo que ele fazia, berrava. Ele recitava as coisas e a gente ficava arrepiado, e ele fazia a gente decorar as coisas. Ele dizia: “O sonho da minha vida, evidentemente, era ser enterrado no Père-Lachaise, daí contava pra gente todo mundo que tava enterrado no Père Lachaise. Mas eu sou um mísero professor, no máximo o Cemitério do Araçá.” Realmente sensacional (risos). Um cara que se destinava a morrer e ir para o Araçá, mas com o sonho de ir pro Père-Lachaise em Paris. Outra coisa muito engraçada dele, ele falava: “Sim, venho sempre da minha casa pelo viaduto Santa Efigênia. No que apareceram os facífacinoras, pediram-me a carteira. Eu lhes dei uma carteirinha surrada e vim embora, mas o dinheiro estava neste bolso.” (risos) Os alunos amavam ele, era professor Tranqüilo Tranquili, imagina o nome. Isso foi umas das memórias. Era um didata extraordinário. Era inglês, eu sei tudo... Eu sou mais de línguas latinas, sei bem as línguas, sei falar francês bem, sei falar espanhol muito bem, escrevo em francês e espanhol, mas o inglês é uma língua... Eu conheço a gramática inglesa do Tranquili completamente. Conheço toda a gramática inglesa, era um cara extraordinário.
P/1 – Você queria ser santo. No São Bento, como isso foi abrindo?
R – O São Bento era um colégio muito interessante, porque era um colégio em que você não podia pôr a mão no bolso porque havia a presunção de que, pondo a mão no bolso, você estava se pré-masturbando. No fim do dia, se você estivesse com a mão no bolso, você ficava de castigo escrevendo. Tinha uma espécie de constituição que a gente escrevia: “O aluno não pode pôr a mão no bolso” duzentas vezes, coisa de alemão. No entanto, era um colégio que tinha um centro literário. Quando a gente estava no colegial, que era científico ou clássico, esse centro colegial era um espaço que eles nos destinavam. O presidente era o Haroldo de Campos, o vice-presidente era o Rubens Paiva, o ‘coiso’ era mais moço, o Augusto. Nós íamos para o centro literário e lá podia até fumar. Um colégio que você não podia pôr a mão no bolso, no centro literário os padres não interferiam. Lá eu tive um conhecimento mais formal da poesia, com o Haroldo, que já era... O Augusto era um grande poeta, eu me lembro das poesias que ele fazia naquela coisa, sobre os sinos e não sei o quê. Eram dois precoces eruditos, no curso colegial do São Bento, no curso clássico. Eu fazia o científico, porque como o meu pai era engenheiro eu não podia falar que eu ia fazer clássico, muito menos falar que eu ia fazer literatura, ele teria um colapso. Eu fiz o curso científico, paralelo ao São Bento. No São Bento teve três influências muito fortes: uma era o Dom Cândido, que era um craque, que era o Reitor, ultra culto; os dominicanos, que eram os assistentes da JEC e que tinham muita relação com os beneditinos – não os dominicanos depois da revolução, os dominicanos da evangelização, da cultura – e daí nós aprendemos o modernismo, porque os dominicanos estudavam em Saint-Séverin, na França, para serem padres, na Provence, perto de Saint-Paul-de-Vence, onde teve toda influência dos impressionistas. Eles conviviam com a nata da cultura moderna francesa e passaram isso, tanto é que o convento dos dominicanos depois fez aquela igreja moderníssima, porque eles eram modernos. Nós tivemos a rigidez dos beneditinos, intelectualmente fortes, e a modernidade dos dominicanos, isso pressionou muito. Eu, por exemplo, achava a Igreja na Consolação a última desclassificação estética, porque para nós só existia, aos dezesseis anos, o modernismo. O modernismo era para nós a única linguagem estética plausível. O modernismo e Fra Angelico. A gente ia direto da arte mais pura, pré-renascentista para o modernismo. Éramos meninos muito sofisticados e Haroldo de Campos dando de poesia em cima da gente, com dezessete, dezoito anos. Essa coisa do São Bento foi muito forte. A gente vivia entre uma disciplina germânica, um liberalismo do Dom Cândido – que era o Reitor numa escola muito rígida –, os dominicanos com a modernidade deles. Foi um período privilegiado em uma escola com Tranqüilo Tranquili ensinando Inglês e Latim, então nós éramos privilegiados. Eu sempre fiz parte de uma elite intelectual do São Bento e nunca da elite esportiva, porque eu era um péssimo jogador de futebol e eu era da defesa. Das poucas vezes que eu me salientei no time eu quebrei a perna de um alemão que tinha vindo da guerra, que era judeu. Os padres pegaram, coitado, era uma múmia... Eu dei-lhe um pontapé e quebrei a canela dele, teve que ir para o médico consertar a canela e eu desisti da minha carreira futebolística. Meu pai ainda teve que ajudar a pagar a canela do outro, porque eram judeus pobres. Esse foi o primeiro da classe a vida inteira. Na faculdade de Direito, esse judeu alemão era o primeiro dos primeiros. Depois da Maria Sílvia, da minha cruz, eu sempre fui o quinto da classe. Na faculdade de Direito eu era o quinto, não sei o que quer dizer isso. Eu nunca fui um primeiro da classe e também nunca fui um esculacho, sempre era o quinto da classe, uma categoria muito estranha. O São Bento teve coisas que eram tolas mas que pareciam lindas. Uma época, no Natal, a gente arrecadou na rua dinheiro para o Natal dos pobres, mas gente fazia com tal fervor que parecia que a gente estava numa cruzada junto com algum francês invadindo Jerusalém, porque tudo que se fazia era elevado a um misticismo muito patético. Na escola teve também as nossas coisas. O São Bento, que era muito liberal, convidou para dar aulas de religião e de cultura dois leigos: o Paulo de Arruda Cotrim e o Clóvis Garcia. O Paulo de Arruda Cotrim é o dono do Johann Sebastian Bar, o bar mais famoso que teve em São Paulo, mais tarde, e o Clóvis Garcia era um ex-expedicionário que entendia de arte, de teatro, de tudo isso. Nós tivemos no centro da nossa formação, um porra louca que dava aula de religião no São Bento, que era o Cotrim, e o Clóvis Garcia, que dava aula de arte, além dos dominicanos. Isso era um avanço inacreditável. Naquela época a gente era castidade, contra o divórcio, todas essas coisas dos católicos. O Cotrim começou uma aula assim… Ele foi apresentado para a gente, era todo elegante, e escreveu no quadro negro para a gente, no colegial: “Quem não é casto não é macho.” Foi só gargalhada. O Paulo Lopes Bueno, um cara que era o jogador de futebol, o mais cafajeste que a gente tinha na classe, virou e falou: “Professor, mamão é macho e não é casto.” Eu falei “Porra, esse professor, coitado. Está desmoralizado depois dessa.” A turma ‘qua, qua, qua’ [rindo]. Ele, muito tranqüilamente, virou para o Pablo e falou: “Mas mamão é fruta”, que naquela época era sinônimo de viado, daí aplaudiram, porque ficou uma dialética... Você imagina, num colégio de padre: “Quem não é casto não é macho.” “Mamão, professor, é macho, mas não é casto” O outro falou: “Mas mamão é fruta”, ele conquistou todo mundo. O grande problema é que esse cara era um grande proselitista católico, só que era homossexual. No São Bento, imagina? Teve um dia um problema – eu não sei se interessa contar as coisas... Ele tinha uma família muito católica que morava numa rua que tinha um cul-de-sac, uma rua sem saída – até depois o Cardeal morou nessa rua – e essa família fazia todo ano um auto de Natal, que era um auto católico de um francês. Nesse auto tinha um Jesus Cristo, tinha o menino Jesus e tinha os anjos. Tinha um anjo que – eu não me lembro, a gente não tinha esses critérios – parece que era um menino de uma excepcional beleza. O Cotrim, nosso professor de religião, ficou completamente apaixonado pelo anjo e o levou para passar a Semana Santa em um Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro, mas eu acho que a semana não foi tão santa quanto podia ter sido. Aconteceu uma coisa incrível, de coincidência que foi. Quando o menino voltou, o irmão dele tinha dado uma trombada no carro. Estava na mesa de jantar com os filhos, o pai virou e falou: “Eu já sei tudo”, pá-pá-pá. Mas estava se referindo ao carro, e o menino teve um ataque de choro e foi para o quarto. Acabou a mãe indo lá e ele confessou tudo, que ele tinha tido relação com o Cotrim. Foi o maior escândalo, a família mais católica do mundo, que fazia auto de Natal na rua, de classe média alta, burguesa… Foram contar para o padre, para todo mundo. Eu, que era liderzinho lá, os padres me chamaram. Eu não tinha preconceito de porra nenhuma, nunca tive, mas fiquei muito chocado com a violência ao mundo cristão, eu falei: “Esse cara está ferrado.” Eu aprendi uma coisa muito interessante: os padres foram de uma classe, de uma dignidade. Tiraram ele da aula depois disso, nunca fizeram um escândalo, fizeram uma coisa discretíssima e o próprio cardeal, que gostava muito do Cotrim porque o Cotrim tinha convertido um muçulmano… Ele era uma pessoa importante. A igreja foi muito benévola, muito condescendente. Eu achei muito legal. Não trituraram o cara, não massacraram, deixaram, mas criou uma puta confusão na nossa cabeça, porque tinha aquela mística, misturada com homossexualismo, misturada com tudo. Confundiu muito a cabeça de todo mundo, porque...
P/1 – Você ficou confuso?
R – Fiquei muito confuso. Para nós era o seguinte: o afeto, a amizade, tudo isso era muito forte, só que dava a impressão que isso era um mundo intocável, um mundo de anjos, não era mundo de realidade. “Quem não é casto não é macho”, era um mundo tal, e daí veio que não é bem assim. A primeira vez que apareceu uma dúvida com relação ao afeto, com relação àquele mundo do homem, no mundo dos jovens e da amizade, tudo isso ficou posto em questão. Ficou uma coisa complicada na vida de santos. Imagina, santos com esse problema aí? Ficou muito complicado. A faculdade de Direito foi uma época de afirmação de princípios. Tinha duas juventudes, naquela época, no Brasil: a Juventude Comunista e nós. Só que éramos muito parecidos, eles faziam cineclube para fazer – digamos – proselitismo, colônias de férias, viagens, e nós fazíamos a mesma coisa, colônia de férias, cineclube, todas técnicas de arregimentação eram idênticas. Agora nós éramos moralistas, éramos contra a cola, contra o divórcio, contra aborto – aborto nem se discutia, mas essas coisas na escola discutia-se muito. A gente era muito moralista na coisa, e com os comunistas vivíamos brigando. Eu sempre vivia imprensado. É muito interessante, porque depois eu reencontrei esse personagem quando eu fui do TV Mix, e saí da Gazeta por causa desse personagem. Eu vivia entre os comunistas e a extrema direita, que era fascista, reacionária, integralista, Opus Dei, o cacete. Eu não era nenhum grande machão no sentido de briga, sempre era da paz, mas um dia eu tive que enfrentar: eu era a favor do Juscelino, era a favor do [Henrique Teixeira] Lott, tudo isso apesar de ser contra o divórcio, contra a cola, contra pagar o bedel para dar presença. Eu era bem moralista, JUC, mas...
P/1 – Você já estava na Juventude Universitária Católica?
R – Já, e na Faculdade de Direito, mas na escola a turma era ou muito comunista ou muito reacionária. Eu me lembro que o dia em que eu defendi o Juscelino Kubitschek a turma queria me pegar no Centro Acadêmico. Eu tive que subir em cima da mesa de bilhar, um snooker no Centro Acadêmico, e fiquei com o pau lá: quem chegava perto eu mandava o taco de bilhar, porque queriam me pegar, eu estava sozinho e minha turma não tinha chegado. Foi o único dia em que eu me senti mais fisicamente heróico, porque eu não era de briga. Um dos caras que queriam me pegar chamava-se não-sei-o-quê Wagner, – até esqueço o nome de raiva – e foi o cara do conselho da Gazeta que, anos e anos depois, eu saí da Gazeta por causa. Quando o pessoal da Opus Dei integralista se juntaram com o pessoal do PT [Partido dos Trabalhadores] na Gazeta contra mim, eu falei: “Porra, de novo... Os dois lados de novo brigando com esses caras.” Eu tive que sair da Gazeta, pedi demissão anos e anos mais tarde.
P/1 – Jorge, na época do São Bento vocês andavam pelo centro da cidade?
R – Na época do São Bento e sobretudo depois, na Faculdade de Direito, nós só frequentávamos o Centro. Eu não sei porque cazzo, todas as noites nós íamos nos encontrar no relógio do Mappin. Cotrim, Clóvis Garcia, os colegas, Ciampolini, eu, Fábio Haidar, Fernão Bracher, Luis Carlos __________, todo mundo ia se encontrar no relógio do Mappin. A mesma turma, são meus amigos até hoje. Íamos nos encontrar no relógio do Mappin, daí a gente ia no cinema ou na Cinemateca. Tinha na cidade a Cinemateca e o MAM [Museu de Arte Moderna], que era no prédio do Chateaubriand. A Cinemateca era uma escola, porque a gente viu tudo que era do cinema, desde do começo até... O cinema foi básico na formação da gente. Saíamos dali e íamos para o Paribar. Eu não lembro como é que a gente arranjava dinheiro para gastar todo dia, porque a gente tomava Gin Fizz no Paribar, ia no cinema e era tudo barato. Eu me lembro que eu tinha uma lambreta. Eu morava na Aclimação, eu ia de lambreta para o Centro, deixava a lambreta em frente ao Paribar com a minha Lettera Olivetti... Eu não largava a minha Lettera Olivetti nem morto, porque eu fazia poesia, eu escrevia já para o Correio Paulistano, nessa época. Eu escrevia [a coluna] Janela Indiscreta para o Correio Paulistano. Eu eu amava a minha Lettera Olivetti mais do que hoje qualquer PC, era um símbolo. Eu deixava lá enrolada num elástico e ninguém roubava. Eu nunca tive preocupação de levar a Lettera no cinema porque ficava ali, em frente ao Paribar.
P/1 – O Paribar ficava em que rua?
R – Atrás da biblioteca, na praça Dom José Gaspar. Não é inacreditável, você poder deixar uma máquina de escrever, bonitinha que era, ali? Eu nunca cogitei que pudessem me roubar a máquina. Podia ser que eu fosse alienado, mas nunca roubaram. A gente foi nesse cinema e tinha vida. Íamos muito ao TBC [Teatro Brasileiro de Comédia], ao [Teatro de] Arena... Nesse período todo, até 23 anos, tudo quanto era coisa... Nós tínhamos uma vida cultural maluca, porque era todo dia. Nessa época tinha o Paribar e tinha o Bar Azul, na São Luiz. Sabe quem frequentou e passou por esses lugares? Juliette Gréco, tinha o Sérgio Milliet, uma época mais tarde veio o Sartre. O meu irmão tinha uma empresa grande e nós ajudamos muito. Eu sou fundador do Teatro Oficina, junto com o Zé Celso. Eu era amigo do Zé Celso, do Salinas. Eu me lembro que eu fui com eles pra um festival de poesia...
P/1 – Eles faziam direito?
R – Todos eles eram da Faculdade de Direito. Nós íamos para a terra deles, Araraquara, onde tinha um festival de poesia. A Lygia Fagundes Telles era convidada e ela ia como júri, eu me lembro que ganhei o concurso de poesia com uma poesia muito bonita que tenho que está em um livro, não me lembro de cor. Ganhei essa poesia em São Carlos. Luiz Roberto Salinas, que morreu e foi professor de Filosofia, um cara fantástico, foi torturado... Eu e o Salinas – eu precisava um dia achar isso… Eu tinha uma Rolleiflex e nós fomos no Cemitério de Araraquara e fizemos fotografias em preto e branco lindíssimas do Cemitério. Tinha mania de fotografar, tinha uma Rolleiflex então eu tinha fotografia belíssimas. Não era o Père-Lachaise, mas eu fotografei o cemitério com ele, são fotografias que eu precisava um dia encontrar. Eram muito bonitas, em preto e branco. Fiquei grande amigo do Salinas, éramos grandes amigos, e fundamos juntos o Teatro Oficina, que era sensacional.
P/1 – Que ano isso, Jorge?
R – Nunca me pergunte data, eu não tenho a menor ideia. Eu estava na faculdade. Eu não tenho a menor ideia de quantos anos eu tinha, o tempo pra mim... Decidimos fundar o Oficina e todo o material, tudo o que foi do Oficina era da empresa de construção do meu irmão. A gente pegava tudo quanto era andaime, ele mandava todas as coisas para lá. O meu irmão emprestou um... Era uma antiga quitanda que a gente comprou na Rua Santo Antônio, que ia fazer um prédio, mas ele emprestou pra gente e o Kusnet dava aulas de dicção. O Oficina começou com aulas de dicção e todos nós ficávamos: “mééé, móóó, muuu.” O Zé Celso, todo mundo passou por essas coisas. Tinha um grande colega nosso, meu amigo, o Queiroz Teles, que já escrevia para o teatro e também estava no “meéé, móóó, múuu”, aprendendo dicção. Aí começou o Teatro Oficina, mas não tinha um puta de um tostão...
P/1 – Por que vocês decidiram criar o Teatro Oficina? Como você encontrou com o Zé Celso e deu nisso?
R – Porque o Zé Celso é um gênio de nascença e gostava de teatro. Ele queria fazer uma coisa de linguagem diferente dos outros teatros, do TBC, de tudo que a gente achava muito careta.
P/1 – Você já estava no teatro?
R – Eu não era de teatro, nós nos encontramos na faculdade de Direito. Nós éramos amigos em torno da literatura, não era nem da política, era literatura e da cultura. Tinha o Luiz Ignácio Loyola, tinhas o Salinas, tinha o Marco Antônio Rocha, que é jornalista, tinha o Zé Celso... Esses eram os de Araraquara. Depois tinha eu e o Queiroz Telles, que éramos de São Paulo. Tinha umas amigas burguesas nossas, a Dora Meirelles, ela arranjou um jeito interessante… Sabe como a gente arranjava dinheiro para o Oficina? As ‘meirelladas’, aquelas mulheres, jogavam pife-pafe. A gente fazia apresentações de trechos de poesias no meio do jogo deles. Eles tiravam um barato, sabe o que é? De cada rodada eles separavam dez reais e faziam um caixa, daí a gente fazia essas coisas durante o jogo, pegava o caixa e guardava para o Teatro Oficina. O Teatro Oficina começou com o dinheiro do barato da arrecadação do jogo de pife-pafe, de buraco da sociedade paulista mais burguesa possível, foi uma das fontes de renda. Depois o Zé Celso aprendeu a buscar dinheiro em todo canto, mas foi assim que começou a história. Você tinha o Partido Comunista, tinha o grupo do Zé Celso, tinha uma mistura de Opus Dei com integralista...
P/1 – Na faculdade?
R – Na faculdade, assim caminhou a humanidade.
P/1 – Por que você escolheu fazer Direito?
R – Foi por causa da Matemática. No segundo ano – eu ia para a Poli – apareceu um negócio chamado Trinômio do Segundo Grau. Eu falei: “Nunca eu vou entender o que é isso, não dá.” Eu comecei a fazer cursinho pra fazer Direito porque se eu falasse que ia fazer Literatura o meu pai ia morrer antes. Ele morreu cedo, mas ia morrer mais cedo ainda. Eu falei: “Direito é uma coisa razoavelmente aceitável”, e fui para Direito. Foi bom porque os meus amigos, a maioria deles, estavam indo para Direito. O Fabio Haidar, o Bresser, o Fernão, todo mundo foi para Direito, então eu fui também. O Lauro Azevedo... Os meus amigos iam para Direito e eu falei: “Vou pra Direito”, e fiz Direito. Nas aulas de Direito eu li tudo que eu tinha que ler na vida, sentava na última fila e ficava lendo Dostoiévski. Só passei por vexame uma vez: o professor Lino Leme percebeu que eu estava lendo e não tava prestando atenção à aula – que eram conferências soleníssimas – e falou: “O senhor que está muito atento, poderia me dizer quantos centímetros tem a polegada?”, uma dessas coisas da medida inglesa para o português. Eu não tinha a menor noção e falei: “Professor, não sei.” “Então o senhor pode ir ler tranquilamente os seus livros na biblioteca, pode se retirar da sala.” Fui ler o meu Dostoiévski na biblioteca muito envergonhado, porque a gente tinha vergonha. Usava-se terno, gravata... O nosso uniforme era calça cinza, blazer azul marinho, camisa branca e gravata amarela; os elegantes era assim, não tinha papo.
P/1 – Na faculdade de Direito vocês usavam uniforme?
R – Não era uniforme, mas eu digo… O fashion dos mais elegantes era calça cinza, camisa branca, gravata amarela e blazer azul marinho.
P/1 – Iam várias pessoas assim?
R – Magano, eu... Os mais elegantes. Eu ia com essa roupa para a faculdade de lambreta. Não tinha muito carro, pouca gente tinha.
P/1 – Você tinha alguma relação amorosa nessa época?
R – Eu tinha uma namorada que era cravista, só que era filha de alemães milionários e o pai achava que eu era comunista. O Direito achava que eu era comunista, os comunistas achavam que eu era um beato reacionário… Era uma grande paixão; e o pai dela acabou mandando ela pra Alemanha pra estudar cravo; hoje ela é professora da Unicamp [Universidade Estadual de Campinas], muito minha amiga. Eu fui visitar na Alemanha, mas estava complicado porque ela estudava dia e noite e os pais fizeram a cabeça contra o comunista aqui. Eu aí aprendi muito de música, ela foi aluna do Richter. Eu ia ver concertos na Alemanha... Eu me lembro de um período muito engraçado. Ela ficava na escola e eu ficava na Theresienstadt, em Munich. Eu tinha que almoçar sozinho, não sabia uma palavra de alemão e eu comia todo dia wurst mit Kartoffeln, que é salsicha com batata. Eu estava de saco cheio de todo dia comer salsicha com batata. Um dia eu vi um negócio escrito Weisswürste mit der Süßkartoffel, salsicha branca com batata. Eu ficava numa variação e no décimo dia – eu não agüentava mais – eu vi numa placa uns negócios, eu entendi que era comida da temporada. Era comida de caça. Eu falei: “Não aguento mais o Bratwurst mit Kartoffeln, vamos comer esse treco.” Veio no meu prato uma carne preta de veado, que era aquela caça com cebola caramelada. Eu falei: “Ai, meu deus!” No outro dia eu cheguei e falei wurst mit Kartoffeln (risos). Eu comi muita salsicha e perdi a namorada, porque eu vi que a coisa estava complicada, ela estava se engraçando com um flautista alemão de boa cepa, direitista. Eu fiquei muito de saco cheio, fui para a Grécia, fui para o Egito visitar um dominicano...
P/1 – Seu pai pagava tudo? Você tinha dinheiro pra fazer essas viagens?
R – O meu pai não era rico, porque não tinha chegado a grana do meu avô, mas ele pagava o seguinte, ele me dava... Com trezentos dólares por mês você ficava em Paris e se divertia muito, não era uma quantia muito absurda. Eu não me lembro se foi nessa vez, mas outra coisa muito importante foi uma época que eu fui, na faculdade de Direito – tem que contar tudo, né – apareceu um negócio chamado Rearmamento Moral, Moral Re-Armament, era um movimento internacional que pretendia salvar o mundo pela honestidade absoluta, pureza absoluta, não sei o quê absoluto. Tinha sido fundado por um tal de Buchman, um americano – americano que funda essas coisas. A gente não sabia o que era, mas era um movimento que visava estabelecer o diálogo em áreas conflitadas no mundo. Por exemplo, Ruhr tinha os operários e tinha o capitalismo, eles queriam conciliar. Em Viscosa, na Itália, tinha os mineiros e não sei o quê, lugares de grandes áreas industriais. Eles estavam querendo, depois da guerra, criar um mundo de diálogo e não um mundo de luta de classes – essa que era a coisa. Tudo isso sob a égide da pureza, da honestidade. Tinha um castelo na Suíça, que era o Caux Palace, um antigo hotel art déco em cima de _________ Montreux, onde tem aquele festival. Eles chegaram, chamaram o Lauro Azevedo, um outro amigo nosso que era socialista que fazia discos... Como ele chamava? Ah, meu Deus... Que fez as primeiras grandes coleções de discos populares brasileiros. Eu, que era católico, para ir nesse rearmamento moral, para ir para a Suíça. Imagina a gente, caipira aqui, com a chance de ir pra Europa? Não se ia para a Europa como hoje, qualquer moleque neto da gente vai para a Europa, arranja dinheiro, arranja bolsa, fica viajando pelo mundo inteiro, é Machu Picchu para cá... A gente não ia. Eu me lembro que o Bardella, que era um puta milionário, quando entrou para a faculdade, o pai deu uma viagem para Bariloche, não era essa orgia de hoje. Nós somos muito honestos, o Marcos Pereira falou: “Eu sou socialista, não vou nunca aderir para essa besteira”. Eu falei: “Eu sou católico, não vou virar rearmamento moral, vocês vão perder tempo de levar a gente para lá.” O Modesto Carvalhosa também estava nessa lista: “Não percam tempo de levar a gente pra isso que é gasto de dinheiro à toa”, embora a gente tivesse louco para ir. A nossa recusa aumentou o interesse deles em nos levar; e daí vai aquele bando: eu, Modesto, Marcos Pereira, Lauro Azevedo, tudo isso. Chega na Suíça, que naquela época, para a gente, era um mundo tão diferente! Botam a gente num trem, a gente chega naquele Caux Palace... O que era aquilo? É inacreditável. Tinha grandes lideranças da África do Sul, tinha as meninas que carregaram a cauda da Rainha Elizabeth na coroação dela, tinha ex-rei de não sei o quê, ex-líder daquilo, ex-comunista. A gente percebeu que era tudo ex-alguma coisa. Essa gente toda: “Eu era mau, não sei o quê, encontrei o rearmamento e fiquei bom.” Eles davam depoimentos no palco, comoventes. Na primeira semana nós ficamos muito comovidos. Era um pretão da África do Sul que queria matar branco. O outro era um ex-líder comunista que tinha se convertido e agora queria paz. A gente percebeu que era um grande movimento anticomunista por uma paz complicada: à medida que você põe dialogando o operário com o dono da fábrica, quem leva a vantagem? Se todo mundo fica em paz, o dono da fábrica que leva vantagem, nunca o operário leva muita vantagem nessas conversas. Quando foi a segunda semana, a gente percebeu…
[pausa]
R – Eu tenho a impressão que a Guerra Fria foi precedida de muitas estratégias de conformar o mundo com a nova liderança dos Estados Unidos. Isso tudo era feito com muita sutileza na Europa, nos Estados Unidos. O cenário mais wagneriano que eu possa ter ideia era um hotel art nouveau, deslumbrante, com a vista em cima do Lac Léman, você servido pelas meninas e meninos mais bonitos do mundo, com senhores de uma dignidade vitoriana... Um deles ficou tomando conta do nosso grupo, o Robert, era um homem riquíssimo da Suíça que deu tudo para o Rearmamento Moral e só se dedicava à conversão das pessoas. Isso tudo encantou a gente. O Marcos Pereira, no fim da primeira semana, foi para o palco. Ele era um homem que convivia com Paulo Duarte, Sérgio Milliet, foi lá e confessou que odiava o pai, achava o pai medíocre, chorou e se converteu para o Rearmamento Moral. Nesse dia nós ficamos muito impressionados, porque ele era o cara mais... Ele era muito sentimental e generoso, mas era fulano que só cuidava... O maior acervo de música popular brasileira foram as coleções do Marcos Pereira, e foi o primeiro que fez isso. Aos poucos eles foram nos envolvendo e eu percebi uma coisa muito maliciosa: eles puseram pra tomar conta de mim um menino que era de uma banda de música. O pai era um grande produtor de Hollywood, e ele e os coleguinhas dele tinham uma banda muito afinada de música country, mas com letras espiritualizadas para essa coisa. O menino ficou muito meu amigo, Malcolm Roberts, e ele falou: “You must change.” A palavra básica era: “Você tem que se transformar.” Eu perguntei para ele: “Por que eu tenho que me transformar? Eu sou católico, tenho valores. Why?” Comecei a pôr questões para ele: “Vamos nos esclarecer.” Um dia eu parei ele na escada e falei: “Pô, moleque.” Eles puseram para estabelecer um elo afetivo, porque não podia por mulher perto da gente, mais próximo. A relação era técnica. Não era afetividade real, era uma afetividade técnica: eles trouxeram o herói lá, o pretão da áfrica, trouxeram esses meninos... Eu falei: “What is a changed man?” “O que é um homem transformado? Vamos lá, rapaz, me explica o que é isso. Se você me explicar eu me transformo.” Ele teve uma compulsão de choro na escada, se desmanchou inteiro e não sabia nada. Ele não tinha resposta para indagação nenhuma. No dia seguinte sumiram com o menino, nunca mais ele chegou perto de mim e eles acharam que tinham que nos levar para fazer uma excursão pela Europa para conhecer os lugares reais das crises e dos acervos, por Viscosa, no Reno... No Reno eu fui, entrei com os operários numa mina de não sei quantos mil metros de profundidade. Sempre nos hospedavam em casas de nobres e nos lugares mais inacreditáveis. Quando a gente chegou em Paris, foi no Champs-Élysées, numa casa, um château, e como tinha muita gente nossa, eu e o Lauro Azevedo ficamos dormindo numa espécie de biblioteca onde eles deixaram duas camas. De noite, pela janela daquelas casas com aquelas cortinas, entrava uma luz. Eu vi um fantasma vindo na minha direção. Falei: “Eu estou louco.” Depois eu vi outro, falei: “Meu Deus!” Fechei o olho, pus a cueca e falei para o Lauro: “Porra, tem alguma coisa aí.” Ele falou: “É melhor ficar quieto.” Quando a gente acordou eram aqueles quadros enormes, feito um livro, que tem um quadro do pai, da mãe, da coisa… Tudo pintado a óleo, e quando a gente abriu a janela para arejar, porque estava com calor, era verão, era agosto... Foi abrindo aquilo lá e veio vindo a mãe, o pai, aquelas figuras enormes em tamanho natural, quadros imensos na parede que tinham aquela coisa feito porta, esquadria. O quadro abria, depois você fechava e tinha os quadros de todo mundo atrás. Eram os fantasmas. Você veja o mundo que eles nos colocaram para tudo isso. Em resumo, entre perdidos e achados, a gente falou: “Não dá, vamos voltar para o Brasil.” Acabou a nossa temporada e eu fui para Paris, onde um amigo meu, Allan Moreau, morava. Ele era presidente do Centro Acadêmico da Universidade Católica de Paris e eu fui morar com ele no Hotel de L'Avenue. Meu pai pagou para eu ficar um ano lá, trezentos paus por mês. Esse período foi muito interessante, porque eu conheci alguns teólogos muito importantes, conheci o que era a juventude católica bem de perto, fui fazer algumas excursões, conheci um pouco a vida e apurei o meu francês. Nós tínhamos no Brasil um cara que se chamava frei Reginaldo Alves de Sá, que foi talvez o cara mais interessante que eu conheci na minha vida. Era um dominicano jovem, mineiro, que conhecia correntemente dezesseis línguas e aprendia qualquer língua em trinta a quarenta dias. Como ele conhecia a raiz das línguas, ele aprendia qualquer língua. Gostava muito do Árabe e era o homem que mais falava que eu conheço. Era amigo íntimo do Augusto, do Haroldo, que morava em Perdizes... O Augusto e o Haroldo tinham mania de línguas e a gente tomava lanche junto às vezes com o frei Reginaldo – apesar deles não serem da JUC, nada, eles eram intelectuais. O frei dava as rimas de árabe, de aramaico, de tudo. Eles viviam falando coisas muito complicadas para minha cabeça, o frei Reginaldo era um gênio total. Tinha um psiquiatra muito importante em São Paulo que, quando o assunto complicava, consultava o frei Reginaldo. O frei Reginaldo era um psicólogo muito importante, ele resolvia os assuntos. Um dia eu perguntei para ele: “Onde você aprendeu tudo isso? Você é grande teólogo linguista, como você aprendeu toda essa história de psicanálise?” Ele falou: “Em Dostoiévski, nos Irmãos Karamazov. A base da psicologia moderna é o Dostoiévski, tudo está ali. Não tem muito mais do que está ali.” Eu falei: “E o Freud?” “O Freud é um mergulho no inconsciente, mas na psicologia humana quem deu os parâmetros foi Dostoiévski.” Eu já era obcecado pelos Irmãos Karamazov, daí fiquei completamente dostoiévskiano, fiquei lendo tudo. Esse Frei Reginaldo era um fulano extraordinário, um dia ele pega e diz para nós todos: “Eu vou largar tudo e ser trapista. Vou para a trapa de Latrun, no Líbano, e vou silenciar”. Eu falei: “Pô, aprendeu dezoito línguas pra ficar quieto?” “É, aprendi dezoito línguas para ficar quieto.” Antes dele ir embora, ele chamou algumas pessoas: eu, Beatriz Helena, acho que o Plínio de Arruda Sampaio… Uma meia dúzia que a turma gozava que eram os ‘depositários da verdade eterna’. Ele queria falar algumas coisas para a gente sobre alguns assuntos antes dele ir embora. A gente se reuniu na fazenda de um amigo nosso e nós fizemos uma espécie de retiro onde ele nos falou sobre três coisas: sobre a igreja, o marxismo e o sexo. Foi uma coisa absolutamente inesquecível. Tudo que se revelou depois sobre a questão da Rússia, ele nos antecipou. Ele falou: “O marxismo é a mais importante…” – eu preciso lembrar bem porque é muito importante – “nada foi mais abrangente na história da humanidade depois do cristianismo do que o marxismo”, porque o marxismo se refere a uma questão integral do homem, não é uma questão econômica e nem política, não é essa bobajada da Rússia. Ele falou: “É uma revisão integral do homem. Só o cristianismo colocou o homem diante de uma integralidade como o marxismo colocou.” Esse marxismo de Marx e da filosofia não tem nada a ver com o comunismo praticado na Rússia. A gente achava uma heresia, porque era uma época que a gente via a Rússia com muita benevolência – mesmo os católicos –, a Rússia estava no auge do prestígio. Ele falou: “Não é nada disso, isso é um arremedo” e nos deu toda a interpretação que o marxismo não fazia do capitalismo, mas fazia do homem, do ser humano. É uma visão ateia, agnóstica, mas é uma visão integrante. Ele falou: “Saibam disso, isso é uma construção inteira do homem contemporâneo, como o cristianismo é.” Eu achei isso uma coisa muito interessante pra ouvir de um padre. Segundo, ele falou da igreja, ele falou como ___________ fala: que era uma experiência muito nova e a igreja ainda não tinha conseguido montar o mundo, que o cristianismo ainda era uma esperança mas não era uma concretização. A coisa que menos me impressionou foi esse relato. Do sexo ele falou: “O sexo é a forma específica da comunicação humana. A humanidade, a espécie se comunica através do sexo. Não é um pansexualismo que eu vou falar pra vocês, é o seguinte: na origem de toda a simpatia humana está o sexo. Ele está dentro da comunicação básica da espécie. Não necessariamente genital, mas o sexo como aproximação da espécie é um dado absolutamente universal, total, absoluto e está em todos os gestos, em todas as simpatias, em todos os relacionamentos. Não pense que você precisa… A simpatia quer dizer que você vai dormir com outro, que é coisa genital. Não é, mas é uma coisa que é a aproximação sexual da espécie. A aproximação essencial da espécie é sexual.” Desenvolveu isso com muita sabedoria, mas eu me lembro dessa… Depois foi embora para Trapa. Eu me comunicava, escrevia com ele, e quando eu estava em Paris soube que ele tinha saído da Trapa porque ficou tuberculoso e teve que ir para um convento no Egito se curar. Eu peguei um navio, fui para Alexandria e depois fui visitá-lo nesse convento no Cairo. No navio, nessa ida, aprendi uma coisa interessante. Tinha um alemão que ficava de gravata borboleta o tempo todo no navio, na terceira classe do __________ Clia – muito bonitinho o navio. Ele falava português e eu falei: “Pô, esse homem de Stuttgart fala português?” “Eu fico lá no correio e eu fico aprendendo línguas, eu sei falar português muito bem.” E eu: “Puxa, então vamos visitar juntos...” Convidei ele, falei: “Se estiver no Cairo a gente pode passear, eu tenho um amigo lá.” Ele falou: “Eu não desço do navio, vou até Beirute e volto.” Eu falei: “O senhor só vem passear de navio?” Ele falou: “Na minha cidade não tem sol nunca. Em Stuttgart é só nuvem, névoa. Todo ano eu faço uma viagem de navio para tomar sol. Eu pego meu dinheiro, venho tomar sol e volto.” Falei: “Isso não é o que eu preciso no Brasil, né?” Achei muito interessante esse relato de um cara que viajava, modesto e tal, mas que ia tomar sol num navio. Quando cheguei na Alexandria fiquei muito impressionado. Eu já tinha lido o livro do Lawrence [Durell], o Quarteto de Alexandria, que tinha me impressionado muito. A Alexandria é muito impactante, aquele reino que tinha caído, do Farouk, estava presente naquela aristocracia burguesa, aquelas casas como alguns casarões de Santos, na beira da praia… E uma esculhambação, porque o navio parava num lugar... Não tinha porto direito, a gente descia num barquinho e depois levavam. A única coisa moderna que eu peguei foi quando eu peguei um ônibus – era um [Tricoach?] – tipo um cometa. Achei muito engraçado atravessar o deserto num cometa, tipo Lawrence da Arábia. Eu chego no Cairo – se eu estiver confundindo duas viagens não tem importância, que eu fui em duas –, me descem numa praça da Sé, que é aquela onde houve agora os distúrbios para derrubar o Essam. Me lembro lá daquela multidão, os pretos enormes, núbios, altíssimos... Viram que eu estava com um bilhetinho, porque o Allan, meu amigo que era da Universidade Católica, me deu o endereço de um amigo do pai dele que era diretor do __________ Marseille, uma grande empresa que fazia aqueles negócios de açude, de hidrelétrica. Ele ia me hospedar lá em Zamalek, que é um bairro chique do Cairo, só que esse bairro estava já – porque tinha Nasser – em transformação. Chegou um pretão pra mim e falou: “Monsieur, monsieur!” Pegou a minha mala e quis me ajudar, pegou meu bilhetinho: “Je vous et, je vous et…” Falei: “Estou seqüestrado, ferrado.” Um pretão daquele numa Praça da Sé… Ele me pôs num carro, me levou até Zamalek, o bairro, tocamos a campainha, veio o empregado do engenheiro, me levou e carregou minha mala até em cima da casa. Eu fiz um gesto de quem ia pegar dinheiro para dar para ele e o dono da casa me falou, em inglês: “No, don’t do that!” Quer dizer: “Não faça isso!” Eu agradeci muito e ele foi embora. Eu falei: “O que é isso? Não entendi nada.” “Não, o cara viu que você estava aflito, então fez tudo isso: alugou um carro, te trouxe, te depositou aqui e voltou. A pior coisa que você podia ter feito era se você fosse dar dinheiro para ele. Ele fez isso porque quis praticar um gesto.” Eu fiquei muito impressionado com isso acontecer no meio daquilo, que a gente achava que era um mundo incivilizado. Numa segunda etapa, acabada essa fase elegante, eu fui ficar com o frei Reginaldo no convento.
P/1 – Você estava circulando?
R – Eu fui especificamente para ver o Frei Reginaldo. Por isso que eu digo que posso estar confundindo duas viagens, mas não importa. O frei Reginaldo me recebeu, a gente ficou junto, me contou que ficou tuberculoso e teve que sair. Ele estava empolgado com a poesia árabe, com a capacidade deles de rima – que é uma coisa maravilhosa no árabe. A gente ficava conversando muito, perguntei algumas dúvidas sobre as questões que ele tinha colocado no Brasil, contei como estavam as coisas e das mudanças no Brasil, porque Getúlio tinha morrido – esse é outro capítulo... Ele me ensinou a ler mão. Ele era um grande leitor de letras. Eu escrevi e ele leu toda a minha caligrafia, me deu tudo que ia acontecer na vida, qual era a minha personalidade, e brincava: “Você precisará sempre ter muito dinheiro, porque você tem horror ao dinheiro.” Eu falei: “Isso é um paradoxo.” Ele falou: “Você precisa ter dinheiro porque você tem horror a ganhar dinheiro, ao trâmite do dinheiro. Isso tudo não compatibiliza, mas como você tem que viver você precisa.” Ele leu tudo isso na letra, mas é muito complicado ler letra, aí ele me ensinou a ler mão. A leitura de mão era genial porque não é uma leitura de acontecimento, é uma leitura descrição do ser e da personalidade. Eu li mão muito bem naquele período, aprendi o que ele fez e ainda ele me deu uma literatura de alto nível.
P/1 – Você aprendeu a ler por linhas?
R – Por tudo, por linhas, por uma porção de elementos. Eu sabia ler mão muito bem nessa época. Quando eu voltei era um absurdo, eu fui lá aprender isso e fiquei com um sucesso incrível com as meninas aqui no Brasil. Eu lia a mão de todo mundo. Há alguns anos eu encontrei uma senhora que falou: “Jorge, quando você chegou do Egito leu a minha mão numa festa e me disse tudo. Eu fiquei aterrada e aconteceu tudo.” Alice Carta, ela era uma menininha bonitinha que era amiga de uma amiga minha. Eu fui numa festa e li a mão das meninas e li a da Alice Carter, porque uma profissão minha era ler mão naquela época, era um sucesso. Ela falou: “Aconteceu tudo, o casamento com o Luís, as coisas…” Tudo que a vida dela virou... Porque ela era uma boboca, ninguém ia imaginar que ia ser uma espertalhona como era. Eu falei: “Você não tem nada dessa carinha loira que você tem. Você vai ser assim, assim, vai aprontar, vai desmanchar casamento, vai fazer…” Tudo deu inteiro na vida da Alice Carta. Eu só soube disso porque ela me contou anos e anos depois. Eu nem lembrava que eu tinha lido a mão dela, porque ela chamava Biderman, não sei como é que chamava… Era uma loirinha judia que tinha outro nome e eu nem lembrava que aquela que eu tinha lido virou a Alice Carta. Eu aprendi coisas... No Egito teve a mudança do Nasser. O Nasser e os coronéis tomaram conta, todos aqueles franceses caíram fora, e um dos últimos que eu fui visitar era um judeu que tinha uma coleção de quadros sensacional. Tinha Magritte e todos os impressionistas franceses no apartamento dele. Ele era amigo do frei Reginaldo e contou para a gente: “Estou numa dúvida, é o seguinte: minha família já foi, agora estou entre eu ir com ou sem os quadros. Eu sem esses quadros não valho nada em lugar nenhum, mas com esse quadros a minha vida vai ser muito boa. Os quadros podem ajudar muito.” Ele estava num grande problema de como ele ia negociar, eu até brinquei com ele: “Por que você não dá uns dois quadros para um coronel e leva outros? No Brasil seria assim.” Os coronéis acabaram tomando conta e as únicas pessoas que não foram expulsas do Egito foram as freiras do colégios de freira do Cairo, porque os coronéis queriam ter as freiras para educar os filhos deles. Mesmo sendo socialistas e o caralho, queriam uma boa educação e fizeram com que os colégios todos continuassem. Eles tiveram uma educação forte baseada nisso, esses Hassan, depois que foram expulsos... Tudo era filho dessa geração que foi educada em Zamalek, no bairro chique. Depois eu encontrei o frei Reginaldo mais uma vez, em Beirute, que ele morou num outro convento lá. Depois ele voltou para o Brasil, morou no convento do Leblon e morreu. Eu não vi mais, no fim da vida… Mas foi uma influência absolutamente marcante na vida da gente.
P/1 – Você já tinha pensado em, quando voltasse, o que iria fazer profissionalmente?
R – Nessa época – e mesmo no São Bento – eu era poeta. Era um prosélito, eu ficava falando tudo... Eu fazia conferência no _________, no Equipe. Tanto no fim do São Bento quanto no começo da faculdade eu falava em todo canto e os meus temas eram sempre os mesmos: necessidade da política, Saint-Exupéry, aquela relação com o outro e a mística, e a poesia. Eu era poeta e não tinha a menor ideia de trabalhar, queria gozar do jeito que o frei falou. Isso nem passava pela minha cabeça: “Pô, precisa cair uma grana”, porque você não tinha ideia do que seja trabalhar e nem sentia necessidade nenhuma. Todos os meus colegas estavam se encaminhando para ser juiz e eu não estava me encaminhando para ser nada. Eu falava, eu continuava um orador, ficava falando. Outro dia, no casamento do filho do Fernão, eu encontrei um último remanescente dos padres do Colégio Santa Cruz. Ele me falou: “Jorge, eu me lembro quando eu tava no seminário do Ipiranga e você fez uma conferência muito bonita lá.” Eu falei: “quando?” Ele falou: “Em 1949.” Eu tinha dezoito anos, e ele falou: “Você fez uma linda conferência sobre Saint-Exupéry e todos os padres, os alunos, ficaram muito impressionados.” Eu nem lembrava que eu tinha ido lá, o que eu tinha falado, e ele lembrava tudo. Eu achei impressionante um senhor, um padre importante, o último que ficou no Santa Cruz... A resposta é essa: eu não tinha a menor ideia de trabalhar. Quando eu saí da faculdade eu fui trabalhar no escritório do Mario Mazagão. Eu me lembro do papel timbrado do escritório dele. Eu acho que não teve uma petição que eu fiz, mas teve umas vinte poesias que foram para o meu livro, Mão de Obra. Eu comecei a trair a poesia com a política.
P/1 – Quanto tempo você ficou no escritório do Mazagão?
R – Eu fiquei um ano só. Ele viu que não dava.
P/1 – Você saiu...
R – Começa uma coisa maluca, eu e o Modesto... O meu irmão era sócio do irmão do Modesto. Eles eram jovens economicamente precoces, já tinham um escritório de engenharia muito grande. Eu e o Modesto fomos trabalhar lá. Eu, poeta, virei empreiteiro de obras públicas, que só tinha mutreta, corrupção, dinheiro... Nós ficamos muito ricos, não precisava nem dinheiro do meu avô nem dinheiro de ninguém. Tínhamos dois aviões, era uma orgia...
P/1 – Você e o Modesto?
R – Eu, o Modesto, meu irmão e o Carlos.
P/1 – Vocês ganharam dinheiro como? Vocês eram advogados da empreiteira?
R – Éramos a maior empresa do segundo time. A gente não era a Camargo Corrêa...
P/1 – Como era o nome da empresa?
R - CCA Consultores Associados. Primeiro, era Cunha Lima & Carvalhosa. Foi uma empresa que foi crescendo muito e eu e o Modesto trabalhávamos lá.
P/1– Que obras vocês fizeram?
R – Nós fizemos a Hidrelétrica de Sobradinho, nós fizemos todos aqueles viadutos do Rio de Janeiro, que você vê quando desce do Aeroporto, nós fizemos o Metrô da parte de Santana, fizemos o Aeroporto de Brasília, fizemos mil coisas na época. Éramos muito ricos e muito jovens. Agora a minha vida nunca ficou assim, porque o Carvalho Pinto se candidatou, depois do Jânio, a governador. O Carvalho Pinto era amigo do Montoro, do pessoal católico... O Plínio foi convidado para ir trabalhar com o Carvalho Pinto, para ir fazer a campanha. Eu era metido a fazer comunicação, achavam que eu era bom de comunicação, mas eu trabalhava com meu irmão. Eles me convidaram pra ir lá e eu inventei uma porção de moda: inventei aquele pintinho, que o Carvalho Pinto era careta… Pusemos um pintinho com uma vassoura, distribuímos milhões de pintinhos...
P/1 – Você que inventou aquele pintinho com a vassoura?
R – Eu inventei o pintinho, e o Marcos Pereira inventou a vassoura que era para pôr no pintinho, porque era para o Jânio Quadros...
P/1 – Você trabalhava na empreiteira e fazia isso?
R – Fazia isso de amador, para ajudar. Acabou a campanha, eu voltei para trabalhar e estava pouco me lixando para política. Eu não ligava para política partidária, eu ligava para política transcendental. Aconteceu uma coisa interessante. O Plínio um dia me ligou, ele era subchefe da casa civil do Carvalho Pinto e ele que fazia o plano de ação. O Carvalho Pinto foi o primeiro estadista brasileiro que fez planejamento de Estado, reservou verbas e fez um planejamento. Tudo dele teve planejamento, foi o maior governador que teve nesse país. Muito antes do Juscelino ter plano de metas, o Carvalho Pinto que inventou. Um capitalista fez um planejamento de tipo socialista: pega verba, destina e aplica com a completa tese de planejamento socialista. O Brasil é louco. Fez isso, chamava plano de ação. Um dia, o Eisenhower vinha ao Brasil e o Plínio falou: “Jorge, o Carvalho Pinto falou: ‘Plínio, aquele seu amigo tão inteligente que faz discursos não podia escrever esse discurso para o Eisenhower’?”, porque ia ter um almoço no Fasano da Avenida Paulista para ele. Eu falei: “Posso fazer, claro.” Eu fazia qualquer coisa, peguei e fiz um belo discurso para o Eisenhower sobre a guerra, mandei para o Plínio e esqueci do assunto. Um dia eu estava de Volkswagen – tinha evoluído da lambreta para o Volkswagen; não estava ainda muito rico porque eu ainda não era sócio, ainda era empregado –, liguei o rádio meio-dia e falei: “Ué, estou conhecendo essa fala.” Era o meu discurso, o Carvalho Pinto fez inteirinho, na íntegra. Eu falei: “Porra, nem me convidaram para o almoço” (risos), tinha feito o discurso e tal. Passou esse episódio e, quando o Prestes Maia ganhou a eleição para prefeito, chamou o Plínio de Arruda Sampaio para ser secretário da Justiça e o Carvalho Pinto mandou me chamar para ser subchefe da Casa Civil. Eu larguei a empresa...
P/1 – Já estava rico, não?
R – Eu estava bem situado na vida, então era interessante. Eu era de uma boa família, de empreiteiros, católico, era tudo muito bom para o Carvalho Pinto. Eu era um homem de comunicação, então eu fui para a subchefia não para tomar conta do plano de ação, que era coisa de economista e ficou com o Diogo Gaspar, eu fui lá para... Imagina, um governo que só tinha velhos?
P/1 – Subchefe de gabinete?
R – Da Casa Civil, não era porcaria! Eu tinha 23 anos e subchefe da Casa Civil. Eu tomava conta do serviço de assistência aos municípios e aos bairros. Chamei um oficial de justiça, um investigador que tomava conta disso e chamava-se Juvenal Juvêncio, que é o atual presidente do São Paulo. Menino espertíssimo, eu falei: “Você não pode ficar ignorante desse jeito, vai fazer Direito porque vai subir na vida.” Ele fez tudo, subiu na vida e hoje é presidente do São Paulo. Nunca mais eu vi, nunca me convidou para ir nos shows, na tribuna, mas eu esqueci também. Eu fui ser subchefe da Casa Civil. Para ser subchefe da Casa Civil aconteceu um fato muito engraçado: um dia, cinco horas da manhã, telefonaram para minha casa, eu atendo o telefone – eu morava na casa dos meus pais – e era o Portugal Gouvêa, pai da Gilda. Ele falou: “Jorginho, o governador quer falar com você hoje à tarde, você pode vir aqui às três horas?” Eu desliguei o telefone, dormi e achei que eu tinha sonhado. Quando eu acordei a minha mãe falou: “Tocou o telefone essa madrugada, você atendeu?” Eu falei: “Atendio o telefone, achei que eu estava sonhando. É um telefone para ir no Palácio.” Eeu fui no Palácio e o Carvalho Pinto, todo cerimonioso, falou: “O senhor gostaria de ficar no cargo do Plínio?” Eu falei: “Gostaria, mas o senhor pode pensar...” Passou um dia, dois dias, três dias e ninguém mais me falou nada. Teve um movimento de empreiteiros que achava que eu era comunista – lá da Camargo Correa, um velho –, foram no Carvalho Pinto e daí começou uma discussão. O Portugal Gouvêia falou: “Governador, não tem nada disso... Ele é melancia: verdinho por fora, vermelhinho por dentro (risos), mas não tem o menor problema. É católico, rico e tal.” Eu fui nomeado subchefe e foi uma experiência fantástica, cuidava dos bairros, cuidava da comunicação com o Marcos Pereira, e chamei um cara muito interessante pra fazer a propaganda para a gente, o Neil Ferreira, um moleque brilhante que depois foi da DPZ. O Neil que fazia as coisas.
R – A experiência no Carvalho Pinto foi muito interessante, porque você chega nas coisas... Eu fiquei muito espantado: como é que eu sou convidado por um governo conservador, só de pessoas bem mais velhas, para ir tão moço tomar conta da subchefia da Casa Civil? Há duas experiências que são muito fundamentais para o homem. Uma é a experiência política que dá a faculdade de Direito, ela deu uma experiência política muito grande. Depois, dá uma experiência instintiva de marketing, porque todo mundo lá fala, todo mundo faz propaganda de si mesmo, das suas causas. A JUC foi uma grande escola de marketing, como o Partido Comunista era uma grande escola de marketing. A cultura, quer dizer... A poesia – eu tenho falado um pouco de poesia aqui nesse depoimento – me acompanhou sempre. Desde o primeiro poema, que eu fiz num estágio primário e primitivo de sensibilidade... Um dominicano nos levou para Minas Gerais – isso nós estávamos na faculdade – para ver o que é a vida simples. Nós ficamos na fazenda de uns negros amigos dos dominicanos e passamos o mês de julho inteiro vivendo uma vida como eles viviam lá. Éramos um grupo grande, uma vez eles resolveram fazer um passeio para uma outra fazenda e nós fomos de carro de boi. Nós vimos que a distância é diretamente ligada à roda e ao jato, porque naquele carro de boi a distância pareceu uma coisa imensa e não era tão longe: as tais léguas da fazenda eram pertíssimo. É a roda que faz a distância, a capacidade de você rolar, rodar em cima de alguma coisa, ou então entrar num jato – que aconteceu mais tarde. Nessa época eu comecei a fazer poesia, e a primeira poesia – sempre, como eu disse, eu queria ser santo e era ligado ao assunto – eu estava passeando assim, voltei... Fui caminhando no atalho que eu aprendi a amar, no sentido contrário do rio, sentindo o sentido do medo. Com essa poesia, esse atalho detonou o caminho, detonou a alameda e detonou a utopia, três instâncias do percurso. A poesia começou nesse período. A poesia era também um instrumento da minha retórica, porque quando eu falava nas coisas era uma mistura de poesia com... Tanto é que todo mundo que me conhece daquela época me conhece como poeta, só depois de oitenta é que eu fui conhecido como político, com a entrada na campanha do Montoro. Eu pretendo agora retornar à minha identidade poética, porque da poética eu tenho uma lembrança muito boa.
P/1 – Na adolescência você tinha essa vontade de escrever?
R – Na faculdade de Direito a gente era adolescente, apesar dos vinte anos. A adolescência no Brasil vai até trinta anos, no mínimo. É um dos únicos dos países do mundo...
P/1 – Quando que você sentiu esse contato?
R – A poesia básica foi entre dezessete anos que começou, e na Faculdade de Direito que eu escrevi muita poesia. Eu contei aqui, no primeiro escritório de advocacia que eu fui trabalhar só tem textos poéticos, não tem uma petição. No Carvalho Pinto eu tive que ter uma ação política, mas eu não deixei de fazer as minhas palestras. Eu fazia minhas palestras para as menininhas do Des Oiseaux. Outro dia, eu não sei se eu contei, mas acho que foi depois que eu vim aqui… Eu fui a um casamento, tinha um padre antiquíssimo que estava no casamento e me falou: “Jorginho, eu me lembro quando você foi no seminário, o maior do Ipiranga, onde eu estudava, e fez uma conferência.” Eu falei: “Puxa, não tenho a menor ideia. O que eu falei?” Ele falou: “Você falou para nós, para os padres, tudo sobre Saint-Exupéry e foi muito importante.” Tanto que ele lembrava até hoje, o homem foi o último membro da comunidade que criou o Colégio Santa Cruz, e lembrava que eu tinha falado do Saint-Exupéry. Então era uma mistura de religião com poesia e com política. Agora, como é que foi que a política detonou? Nós éramos lacerdistas envergonhados, mas éramos. Tudo lanterneiro, queríamos defender aquela democracia udenista que o Carlos Lacerda era o porta-voz. Quando eu estava na Suíça, naquela história do Rearmamento Moral, [com] a cabeça muito agitada para pensar no destino: “Que história é essa de rearmamento moral, comunismo e não sei o quê…”, salvação do mundo, morreu Getúlio. Foi, para mim, como se tivesse tido um raio de lucidez. A morte do Getúlio me acabou com todos os DEMs, todos os PFLs, todas as Arenas e todos os PSDs que tinham e que eram a direita – que não tinha aquele tempo, mas viria a ter; é tudo a mesma coisa. A minha cabeça mudou completamente. O que mudou a cabeça política da minha geração foram três fatos: a morte do Getúlio; o ISEB [Instituto Superior de Estudos Brasileiros], que era um grupo nacionalista do Rio de Janeiro – do Cândido Mendes, do Guerreiro Ramos, do Corbisier – que propunha uma ideia de nação, uma ideia de nacionalismo e uma ideia de desenvolvimentismo industrial. Aquilo nos tomou conta e ficou uma coisa importantíssima na nossa vida, tanto é que nós criamos um grupo na faculdade de Direito que se chamava O Porão e a gente ia na casa do José Osório Júnior. Quem? Plínio de Arruda Sampaio, Zé Osório, Luiz Carlos Bresser Pereira, às vezes o Fernão… O Luiz Eça. Você imagina que sempre a mesma turma. Nós éramos fervorosos avaliadores e analistas do nacionalismo, de uma política de petróleo, de uma política de nação – tudo que o ISEB nos ensinava – e vacinados contra a UDN [União Democrática Nacional] pela morte do Getúlio. Outra coisa que nos deu uma visão de Brasil... Eu disse que eram três: foi a morte do Getúlio, foi o Iseb e a terceira coisa foi muito importante. Quando nós íamos para o norte, nos congressos da JUC, fomos uma vez para Pernambuco. Fomos pelo rio São Francisco e, quando chegamos em Pernambuco, o que eram as nossas teses paulistas eram: a mística renana, uma série de coisas ligadas a uma escatologia, a uma ideia mística do mundo... Os nordestinos, meninos da mesma idade nossa, dezenove, vinte anos, as teses deles eram: migração nordestina para Amazônia, ida, decepção, retorno, Reforma Agrária... A gente ficou espantado que num mundo de Deus começou a aparecer a cidade dos homens, o outro lado de Santo Agostinho. A gente só pensava no mundo de Deus, agora o mundo dos homens quem nos revelou foi o Nordeste, porque nas nossas visões pequeno burguesas – ou altamente burguesas – era melhor que a salvação fosse feita através da mística e não através da transformação da sociedade. Essas foram coisas muito importantes. Do Carvalho Pinto em diante tinham razões aqueles me chamavam de melancia porque eu era verdinho por fora e vermelhinho por dentro mesmo, só que era um vermelho cristão e não um vermelho marxista. A gente conhecia pouco o marxismo, afora as informações convencionais. Na Faculdade de Direito eu fiz muita poesia. Eu não lembro a sequência dos meus livros, mas o primeiro foi o Ensaio Geral, que é um livro bastante místico, depois eu fiz...
P/1 – Que ano foi isso?
R – Não sei, só vendo a capa do livro. Não tenho a menor ideia. Não há a menor hipótese de eu poder revelar a idade de nada porque eu não sei. Eu só sei que eu vou fazer oitenta anos, mas o tempo nunca foi…
P/1 – Você que publicou o livro? Foi uma editora?
R – Eu era muito ligado ao pessoal da Livraria Martins, eles gostavam muito e publicaram meu livro. Foi um livro bem bonito, bem feito. O segundo livro foi 64, Revolução, eu já tinha me casado, não contei isso... Foi um livro chamado Mão de Obra: “Está cara a mão de obra, muito mais cara que a obra, a mão que nela se acaba.” Depois veio uma fase em que a mão de obra foi substituída pela mística de Aquarius, pelo novo mundo. Estávamos todo mundo, depois de 60, 70, mergulhados no mundo do rock, daí veio o Véspera de Aquarius, que foi o meu último livro de poesia publicado. Nesse período eu publiquei dois pôsteres, um que foi Réquiem para Jimi Hendrix e outro foi uma provocação para a revolução que eu fiz junto com o Véspera de Aqurius, que era Não vou engraxar a bota do chefe, uma poesia em que a gente provocava o Figueiredo. Por uma grande ironia… Eu estou pulando a história, mas é engraçado. Quando eu lancei esse livro no Rio [de Janeiro] – editado pelo Massao Ohno, eu acho que pela Nova Fronteira –, eu estava num lugar muito chique e sentado ao meu lado estava um jovem estudante de Economia que era muito bonito, todas as menininhas estavam em torno dele, mais do em torno do lançador do livro, que era o Malan, nosso ministro que tinha um prestígio com as menininhas da PUC [Pontifícia Universidade Católica] do Rio. Todos aqueles meninos da PUC do Rio eram muito prestigiados com as menininhas, o Lara Rezende e tal, mas o Malan era o galã. Não houve um rebuliço, um sussurro no meu lançamento que foi numa galeria de arte muito chique em Ipanema, quando eu vejo entrando com uma bengala a mulher do Figueiredo, dona Dulce Figueiredo. Todo mundo perplexo, eu tinha um pôster desse tamanho: Não vou engraxar a bota do patrão. Ela falou: “Moço, eu vim ao seu lançamento porque eu vi o afiche no jornal, achei muito bonito e vou pôr na minha sala de visitas.” Eu falei: “Estamos vivendo o puro surrealismo”, porque era absolutamente imprevisível. Era uma bota engraxada, preta, e uma poesia desaforadíssima: eu cansei de engraxar a bota do chefe, falei para ninguém mais engraxar e, no fim, peguei o cadarço e me enforquei com o cadarço da bota do chefe. Era um libelo incrível e dona Dulce Figueiredo foi me prestigiar no afiche, a vida é muito interessante. Quando eu saí da faculdade de Direito fui trabalhar, fui ser empreiteiro de obras públicas com meu irmão. No meio dessas empreitadas eu continuava frequentador do Museu de Arte Moderna, das pinacotecas, do Relógio do Mappin e dos bares que o Cotrim abria sucessivamente. O Cavi foi onde eu lancei meu livro, porque lá a gente fazia, às segundas feiras, música clássica... Era um bar cultural finíssimo, músicas clássicas... A minha namorada, aquela da Alemanha, tocou cravo lá, a mãe dela tocou cravo... Imagina um concerto de cravo num bar que só se bebia whisky. Uma vez a gente estava bebendo e estava conosco o Vinicius de Moraes. Eu deslumbradíssimo com o poeta, Vinicius de Moraes. A gente ficou, quando chegou quatro, cinco horas da manhã, ele falou: “Nossa, eu esqueci que eu deixei um táxi me esperando aí na porta para me levar para o Rio de Janeiro.” Eu falei: “Mais quatro, menos quatro horas, não tem a menor importância.”
P/1 – Vocês ficaram conversando com ele?
R – Ficamos a noite inteira bebendo e conversando no Cavi depois do concerto de cravo, ele ficou até quatro, cinco horas e esqueceu que tinha um táxi esperando para levar ele para o Rio de Janeiro. Era uma vida, um misto de boemia... Eu me lembro quando o Gulda tocou no Municipal, nós saímos e fomos todos para o __________. O Gulda ia tocar piano, ele era um grande tocador de jazz e virou um dos maiores pianistas, intérpretes do mundo, ele tocava lá. Quem ia com a gente era o Dilson Funaro, também ministro, que tocava piano e adorava uma boemia antes de casar. Era a coisa mais formidável: aquele alemão, o Gulda, germânico até a alma, tocando jazz americano e acompanhado pelo Azeitona, que era um preto baixinho que tocava um contrabaixo altíssimo e era um jazzista incrível. Eram noites memoráveis. Nesse ínterim eu escrevia uma coluna que se chamava Paulicéia Desvairada para o Última Hora. Eu escrevia de tudo, porque eu viajava... Todas essas histórias que eu contei da Europa, de Carvalho, eu contava na Paulicéia Desvairada, inclusive contava as festas e as coisas que a gente ia. Uma vez a Eliana Selmi Dei deu uma festa... Estou em dúvida se foi na fase política ou se eu escrevi isso na fase do Correio Paulistano na Janela Indiscreta, mas para vocês terem ideia do que era São Paulo, essa nova burguesia, ela deu uma festa de aniversário e era uma festa hindu. Todos nós tínhamos que ir de turbante, éramos todos socialistas e um turbante que custava uma fortuna, porque era uma chapeleira que fazia chapéus pra todo mundo e ela fez os chapéus para a gente. Houve uma chegada triunfal do Lairzinho Cochrane, que chegou na Rua Estados Unidos, na casa dela – que hoje é o Bank of Boston –, montado num elefante. A chegada foi de tal triunfalismo que ela se casou com ele. Ele tinha um bom nome; era um milionário duro, mas de boa imaginação. Chegou de elefante e casou com a Eliana, o Lairzinho Cochrane. Na festa, para você ver a alienação que a gente vivia, como era ambíguo o meu mundo, porque eu já era um cristão socialista completamente definido na poesia e na teoria: a festa era servida... Todos os empregados que serviam eram negros altíssimos que entravam na sala na hora dos doces com bandejas de doces hindus, um atrás do outro. É um mundo de completa alienação. Outra coisa, que hoje eu não sei se é menor e talvez tenha outras características: naquele tempo, as festas de quinze anos das meninas ricas eram absurdas. O pai dela tinha um moinho de trigo e não era pobre, mas depois do Jânio Quadros o moinho se converteu em bandejas de ouro, turbantes e outras coisas. Foi uma coisa muito interessante como experiência. Ao mesmo tempo, eu saia daí e ia para o Rio São Francisco, para as coisas... Fui trabalhar na empresa do meu irmão e ganhamos muito dinheiro. Eu não conhecia o Samuel Wainer, mas estávamos nos aproximando de um período muito difícil em que a Última Hora brigava com o Ademar de Barros, que substituiu o Carvalho Pinto; em que o Jango começou a brigar com o mundo, levou aquela turma da Marinha para fazer comícios; e o diretor de São Paulo, o Miranda Jordão, que era um rapaz, fez uma charge com o Pelé vestido de Nossa Senhora de Aparecida. Pelé era mocinho, muito esperto. O Ademar de Barros aproveitou isso para fazer uma passeata, um desagravo à Nossa Senhora da Aparecida. A situação do Samuel, que era uma pessoa da composição – ele não era bivalente, queria compor o poder, tinha uma obsessão pelo poder. Um homem de um charme, simpatia e talento inacreditáveis. Samuel Wainer viu que a situação em São Paulo estava complicada. Um carioca forasteiro era o diretor dele, mocinho, petulante, provocando a Nossa Senhora da Aparecida e dando colher de chá para o Ademar de Barros, comunista. Toda a redação de comunistas. Um dia encontrei no avião, muito feliz de ser, apesar de empreiteiro, colunista do Última Hora. No avião, por acaso, a gente sentou numa ponte aérea para o Rio de Janeiro. No meio da ponte aérea o Samuel falou: “Jorge, você não quer ser diretor da Última Hora de São Paulo?” Eu falei: “Olha, se eu fosse tão louco quanto você, eu aceitaria já. Você nem me conhece e nem eu te conheço; eu te conheço mais porque você é famoso, mas é um convite absurdo. De qualquer jeito, é uma coisa para a gente pensar.” Quando voltei pra São Paulo eu pensei no Grupo Porão, pensei em todo mundo, pensei na Santa Igreja, na minha santidade… Falei: “Porra, não vou perder a chance de ser diretor do segundo jornal mais importante do país. Vou topar.” Falei com a minha família e eles falaram: “Tudo bem, mas cai fora da empresa que vai sobrar para nós.” Ao mesmo tempo, o Samuel era importante demais e o Jânio presidente. Nós tínhamos obras públicas e o empreiteiro vive numa gangorra. Eu ia por outros motivos, não estava nem pensando que existia empresa. Da empresa eu aproveitava a grana, mas eu fazia o Teatro Oficina, não estava nem aí com estratégia do que ia ser bom para a empresa... Foi péssimo para a empresa, anos mais tarde o Delfim nos trucidou. Eu liguei para o Samuel e falei: “Eu topo”, mas eu não tinha compreendido porque esse homem tinha me convidado. Por que ele me convidou? Eu era católico, era amigo do cardeal, era amigo do Carvalho Pinto, que era o establishment completo de São Paulo, era rico... Para o Samuel eu estava ligado ao establishment financeiro, ao establishment político, com o Carvalho Pinto, à Igreja… O Samuel não fez nada de porra louca no avião, ele fez aquilo em um cálculo perfeito: “Esse moleque vai ser perfeito, e intelectual ainda.” Ele me chamou no Rio e eu tive duas experiências muito interessantes. Uma, ele falou: “Tem um jornal e uma revista que nós vamos lançar...” – quem inventou o segundo caderno no Brasil foi o Samuel Wainer. “Nós vamos lançar o Segundo Caderno com grande campanha” – campanha era fazer outdoor – “e isso é uma tarefa sua. A primeira página do jornal é assim, você precisa aprender: você fala de política, que é o assunto mais importante que existe na imprensa, polícia, e futebol.”
P/1 – E cultura?
R – Nada de cultura: política, polícia e futebol. Tendo isso na primeira página você vende o jornal. Se um dia cair um abençoado avião a gente segura um mês, porque daí a gente sobe vinte por cento de tiragem se você segurar a notícia um mês. Pode? Eu fui aprendendo. Ele falou: “A primeira página, Jorge, fica nesse teor um pouco por minha conta. O resto do jornal você faça como quiser, convide quem quiser.” Eu convidei Inácio de Loyola, convidei o desembargador Odilon da Costa Manso... Eu fiz uma barafunda de colunistas. Convidei aquele menino que morreu agora para colunista social, um mocinho... Convidei o Ricardo Amaral. Eu fiz um jornal de segundo caderno que era de total ambivalência: eram esses meninos, todos talentosos e establishment, como Odilon da Costa Manso, que era desembargador e de uma família tradicional. O Samuel publicava todo dia um artigo na primeira página defendendo o Jango. Eu falei: “A única coisa que eu não concordo é que o editorial em São Paulo para o Jango, não dá. Aqui tem que maneirar com o estado, você vai conquistando aos poucos. A gente vai fazendo umas reuniões, mas necas de…” Ele concordou. Eu não publicava o artigo da primeira página a favor de plebiscito. O Jango estava num regime parlamentarista e ele queria ser presidente. Eu falei: “Não se mete nisso, deixe por minha conta que dessa burguesia aqui eu entendo.” Foi um período brilhante e maravilhoso, só que caminhava o atrito entre Jango e a sociedade burguesa, os Estados Unidos... Todo mundo achava que nós vivíamos no meio da corrupção e do comunismo. Daí, o Samuel um dia chamou pra um jantar. A casa do Samuel era um barato: ele morava numa residência e tinha um mordomo que tinha sido mordomo do Moreira Salles e que depois veio trabalhar na casa da minha sogra, que era burguesa tanto quanto. Esse mordomo não falava, o Samuel estava na sala e ele vinha com um quadro negro – Samuel era comunista – escrito: “Telefone, fulano.” O Samuel fazia assim [gesto positivo com a cabeça] ou assim [gesto negativo com a cabeça], atendia ou não atendia os telefones. A mulher do Samuel – nesse período ele tinha desquitado da Danuza Leão – era a filha dde uma das dez mais elegantes, uma mulher finérrima. Como ela chama? Depois eu vou lembrar o nome...
P/1 – Brasileira?
R – Sousa... Brasileira finérrima. O Samuel vivia ocupado porque ele tinha que dar presentes para ela. Ela queria comprar um carro, então ele ligava para uma empresa para trazerem um carro e eu acho que era tudo permuta com a Última Hora. De qualquer jeito, ele vivia feito um príncipe. Ele fez um jantar em que ele levou o Rahl, o Silveira, o Paulo Francis, Adalgisa Neri e toda patota do Rio que escrevia no jornal para me apresentar e também para mostrar o elenco dele, como é que era o negócio. Ele faz a pergunta mais complicada do mundo: “Imagine que o Jango dê um golpe no Brasil.” Eu falei: “Ai, meu Deus... Deve estar querendo dar mesmo.” “O que os senhores, que são editores, colocariam no jornal?” Um lá: “Eu sou contra golpe,” o Paulo Francis já disse um desaforos... Um que era muito inteligente, falou o seguinte: “Eu, primeiro, vou me informar se a notícia é verdadeira, antes de saber o que eu vou fazer. Depois eu vou reunir o pessoal...” Cada um deu... Eu não me liguei muito para a questão de se era ou não, o que eu devia fazer no jornal com a notícia, mas fiquei encafifado com o fato. Se o Samuel está falando isso, ainda que de brincadeira, para ver o que eu faria, o que ele está querendo dizer é que há essa possibilidade. O golpe virá, do próprio Jango virar essa mesa... Ele não ia pôr uma questão dessa por puro casuísmo intelectual. A coisa foi encrespando, São Paulo foi se colocando contra e a minha posição foi ficando muito complicada, porque eu passei a ser um traidor da burguesia. Na casa do meu sogro... O meu sogro era integralista, nazista – eu chamo ele de nazista por raiva – e muito rico. Tinha dezesseis empregados na casa dele, na época. O mordomo que veio do Rio ficou trabalhando com eles aqui.
P/1 – Quando você conheceu sua esposa?
R – Eu conheci minha esposa quando ela tinha uns oito anos, na casa do Luís Monteiro e da mamãe. O Luís Monteiro casou com a mãe quando a minha mulher tinha um ano. Ela não era filha dele, mas era meio adotada, a minha sogra casou com ele e ela era do Rio. Eles viviam, apesar de serem burgueses, milionários e nazistas... Ele, ela não era nada... Eles deram um grande jantar para o Samuel Wainer – porque o Samuel era muito importante pra ser desprezado – e me lembro que nesse jantar eles puseram talheres de ouro na mesa. Fizeram um jantar desses para o Samuel, você não acredita. O Samuel contou uma história muito interessante. O Luís Monteiro era filho do R Monteiro, que foi a primeira cadeia de lojas do Brasil. Era de casimira, do tempo que a gente fazia terno em alfaiate. Ele foi o cara – não o meu sogro, mas o pai dele – que inventou as cadeias de lojas, foi a primeira do Brasil. Em cada lugar que ele fazia uma loja, à exceção do Edifício Itália, ele fazia um prédio. Ficava com uma loja e um prédio em cima, sempre. Esse velho, Roque Monteiro que era o pai do meu sogro e um homem interessante, como esses fundadores de grandes empresas. Os filhos, em geral, ficam uns idiotas, mas os pais são interessantes. O Samuel falou: “Eu acho irônico eu estar comendo aqui na sua mesa com esses talheres e tudo isso porque o meu pai” – que veio da Bessarábia, não sei de onde – “era mascate.” Vendia aquelas malas… O mascate levava a mala para o interior para vender coisas. Ele falou que um dia ele chegou em casa feliz da vida, porque falou: “Hoje eu fui no seu Roque Monteiro e ele me deu crédito, então agora eu posso pegar as casimiras, levar para o interior, vender e depois que eu pago.” Ele falou que este dia tinha sido o dia mais importante da vida do pai dele e naquela noite ele estava jantando na casa do Monteiro, que era filho do Roque. Até aí, estamos no mundo paradisíaco dos interesses. Quando chegou a Revolução [de 64], quando foi se aproximando, Samuel foi percebendo que aquela tensão podia dar tanto no golpe do Jango – na minha opinião – quanto em um golpe do Exército e da burguesia de São Paulo, que se preparava freneticamente com aquela organização dos quarteirões, com a Marcha da Família com Deus, com a montagem de um campo de resistência em Cubatão, com montagem de alguns núcleos de resistência no interior e com algum acerto de esquadra americana perto de Santos, porque Cubatão era um lugar perigoso, tinha muito comunista. Estou falando de São Paulo, eu não conheço como foi fora daqui.
P/1 – Fora daqui...
R – Em São Paulo tinha dois grandes caras perigosíssimos: eu e o meu primo Chico Whitaker, que era presidente da Supra (Superintendência da Reforma Agrária). O Chico Whitaker é a ala minha que era socialista, o Chico...
P/1 – O Chico que foi vereador...
R – Foi vereador, foi preso, um cara sensacional. Eu citei nós dois pelo seguinte: no dia 31 teve o golpe e a turma achava que ia ter resistência, que ia ter luta armada e que ia ter uma porção de coisas. Não teve nada. Os comunas conseguiram se mandar, tanto é que só foram presos muitos anos depois, quando houve aquela reunião na Barra Funda. Ninguém foi preso ali, foi a coisa vapt-vupt porque houve a adesão do Kruel, que era o comandante do segundo exército de São Paulo. O Kruel era um homem do Jango, tanto que o Samuel Wainer foi comigo no Kruel antes da Revolução – daí que eu vi que a coisa tava preta – e falou: “General, a Última Hora é um patrimônio nacional. Não é um problema meu e nem nada. Se houver qualquer coisa, eu peço que o senhor impeça que a Última Hora seja empastelada porque aquilo é um patrimônio pro futuro.” O Kruel é um cara que tinha pretensões políticas. Nós fomos ao comandante do segundo exército e o Samuel pediu: “Esse é o Jorge da Cunha Lima, o diretor de São Paulo” – me deu toda apresentação, com todas as qualificações de burguês, de poeta, de escritor, de católico –, “se houver algum problema eu quero que você receba o Jorge e não deixe acontecer nada para a Última Hora.” Dizem que o Ademar de Barros chegou para o grupo que estava apoiando a Revolução e falou: “Nós precisamos conquistar o Kruel, precisamos levar alguma coisinha para ele.” Dizem que o Ademar conseguiu levantar duas caixas com dois milhões de dólares em espécie e, muito sem vergonha, teria dado uma caixa para o Kruel e a outra ficou para ele. Isso mais o telégrafo, que eu disse: no Brasil, enquanto houver telégrafo, não tem revolução. Houve o golpe de 31: quem adere, quem não adere... A coisa começou em Minas – o exército de Minas aderiu –, tinha em São Paulo o Ademar de Barros, tinha em Minas o Magalhães Pinto e no Rio Grande do Sul o Brizola queria fazer resistência, mas não conseguiu. O exército do Rio Grande do Sul veio vindo pra São Paulo e faltava só o Kruel entrar na coisa. O Kruel se entendeu por telégrafo com o comandante do Rio Grande do Sul e foi encontrá-lo em Santa Catarina. No 31 de março, não me lembro que horas, foi proclamado o Golpe e começou aquela situação desesperadora na Última Hora. Nós, em todos os dias anteriores, tínhamos a convocação de sindicatos, aos milhares, para ir fazer greve em apoio daquele movimento que teve no Rio de Janeiro, dos sargentos. Ao mesmo tempo tinha tido a Marcha da Família com Deus em São Paulo e, eu não sei se eu contei esse episódio aqui, mas a marcha reuniu quinhentas mil pessoas... Era uma coisa de louco. Eu me lembro que na casa do meu sogro eles pegaram todos os empregados, vestiram eles e foram para a marcha com os empregados. Todas as famílias fizeram isso. Era uma marcha burguesa, mas uma marcha com quinhentos mil burgueses – ou não – e classe média. De noite eu cheguei no jornal e a manchete era: “Mulheres histéricas fazem movimento no viaduto”, qualquer coisa do gênero. Eu chamei o Armindo Blanco, que era o meu chefe de redação, e falei: “Armindo, me dê as fotos desse movimento.” Vieram fotos com milhares… “Quinhentas mil pessoas é uma coisa de louco, parece que é três milhões. Como você vai pôr uma foto dessa e dizer que são mulheres histéricas? Isso é uma irrealidade completa, um absurdo. Você tem que pôr o que aconteceu, não pode pôr uma palhaçada dessas.” Ficou uma situação tensa, mas eu não podia fazer outra coisa. Dia 31 teve o golpe e a situação ficou preta. A minha mulher estava grávida e já para ter o neném. Nós estávamos na casa do meu sogro, que já era contra Samuel, contra mim, contra todo mundo, e já tinha levado os empregados... Mas a Beth tinha dezessete anos. Eu tinha trinta.
P/1 – Vocês casaram quando ela tinha dezesseis anos?
R – Casamos [quando] ela tinha dezesseis. Teve que ter autorização do outro pai dela para casar.
P/1 – Você conhecia ela desde os oito anos?
R – Eu conheci ela aos oito anos na casa dos pais, porque como eu era intelectual e não sei o quê, a mãe… O pai era amigo do meu pai, o avô. Eles me convidavam pra ir nas festas, Queiroz Telles, intelectuais, a Lygia Fagundes, todos, porque era queria cortejar...
P/1 – Ela era um bebê, uma criança quando você era jovem.
R – A minha sogra queria cortejar os intelectuais, ela era do Rio e não tinha uma sociedade em São Paulo. A antiga mulher do Luís Monteiro chamava-se Mariazinha Monteiro e era uma das mulheres mais chiques de São Paulo e mais prestigiadas na sociedade. Quando o Luís largou para casar com a minha sogra, a sociedade inteira fechou pra ele e ela teve que conquistar. Ela era do Rio, um mundo novo com intelectuais, então dava festas... Intelectual... Sempre que tem whisky a gente vai, ia todo mundo nas festas da Elizabeth. Uma vez, eu voltei em casa e falei para o meu pai: “Puxa, o Luis e a Elizabeth têm umas filhas muito bonitinhas.” Depois, quando ela teve dezesseis anos a gente teve um negócio e resolvemos casar.
P/1 – Você se apaixonou por ela?
R – Foi uma paixão, ela era deslumbrante. Depois da Renatinha Souza Dantas, era a menina mais bonita que tinha na cidade. Era muito bonita e muito inteligente, uma vivacidade... Era um negócio pra você casar.
P/1 – Como é que o pai dela reagiu? Vocês casaram logo de cara ou namoraram um tempo?
R – Foi tudo muito rápido. Quando a gente resolveu ficar noivo ele ficou assustado porque eu vivia na maior boemia, todo mundo uns porra louca: o Cotrim era maior bicha, dono do bar, e só andava com bicha, porra louca, artista, Zé Celso… Ele ficou achando que não dava para casar com esse louco. Ainda não era comunista, aí era moral. Eu falei: “Gente, vão comer prego. Eles têm a vida deles e eu tenho a minha. Eu não tenho nada que ver com a vida do Cotrim e dos outros. Eu gosto de boemia como você gosta de outras coisas.” Teve essa dificuldade no começo do casamento, mas depois a festa superou todos os assuntos. Teve uma puta festa no sobradão e misturou tudo: foi o João Sebastião, o Cavi, a burguesia... Foi todo mundo, uma festa muito bonita.
P/1 – Casou na Igreja...
R – Na igreja de São Bento, com o bispo Dom Cândido e toda a lenga-lenga que tinha direito. Só que depois eu era um comunista para eles, e eles os salvadores da pátria. Quando foi no 31 de março a Beth estava grávida de nove meses, para dar a luz. Como toda noite eu tinha que ficar no jornal, eu saí do meu apartamento e fomos para o sobradão ficar na casa do meu sogro, ainda que o ambiente estivesse muito tenso, com a marcha com Deus e aquelas histórias todas. Eu falei: “Eu não posso deixar a Beth sozinha nessa confusão, não dá”, então fomos morar lá. Eu me lembro que no dia 31 foi aquela coisa: “O que fazer?” Eu estava na Última Hora e tive a notícia que o pessoal do Mackenzie e da PM [Polícia Militar] estavam se encontrando na Sete de Abril para ir numa marcha empastelar o Última Hora. Eu falei para a redação: “Gente, deixa o mínimo de gente aqui. Os comunistas explícitos se mandem, caiam fora e vão se esconder, porque a gente sabe o que vai ser. Eu vou falar com Kruel, porque eu combinei.” Eu fui para o exército para falar com o Kruel, mas ele tinha saído pra ir encontrar o general do Sul. Alguém ligou para ele e ele falou para eu ir para o... Ah, não! Desculpe. O Kruel estava lá e me recebeu. Ele estava de saída para essa história, me recebeu cinco minutos e eu falei: “Olha, nós combinamos com o Samuel aquilo: não pode deixar empastelar o Última Hora.” Nessa hora ele já tinha aderido, já ia encontrar, e achou que ele podia ser o grande candidato à presidência da República da Revolução [de 64], porque os candidatos eram: Carvalho Pinto, Juscelino Kubitschek... Na hipótese de ter democracia ainda que com a Revolução, porque havia uma ideia de que eles iam fazer e que ia ter eleição. O Kruel falou: “Eu posso ser o candidato”, então ele não queria destruir o jornal que ia apoiá-lo. Ele ligou para o secretário da Segurança, que é aquele facínora que invadiu a PUC, Erasmo Dias. Eu saí de lá e fui no Erasmo Dias. Nesse dia a minha vida complicou muito, porque muita gente da extrema direita estava lá e acharam: “Esse cafajeste, esse comunistinha de merda veio aderir.” Mesmo no jornal, muita gente – eu não podia dar explicação pra todo mundo – não entendeu muito o meu gesto. Eu fui, levei um tempão até o Erasmo e falei da coisa. Ele falou: “Não, já avisei para não fazerem nada com o jornal.” Eu voltei para o jornal… O Kruel pediu para mim só uma coisa, falou: “Eu vou para o Sul, você fale com o ‘coiso’ e eu aviso que não é para empastelar, mas não publique o jornal amanhã, porque vocês estão publicando todo dia edital de greve, amanhã é dia 1º de Abril e não dá para sair o jornal desse jeito, ninguém segura, empastelam mesmo.” Eu fui para o jornal e o Samuel já tinha entrado na embaixada do Chile, não dava pra falar com ele. Eu falei com um cidadão chamado Eriberto Jordão de Magalhães, que era o advogado do Samuel no Rio de Janeiro e que tinha assumido o jornal do Rio. Falei: “Eriberto, a situação está assim: não vão empastelar e o nosso patrimônio está garantido, mas nós nos comprometemos com o Kruel de que amanhã não sai o jornal; sai só depois de amanhã, já sem os editais de convocação para greve.” Ele falou: “Em hipótese nenhuma! Você põe o jornal na rua...” Eu falei: “Olha, você não está aqui. Não é você que está sendo preso. A turma aqui está toda escondida, preciso reorganizar para montar esse jornal porque eu mandei todo mundo se esconder, senão eles estão fora.” Em resumo, ele falou: “Não há a menor hipótese! Você tem que pôr o jornal.” Eu falei: “Então você venha pôr o jornal na rua, eu não vou. Se não, o que eu vou fazer? Eu me comprometi com isso.” No livro do Samuel ele disse que eu saí porque tive problemas familiares: não foi nada disso. Depois, falei com ele: “Essa história está errada, não tem nada de problema familiar.” Problema familiar eu tinha era de não largar a minha mulher, que o meu sogro tava essa hora louco para que eu... Ele insinuou muito que era para eu ir embora: “Você não quer fugir do país?” A minha mulher nunca ia me perdoar de ter deixado ela dando à luz com dezesseis anos de idade, numa situação daquela. Falei: “Você venha tomar conta do jornal”, e saí do jornal. Eu saí do jornal e fui com a Beth para a Pro Matre. Encruou esse filho, não nascia. Em uma situação de nervo, o médico falou: “Está uma pane nervosa, acontece mesmo isso. Encrua e precisamos ver, se não der, faz uma cesariana.” Esperou alguns dias e daí começou um inferno: o meu sogro querendo me exilar, o pessoal da Última Hora achando que eu tinha saído do barco, o pessoal do Rio tomou conta da coisa aqui... Puseram mais tarde o Marcelo Rubens Paiva tomando conta da Última Hora, quando o Kruel já tinha voltado e a revolução acalmado um pouquinho. O pessoal do Mackenzie passava de noite lá... Era um sobradão na Euzébio Matoso que tinha uma grade de ferro. Eles passavam com ferro e faziam uma barulheira, ficou uma situação… O meu sogro humilhadíssimo, sendo ele da Revolução e o pessoal do Mackenzie querendo arrebentar com o muro da casa. Eu na maior solidão, todo mundo sumiu, ninguém sabendo o que ia acontecer. A minha sogra ficava com uma cara... Ela não sabia o que fazer, se ela dava uma de Jane Austen ou se ficava apoiando o marido; ela não sabia nada, estava completamente neutralizada.
P/1 – E a sua mulher?
R – A minha mulher, não. Firme. No dia vinte teve o filho, vinte dias de... Sei lá o que aconteceu. Muito esperto o Erasmo, falou o seguinte: “Tudo bem, mas você precisa de uma garantia porque a situação é perigosa com o Mackenzie e pôs dois guarda-costas na casa do meu sogro tomando conta de mim.” Era um negócio que, a pretexto de ser uma proteção, eu estava é sendo vigiado para não poder ir para lugar nenhum. Mas nessa época eu ia na missa, então os guarda-costas iam comigo na missa. O meu sogro ficou uma vara, porque um deles comeu as empregadas. Ele: “A minha casa foi ultrajada…” O guarda-costas comeu tudo quanto era copeira da casa: tinha dezesseis, tinha à vontade. O mundo é uma piada. Outra piada era que os guarda-costas tinham sido oficiais de gabinete meus por coincidência – a vida às vezes é boa – quando eu era o jovenzinho subchefe da Casa Civil. Eu era uma pessoa educada e tratava os caras super bem, na hora do lanche chamava, eles tomavam café comigo. Comiam as empregadas, mas me tratavam muito bem. Quando a Beth melhorou de tudo isso, eu falei com meu irmão: “A situação em São Paulo, para mim, está muito ruim. Você tem a firma grande no Rio e lá eu não sou conhecido, ninguém sabe quem eu sou. É melhor eu mudar para o Rio.” Eu mudei para o Rio de Janeiro com a Beth e com o nenenzinho, fomos morar no Copacabana Palace. Eu falei: “Preciso estar num lugar completamente vacinado contra comunista.” Ninguém vai achar que eu sou comunista no Copacabana Palace, fiquei lá até arranjar um apartamento. Eu tinha amigos que tinham ido pro Rio e que eram do meu tempo: Ricardo Amaral, Jabor, Cacá Diegues, Calmon... Toda essa patota que era do CPC [Centro Popular de Cultura], mas que eram amigos meus ligados... O Cândido Mendes. Eu tinha um grupo formidável, foi o melhor período da minha vida. Vivi com a minha mulher longe do meu sogro e da minha sogra, trabalhando na empresa do meu irmão até cinco da tarde, escrevia poesia... A gente saía do trabalho e eu ia tomar banho no Arpoador, já tinha a primeira filha e depois nasceu o segundo... Foi um período de completa alienação. A única coisa que eu tentei fazer, no começo, e que o Eriberto impediu, foi o seguinte: o Samuel estava com risco de perder o jornal, tinha que passar para alguém porque ele era cassado; um dos três primeiros da lista da cassação foi o Samuel Wainer. Jango, Samuel e não sei mais quem. Eu tive um pensamento, tive uma estratégia, conversei com ________ e falou: “Vamos fazer uma coisa. Carvalho Pinto e Juscelino” – Juscelino tinha vindo me visitar quando eu fui eleito para o jornal, então eu fiquei ligado a ele – “são as melhores pessoas para ficar com esse jornal. Ninguém achava que a ditadura ia caçar o Juscelino, bem ou mal ele era establishment e eram candidatos à presidência. Para o Samuel não perder isso, eu liguei pro Eriberto e falei: “O que eu vou fazer é o seguinte: o Carvalho Pinto fica com 49% das ações, o Juscelino fica com 49 e eu fico com 2%.” Ele falou: “E você fica como árbitro?” Eu falei: ”Fico.” “Por quê?” “Porque eu sou decente. Como eu sou decente, o Samuel está garantido.” Fiz uma carta propondo isso tudo para o Samuel, porque o Eriberto que tinha contato com ele para levar na embaixada. O Eriberto nunca entregou essa carta para o Samuel. Era uma coisa perfeita, e o que aconteceu? O Samuel deu todas as ações dele para o Eriberto. Quando o Samuel voltou para o Brasil em 68, depois que passou a primeira fase e veio aqui lançar aquele filme, Les Pâtres du désordre, do grego que ele financiou com o dinheiro, quem lançou o filme fui eu. Eu já estava em São Paulo, a festa foi na minha casa – tudo isso porque eu era amigo do Samuel –, contei essa história para ele e falou: “Me fodi, porque o Eriberto ficou com todas as minhas cotas e não quer me devolver.” Sabe quem comprou tudo de novo? A Danusa. Vendeu os apartamentos e tudo que ela tinha. Era uma mulher muito inteligente, ela pegava apartamentos, reformava, morava e vendia. Ela comprou as cotas e deu pro Samuel sem ser mulher dele mais. O Samuel ficou com o jornal dele por um tempo, vendeu para o Frias e ficou vivendo. Pagou as dívidas e ficou vivendo com a coluninha que ele fazia na Última Hora, com a ideia de fazer um outro jornal, São Paulo Agora, que nunca saiu. Convivi muito com o Samuel nessa época porque ele me chamou para ser diretor de redação. Eu fui diretor de redação da Última Hora na Folha também, quando o Frias comprou. Reunimos uma meninada e criamos a ideia da terceira página. Não foi o Cláudio Abramo que fez, foi a Última Hora da Folha que fez aquela ideia de chamar intelectuais. Eu fui falar com o Antonio Cândido, ele me indicou o Wisnik e umas três ou quatro pessoas que eram jovens intelectuais. Começou de novo a ideia de intelectual escrever, na terceira página da Última Hora. O Samuel foi empobrecendo, mas com prestígio. Acabou o jornal e o Samuel ficou escrevendo na terceira página da Folha, que hoje escreve o Fernando de Barros. Falei: “Como você consegue tanto prestígio com um pedaço tão pequenininho de jornal, Samuel?” Ele falou: “Porque eu nunca deixo de citar pelo menos quatro, cinco pessoas. Se tiver dez linhas tem cinco cinco pessoas que eu cito. O que dá prestígio é citar gente.” Ele foi empobrecendo e eu vi uma coisa muito bonita. Ele morava em um apartamento na Alameda Santos. Ele tinha paixão pelo Samuquinha, o filho dele, que vivia no Rio. Todo dia ele ligava pro filho, naquele tempo era difícil ter telefone e era caro. O Samuel falou: “Eu estou estrepado, vou vender meu carro para eu poder falar todo dia com o Samuca.” Ele vendeu o carro para poder falar com o Samuca no telefone dia e noite. Você imagina, um homem que tinha mordomo e não sei o quê... Foi muito legal. Eu andava de moto e um dia levei o Samuel para a redação – aquele velhinho – da Folha na garupa e ele todo de cachecol, se vestia feito um lorde, de garupa de uma Honda 380 que eu tinha, aquela Viúva Negra, que era uma terrível... Em resumo, nesse período acabou eu voltando pra São Paulo. Nessa época eu era empreiteiro, muito rico... Toda a turma de JUC e mesmo os comunas tinha ficado profissional de alguma coisa, não tinha o que fazer. A revolução apertou muito com o AI-5. Eu tinha uma livraria com a Sonia Bracher, mulher do Fernão, chamava Livraria SAL, Sociedade Amigos do Livro. Tinha sido do doutor Hugo Ribeiro de Almeida e nós levamos a livraria para a rua São Luís. Era uma livraria que só importava livros franceses, Marcuse e toda essa gente. A Revolução nunca se importou com a nossa livraria porque ninguém sabia quem era Marcuse, ninguém sabia nada desses autores comunistas novos. Eles prendiam, por exemplo, o Le Rouge et le Noir, recolhiam porque era le rouge e achavam que o livro era vermelho, comunista. Os outros, todos os perigosíssimos, ninguém nunca foi pegar. Um dia eu fiz o lançamento do livro do Samuel Wainer, um pouquinho antes do AI-5… Para você ver a minha ligação com o Samuel: fiz o livro dele, lancei o filme. Nesse livro, idiotas, eu e a Soninha... Éramos muito finos, fizemos um livro desse tamanho [gesto] para todo mundo assinar para a gente ter o endereço dos frequentadores porque nós queríamos ampliar a freguesia da livraria. Quando acabou a festa eu fui perguntar: “Pô, cadê o livro?” Um menino que tomava conta falou: “Vieram dois senhores aqui de preto e levaram o livro.” O DOPS [Departamento de Ordem Política e Social] tinha levado o livro e nós, de idiotas, demos de presente a lista de todo mundo que tinha ido na livraria homenagear Samuel Wainer. Esse capítulo da vida acabou mal, porque chegou pelos anos sessenta ou setenta e nós estávamos com uma empresa muito grande. Éramos a maior empresa do segundo time. Não éramos uma empresa de hidrelétrica, mas éramos uma puta empresa do segundo time e nos juntamos com uma porção de gente que ficaram sócios nossos: o Diogo Gaspar, que tinha sido do Carvalho Pinto mas era de esquerda; o Hélio Bicudo, um grupo de judeus... Fizemos uma grande empresa. Nessa grande empresa pusemos a cara com a Camargo Corrêa, com outras empresas e fomos disputar Sobradinho. Foi um erro buscar disputar com os três grandões, era melhor ter sido o primeiro do segundo, a gente ficaria bilionário o resto da vida sem pôr a cara. Ganhamos uma obra imensa em Araguaia e o governo Delfim – esse povo que não gostava da gente – começou. Eu me lembro que nós fizemos oitenta milhões em obras e eles pagaram seis, nós tivemos uma concordata. Foi uma coisa muito chata, porque era uma empresa brilhante que acabou tendo a concordata por não receber. Nós tínhamos comprado a Cospedra… Nós fomos a primeira empresa que fez uma empresa de computadores no Brasil; fomos a primeira empresa que fez um banco de investimento, o São Paulo-Minas; fomos a primeira empresa que compramos essa Cospedra; e trouxemos um concorrente para a Caterpillar, que era a _________, que era do grupo de establishment do governo. Quando a gente pôs a __________ no pé do outro… Fomos fazer tudo que não se podia fazer não tendo o governo – ou tendo o governo contra –, porque a gente era os ‘comunistas’. Foi um problema, perdi todo o dinheiro. Eu gastava, naquela época, uns quarenta, cinquenta paus por mês e paguei tudo que devia. No mínimo, para dinheiro da época, uns quinze milhões de dólares, pessoais meus. Fiquei com a minha fazenda, com uma casa e umas coisas miúdas que estavam em nome da Beth. O meu sogro deserdou a Beth, então a gente perdeu tudo que era dali, e depois ela morre. Nós ficamos sem dinheiro e eu fui trabalhar no Queiroz Telles, que tinha uma empresa de publicidade que era uma graça. Um amigo meu do Oficina me deu um emprego – que eu fiquei felicíssimo – de seis paus por mês; eu gastava quarenta e dois por mês. A vida é muito interessante, porque a gente tem um instinto de que as coisas vão mudar. É uma história burguesa, mas eu vou contar. Nós tínhamos uma casa em São Paulo, que foi feita com um arquiteto, de tijolinho, vidro e ipê. Era uma coisa muito bonita. A gente dava festas, todo domingo tinha um lanche. Ia todo mundo no lanche: os amigos e, depois, gente que a gente não sabia quem é. Se servia vinhos franceses, tudo do bom e do melhor. Um dia eu, a Beth, o Thomas Farkas e a Melanie sentamos no jardim e olhamos para dentro: não tinha uma pessoa que a gente conhecesse dentro da minha casa. A gente falou: “Poxa, está na hora de acabar com esse lanche”, porque se você faz uma coisa que não tem um amigo dentro da sua própria casa é melhor acabar com essa palhaçada. Isso foi o fator um. Fator dois: eu tinha meus filhos pequenininhos, tudo muito bonitinho – igual filmes do Ingmar Bergman – e tínhamos um copeiro português que servia. Eu fiz isso tudo de propósito para a família da Beth não encher o saco, quando a gente tinha dinheiro. Quer dizer: “Deixa eles para lá,” ainda eles estavam bem com a gente, não tinha deserdado ainda. Dava tudo pra não encher o saco: “Deixa eu ter copeiro, essa casa... Eu fico igual a ele e não tem aborrecimento, ninguém vai dizer que a gente era comunista.” Era complicada ainda a situação, eu vou explicar porquê – a Frente de Libertação Nacional, a gente entrou nessa também. O copeiro, um dia, falou: “Doutor Jorge, eu vou embora.” “Por que? Você não está satisfeito com o que você ganha?” “Não, eu ganho muito bem. Eu tô fora, mas toda noite eu presto atenção” – ele era um portuguesinho imigrado – “no que o senhor e a dona Beth falam aqui na mesa, então eu descobri que a dignidade de um homem não permite que ele passe o resto da vida de luva, servindo os outros. Eu juntei um dinheirinho e vou fazer uma padaria.” Eu falei: “Olha, abençoada padaria! Tchau” e não sei o quê. Terceiro capítulo. O Paulo Egydio me indicou um terreno em Campos do Jordão que ele ia construir, depois não construiu e eu comprei. Pedi para o Joaquim Guedes fazer o projeto e ele fez um projeto de casa, parecia Mondrian, de madeirinha, ao contrário do que ele faz de concreto, uma coisa deslumbrante. Eu fui fazer o orçamento da casa do Guedes e era duzentos e oitenta paus, era muito dinheiro. O Queiroz falou: “Poxa, meu pai morreu. Você não quer comprar a fazenda do meu pai em Itu?” Era um sitiozão grande, uma fazendinha. Para você ter uma ideia, ele me vendia uma fazenda inteira em quatro prestações por oitenta paus. Eu e a Beth falamos: “Em vez de fazer aquela joça, vamos fazer isso.” Nós tínhamos nos livrado do lanche, do copeiro e da construção. Fomos na fazenda e demos uma mudança de vida, uma simplificação total. Vivemos um pouco na fazenda e daí o casamento complicou um pouco.
P/1 – Vocês tinham dois filhos.
R – Três filhos. O casamento complicou um pouco porque... Teve outra coisa. Ela se engajou demais na vida política. Filha de burguês, dezessete... Ela já tinha uns dezenove, vinte anos. Completamente Dostoiévski, tudo que eu sabia na vida ela aprendeu mais depressa do que eu, em três, quatro anos; em dez ela sabia tudo. Um dia bate um cara na minha casa chique e me deu um bilhete do Plínio de Arruda Sampaio. O Plínio dizia: “Jorge, receba esse cidadão como se fosse nosso irmão.” O Plínio é de uma cerimônia e de uma discrição total, falei: “Se o Plínio mandou esse cara aqui, tenho que receber.” O cara entrou na minha casa. Era uma cara de nordestino, você não sabe o que era, se era mexicano ou não... Ele disse que se chamava Homero. Tocava violão, falava espanhol, cantava coisas da Violeta Parra, era o... Parecia aquele Teorema, do Pasolini: conquistou a empregada, minha mulher e as crianças. Todo mundo ficou apaixonado porque ele tocava violão, cantava, dizia poesia. Era uma figura formidável, chamava-se Homero. Ficou na minha casa um tempão, ia para a fazenda e foi nos doutrinando pesadamente. Ele era da ALN, Ação Libertadora Nacional, um desses movimentos que ia fazer guerrilha. Eu, embora fosse contra a guerrilha, não discuti muito; nessa época a gente estava mais encantado com a poesia. Esse cidadão foi nos doutrinando. As mulheres, a Beth e as minhas amigas que eram mais velhas, fizeram um grupo e ficaram se doutrinando; acabaram todas engajadas na ajuda a algum movimento qualquer. Elas não eram membras do movimento, porque até um dia eu falei para o Homero: “É um risco, essas doidas que bebem como gambá... Você botar no movimento e daqui a pouco vocês estão tudo presos, com essa horda feminista de loucas. O coquetel cívico precisa ser mais discreto.” A minha casa era uma incoerência total: na parte de baixo, onde tinha o bar e o piano, tinha cantil, chapéu e pulôver para mandar para os guerrilheiros; em cima, jantar para o Faria Lima, que era prefeito. O Cícero, do Rio, me pediu para fazer um jantar para dar ideia para o Faria Lima, que ele queria. Eu fiz reunião com a imprensa toda e com o Faria Lima para darem opiniões para ele sobre o governo, até daí surgiu aquela ideia de que não adiantava e não dava para fazer tudo de uma vez, que ele precisava encher a cidade de plantas, de flores, de tudo. Ele encheu a cidade de flor e botou na pá dele uma rosa. Eu estou ligado a dois símbolos: o do pintinho, do Carvalho Pinto, e essa rosa com a pá. Foi na minha casa que inventaram essa história dessa rosa com a pá. Era uma incoerência total. Um dia, nós estávamos na fazenda… Eu atirava muito bem, meu pai também. Com o fuzil, não tinha lata que eu não acertasse à distância.
P/1 – Você aprendeu com seu pai?
R – Aprendi com meu pai, que era engenheiro. O cara ficou muito espantado, que eu era um desperdício. Você imagina, o tal guerrilheiro... Eu era um poeta desperdiçado. Ele dizia: “Tu traíste a poesia para ser empresário. Tu escreves muito melhor que eu e não és um poeta famoso.” Nessa época lancei um livro que, como entrou um pouco na máfia deles, vendeu para danar. Foi o livro meu que mais vendeu, o Véspera de Aquarius, nesse período que eu fiquei ligado com esse povo. Um dia nós estávamos na fazenda e era o Réveillon. Estava ele, o Lauro Azevedo e uma porção de amigos; só faltava chegar o Suplicy e a Marta, que não chegavam. Era quase meia noite e, quando foi dez para meia-noite, dois carros de polícia entram lá. Eu falei “Homero, some por esses matos por uma hora, porque o negócio está apertando.” Era fácil ver. Os caras da polícia, para alívio nosso – a gente estava tudo com medo ser preso –: “Olha, teve um acidente. O seu Suplicy e a dona Marta…” Ele veio muito depressa porque ele queria chegar meia-noite, então numa curvinha na estrada entrou num rio. Rachou um rim da Marta, mas ninguém percebeu; o Suplicy é que estava mais ferido. Vai para o hospital ver o Suplicy, vem a mãe no dia seguinte... Ele reapareceu, continuou tocando Violeta Parra para os outros e eu cuidando dos sobrinhos. No dia seguinte a gente ia tomar banho – não tinha piscina lá – no lago de uma vizinha, uma amiga que estava conosco dá no lago, bate com a boca numa touceira e leva uma mordida aqui [gesto]. Levo para o hospital, a cobra tinha mordido a boca da menina. O cara o dono do hospital falou: “Dá para me dar descanso pelo menos uns dois dias aqui no hospital?” Porque era Marta... Cada dia chegava um no hospital (risos). Homero era o Thiago de Mello, que eu não sabia quem era e não conhecia o poeta. Um dia nós tivemos uma encrenca, eu falei: “Homero, eu sou contra a luta armada pela seguinte razão: eu estou em contato direto com a burguesia” – isso era 70 –, “a única coisa que eles querem é essa luta armada. Na hora que deflagrar isso vem um esquema de repressão que vocês não sabem o que é.” Era 71, o Médici. Ele falou: “Não, tu estás equivocado”, ele estava a favor. Eu falei: “Daqui para a frente, o seguinte: conte comigo se você precisar sair do Brasil e se você precisar de algum dinheiro, mas eu não posso mais dar apoio direto a isso porque eu acho que é suicídio”, que era a tese do Partidão também, achavam que era um suicídio a luta armada. Ele sumiu de casa, foi embora... A gente ajudou ele a sair do país, ele se mandou e ficou outro tomando conta das moças, que eu não sabia quem era porque eu estava desligado do negócio. A minha mulher e todas iam num outro rapazinho que era o orientador. Anos depois que a Beth morreu eu encontrei no Rio o Gabeira. Ele me deu um abraço – eu não conhecia o Gabeira –, ele tinha voltado da Suécia e falou: “Companheiro, ela foi uma brava companheira.” A brava companheira era minha mulher. O sucessor do Thiago de Mello no chá cívico era o Gabeira, ele que era o instrutor das meninas depois dessa primeira fase. Nesse ínterim eu e a Beth tivemos alguns problemas. Eu achei que elas estavam bebendo muito, estavam loucas e a situação estava tudo… Nós éramos favor do free marriage, todos. Só que free marriage é uma palhaçada; é uma teoria muito boa até que começa a ser aplicada. Quando começou a ser aplicada eu não aguentei a barra, falei: “Esse free marriage, para mim, não dá.” Eu fiz um barraco na Marginal, aluguei um terreno que tinha uma edícula. O Eduardo Lume fez um projetinho e eu fiquei morando lá. Não tinha nada, tinha um posto de gasolina, eu e uma casa vizinha.
P/1 – Você saiu da sua casa e se separou.
R – Saí da minha casa e fui para a Marginal. Separamos relativamente, ela ficou lá e eu fui para a Marginal. Vendemos essa casa maravilhosa e ela foi morar no Brooklin; mas nos dávamos muito bem, às vezes no fim de semana íamos para a fazenda e cada um viveu o seu free marriage com mais elegância. Esse barraco foi um período interessantíssimo da vida, porque era uma edícula, tinha uma sala, um mezanino e uma cozinha… Eu me lembro que passou por lá Haroldo, Augusto, Caetano... A mulher do Caetano um dia fez um jantar comigo lá, a gente dava para todo mundo... Uma vez a Ruth Escobar foi lá e ficou com muitos ciúmes do Caetano e dessa gente, pegou lá em cima e ficou atirando manga em cima deles, todo mundo ficou muito bravo. Outra sessão que teve: um dia foi a turma toda do Zé Celso. O Zé Celso era meu amigo, eu tinha feito... Mas aquele Henricão, namorado do Zé Celso, eles estavam... Eu tinha um disco do Elvis Presley e ele estava com uma gilete, achei que ele estava bêbado riscando o disco. Falei: “Seu idiota”, peguei um pontapé e dei um chute no meu disco. Eu era meio ingênuo e não tinha visto que o disco estava cheio de pó; ele estava fazendo alinhamento do pó para cheirar, da cocaína. Quando eu dei o pontapé voou toda a cocaína para o chão e eles ficaram desesperados, iam no chão e lambiam. Foi uma cena pasoliniana, a turma lambendo o chão porque eu tinha jogado fora o pó deles. Era um lugar que tudo quanto é… Eu nunca tive tanto prestígio na minha vida, tudo quanto é mulher que você imagina passava por lá, porque era uma coisa original. Um burguesão como eu: meio comunista e meio católico, um pouco santo e um pouco poeta, a fama de milionário continua...
P/1 – Você estava trabalhando onde?
R – Eu tava trabalhando no Queiroz, era um publicitário de ‘medíssimos’ recursos, Já tinha tido a concordata, mas eu tinha uma mitologia – todo mundo acha que eu sou milionário até hoje. Tenho que trabalhar, eu trabalho até hoje para viver e me sustentar, mas a fama é muito grande. Tudo quanto é mulher passava lá. Uma época veio a Marília Pêra; do Rio, umas três. Eu ia viajar, elas me pediram emprestado o barraco e ficaram hospedadas lá. A Marilda, que era mulher daquele que fez a primeira novela da Globo, da Manchete que teve sucesso... Como ele chamava?
P/1 – Diretor ou o ator? Jayme Monjardim?
R – Não, foi antes. Eu vou lembrar disso, porque foi filmada na casa do meu irmão, em preto e branco… Em resumo, eles ficaram hospedados em casa e as moças achavam que iam ser assaltadas porque havia um barulho no teto. O assalto às jovens era um gato. A marginal era um deserto. Eu morava na Marginal e tinha uma moto 360, que levei o Samuel uma vez... Aí era boemia mesmo, boa. No barraco, quando eu estava em casa e queria receber gente, eu punha uma tocha que ficava acesa; quando não tinha tocha, era para não me incomodar. Tinha toda uma simbologia, foi interessante. Daí eu e a Beth resolvermos re-casar e eu fui para a casa na Granja Julieta, mas eu percebi que não dava mais para morar junto e nem ela. Aquela cachorrada, que eu não ligava na outra casa, ali eu achei horrível. Imagina eu com dois dinamarqueses daquele tamanho? Era uma coisa horrorosa, iam fazer cocô na frente do meu escritório... Eu detestava cachorro. Em resumo, cada um viveu separado e nos encontrávamos na fazenda, que era o território neutro, mas com muita dor, porque a gente se amava muito e cada um queria… Ela ia levar a vida dela. Um dia ela resolveu que ia com um cidadão embora, morar na Europa. Foi conversar com a minha mãe, que era muito amiga dela – muito mais do que os pais dela –, e a minha mãe falou: “Olha, chega de palhaçada. Tudo bem, vai para a Europa, o Jorge vai para onde quiser, morar num barraco... Agora, os filhos passam para o meu comando e vão ficar comigo, porque não tem essa palhaçada de vocês, cada dia vão pra um canto… Filho não é peteca.” Deu um esporro. Nós resolvemos jantar e falamos: “Vamos ver o que a gente vai fazer.” Ela me contou essa conversa com a minha mãe e falou: “O problema é o seguinte: eu não sei se quero ir para a Europa, eu não sei se quero ficar.” Eu falei: “Vamos casar de novo, definitivamente, acabar com essa palhaçada?” Ela falou: “Olha, eu confesso que eu não sei; mas não adianta saber porque um de nós vai morrer. Isso é certo, então não adianta resolver nada aqui hoje.” Eu falei: “Olha, se um de nós vai morrer certamente serei eu, que sou muito mais velho que você. Quem vai morrer sou eu, já que você está tão convicta. Se vai morrer, vamos fazer o seguinte: vamos no Vilex comprar uns vinhos e a gente aproveita.” Eu tinha ganho um dinheiro, que a gente tinha feito a inauguração do Hilton, estava com um bom dinheiro no bolso. Ela estava bem, já tinha mudado para um apartamento e o pai, que ainda não tinha a deserdado, deu um apartamento grande para ela na Bela Cintra, para onde ela mudou, e a casa ficou com a gente. Sempre sobraram patrimônios, mas patrimônio dá despesa, não dá lucro. A gente comprou um pau de bebida, de coisas, levei metade para o barraco e ela levou metade para a casa dela. Ela falou: “Amanhã eu vou para a fazenda, porque depois eu vou pro Guarujá... Vou pegar a cota que está na fazenda e levar para o Guarujá, na casa de uma amiga.” Os outros meus dois filhos estavam naquelas férias que faziam em Campos do Jordão, não me lembro como chamava aquilo… Eu me lembro que fiquei muito angustiado com essa conversa. No dia seguinte, eu estava na casa do Eduardo Longo – estávamos todos muito doidos – e eu falei: “Puxa, eu preciso falar com a Beth. Eu estou muito angustiado, preciso falar com ela porque alguma coisa está ruim.” Comecei a ligar para a Beth na casa da Granja Julieta, e não no novo telefone do apartamento; então não consegui falar. Eu soube que aquela noite ela ficou completamente… Ficou meia-noite em claro, numa angústia, tinha decidido não ir mais para a Europa com aquele menino, o Cohen... Como ele chama?
P/1 – Ela estava namorando ele?
R – Ela estava namorando aquele Cohen, que depois namorou aquela moça da televisão, Carolina Ferraz.
P/1 – Mario Cohen. Ela namorava ele?
R – Sim, foi um desses free marriage. Ela tinha desistido naquela noite de ir para a Europa, tinha brigado com ele e foi para a fazenda.
P/1 – E os filhos?
R – A minha filha pequeninha, de quatro anos, estava na fazenda; os outros dois, que tinham seis e oito anos, estavam em campos do Jordão. Ela foi para a fazenda, pegou a menina e a Maria. Estava um sol formidável, a Maria disse que eles estavam ouvindo no carro Roberto Carlos, vindo para ir para o Guarujá. O carro trombou, o guidão entrou no peito, o peito furou o coração e ela morreu. Foi levada para um hospital em São Carlos, a Maria desmaiada foi levada para um outro, e a minha filha rolou e caiu num valo da estrada da Castelo Branco. Um cara que estava num ônibus viu, fez o ônibus parar, pegou a minha filha, pôs dentro de um carro que estava vindo em São Paulo, deixou ela no Hospital das Clínicas com um aviso, porque tinha um endereço qualquer e ela falou o meu nome. Esse é o cara mais próximo de mim, eu nunca vi na vida e nem sei quem é. Eu disse na minha conferência depois: “O meu próximo é esse cara que eu não sei quem é e deixou minha filha lá.” Aos outros dois, eu fui com o Eduardo… O Eduardo tinha um Volksporsche aberto e falou: “Vamos lá, que as crianças ficam mais arejadas.” Eu fui, peguei e vim na viagem contando que tinha morrido. Puta que pariu... Foi muito interessante, eles falaram: “Como morreu? Quando morreu? Aonde foi?” Eu falei: “Vou contar tudo.” Eu contava tudo, onde foi, onde não foi. Eles queriam ir na estrada, eu ia levar eles na estrada para ver onde foi; queriam saber tudo isso. Eu não aguentava mais, eu chorava na estrada e eles só perguntando. Quando chegou em São Paulo, eu me lembro que a gente passou perto de uma casa que chamava [Sidi?], de venda de sapatos, estava cheio de balões. Eles me fizeram parar para pegar balão porque eles queriam mandar uma carta para a mãe para dizer que eles estavam aí. Fizemos um pacto de nunca nos separarmos: da gente viver junto, não tinha nada de ir para casa de mãe, de avó. Daí acabou esse capítulo.
P/1 – Jorge, vamos retomar. Você estava falando...
R – Depois que a Beth morreu, morreram muitas coisas. Primeiro, a minha vida de empresário, por coincidência, tinha acabado. Tinha tido uma grande concordata na empresa minha de família e isso mudou completamente aquela riqueza de ter aviões, de ter carros e de ir para a Europa duas vezes por ano. Eu já tinha pensado numa mudança de vida por coincidência, eu e a Beth tínhamos dado uma brecada naquele estilo de vida por razões ideológicas. Veio a perda do dinheiro e eu fui trabalhar em publicidade. Nesse período, eu acho que – sem a Beth, mas no pacto que eu fiz com as crianças – fiquei com muita liberdade. Eu não era mais empresário, eu não tinha compromissos com a burguesia e eu tive uma vida lúdica muito interessante; é o que eu chamo período de Trindade. Eu descobri Trindade, a natureza, alguns amigos mais voltados para a literatura, para a poesia… O Reinaldo Moraes, o Paulo Henrique, o Juvelino, amigos que estavam mais dispostos, na época – depois viraram também outras coisas – a ser felizes. Se confundiram nesse período diversas coisas. Eu fui um publicitário, eu fiz o marketing de um loteamento ecológico que foi muito interessante, porque era um tempo em que eu me dedicava a uma coisa que era comercial – ganhei até algum dinheiro –, mas era muito divertido, porque nós, com o José Pedro, plantamos tudo que era possível plantar num loteamento. Fizemos tudo com um rigor ecológico fantástico e com um rigor de design, de placas e foi um período muito bonito. Isso tudo junto com Trindade, que foi uma abertura muito grande para o mundo da natureza, para o mundo em que você não tinha compromissos nem com a roupa, com nada. A gente vivia de chinelo, andava no mato com pé descalço, de noite para tomar banho nu em cachoeira sem nenhum medo de cobra... Impressionante que quando você não tem medo, a cobra não aparece. Eu vivi essa coisa. Isso foi um período... Parece que foi um piques, um descanso para o que iria acontecer depois.
P/1 – Isso foi quando mais ou menos?
R – Foram os anos 70 inteiros, até 80 e pouco. Coincide um pouco com aquele grande período da liberação no mundo: foi depois de Mary Quant, depois dos Beatles e depois de tudo. Ao mesmo tempo, uma visão de paz e amor. Não o paz e amor do Lula, mas um paz e amor da Califórnia. Eu também tinha amigos na Califórnia, a Cristina Smith, irmã da Marta, e passei algum tempo lá. Conheci grupos americanos muito interessantes que fizeram o Vanguard Foundation. Eram meninos milionários que ganharam grandes heranças precipitadas dos seus pais e dedicaram tudo isso contra a sociedade capitalista, para recuperação da Baía de São Francisco. Foi um mundo muito interessante. Não é que a minha vida foi assim; o mundo foi assim naquele período. Eu fiquei muito conectado com aquele mundo. Eu sempre me conectei com algumas coisas fortemente, então nunca fui tão jovem como naquele período. Eu era muito mais jovem do que na minha adolescência, onde eu era um adolescente cristão, austeríssimo que queria ser santo. Nessa época eu queria ser poeta, brilhante e tudo isso. Foi nessa época que eu escrevi o Véspera de Aquarius, editado pelo Massao Ohno e que foi um livro muito versado nessa expectativa de uma mudança cósmica no mundo; esse livro reflete isso. Eu digo que foi um piquezinho, um intervalo porque logo depois começou uma hipótese de redemocratização e o Montoro convocou o time dele com a possibilidade de eleições diretas para governador. Em 1982 ele foi candidato à eleição só que quase um ano e meio antes nós começamos a preparar – a gente chamava o grupo da Sorbonne – o esquema de governo. O Montoro reuniu comunistas, homens de direita, homens de esquerda, socialistas. Tudo quanto era tipo de gente – boêmios –, mas gente competente para montar um esquema de governo e de retomada da democracia. Foi nesse momento que surgiu no cenário brasileiro a hipótese de uma conjugação de tudo quando era pensamento inteligente independente da ideologia. Tinha gente que depois seria do PT [Partido dos Trabalhadores], tinha os comunistas, tinha gente que seria do PSDB [Partido da Social Democracia Brasileira], tinha gente que... Tudo o que viria a ser se reuniu naquela campanha do Montoro, da redemocratização. A gente achava que era a hora de mudar e o Montoro me convidou para ser o chefe da parte de comunicação da campanha. Eu fiz a comunicação, reuni um grupo brilhante e toda a ideia nossa era: “Chegou a hora de mudar.” Nem ligávamos a palavra Montoro a isso, mas ele significava graficamente essa mudança, porque nós inventamos um jeito de escrever Montoro com tinta à mão na parede – como se fosse escrita à mão – em cor abóbora. Ele gostava dessa cor laranja e essa cor escrita à mão virou o símbolo da ideia da mudança, tanto que no dia da eleição a gente pôs na cidade, com essa letra, “Chegou a hora de mudar” e não pusemos o nome do candidato. Enchemos todos os outdoors da cidade com isso e foi aquela vitória naquela eleição. Eu fui secretário da Comunicação – que não era o que eu mais gostaria de ser, eu queria ser secretário da cultura – para cuidar da imagem do governo. Era uma coisa muito difícil cuidar da imagem do governo porque nós achávamos que para sermos democratas a gente não podia colocar o nome do governador, então era Governo Democrático de São Paulo. Ninguém sabia que aquele era o governo do Montoro, porque era uma coisa...
P/1 – Quem foi o secretário da Cultura?
R – O Pacheco Chaves, que era um amigo do Ulysses. Em resumo, nós fizemos uma coisa muito purista nessa campanha e a imagem do governo não andava. Um prefeito de uma cidade do interior, não sei se era Cravinhos, chegou e falou: “Governador, esse Governo Democrático de São Paulo está muito bom, mas o seu governo está uma merda.” Então ele...
P/1 – Era dissociado.
R – Dissociava a ideia do governo que fazia as coisas, um governo democrático que não tinha nome, e o governo real, que estava uma merda; o outro estava muito bom. Surgiu a ideia de que o Montoro precisava agir mais politicamente. A gente precisava avançar com a democracia porque o Figueiredo ainda era presidente, e numa espécie de complô com os jornalistas do Palácio nós cobramos do Montoro uma ação política mais forte. Ele fez um encontro de governadores e no dia 23 de dezembro, num jantar de Natal que ele fez com os – eu não me lembro se foi jantar ou almoço – jornalistas do palácio, ele anunciou o comício das diretas e numa loucura, falou: “O comício vai ser dia 25 de janeiro na Praça da Sé.” Todo mundo achava que era uma loucura, porque como é que vai fazer um comício na Praça da Sé em um mês de férias, num dia feriado? Não vai ninguém nesse comício. Todo mundo no palácio – incluindo o Serra e os secretários – foi contra. Só foi a favor do comício eu, que era secretário da Comunicação, o José Carlos Dias, que era secretário da Justiça, os meninos da UNE [União Nacional dos Estudantes] e os caras da CGT [Comando Geral dos Trabalhadores]. Foram duas instituições que apoiaram e nós. O Montoro insistiu: “Tem que ser na Praça da Sé, é no Marco Zero.” A ideia começou a pegar fogo independente do apoio que não nos foi dado por ninguém, porque ninguém acreditava e achavam que era uma loucura.
P/1 – Vocês saíram dali e começou a divulgação.
R – Saindo dali começou a divulgação, e a turma achando que era uma ideia louca do Montoro. Quando chegou no dia 15 de janeiro nós tínhamos 147 instituições da sociedade civil. Estávamos programando o comício e ao invés de um palanque tivemos que fazer três, porque a adesão dos prefeitos era total: tinha que pôr no palanque mais de duzentos prefeitos. A adesão dos artistas foi completa: tivemos que pôr um palanque para eles e uma passarela para que, desde o começo do comício, todos pudessem passar e dar testemunho; porque na hora não ia dar, a gente pensou que ia ter dois ou três, o Chico Buarque… Todos os artistas que estavam vivos no Brasil foram ao comício. Foi uma coisa sensacional. Felizmente, o Montoro me chamou pra ser o coordenador do comício. Isso foi a coisa melhor e mais bonita que eu fiz na vida, porque eu usei tudo que eu sabia de marketing, mas também tudo que eu precisava saber de política. Eu aprendi uma grande coisa: a turma que iria… Quando o comício começou a ter força, todas as forças que se juntaram ao comício – juntou PT, juntou todo mundo – queriam… Alguns sindicatos começaram: “Vamos fazer reivindicação salarial disso...” O Montoro falou: “Não. Vamos fazer um comício do que nos une, não do que divide. O que une é Diretas Já.” Isso é uma coisa importante pra guardar pra história: o comício foi um sucesso porque teve uma diretriz e uma vontade única que unificava todo mundo: Diretas Já. O comício foi aquela coisa que se sabe, mas teve um momento para mim, na minha vida, que foi sensacional. A gente estava no palácio com os governadores que foram almoçar, o Montoro ainda tinha que ir na universidade e me falou: “Dá um pulo na Praça da Sé e vê como está.” Eu fui à Praça da Sé, entrei pela Catedral, que tinha uma ponte para ir ao palanque... Tinha o palanque, embaixo tinha os jornalistas e depois os outros dois palanques complementares. Eu atravessei aquilo e fui andando no palanque, que era enorme. Quando cheguei na beira, a Praça da Sé ao meio dia já estava cheia; o comício ia ser às quatro e pouco da tarde. Eu desci e liguei: “Montoro, governador. A praça está cheia.” “Não brinca comigo, Jorge, que eu estou com os governadores aqui e eu preciso dar uma informação.” Eu falei: “A praça está cheia, repleta. Não tem lugar para mais ninguém.” Era meio dia. Quando eu entrei naquele palanque e vi aquela praça cheia eu comecei a chorar, porque tinha sido um esforço... A Globo só tinha apoiado às oito horas da véspera, à noite, e a gente não sabia se o governo ia vir com cacetada. O Covas fez uma loucura e liberou o metrô, que era de legalidade duvidosa; liberou o metrô de graça pra todo mundo! A Globo começou a fazer uma campanha muito esperta, de noite, que era o comício da família... No dia seguinte foi aquela explosão. Depois desse comício eu ganhei um grande prêmio. O Ulysses foi à minha sala e falou: “O Montoro vai te dar a Secretaria da Cultura. Nós combinamos com o Pacheco, Pacheco volta para o...” Eu tive tempo ainda de ajudar a organizar o comício do Anhangabaú, mas daí todo mundo já era dono do comício – coordenador –, porque o sucesso do primeiro... Praticamente quem organizou fui eu e o José Dirceu, mais assembléia... Todo mundo entrou na coisa e foi aquele comício de três milhões de pessoas, o maior comício realizado na história do Brasil. Retornou a campanha das diretas... Nós não ganhamos as diretas, a emenda foi derrotada, mas possibilitou a campanha indireta do Tancredo Neves. Na campanha o Montoro deu um conselho ao Tancredo: “Faça uma campanha como se fosse de diretas.” O Tancredo foi a única campanha de indireta com colégio fechado que foi feita com comício. Teve comício na Praça da Sé, em Minas e em toda parte. Eu ajudei muito esses comícios e me lembro de uma coisa que me emocionou muito. Quando o Tancredo foi eleito teve uma missa na catedral, eu estava sentado na quarta ou quinta missa, o Tancredo com a esposa dele... Quando o Tancredo veio na nave da igreja, ele parou na minha fila e me agradeceu: “Obrigado por tudo que você fez”, porque eu tinha feito o comício de São Paulo. Eu nunca tinha visto isso, porque as pessoas são muito gratas antes. É muito raro alguém que tenha investido da glória, daquela... Num momento ali lembrar de uma pessoa que estava entre outras e ir cumprimentar. Aquilo me deu uma emoção muito grande porque eu nunca tinha visto isso em política. Depois o Tancredo morreu, tomou posse o Sarney. Aí teve um momento também importante na minha vida, eu ajudei a organizar com o __________ o Congresso de Escritores. O Sarney veio pra esse congresso, eu acho que o Tancredo estava ainda entre vivo e morto, era uma coisa emocionante. Eu fiz um dos mais bonitos discursos da minha vida naquele dia, sobre a política e tudo isso. Eu era escritor, mas eu falei mais sobre política naquele dia. Foi um momento bonito também da Secretaria da Cultura. Eu me lembro que eu busquei criar um projeto estadual de cultura que envolvia a questão do meio ambiente fortemente, a questão do sistema de arquivos, do sistema de biblioteca... Em vez de ficar criando um balcão de dinheiro – que a gente não tinha, porque o dinheiro não dava para nada –, a gente criou um sistema de coisas de onde brotou uma coisa muito importante, que foi a ideia da preservação e o tombamento. Dois tombamentos simbólicos muito importantes: o tombamento da Serra do Mar... A turma chegou pra mim e falou: “Você é maluco, vai tombar a Serra do Mar. A Serra do Mar não é museu.” Nós inventamos uma ideia de que ele era um museu botânico, porque ele tinha todas as espécies naturais e tinha que ser preservado. O Montoro achou a ideia excelente. O tombamento era feito pelo secretário e não era uma coisa juridicamente forte, mas era simbolicamente muito forte. O Montoro, que entende disso, falou: “Vamos fazer o tombamento no alto da Serra do Mar.” Levamos a Orquestra Sinfônica no alto da Serra do Mar, naquela casa que tinha no meio da estrada, um pouso que tinha lá e às cinco horas da tarde, seis horas, hasteamos a bandeira do Brasil, tocou o Hino Nacional e foi assinado o ato de tombamento da Serra do Mar. Nós tínhamos, para tomar conta de todo tombamento no litoral, duas rádio patrulhas. Nós fizemos o tombamento acho que na sexta e, na segunda-feira, me liga um cidadão: “Senhor secretário, eu vi aquele negócio do tombamento e estão derrubando mata aqui na Praia Vermelha.” Eu falei: “Olha, precisa dar uma lição.” Eu liguei para o secretário da Segurança e falei: “Está acontecendo isso, nós precisamos ser rápidos.” Ele mobilizou helicópteros, foi lá e prendeu todo mundo. Isso espalhou como uma pólvora na Serra do Mar e todo mundo falou: “Pô, esse negócio é para valer.” Ficou para valer por causa do cidadão que ligou. Tudo que acontecia o cidadão ligava para a gente e para a polícia, então ninguém mais começou a... Foi aí que São Paulo preservou. O Rio não pode preservar porque tinha cidades no meio da Serra do Mar e eles não tiveram coragem de tombar. O segundo tombamento foi o do Jardim América. O Jardim América ia ser transformado em um bairro pelo Jânio Quadros, em continuação a Cerqueira César. Iam acabar com as casas e fazer só apartamentos ali. Nós falamos: “Pô, isso tudo era jardinado. É uma loucura fazer isso.” Uma moça que fez uma tese de geografia na USP nos deu o grande pretexto: os jardins eram uma mata entrópica que era fator fundamental da umidade da cidade e da temperatura. Eu falei: “Não vou tombar as casas... Os pilares geológicos do Jardim América.” A gente então tombou a volumetria das casas, os jardins e o circuito das ruas, a planta das ruas. Tombamos essas três coisas muito baseados nessa tese de geografia. O Jânio Quadros me processou porque ele achava que não era de competência. Na verdade, um secretário de Estado tombar os jardins, que era coisa de competência da prefeitura, era muito complicado mesmo. Mas ele foi à justiça e o que salvou o tombamento foi que a justiça deu ganho de causa para mim, para a secretaria. Aquilo que foi tombado num ato frágil de um secretário de Estado acabou ficando um tombamento da justiça. Nunca mais puderam mexer nos jardins e nós salvamos aquela região. Outra coisa que eu achei importante foi fazer as oficinas culturais. Eu não vou falar de Pinacoteca, mas as oficinas culturais que foram feitas na Luz e, com a ideia, veio a ideia da Luz Cultural, de recuperar aquele bairro com os equipamentos culturais que tinham. Aquilo ficou morto um tempo, mas você vê que hoje só se fala nisso: a recuperação da Luz e de tudo aquilo que nasceu nessa época. Terminado o período Montoro veio o Quércia, eu saí do governo e fui trabalhar em publicidade. Sempre eu voltava pra trabalhar numa coisa qualquer para recuperar o dinheiro perdido no tempo de governo. No tempo do governo Montoro eu tive que vender todos os terrenos que eu ganhei no patrimônio do Carmo para sustentar minha família, porque no governo a gente ganhava três mil reais, mesmo um secretário de Estado.
P/1 – Quantos filhos você tinha mesmo?
R – Três filhos. Eu vendi uma grande parte dos meus terrenos do patrimônio do Carmo para sustentar a vida e tive que trabalhar de novo, fui montar uma agência de publicidade. Logo depois dessa agência alguém me convidou para disputar eleição da Gazeta. Eu fui para a Gazeta, foi uma eleição difícil que eu ganhei por um voto. O voto que eu ganhei era do [José Eduardo] Cardozo, que é o atual ministro da Justiça, que era o representante do Cardeal no conselho.
P/1 – José Eduardo.
R – José Eduardo. Tava empatado, o José Eduardo votou e eu ganhei. Foi um escândalo, porque aquilo era um feudo. Como é que um cara de fora ia ganhar aquilo?
P/1 – Tava disputando você e quem?
R – O Constantino.
P/1 – Que era uma pessoa da casa.
R – Era da casa, o dono da Gazeta era o Constantino. Era um homem muito bom, mas aquilo precisava de renovação. Eu ganhei e depois tive o apoio do Quércia desde que eu colocasse o Ferreira Neto no jornalismo. O Ferreira Neto tinha um programa lá, eu o deixei enquanto foi possível. Quando ele quis mandar lá dentro eu tive que demiti-lo, briguei com o Quércia e foi complicado. Mas isso não tem a menor importância. O importante é que na Gazeta era uma terra arrasada, a gente podia fazer o que quisesse. Eu chamei tudo quanto era garoto de televisão, de vídeo que entendesse de audiovisual. Quem eram? Era o Fernando Meirelles, era o Cao [Hamburger], era o Marcelo Machado, era o Groisman; todo mundo que emplacou como os grandes nomes de televisão e cinema. O Prata... Fizemos o TV Mix, a maior experiência de televisão e de renovação que houve no Brasil. Injustiçado na medida em que os historiadores têm medo de falar nisso, mas isso foi uma experiência notável. Nós mudamos tudo. Colocamos toda a edição dentro de um estúdio de jornalismo, fora dos estúdios convencionais, um estúdio carpetado. O cenário era o vidro da Avenida Paulista e funcionava o dia inteiro, de manhã e de tarde, como se fosse uma pizza, porque era uma programação redonda que o dia inteiro funcionava. Tudo saía do estúdio para a rua e, na rua, quem trabalhava eram os abelhas. Os abelhas, em vez de irem com cinco, seis pessoas para rua, iam com uma Camcorder na mão, que era uma câmera que me foi emprestada pelo Matias Machline, que produzia isso. Ele me emprestou três e os meninos iam para a rua fazer matéria e traziam. O resto tudo era de auditório. Eram debates, entrevistas e foi a primeira vez na história da televisão brasileira que um dos âncoras era um performático, era um travesti. Era a Condessa Chivetta. Aconteceram coisas muito engraçadas, porque um dia um vereador foi ser entrevistado e estava muito orgulhoso de ser entrevistado por uma nobre, pela Condessa. Nós tivemos que ficar quietos e esconder, porque era um fulano super machão, imagina se esse cara... Ele foi lá e beijou a mão da Condessa. Eu falei: “Putz, se esse cara souber que a condessa é um travesti vai matar a gente.” Nós seguramos a peteca para a Condessa ficar condessa mesmo e o vereador saiu de lá muito feliz que tinha sido entrevistado por uma condessa. Eram loucuras. Ao mesmo tempo, tinha o repórter da rua que ficava colhendo opiniões na avenida e a gente editava diretamente do que falavam na rua. Era um risco louco, porque o cara podia falar qualquer absurdo na rua, ou falava palavrão, mas a gente punha. Depois eu percebi, a grandeza dos abelhas foi no Dia do Comércio. No Dia do Comércio sempre o que acontece: a turma filmava um shopping, um Mappin, e dava quanto faturou naquele ano, quanto vendia por dia. O que o nosso abelha fez? O abelha pegou uma câmera e viu um homem e uma mulher conversando. Chegou perto e ele dizia: “É a terceira vez que eu venho aqui, eu estou namorando aquele três em um” – não era um Gradiente, era um Polyvox – “que eu quero muito comprar, mas a senhora sabe... É muito caro. Primeiro a gente tem que dar dinheiro para a família comer.” A mulher respondeu: “O senhor faz muito bem. Primeiro a gente tem que cuidar da família, depois a gente compra.” O câmera que estava em cima deles foi se afastando e daí aparece o Mappin inteiro. Isso foi a matéria que nós demos sobre o Dia do Comércio. Tudo acontecia desse jeito. Houve um problema lá na Gazeta, houve uma junção do pessoal que era da Opus Dei, o velho conselho, e do pessoal do PT; os dois se juntaram para me liquidar. Foi muito difícil eu sustentar a peteca. Quem me ajudou muito foi o senhor Frias, a gente conversando, falei: “Está difícil, Frias.” Ele falou: “Você tem que pedir demissão mesmo, porque não dá para segurar essas duas pontas lá dentro.” O pessoal do meu partido não me ajudou nada.
P/1 – Quando você saiu?
R – Foi em 86, 87; depois do governo Montoro. Eu saí da Gazeta e não me lembro o que eu fiz. Eu sei que depois, a segunda experiência, foi a eleição do Fernando Henrique. Na eleição do Fernando Henrique eu trabalhei muito no projeto cultural do governo com um grupo grande, que era o Fábio Magalhães, o __________, a Ruth Cardoso... Nós fizemos o projeto cultural. Tinha também o Muylaert. Junto com a Ruth, com o Muylaert e uma porção de gente, eu era do conselho da TV Cultura, da Fundação Padre Anchieta. Eu queria mesmo – eu vou ser franco – era ser ministro da Cultura, porque eu saí bem da secretaria da Cultura, com um prestígio grande. Quase fui candidato à deputado, mas como eu não queria ser político profissional e não era muito interessado nisso, eu preferi coisas culturais e acabei indo para o conselho da Cultura. Eu fiz um acordo com o Muylaert. O Muylaert estava com muito prestígio porque ele foi um grande presidente da TV Cultura. A Ruth, que estava lá, estava encantada que o Muylaert arranjava dinheiro, era o primeiro cara que fazia marketing de apoio cultural. Ela achou que ele seria um grande ministro da Cultura porque ele arranjava dinheiro para patrocinar a cultura; era o fulano que fazia a mediação entre o mundo empresarial e o mundo cultural, na cabeça da Ruth. Era mesmo, ele era um homem capaz de fazer isso. Eu brinquei e fiz um acordo com o Muylaert, falou: “Se você for para o governo, eu vou ser candidato no seu lugar na presidência da TV Cultura. Se for eu, eu te apoio aqui para você continuar na Cultura.” Foi um apoio de amizade, mas que era pra valer. Apesar de eu ter feito o projeto, ele foi convidado pelo Fernando Henrique. No meio dessa combinação, o Fernando Henrique mudou e ele virou o ministro das Comunicações sociais, não da comunicação de televisão, que era o Serjão, e eu perdi o bonde. Como havia a expectativa de que fosse eu, o Fernando Henrique – até eu fui a primeira pessoa que jantou no Palácio com ele – me chamou lá e começou a me dar explicação. Falei: “Olha, você não precisa me dar explicação nenhuma. Você escolheu quem você quis.” Ele tinha escolhido o Weffort. Ele me explicou que escolheu o Weffort por duas razões. O Weffort era uma cunha dele na universidade. A universidade estava muito divida porque tinha PT e não sei o quê, e ele precisava de novo uma cunha na universidade. Além do mais, o Weffort era um cara muito respeitado dentro do PT, porque a tese de sociologia dele era o trabalhismo. Ele não entendia nada de cultura, mas era um grande sociólogo do trabalhismo. Eu falei: “Eu acho que você está estrategicamente correto.” A verdade é que o Weffort não ligou nem com o PT, que não deu a menor trela para ele, e não ligou com a universidade, que ficou contra o Fernando Henrique o tempo todo. Eu dancei, fiquei frustrado. Fui ser candidato à presidência da TV Cultura e sempre tive dificuldades pelo seguinte. Primeiro, é que muito depressamente o Muylaert se indispôs com o governo do Fernando Henrique e foi demitido em março, abril. Antes da eleição, porque eu só tomaria posse em 12 de junho e a eleição seria em abril ou maio. Houve um movimento do Sodré, que era contra mim porque detestava o Montoro… O Sodré era meu amigo social, frequentava minha casa, mas era politicamente muito claro e era dono da TV Cultura. Eles tentaram emplacar de novo o Muylaert voltar para a Cultura para eu não ser. A Ruth falou para o Muylaert: “Você fez um acordo, agora você cumpra.” Quer dizer, uma coisa ou outra, se você perdeu uma coisa... Ela foi muito correta nisso, ela ela era membro do nosso conselho e falou: “Não, agora é hora do Jorge.” Eu entrei para a TV Cultura. Na TV Cultura eu tive uma grande dificuldade logo no começo, que o Covas cortou 30% do orçamento em cima da bucha, em abril. Eu entrei e tinha cortado. Não tinham como pagar os caras que estavam lá, demitiram gente antes de eu entrar. Eu entro numa televisão com seiscentas demissões feitas; até melhor do que eu fazer, mas de qualquer jeito tinha sido feita na minha boca ali. Menos 30% do orçamento. Eu falei: “Meu Deus, o que eu vou fazer?” Eu inventei de fazer publicidade lá, contra a minha vontade, para recuperar um pouco. Nós estávamos numa fase muito boa, o Rá-Tim-Bum estava dando oito pontos de audiência e o jornalismo quatro. Eu levantei isso para dez pontos de audiência e o jornalismo foi para seis pontos, trabalhamos dia e noite. Nesse primeiro mandato meu nós ganhamos todos os prêmios internacionais e um Emmy; sem dinheiro. Arranjamos dinheiro de iniciativa privada, dinheiro daquilo... A gente vendia boneco do Rá-Tim-Bum, eu consegui levantar três milhões com a venda.
P/1 – A marca foi criada nessa época?
R – Foi. O Rá-Tim-Bum tinha sido financiado pela FIESP [Federação das Indústrias do Estado de São Paulo]. Foi uma coisa muito importante, só que a FIESP ficou com os direitos do Rá-Tim-Bum. Como tinha os direitos, a gente estava devendo para a FIESP uma porção de dinheiro além do que ela tinha financiado. Eu acabei fazendo um acordo bom com a FIESP: compramos de volta os direitos da marca Rá-Tim-Bum e essa marca voltou para a TV Cultura, porque não tinha sentido essa marca ficar na FIESP. A FIESP foi muito cordata, mas o que a gente devia se pagou e isso ficou na marca da Cultura. Esse período todo... A coisa funcionou de 95 a 98, 99. O segundo mandato foi mais tranquilo, tenho a impressão de que aí entrou o Alckmin, mas a tranquilidade acabou porque caíram as torres e a publicidade baixou a zero, sobretudo na TV Cultura, que era uma TV que não tinha razão; eles faziam publicidade por razões puramente institucionais. Nós ficamos com verba de governo baixa e com a publicidade baixa, foi um período muito difícil. Nessa ocasião a gente teve alguns problemas complicados, mas de qualquer jeito eu fui ao meu terceiro mandato. Os governos diziam: “Vamos ver o comportamento.” O Covas dizia: “Porra. Eu pago, mas não mando?”. Eu falei: “Governador, o senhor tem razão. O senhor paga e não manda. O senhor não manda em três instituições que o senhor paga: a universidade, a FAPESP e a Cultura. Se tiver alguma fundação no estado em que o senhor pague e mande, que sejam melhores do que a TV Cultura, eu devolvo o seu dinheiro.” Ele falou: “Eu já sei, o que você quer é grana.” Ele me deu dois milhões. O Covas gostava desse confronto, deu dois milhões e nós compramos equipamentos. Eu resolvi a questão de equipamentos com esse dinheiro do Covas e com uma coisa muito simpática: o Sílvio Santos, que estava digitalizando tudo, deu todos os equipamentos dele de u-matic de presente para a gente e me deu todas as prateleiras, tudo que ele tinha. Para nós era ótimo, ele doou tudo. O que a gente fez? A gente canibalizou um pouco o equipamento do Sílvio e recuperou todo o nosso. Somando o nosso equipamento com o do Sílvio deu pra ter todo um equipamento novo, porque repôs todas as peças, e eu aguentei o segundo mandato. No terceiro mandato teve problemas sérios de dinheiro e o governo começou a querer intervir demais e não tinha candidato lá. Até eu era candidato para continuar; não porque eu quisesse, que eu achava que era tempo de eu cair fora, mas não tinha candidato. O governo impõe uma candidatura e o conselho reage, foi quando veio o Marcos Mendonça. Acabamos fazendo um acordo: o Marcos ficou presidente e eu fiquei presidente do conselho; mas daí para a frente o governo estadual, todas as eleições, teve uma voz predominante, contrariando o espírito da fundação.
P/1 – A partir daí sempre indicou candidatos.
R – Sempre indicou candidatos. No fundo, até para não ter uma coisa muito explícita, a gente acabava fazendo um jeito formal de ser indicado pelo conselho, mas na verdade quem indicou foi o governo. Desde aí a TV Cultura vive em crise, porque você tem uma pessoa indicada pelo governo; há uma gestão que não tem paternidade correta, quando o conselho que devia mandar nisso. Nós estamos numa crise inclusive de perda de prestígio. A TV Cultura ainda é querida da população nas pesquisas, mas é indiscutível que o prestígio e a audiência foram lá para baixo. Depois de toda essa luta eu, nessa ocasião… Nesse interregno, a minha vida ficou um pouco mais dura, mais austera, mais chata. Aquele período dionisíaco dos 70 se transformou em um período, primeiro, de responsabilidades políticas sérias – eu ser secretário de Estado duas vezes –, e depois, ser presidente de televisão. Sempre no comando, você perde contato com o mundo real, você fica numa coisa... Mas deu para, nesse período, publicar o meu romance, que era O Jovem K, que era um romance da participação da burguesia de esquerda na luta contra a revolução. Era o meu caso, era um grupo... A gente ajudava todo mundo. Quando eu tinha empresa a gente pôs gente, com o avião da gente, no Uruguai. Tudo isso que eu fiz numa época, eu relatei um pouco...
P/1 – Vocês estavam contra o Golpe [de 64].
R – Nós éramos contra o Golpe, contra a Revolução – mesmo grupo que foi da liberdade, do free marriage e de uma porção de atitudes comportamentais. É o que eu chamo o grupo dos Beatles, da Mary Quant. Na política foi a mesma coisa, nós ficamos do lado da esquerda. Quem não foi para o exterior ficou aqui ajudando. Eu ajudava tudo isso e relato nesse meu livro, que foi escrito dez anos depois, a participação de jovens filhos da burguesia, e como foi a coisa dentro da Revolução de 64. Eu acho que esse é um dos bons livros sobre o período...
P/1 – Quem editou, Jorge?
R – Quem editou o livro foi a Fronteira, aquela do Carlos Lacerda... Como chama?
P/1 – A Nova Fronteira?
R – É. Esse livro tem uma vantagem, porque todos os livros contam a participação do cara de esquerda na revolução: como foi torturado, como foi isso... Esse livro, não. É o lado da burguesia: como é que a burguesia foi penalizada ou sacrificada nisso, ou se comprometeu... Os meus medos, que teve tudo isso. Nessa época fiquei muito traumatizado, porque eu contratei uma empresa – não, era do meu amigo – para fazer a divulgação do livro, o João Bonarte, e o divulgador do livro o levou numa revista semanal muito importante. Quando entregou o livro para o crítico da revista, o crítico falou para ele: “Aquele filho da puta do Jorge, além de ser milionário e político, ainda quer ser escritor?” Pegou o livro e jogou no lixo. Um puta preconceito. Eu fiquei muito traumatizado com essa história, porque é inacreditável. Primeiro: eu não era milionário, eu já tinha perdido o dinheiro. Segundo: a política, para mim, foi uma circunstância; até bem sucedida, fiz campanha das Diretas e tudo, não era para ser repudiado por ninguém: “Ainda quer ser escritor.” A vida inteira eu fui escritor. Se eu fiz uma coisa foi trair o escritor em mim fazendo política. Eu tive sempre tantas chances de ser presidente disso e daquilo, que eu negligenciei a minha vida profissional de escritor; mas nunca deixei de ser escritor, nem ser poeta. Essa história toda da TV Cultura é uma história muito interessante de como se faz uma luta árdua, dura, pela TV pública. Eu descobri que existe a TV governamental, a TV privada e a TV pública. Essa TV pública é uma terceira coisa que no mundo não se percebe, porque na Europa toda televisão é estatal. No Brasil, todos os governadores querem fazer das televisões, televisões estatais deles. Nós começamos a defender essa tese, eu ferozmente. Eu acho que fiquei __________ nisso, eu o __________ somos defensores ferozes disso. Isso redundou no primeiro congresso e no primeiro fórum de televisão pública do Brasil, que levantou todos esses princípios. O Lula, muito esperto, percebeu isso tudo e adotou esses princípios como os princípios básicos da lei que criou a EBN, a Empresa Brasileira de Notícias, que tem a TV Brasil. Ele criou uma instituição baseada nos princípios e define em lei os princípios da TV pública de uma forma corretíssima. Depois monta uma televisão que é uma empresa não tão consentânea com esses princípios, mas que foi um grande avanço disso. Enquanto isso, a TV Cultura cede para a TVE Brasil toda a rede nacional. Nós perdemos toda a rede nacional, a TVE Brasil ficou e o...
P/1 – Todas as TVEs?
R – As TVEs todas que reproduziram a TV Cultura hoje praticamente são repassadoras da TV Brasil, e não da TV Cultura. A TV Brasil está agora naquele amadurecimento. Vamos ver se ela fica uma televisão gerida pelo seu conselho, como recomenda a própria lei, ou se vai ser gerida e nomeada diretamente pelo presidente da República, como é até agora. A luta pela TV pública continua. Eu saio dessa luta não desanimado, mas um pouco decepcionado, porque é uma luta feroz e os governantes, os políticos não entendem que o melhor pra eles até é que a televisão fosse independente, mas não é. Nessa fase nova da minha vida, que passou tudo isso – eu passei correndo, tem muito detalhe que não dá para ver –, eu me reencontro fortemente com a poesia. O Bonvicino me falou: “Jorge, seleciona dos seus três livros de poesias as melhores para a gente fazer uma antologia. Depois pega as novas e a gente publica todas.” Eu marquei nesses livros de poesia todas que eu achava boa para fazer a antologia, mandei para ele e falei: “Depois eu vou te mandar as novas.” Comecei a pegar os originais da poesia feita no período da política e no período dessas televisões, tudo que eu tinha feito..
P/1 – Você sempre continuou produzindo.
R – Apesar de eu trair um pouco a poesia, eu nunca parei de escrever poesia. Eu comecei a pôr essas poesias todas no computador e fui jogando fora os originais. Na semana que eu ia entregar para ele, no sábado, entra um ladrão em casa e me rouba o computador. Eu perdi todas as poesias desse período de política e televisão. É tão dramático que a única coisa que eu falo é: “Paciência, fodeu” – quer dizer – “perdeu.” Com uma boa paciência ‘Mao chinesa’, falei: “Agora eu tenho que reescrever toda a poesia.”
P/1 – Foi aqui?
R – Foi aqui na Macunis que me roubaram. Eu fiquei meio desalentado e até mudei da Macunis para um apartamento, porque essa casa tinha encerrado um período com o roubo da... Me roubaram todas as poesias, todas as joias que eram da minha mulher que tinha morrido, da minha mãe, uma coleção de canetas que herdei do meu pai que eu gostava muito e o computador, que foi o pior. Perdi essas coisas. Nesse período todo eu tive um contato muito profundo com a Universidade de Barcelona, com a língua espanhola. Nesse período todo de televisões eu era vice-presidente das instituições internacionais de televisão, e como eu tinha essa tese da TV pública, todo mundo me convidava pra falar sobre isso, que para eles era uma novidade. Duas coisas que eram novidades para eles: a TV pública e jornalismo público. Jornalismo público era um jornalismo que não quer fazer o espetáculo da notícia, mas a compreensão do acontecimento. Eu lutei por essa tese e a defendi em Barcelona, no México... Em tudo quanto era congresso que eu ia, eu falava sobre isso: no Uruguai, no México, em Guadalajara, em Águas Calientes… Todo lugar que eu falei foi sobre isso e fiquei com certa notoriedade. Um dia eu fui para o México e começou uma coisa estranha na minha poesia. Eu comecei a reescrever muita poesia nesse período e depois que eu saí da presidência da TV Cultura... Eu continuo ligado, sou ainda o representante da TV Cultura nas instituições internacionais, como membro do conselho. Um dia eu fui para o México e aconteceu uma coisa interessante. Eu não tinha nada que fazer numa tarde, peguei um táxi e fui até a casa da Frida Kahlo, que era num bairro distante. Quando cheguei, falei para o taxista: “Vai embora e me pega daqui a uma hora e meia, ou uma hora, que eu estarei livre.” O táxi foi embora e quando eu fui entrar a casa estava fechada porque era o Dia do Petróleo, o dia do Benito Juárez.
P/1 – Ah, é feriado.
R – Eu falei: “Ah, meu Deus! Agora não tem como voltar.” Eu sentei num banco ao lado do muro azul da casa da Frida Kahlo e comecei a imaginar como era a casa por dentro, o que acontecia ali e tal. Veio na minha cabeça uma coisa assim: “No entré en la casa de Frida Kahlo. Era un día de fiesta por Benito Juárez.” Eu comecei a falar em espanhol e comecei a escrever a poesia em espanhol. Eu escrevi uma grande poesia sobre a Frida Kahlo e, sobretudo, sobre aquela ideia das coisas que a gente não entra, dos amores que a gente não teve, dos prazeres que a gente não gozou e de tudo que acontece na vida de todo mundo, porque é tão grande o que você fez, tão frequente como o que você não fez. Saiu uma poesia muito bonita sobre a casa de Frida Kahlo, No entré en la casa de Frida. Foi a minha primeira poesia espanhola. Eu mandei para os meus amigos, eles gostaram muito e corrigiram algumas coisas. A Universidade de Barcelona patrocina, todos os anos, uma viagem de quarenta estudantes espanhóis de diversas universidades para ir visitar, ter um contato social profundo com um país e depois fazer turismo também; e convidam quatro professores, dois do país e dois de fora, para fazerem palestras para eles em alguns pontos da viagem. Me convidaram pra falar para os meninos em Cusco e fazer o trecho – olha a minha sorte – Cusco, Machu Picchu e um professor da Universidade do Peru que era brujo, que era bruxo mesmo e fez uma grande palestra sobre a bruxaria. A gente fez despachos e, no dia seguinte, ele levou os despachos a cinco mil metros de altura para encomendar para os deuses os nossos pedidos. Folhas secas, uma coisa complicada, mas muito instigante. Eu fiz uma palestra para os meninos. Fiquei muito amigo dos professores, dos alunos, das alunas.
P/1 – Que ano foi isso, Jorge?
R – Foi há uns quatro anos, cinco anos.
P/1 – 2006, mais ou menos.
R – u tenho a data exata, mas não me lembro. Quando estava no Peru os meninos falaram: “Nós todos aqui fizemos coisas.” Um fez uma videorreportagem, o outro fez uma gravação, o outro fez fotografias e falou: “Você vai fazer a poesia de Machu Picchu.” Eu falei: “Eu vou fazer, mas não dá tempo de fazer aqui nesse último dia. Eu faço e mando para vocês.” Eu vim para o Brasil – a excursão chamava Tahina Can, que tem um significado lá – , daí escrevi dez elegias de Tahina Can, que são sobre aquele choque do mundo ibérico com os incas, toda aquela fusão da arquitetura – ou confusão que aconteceu – e toda a ferocidade dos invasores. Toda a grandeza que estava lá. Eu escrevi dez elegias sobre essa excursão em espanhol, foi engraçado. Mandei para eles e foi, começaram uma série de poesias em espanhol, depois eu escrevi sobre as Ramblas de Barcelona... Nesse período eu comecei a reescrever em espanhol e português. Em português muito influenciado pelo Borges, foi uma marca muito profunda do Borges em minha cabeça. Não tenho mais as poesias, foram perdidas no computador, mas tenho uma quantidade expressiva de poesias que pretendo publicar o ano que vem. Fiz outra descoberta muito louca: as minhas secretárias... Todas as reuniões que eu participo faço desenhinhos que são registros gráficos das reuniões, quase psicanalíticos, mas com consistência no sentido de que têm temas redundantes. As secretárias da Secretaria da Cultura guardaram isso tudo e anos depois me deram.
P/1 – Como era? Elas iam arrumar a mesa, os papéis e juntavam...
R – Elas apenas pegavam na mesa e punham a data. Não punham em que reunião tinha sido, mas às vezes eu mesmo punha que reunião era.
P/1 – Elas te entregavam?
R – Não me entregaram nada, guardaram isso. Eu fiquei sem ver isso muitos anos. Quando eu saí da Secretaria da Cultura, a secretária guardou e, anos depois, me deu um pacote. Depois a minha secretária Eda, da TV Cultura, também me deu um pacote, e a Miriam, da segunda parte da TV Cultura, me deu. Na semana retrasada, a Associação Viva o Centro – eu não falei do Viva o Centro, que é outra atividade que eu fiz nesse período... [pausa] A secretária me separou também. Como eu vou fazer oitenta anos, eu estou separando todas essas coisas com a Maria Alice e vamos selecionar cem para fazer uma exposição ou depois publicar junto com as poesias. Eu não sou um artista plástico – nunca fui e nem pretendo ser –, mas essas coisas são interessantes e foram feitas como quase... Não é um retrato desse trabalho, mas é uma forma de reflexão do que estava acontecendo na reunião. No Viva o Centro também eu fiz muito disso. O Viva o Centro foi uma coisa que... Há vinte anos eu ajudo o Henrique Meirelles para a ideia de recuperação do centro da cidade. Por que essa recuperação do Centro? Eu estudei no São Bento e na faculdade de Direito, que é no Centro, então eu vivi a juventude lá. Faculdade de Direito, a mocidade... Eu vivi no Centro. Depois o nosso grupo, todas as noites, quando eu era jovem, íamos ao cinema e depois íamos ao Paribar tomar uns drinques, que eu já contei. O Centro era a minha vida. Depois, quando eu fui secretário da Cultura, a sede da Secretaria da Cultura era na Líbero Badaró, naquele prédio art nouveau...
P/1 – Super bonito, que depois foi o CONDEPHAAT.
R – É, um prédio lindo que era lá. Minha vida ficou muito marcada pelo Centro. O Henrique me convidou e os últimos vinte anos ajudei um pouco esse processo de recuperação no Centro que teve boa... Tem de memória disso, esses desenhinhos que eu fazia nas reuniões do Viva o Centro.
P/1 – As secretárias combinaram ou foi coincidência?
R – Elas achavam interessante e guardavam. Uma porque foi a mesma, que foi... Uma avisou para a outra, mas no Viva o Centro foi pura cabeça dela. Foi coincidência elas guardarem.
P/1 – Olha que legal.
R – Isso aí ficou uma memória desse período. Agora estou me sentindo de novo não como naqueles anos 70, mas quase. Um período em que eu estou liberando a minha veia poética, tudo que eu sinto e a minha avaliação do mundo, porque eu faço o meu blog... Eu fiquei um velho que gosta de internet, então eu faço o meu blog todo dia. Eu uso o sistema de internet para pesquisa, para tudo isso, e acho que foi uma coisa muito fecunda. E mais, muita atenção crítica que eu tenho ao acontecimento... A frustração que eu tinha do noticiário ser tão espetaculoso e pouco reflexivo me fez hoje ser um cara... Eu tenho uma reflexão bem profunda sobre a economia, sobre as artes e sobre tudo. Tanto é que eu escrevo no meu blog sobre tudo. Eu vou à ópera, conheço música mais ou menos bem, então escrevo sobre isso e está sendo o blog um diário crítico das coisas. Da mesma forma com que eu, quando tinha dezessete anos, fiz uma coluna no Correio Paulistano, que era o Janela Indiscreta, depois eu fiz uma coluna na Última Hora que chamava Paulicéia Desvairada. A minha coluna hoje é o blog do IG, no qual eu faço comentários da mesma natureza que eu fazia quando tinha dezessete anos, só que bem mais...
P/1 – Consistentes.
R – Eu escrevia melhor quando eu era jovem, a minha escrita era mais literária. Hoje a minha escrita é mais dura, mais concisa. É menos...
P/1 – Mas também mudaram as mídias.
R – Mudaram. Evidente que aquela mídia era da palavra escrita, stricto sensu. Escrever com lápis. Hoje você escreve com o dedo, e o dedo é mais impositivo. O analógico é mais... Quando você faz essas coisas com a mão é uma coisa; quando você faz com o dedo só, o dedo é muito autoritário. Há uma diferença grande na escrita que você faz no blog do que a escrita que eu fazia. Eu tenho tudo isso, às vezes eu dou uma lida naquelas coisas e acho muito engraçado. O personagem – se eu pudesse me considerar um personagem – é muito parecido: os sentimentos, os ideais. Eu não quero mais ser santo, essa ideia já foi abolida, mas de qualquer forma há um mínimo de santidade cívica que o homem tem que guardar. Se você não tiver uma dignidade civil, você não vale nada. O que se perdeu muito hoje: essa decência civil, essa capacidade de encarar o próximo e de reconhecer a figura do outro. O homem moderno se esqueceu do outro, o outro desapareceu como uma coisa filosófica da consideração do homem moderno. Isso eu acho a maior tragédia contemporânea: a ignorância do outro; então me exagero nessa tentativa do reconhecimento do outro. O que me valeu muito, porque eu me dou muito bem com jovens. Todo mundo que é mais jovem, eu me dou. Os amigos dos meus filhos vão jantar em casa por conta própria. Ligam para a empregada, que querem comer um negócio, e vão em casa como se estivessem indo na casa do meu filho. Isso com uma facilidade muito grande, o que é muito rico, porque fico sabendo qual é o ponto de vista deles. Às vezes, uma coisa que eu critiquei no meu grupo eu cutuco para ver o que a moçada acha e é muito diferente.
P/1 – O senhor estava me contando o que você faz hoje. Quais são as suas atividades? Como é que você deu seguimento a essa tua carreira?
R – Hoje, é engraçado... Eu sou dos poucos caras – eu falo isso com uma certa ironia do PSDB – que ocupou cargos tão importantes e que tem que trabalhar com essa idade. Eu trabalho com essa idade não pra ganhar a vida – tenho patrimônio ainda –, mas eu tenho que ganhar a vida corrente, pelo menos para ter o padrão que eu me reservei, netos e tudo isso. Eu tenho uma grande felicidade que, nos meus oitenta anos... Aconteceu comigo uma coisa engraçada no aeroporto. Eu fui para o México por Dallas. Quando voltei do México, no aeroporto em Dallas, o guarda invocou com a minha cara que eu não tinha oitenta anos. Eu fiquei muito feliz de um guarda – um troglodita –, ao invés de perguntar se eu estava com cocaína lá, querendo me barrar porque eu não tinha oitenta anos... Eu falei: “Olha, eu tenho meu passaporte. A única coisa que eu posso fazer é tirar meus óculos. Também eu vou para o Brasil” e não sei o quê. Ele falou: “Não.” Chamou dez guardas: “How old is this guy?” – qual é a idade que você dá pra esse cara? Cada um dando uma idade, ele falou: “Eu não falei? Isso aqui é passaporte do seu pai.” Eu ria, porque eu tava feliz da vida. Um idiota falando que era o passaporte do meu pai, eu falei: “Tá ótimo, se ele falasse que era o passaporte do meu filho estava muito pior.” Eu ria… Ele ficou bravo de eu rir, porque todo mundo tem medo dos caras. Eu falei: “Quer saber, eu vou para o Brasil daqui duas horas.” “Cadê o seu ticket?” Mostrei: “Vou embora. Deixa que no Brasil eles resolvam se o passaporte é do meu pai ou meu.” Ele acabou me deixando passar e eu vim embora. Eu estava contando isso a propósito do...
P/1 – Porque eu falei que você...
R – Ah, eu volto a trabalhar. Eu fiquei pensando porque eu... Ele perguntou: “Como é que você faz isso pra ficar com essa cara jovem?” Eu falei: “Eu não bebo muito e, sobretudo, não fumo. Ando de manhã todo dia no parque, uma hora.” Eu estava pensando: “O que me dá certa juventude e felicidade?” Tem gente que acumula na vida sabedoria; eu acho que acumulei amigos. Tirando os amigos que morreram, que foram poucos – infelizmente a minha mulher, uma meia dúzia –, todo mundo está vivo, o que é raro. Você me imagina com essa idade e todo mundo vivo? Meus amigos estão vivos. As amigas que eu tenho: uma me convida quarta-feira para ir ao concerto da OSESP [Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo], já comprou duas entradas e tenda; outra assina o Mozarteum e eu sou o __________ do concerto; um outro casal amigo todo fim de semana, se eu estou em São Paulo, me convida para ir numa estreia de cinema e jantar junto; eu nunca consegui ficar num hotel na França porque eu tenho amigos que têm apartamento lá e toda vez tenho que ir para o apartamento dele ou do outro, ficam disputando para ver qual que eu vou; as minhas netas almoçam comigo todos os dias – menos quinta-feira – na minha casa, levam os colegas e não sei o quê… São netas pequenas que estudam no São Luís, perto de casa; eu nunca precisei ter casa na praia porque tenho duas ou três casas que são como se fossem minhas. Então sou um cara feliz da vida, porque é uma vida cortejada por tantos amigos, por tanta gente e tudo isso. Agora eu vou fazer os meus oitenta anos e já tem uma festa enorme que está sendo preparada na casa do Fernão, ele que está fazendo. São gratificações que você tem. Essa gratificação vem dessa coisa de você reconhecer e ter afeto pelo outro. O outro existe, eu gosto das pessoas. Depois essa coisa de que é importante você ter decência cívica. Não é nem religiosa, é cívica. Você tem que respeitar um pouco a comunidade e você tem que ser politicamente respeitável, porque a política invade a vida da gente dia e noite. Tudo tem política. O imposto que você vai pagar agora no carro… Tudo é política e você tem que participar disso, só que tem que participar disso com interesse do bem comum – como dizia o Montoro –, e não por interesse próprio. Eu acho que essas coisas são importantes para dar sentido à vida. Se eu voltar para Dallas eu vou falar essas coisas para os agentes do FBI [Federal Bureau of Investigation]: “Olha, ninguém está falsificando passaporte, não. A vida é que está disfarçando a idade.”
P/1 – Jorge, e os seus sonhos? Quais são os seus sonhos hoje?
R – O meu único grande sonho eu não vou realizar.
P/1 – Por quê?
R – É um reconhecimento literário. Eu tive mais reconhecimento político, reconhecimento social e nunca tive o reconhecimento literário que eu acho que a minha obra mereceria. O Thiago de Mello diz que é porque eu sempre traí a literatura. Falou: “Você nunca se dedicou de vida e alma à literatura. Sempre você tava fazendo alguma outra coisa, traindo a literatura.” Eu não sei se é isso ou não; ou até talvez porque a obra não seja, digamos, merecedora do reconhecimento que eu pretenderia. Mas se é uma pequena frustração, é essa; no resto não tenho frustração nenhuma. Talvez não saber tocar piano.
P/1 – Hoje você teria esse sonho de tocar piano?
R – Não. Meu sonho é... Meus sonhos estão sendo realizados. A poesia que estou escrevendo me satisfaz, em português ou em espanhol. O convívio com os amigos que eu tenho, com a família é bastante fecundo... Tem as tristezas. Eu tenho uma sobrinha poeta, minha afilhada, que em pleno delírio – mas em grandeza poética – se matou, depois de fazer uma tese sobre a Ana Cristina Cesar. Eu acho que desde a tese ela pirou e... Enfim, repetiu exatinho a cena.
P/1 – Nossa, que loucura.
R – Pra você ver que essa simbiose poética da tragédia também é muito perigosa. Era uma menina linda e poeta boa, também. Se matou igualzinho.
P/1 – Qual é o nome dela? Pode falar?
R – Regina Helena. A verdade é que a gente é muito... Alguém dizia que Deus está nos detalhes; eu poderia dizer também que o Diabo está nos detalhes. Esses depoimentos valem na medida de uma ou outra coisa que, de repente, revela os conteúdos, porque o storyline da gente é igual de todo mundo. Você passa por uma...
P/1 – É igual e diferente.
R – Igual e diferente. As descobertas é que são reveladoras. É um encontro, é uma coisa... Eu tenho uma coisa que é muito louca, um conto de acaso. Grande parte dos meus amigos são amigos e amigas de lastro, de classe, de ideologia; mas a capacidade de encontro, de repente ou acaso você encontrar e ficar amigo é inacreditável. Esse meu amigo da França, que nos encontramos uma vez na embaixada… Ficamos super amigos e de repente o cara – agora – casou com a filha do rei do Marrocos. É uma loucura, a vida fica... Você dá um curto circuito internacional tão louco pelo acaso. O acaso produz grandes acontecimentos. O Tristão de Ataíde dizia que a base da existência humana é a imprevisibilidade. Eu me lembro que uma vez eu fui entrevistar o Tristão de Ataíde – eu sempre tentei ser repórter – no convento das madres, num mosteiro onde a filha dele era monja e priora, abadessa. Ele estava hospedado lá, mas do lado de fora, porque é proibido você entrar no mosteiro; elas têm uma vida recolhida e ninguém pode ver. Eu estava entrevistando o Tristão de Ataíde e ele estava me falando sobre a grandeza da imprevisibilidade quando chega o Dom Paulo Evaristo Arns para fazer a visita canônica ao mosteiro, em que ele entra, visita, abençoa, conversa com as freiras e tudo isso. Soube que o Tristão de Ataíde estava lá – era o pai de todos – daí ele foi cumprimentar o doutor Alceu e falou: “Eu tenho direito canônico de levar duas testemunhas na minha visita, mesmo que seja o convento mais fechado do mundo.” Convidou o Alceu, virou pra mim e falou – veja a imprevisibilidade que a gente estava discutindo...
P/1 – Ele não tinha a menor...
R – Ele ficou numa emoção absolutamente...
P/1 – Claro.
R – E eu, então? Porque a gente entrar ali... Quando entramos no convento, que ainda era ali no São Carlos do Pinhal, ele ver a filha de perto... Porque eles se corresponderam a vida inteira, todo dia eles se escreveram cartas. Foi uma coisa, uma carta...
P/1 – Um exílio.
R – De exílio. Cartas de amor maravilhosas sobre o... Ele era um santo mesmo e a filha era uma monja. A gente entrou e eu me lembro das freirinhas todas, vieram numa felicidade. Depois eu fiquei conversando com uma e ela falou: “Je suis ici depuis 60 années” – sessenta ou setenta anos que ela estava lá. Ela era belga ou francesa... Depois ela falou: “Hoje tem uma grande festa aqui, com a chegada do cardeal” e me levou lá. A grande festa, que eu me lembro, tinha guaraná, aquele sanduíche de triangulo de presunto com queijo, e depois tinha brigadeiro, umas coisas assim. Elas estavam felicíssimas da grande festa porque o cardeal ia visitar o mosteiro. Eu tomei guaraná com ela e tinha vontade de chorar o tempo todo, porque era um negócio de uma emoção…
P/1 – É mesmo.
R – A imprevisibilidade é uma coisa muito rica na vida, isso aconteceu muito comigo também. Eu nunca disputei coisa alguma para ser secretário e talvez a única coisa que disputei eu não fui, que era ser ministro da Cultura. O resto eu não disputei nada e fui. É muito engraçado, para ver que o acaso é mais forte do que a pretensão. Foi isso.
P/1 – Jorge, como é que foi dar o depoimento e falar sobre a sua vida?
R – Eu acho interessante porque… Primeiro, eu não tenho vergonha da minha vida; segundo, eu gosto de falar. O brasileiro adora falar. Eu gosto de falar e falar, de certa forma, vai te repor a memória. É importante você rememorizar pra entender o dia presente. Rememorando você começa a dar mais importância nas coisas importantes, porque você não quer se lembrar de coisas medíocres, quer se lembrar de coisas mais virtuosas. Isso te dá um grande lastro para a compreensão do amanhã, mesmo que o amanhã seja curto; com oitenta anos, cada dia tem importância.
P/1 – Ninguém sabe. Olha a imprevisibilidade.
R – Não é isso, é que cada dia é tão importante quanto um ano. Às vezes tem um dia na sua vida que é tão relevante quanto dez anos. Um dia de amor vale o quê? Vale tudo.
P/1 – Muito bem.
R – É isso aí.
P/1 – Obrigada, Jorge.
R – De nada.
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