PCSH_HV748_Paulo_Netho
Entrevista: Paulo Netho
Entrevistador: Jonas Samaúma e Sérgio Sampaio
11 de abril de 2019
Programa: Conte sua História
Entrevista número 748
Entrevista 001 do Afinadores de Ouvido, História de Contadores de Histórias
Revisado por: Jonas Worcman
P/1 – Pinto Pelado.
R – Contam os que contam e dizem os que sabem que Domingos Pinto Colchão é um frango magricelo, despenado, meio amalucado e que adora dar sustos nas donas de casa. Um detalhe: ele é conhecido como Domingos Pinto Colchão só no estado de São Paulo, porque no resto do Brasil ele é conhecido como plic, plic, plic, o Pinto Pelado. E a história que eu vou contar é quando esse rapazinho tomou um chá de ajajá quererê, com boi tatá tererê e foi parar lá no reino dos Trava Línguas e as pessoas saíram procurando: “Ei, você viu o Pinto Pelado por aí? Ei, você viu o Pinto Pelado?” “Vi, sim. Ele pulou da panela pro pinico, de lá ele viu o sapo dentro do saco, o saco com o sapo dentro, o sapo batendo papo e o papo, puf, soltando vento”. Credo, que conversa! O bonitão do Pinto Pelado estava lá lá lá lá lá lá, andando pelo reino dos Trava Línguas quando, de repente, a fiandeira que fiava a farda do filho do feitor Felício viu, lá no Morro Chato, uma moça chata, com um tacho chato, no chato da cabeça e gritou bem assim: “Moça chata, esse tacho é seu?” Olha, a moça disse: “Eu não sou chata, não e esse tacho não é meu, ele é do Diogo” e quando eu digo, digo digo, e não digo Diogo e quando eu digo Diogo, eu digo Diogo e não digo digo”. Gente, o bonitão do Pinto Pelado continuou andando, andando, andando pelo reino dos Trava Línguas quando, de repente, ele ouviu aquela correria, plac, plac, plac, corre o pato, pega o rato, foge o gato, paga o pato, pá pá pá. Gente, ele deu tanta risada, mas tanta risada, que ele riu tão alto, mas tão alto, que ele acabou sendo surpreendido com um sonoro “Ahn ram ram”. Sabe quem era esse? Era o Padre Pedro e falou: “Muito bem, meu caro Pinto Pelado, imagina se o papa papasse o papa! Se o papa papasse o pão, se o papa papasse tudo, seria o papa papão” “Mas Padre Pedro” “Não tem mais, nem menos, por causa disso, o senhor que está aí me vendo terá que dizer 288 vezes - e o senhor também, senhor Pinto Pelado - 288 vezes esse pequeno trava língua” “Mas...” “Não tem mais, nem menos. Por favor, a pia pegue pinga. Repita comigo: a pia pegue pinga, o pinto pegue pia. Quanto mais a pia pegue pinga, mais e mais o pinto pia”. Ai, ai, ai, ai. O coitadinho do Pinto Pelado não aguentava mais aquilo: a pia pegue pinga, pá pá pá pá. Ahn, ele sentou-se, quando ele sentou-se 2 rapazes, um grego gagá e um gago grogue, sentaram-se ao lado dele e começaram a falar assim: “Lá em cima da montanha tem uma arara loura”. Como? “Lá em cima da montanha tem uma arara loura, fala arara loura, fala arara loura la la la la la la”. Gente, o coitadinho do Pinto Pelado não aguentava mais aquilo, ele saiu dali e falou: “Tô tanto, tô lento, tô tinto, tô tonto, tô santo, tô sonolento, tô extinto, tô zonzo, não adianta, não sei, que eu não minto, não conto, não conto, não conto, não conto, não conto. Nem se o arcebispo de Constantinopla quisesse discursonotantinopolizar que seria um discursonotantinopolizador que o discontatenopolizaria. Nesse momento, o Pinto Pelado se encheu de brio, subiu no pinico e começou: “Companheiros e companheiras, reconheço que sou um Pinto Pelado, mas sabendo o que sei e sabendo o que sabes, me diz aí: “Se a aranha arranha a rã e a rã arranha a aranha, como é que a aranha arranha a rã e a rã arranha a aranha? Amiguinhos e amiguinhas, eu não tenho nada contra o Padre Pedro, mas eu fui até a missa dele e, quando eu cheguei lá, estava um tal de encima, embaixo, a ponte, o riacho, embaixo, encima, a ponte, a piscina. Até que uma moça gritou: “Padre Pedro, Padre Pedro, hoje não vai ter a do dedo?”. “Ai, ai, ai, é claro que vai ter a do dedo, dona. É um dedo, é um dado, é um dia. É um dedo, é um dado, é um dia”. Gente, foi nesse momento que a outra moça falou: “Padre Pedro, hoje não vai ter o bolinha, bolinha?” “É pra já, mas antes do bolinha bolinha, por favor, diga comigo: “Ema, ema, ema, três vezes: ema, ema, ema, qual o nome da clara do ovo? Ahh, que gema o que, querida! Vamos voltar para o bolinha, bolinha?” Bolinha, bolinha, bolinha, bolinha oooooooo bolinha oooooooooo bolinha, bolinha, bolinha, bolinha. Repete. Como que é? Não repetiu? Então, tem que repetir, porque senão essa história não termina. Bolinha, bolinha, bolinha, bolinha oooooooooo, bolinha ooooo, bolinha, bolinha, bolinha, bolinha. Repete. Muito bem, mas foi nesse momento que o Padre Pedro e o Pinto Pelado encontraram, lá no reino dos Trava Línguas, um homem que estava de férias, um encantador de pessoas chamado Chico dos Bonecos. Sim, o Chico dos Bonecos, o grande contador de histórias do Brasil, estava lá no reino dos Trava Línguas e falou assim, chegou já chegando: “Olá, meu caro Pinto godinto de gorropinto chirigabutinto de serra matutinto, eu sou o Chico godinto de gorropinto chirigabutinto de serra matuntito” e o Pinto Pelado falou: “Senhor Chico, por favor, eu quero sair daqui”. “Ah, mas para o senhor sair daqui, o senhor vai ter que dizer qual é o nome plic, plic, plic da fruta, senhor?” “Como? Ah, não. Como é o nome do senhor? Como?” “Sérgio Godérgio de Gorropérgio Xirigabutérgio Serramatutérgio”. “Como é o nome do senhor?” “Jonas Gudonas de Gorroponas Sirigabotonas Serramatutonas”. “Muito bem, mas que pra todo mundo possa sair daqui, você vai ter que me dizer qual é o nome da fruta. Garotinha, por favor, qual é o nome da fruta? Laranja? Hammmm, quase. Sempre que a pessoa não consegue falar a fruta que eu estou esperando, todo mundo fala quase. Senhor, por favor, qual o nome da fruta? Mexerica? Hamm, quase. Senhor, por favor, qual o nome da fruta? Banana? Hamm, quase. Gente, vamos acabar com essa brincadeira? Todo mundo pegue a mãozinha e fala: ‘O nome da fruta é como? O nome da fruta é fruta pé, preto pá, prata pó, pá pó pé. Como é o nome da fruta? Fruta pé, preto pá, prata pó, pá pó pé. Uma vez, em Osasco, o rapaz foi falar: pá pó pé. Não, não, vamos voltar para o assunto: o nome da fruta é fruta pé, preto pá, pá pó pé. Ah, meus amigos, o meu amiguinho Pinto Pelado deu tanta risada com o senhor Chico dos Bonecos. Ele aprendeu que, quando a gente ouve o outro, esse é um gesto de amor e, dessa maneira, essa história não, não, não, essa história não vai entrar pelo pé do pato agora porque, antes de entrar pelo pé do pato e sair pelo pé do pinto, você vai ter que dizer comigo assim: “Por favor, senhor Jonas, vamos conjugar o verbo: eu tagarelarei, tu tagarelás, ele tagarelará, nós tagarelaremos, vós tagarelarás... gente, vou começar tudo de novo: eu tagarelarei, tu tagarelarás, ele tagarelará, nós tagarelaremos, vós tagarelareis e eles, com certeza, ta ga re la rão. Dessa maneira, essa história, agora sim, entrou pelo pé do pato, saiu pelo pé do pinto e, se você quiser outra, por favor, que conte mais cinco.
P/1 – Que incrível!
R – Não ficou muito longa?
P/1 – Não, não. Ia falar pra você contar mais uma.
R – Outra? Vou contar sabe qual agora? Deixa eu molhar a palavra aqui, espera aí.
P/1 – Pra aquecer bastante.
R - Essa história, depois, se você quiser colocar, eu escrevi essa história no Hopi Hari, pra contar no Hopi Hari, aí a Editora Saraiva, eu peguei os trava línguas... acho que seria legal falar um pouquinho da história. Então eu vou falar: a história que você acabou de ouvir é O Pinto Pelado no Reino dos Trava Línguas. Essa história eu fiz no tempo que eu trabalhava no Hopi Hari, contando histórias lá, no Clap Clap Show e me pediram pra fazer uma história do folclore brasileiro e eu falei: “Não, não sei”. Então eu peguei um ser fantástico do folclore brasileiro chamado Domingos Pinto Colchão, uni com os trava línguas que já existiam, tanto é que tem trava línguas que são da tradição, outros que são do cego Aderaldo, como: “É um dedo, é um dado, é um dia”. O cego Aderaldo que faz isso. E resolvi costurar uma história e criei um enredo e fiz uma homenagem para o Chico dos Bonecos, que é um grande escritor brasileiro, amigo, querido e a Editora Saraiva publicou esse livro em 2006. E é, basicamente, com esse livro, com essa história, que eu me apresento nos palcos do Brasil. Então, sempre a história que segura a onda das minhas apresentações, é O Pinto Pelado no Reino dos Trava Línguas. E aí o livro foi para a Editora Saraiva, agora eu pedi um distrato desse livro e vou republicar essa história pelo meu selo, que é o Cara de Pavio.
P/1 – Eu quero que você conte mais uma.
R – Mais uma história? Vou contar a história do Como assim? Eu não vou pegar o livro. Ou vocês querem que eu faça com o livro. Há várias maneiras de se contar uma história. Uma delas, que eu gosto muito de brincar com as crianças, é com o livro na mão. Esse livro, Como assim?, é onde a gente faz um convite para a criança, pra que ela finque os pés na fantasia. Então, eu começo assim:
“Olá, menino e menina, leitor e leitora, quem escreve aqui sou eu, eu mesmo, Paulo Netho, seu autor irrequieto. Vou contar uma coisa: pediram pra fazer um livro sem ilustrações. Meu Deus! Você pode gritar comigo. Esse livro é um livro que grita. Meu Deus, um livro sem desenhos?”
Não, vamos começar de novo? Eu comi aqui uma bola. Posso voltar só no meu Deus aqui?
P/1 – Vai do começo.
R – Vamos lá! Eu vou começar, já, da história.
P/1 – Apresenta.
R – Está bom. Então, gente, esse livro aqui eu gosto muito de contar história com um livro na mão. É um dos recursos do contador de histórias, né? Você conta com um livro na mão, você conta com um lenço. No meu caso, eu vou usar o livro pra chamar a criança pra afinar o ouvido. E eu começo assim:
“Olá, menino e menina, leitor e leitora, quem escreve aqui sou eu, eu mesmo, Paulo Netho, seu autor irrequieto. Vou contar uma coisa: pediram pra fazer um livro sem ilustrações. Meu Deus! Um livro sem ilustrações? Essa, não. Essa, não. Como assim? Um livro sem desenhos, deseinhos e desenhões? Ai, ai, ai, é hoje que a criançada me mata! Mas como tarefa é tarefa e ordens são ordens, pois bem, quem avisa, amigo é. Nem adianta procurar, porque aqui você não vai encontrar nem um, nem dois, nem três desenhos, deseinhos ou desenhões. No máximo palavras, palavras, só palavras, porque aqui ilustrações são coisas proibidas. Será que você entendeu? Por favor, não insista, não insista, nãoooooooooo insiiiiiiiiiiiiiiista. Nesse livro só tem palavras pra quem gosta de inventar. Eu, por exemplo, sei que o mundo é uma grande bola que rola e rola e não para mais de rolar, que 0 a 0 é o placar mais chato que há. É até mais chato que o triste, magrelo e amarelo 1 a 0. Que beijinho doce é tão doce quanto o beijinho da mamãe, só que o beijinho da mamãe é, sim, o melhor dos doces. Que uma moça que canta em uma janela branca chama-se Esperança. Preste atenção. Que um dia sem luz pode ser só um dia sem luz, que uma casa vazia é tão sem graça como um cão sem dono em uma praça, que em um dia nublado pode ser tão belo como um dia ensolarado, que o mais simples dos abraços é tão importante quanto os primeiros passos, que um barco partindo e uma tarde sumindo me lembram de um antigo domingo, que você encontre boas razões pra cravar no papel as melhores emoções e que o direito de sonhar ninguém pode roubar, que a poesia é uma viagem que se faz por terras desconhecidas, que você aprenda se lambuzar com as delícias do céu, da terra e do mar. Então, que ninguém nunca se esqueça de fincar os pés no rico solo da fantasia. Então não duvide, nem faça cara de mau, porque tanto nesse livro, como em outros, podemos encontrar bons motivos pra voar e tchau. É isso. (risos)
P/1 – Agora que você deu seu tchau, vamos dar o nosso oi.
R – Vamos lá! (risos) Desculpa, eu nem me apresentei.
P/1 – Diga, então, seu nome, seu local e data de nascimento.
R – Meu nome é Paulo Netho, você sabe por que, porque o vovô é o Paulo Vô e eu sou o Paulo Netho e o meu pai é o… quê? Não. O nome do meu pai é Geraldo, mas isso é outra história. Eu nasci em Osasco, no dia sete de setembro de 1964, mas fui registrado no dia oito, porque o cartório estava fechado, segundo meu pai.
P/1 – O Paulo Netho é com th ou sem th?
R – Essa história é muito legal. Eu estava até contando para o Sérgio antes da gente começar a gravar, que o meu nome foi Paulo Neto normal: N, E, T, O. Mas em 1994 eu trabalhava em um jornal em Osasco, no Jornal Primeira Hora e tinha uma numeróloga lá, uma taróloga que trabalhava no jornal e eu falei pra ela, Silvana Guimarães o nome dela: “Silvana Guimarães, poxa, eu trabalho aqui nesse jornal, eu trabalho pra caramba e ganho mal pra caramba” (risos) Eu ganhava 400 reais, na época. Nem 400. Aí ela falou: “Deixa eu ver aqui”, pá, pá, mexeu os pauzinhos lá, tal, tal, tal. “Paulo, está faltando a casa do dinheiro no seu nome”. Eu falei: “Casa do dinheiro? Qual é a casa do dinheiro?” Ela falou: “Paulo, segundo a numerologia, se você colocar o H, o Z e o Q no seu nome, você vai ter a casa do dinheiro”. Eu falei: “Sério?” Ela falou: “Seríssimo”. Aí eu botei Paulo Netho, depois do t e ficou tho. Aí o dono do jornal falava assim: “Netio, e aí? Já ficou rico?” Eu falei: “Impossível, trabalhando no seu jornal, né?” (risos) Eu falei: “Impossível, trabalhando no seu jornal”. Moral da história: aquele ano de 94 terminou. No final do ano, na virada de 1994 pra 1995, a Silvana Guimarães, ela, o marido e a filha pegaram uma virose, ela trabalhava na USP também e essa virose acabou com a vida dela e eu deixei o Paulo Netho com th em homenagem à Silvana e, quando foi em janeiro de 1995, eu comprei um telefone, era muito cara a linha telefônica e, quando o telefone chegou em casa, a Bandeirantes, no Show do Esportes, lá no Show dos Esportes, dentro desse programa tinha um sorteio, tele sorte e eu fui e joguei e aí falei pra minha mulher: “Áurea, nós estamos concorrendo aí”. Ela falou: “Não acredito que você já começou a gastar dinheiro com essas porcarias”. Eu falei: “Áurea, é só uma vez, só”. Aí, à noite, na hora do sorteio, o cara começou a falar: “Número tal” e eu falei: “Eu tenho”, “Número tal”, “Eu tenho”, “Número tal”, “Ganhei, fiquei rico, fiquei rico” e achei que tinha ficado rico. Eu ganhei oito mil reais. Aí veio a TV Bandeirantes até minha casa, entrevistou eu com as minhas filhas no sofá, aí as pessoas me encontravam na rua, gente que não falava comigo, atravessava a rua pra falar oi, tinha gente que ligava. Eu trabalhava em uma rádio também. Já tinha saído do jornal e fui para uma rádio. Eu trabalhava na rádio, aí o pessoal me ligava lá: “Paulo, você sabe o que é? A minha filha está precisando de dinheiro, ela está sem dinheiro” e o outro ligava e eu falei para o meu pai: “Eu vou para o norte”. Eu falei: “Mas pai, como o senhor vai?” “Eu vou de ônibus” “De ônibus? Vai de avião. Está aqui o dinheiro”. Foi de avião. Aí minha mãe ligava: “Seu irmão está precisando de dinheiro” e eu achei que eu tinha ficado milionário. Mas na verdade, eu havia ficado mionário. Aí, muito espertamente, eu falei: “Opa, vai começar as aulas das minhas filhas e eu preciso ter um carro pra levar as meninas até a escola. Fui e comprei um fusquinha. Foi o que sobrou. (risos) Foi o que sobrou desse dinheiro. Desde então virei Paulo Netho com th. Ou Netio, como os caras querem chamar. (risos)
P/1 – Deu pra perceber, já, que a sua vida é repleta de tramas, mas eu queria saber que histórias você sabe do seu pai, da sua mãe, dos seus avós. Se essas histórias eram contadas pra você e qual delas que você lembra e que você gostaria de trazer agora e eternizar.
R – Eu lembro muito da minha mãe contando história pra nós. Imagina: sete filhos. Eu nasci em Osasco. Minha mãe e meu pai são do Rio Grande do Norte e eu cresci na Vila Yara, em Osasco. Tanto é que a base da minha poesia eu trago a Vila Yara, o menino que eu fui. Então, eu acho que eu estou nessa história até hoje. Como o menino no espelho, do nosso querido Fernando Sabino, eu também estou nessa. É o menino, o homem que se encontra com o menino e, no meu tempo de criança, na Vila Yara, o que vem à minha cabeça? Muita fantasia, claro e a minha mãe dando banho na gente, colocando o talco Pom Pom e contando histórias pra gente dormir. Muitas histórias e muitas dessas histórias que minha mãe contava eu vim descobrir depois lendo Luís da Câmara Cascudo, como a história das irmãs Tatibitate, que eu não sei se você conhece, que essas irmãs estavam em casa, a mãe ia sair - isso minha mãe contando... Isso ficou em mim, impregnado - aí, a mãe ia sair e falou: “Filhas, eu vou sair e vocês não falem com ninguém porque, se vocês falarem com alguém, vocês não casarão”. Aí, chega um vizinho lá, que tinha muita curiosidade pra saber como é que essas meninas falavam, bate até a porta e fala: “Maria, por favor, me dá uma coitézinha d’água, um copo d’água”. Aí a Maria vai lá e pega a água e dá pra ele e não fala nada e, assim, quando ele está tomando, pum, deixa o copo cair no chão. A coitézinha, isso minha mãe contando pra nós, ele falou: “Maria, quebrou”. “A quebute taquebate”. Aí a outra irmã vem e fala: “Maria, a mãe não falou pra você não falar nada”. Ahhhhhhhh, vem a outra e fala assim: “Eu, como não falei, casaiei”.
Então, assim, essas coisas foram ficando. E aí, mais tarde, depois, eu fui visitar os meus tios lá no Rio Grande do Norte. Eu já tinha um bom tempo de vida (risos) e descobri que um dos meus tios era repentista. Aí eu lembro que a gente viajou no carro dele de Natal até Santo Antônio do Salto da Onça e meu tio falava assim: “Meu caro amigo Paulo Netho nanana”. Claro, a paixão pelo cordel também veio por causa dos meus tios e por causa também das narrativas de vida deles. Por exemplo: não é à toa que chegou uma época da minha vida que eu lancei um livro chamado Coisas de Arrepiar. Porque minha mãe contava muitas histórias de medo: “Eu vi uma coisa ahhhhhhhhhhh mexeu na porta, era uma sombra de uma mulher toooooooorta”. Então, isso sempre ficou na minha cabeça. Aí, não é à toa também, que quando eu era moleque, eu sempre gostei de inventar meus papagaios, os meus brinquedos e eu não me contentava com isso, eu fazia, colocava no ar, mas eu adorava subir em cima do telhado pra... sempre gostei de ficar assim, sabe? Tanto é que, quando chegou uma época da minha vida, eu lancei um livro chamado Bolinho de Chuva e Outras Miudezas, um livro que saiu pela Editora Peirópolis. Um livro que eu gosto muito. Com as ilustrações da Carla Irusta. E tem um poema lá que tem a ver com essa coisa do telhado. É como se eu tivesse assim, falasse: “Ahhhhhhh, eu gosto dessa horinha da tarde, dessa horinha que é só minha, onde tudo o que cessa me acessa. Gosto de ficar assim, encolhidinho no meu cantinho, vendo toda a manada, como se eu fosse o dono de nada”. (risos) Esse tipo de coisas. Então, essa coisa da minha mãe contando essas histórias do tempo que eu era criança, no Rio Grande do Norte, misturada com a minha vivência de moleque, que andava com os pés descalços na Vila Yara, subindo em árvores, tudo isso foi construindo uma narrativa dentro de mim e aí eu falei assim: “Caramba”. É até importante falar uma coisa, porque a gente está vivendo um momento... o Walter Benjamin diz isso naquele famoso texto O Narrador, ele fala da nossa incapacidade de intercambiar experiências, né? Então, eu estava contando isso para o Sérgio, quando eu cheguei aqui, que o mundo quebra a gente e a gente não tem mais essa capacidade, perdeu essa capacidade de fazer relatos. O que é a experiência, né? A experiência é aquilo que nos acontece, é aquilo que nos transforma. E, se nós chegamos a um tempo da nossa vida em que a gente é incapaz de relatar o que viveu, de falar pras pessoas aquilo que nos transformou, é porque a gente está perdido, sabe? E eu acho que a gente precisa muito, muito intercambiar essas experiências, trocar experiências, né? Então, eu falo pra todo mundo que eu sou um sujeito feliz, porque eu sou um ser de palavra. Todo ser humano é, mas eu sou um ser de palavra. Falei isso até pra você, né, Jonas, quando a gente chegou: “O que eu seria da vida se não fosse pelas palavras?”
P/1 – Qual foi a primeira palavra que você aprendeu a falar?
R – Poxa! (risos) Eu não sei te dizer. Mas, antes de aprender a palavra, eu senti a palavra, né? E uma coisa que sempre mexeu comigo foi essa coisa do: “Ahhhhhhhh, meu Deus, o mundo é grande!” (risos)
P/1 – E você lembra qual foi a primeira palavra que você se apaixonou? A primeira vez que você teve um caso de amor com uma palavra?
R – Ah, eu acho que a palavra mãe. (risos) A palavra mãe é muito forte pra mim, sabia? Tanto é que eu tenho um poema que fala assim: “Enquanto passava café...” Eu acho que a palavra mãe é tão forte pra mim e isso está no meu trabalho porque a presença da minha mãe na minha vida é uma coisa, assim, marcante, né? Eu falava assim:
“Enquanto passava café
Mãe cantava, feliz, de pé
Dizia que assim voava
Antenado eu captava tudo:
Tia ralhando com tio
Uma pipa cortando o céu
Um peão riscando o chão
E os cães latindo gratidão”
Então, assim, Jonas, eu acordava, desde menininho, ia até a pia, a minha mãe cantava na pia, enquanto passava café. A minha mãe, no tanque, lavando roupa, cantava, mesmo que a vida acabasse dando aquelas porradas, a minha mãe sempre estava cantando. Então, o pessoal fala: “Paulo, você é um sujeito feliz”. Eu falo: “Não. Eu sou feliz às vezes, infeliz outras vezes e sei que é preciso prosseguir sempre”. (risos)
P/1 – Do seu pai, o que você se lembra?
R – O meu pai é muito engraçado. (risos) Eu até brinco. Se quiser, eu trago meu pai aqui: “Esses fila da puta não sabe quanto custa um quilo de carne, de arroz, de feijão, pra deixar comida no prato”. Meu pai sempre foi muito duro, meu pai sempre foi bruto. Só que com um coração enorme. Então, o que eu lembro do meu pai: é um homem trabalhador. Aliás, a relação trabalho, naqueles anos 70, 80, que eu fui criança, era outra. Então, meu pai era um homem que saía de casa quatro e meia da manhã, pra carregar... Trabalhava em carro forte do Bradesco, carregava latas de moedas. Então, meu pai era o provedor. Aí você fala assim: “E o afeto?” Ele dava afeto como ele podia dar: às vezes com um saquinho de balas de hortelã, mas não com palavras, porque não sabia dizer as palavras. Eu acho que até sentia, mas não sabia como. Tanto é que eu fiz uma poesia que eu falo assim, chama Hortelã:
“Todas as noites
A menina esperava a noite chegar
Trazendo seu pai do trabalho
Às vezes era seu pai quem trazia a noite
Num saquinho de balas de hortelã
Ela gostava da noite
Porque a noite tinha o suor do seu pai
Ela gostava da noite
Porque a noite, ela e o seu pai
Brincavam de dar nome às estrelas”
Aí você pode me perguntar: “Mas seu pai tinha dificuldade pra... ele dava nome às estrelas?” Não, mas a gente escreve sempre sobre aquilo que nos falta. Sobre aquilo que nos falta. Então, eu acho que eu inventei o meu pai. O meu pai é de carne e osso, como as palavras devem ser. Mas eu inventei o meu pai à minha maneira. E está bom demais, eu amo meu pai por isso. (risos)
P/1 – E, Paulo, você podia contar um pouco mais como era esse menino que você falou que andava lá em Osasco, com os pés descalços?
R – Claro! Puxa, esse menino não sai de mim. (risos). É o que eu sou até hoje. Teve uma época que eu achava que eu devia ser sério, né? Tanto é que, quando eu comecei a recitar poesia, eu queria seriedade: “Ohhhhh, ohhhhhh, ohhhhh, ohhhhhhh”. Eu falei: “Que chato isso, né? Não”. Aí eu percebi que a minha poesia – eu já volto pra falar disso – só é do jeito que é por causa do menino que eu fui e sou até hoje. Eu joguei bola, eu subi em árvore, eu corria na rua, eu brincava de esconde-esconde, eu fui uma criança feliz. Pobrezinho materialmente, mas rico em experiências, sabe? Em coisas que me aconteciam e me transformavam, então, quer dizer... tanto é que eu falava assim, que telha por telha eu andava, no céu a pipa cortava o frio fino da orelha. Então, eu fui afinando o meu ouvido há muito tempo, sabe? O que ninguém levava em conta, eu levava, sabe? A dor da minha mãe, sabe, quando brigava com meu pai, sabe, aquelas coisas, assim, pesadas, do quintal, sabe? Porque eu morava em um quintal que tinham várias casas e tinha gente que falava que era um cortiço, mas eu morava em um quintal e via meu pai brigando com a minha mãe e aquilo foi, sabe, entrando em mim, sabe, foi entrando e eu falei: “Caramba”. Até que uma época, quando eu já estava na faculdade, eu tive um professor muito legal chamado Flávio di Giorgi. Ele dava aula na Medianeira, aqui em São Paulo. Eu tinha aula com ele, com o Mário Sérgio Cortella. Isso em 1985. Ele dava aula aqui na Medianeira, que é onde tem o Colégio São Luiz e dava aula também na PUC. E o Mário Sérgio Cortella também dava aula na PUC. E o Flávio di Giorgi falava... eu falei pra ele: “Professor, qual que é o papel do poeta?” (risos) Isso vale pra você também, viu, Jonas. Ele falou assim: “O papel do poeta é aquele que prepara um presente pra humanidade”. Então, aí eu descobri que seria de bom alvitre que eu trouxesse sempre guardadinho aqui num canto da cachola uma poesia pra recitar pras pessoas, pra tirar o peso da vida. Então, qualquer lugar que eu chego, eu recito poesia, eu faço os trocadilhos, eu venho com as brincadeiras, sabe, com as adivinhas, com os trava línguas, porque eu acho que a vida pede um gesto de emoção. E a gente, enquanto poetas, contador de histórias, tem esse dever. Um dever tão leve, sabe, de trazer uma boa palavra, de soprar ventos bons pras pessoas. A gente está precisando de bons ventos. (risos) Ahhhhhhh, puta, mas aí eu teria que ler. Não. Deixa eu lembrar uma do Bolinho de Chuva. Ah, vou lembrar uma da minha escola:
“Na minha escola era proibido ser alegre
Logo de cara me estrepei
Porque eu sofria de alegria inata
Doença terrível
Aí eu fiquei triste, tristinho
Calado, caladinho
Um bom menino, no seu cantinho”
Nesse poema eu falo da minha escola. Eu estudei em uma escola em Osasco, que era muito rígida nos anos 70 e a alegria atrapalhava. Engraçado, quando eu falo de alegria, me lembro do Konstantínos Kaváfis, que é um poeta grego e ele diz o seguinte, ele fala assim: “Puxa, chegou uma hora na minha vida que eu percebi que o riso me atrapalhava, atrapalhava o meu serviço. Eu tinha de parecer sério”. Aí ele diz assim: “Então, eu comecei a parecer sério, embora por dentro desse altas gargalhadas”. (risos) Aí o cara fala, Jonas, vou contar uma coisa: qualquer lugar, eu comecei a recitar poesia, a primeira vez que eu fui recitar poesia, eu tinha acho que dez anos de idade. Isso no palco da escola. Eu fui recitar uma poesia: “Com A escrevo amor...”, que não era nem minha, era um chavão: “Com A escrevo a amor, com P escrevo paixão, com A escrevo Antonieta, Antonieta do meu coração”. Sabe quem era Antonieta? Era minha professora de História amada. Aí eu falei: “Puxa, eu gostei disso, hein?” Aí comecei a recitar poesia. Eu era gago. A professora me chamava pra ir falar na frente, eu chegava lá: “Éééé, hum hum”. Tanto é que eu fiz uma poesia, eu falo assim:
“Um dia o Joaquim quim quim
Levantou-se assim, sim, sim
Ajeitou o cabelo lo
E fafafafa falou:
“Eu tô bem, bem, bem
E fifififi ficarei melhor
Se você cê cê me der
Uma flor flor flor
Como prova do nosso amor mô mô
E fim fim fim”
E aí, de poesia em poesia, uma palavra puxando outra, outra poesia, outra poesia, eu comecei a perceber que eu acabei ganhando uma coisa muito importante. Eu ganhei vez na vida. Ou melhor: eu ganhei voz. Eu descobri que eu tinha uma voz e que essa voz me deu vez na vida. Se eu estou aqui hoje é por causa da voz. Da voz que eu descobri dentro de mim, né? E aí, puxa, aí eu não parei mais, né? Igual o Manoel de Barros diz, que o poeta é um ente que lambe palavras e depois se alucina. Esse é o meu barato na vida há muito tempo e tô feliz. (risos)
P/1 – Tem dois momentos aí que eu realmente gostaria que você aprofundasse um pouco, mas já que você puxou esse, que foi a primeira vez que você começou a recitar poesia, né? Mas foi aí que você já se apaixonou pela poesia? Ou foi mais tarde, depois, que veio o fervor da paixão?
R – Não. A primeira vez que eu recitei poesia eu gostei, mas eu não sabia, porque, na verdade, eu queria ser jogador de futebol. Tanto é que a primeira vez que eu ouvi Carlos Drummond de Andrade foi ouvindo um locutor chamado Osmar Santos, narrando um gol do Corinthians, que não é nem o meu time do coração. Mas a narração era tão linda e eu falei: “Meu Deus!” E o Osmar dizia assim: “Goooooool. É pena, como diz o poeta Carlos Drummond de Andrade, é tudo aquilo que vive uma fração de segundo, mas com tamanha intensidade, que se petrifica e nenhuma força o resgata”. Ahnn, eu falei assim: “Caramba! Puxa!” Porque, na verdade, eu queria ser ou jogador de futebol ou ser um narrador esportivo. Tanto é que o jeito que eu recito poesia tem muito a ver com a narração esportiva, né? E houve muitos narradores bons como Osmar Santos, Fiori Gigliotti... isso no rádio... José Silvério, que é mais recente, né? Então, aquilo me marcou profundamente. O Fiori Gigliotti, sabe, era pura poesia, sabe? “Abrem-se as cortinas...” e não sei o que, tal, tal. Então, eu falei assim: “Puxa, eu quero recitar poesia”. Porque eu não me conformava com a ideia de escrever. Além de escrever, eu precisava botar vento na palavra. E só podia botar vento na palavra se eu fosse recitar. No começo eu achava que a recitação tinha que ser aquela coisa grandiloquente: “Ohhhh”, como eu já disse aqui: “Ohhhhhhh”. Não. Aí eu percebi que a hora que eu vou falar um texto, ele deve chegar como música pro ouvido, como conversa boa. E aí fui me desenvolvendo. Tive várias passagens, sabe? Fui vaiado no circo em Águas Claras, em 1983, quando teve um (risos) festival de música lá muito legal, que eu vi tanta gente legal: o Raul Seixas, se eu não me engano o João Gilberto, sabe? Aí eu fui recitar poesia nesse circo e fui vaiado, mas foi legal demais. Aí, (risos) em 1987, um ano antes do Paulo Leminski morrer, eu tive a felicidade de fazer uma oficina de poesia com o Leminski, né? Na Oficina Três Rios, em São Paulo. E ali eu conheci o Paulo Leminski, conheci... Tive o privilégio de conviver com ele algumas horas, alguns dias e o mais engraçado é que tinha um cara no curso e falava assim: “Poxa, esse Leminski não ensina a gente a fazer poesia” (risos) E o Leminski estava ali, trocando figurinhas com a gente, né? Eu lembro que nós fomos tomar uma cerveja num bar que tinha bem na esquina da Rua Três Rios e o Leminski sentado, assim, no balcão, com os braços assim, eu perguntei pra ele, ele estava em São Paulo naquele tempo, que ele participava de um programa na Rede Bandeirantes de Televisão chamado... puxa, como chamava o programa? Me deu um branco aqui, agora... Bom, Jornal de Vanguarda, que tinha vários: tinha o Leminski, tinha o Décio Pignatari, um monte de gente boa falava. Era um jornal altamente bacana e o Leminski com um bração, assim, no balcão, tomando a cervejinha dele e eu falei assim: “E aí, Leminski? O que você acha de São Paulo?” Aí ele ploc, tomou um gole e falou assim: “É a Nova Iorque que nós merecemos” (risos) Muito legal!
P/1 – Nossa, espetacular! Queria que você, só pra gente não ir, aliás você já está lá no Leminski, está maravilhoso, mas eu queria que você voltasse lá na sua mãe contando histórias pra você e descrevesse um pouco mais qual era a hora do dia que ela fazia isso, qual era o tom de voz que ela falava, qual que era o momento, assim. Se você lembra alguma história, mesmo, que ela te contava. Se você puder, uma que marcou bastante.
R – As histórias da minha mãe eram histórias que ela inventava pra gente, assim. Ela tinha cada uma! O anãozinho que vivia... não sei se isso foi escrito ou não... debaixo de uma (risos) bacia pra ver as moças tomando banho, né? E tinha um horário, sim, pra contar isso. Como eu disse, era sempre quando o dia ia terminando, a minha mãe ia, dava banho. A gente tomava banho de bacia, minha mãe botava a gente na bacia, esfregava, tirava o cascão (risos) e aí, quando colocava todos os irmãos numa cama, porque eu morava numa casa de três cômodos, pra sete filhos. Não tinha essa história de ‘o meu quarto, o quarto da minha irmã’. Era a cozinha, o banheiro do lado de fora, o banheiro que não tinha chuveiro elétrico, não tinha nada dessa coisa, era tudo água gelada e então, pra você tomar um banho quente, você tinha que esquentar água na panela, jogar e misturar com água fria. E a minha mãe, depois que dava o banho na gente, ela ia colocar talco Pom Pom, aí ela brincava, fazia cosquinha na gente e começava a contar essas histórias. Não com a pretensão de ser uma contadora de história, mas ela era, né? (risos) Ela contava essas histórias. Muitas a gente achava que era fantasia. Mas nunca pensamos... achava que era fantasia hoje, né? Mas quando ela contava, a gente a ouvia. Sabe por quê? Porque acontecia com a gente aquilo que o Benjamin diz: a gente só era capaz de ouvir a minha mãe contando as histórias dela porque a gente era capaz de se esquecer de si mesmo, né? Porque só ouve o outro aquele que se esquece de si mesmo. Então, quando a gente ouvia a minha mãe contando lá as histórias dela, a gente acreditava piamente naquilo. Eu, até hoje, procuro debaixo da bacia o anãozinho que ficava de olho nas meninas tomando banho, né? (risos) O que eu vou dizer, né? Não lembro assim que história, foram tantas! Ela falava assim que tinha dois caras à noite... por isso a chuva é uma coisa que mexe comigo demais, por causa da minha mãe: “Sumiu o Paulo e o Tarso” “Mas quem é Paulo e Tarso?” “O Paulo ficava: Paulo, Tarso, Paulo, Tarso” e essa imagem do Paulo e Tarso em uma noite escura chuvosa, puxa, também está em mim. Tem um monte de história que ela contava, sabe? Mas essas são as mais marcantes. O Paulo e o Tarso eram dois irmãos, não sei se tem a ver com a Bíblia, com a história de Paulo e Tarso, porque... aí minha mãe pegava esses elementos e ia construindo uma história, puxava a gente daqui pra cá, de lá pra cá, que são os fios da narração, né? E desse jeito também ela nos ajudou a afinar a audição. Precisamos afinar a audição, né?
P/1 – Queria te perguntar: era o seu tio que era repentista?
R – Meu tio, meu tio Chico.
P/1 – Como era sua relação com ele, né?
R – Assim: eu não posso dizer que eu tive uma relação na infância com ele. Eu tive uma relação quando eu estava de 17 pra 18 anos. Eu queria muito ir até o Rio Grande do Norte pra conhecer as minhas avós, porque eu não conhecia até então. Então, só fui conhecer os meus avós quando eu fiz 17 anos. Então, eu fui até lá. Mas, intuitivamente, eu queria também saber quem eram aquelas pessoas, quem era meu tio Chico, quem era meu vô Paulo, quem era minha vó Maria, minha vó Beatriz, né? E eu fui e cada um tinha um jeito, né? Por exemplo: eu tenho um tio Antônio que conta vários causos muito legais, mas por exemplo, meu tio Chico, por que ficou tão marcado isso comigo? Porque com ele, em especial, eu tive uma relação que durou uma viagem de uma hora, de Natal, até Santo Antônio do Salto da Onça, que chama a cidade. E, nessa história, o meu tio dirigindo: “Meu caro amigo Paulo Netho”. Ele ia contando. Então, eu já gostava de literatura de cordel. Então, quando eu ouvi aquilo, eu falei: “Nossa!” Incrível, porque chegando do Rio Grande do Norte, eu fui até a casa de um amigo, chamado Dráuzio e o Dráuzio tinha um pai chamado Calixto. O seu Calixto, que há pouco tempo faleceu, era um grande estudioso da literatura de cordel, e o seu Calixto foi e me apresentou um livreto de cordel que era Valdemar e Irene. Eu não sei se o meu tio tinha falado, porque ele falou assim:
“Eu vou contar uma história de uma moça e um rapaz
Um caso muito recente, que se deu lá nas bandas das Minas Gerais
O leitor preste atenção amor falso, o que se faz
Sempre é triste o resultado da moça que ama dois
Porém, deixando o primeiro de lado
Pode amar outro depois
Mesmo assim, ô rapaz
Não faça sociedade
Só entregue seu amor onde houver lealdade”
E aí vai, vai, vai. Então, aí, eu não achava esse folheto, mas o seu Calixto contava isso pra mim porque o seu Calixto, uma memória privilegiada, tinha isso. Anos depois, eu acho que agora, nos anos 2000 e poucos, me convidaram pra ir até Londrina. Eu fui participar de um evento muito legal chamado Biblioteca Viva Itinerante. Da Dani e do nosso queridoooo... ai, fugiu o nome dele. Gente finíssima. Aí, me chamaram pra ir até Londrina e eu fui e, quando eu chego em Londrina pra fazer a minha apresentação na praça, tinha um senhor vendendo vários livretos de cordel. Aí, adivinha, que eu estou olhando lá hannnnnnnnn Valdemar e Irene, achei e falei: “Puxa!”. É claro que lembrei do meu tio Chico, lembrei do seu Calixto e a gente sabe, né, a beleza que a literatura de cordel é pra cultura brasileira. Então, do meu tio Chico, o que eu trago, é o cordel. Aí você fala: “E você se aventurou a escrever cordel?” Não. Porque não é a minha praia. Eu gosto demais, mas eu acho, assim, que tem gente muito mais qualificada que a gente conhece, que nem o nosso querido Marco Aurélio; o seu pai, mesmo, José Santos; tem muita gente boa fazendo literatura de cordel. Eu sou um grande leitor de literatura de cordel. (risos)
P/1 – Como foi que chegaram os livros? Você lembra, assim, do primeiro livro que você pegou, como foi que eles entraram na sua vida?
R – Engraçado! Eu não cresci em uma casa que tinha livros. Eu não tinha uma biblioteca na minha casa. Eu cheguei até os livros muito timidamente. Na biblioteca da escola. Mas muito timidamente, porque sabe que a leitura, pra mim, era uma coisa chata. Sabe por que ela é chata? Porque era imposta. Então: “Você tem que ler o livro porque você tem que fazer a ficha do livro”. Então, as pessoas querem que a gente compreenda as coisas e, se você quer afastar alguém de alguma coisa, não tem que fazer com que ela compreenda, deixa ela vivenciar aquilo. Então, eu não vivenciei os livros no meu tempo de criança. Eu tinha uma... plift, plift, plift... como eu posso dizer?... vivência pela oralidade: minha mãe contando histórias, mas não porque fosse uma coisa letrada. Aí, quando eu comecei a escrever, eu comecei a me tornar leitor. Primeiro dos meus textos. Aí eu percebi que eu precisava ir viajando: preciso ler esse, preciso ler aquele. Aí você começa a relacionar as coisas: ahhhhh, esse texto fala com aquele, daquele... e aí, puxa, a leitura mudou a minha vida. É como eu disse em um poema meu chamado Biografia, que eu falo assim, que meu pai me queria bancário, só que eu dei um drible desconcertante e despenquei sem paraquedas no reino das palavras. Aí eu não quis mais ser o bancário que meu pai tinha sonhado pra mim porque o sonho do meu pai, como eu cresci em uma cidade chamada Osasco, onde é a matriz de um Banco famoso que é o Bradesco, todo mundo que morava em Osasco tinha que trabalhar no Bradesco ou nas empresas como a Cobrasma, a Bromoveri, mas o meu pai me queria bancário e eu falei: “Pai, não vou ser bancário, pai. Vou viver de poesia” Ahhhhh, meu pai ficou nervoso: “Poeta, poeta, poetaaaaaaaaaa”. (risos) Aí ele falou assim: “Esse homem é um vagabundo, vai viver de poesia?”
P/1 – Quando foi que você falou isso?
R – Ahhhhhh (risos) isso aí já foi em 1985. Eu estava com 21 anos. E eu falei pro meu pai: “Pai, não quero mais ser bancário, não vou ser bancário. Vou viver de poesia”. (risos) É um absurdo, né? Aí o cara fala assim: “Como é que um ser pode viver de poesia?” Pois é. Eu não só vivi de poesia e vivo até hoje de poesia, como criei as minhas filhas com poesia, né? Então, eu sou grato à palavra escrita, à palavra falada, à palavra lida, né? Então, aí, meu pai não entendia isso, até que eu lancei um livro, em 1985. Fiz um livro, produção independente e fiz um lançamento em Pinheiros, na Rua Teodoro Sampaio. Na noite do lançamento, lancei a primeira edição, tinha 500 livros. Eu vendi quase toda a primeira edição na noite de autógrafo. (risos) Aí eu cheguei com o dinheiro em casa e falei assim: “Está aqui, pai”. Aí meu pai nunca mais me reclamou: “Então vai viver de poesia”. (risos) Mas isso é exceção, não é regra, não. É muito difícil viver de poesia, sabe?
P/1 – Eu queria que você falasse um pouco desse período que você falou que, com uns dez anos, começou a declamar, né? Da sua professora. E com 21 você já estava querendo viver de poesia. Entre isso, como é que foi que, realmente...
R – Ah, foi uma ebulição. Eu fiquei maluco, porque aí, nesse meio tempo, eu cresci, aí eu vim trabalhar em uma agência de propaganda na Avenida Rebouças, a BSPL Probras e lá eu conheci um redator chamado Maurício. Você tinha me perguntado, acabei nem falando: “Qual primeiro livro que você lembra?” Sabe qual primeiro livro que eu lembro, assim, de fato, que eu peguei e li? Foi As Sandálias do Pescador, que era um livro nem de literatura brasileira, contava a história de um papa que tinha muito a ver com a história do Papa João Paulo II, né? Eu esqueci... Morris West o nome do autor. Aí eu li esse livro e falei: “Puxa. Ahhhhhh”. Ele falou: “Paulo, você quer ser escritor?”, o Maurício, que era o redator da agência. Falei: “Quero ser escritor”. Ele falou: “Então, pra você ser escritor, você precisa ler, sabe? Você vai precisar ler, vai precisar ter vivência”. E aí eu comecei a ler. Aí fui ler os poetas, li Drummond, li Vinícius, li um monte de gente, sabe? Aí comecei a ler também os nossos clássicos, fui ler Guimarães Rosa... quem mais? Graciliano Ramos. Fui lendo todo mundo, Clarice Lispector, e eu fiquei maluco com tudo isso. Então, comecei a ter uma experiência lendo, que me ajudou também. Lendo, vendo outras pessoas. Porque a gente aprende com o outro, precisa ver o outro fazendo. Puxa, tem um cara legal aqui que recita poesia, tem um cara que escreve bem, tem um que pinta. Enfim, aí você não fica só no livro, né, porque a coisa é muito maior. A gente é o que a gente vê também, né? Então, exposição, livros, filmes... poxa, muita coisa!
P/1 – Como é que eram seus amigos, assim? Os seus amigos também entravam...
R – (risos) Meus amigos eram um barato, sabe? Porque é assim: tem um deles que fala assim: “Lá vem o Paulo Netho, lá vem o Paulo Netho. Tira o microfone, tira o microfone, porque o cara vai falar”. (risos) Não tem problema, né? Os meus amigos embarcavam na minha, sabe? Respeitavam. Os verdadeiros amigos, né? Respeitavam o meu jeito de ser e eu não tenho nada a falar, foi muito legal. Eu acho, assim, pra algumas pessoas você pode parecer o louco: “Ixi, esse cara vai viver disso, de poesia? Puta, o cara podia estar trabalhando, né?” Eu sempre trabalhei com o livro. Lendo, escrevendo, ouvindo os outros falarem também, aprendendo com os mestres, né? Porque a gente tem que perceber isso, então, teve uma época que eu me preocupava muito com o que as pessoas falavam. Até que eu achei o meu caminho. Aí eu percebi que o negócio da minha vida era comigo mesmo, sabe? Então não tinha essa de me preocupar com o que o outro fala. Aí eu foquei e falei: “Puxa, o negócio é recitar poesia, é contar história pras crianças, é tirar o peso da vida” e é isso que eu procuro fazer e tenho feito até hoje.
P/1 – Eu queria perguntar dos seus primeiros caso de amor também.
R – Ô, claro! (risos)
P/1 – Na adolescência você fazia poesias pras suas pretendentes, assim? Tem algum causo que marca?
R – É, no começo eu achava que a poesia ia me auxiliar muito na coleção de amores, né? (risos) Mas aí eu percebi que eu não era antropófago, né? Não fazia poesia pra comer ninguém, né? (risos) Tanto é que eu vendia camisetas com poesia na porta da Cidade de Deus, do Bradesco, em Osasco e eu ficava perto de uma lanchonete, vendendo minhas camisetas com poesia, né? Aí tinha dois caras conversando: “Esse Paulo Netho aí não come ninguém”. (risos) Aí eu ouvi, né? E, como eu não tinha papas na língua, eu falei: “É, realmente eu não como ninguém, mesmo. Eu não sou antropófago, faço poesia porque é uma linguagem e eu, através dessa linguagem, posso me expressar, posso dar o meu recado, posso falar com as pessoas, sabe? Tentar entender a dor das pessoas” e é isso. Mas aí, claro que eu fiz poesia pra tentar conquistar uma namorada ou outra, né? Não sei se deu certo nunca, sabe? Mas eu tentava. (risos)
P/1 – A primeira vez que você contou uma história. Porque você falou a primeira vez que você declamou, mas você não falou a primeira vez que você foi e contou uma história.
R – Na verdade, eu nunca achei que eu fosse um contador de história, né? Tanto é que eu ando dizendo por aí, pra todo mundo, que eu sou um recitador de poesia. Não sou um contador de histórias. E a primeira vez que eu realmente contei uma história, foi quando eu contei uma história minha. A primeira história que eu contei, que eu falo assim: “Eu preparei a história, fui lá estudar a história, essa história tem uma tonalidade assim e assim”, foi O Pinto Pelado no Reino dos Trava Línguas, que é marcante a história e essa história me funda nesse campo. Falam assim: “Paulo, você pode contar a história de fulano de tal, o doutor tal?” Eu falei: “Não. Eu só conto as minhas histórias” porque eu só sei contar as minhas histórias. E a primeira história, assim, que foi bem pensada, como eu disse aqui, foi O Pinto Pelado no Reino dos Trava Línguas. Depois eu fui me aventurando a contar outras histórias, como O Amor é um Barato, que é uma história minha. Mas é difícil contar histórias, muito difícil. O meu negócio é recitar poesia. Mas a necessidade faz o homem. “Paulo, você conta alguma história?” Conto, eu conto O Pinto Pelado no Reino... “Mas Paulo, você só conta duas histórias?” Só duas histórias. (risos)
P/1 – Você tinha comentado que você era gago no colégio?
R – É, eu não falei pra vocês?
P/1 – Como foi contar a história, recitar o poema na escola com dez anos, sendo gago?
R – Na verdade, assim: quando eu falo da minha gagueira na infância, aos dez anos de idade, ela era muito em função da pressão que era a escola pra mim. Porque é o que eu estava falando pra você, porque vem o professor e fala assim: “O que você entendeu sobre isso?” Puxa, você quer travar alguém, pergunta o que ele compreendeu daquilo, sabe? Tem gente que não consegue falar. E, quando eu tinha que me explicar, eu perdia a voz. E aí, eu começava a gaguejar. Então, a minha gagueira era, que eu posso dizer assim, emocional. Tanto é que eu falei: “Agora que já se passaram tantos anos, eu vou brincar com isso”. Foi aí que eu fiz o Joaquim quim quim: “Um dia, o Joaquim quim quim”, tal. O que mais?
P/1 – Então passou sua gagueira?
R – Passou. A minha gagueira, se é que passou (risos)... a minha gagueira foi tratada com aquela voz que eu disse que eu encontrei. Quando eu descobri que eu tinha uma voz e que essa voz tinha me dado vez na vida, eu acho que eu venci o medo de falar em público. Aí eu falei: “Puxa, não tem mais esse problema, porque a poesia me deu confiança”. Sabe, você montar em uma palavra e saber que você pode dar voz pra essa palavra, colocar vento nessa palavra, me empoderou. (risos) De certa forma, me empoderou. E eu falei: “Ahh” Não é que eu achava minha voz linda, nada disso, né? Mas eu falei assim: “Ahhhhhhh, a minha voz mexe com o que eu sou. E faz sair de dentro de mim um pouquinho do Paulo que ficou perdido lá atrás, com medo de tudo”. Aquele medo eu fui vencendo aos poucos. E por isso que eu acho que a gagueira foi embora. Por causa da palavra.
P/1 – Nossa! E quando você aprendeu a declamar, assim, que foi ficando com vontade, já adolescente, você recitava onde?
R – Ah, eu recitava em escolas, no meio da rua, sempre no meio da rua. Como eu disse aqui, eu passei a recitar em cima de balcão de bares, dentro de ônibus. Eu lembro que, puxa, aí eu comecei a fazer uns poemas eróticos, eu entrava dentro do ônibus falando: “Não vou dizer que as suas tetas são esguias, porque não são. As suas tetas me guiam e, por onde me guias, nem eu sei”. Claro que eu falava pra uma pessoa e a pessoa ficava tímida, né? Não podia falar isso. Uma vez, na USP, a menina falou: “Ô, Paulo eu sou casada” e eu falei: “Calma, dona, isso aqui é só poesia, é ficção”. (risos) Não, aí fui falando em faculdades...
P/1 – Qual foi a primeira? O primeiro dinheiro que você ganhou com poesia?
R – O primeiro dinheiro foi uma coisa marcante: tem um cara em Osasco chamado Chalita. O Chalita é dono de um restaurante muito conhecido em Osasco chamado Senhor Glutton e o Chalita é um visionário. Quando ele me viu recitando poesia, ele tinha o restaurante dele dentro do Shopping Continental e falou assim: “Paulo, eu quero que você recite poesia no meu restaurante”. Isso acho que foi nos anos 80, sei lá, 80 e pouco e eu falei: “Tá bom”. Botei um chapéu coco e fui recitar poesia dentro do restaurante do Chalita. Eu ganhava 50... eu não sei se eram reais... eram 50 reais que eu ganhava. E esse foi o primeiro cara que me pagou pra que eu recitasse poesia. Aí eu falei: “Puxa, eu posso viver disso!”. Aí, a escola que eu estudava me chamou pra recitar poesia para as crianças. Isso bem próximo que eu fui recitar no shopping, que era o restaurante do Chalita. Aí eu fui até a escola. Aí eu comecei a fazer um poema zuuuuuuu, pras crianças. Isso já na escola. Zuuuuuuuuu, zap, zuuuuuuuuuuu, zap. O mosquito, que viria de todos os lados, por cima e por baixo, hoje não veio. Oh, mosquito, isso não se faz. Aí, eu não sabia disso, as professoras me contaram muitos anos depois, que uma das professoras da escola ficou muito indignada e falou: “Como é que vocês trazem um cara como o Paulo Netho aqui na escola, pra fazer um mosquito?” (risos) Aí eu falei assim: “Puxa, acho que eu estou no caminho certo porque, se a professora duvidou, eu acho que eu estou no caminho certo”. E aí tanto é que O Mosquito, que é uma poesia antiga minha, não fiz pra criança. Eu fiz pra brincar. E hoje, quando eu faço os meus shows, O Mosquito é o que segura a onda com as crianças também, além do O Pinto Pelado no Reino dos Trava Línguas, quando eu vou fazer O Mosquito, porque é um jogo. Na verdade, é o meu jogo com as crianças, quando eu estou contando histórias ou recitando poesias, é um jogo que eu falo que é um jogo dos afetos. Então, eu ponho o corpo pra falar. Então, naquele lugar onde a palavra, como dizia o Ruben Alves, faz amor com o corpo, é que nascem os mundos. Então, eu entendi isso e aí eu zuuuuuuuuuuu, plaf. Aí uma criança vai e bate assim: “Mas o que é isso?” Aí a repetição vai gerando a graça, o riso e eu vou trazendo a plateia e a plateia fica aqui, na palma da mão e eu me divirto. Eu me divirto com isso. E a poesia que incomodou a professora. Aí, anos depois, quando eu lancei um livro chamado Coisas de Arrepiar, isso já era ano 2000, eu voltei à minha escola Fundação Bradesco e, quando as crianças viram meu livro, Jonas, um livro modesto, as crianças ficaram malucas. E aquele autor que escreveu O Mosquito era a febre do momento. Então, eram filas quilométricas pra eu autografar o meu livrinho, o Coisas de Arrepiar. Daquela poesia: “Eu vi uma coisa, mexeu na porta ahhhhhhhhh...”. Esse tipo de coisa.
P/1 – Fala essa poesia.
R – Eu já falei. Mas tem O Monstro Medroso:
“O monstro me olhou de um jeito tão meigo que eu até me esqueci do meu medo de monstro. Primeiro eu quase chorei, depois eu senti um negócio, sei lá o que senti, não sei se demonstro. O monstro fazia de conta que me assustava e eu fazia de conta que tinha medo e berrava tanto, tanto que o monstro quase morreu de espanto. Então eu disse: “Monstro, não morra, não. Sou eu, lembra? O menino chorão, que tinha medo de caveira e até de assombraçãooooooooooo”.
Vocês podem pegar a música. Eu vou dar, pra botar música, o (Sala?) musicou esse poema. Ficou muito legal. Tcham tcharam tcharam, o monstro me olhou de um jeito. Muito legal.
P/1 – Você, pelo que eu estou vendo, conta histórias com poesia, né?
R – Também. Na verdade, eu acho que esse é o meu filão.
P/1 – É. Suas poesias são histórias também.
R – São histórias. É um outro jeito de narrar, né? É assim: tem a narrativa, tem as histórias que são os contos. Por exemplo: eu tenho uma história que eu posso contar aqui, agora, pra vocês, que é uma história cumulativa. Eu acho que, pra fazer três, essa seria legal. Chama No Quarto da Estelinha:
“A Estelinha estava no quarto quando a mosca incomodou. A mosca na Estelinha, a Estelinha reclamou. A mosca estava no quarto da Estelinha, quando um pernilongo a picou. O pernilongo na mosca, a mosca na Estelinha, a Estelinha reclamou. O pernilongo estava no quarto da Estelinha, quando uma lagartixa o pegou. A lagartixa no pernilongo, o pernilongo na mosca, a mosca na Estelinha, a Estelinha reclamou. Que menina que reclama! A lagartixa estava no quarto da Estelinha, quando uma formiga despontou. A formiga na lagartixa, a lagartixa no pernilongo, o pernilongo na mosca, a mosca na Estelinha e a Estelinha reclamou. Ai, gente! A formiga estava no quarto da Estelinha, quando um tatu bola snif snif, a farejou. O tatu bola na formiga, a formiga na lagartixa, a lagartixa no pernilongo, o pernilongo na mosca, a mosca na Estelinha e a Estelinha reclamou. O senhor sabe me dizer qual foi o último inseto que entrou nessa história? Hammm, o tatu bolinha estava lá no quarto da Estelinha quando uma joaninha se aproximou. A joaninha no tatu bola, o tatu bola na formiga, a formiga na lagartixa, a lagartixa no pernilongo, o pernilongo na mosca, a mosca na Estelinha e a Estelinha reclamou. Que menina mais reclamona! Eu vou parar aqui essa história. Não, não. A joaninha estava lá no quarto da Estelinha quando um marimbondo aferroou. O marimbondo na joaninha, a joaninha no tatu bola, o tatu bola na formiga, a formiga na lagartixa, a lagartixa no pernilongo, o pernilongo na mosca, a mosca na Estelinha e a Estelinha reclamou. Eu não aguento mais essa menina. Hammm, o marimbondo estava no quarto da Estelinha quando uma vela acesa sihhhhhhhhh o assou. A vela acesa no marimbondo, o marimbondo na joaninha, a joaninha no tatu bola, o tatu bola na formiga, a formiga na lagartixa, a lagartixa no pernilongo, o pernilongo na mosca, a mosca na Estelinha e a Estelinha reclamou. Gente, a vela acesa estava no quarto da Estelinha quando uma ventania fuuuuuuuuuu principiou. A ventania na vela acesa, a vela acesa no marimbondo, o marimbondo na joaninha, a joaninha na formiga, a formiga na lagartixa, a lagartixa no pernilongo, não, a lagartixa no pernilongo, o pernilongo na mosca, a mosca na Estelinha e a Estelinha reclamou. Eu vou parar com essa história porque eu não aguento mais essa menina, só reclama! A ventania estava no quarto da Estelinha, quando uma lua cheia a tudo clareou. A lua na ventania, a ventania na vela acesa, a vela acesa no marimbondo, o marimbondo na joaninha, a joaninha no tatu bola, o tatu bola na lagartixa, a lagartixa no pernilongo, o pernilongo na mosca, a mosca na Estelinha e a Estelinha re cla mou. Vou fazer a última tentativa. A lua estava no quarto da Estelinha, lua cheia, quando um menino se aproximou. O menino na lua, a lua na ventania, a ventania na vela acesa, a vela acesa no marimbondo, o marimbondo na... onde mesmo o marimbondo? Hammm, no tatu bola, o tatu bola na... não, o marimbondo na joaninha, a joaninha no tatu bola, o tatu bola na lagartixa, na formiga (risos) me deu um branco aqui... a formiga na lagartixa, a lagartixa no pernilongo, o pernilongo na mosca, a mosca na Estelinha e a Estelinha hammmmmmmm na na ni na não. Dessa vez a Estelinha não reclamou, a Estelinha ohhh amou. Nem preciso dizer pra vocês que, depois dessa, dessa Estelinha, essa história entrou pelo pé do pato, saiu pelo pé do pinto e, se você quiser outra, por favor, aperte o cinto”. (risos)
Acabou, né? Chega de história, né? Encheu a paciência das crianças. (risos)
P/1 – Não.
R – Queria tomar mais uma aguinha, pode ser?
P/1 – Sim. Vamos fazer uma pausinha.
[PAUSA]
R – Ô, gente, tem coisa pra caramba aí. Depois vocês façam a lapidação aí, vê o que vocês acham. Mas o mar é de quem sabe amar. Leila Diniz. Está em um LP do Milton. LP. (risos)
P/1 – Eu queria te perguntar quem foi a primeira pessoa que você, fora sua mãe e o seu tio, ouvindo contando ou se chegou primeiro os poetas dos seus contadores. Quem? Porque, pra você estar fazendo isso fora...
R – Ah, chegou primeiro os poetas.
P/1 – Quem chegou?
R – Vinicius de Moraes. Porque Vinícius era o poeta que recitava.
P/1 – Mas que você conheceu, mesmo?
R – Que eu conheci?
P/1 – É. Por que era só você recitando? Não tinha nenhum amigo que você ia recitar junto?
R – Tinha. Pô, eu recitei com o Miró. Você sabe quem é o Miró!
P/1 – O Muribeca?
R – É. Naqueles anos 80, aqui em Pinheiros, tinha um concurso de poesia falada. Muito parecido com os saraus que acontecem, mas era uma coisa muito sofisticada e tinha, aqui na Rua Pinheiros, um bar chamado Café das Flores e, no Café das Flores, os poetas iam recitar. O pessoal chamava de Poesia Performática, né? E eu, claro, ia lá também. Eu lembro que o primeiro cara que eu fui mostrar a minha poesia foi para o Arrigo Barnabé. No show que ele estava fazendo no Cultura Artística. Um show maravilhoso, que eu acho que era Clara Crocodilo Fugiu, um show emblemático do Arrigo e o arrigo já era O cara, naqueles anos 80, mas era tão generoso, sabe? E eu levei uma poesia minha pra mostrar para o Arrigo. Depois que acabou o show dele, no Teatro Cultura Artística, lotado o teatro e todo mundo indo lá pra abraçar o Arrigo no camarim, aí ele teve a dignidade - eu nunca mais falei com o Arrigo Barnabé, só foi esse dia - de pegar o meu texto, minha poesia e leu, sabe? Leu. Com respeito, sabe? E não leu, sabe, como opinião: “Ah isso aqui está bom, isso aqui está ruim”. Ele leu. Eu levei pra ele ler e ele leu, sabe? E aí foi a primeira pessoa que eu mostrei, assim, porque puts, o Arrigo também foi outra influência forte pra mim, né? Aquela coisa falada, sabe? Tocada, cantada, mas falada. E, na escola, na mesma escola que me privava, tinha um professor chamado José Inaldo de Godói. O professor José Inaldo ficava maluco comigo. Ele falava assim: “Paulo, o ato de escrever é um ato contínuo. Só aprende escrever escrevendo e lendo”. (risos) E aí esse homem começou a me levar pra tudo que é lugar. Primeira coisa, primeiro link: era são paulino como eu. Eu virei amigo do professor José Inaldo, a gente ia ao Morumbi assistir os jogos do São Paulo e, quando a gente saía dos jogos do São Paulo, tinha um restaurante ali no Morro do Querosene que ele gostava de ir e falou: “Paulo, vamos lá no Morro do Querosene”. O professor José Inaldo era um apaixonado pelas coisas do povo. Então, no Morro do Querosene, tinha um trabalho lindo do Tião Carvalho. Tinha, não. Tem até hoje. Que é do boi do Maranhão. Mas não era só isso, não era só essa coisa. Por exemplo: lá em Osasco tinha um lugar chamado Casa do Norte, bem no Jardim Oriental. Um belo dia eu estou chegando em casa - o professor José Inaldo morava no Butantã – e está o professor José Inaldo, no meio do povo, ouvindo forró, tudo e esse homem me levou até o Morro do Querosene, nesse restaurante e falou: “Paulo, recita aqui”. Eu não tive dúvida, com o aval do professor, um professor que acreditava na força da poesia, eu subi em cima das mesas no restaurante e recitei poesia pra caramba. Então, uma das pessoas que mais me incentivou, assim, foi o professor Inaldo. O professor José Inaldo de Godói.
P/1 – Esqueci de perguntar uma coisa: qual você acha que é a diferença entre contar uma história e falar uma poesia?
R – É engraçado falar isso porque dizem que, quando você está contando uma história, é a arte da narração. Mas quando você está recitando uma poesia também é narração, né? Claro, é engraçado, é a mesma coisa que você falar: “Qual a diferença entre poema e poesia?”, sabe? Eu acho o seguinte: que quem vai narrar uma história, vai contar essa história. Tem detalhes... como a gente poderia dizer?... técnicos. A narração exige algumas coisas; a poesia, na hora que você vai citar, exige outras. Mas eu, particularmente, não sei. Não sei explicar isso. Não sei explicar. A hora que eu tenho que dizer um texto, seja ele uma narrativa ou uma poesia, eu coloco meu corpo a serviço daquilo que eu desejo comunicar e aí deixo as palavras me levarem ou fazer com que o outro que está me escutando consiga criar dentro de si algum sentido que aquele texto que eu estou falando, que eu acredito que tenha um sentido e que o cara possa construir sentido ouvindo também. Eu não sei te explicar isso. Não sei.
P/1 – E qual foi a palavra que você mais fez amor durante a juventude? Em outras palavras, qual foi uma que você sniiiiiiiiif sentiu o cheiro, mesmo, dela?
R – Puts grilo! Sabe, eu vou te contar uma coisa: eu fui ficando maluco com a poesia, até que nos anos 80, eu li muito Thiago de Mello. Thiago de Mello, um poeta amazonense, tem um poema que eu gosto muito, que ficou muito famoso, chamado Estatutos do Homem. E o Thiago de Mello falava muito em liberdade. Talvez essa palavra, a palavra liberdade, foi uma das palavras que mais mexeu comigo. E o Thiago de Mello, nos Estatutos do Homem, fala assim:
“Fica estabelecido, por decreto irrevogável, que o Homem é um animal que ama e que, por isso, é belo. Muito mais belo do que a estrela da manhã. Só uma coisa fica proibida: amar sem amor”.
Aí tem uma outra parte que ele fala assim:
“Fica decretado que, a partir desse instante, a palavra liberdade será suprimida dos dicionários e do pântano enganoso das bocas, porque a liberdade será algo vivo e transparente, assim como a água, o fogo ou como a bela begônia na lapela”.
Então, quer dizer, eu estou falando o poema e nem sei se está na ordem certa, mas a palavra liberdade, principalmente por causa do contexto que a gente vivia naqueles anos, o comecinho dos anos 80 e dito por um poeta como Thiago de Mello, mexeu muito comigo também. Tanto é que eu fiz um poema chamado Doçura. Um poema quilométrico. Eu lembro que eu estava em um momento muito parecido com esse no Brasil: sem emprego, sabe? Só que a gente ainda tinha uma luz, né? Porque a gente, parecia que estava saindo da ditadura, né, pra novos tempos. E vivemos novos tempos, né? De sonhos, enfim. E aí eu fiz um poema e falei:
“Na cadeira do emprego o desempregado, uma história de muitos e de ninguém, que sentido tem? Nada mais absurdo, nada mais estranho, o riso sério no sorriso de um homem sério. Uma palavra desconexa na biografia de um olhar. Rajadas de vento vêm do ventilador. Ventilador, será que ventila a dor? 68 nas bolinhas, nem sabia. Logo, 70 ninguém se aguenta. Zero, seis e ficou tudo pro japonês. Leonaldo, Leovino, Leuino, quanto nome esquisito! Eu acho muito esquisito Rosenbaldi. Um pouco da Rose, um pouco do baldi, um pouco do oco no topo do toco da cinta. A manhã do mundo fez o mundo bip bip, todo mundo usa relógio. Pelo menos usava. Todo mundo usa relógio, o mundo usa relógio, mas o relógio não é de todo mundo. Assim como o todo não é do mundo. O que é do mundo só pode ser a tristeza. Não, não acredito no já dito, querem detectar a doçura, a doçura querem detectar, mas detectar a doçura é o mesmo que cortar uma árvore, é o mesmo que arrancar da criança o sorriso, palavra alguma nunca foi tão importante, sentimento de pedra, acredite ou não, o sentimento é muito mais que pedra, mas da pedra saí água, sabe? O homem que balança a chave sabe disso, não. Pedra é pedra e sentimento não é uma pedra. Assim como as minhas ideias, se iluda, não. Assim como meu riso, se perca, não. Nada em vão, continuo a negar. Nego o sim, eu afirmei. Sim, nego, eu neguei. Absurdo maior é o mundo. Surdo, mudo e cego para os mais singelos sentimentos. Desculpa-me, mundo, você era tão maravilhoso, até que inventaram as ruas, as serras, os motores. As ruas passaram por você, as serras estancaram seus sentimentos, os motores jogaram fumaça no seu céu, envenenaram, buzinas, bibi fom hummmm. Mundana palavra mundo de Drummond, de Quintana, até chegar a mim. Mundo, vasto mundo. Vasto é o pasto. Casto, casto mundo, que do verde abacate azuleia minha vida. Minha vida azulada, xadrezinho, lilás e alcatraz, tudo se cola com Tenaz. Emoção, batom vermelho, no mundo é vermelho, no mundo vermelho não é a cor do batom e sim o sangue surrupiado pelo pouco que há, ainda me resta a doçura, mesmo falando de coisas sórdidas, degusto as mais pequeninas insinuações como um riso, como um olhar, como uma estrela. Degusto a paixão pelo outro humano, vai mais fundo, vou mais fundo e, no fundo, no fundo, refundo o mundo, instalo no coração do mundo a doçura. Não tenho armas e nem de armas me armo. O que quero, o cheiro que quero mora logo ali na rua dos mundos e os mundos são vários, muito mais que Mac Donalds, muito mais que o X Salada, muito mais que os milhões de palavras, os mundos nascem a todo instante do brado mais forte, do gesto mais nobre e da palavra que se perdeu. Um dia criou-se a necessidade de tê-la novamente, não apenas como símbolo, mas como algo vivo e transparente. Criou-se o apelo pela vida, criou-se a vida sem apelo”.
A palavra é a liberdade, a palavra que se perdeu, tá? (risos)
P/1 – A palavra, essa liberdade, imagino que você devia falar muitas poesias, todos os dias, né? Mas qual foi a história mais louca que uma poesia já te levou ou uma história já te levou? Qual foi o lugar, dentro ou fora de você...
R – Engraçado. Todas as poesias me levam pra dentro, né? E às vezes me levam de dentro pra fora, né? E é engraçado falar disso, é difícil também porque, quando você faz uma poesia, você escreve um texto, você está criando linguagem. Eu já falei disso aqui hoje. E a linguagem que a gente cria, acaba nos fundando também, né? Então, assim: toda palavra, toda poesia que eu escrevo, de certa forma, mexe com o que eu sou lá dentro e o que vem de fora também, né, porque há uma troca. Falo disso porque, talvez, um poema que tenha mexido muito comigo, é aquele que eu falei aqui hoje, O Acessar: “Gosto dessa horinha da tarde...” porque eu acho que ilustra bem isso que você me perguntou. “Gosto dessa horinha da tarde”... como é que eu falo?... “dessa horinha que é só minha” porque quando eu falo ‘gosto dessa horinha da tarde, dessa horinha que é só minha, onde tudo que cessa me acessa” o tempo todo, quando eu escrevo, ou quando eu estou lendo, ou quando eu estou vendo, é a hora que tudo cessa e o que é de dentro sai e o que é de fora acaba me acessando. Talvez a poesia mais emblemática é essa que eu falei pra você, do O Acessar, porque me leva pra outros mundos. Não são outros mundos. Eu acho que a questão é a seguinte: é aquilo que (Bachelet?) fala: a questão dos estados de infância. Então, quando eu estou escrevendo, lendo, os meus textos me levam, despertam em mim esses estados de infância, coisa que a gente deixa adormecido na gente. Não é à toa que o Drummond, quando fala: “Eu preparo uma canção em que minha mãe se reconheça e que todas as mães se reconheçam, caminho por uma rua que passa em muitos países. Se não me veem, eu os vejo e saúdo velhos amigos, eu distribuo um segredo como quem ama ou sorri, do jeito mais natural dois carinhos se procuram. Minha vida, nossas vidas, forma um só diamante. Aprendi novas palavras e tornei outras mais belas. Eu preparo uma canção que faça acordar os homens e adormecer as crianças”. Essa poesia, que é intitulada Canção Amiga, do Drummond, eu acho que mostra um pouquinho desse estado de infância ao que me refiro.
P/1 – E como foi que se desenrolou sua vida, então? Um pouco antes você falou: “Pai, vou viver de poesia”! E foi declamar em restaurante...
R – Não só em restaurante. No meio da rua, em qualquer lugar. Eu falei: “Pai, eu vou viver de poesia”, só que eu acho que eu não tinha consciência do que seria o tal do viver de poesia. Viver de poesia significou passar vergonhas financeiras, (risos) não ter dinheiro pra pagar aluguel. Não foi uma maravilha, assim, sabe? Passei muito perrengue. Por ter escolhido essa história de ‘vou viver de poesia’. Mas eu não me arrependo de nada. Eu acho que isso me deu força pra estar aqui hoje. E continuar fazendo o que eu faço. Se eu tivesse que falar pro meu pai, o meu pai me perguntasse: “E aí, vai vier de poesia?”, eu falo: “Vou viver de poesia”. Pelo menos por enquanto. Eu gostei dessa minha escolha, só que eu não tinha consciência que a minha escolha tinha sabores, mas também tinha dissabores.
P/1 – Mas o que aconteceu? Você saiu de casa?
R – Ah, sim. Eu saí de casa. Quantas vezes eu não briguei com meu pai, aí eu ia pra casa de um amigo meu, quando eu chegava na casa do meu amigo, ele via aquela mochila cheia de livros e falava: “Ih, o Paulo brigou com o pai dele”. Aí ia morar na casa do meu amigo. Aí, quando não ia pra casa do amigo, ia pra uma pensão, morar numa pensão. Então, era muito conflito, porque meu pai não era obrigado a entender o que é poesia, né? E eu, talvez, por causa da adolescência, de achar que você pode tudo, eu fui, eu mergulhei. É como eu disse, sabe? Pulei sem paraquedas no reino das palavras. Tive alegrias, tristezas, mas eu posso dizer que valeu a pena. Não me arrependo de nada, sabe? Eu não seria o que eu sou se não fosse pela poesia, pelas palavras, pela arte de recitar, ou de contar uma história. Eu sou o que sou por causa dessas coisas. E estou no meu caminho. Aliás, eu tenho um poema que eu falo assim:
“Às vezes o meu jeito é criador de ovelhas às 17 e cinco na mesa de um bar. Você nem imagina! Um dia meu jeito quis ser Papai Noel mas ser Papai Noel, viu, garotinho, é muito chato. Meu jeito não gostou e partiu pra outra, agora é descobridor de mistérios. Meu jeito não entende ou não quer entender, porque eu ainda não aprendi a me localizar em mim mesmo. Uma coisa meu jeito não suporta: essa coisa nojenta que insiste em ir de ré e inventa o riso na vida triste, como se a tristeza fosse algo que não existisse. Mesmo não querendo, meu jeito se ilude, toma conhaque, rola na cama, é cabra machu cado e sabe muito bem que Londres é distante da Vila Mandioquinha. Meu jeito é aprendiz do que diz e do que faz. De manhã é aurora, de tarde é domingo e de noite é pra nunca mais se esquecer paixões do meu jeito que, ora, jamais vou compreender. Porque às vezes eu sou ninguém por opção e acho que ser ninguém é uma grande mentira. Quando muito quero A digo amém e sigo na contramão. Aliás, eu sempre estou na contramão. Digo amém e sigo na contramão, por acreditar que essa é minha mão mais certa. Certamente me acho e é comigo que me sinto bem e é comigo o negócio da minha existência. Por ora existir está ligado à resistência, ao fato de ser e de estar. Não tenho nada a ver com tudo isso. Ou tenho? Ahn? Como eu já disse: sou outra vertente e, quando muito, eu quero A”. (risos)
Eu repeti o poema de propósito. (risos)
P/1 - E qual foi uma vez que você ouviu uma história e se transformou, assim?
R – Poxa! Ah, tem muita gente boa contando história, né?
P/1 – Mas na sua vida, algum momento que você ouviu uma história e ela mudou a sua caminhada?
R – Ah, sabe quando? Ouvindo um cara chamado Chico dos Bonecos contando história. O Chico dos Bonecos. É muito meu amigo. Eu passei uma noite toda, eu já estava bem grandinho, sabe? Isso foi lá no comecinho dos anos 2000. O Chico dos Bonecos lançou um CD junto com o Palavra Cantada, chamado Histórias Gudórias e quando eu ouvi o CD, o Chico contando histórias eu falei: “Meu Deus! Eu preciso conhecer esse homem”. Até falei isso pra ele essa semana. Encontrei com ele essa semana, fui tomar um café com o Chico e o primeiro encontro que eu tive com o Chico foi no Sesc Itaquera. Eu estava com um grupo de professores e ele estava com outro grupo. E aí, quando a gente se encontrou, no saguão, eu disse assim para o Chico, olhei assim nos olhos dele e falei: “Ô, Chico, eu sou o Paulo Netho e eu quero muito ser seu amigo”. (risos) E a gente ficou amigo. Eu falo do Chico, eu fico emocionado, porque o Chico me abraçou artisticamente, humanamente, me abraçou e aí ele foi me ajudar a escolher os poemas para o meu livro Poesia, Futebol Clube e outros poemas. Ele fez a seleção dos poemas. Depois a gente mandou pra Editora Saraiva e aí eu falei: “Puxa, eu vou fazer uma homenagem pra esse cara” e aí eu escrevi O Pinto Pelado no Reino dos Trava Línguas e o Chico lá, comigo, também, sabe, me dando todo esse apoio, sem contar os ensinamentos. E aí, o que aconteceu? Quando eu escrevi O Pinto Pelado no Reino dos Trava Línguas, eu dediquei para o Chico dos Bonecos. Tanto é que eu empalhei o Chico, né? Não é só o Visconde de Sabugosa que é empalhado. O Chico dos Bonecos foi empalhado no Pinto Pelado porque chegou uma hora que o Pinto Pelado encontra um brincante, lá no Reino dos Trava Línguas, chamado Chico dos Bonecos e fala: “Olá, frango budango de bom frango girigabudango...” daquele jeito que o Chico conta e então eu falei: “Puxa, durante muito tempo eu quis ser, em contação de história, como o Chico. Meu!” Porque as histórias que ele contava, sabe, com panela batendo e com a voz cristalina, sabe? Aquilo mexeu comigo demais. Aí comecei a ver o Chico se apresentar ao vivo. Eu tinha uma livraria em Osasco chamada Casa do Poeta. Todos os sábados a gente contava histórias lá. Às vezes era eu e muitas vezes eu chamei o Chico pra vir contar história lá, dar curso pra professores. Então, eu tive uma vivência muito próxima com o Chico e certamente, o cara que mexeu comigo contando história foi o Chico dos Bonecos e tem dois caras bons também: um é o Ilan Brenman e um cara chamado Giba Pedrosa. Eu vi o Giba contando história num sarau, no sarau do Charles, porque era dos palhaços e a gente foi lá pra recitar poesia e o Giba também foi outro cara, assim, que me encantou muito, muito, muito mesmo. São esses três caras.
P/1 – E como foi que você montou essa livraria lá em Osasco?
R – Eu sou um louco, né? (risos) Imagina, olha só, eu acho que eu sou empreendedor. Acho. E eu sentia que em Osasco não tinha esse espaço devotado para a infância. Esse espaço que eu falo, é de contação de histórias, de formação de professores e de bons livros. E aí, eu, numa noite, comecei a minha livraria na sala de uma casinha que eu morava, na Vila Yara, aí ela desceu pro quintal, a gente fazia vários eventos em casa, aí eu fui e aluguei uma casa na Avenida Yara, só que como era no mesmo espaço que funcionava uma escola de música, fica muito barulho, por causa das aulas de bateria, tal e eu falei: “Quer saber?” Eu fiquei um mês nessa casa da Avenida Yara e falei, dormindo à noite, assim, com a minha mulher, eu e a Áurea e falei assim: “Áurea, eu vou alugar uma casa na Campesina”. A Campesina é um bairro um pouquinho mais chique lá em Osasco e era em frente ao restaurante do Glutton, daquele cara que me pagou a primeira vez 50 reais. Ele, agora, está na Campesina. Eu fui lá, vi a casa e falei: “Puxa, mas será que eu vou ter dinheiro pra pagar aluguel aí?” Não tive dúvida: aluguei a casa na quinta, na sexta eu montei a livraria, no sábado já tinha evento lá, gente contando história, a casa lotada e aí as pessoas adoraram a Casa do Poeta, chamava Casa do Poeta. Então, você chegava na casa, tinha mala pendurada na entrada, tinha cortina lá atrás, porque a casa toda a gente usava pra contar história. Então, lá atrás tinha o lugar onde a gente contava história, aí teve uma época que eu fiz uma cortina com os nozinhos, né? Aí as crianças falavam assim: “Mas pra que esse nó?” “Ah, a hora que passar um vento despercebido aqui, eu pum” (risos) É isso aquilo que nos ensinou o Manoel de Barros no célebre poema. “Eu tenho um livro sobre águas e meninos, mas eu gosto mais de um menino que carregava água na peneira. A mãe disse que carregar água na peneira era o mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele pra mostrar aos irmãos. A mãe disse que era o mesmo que catar espinhos n’água, o mesmo que criar peixes no bolso. O menino, viu, era ligado em despropósitos. Imagina que ele quis montar os alicerces de um castelo sobre orvalho. A mãe reparou que aquele menino gostava muito mais do vazio do que do cheio. Dizia que os vazios são maiores e até infinitos e aquele menino, que era cismado e esquisito, porque gostava de carregar água na peneira, com o tempo percebeu que escrever seria o mesmo que carregar água na peneira. No escrever ele podia ser monge, noviça, mendigo, tudo ao mesmo tempo. O menino aprendeu a usar as palavras e começou a fazer peraltagens com elas. Ele foi capaz de interromper o voo de um pássaro, botando ponto na final da frase. Ele foi capaz de modificar uma tarde, colocando uma chuva nela. Aquele menino fazia prodígios, fez até uma pedra da flor. A mãe reparava. A mãe disse: “Meu filho, você vai ser poeta. Você vai carregar água na peneira a vida toda. Você vai encher os vazios com as suas peraltagens e algumas pessoas vão te amar, por seus despropósitos”. Falei. (risos) É isso. Posso tomar uma aguinha?
[PAUSA]
P/1 – Como foi que o Manoel de Barros assinou seu livro? Quando ele chegou, o que ele fez com você?
R – Me levou pra outro estado. É o estado de infância que eu falo. Ele me levou totalmente, porque é engraçado: tem autores e autores. Tem autores que é impossível você ler e não estar anotando. Aí, quando eu começo a ver o Livro das pré-coisas, do Manoel de Barros ou mesmo O Exercício de Ser Criança. Eu tenho toda a obra dele lá, né? Então, eu fiquei maluco, porque eu falei assim: “Como é que alguém pode fazer uma poesia assim? Dizer que o poeta é um ente que lambe palavras e depois se alucina”. No aeroporto o menino... como que é?... perguntou para o pai: “Ih, pai, e se o avião tropicar em um passarinho?” O pai fica meio assim, o menino insiste: “Pai, e se o avião tropicar em um passarinho triste?” Aí a mãe pensa e fala: “É. De fato, né?” Como que é? Os absurdos e os despropósitos são as maiores virtudes da poesia. Então, eu adoro. O que o Manoel de Barros me deu foi esse olhar para o absurdo, para os despropósitos. E pra aquilo que está na nossa cara o tempo todo e você não enxerga, né?
P/1 – E como foi, assim, montar... eu queria que você contasse um pouco mais de como foi montar esse espaço lá em Osasco, na periferia. Como foi que as pessoas reagiram, a comunidade?
R – A comunidade reagiu muito bem, sabe por quê? Porque era um lugar de fantasia. Claro, era uma loja, tinha uma preocupação em vender os livros, mas era o que menos acontecia. (risos) As vendas até aconteciam, mas as vendas não pagavam a livraria. Então, o que eu ganhava por fora, recitando poesia, contando história, eu comecei a jogar lá. Aí chegou uma hora que você vai fazendo as contas, o poeta não é bom pra fazer contas, mas tem hora que você tem que fazer conta. Aí eu percebia que estava virando uma roda gigante, gigante e eu comecei a me afundar em dívidas, né? Porque eu não conseguia. Os livros que eu tirava dessa editora, eu tirava daqui desse caixa, pra cobrir o da outra editora e aí eu falei assim: “Não. Eu acho que está na hora de parar com a loja”. Aí todo mundo achou uma pena. Tem gente que fala pra mim até hoje: “Poxa, como era legal a Casa do Poeta, né?” Porque as crianças iam até lá, ficavam, até que chegou uma hora que acabou.
P/1 – Qual foi um episódio marcante da Casa do Poeta?
R – Puta, não foi um só. Foram vários.
P/1 – Se você puder contar algum.
R – Foram vários, mas por exemplo: um dia a Fundação Bradesco estava gravando um vídeo muito parecido com essa história aqui que a gente está contando, pra falar de fantasia, tal, tal e eu acho que a Maria José Nóbrega, que é uma escritora, era responsável por esse vídeo e ela falou assim: “Poxa, está faltando fantasia nesse vídeo”. (risos) Aí, alguém lá na biblioteca, eu acho que foi a Josiane, que é a bibliotecária, a Josiane Hasegawa, falou: “Por que a gente não vai na Casa do Poeta filmar as crianças com o Paulo Netho lá?” Aí foram. Aí, puts, imagina, eu começo a falar trava línguas, começo a contar histórias, a brincar com as poesias, foi uma festa. Aí, quando levaram o vídeo pra mulher, a mulher adorou, mas o que foi curioso nesse dia? Caiu uma baita chuva e eu disse pra você que eu amo a chuva. (risos) Aí, contando história debaixo daquela chuva, sabe? Tinha goteira, sabe? Mas nada, nada incomodou as crianças. Eu contando e as crianças com os olhos arregalados e os queixos caídos. Então, esse tipo de coisa foi um dos momentos mágicos, sabe? Você ver as pessoas completamente entregues à boa palavra. Aquela palavra que suscita o voo. Então, as crianças... esse foi um dos momentos, sabe? Aí, o que acontecia? As pessoas resolveram fazer rodas de histórias em casa. Então, a gente tinha um momento que era uma terça à noite e as pessoas iam, pra gente trocar leituras. Então, a gente trocava leituras.
P/1 – Como que foi essa primeira roda de histórias que aconteceu? Quem deu a ideia?
R – Foi uma ideia minha porque tem uma senhora muito querida, que já está com o papai do céu, chamada Cidinha Tavares. A Dona Cidinha a gente trocava muita história. Falei: “Dona Cidinha, você leu aquele livro?” “Li” Aí eu falei assim: “Que tal a gente fazer uma roda de histórias em casa, de trocar histórias em casa?” Ela falou: “Puxa, eu acho que vai ser legal”. Aí, puxa, ia cada um com seu livro e a gente ia trocando. Então, fazia uma leitura cruzada. Eu lia um pouco o livro que eu estou lendo, você lia um pouquinho o seu, tudo e, a partir dessa troca de histórias e de experiências, aí ia construindo esses fios da narração e também se enriquecendo culturalmente. “Esse livro não gosto muito, esse é legal, tal, tal”. Isso foi uma das coisas. Teve oficinas do Chico dos Bonecos lá em casa também, pra professores. Ah, teve muitos momentos. Escolas indo visitar a livraria e não era só visitar a livraria, tinha todo um esquema. Quando as crianças chegavam tinha o sermão da escada, mas não era um sermão pra falar: “Você tem que fazer isso”. Não. Nada disso. Aí, nesse sermão da escada, eu preparava o espírito das crianças para as coisas que elas vivenciaram ali. Então, elas podiam ver livros, mas depois iam ouvir histórias, sabe? Iam brincar, pintar. Então, tinha vários momentos. E eu aprendi muito também. Porque assim: eu nunca me coloco diante das crianças como o cara que sabe. (risos) “Ah, vocês vão aprender comigo”. Nada disso. Eu estou ali pra gente trocar. É uma coisa que eu aprendi com o Leminski, né? Eu não ia lá pra ensinar poesia, pra trocar figurinhas. (risos)
P/1 – O que foi mais marcante pra você: ter um filho ou publicar o seu livro?
R – Ahhhhh (risos) Não tem o mais marcante, assim. O livro é uma coisa e os filhos são outras. São duas alegrias diferentes.
P/1 – Mas qual veio primeiro?
R – Ah, o livro. (risos) Foi o livro. Depois que vieram as meninas. (risos)
P/1 – Como foi que você publicou o seu primeiro livro?
R – Produção independente. Isso foi em 1982. Eu e mais um grupo de amigos publicamos um livrinho chamado Gota de Mundo. Que era uma reunião de vários moleques que estavam começando a escrever. E eu acho que quem escrevia melhor da nossa turma era uma menina chamada Gisela Régis Aló. Aliás, a poesia dela era belíssima. Não sei porque ela parou de escrever. Isso foi em 82. Aí a gente saía de lá, ia pro Bixiga vender livro, ia pro programa Fábrica do Som, na TV Cultura, que era no Sesc Pompéia. Pô, eu lembro que eu recitei um poema na Fábrica do Som:
“Se o vento é lento, o momento não tem culpa, ninguém tem culpa, nem mesmo o próprio vento lento”.
Aí o Tadeu Jungle falou: “Repita”. O Tadeu Jungle era o apresentador do programa, né, da Fábrica do Som. Eu falo assim:
“Se o vento é lento, o momento não tem culpa, ninguém tem culpa, nem mesmo o próprio vento lento”.
Aí, o que aconteceu? Foi a primeira vez que eu apareci na TV. (risos) Aí, o que aconteceu? Eu fui pro Bixiga. O Bixiga, no comecinho dos anos 80, era lotado. Não sei se ainda é hoje, sabe? Era muito lotado. E aí eu fui vender uns livros. Eu e uns amigos fomos vender uns livros nas ruas. Puta, nós vendemos pra caramba porque a gente tinha aparecido na TV Cultura.
P1 – E como é que foi conhecer sua mulher?
R – A minha mulher veio bem depois, veio já em 1989. Foi um dia que eu falei pra ela que eu estava meio cabisbaixo, acho que eu tinha tomado umas. (risos) Mas não foi por isso que eu conheci. E, assim, quando eu vi aqueles olhos, bem claros, da Áurea, eu fiquei empolgado. Aí eu comecei a fazer poesia, também, pra ela, mas não pra conquista-la, tá? (risos) Mas foi muito legal. Aí, em 89, a gente começou a namorar, ficamos namorando três meses e eu falei: “Eu vou alugar uma casa. Se você quiser, estou indo pra lá”. Ela falou assim: “Eu vou também”. Aí cheguei na casa da mãe dela, a Dona Rosa, uma velhinha super legal e falei: “Dona Rosa, eu tenho uma coisa pra falar pra senhora”. E eu, o doidão, né? (risos) “Eu tenho uma coisa pra falar pra senhora”. E ela não parava de fazer as coisas, ia pra lá e pra cá. “O que foi? Vocês vão fugir?” Eu falei: “É mais ou menos isso, Dona Rosa”. Aí ela falou assim: “Mas o que aconteceu?” “Nós vamos casar” “Que legal! Quando?” Eu falei: “Hoje”. (risos) Aí a gente juntou, como diz o outro, as cuecas, as coisas e aí a família dela, de um lado, que é uma família super simples, e a minha família do outro lado, a gente alugou uma casa, juntou tudo e estamos aí até hoje, namorando. A gente não casou. Mas já são 30 anos.
P/1 – E como foi que vieram as suas filhas?
R – Vieram do amor. (risos) Não dá pra dizer que a gente programou, mas dá pra dizer que a gente se amou. E se amou bastante. Mas não foi uma coisa programada. Aí veio a Maiara, que hoje tem 28 anos, né, que é arquiteta. E dois anos depois veio a Gabriela, que está com 26 anos, é administradora de empresas e hoje mora na Nova Zelândia. Trabalha lá em um restaurante. Aliás, no momento que a gente está dando essa entrevista, a minha outra filha, a Maiara, que é arquiteta, está na Nova Zelândia também, visitando a irmã. (risos)
P/1 – E o que mudou na sua produção literária, do seu jeito com a palavra?
R – Ah, mudou muita coisa. Principalmente uma: eu nunca achei que eu iria escrever pra criança. Eu sempre quis escrever. E recitar. Mas, a partir do momento que eu tive as filhas, naturalmente a minha escrita foi se encaminhando pra esse lado das crianças. Além de ler outros autores, eu me tornei amigo de muitos autores, inclusive o seu pai, o José Santos, o Chico dos Bonecos, o Lalau, o Marco Aurélio, um monte de escritor que a gente conhece, né? E aí comecei a levar todas as minhas leituras pra entender como trabalhar com criança. Não só poesia, como histórias, trava línguas, os elementos da cultura brasileira, que são riquíssimos, como as narrativas. Eu já falei de Câmara Cascudo aqui. Enfim, tanta coisa! Então, tudo que eu faço hoje, na minha vida, é voltado para o meu fazer quando estou diante de uma criança. Seja escrevendo, lendo e trocando essas experiências.
P/1 – Nossa, que bacana! Mas como é que você ia fazer? Por exemplo: você contava muitas histórias...
R - ... pras minhas filhas? Sim. É incrível, né? Então, assim, o que a gente fazia? Elas, meninas, a gente morava numa casa pequenininha, a gente deitava à noite e ali eu... sabe essas histórias como eu falei, das irmãs Tatibitate? Aliás, eu contei a história que não é nem... sabe, eu acabei atropelando algumas coisas, mas a gente deitava ali na cama e ali contava as histórias. E a Áurea, a minha esposa, vem de uma família... ela é baiana e vem de uma família onde a mãe dela, Dona Rosa, também contava muitas histórias para os filhos, né? E a Dona Rosa contava pra nós. Pra mim, pra Áurea, pra Maiara e pra Gabi, as histórias do tempo dela criança. Também aquilo sempre me encantou. Então, houve muita troca. Então, a gente lia Câmara Cascudo, eu brincava com as poesias, inventava brincadeiras pras minhas filhas, eu pedia pra elas subirem em cima de mim, andar em cima de mim. Enfim, eu brinquei muito com as minhas filhas de jogar vôlei, porque como elas cresceram com o pai trabalhando principalmente dentro de casa, de vez em quando saindo pra fazer as apresentações, eu vi as minhas filhas crescerem. Tanto é que eu tenho várias poesias que eu falo, que eu não vou lembrar aqui de cor, mas no Poesia Futebol Clube eu falo delas. Elas eram tantas e eram santas. Eu via as minhas filhas brincando com as bonecas. De fazer comidinha. Enfim, um monte de brincadeiras. Eu lembro que uma vez eu fui descer... eu morava em uma casa que tinha uma escada. A gente estava em cima e estava chovendo e a minha filha estava assim, sabe, encantada com aquela chuva, dando roda, né? Aí eu fiz até uma poesia que depois eu musiquei, chamada Olha pro Céu, Meu Amor. Veja como ele está lindo... não espera aí, como é que é?
“Ooooooooo, eu olho para o céu, vejo nuvens de papel”
Quer dizer, eu ia dar uma dura na minha filha, falei: “Não, eu vou dar é uma poesia pra ela”. (risos) Que dura o que, sabe? (risos)
P/1 – Eu gosto de deixar até um pouco de silêncio, quando fala uma coisa tão bonita. Eu ouvi falar que você tinha montado até uma biblioteca também na sua casa em Osasco.
R – Não. São coisas, assim, distintas. Olha, é tanta coisa, né? Teve uma época da minha vida que eu trabalhei em um centro cultural chamado Vila dos Artistas. A Vila dos Artistas era um barracão, era uma escola velha de madeira, que acabou ficando para os artistas quando a escola saiu de lá e foi transformado em um centro cultural. Ali era a Vila dos Artistas. Dentro da Vila dos Artistas tinha uma biblioteca, que a gente catalogou os livros da biblioteca e deu o nome de Biblioteca Risomar Fasanaro, que é uma grande poeta de Osasco. Uma pernambucana, Risomar Fasanaro. Montamos essa biblioteca lá. Aí, o que aconteceu? Eu estava morando em uma casa e os anos foram passando, eu fui comprando livros, comprando livros, lendo, lendo, lendo e a minha biblioteca ficou grande pra caramba e eu mudei de casa e não tinha como levar essa biblioteca para o apartamento. Aí eu conversei com um amigo, o Fábio Claro, que é o dono de uma escola lá na Vila Yara chamada Escala Musical e perguntei pra ele se a gente não poderia deixar os meus livros lá, a minha biblioteca disponível para os alunos dele, como também para a comunidade. E aí eu doei a minha biblioteca para o núcleo musical Escala e a biblioteca está lá e o povo usa os livros, tudo. Aí, quem pode também, vai e contribui, põe mais livros no acervo e está indo e já estou montando outro apartamento. (risos) É isso. Livro é pra rodar, não é verdade?
P/1 – Mas qual que era uma história que o Zé estava me falando, que o pessoal ia deixar as crianças...
R – Ahh, isso é outra história! Isso foi na livraria. Sabe o que acontece? O pessoal lá gostava demais da Casa do Poeta, só que acontece que chegou uma hora que aquilo virou abusivo demais, porque o pai levava a criança sábado à tarde e deixava a criança lá e ia pegar... a livraria fechava às seis da tarde e o pai chegava lá oito da noite, nove, a criança com fome e tudo, tinha que cuidar dessa criança. Passou um sábado, ele fez isso. Quando passou no outro sábado, ele parou com o carro, deixou a criança e estava indo embora, né? Aí eu não aguentei, saí na escadinha lá e: “Fiuu, ô papai, o senhor vai deixar as crianças?” e ele falou: “Sim. Aqui não é uma livraria?” e eu falei: “É, mas eu não tenho serviço de cuidar do seu filho, né? Eu conto história e tudo, mas o responsável pelo seu filho é o senhor. Então acho que o senhor tem que ficar com seu filho, não é?” Aí, ele, claro, pegou as crianças e nunca mais voltou. Mas até aí eu não sou babá de ninguém, né? (risos) Então eu acho que as pessoas misturam muito, né? E foi isso que aconteceu. Aí chegou uma hora, eu falei: “Ah, tá bom, um dia a gente volta com a Casa do Poeta”.
P/1 – Qual é um evento da sua vida que não pode deixar de ter aqui na sua história de vida?
R – O evento?
P/1 – É. Qual que é alguma coisa que aconteceu, um episódio que você acha que é importante deixar registrado na sua história de vida?
R – A coisa que mais me marca, mais marcante na minha vida é contar histórias ou recitar poesias, narrar para as crianças. Então, os momentos mais felizes da minha vida, talvez o momento mais feliz da minha vida, é quando eu estou diante de uma plateia doida pra voar. Pode ser as crianças da Fazendinha, lá na favela perto do Morumbi. Tem um nome lá. Sabe perto do Getsêmani? Tem uma favela ali. Jardim... esqueci. Tem um projeto muito bonito chamado Fazendinha. Em janeiro desse ano me chamaram pra ir lá. E aí tem até uma foto de uma criança, a criança está assim do meu lado e eu brincando com o livro, a criança quase que voando. Então, eu acho que, quando eu estou com as crianças, pode ser crianças mais carentes ou crianças com uma condição de vida melhor, não importa. Quando eu estou com as crianças, é o melhor momento da minha vida. Eu sei que eu estou ali pra aquilo, pra leva-las ao voo. E eu não me... como que eu posso dizer?... puxa, me fugiu a palavra aqui... não me escondo dessa responsabilidade. Eu sei o quanto a palavra pode tratar uma pessoa. Tem gente que está te ouvindo, que quer uma palavra, quer um afeto e às vezes não é que eu sei que a pessoa está precisando, mas parece que se acerta e a pessoa fica assim, sabe? Pode ser a criança ou o pai, o adolescente, sabe? Então, quando você conta uma história, você trata alguém também. Você se trata e trata alguém. Eu acho que esse é o grande barato e é por isso que eu fico tão feliz de estar com as crianças. Eu acho que isso é o que me significa, sabe? E outra coisa: é por isso que eu trago na cachola aqueles guardados de afeto. Eu sempre tenho uma poesia, um dito espirituoso pra deixar pras pessoas. O cara pode até achar bobo o que eu vou falar, mas não importa. Eu faço questão de passar pro cara. Eu acho que essa é a função daqueles que desejam afinar o ouvido. Chega, né? Eu já enchi.
P/1 – É que você fechou com chave de ouro. Como foi pra você contar sua própria história?
R – Puta, muito legal. É muito difícil falar de si mesmo. Eu estava falando isso pra ele, para o Sérgio, lá fora, porque tem um cara chamado Jorge Larrosa, precisa ler, ele falou sobre a experiência e falou exatamente isso: porque a gente chega em um determinado momento e fala: “Eu não tenho palavras”. Sabe por que não tem palavras? Porque a gente está pobre em experiência. Muito pobre. Então, esse tipo de trabalho que vocês estão fazendo aqui, eu acho que vem pra enriquecer experiência, pra o cara ver que ele também tem uma história pra contar. E não importa. A minha, por exemplo, é porque eu conto história. Mas vem o outro, vem o pipoqueiro, vem o outro. Cada um tem uma coisa bacana pra dizer.
P/1 – Você já contou muita história em favelas?
R – Muito, não, mas já contei bastante. Olha, nós começamos nosso trabalho na periferia de Osasco, eu e o (Sala?), que é o Balaio de Dois, né? Então, assim, eu comecei a recitar na periferia. Onde as pessoas, você fala assim: “Mas aqui escutam melhor”. Depende do lugar, sabe? Se o cara mora na favela, você não pode mais falar isso. Você vai pra um monte de sarau da Cooperifa, sei lá de onde, você não pode mais falar isso porque as pessoas têm experiência, não é à toa que ele vai lá no sarau e recita. (risos) Então para, né? Não tem isso. Então, assim: a boa palavra tem lugar sempre. Ela está esperando ouvintes ávidos, sabe?
P/1 – O que você acha que faz um bom contador de histórias?
R – Nossa, que pergunta difícil! Eu acho assim, primeiro: um bom contador de história tem que saber pra quem ele está contando história, sabe? Não é simplesmente abrir a boca e falar. Mas por que ele está contando história, sabe? Porque assim: quando você vai contar história, tem um monte de requisitos assim que são importantes, sabe? Primeiro: você tem que escolher bem a história, conhecer o enredo daquilo que você vai contar, sabe? Pra ser bem contada ou mesmo pra que seja crível, sabe? Se não, não tem graça. Preparar o ambiente, sabe? Será que o ambiente está propício para o ouvir ou não está? Então, assim, não é simplesmente chegar e ser o pavão, sabe? Plo plo plo plo plo plo. E daí? Como que, aquilo que você está falando, pode mexer com a pessoa? Eu falei pra você: comigo mexe com o meu estado de infância, né? Com outros, não sei, sabe? Deixa eu te contar uma coisa: eu recebi, no domingo passado, eu vou mostrar pra vocês o áudio, a primeira mensagem, chegou uma mensagem no whatsapp: “Oi, Paulo, meu nome é fulano de tal, eu tenho um filho de seis anos, tal, tal, eu sou professor...”. Ele dá aula nas... como é que chama esses projetos do Estado aí?... Usinas de Cultura, é isso? Ele é professor de música. E ele falou assim: “Eu li esse livro seu, o Como assim?, acabei de ler esse livro e eu estou chorando”. (risos) Eu tenho aí o áudio, você vai ouvir: “Eu chorei porque fiquei emocionado”. Ele falou assim que, sabe o que o emocionou? A história e ele perceber a letra do Thomas aqui, que é o ilustrador alemão. Ele falou assim: “Isso me emocionou”. Eu tenho até o áudio dele, se você quiser eu te mostro, está aí no meu celular. E aí ele falou assim: “Fiquei emocionado e eu queria te comunicar. Eu sou de Jundiaí, eu tenho dois filhos: um toca na orquestra tal lá nos Estados Unidos, o outro não sei onde”. E aí eu fiquei feliz. Puta, isso me tocou. Aí você fala: “Tocou por quê? Por que é purpurina? Por que o cara jogou?” Não. Aí você entende porque você não tem noção... você sabe o que eu estou falando... do que aquilo que você escreve provoca no outro. Do que aquilo que você fala provoca no outro. Aí, quando você ouve uns relatos assim, você fala: “Caramba! Puxa, um livrinho tão simples, né?” E isso, pra mim, é prêmio literário. Uma opinião dessas, de um pai desses. Isso, pra mim, é prêmio, né? Porque você faz para o outro. Não faz pra si, né? Claro, você escreve pra si, mas você quer chegar até o outro, né? Então, é isso.
P/1 – Gratidão. Obrigado, viu?
R – O que é isso? Desculpa aí qualquer coisa.
P/1 – Deus te abençoe.
R – Olha, vou deixar com você... nós nem brincamos conversinhas. Vamos brincar agora, Jonas: pega aqui e você só faz as perguntas e eu vou te responder. Mas você começa: “Chamada geral”. Vai.
P/1 – Chamada geral. Quem está em casa?
R – Ora, ora, Jonas, quem está em casa? Só pode ser uma gata com asma.
P/1 – Mas quem está no portão?
R – Um cão quase babão.
P/1 – E quem está na porta?
R – Uma linda porca.
P/1 – E quem está no ninho?
R – Um pardal rrrrrrrrrrruivinho.
P/1 – E quem está no quintal?
R – Ora, ora, quem está no quintal? Só pode ser a mosca sentimentaaaal. (risos)
É um barato, né? Então, é isso que eu conto pras crianças, eu falo: “Pô, brinca com o R”. Se você falar: “Quem está no ninho? Um pardal ruivinho”. Brinca com a palavra. “Quem está no quintal? Um pardal rrruivinho”. Então, quando eu falo em tonalidade que o contador tem que se preocupar, é com esse tipo de coisa, sabe? Como é que a gente boroooooom, sabe, faz chegar. Porque senão você vai fazer tudo linearmente, né? Os dois livros vão ficar com vocês, tá? Jonas, obrigado aí por tudo, viu?
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