TecBan - Histórias Diversas
Entrevista de Denise Almeida da Silva
Entrevistada por Genivaldo Cavalcanti Filho
São Paulo, 4 de julho de 2022
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº PCSH_HV1245
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(0:19) P/1 - Boa tarde, Denise! Tudo bom?
R - Boa tarde, Genivaldo! Tudo bem!
P/1 - Eu gostaria que você me dissesse o seu nome completo, a sua data de nascimento e o local de nascimento.
R - Meu nome é Denise Almeida da Silva. Sou de São Paulo, capital, tenho 41 anos.
(0:47) P/1 - Te contaram como foi o dia do seu nascimento, Denise?
R - Me contaram! Foi um dia, não digo conturbado, porque minha mãe ficou sabendo da existência da Denise prestes a ganhar. Na verdade, eu sou gêmea. Há 41 anos atrás era ultrassom via raio X, então minha mãe identificou dias antes do nascimento da minha irmã, que é a Daniela, de que ela também teria mais um bebê. E aí no dia do parto eu fui a segunda a nascer… Eu falo conturbado por isso, porque ela foi pega de surpresa, prestes a ganhar bebê. E aí veio a Daniela, veio a Denise.
Eu fiquei internada por um tempo, por quinze dias, porque eu nasci com algumas complicações no parto, de peso; nasci com um caroço no pescoço, que ela achou que fosse necessário fazer uma cirurgia. Com esse tempo que eu fiquei internada, o médico identificou que não era preciso, que com tempo sumiria, mas ainda precisei ficar internada por conta do peso.
No decorrer disso, teve a questão do nome, se seria Denise ou se seria Deise. O meu pai optava por Deise e minha mãe por Denise, aí ficou Denise.
Nesse caminho, nessa minha trajetória de nascimento para a primeira infância, por conta dessas complicações que eu tive no nascimento… Agora, falando um pouquinho sobre religião, a minha mãe fez uma promessa para Cosme e Damião, por ela ser nordestina. Minha mãe se chama Alicia, meu pai se chama Daniel. Ela fez uma promessa que durante sete anos ela entregaria doces, bolos e a comida...
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Entrevista de Denise Almeida da Silva
Entrevistada por Genivaldo Cavalcanti Filho
São Paulo, 4 de julho de 2022
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº PCSH_HV1245
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(0:19) P/1 - Boa tarde, Denise! Tudo bom?
R - Boa tarde, Genivaldo! Tudo bem!
P/1 - Eu gostaria que você me dissesse o seu nome completo, a sua data de nascimento e o local de nascimento.
R - Meu nome é Denise Almeida da Silva. Sou de São Paulo, capital, tenho 41 anos.
(0:47) P/1 - Te contaram como foi o dia do seu nascimento, Denise?
R - Me contaram! Foi um dia, não digo conturbado, porque minha mãe ficou sabendo da existência da Denise prestes a ganhar. Na verdade, eu sou gêmea. Há 41 anos atrás era ultrassom via raio X, então minha mãe identificou dias antes do nascimento da minha irmã, que é a Daniela, de que ela também teria mais um bebê. E aí no dia do parto eu fui a segunda a nascer… Eu falo conturbado por isso, porque ela foi pega de surpresa, prestes a ganhar bebê. E aí veio a Daniela, veio a Denise.
Eu fiquei internada por um tempo, por quinze dias, porque eu nasci com algumas complicações no parto, de peso; nasci com um caroço no pescoço, que ela achou que fosse necessário fazer uma cirurgia. Com esse tempo que eu fiquei internada, o médico identificou que não era preciso, que com tempo sumiria, mas ainda precisei ficar internada por conta do peso.
No decorrer disso, teve a questão do nome, se seria Denise ou se seria Deise. O meu pai optava por Deise e minha mãe por Denise, aí ficou Denise.
Nesse caminho, nessa minha trajetória de nascimento para a primeira infância, por conta dessas complicações que eu tive no nascimento… Agora, falando um pouquinho sobre religião, a minha mãe fez uma promessa para Cosme e Damião, por ela ser nordestina. Minha mãe se chama Alicia, meu pai se chama Daniel. Ela fez uma promessa que durante sete anos ela entregaria doces, bolos e a comida de Cosme e Damião, que são santos católicos. Ela se identifica com o catolicismo, então ela fez essa promessa. A promessa foi cumprida durante sete anos, então eu vivi a minha infância no mês de setembro vivenciando essa questão da religiosidade, de ter doces, de ter bolo, de ter comida, em louvação a Cosme e Damião.
Eu tenho uma irmã mais nova, [com] cinco anos de diferença de mim e da Daniela, [que] se chama Lívia, então a gente fala que eu e a Daniela somos Cosme e Damião e a Lívia é o Doum, porque ela é mais nova. A Lívia é pequenininha, então parece a imagem de Cosme e Damião e Doum. A Lívia é a mais nova, veio depois de cinco anos para completar o time, então nós somos três, só mulheres. Meu pai que não tinha muito como optar e opinar, porque ele estava em minoria sempre. E durante sete anos foi feito esse agrado para Cosme e Damião em prol das nossas vidas. E é isso.
(4:11) P/1 - Falando da sua mãe, eu queria que você falasse um pouquinho sobre ela e também um pouco sobre a sua parte materna da família.
R - As minhas referências das matriarcas da família são a minha bisavó, a avó Rosa, e a minha avó, Aloísia, que por sinal faz quatro meses que eu a perdi, ela faleceu faz pouco tempo. E a minha mãe, que se chama Alícia. Elas são as minhas referências pela parte de mãe.
Eu convivi um tempo com a minha bisavó, que também é nordestina, baiana. Minha avó também é nordestina, baiana. E a minha mãe também é nordestina, baiana. [Veio] uma dificuldade de vida muito grande, de família pobre, do interior da Bahia. Passou por um processo de infância difícil, tinha poucos recursos de alimentação; teve que começar a sua vida muito cedo trabalhando, para poder ser também uma fonte de renda para apoiar a minha avó. Elas são mulheres fortes que me fortalecem até aqui.
(5:36) P/1 - E sobre o seu pai? Eu queria que você falasse um pouco sobre o seu pai e também sobre o lado paterno da sua família.
R - Eu tenho poucas informações por parte de pai, porque o meu pai perdeu o pai dele com dois anos de idade. Meu pai é Pernambucano, da cidade de Cabo. Ele também não teve muita referência de pai, foi criado pelos irmãos, então eu não conheci bisavô, não conheci avô e tenho só o meu pai mesmo como referência, dessa parte de família por parte de pai. Convivi pouco também com a família do meu pai, por conta de que eles têm uma religiosidade diferente da nossa, eles são cristãos e a minha mãe sempre se intitulou católica, praticante. Tinha essa divergência por conta da religião, então eu não tive muita convivência com a família do meu pai. Eu sei da existência deles, mas não era uma relação de estar sempre próximo, Eu não tinha essa proximidade por conta da religião.
(6:45) P/1 - E falando nessa questão de proximidade, tinha algum parente que você era mais próximo? E por qual motivo vocês eram próximos?
R - Sim! A minha tia, que se chama Leidinalva. Na verdade, foi ela que me criou, enquanto a minha mãe saía para trabalhar, porque a minha mãe foi mãe com 21 para 22 anos - os dois, pai e mãe têm a mesma idade. Então a minha tia, que é a irmã mais nova da minha mãe, cuidava de mim e da Daniela. Ela também é uma pessoa muito especial para mim, por conta de toda essa questão de infância. Do nascimento até praticamente dez, onze anos, foi ela que cuidou da gente.
Ela me chama de Kiko, não sei te dizer por que. É um apelido carinhoso, acho que meu rosto é gordinho, deve ser por isso. Mas ela me chama assim, de Kiko, e até hoje é a pessoa que me apoia em muitas coisas, confidências, me apoiou no meu crescimento, cuidou um pouquinho também dos meus filhos.
Eu sou mãe de dois meninos: do Pedro, que tem dezenove anos, e do Davi Lucas, que tem cinco. A minha tia sempre foi o nosso braço, para que a gente também pudesse… Minha mãe pudesse sair para trabalhar e eu também, quando chegasse a minha época de ser mãe, ter que também ser profissional, pudesse sair à luta. A Leidinalva é a minha tia que me dá todo suporte, até hoje.
(8:24) P/1 - Com o que seus pais trabalhavam?
R - A minha mãe foi empregada doméstica. Depois, por um tempo, ela ficou como camareira naquela antiga Rede Mulher, que era um canal de televisão - hoje está extinto. E o meu pai foi metalúrgico. Hoje ele está aposentado e a minha mãe também se encontra aposentada. E aí, para minha surpresa… Na verdade, eles vieram para São Paulo para fazer a vida, tiveram as filhas, e depois de 26 anos se separaram. Agora os dois moram na mesma cidade na Bahia, cada um com a sua família, mas a minha mãe é de lá, voltou para a cidade dela. Reencontrou um namorado de quinze anos. Quando ela namorou com ele, ela tinha quinze anos; ela reencontrou depois da separação o namorado e foi construir novamente a vida dela com ele. E o meu pai, por gostar muito da Bahia, na separação não se sentiu confortável de ir para outro lugar, queria ir para um lugar onde já conhecia algumas pessoas, para não se sentir sozinho; foi para a cidade da minha mãe. Encontrou uma pessoa lá, e aí hoje os dois vivem lá. A gente fica na ponte aérea para ver os dois.
(9:48) - P/1 - E você sabe como os seus pais se conheceram?
R - Olha, eu tenho poucas informações. O que foi falado em reunião de família [é que] se conheceram em uma discoteca daquela época. Minha mãe é de 1958, meu pai também. E se encontraram ao som de uma música, é essa informação que eu tenho do encontro dos dois.
(10:18) P/1 - E falando das duas famílias, eles vieram para São Paulo por motivos econômicos, trabalho? Foi isso que você comentou.
R - Isso! Os dois vieram para São Paulo. A minha avó que veio primeiro, a minha avó Heloísa, que veio para tentar um emprego. Ela ficou quatro meses longe da família; depois, quando conseguiu um emprego, ela trouxe a minha mãe e as minhas duas tias. Em seguida meu avô veio também.
Por parte de pai, a minha avó Rosita, por ter ficado viúva em Cabo, em Pernambuco, veio para São Paulo com os onze filhos. Meu pai é de uma turma, com ele [são] onze filhos. Ela veio tentar a vida em São Paulo também.
(11:09) P/1 - E tem alguma história sua desse período da infância que você se lembra até hoje, que é inesquecível?
R - Tem! Época de baile e carnaval. Minha mãe sempre foi uma pessoa muito festeira, o pessoal que é do Nordeste é muito festeiro. Ela fazia as fantasias de baianinha e eu e a Daniela íamos participar dos concursos de dança, e a gente ganhava prêmios dançando. Era uma época muito boa, porque as crianças conseguiam participar de matinês de festa de carnaval, tinha concurso, a gente tinha premiações. É uma parte da minha infância que eu lembro com saudade.
(12:01) P/1 - E do que você gostava mais de brincar quando você era criança, Denise?
R - Eu era muito moleque. Eu não era de boneca, eu não era muito [de] casinha. Eu gostava muito de carrinho de rolimã, gostava muito de bicicleta. Eu gostava de brincar na rua, gostava muito de pular amarelinha, eram essas brincadeiras. Brincadeiras que a gente brinca em coletividade, mexendo com o corpo, eu sempre gostei muito disso.
(12:38) P/1 - Você se lembra da casa onde você passou a sua infância?
R - Sim, me lembro! A gente morava num apartamento da Cohab, que a minha mãe conquistou através de um sorteio, a primeira casa dela. Tem alguém que foi sorteado pela Cohab! Ela conseguiu, então a minha infância foi num apartamento de dois quartos, sala, cozinha, banheiro e uma lavanderia. E ali naquele quarto, que era das três filhas, a gente se dividia entre uma triliche e um guarda-roupa. Os nossos sonhos, nossos planos, nosso lugar de brincadeira era ali.
(13:30) P/1 - Tem alguma comida da sua infância que você gostava muito e até hoje você gosta?
R - Tem! Bolo de cenoura com calda de chocolate é a minha sobremesa predileta, e tem muito de infância também. E o salgadinho Doritos, por incrível que pareça, é uma lembrança afetiva, porque quando a gente era pequena meu pai levava a gente no dentista do sindicato e ele falava assim: “Olha, se vocês deixarem o dentista fazer a obturação, mexer nos dentes, quando sair de lá eu dou um Doritos.” [Era] completamente ao contrário do que deveria fazer depois de sair do dentista, né? Mas o meu pai comprava a gente com um saco de Doritos. Então eu lembro muito disso, que a gente ia para o dentista e na volta ele sempre dava um Doritos para a gente comer.
(14:24) P/1 - Quais as primeiras lembranças que você tem de ir para a escola? Você ia a pé, como era? Você ainda se lembra?
R - Era a pé. Na verdade, era uma creche aqui perto, a uns duzentos metros de onde eu moro até hoje - sou nascida e criada nesse bairro. A gente ia a pé com a minha mãe, depois minha mãe teve que começar a trabalhar e a minha tia também assumiu esse papel de mãe, então a minha tia levava e buscava a gente a pé. Mas era um colégio próximo, uma creche próxima.
(15:09) P/1 - Você tinha alguma matéria que você gostava mais, algum professor que tenha te marcado por algum motivo?
R - Biologia era uma matéria que eu gostava muito. Eu nunca fui muito da área de exatas, sempre gostei mais da área de humanas. Na verdade, até a minha formação; na faculdade optei por algo que seja mais voltado para humanas. Matemática era uma dificuldade, apesar de fazer parte da nossa vida; tudo é conta, eu descobri isso ao longo do tempo, mas eu tinha muita dificuldade com matemática. Eu gostava mais de biologia, artes, gostava de educação física. Mas física, química, nada disso, nada de exatas.
(16:02) P/1 - Você fez o ensino fundamental na mesma escola, ou não era nesse mesmo lugar que foi a creche que você comentou?
R - Não, não era o mesmo local. Eu fiquei um tempo numa creche. Depois, da primeira à oitava série, fiquei num colégio próximo de casa. Quando fui para o ensino médio, nos dois primeiros anos, fui estudar num bairro vizinho. No terceiro ano do ensino médio eu precisei começar a trabalhar e aí eu saí. Eu estudava no período da manhã, tive que abrir mão por conta do trabalho e terminei o ensino médio à noite, voltando a estudar num colégio no meu bairro, porque aí eu vinha para cá, estudava e já vinha para casa.
(16:58) P/1 - Falando sobre o seu ensino médio, você já estava chegando na adolescência, as coisas vão modificando, os gostos, os lugares que você frequenta. Quais as lembranças mais marcantes que você tem dessa época do seu ensino médio?
R - Eu acho que a questão da aceitação, de você se aceitar como parte integrante de um grupo. Eu estudava num colégio em que [os alunos] não eram pessoas que conviviam à minha volta, e a classe social também era muito diferente, então eu me deparei muito com isso.
Na hora do lanche, na cantina, eu não tinha condições de comprar um lanche. Eu via que tinha gente da minha sala que todos os dias comprava, e aí [tinha] esse choque de realidade, quando você sai um pouco de onde você mora e vai ingressar num outro universo que é um universo completamente diferente do seu, uma condição social, econômica… Questão de roupa, questão financeira. A questão de você se olhar no espelho e entender que você não tem o mesmo perfil de corpo, de rosto e de cabelo do que outras pessoas. Então eu lembro muito dessa época, muito voltada para isso, a questão da aceitação.
(18:22) P/1 - E o que você gostava de fazer para se divertir nessa época da adolescência?
R - Frequentar casas de amigas, das pessoas que estudavam também nesse colégio, mas que eram da minha realidade. A minha casa sempre foi uma casa de portas abertas também para os amigos, então as pessoas tinham muito costume de vir para minha casa. Era isso, não tinha muito como fugir disso, porque a condição econômica não favorecia ir toda hora para cinema. Eu lembro também muito dessa época de fazer trabalho em biblioteca, então era um dos passeios que a gente fazia, de ir para biblioteca para fazer trabalho escolar.
(19:16) P/1 - Você tinha algum sonho de infância, alguma coisa que você pensava “eu quero ser isso quando eu crescer?”
R - Sim! Eu sempre achei que eu tinha que ser professora, queria ser professora. E aí cresci com isso, vou ser professora. Quando chegou a fase de teste vocacional, eu fiquei em dúvida entre seguir Direito ou seguir a parte do magistério. E aí no final das contas, por condições econômicas, eu não fiz Direito e não segui o magistério. Eu segui Administração de Empresas, numa faculdade distante de casa, que não tinha tanto nome, mas era a possibilidade que eu tinha na época de melhorar o meu currículo.
(20:07) P/1 - Como foi o seu primeiro emprego?
R - Esse primeiro emprego foi um emprego assim: “Eu tô aqui e tenho que ganhar alguma coisinha para poder me manter.” E pensando numa vida depois do ensino médio, que seria iniciar uma faculdade.
Eu fui trabalhar numa escola particular, ser berçarista; fui cuidar de oito bebês. Não tinha experiência nenhuma com cuidar de crianças, principalmente com bebês. Mas era o que tinha aparecido, e eu fui, só fui.
(20:57) P/1 - E você lembra do que fez com o seu primeiro salário?
R - Eu lembro que eu comprei um monte de porcaria, gente! Tudo que eu queria [era] entrar no mercado e comprar, sem pedir para ninguém. Eu lembro que eu comprei um monte de porcaria para comer, me sentindo a dona do dinheiro, “tô rica”! Foi isso que eu fiz com o primeiro salário.
(21:24) P/1 - Logo que você terminou o ensino médio você já prestou vestibular, ou você ficou trabalhando mais um tempinho para se preparar melhor? Como foi esse período?
R - Eu fiquei ainda por um tempo sem estudar. Eu entrei na faculdade com 21 anos. Eu me formei em 2004, fiquei os quatro anos direto, mas não ingressei logo depois do ensino médio, justamente por questões financeiras.
(22:00) P/1 - E nesse período antes de você começar a faculdade, você chegou a mudar de emprego, ou você se manteve nesse primeiro emprego?
R - O primeiro foi como berçarista. O segundo emprego foi numa gráfica, eu trabalhava numa copiadora, então eu ficava o dia inteiro em pé, tirando cópias, numa gráfica. Foram esses dois empregos em que eu fiquei, até ingressar na faculdade.
(22:32) P/1 - E como foi a entrada na faculdade para você? Normalmente a gente vai ter um monte de matérias que a gente não conhece, é um lugar diferente, as coisas funcionam de outra forma. Não tem mais nada a ver com o ensino médio. Como foi esse impacto de entrar na faculdade e se adaptar, para você?
R - Foi difícil! Por conta de estudo, por conta de tempo. [Quando] eu entrei na faculdade ainda estava trabalhando nessa copiadora. Mudei de função e de empresa depois, mas é difícil conciliar trabalho, estudo e entrega de trabalhos.
A faculdade não era perto de casa, então eu saía do serviço, depois eu tinha que atravessar a ponte, aquela ponte que tem na Marginal Pinheiros, uma ponte que cai no bairro do Real Parque. Tinha que atravessar a pé aquela ponte, ainda andar quase quinhentos metros para chegar na faculdade, porque eu não tinha condições de pagar o transporte. Naquela época não tinha Uber. Então não foi um processo fácil para mim essa adaptação.
(23:48) P/1 - E o que ficou marcado para você nesse período da faculdade? Algum trabalho, alguma matéria, algum evento que aconteceu? O que você se lembra desse período?
R - Quando eu estava no segundo ano de faculdade, eu comecei um estágio no Poupatempo Santo Amaro. Fui trabalhar no IIRGD [Instituto de Identificação Ricardo Gumbleton Daunt] - na verdade, minto; primeiro eu entrei na SERT [Secretaria de Emprego e Relações de Trabalho, que é um órgão público, onde você faz busca de empregos. Entrei nesse departamento como estagiária, fiquei por um ano e meio, mais ou menos. Foi nesse departamento que eu conheci o meu marido, então foi uma coisa bacana.
Depois, [por] mais um ano e meio eu continuei trabalhando no Poupatempo Santo Amaro, só que eu fui trabalhar no IIRGD, num órgão que faz emissão de certidão de identidade, carteira de identidade. No segundo ano também, que foi essa mudança de trabalho e encontro com meu marido, foi quando eu engravidei.
Eu engravidei no segundo ano de faculdade. Fiquei desesperada, óbvio, porque eu estava no meio de um curso, ainda faltavam dois anos e eu tinha que fazer agora um bebê fazer parte de tudo isso. Então eu fiz o processo de estudo grávida, nesse segundo para terceiro ano; ganhei o Pedro, que é o meu mais velho. E aí eu fiquei entre a cruz e a espada: termino a faculdade, ou eu vou me dedicar a ser mãe?
Minha mãe entrou nesse circuito e falou: “Olha, eu vou te apoiar, para você estudar.” A gente fez um acordo. Ela falou: “A partir de hoje sua vida mudou, você se tornou mãe, então conte comigo no apoio para os estudos, nada além disso”. Porque aí a vida muda, então minha mãe me apoiou a terminar a faculdade. Nos dois anos seguintes eu tive o apoio dela e um bebê no colo.
(25:58) P/1 - Depois disso, quando você terminou a faculdade, quais foram os seus próximos passos?
R - Eu terminei a faculdade, mudei de trabalho; fiquei quase dez anos em uma empresa de Telecom. Fiquei muito medrosa com questões de parto, porque tive algumas complicações no primeiro parto, então eu queria ter um segundo filho, mas não tinha coragem. Os meus filhos têm uma diferença de treze anos, então depois que eu tive o Pedro, terminei a faculdade, mudei de trabalho e segui a vida, criando o Pedro junto com meu marido e tentando construir a minha carreira, com a minha formação.
(26:52) P/1 - Você foi a primeira pessoa que fez faculdade da sua família, ou não?
R - Na verdade, eu e a Daniela ingressamos juntas. Ela também teve esse processo de… Uma segue a outra, na vida é assim. Ela também não entrou de cara quando saiu do colégio. Nós entramos juntas para fazer o mesmo curso, na mesma faculdade, na mesma sala. Por conta de sermos gêmeas, os professores pediram para ficar na mesma sala por questões de prova, então começamos juntas, terminamos juntas. As duas foram as primeiras.
(27:37) P/1 - Como era isso? Vocês se ajudavam bastante, estudavam juntas? Isso ajudou, atrapalhou? Conta um pouco como foi ter a irmã dentro da sala de aula?
R - Era uma loucura, né? Porque nascer juntas, estudar juntas… A vida inteira a gente sempre estudou juntas, na mesma sala. Na faculdade se repetiu a mesma situação. A gente se apoiava, mas era uma loucura, porque a gente vive juntas - agora não com tanta frequência, porque ela tem a família dela e eu tenho a minha - mas nessa época de faculdade a gente se apoiava e não se apoiava, porque tem as discordâncias de irmã. Não foi um período totalmente tranquilo; tinha coisas que eu entendia, tinha coisas que ela não entendia. Quando a gente não tirava notas boas, ou eu ou ela, uma meio que cobrava a outra em relação a isso, então as nossas trocas são assim.
(28:36) P/1 - Depois que você se casou, você mudou de bairro?
R - Eu, não! Continuo no mesmo bairro, onde eu cresci. Minha irmã gêmea, sim. A Daniela hoje mora em São Bernardo do Campo. Na verdade, a pessoa que ela encontrou, o marido dela, é dessa cidade, de São Bernardo, e ela optou em morar lá, por entender que é mais tranquilo [em] questão de trânsito, a cidade é mais pacata. Ela preferiu mudar para São Bernardo.
(29:13) - P/1 - Qual é o bairro mesmo que você mora?
R - Eu moro no Parque Ipê, daquela música dos Racionais MC, sabe? Eu moro nesse bairro, no Parque Ipê, nascida e criada aqui.
P/1 - Zona Sul, né?
R - É zona sul, zona sul de São Paulo.
(29:34) P/1 - Vocês chegaram a se casar no civil, na igreja? Como funcionou isso para vocês?
R - Para mim era um desejo, mas depois que eu tive o Pedro adormeceu um pouco. Eu achava que não fazia mais tanto sentido aquele sonho de entrar de véu e grinalda, tinha outras prioridades. Não casei na igreja, na verdade a gente fez um documento em cartório, de união estável. E priorizamos outras coisas ao invés de gastar com festa, com toda aquela cerimônia. Hoje não é uma coisa que me entristece, que me faz falta, que eu não me sinto completa, não, já superei isso.
(30:32) P/1 - E como foi para você ser mãe?
R - Foi difícil! Na verdade, a minha mãe engravidou com a mesma idade que eu. Eu também engravidei com 22 para 23…. Foi difícil, porque eu estava num processo em busca de realização profissional, não estava esperando por uma gravidez. Mas a gente sabe que tudo tem um risco, e aí eu corri o risco; obviamente assumi, pelas consequências dos meus atos.
Foi uma coisa muito importante naquele momento, mas eu não tinha noção da importância. Quando a gente se torna mãe, a gente entende o que é ser mãe, a importância de ser mãe. Eu falo que foi a virada de chave na minha vida, mas que hoje, se fosse para repetir, eu repetiria tudo de novo, da mesma forma que aconteceu.
(31:35) P/1 - E na segunda vez, no seu segundo filho, você já estava mais tranquila? Foi algo mais tranquilo para vocês?
R - Foi, porque eu já tinha estabilidade financeira, já estava na minha casa. Eu, na verdade, usava contraceptivo para não ter, aí eu optei em parar de tomar, para poder ter o Davi Lucas.
O Pedro foi no susto e foi um presente; o Davi Lucas foi um planejamento um pouco melhor. Bateu aquele desespero de “olha, estou com 35, 36, e aí? Você vai ser mãe de novo ou não vai? Você vai lutar contra os seus medos, ou você vai deixar o medo te paralisar?”
Eu enfrentei o meu medo, na verdade era o medo do parto. Falei: “Não, o medo não pode ser maior que eu e nem maior que a vontade de ter um segundo filho.” Tirei o DIU e fiquei por oito meses esperando a vinda do Davi.
(32:42) P/1 - E foi uma gravidez tranquila? O parto também? Você conseguiu se livrar desses medos que você teve em relação à sua primeira gestação?
R - Não, Genivaldo, repetiu tudo de novo! É que o que a gente joga para o universo parece que persegue a gente, né? Tudo que eu vivenciei no primeiro parto, na sala de parto, eu vivenciei com o Davi, parecia que a história se repetia. Mas eu falei: agora é uma história diferente; por mais que as sensações sejam as mesmas, era uma outra vida, eu estava mais velha, então eu tentei eliminar um pouco desses gatilhos do primeiro parto no segundo. Não foi fácil, foi difícil, eu fiquei chorando o dia inteiro no hospital, até a hora do nascimento dele. E falo de novo que eu não estou preparada para ter um terceiro filho, por conta desses gatilhos do parto. Mas na minha mente está cumprido, eu queria ter dois filhos e eu tive dois filhos.
(33:53) P/1 - Eu gostaria de saber como foi esse seu encontro com o Candomblé? Como você se aproximou? Você disse que a sua mãe é católica, então como isso surgiu para você?
R - Vem desde a infância. Apesar da minha mãe ser católica, Cosme e Damião são santos muito fortes na Bahia. São santos católicos, que foram extintos de muitas igrejas por conta do sincretismo religioso. Vem desde a promessa de entrega de doces e comidas, pela nossa saúde.
Quando eu entrei no ciclo de adolescência eu ainda os cultuava. Cultuo até hoje, mas só para simplificar um pouco dessa história… Eu os cultuava e aí veio a fase da adolescência, de tipo: “Nossa, mas o que você faz não é isso”, aquele preconceito estrutural que existe até hoje. E aí eu simplesmente peguei a imagem de São Cosme e Damião… Eu não queria me desfazer dela; tranquei ela no maleiro, falei: “Vai ficar aqui guardado, trancado. Não vou jogar fora.” E fui em busca de uma outra religião em que talvez eu tentasse me encontrar.
Aí eu fui para a religião cristã. Fui para a Assembleia de Deus, não me identifiquei; fui para Testemunha de Jeová, não me identifiquei; fui parar na Quadrangular, não me identifiquei. Aí eu falei: “Ai, gente, quer saber? Me dá meu Cosme e Damião.” Coloquei ele no lugar de novo e falei: “Olha, o que for para ser vai ser. E aí comecei essa trajetória de ir num lugar, em outro, muito voltado para a questão espírita, [de] kardecistas; não para o catolicismo, nem para o cristianismo, porque eu nunca me identifiquei completamente.
Nessa trajetória, depois que eu tive o Pedro, já na faculdade, com 26 anos, eu entrei para fazer parte de uma casa de Umbanda, que tocava Umbanda. O Pedro, com quatro anos, ia comigo. Foi a primeira casa que eu efetivamente falei: “Eu vou entrar, vou entender melhor esse universo e vou fazer parte. Vou querer aprender como é a filosofia da religião e no que eu posso ser útil, onde eu me encaixo nessa corrente.” Descobri nessa casa de Umbanda que eu era médium de incorporação, aí eu comecei o meu processo de desenvolvimento mediúnico, onde eu comecei a conhecer as minha entidades, a conhecer um pouquinho quem era o meu santo, que a gente fala que é o orixá de cabeça. Mas como era Umbanda… A Umbanda é muito voltada para a questão de cultuar espíritos, então eu conheci um pouco quem eram as entidades que trabalhavam comigo e fiquei lá por dez anos.
São chamados da espiritualidade. Eu saí de lá e fiquei uns nove meses sem achar outro lugar. Eu não saí pela espiritualidade, mas por alguns conflitos do ser humano. Achei que ali dentro não estava mais confortável para mim ficar, apesar de tanto tempo. Eu descobri isso, que não fazia mais sentido. Eu acredito que tudo tem um porquê, é chamado de orixá mesmo.
Depois de oito meses, eu, conversando com uma pessoa sobre política… Eu sou uma pessoa que levanta a bandeira de esquerda. Eu e um rapaz, que hoje é escritor - ele escreve poesias para orixás - também entrou nessa seara de política, e nós dois defendemos o mesmo ponto de vista. Fui ver o perfil dele na rede social e vi que ele era umbandista. [Pensei:] “Nossa, que legal. Vou perguntar para ele onde ele frequenta.” Por sinal, ele é um vizinho de bairro, mas até hoje a gente não se conhece, eu nunca o vi presencialmente. Aí eu mandei uma mensagem para ele no Messenger: “Olha, eu vi que você é umbandista. Frequenta algum lugar? Eu tô procurando um espaço.” Aí ele: “Olha só! Eu saí da casa que eu frequentava, eu não estou em nenhum lugar. Mas você está procurando Umbanda ou Candomblé?” Aí eu falei: “Eu venho de Umbanda, mas não estou me limitando a nada. Eu não conheço o Candomblé”. Ele falou: “Vou te indicar uma pessoa que é professor, tem uma casa aberta. É uma pessoa que eu conheci numa passeata sobre intolerância religiosa e acho que vale a pena você pelo menos ir lá conhecer e conversar com ele. É uma pessoa muito legal”.
Nesse ínterim, eu conheci o Candomblé, porque aí eu fui atrás dessa pessoa, troquei mensagem com ele também pelo Messenger. E aí ele falou: “A minha casa é quase em Guarulhos”.
Gente, como é longe, meu Deus do céu! Dizem que macumba boa é macumba longe; eu levo isso à risca. Eu sou aqui da Zona Sul, Campo Limpo… Lá em Guarulhos, do outro lado da cidade. Aí eu falei para ele: “Nossa, mas é tão distante, né?” Ele falou assim: “Se o seu problema é a distância…”
Aquilo ficou martelando dentro de mim. Falei: “Cara, de todos os problemas que a gente vive na vida, eu acho que o menor problema é a distância. É questão de relacionamento, de você se sentir pertencente aquele lugar, é de você se identificar com a filosofia da casa.” O menor problema seria a distância para mim, mas ainda fiquei relutando duas semanas para ir conhecer essa pessoa.
Depois de passado esse tempo, chamei ele de novo. “Não, eu vou conhecer, pelo menos eu vou conhecer.” E fui, atravessei a cidade, fui conhecê-lo. Chegando lá, por incrível que pareça, a casa, o lugar, era muito parecido [com a casa] de onde eu tinha saído. Então veio aquela memória de novo: olha, nada se acabou, tudo é continuidade.
Conversei com ele, joguei uma mesa de búzios. Voltei para casa e fui entender tudo aquilo que eu tinha vivido e se valia a pena fazer essa tentativa de mudar, porque querendo ou não, elas são religiões irmãs, mas os ritos são diferentes. E aí eu falei: “Não, agora eu vou começar a namorar essa casa, namorar mesmo. Deixa eu namorar, conhecer esse lugar, as pessoas, entender como que eles fazem no dia a dia, minha frequência nesse lugar”, porque era muito distante.
Comecei a frequentar e peguei as coisas que eu tinha em casa, da outra casa, e levei para esse lugar. Eu falei: “Vou frequentar e vou deixar minhas coisas lá, num lugar que é sagrado.” No decorrer do tempo, aquela mistura de sentimentos… Eu falei: “Não, eu acho que eu estou passando dos limites. Não é esse lugar.” Peguei minhas coisas e voltei para casa. E aí o meu pai de santo só falou assim para mim: “Eu vou esperar o seu tempo, você colocar o seu sentimentos nas caixinhas.”
Voltei para casa com as minhas coisas. Passados quase cinco meses, ele não me tirou do grupo da casa, do grupo do WhatsApp, porque acho que ele esperava que eu ia voltar em algum momento, só precisava ter meu tempo.
Eu [fiquei] seguindo o grupo, vendo as movimentações da casa, as festividades, tudo. Eu resolvi um dia ir e falei: “Não, hoje eu vou e eu quero que Orixá me diga se é esse lugar.” E era esse lugar, porque ninguém sabia da minha conversa com Orixá, só eu sabia. (chora) Eu tinha muito medo de me decepcionar, de colocar a minha vida e a vida da minha família na mão de uma pessoa que pudesse, de alguma forma, manipular a minha vida. A gente sabe que existe esse tipo de pessoas no mundo, no caminho, e eu não queria me deparar com gente assim, a minha filosofia de vida era outra. E naquele dia eu fui falando no ônibus: “Olha, Orixá, me dá um sinal, me mostra se esta pessoa tem que conduzir a minha vida espiritual e tudo que eu tenho que viver daqui para frente.”
Chegando lá, era uma festa de Oxóssi. Fiquei na janela, do lado de fora. Falei: “Eu não vou ficar lá dentro, porque eu não entro em transe de orixá, então eu não vou ocupar o espaço de quem já está nessa caminhada.” Fiquei na janela, e aí ele pegou dois…. Só para você entender um pouquinho, tem um momento na festividade que ele pega dois chifres de búfalo e bate. Aquilo tem um significado dentro da religião, mas até então eu não sabia, porque eu não conheço esse universo, tudo era desconhecido para mim. Quando ele fez esse ato, bateu em mim e eu desmaiei - literalmente desmaiei, no corredor. E eu não estava entendendo nada, fiquei lá desmaiada. Orixá veio, me pegou no colo, me levou para o quarto de santo. E quando eu voltei em mim, que eu me senti de novo consciente, eu entendi que aquilo era uma resposta de Orixá. Porque é o bolar do Santo, a energia do Orixá é tão forte que a gente que não passou por um rito iniciático recebe aquele baque de energia e desmaia. Foi uma forma de Orixá falar para mim: “Sim, é o seu lugar.” E aí depende tudo de mim, da minha vontade, porque a vontade do ser humano sempre é respeitada.
Na saída para voltar para casa, meu pai de santo falou assim para mim: “Filha, eu não quero te assustar, mas eu acho que é o momento de você fazer a sua viagem ancestral.” E dali [em diante] eu comecei a frequentar efetivamente, a conhecer as pessoas e falar: “Agora eu sei que aqui é o meu lugar, que aqui vai me completar de alguma forma.”
Depois de sete meses, eu efetivamente me iniciei dentro do candomblé. Sou filha do orixá Oxum, então Oxum me renasceu para vida, porque a gente entende que o ato de se iniciar é você renascer. E eu sou muito feliz hoje, de verdade! É que falar da minha iniciação, é uma coisa que cura dores e ao mesmo tempo me renasce, então eu sempre choro, toda vez que eu falo. (chora)
(PAUSA)
(45:30) P/1 - Continuando Denise, você já sofreu algum preconceito no ambiente de trabalho? Preconceito racial, ou também por conta da sua religião?
R - Por conta da religião, eu sofri o impacto quando eu voltei, porque eu tirei férias para me iniciar; na iniciação você fica careca, é feita a queda do cabelo.
Eu sempre andei com cabelo muito, muito, pintado, então Oxum… Quando eu me iniciei, eu voltei para o quarto de santo; deu alguns dias, o meu pai de santo falou assim para mim: “Filha, Oxum derramou uma chuva de prata na sua cabeça”. Mas eu não podia me olhar no espelho, a gente fica [em] um período de preceito, então eu não tinha dimensão de quanto cabelo branco eu já tinha. Eu sempre tive, desde os quinze anos. Tive um problema de tireoide, eu tive que tirar completamente a tireoide, e a tireoide que dá toda a melanina do cabelo, então era questão de saúde, mas eu não tinha noção que era praticamente a cabeça inteira.
Quando eu voltei a trabalhar, eu tive que voltar toda de branco, tinha que ir de roupa branca. Na rua eu usava uma touquinha; quando eu entrava na empresa, que era um local fechado, eu tirava. Então eu tive que literalmente voltar a trabalhar careca. Na minha primeira entrada na empresa, por incrível que pareça, as pessoas que passaram por mim… Eu não tive nenhum impacto negativo; eu tive impacto negativo quando abri a porta do departamento em que eu trabalhava, porque uma pessoa olhou pra mim e fez assim: “Hã!” Uma cara de susto. Eu fingi que não vi, sentei na minha mesa de trabalho, e fiquei.
Algumas pessoas, pouquíssimas pessoas, levantaram, chegaram perto de mim, me desejaram boas vindas, porque estava retornando de férias. Com o passar dos dias, aquilo foi ficando mais ameno, tanto para mim, quanto para eles.
Eu costumo dizer que… A gente tem hoje um superintendente, o Leonardo Vanucci, que foi uma pessoa, que por incrível que pareça, por questão de nível hierárquico, foi uma das pessoas que não me deu aquela sensação de estranheza. Ele me chamou na sala dele, conversou comigo de uma forma muito natural, tipo “tá tudo bem.” E eu penso: se fosse uma pessoa que tivesse uma doença que o cabelo caísse, como seria isso? Porque o meu cresceu, mas se estivesse numa situação diferente? Então eu senti esse impacto de pessoas no nível hierárquico como o meu.
Depois a gente vai entendendo aos poucos as coisas. Era uma pessoa que tinha uma religião diferente da minha, então acha que o processo que eu passei não é importante, não é significativo, e aí manifesta seu pensamento pelo corpo, porque o corpo da gente fala.
(48:54) P/1 - Existe algum aprendizado, ou barreira também, que você traga da sua religiosidade para a sua atuação no trabalho? Algo que te inspira? Alguma coisa que você traga para o seu dia a dia?
R - Sim! Oxum é estratégia! Oxum é a primeira mulher dentro do panteão em iorubá, que não se abaixou para a vontade de nenhum homem. Ela é aquela mulher que se impõe, ela tem aquele poder feminino, com sutilezas, com estratégia, porque Oxum não bate de frente com ninguém. Ela arma formas dela se fazer presente sem ter que confrontar ninguém, então ela não levanta uma espada. Oxum não levanta espada para ninguém, Oxum usa da sua estratégia e do seu poder de mulher, seu poder feminino, para conseguir chegar onde ela quer.
Acho que eu tenho isso de Oxum, de usar da estratégia para a gente se aproximar das pessoas, para a gente criar relacionamentos dentro do mundo corporativo, socializar com as pessoas, levar as coisas sempre com uma colher de mel na boca. Isso foi Oxum que me ensinou. A gente pode falar tudo, tudo pode ser dito, com uma colher de mel na boca. Então eu acho que o aprendizado dentro da religiosidade para o mundo corporativo é isso, as coisas podem ser… A vivência é diferente, mas os ensinamentos podem se complementar.
Dentro do mundo corporativo tem muito essa necessidade de se relacionar com as pessoas, entender que a maior parte do tempo a gente passa com quem a gente trabalha, não com a nossa família, então o maior ensinamento para mim de Oxum é isso: tudo pode ser dito com uma colher de mel na boca.
(51:00) P/1 - Conte um pouquinho da sua trajetória na TecBan.
R - Eu entrei na área de legalização em 2013 e estou nessa área até hoje. A minha trajetória na TecBan sempre foi na mesma área. No próximo ano eu completo dez anos de empresa.
A minha atividade principal é legalizar as máquinas, emissão de alvará de funcionamento. Eu já vi muita gente passar por essa área; fui uma das primeiras pessoas dessa turma, que está mais jovem, a chegar na empresa e permanecer, sou a mais velha da equipe.
É uma empresa que me dá abertura de ser quem eu sou, de não deixar de lado a Denise fora da empresa, então eu consigo hoje falar da minha religião de uma forma mais aberta, sem precisar me esconder. As pessoas sabem da minha religião, respeitam, as pessoas que estão à minha volta respeitam. E a gente tem trocas, a gente tinha reuniões no horário do almoço, onde cada um levava um pouco do que acreditava, dentro do que seguia como religião. Essas trocas eram muito bacanas, porque independente da vertente que você segue, acho que cada um tem alguma coisa para agregar na vida do outro, e essas trocas sempre foram muito valiosas.
A gente tinha esse grupo dentro da equipe justamente para não ficar falando de trabalho na hora do almoço, [pra] falar de coisas da nossa vida, falar do que a gente gostava de fazer.
A minha trajetória na TecBan está quase para completar dez anos.
(52:54) P/1 - E como é que você enxerga a diversidade dentro da TecBan? Você enxerga que ela está ok, tem pontos que precisam melhorar? Conte como você enxerga isso.
R - Eu entendo que tem pontos a melhorar, ainda existe uma resistência, mas isso não é uma resistência da TecBan, é uma resistência estrutural, de sociedade. As pessoas ainda relutam muito em respeitar o espaço do outro. É um assunto que está em pauta na empresa; a gente tem desenvolvido materiais, eu faço parte do grupo de diversidade. Estão sendo levantadas essas bandeiras de gênero, religião, deficiência, que têm que ser discutidas e têm que ser vistas como algo normal, não diferente. Muitos lugares ainda lidam com essas questões, [com] esses assuntos, como se fossem alguma coisa diferente, quando não são. É algo normal, só é diferente do que você pensa, do que você tem como filosofia de vida. Para você pode ser diferente, numa sociedade tem que ser algo normal. Então a empresa está nessa toada de deixar isso muito mais leve, acho, dentro do mundo corporativo.
(54:20) P/1 - O que você diria, pela sua experiência, que pode servir de exemplo para pessoas que estejam também na mesma situação que você, e sejam pessoas que não sigam, digamos assim, o que está pré-estabelecido, o que está considerado “normal”? O que você daria de mensagem para essas pessoas?
R - Que o espaço de cada um tem que ser respeitado, mas você não pode deixar de lado a sua essência para agradar ninguém. Não existe o certo, não existe o errado, existem escolhas diferentes. Se a minha religião hoje me completa, eu não quero que você siga a mesma coisa que eu, mas eu quero que você respeite o meu espaço. E que as pessoas entendam a partir de ontem, de hoje, daqui para frente, que o respeito [está] acima de tudo. E não se escondam, não pensem que você não vai ser bem recebido, não vai pertencer àquele espaço, àquele grupo de pessoas; se coloque sempre com uma colher de mel na boca. E lide, tem que lidar com essas situações e desmistificar muitas coisas. Muita coisa que é passada de geração para geração vem lá de trás, de um catolicismo que era soberano para nossa sociedade. Criou-se muitas histórias, muitas lendas, para que o catolicismo fosse a principal religião, como é até hoje. Mas a gente de Candomblé também existe, nossos deuses existem.
A gente chegou muito antes do catolicismo, porque eu venho de uma África… As pessoas não escolheram estar aqui. Elas estiveram aqui pelo período escravocrata, então [se] apresentem, mostrem quem vocês são de uma forma leve. E acho que o principal é respeito, tem que existir; independente do outro aceitar ou não a tua escolha, ele tem que te respeitar.
(56:38) P/1 - Sobre essa questão de aceitação, Denise, quem é o seu grupo de apoio? Aquelas pessoas com as quais você pode contar nos momentos bons, nos momentos difíceis, você sabe que pode contar com eles.
R - Eu tenho colegas de trabalho muito próximos na empresa, que sabem da minha trajetória e respeitam. Principalmente quando eu saí desse período de férias, algumas pessoas me apoiaram: “Vai dar tudo certo! Vai lá, faz o que seu coração manda!” Quando eu voltei eu tive receptividade boa de algumas pessoas.
Fora do mundo corporativo eu tenho apoio do meu marido, eu tenho apoio dos meus dois filhos. O Pedro hoje é Ogan da casa onde eu faço parte; ele foi escolhido por Orixá, ele tem um posto dentro de uma casa de candomblé. Eu tenho Davi Lucas, que é o meu segundo filho, que foi também iniciado, e hoje ele se reconhece como Davi de Ogum. O Pedro se reconhece como o pai Pedro de Omolú e eu, Denise de Oxum. Então eu me sinto muito completa e meus filhos me apoiam nessa trajetória. Meu marido não frequenta, mas ele nunca se opôs às minhas vontades e às minhas decisões, até porque religião é muito individual, então ele não se opõe, não se opôs à iniciação dos meus filhos. E minha mãe - na verdade, acho que tudo isso começou com ela, a promessa que ela fez lá atrás.
Eu tenho muito apoio. Tenho apoio do meu pai de santo, que é professor, que é educador, que é militante, que é uma pessoa que pensa fora da caixa, que preza muito pelo acolhimento, por abraçar o outro como outro se entende. Essa questão de gênero na nossa casa de axé já é um assunto superado, cada um chega lá com as suas dores e com seus amores e isso é respeitado, você é ouvido com ouvido de boas palavras. Hoje eu posso dizer, eu sou cercada de pessoas que me empurram para frente.
(59:06) P/1 - A gente vai pro bloco final das perguntas - primeiramente, uma breve passagem por essa questão da pandemia . O que mudou durante esse período, que ainda não acabou, da pandemia? Como isso impactou sua vida pessoal, profissional, a sua saúde mental? Como é que você está hoje em dia em relação a isso?
R - A pandemia para mim foi libertadora, sabia? Eu não vejo a pandemia… É ruim pelo lado da perda de vidas, muitas famílias perderam seus entes queridos. Mas em contrapartida, eu acho que a pandemia veio para fortalecer o laço familiar, ter uma convivência que a gente não tinha oportunidade de ter na frequência que eu tenho hoje. Eu consigo estar mais próximo dos meus filhos, eu consigo estar na minha casa; a gente ficava doze, treze horas fora da nossa casa.
Acho que o relacionamento familiar melhorou. [No] relacionamento de trabalho eu não vejo mudanças, porque eu faço parte de uma equipe que a gente se fala muito, a gente troca muitas informações. E aquele consumismo que existia, na hora do almoço tinha que sair, comprar, comer, comer, isso eu acho que melhorou também; a gente ficou um pouco mais seletiva em relação a isso, [sobre] o que realmente é importante para nossa vida.
Acho que a gente aprendeu também a administrar melhor o dinheiro. Eu era muito consumista, gastava desenfreadamente. Agora não, eu penso mais no amanhã, no que pode me fazer falta. Então, eu acredito que a pandemia veio também para mudar algumas coisas, tanto internas, da gente mesmo, mas também na sociedade.
A gente já tinha essa questão de home office na empresa, mas isso nunca foi colocado em prática verdadeiramente, a meu ver. E a empresa teve que se deparar com essa situação de colocar todo mundo como home office e viu que funciona, funciona muito bem. Você não está deixando de trabalhar porque você está dentro da sua casa; pelo contrário, eu acho que a gente hoje conseguiu fazer muita coisa nova estando em casa. Então acho que a pandemia só veio para mudar um pouco a história do mundo, na verdade, porque é mundial.
(1:02:00) P/1 - Quais são as coisas importantes para você hoje em dia?
R - Desligar o computador e saber que estou dentro de casa, poder fazer a janta dos meus filhos. Poder ter tempo de ler um livro, de fazer um curso, coisas que às vezes o transporte público me tomava o tempo. Não que isso fosse uma barreira, mas eram três horas do meu dia que eu estava dentro de um transporte público, então hoje eu tenho mais qualidade de vida. Consigo estar mais disposta para trabalhar, no sentido de levantar, tomar meu café e já estar ali, na frente do computador. Não tenho que estar naquele estresse de transporte público cheio, de buzina, de carro.
Pra mim foi muito valioso esse período. Espero que esse período se prolongue. De uma forma ou de outra, acho que nunca mais vai ser a mesma coisa, mas [deve-se] entender que funciona trabalhar à distância.
Nesse período de trabalhar à distância, eu tive a oportunidade de ficar três meses na Bahia com os meus pais, coisa que eu não conseguia, só conseguia nas minhas férias. Posso pegar um avião e trabalhar de lá, e vou ser a profissional Denise do mesmo jeito, com a mesma produtividade, com as mesmas entregas e resultados.
(1:03:26) P/1 - Quais são os seus sonhos para o futuro?
R - Meu sonho para o futuro é me tornar uma especialista na área que eu faço. Eu gosto muito da empresa, então eu visto realmente a camisa da TecBan. É uma empresa grande e ao mesmo tempo é uma empresa que a gente conhece quase todo mundo, então você se sente meio que dentro de casa. Não é aquele mundo corporativo gigantesco, onde você quase não conhece as pessoas, não tem essa rotatividade tão grande de pessoas, então é uma empresa que eu prezo em continuar.
Meu próximo passo é voltar a estudar e fazer uma segunda pós-graduação, para melhorar também o meu conhecimento. E daqui para frente é ter a minha casa de axé. Eu tenho caminhos de sacerdócio e quero colocá-los em prática.
Preciso ter o ganho que a TecBan me proporciona para realizar sonhos fora da TecBan. E um dos sonhos é efetivamente colocar em prática o meu sacerdócio.
(1:04:44) P/1 - E qual o seu legado? O que você acha que você deixa de experiência com a sua história de vida como mensagem?
R - Resiliência, muita resiliência, porque para fazer o que eu faço hoje na área, você tem que ser uma pessoa resiliente, você não pode desistir na primeira dificuldade. E ter coragem para enfrentar os desafios.
Eu não costumo dizer que são dificuldades, eu acho que tudo que aparece na vida da gente é desafio, se é desafio você consegue ultrapassar. A mensagem que eu deixo é [que] sejamos resilientes com os nossos sonhos, não desista na primeira dificuldade, senão você não vai saber se aquele sonho vai ser concretizado ou não. E tenha coragem para assumir tudo, até os erros da gente se transformam em aprendizados.
(1:05:41) P/1 - Tem alguma coisa que a gente não falou durante a conversa que você gostaria de colocar?
R - Eu acho que olhando para esse universo de religião, que foi o convite que eu recebi da Marina, da área de pessoas, para falar... É o acolhimento, sejamos mais acolhedores. Você não sabe a história que o outro carrega. A sua história fala de você; você não pode transportar, transferir as suas vontades, os seus desejos, para que o outro seja como você espera. Ninguém nunca vai ser como a gente espera. Dê o seu melhor, e se o outro não está dando o que você espera, talvez seja o melhor que ele possa lhe dar. Então seja acolhedor com o outro, com a história do outro.
(1:06:37) P/1 - Tem algum ancestral que você gostaria de ser, que te represente?
R - Tem! A minha bisavó, Rosa. Ela foi uma mulher que morreu com 105 anos, uma mulher preta, mãe solo, mãe de sete filhos, pescadora. foi escrava. Acho que a história dela por si só já fala de luta, coragem, resistência. Não se entregou em nenhum momento, viveu tudo que tinha que viver da melhor forma possível. Foi uma pessoa que não conheceu coisas que a sociedade hoje, esse mundo urbano tem, porque ela não tinha possibilidade de ter, mas nem por isso perdeu a vontade de viver e nem a vontade de realizar sonhos que ela tinha, para a época dela, para a vida dela. Eu me espelho muito na história dela.
(1:07:43) P/1 - O que você achou de contar um pouco da história para a gente hoje?
R - Foi um presente, gente! Quando recebi esse convite, eu falei: “Nossa, gente. Que legal!” Eu não conhecia o Museu da Pessoa, [foi] a Marina que me apresentou, através do convite, mas achei fenomenal o que vocês fazem. Acho que nós somos um livro na carne, na pele, então a gente precisa contar histórias. E a nossa história pode chegar no ouvido de outra pessoa que às vezes passou ou esteja passando pelo mesmo período que você esteja passando - de dor, de amor. Você vai acolher também outra pessoa, mesmo sem saber, de uma forma até indireta, então eu acho um trabalho fantástico. Eu só peço que vocês propaguem ainda mais esse trabalho, que é muito rico.
(1:08:42) P/1 - Em meu nome e também no nome do Museu da Pessoa, eu agradeço muito você ter aceito o convite e essa conversa de hoje com a gente.
R - Obrigada, Genivaldo! Foi muito valioso, foi uma troca muito valiosa, viu? Que orixá abençoe!
P/1 - A todos nós!
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