Projeto: Indígenas Pela Terra e pela Vida
Entrevista de Handech Wakanã Mura
Entrevistado por Márcia Mura
Entrevista concedida via Zoom (Porto Velho), 07/11/2022
Entrevista n.º: ARMIND_HV022
Realizada por Museu da Pessoa
P/1 – ______________. Agradeço meu irmão Handech por essa oportunidade de estarmos aqui para fazer essa conversa por parentes. E eu gostaria que você se sentisse à vontade para iniciar a sua narrativa por onde achar melhor.
R – _______________________ todos os participantes dessa entrevista, a você aí, aos participantes que vão participar do Museu. Então, eu começo falando da nossa trajetória. Nós estamos aí na luta pela reivindicação da demarcação do nosso território tradicional já chegando a 23 anos, neste ano, agora. Toda nossa história pela reivindicação dos nossos, da demarcação do nosso território tradicional, pela reivindicação dos nossos direitos garantidos na Constituição Federal, pela assistência a educação, a saúde, a agricultura familiar, ao saneamento básico e pela vida do falecido Cacique Nelson, de nome cultural __________ , significa Cacique Sabedoria, que é meu pai, já falecido. Toda a sua trajetória, toda sua luta pela demarcação do nosso território e a garantia dos nossos direitos, que já estão assegurados na Constituição. A partir dele, aí nós iniciamos também a participação na, como lideranças. Eu, Handech Wakanã Mura, como liderança política e espiritual do meu povo. E a partir daí outras lideranças também assumiram uma responsabilidade de buscar, de lutar também pela garantia dos nossos direitos e pela demarcação do nosso território. Ao longo desses anos, para nós, nós tivemos muitas lutas: primeiro, a luta para garantir a nossa afirmação como indígena, para garantir a nossa afirmação, pelo reconhecimento não só nas instituições, mas no meio do próprio movimento indígena, nós como indígenas ali buscando espaço junto com os parentes pela luta...
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Entrevista de Handech Wakanã Mura
Entrevistado por Márcia Mura
Entrevista concedida via Zoom (Porto Velho), 07/11/2022
Entrevista n.º: ARMIND_HV022
Realizada por Museu da Pessoa
P/1 – ______________. Agradeço meu irmão Handech por essa oportunidade de estarmos aqui para fazer essa conversa por parentes. E eu gostaria que você se sentisse à vontade para iniciar a sua narrativa por onde achar melhor.
R – _______________________ todos os participantes dessa entrevista, a você aí, aos participantes que vão participar do Museu. Então, eu começo falando da nossa trajetória. Nós estamos aí na luta pela reivindicação da demarcação do nosso território tradicional já chegando a 23 anos, neste ano, agora. Toda nossa história pela reivindicação dos nossos, da demarcação do nosso território tradicional, pela reivindicação dos nossos direitos garantidos na Constituição Federal, pela assistência a educação, a saúde, a agricultura familiar, ao saneamento básico e pela vida do falecido Cacique Nelson, de nome cultural __________ , significa Cacique Sabedoria, que é meu pai, já falecido. Toda a sua trajetória, toda sua luta pela demarcação do nosso território e a garantia dos nossos direitos, que já estão assegurados na Constituição. A partir dele, aí nós iniciamos também a participação na, como lideranças. Eu, Handech Wakanã Mura, como liderança política e espiritual do meu povo. E a partir daí outras lideranças também assumiram uma responsabilidade de buscar, de lutar também pela garantia dos nossos direitos e pela demarcação do nosso território. Ao longo desses anos, para nós, nós tivemos muitas lutas: primeiro, a luta para garantir a nossa afirmação como indígena, para garantir a nossa afirmação, pelo reconhecimento não só nas instituições, mas no meio do próprio movimento indígena, nós como indígenas ali buscando espaço junto com os parentes pela luta e apoio pela luta da demarcação do nosso território, da nossa causa, da nossa luta ali de melhorar a vida do nosso povo, garantir a proteção do nosso povo e também da floresta, da natureza. E nessa trajetória, a ocupação nossa no Rio Itaparaná, aí da região, ela surge _______ ela vem desde 1963 ali, somente no Rio Itaparaná, para o alto do Rio Itaparaná, que já, chegando nas mediações que hoje passa a BR 230, a Transamazônica, que cortou ali o nosso território. Antes, ela nem existia ali, na época do meu avô nem existia estrada ainda ali hoje onde é a Aldeia Itaparanã do povo Mura. Então, nesses anos, quase um século ali, tem vários lugares do Rio Itaparanã que foi povoado pelo meu povo, em vários lugares foi povoado pelo meu povo. Ali perto da cachoeira, que fica aproximadamente a uns 120, 125 quilômetros da BR de onde hoje é a nossa aldeia. Então, toda essa parte do Rio Itaparanã foi ocupada para nossa subsistência, na produção do extrativismo, castanha, açaí, alguns óleos vegetais, como copaíba e andiroba, e a pesca e caça para a alimentação, para o mantimento do meu povo por todo esse território. E a cada lugar tem um pouco da nossa característica, da nossa história desde o meu avô, escrita ali em cada localidade, em cada castanhal, cada cachoeira e cada igarapé tem ali um pouco da nossa história, da nossa sobrevivência ao longo desses anos que foram muito difíceis. Cada dia mais o povoamento por não-indígenas, a ocupação por não-indígenas em vários lugares ali que, inclusive, muito no nosso território. Dessa luta, que começou no final de 1999 pra 2000, onde a gente teve o primeiro acesso com a Funai, que a gente teve o primeiro contato ali com a Funai, onde nós começamos a reivindicar ali os nossos direitos, passamos a conhecer ainda direitos que nem ainda tínhamos conhecimento. E a partir desse contato, nós tivemos contato com o movimento indígena, ali foi criada a organização regional, no qual nós fazemos parte da criação da Organização dos Povos Indígenas do Alto Madeira, que é a OPIAM, que representa os povos ali do Alto Madeira. E a partir dali nós começamos essa trajetória de reivindicar a área, a nossa, a demarcação, o reconhecimento pelo governo da demarcação do nosso território tradicional como __________, porque já era uma área, já é uma técnica, é ocupada tradicionalmente, que já é usada por nós Mura do Itaparaná, então, mas nós queremos ali que o governo demarque o território para garantir ali a proteção do território e garantir a nossa proteção, e do nossos filhos, netos que ainda vão nascer, que ainda nem nasceram, para que a floresta não seja destruída. E todo esse tempo nós conhecemos muitas pessoas que nos deram a mão, que nos apoiaram, que foram a força que nós precisamos naquele momento para continuar, tanto aprendendo mais sobre o nosso direito, conhecendo mais, quanto nos apoiando ali na luta para conseguirmos caminhar a cada dia em momentos difíceis de luta, de perseguição, de discriminação, de ameaças, nós sempre tivemos ali pessoas que seguraram a nossa mão. Eu sou muito grato pela __________, pela __________ Almeida tenho um respeito muito grande pelo povo, nós temos ela como família, não só como parente de etnia Mura, mas como família, parte da nossa família, e tem sido um braço muito forte na nossa luta, ela, o __________, a sua família, e tem sido ali um braço muito forte de apoio em muitos momentos, que passamos por muitas dificuldades, discriminação e invasão e eles sempre tiveram ali segurando as nossas mãos. Foram ali um elo a outros parceiros, apoiadores que deram força pra nós em um momento tão difícil. Então, eu agradeço a __________ pela vida deles aí, por todos aqueles que tem feito algo por nós.
Mas voltando aí a nossa história, então, voltando a narrar minha trajetória como liderança, a partir de 2019, foi quando eu comecei a participar mais intensamente do movimento indígena e conhecer mais sobre os nossos direitos. E a partir daí eu fui indicado para ser coordenador da Organização dos Povos Indígenas do Alto Madeira, no qual fiquei ali oito anos, que foi uma grande experiência para mim, mesmo tendo pouco conhecimento ainda da causa, mas foi ali… é uma escola para mim, eu aprendi muito na questão do movimento, da luta por nossos direitos e pude contribuir de muitas formas na luta, em geral, do Movimento Indígena do Alto Madeira, representando ali os outros povos daquela região, as mais de sessenta aldeias, que agora surgiram mais outras aldeias, que representa ali todos os povos do Alto Madeira. E a partir daí fomos cada dia mais buscando conhecer e colocar em prática isso também no nosso povo, pela reivindicação dos nossos direitos, pela demarcação do nosso território, foram inúmeras cartas, nos documentos, relatórios para provocar ali o início da criação __________ para estudo e demarcação do nosso território. Ao longo da história, a gente conseguiu ter ainda uma visão assim, um olhar importante em um período quando foi enviado até um antropólogo para fazer o estudo preliminar do nosso território e aí por ocasião dali do destino, naquela situação, ele sofreu um acidente e faleceu. E com a morte desse antropólogo, os dados coletados para iniciar o trabalho de demarcação, de criação ali do__________ para demarcação acabou se perdendo e, com isso, voltamos à estaca zero ali, mas a nossa luta nunca parou, a luta do __________ e das __________ que foram surgindo, a gente então não tinha representação como organização, a gente ainda não entendia muito como funcionava essa __________ e não conseguia se organizar ali pra criar uma organização pra representar nosso povo nesse período. Então, mas mais pra frente, com muita luta, aumentaram as perseguições, aumentaram as invasões ao nosso território, aumentou o desmatamento, mas nunca em índices grandes, gigantesco igual é hoje. Está no dia de hoje, que mais pra frente vai poder detalhar sobre essa essa questão de como hoje está a nossa luta e como hoje tá a questão do nosso território com essa política anti-indígena desse atual governo que, graças a __________, está chegando ao fim nesse ano de 2022. Então aí, a partir de 2015 nós decidimos nos unir ainda muito mais, ou seja, ainda alguns indígenas do meu povo que estavam na cidade __________ estudo para as crianças. Em 2015, nós se reunimos e retornamos pra aldeia para buscar uma escola para a comunidade, para buscar desenvolver ali o nosso trabalho junto com a ajuda um do outro no extrativismo, na agricultura familiar e fortalecer a nossa base ainda mais para reivindicar mais forte os nossos direitos, para firmar mais forte a nossa ação lá no nosso território. E nesse, pra nós, foi um marco esse ano de 2015, de nós estarmos ali, um retorno muito daqueles que estavam na cidade para fortalecer ali o território, para unir força pela garantia do nosso território, para fortalecimento da identidade cultural, para resgate cultural daquilo que havia se perdido, pra reforçar a espiritualidade, a cultura aí no geral na aldeia, pra nós tomarmos completo esse ano de 2015. Aí pra já seguir pro ano de 2016 e 2017, fortalecemos, fomos conquistando as escolas pra aldeia, uma escola indígena, que até então havia funcionado uma escola, mas não era uma escola indígena, era próxima da aldeia, era uma escola rural, e aí nós conquistamos a escola indígena, conquistamos professores indígenas, do nosso povo mesmo, para estar ali dando aula, ensinando a cultura, fortalecendo a cultura, ensinando a língua materna, desse resgate cultural que nós temos vivenciado aí a cada dia. Hoje nós temos já a nossa carteira na nossa língua materna para educação ali do primeiro segmento, nós temos o nosso protocolo de consulta, que foi uma conquista muito grande em parceria com o Instituto Madeira Vivo ali, que foi uma parceria da Márcia Mura __________, onde a gente pôde construir junto o nosso protocolo de consulta com consentimento, que traduziu tudo para nossa língua e sua publicação tanto em português quanto no __________. Para nós isso é uma vitória que nunca vai ser esquecida, vai ficar na história aí a nossa conquista grande, onde nós podemos, nós mesmos dizer o que nós queremos, como nós queremos ser tratados, como que nós queremos viver, a forma como queremos viver no nosso território. Todos têm que olhar pra nós, às vezes a gente se apresenta muito forte, ali as crianças, os jovens, adolescentes, os professores, os anciões, todas as pessoas podem participar e cada um coloca um pouco de si na forma que se vê, que se compreende, que vê a necessidade, que precisa do olhar de quem está de fora, do não indígena, o respeito que precisa para cada povo. Daí no caso nosso, Mura, para nós __________ da nossa cultura, das nossas crenças, nossa espiritualidade, nossas tradições, da forma que vive respeitando a floresta, cuidando da floresta, respeitando a floresta, usufruindo dela e ao mesmo tempo cuidando dela para garantir às futuras gerações a existência, não só para o nosso povo, para que toda a floresta contribua pra toda a nação. E foi muito importante pra nós essa questão do qual... nesse mesmo período também foi uma conquista muito grande, onde nós conseguimos realizar nossa assembleia e criamos a nossa organização __________, que hoje nos representa juridicamente. Foi uma conquista muito grande para nós, a criação da __________, e trouxe para nós, assim, mais força pela luta pelo nosso território. Conseguimos ter mais espaço, conseguimos ali a caminhar mais, ter um olhar diferente, principalmente no Ministério Público, que parceria… ter sido parceiro em muitos momentos da nossa trajetória e muita coisa que tenha conquistado tem tido a influência do Ministério Público Federal, que tem acompanhado a nossa história, nossa luta pelo nosso território, pela garantia do nosso direito, pra acabar com a discriminação, para acabar com a perseguição, para acabar com a invasão, para acabar com o desmatamento, para acabar com a extração de madeira ilegal, pesca predatória, com a caça ilegal. E a cada momento nós temos feito muitas cartas de denúncia contando, registrando em fotos e vídeos e contando tudo que tem acontecido nesses anos, quantas invasões, quantas destruições no nosso território, mas até então nunca foi tão grande quanto a partir de 2019. De 2019 pra cá, a invasão no território aumentou intensamente, de forma, mesmo, assustadora, porque antes eram poucos lugares, ali, mais disfarçado, como a gente, nós compreendemos, mas a partir de 2019 nós entendemos que muito foi pelo incentivo do atual governo, que foi a razão com que motivou grileiros, invasores, madeireiros, fazendeiros de outras regiões a invadir o território no Amazonas. O nosso território foi impactado muito de frente com a invasão que vem ali de Rondônia. Pelo sul do Amazonas, de Rondônia. Então, nós... foi muito difícil. Queria então... a partir de 2019, como já falei, a invasão aumentou muito, foi de forma, mesmo, assustadora, o desmatamento, as invasões, os invasores perderam o medo e a destruição do nosso território foi de forma gigantesca, a gente não conseguiu nem acompanhar mais as tantas invasões, não demos conta mais de monitorar e fazer denúncia de todas, a gente não conseguiu acompanhar. Ficou muito perigoso, aumentaram as ameaças e as intimidações. E com armamento liberado, as pessoas perderam assim o medo de andar com armas, então passaram a tanto andar armado quanto exibir suas armas, e foi uma coisa bem… muito ruim, porque para nós trouxe um impacto muito grande. Nossos castanhais sendo invadidos, sendo desmatados, centenas de castanheiras sendo derrubadas, jogadas no chão, queimadas e nenhuma providência foi feita contra isso. Nós denunciamos por algumas vezes, várias cartas encaminhamos para o Ministério Público, a MPF, com registro, com vídeos mostrando as derrubadas, coordenadas de GPS com fotos e mesmo assim nós não conseguimos, nesse governo, ver ninguém sendo responsabilizado por isso. Atrás da aldeia mesmo, desmataram uma grande área durante meses. Falo meses porque foi mais de um mês ali a motosserra derrubando muitas árvores, muitas castanheiras dos nossos castanhais foram derrubadas. Castanheiras que para nós, para o meu povo, é uma árvore que é sagrada pra nós e isso, pra nós, foi muito agonizante ver, muito triste acompanhar de perto, não ver ninguém sendo responsabilizado e não conseguir parar ali a destruição da floresta, principalmente das castanheiras. Lugares sagrados para nós, como o __________, além de uma parte ter sido destruída por uma empresa que faz manutenção da BR 230, de caminhões com a insígnia do DNIT [Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes], e destruiu grande parte da nascente, do qual mudou a água de um igarapé, que para nós é sagrado, da onde nós fazemos nossos ritos sagrados de cura, da nossa espiritualidade, então é muito forte ali a nossa crença naquele lugar, na natureza, naquela água e trouxe um impacto muito grande para o meu povo. E pouco foi feito. O Ministério Público ali teve acessos a denúncias, cobrou providência da Polícia Ambiental, da Polícia Federal, teve multas, teve pessoas que foram responsabilizadas quanto a questão de extração de cascalho ilegal, que para nós foi uma vitória. A gente vê que parou ali aquela destruição por conta da nossa luta. Teve até algumas reportagens que foram feitas, de denúncia, que foi feita a nossa cartografia social lá da nossa comunidade, no qual denunciou também, e teve participação de parceiros, como o Instituto Madeira Vivo, como a Universidade Federal do Amazonas. Até a __________ nos acompanhou, participou ali da nossa cartografia também. E isso, pra nós, foi muito importante. De paciência é muito importante, trouxe mais esperança para nós. Mas aí com a chegada desse governo, o desmatamento sobressaiu, aumentou, a destruição foi pior ainda do que já tinha acontecido em anos anteriores e mesmo nós acompanhamos grandes partes, denunciando, não teve resultado. Na parte atrás da aldeia e na parte do outro lado da aldeia, descendo o rio, todos foram invadidos, os nossos castanhais. Na beira do Rio Itaparaná, onde nós usamos para pescar, para caçar, para ir até os castanhais, onde estão as nossas canoas, onde nós usamos o rio, é essencial para nossa sobrevivência, é essencial para proteção dali do peixe, da caça, da natureza em geral e tudo emplacado na beira do rio, com placas de fazendas proibindo caça e pesca e isso pra nós também foi muito doloroso ver isso, nesses anos, nesse governo, tanto descaso com a floresta, tanto descaso com a natureza, crueldade para com a natureza, tanta crueldade e descaso com nós indígenas, com nossos costumes, com nossas tradições, com nossa luta. E temos vivenciado de frente, passado por essa situação que pra nós é muito difícil e não vemos nada sendo feito, e a cada dia a floresta caindo, o rio secando mais e nada sendo feito pra mudar isso. Nossos direitos, cada dia vem diminuindo nossos direitos, cada dia sendo esquecidos, mesmo eles já estando garantido e assegurado na Constituição Federal, mas ignorado por esse governo, esse retrocesso grande que foi para nós, indígenas, esses anos que para meu povo foi de terror. E agora, no final de 2022, a gente pode olhar e ver o tamanho da destruição que foi causado por madeireiros, por grileiros de terras, por invasores, até mesmo por alguns fazendeiros também que invadiram e as centenas e milhares de caminhões, de toras, de madeiras que saíram ilegalmente ali de dentro do nosso território. Árvores centenárias, milenares. Eu entendo que elas têm mais de mil anos de existência, aquelas árvores gigantescas, tudo vindo ao chão para sustentar o comércio de madeira ilegal e nós não podendo fazer nada por causa que tudo que nós usamos como arma pra trazer – frear isso - responsabilidade para aqueles que estavam cometendo, infringindo a lei com esses crimes ambientais, não aconteceu nada. E foi muito difícil para todos nós ver tudo isso acontecendo, ver a floresta queimando, ver os animais morrendo queimados, vendo os animais tendo que fugir para outros lugares, porque ali, seu habitat, foi destruído. Vendo o rio, que nesse período se torna intrafegável, não dá mais pra navegar, porque está secando muito devido aos danos do desmatamento, que está acontecendo no nosso Amazonas e no nosso território em específico. Nosso território, é muito grande a destruição da floresta e nós tentamos até internacionalmente denunciar em algumas reportagens, no documentário que foi feito com… da Itália, da França, nos Estados Unidos mesmo, e até hoje a gente não conseguiu ter muito resultado. Mas, para nós, tudo que nós fizemos, eu sei que você tem experiência para nós, como lideranças da aldeia, como professor da aldeia, como adolescente, a criança que hoje tem acompanhado e no futuro nós sabemos que todo nosso trabalho pela nossa luta e todas as conquistas que nós conseguimos, elas não vão parar por aí. E essa entrevista aqui, para mim é muito importante, porque eu sei que vai ser algo que vai ficar aí eternizado, de gerações em gerações vão poder conhecer a nossa luta, a nossa trajetória da nossa ocupação, do nosso território, da nossa reivindicação e nós acreditamos muito na demarcação do nosso território. E talvez, mais pra frente, não falo o famoso “talvez”, porque não sei as datas específicas, mas acredito que muito breve nós vamos estar aí festejando, comemorando o nosso território demarcado, garantida a demarcação e nossos direitos como povos originários sendo vistos com os olhos diferentes, não só pelo governo, mas pela própria sociedade, com a importância que nós, povos indígenas, temos pra natureza, pros rios, pra floresta, pro Brasil. Na realidade, o Brasil todo é território indígena, todo o Brasil foi ocupado pelos povos nativos, nós já habitávamos, nossos ancestrais já habitavam aqui muito antes da invasão do nosso país. E como todo, como indígena, o brasileiro nato, nós precisamos cada dia mais olhar, compreender a nossa história, a nossa missão, o nosso objetivo, fortalecer a nossa cultura, a nossa espiritualidade. E eu sei que as pessoas lá fora vão poder olhar para nós e ver com um olhar diferente, respeitando as nossas tradições, respeitando as nossas crenças, os nossos costumes, a nossa cultura, que não pode jamais morrer. Garantir a existência dos povos indígenas, garantir a sobrevivência de nós, indígenas, de nós longe da floresta, garantir a natureza, garantir os rios, garantir os animais, a existência da natureza do nosso país, da nossa Amazônia e dos territórios indígenas. Eu não... um pouco só dentro da nossa história, da nossa luta, que nós lutamos e enfrentamos todos os dias. Hoje já conquistamos muito, temos atendimento de saúde na aldeia, conquistamos algumas estruturas pela organização, com apoio de parceiros, nós temos nossa escola até, pelo menos agora, o primeiro segmento, mas lutamos para que em breve tenhamos um ensino médio diferenciado, específico, conforme os nossos costumes, conforme as nossas tradições, e isso pra nós é muito importante.
P/1 – Nemenguere, Handech. Nemenguere por essa partilha. É, realmente, dói muito na gente ver os nossos parentes árvores, nossos parentes floresta e rio passarem por tudo isso, porque nós somos parte de tudo isso, não estamos desligados. Você trouxe aí toda uma memória de luta, de resistência, em defesa da vida, em defesa do território. E agora eu gostaria de fazer algumas perguntas relacionadas diretamente a você. Gostaria que você falasse um pouco mais sobre o seu nome indígena, como foi escolhido o seu nome. E você já falou que é do povo Mura __________, mas se quiser falar, explicar melhor também, pode explicar. Falar do lugar em que você nasceu, se te contaram como foi o dia do seu nascimento. Se puder falar um pouco sobre isso.
R – É importante, né? Foi muito bom __________ colocar essa parte. Pra nós, na nossa busca pelo resgate cultural, pela nossa ancestralidade, daquilo que muito se perdeu com a invasão do nosso Amazonas… Nós, Mura, habitávamos grande parte da Amazônia, do Amazonas e com a invasão, muito se perdeu. Muito se perdeu da cultura, se perdeu da língua, se perdeu das tradições, da história do povo Mura. Pouco hoje se tem escrito do passado, sobre nossos ancestrais, e para nós, nós nos sentimos privilegiados por __________ por ele ter trazido para nós essa espiritualidade, ter trazido para nós, reviver - não sei se é essa a palavra - a oportunidade de reviver, de trazer da ancestralidade muito do que se perdeu, dos nossos costumes, das nossas tradições, da nossa cultura. Então, eu, o meu nome cultural, ele para mim foi dado por __________ pra nós é um espírito de __________ ele é tão intenso para nós, a nossa crença, a nossa fé é tão intensa para nós que nós vivemos na prática e sentimos no nosso corpo físico toda a nossa essência, que ela traga de volta pra nós de forma tão real, tão clara, para nós, como esse diálogo que nós estamos tendo aqui. Sentimos a floresta, sentimos os animais, sentimos a natureza, dentro, de forma muito intensa, muito intensa. Então, meu nome Handech significa “um coração puro”, Wakanã já é mais relacionado à questão da minha função, da espiritualidade, é uma espécie de, assim, no português, traduzido, de sacerdote, um líder espiritual, que eu também sou ______, pra nós é um poder de autoridade, ou seja, uma autoridade espiritual, que significa “aquele que se move dos dois lados”, ou seja, a compreensão do espiritual e do físico _______ naqueles que são escolhidos pra ser ______. E o nome foi dado a mim, não foi por questão cultural, mas espiritualmente, e pra mim isso foi muito lindo, porque quando eu recebi o nome mudou muita coisa na minha vida, mudou muita coisa no meu, na minha forma de compreender, de ser e de me sentir. Era como se algo... como se fosse não, foi algo que a partir daquele momento me trouxe um entendimento assim na hora. Não foi um dia, um processo de vários anos aprendendo, foi como se tivesse colocado em mim, naquele momento, a essência do que eu sou. Eu falo assim: “Como se a grande gravasse um pen drive ali, umas fotos __________”. Então pra mim foi muito lindo o que aconteceu comigo, muito intenso. E a cada momento, vem trazendo mais da nossa essência, da nossa cultura, dos nossos ritos __________ ali que é tradicional nosso, que significa “a festa de passagem”. Ela é feita ao adolescente ou jovem no período em que ele adquire maturidade para assumir novas responsabilidades, ele mesmo, então ele mesmo vai tomar suas decisões. É uma festa muito intensa e muito importante que demonstra do nosso ser ali, do nosso interior, aquilo que vivemos. Tem o __________, que é o casamento tradicional, umas das tradições muito importantes que acontece no meio do nosso povo e foi o resgate assim, algo cultural trazido para nós de volta, pra nós vivermos não só um rito de exibicionismo, mas é algo real, que a partir daquele momento passa para nós e nós acreditamos tanto, faz parte de nós ali a língua, os rituais, os rituais de cura, a água, a floresta, a medicina cultural, ou seja, os remédios naturais, para nós, que têm sido muito intensos, novos remédios que não são conhecidos pela ciência nem pela população, de plantas nunca conhecidas, de plantas que não conhecidas como medicamentos. O nosso __________, que é a nossa bebida tradicional, muito forte, muito intensa. O __________ é algo muito lindo da nossa vida. O nosso __________, que é semelhante ao rapé em aspecto físico. É muito parecido com o rapé o nosso __________, mas a representação para nós é muito diferente, nós não usamos o __________, por exemplo, só por usar, de forma aleatória assim, usamos o __________ somente em ocasiões muito especiais, em processo de cura, para celebrar, a gente usa para celebrar, assim como o __________ também, e para nós é muito sagrado, a gente não usa de qualquer forma e nem compartilha de qualquer forma para alguém. Não que a gente não queira que a pessoa use tudo aquilo que é bom, muito bom para nós, que tem lá, mas é até mesmo na questão de se é bom para ela ou se não é, porque tem coisas que parecem ser boas pra alguém, mas não é. E aí depende também muito da espiritualidade, do __________, daquilo que recebemos e acreditamos que é real para nós, é muito real para nós assim. Não sei se eu respondi tudo ou se eu pulei alguma coisa, se eu acrescentei outras. (risos)
P/1 – Nemeguere. Sempre responde ainda mais do que é perguntando, isso é muito bom, isso é ótimo. Te ouvir é sempre uma grande experiência de aprendizado, agradeço imensamente, primeiramente, a __________ por isso.
R – Algo importante também, nessa intensidade, é a primeira vez que eu estou falando desse assunto assim. A gente guarda muito pra nós mesmos. Mas com essa intensidade, é a primeira vez que estamos compartilhando, é algo histórico, algo que para nós é muito sagrado, isso é nosso, ali, que tem cuidado de falar, para falar muita coisa para alguém sobre isso, mas hoje tá sendo diferente, muito diferente pra nós.
P/1 – Nemeguere. Por isso que eu estou agradecendo __________ por isso, porque se ele tá permitindo é porque vai ser importante para nós na nossa luta. E gostaria só que se tu for, se for, tipo assim, não causar nenhum problema, se for possível, você puder falar do teu nascimento biológico, quando foi que tu nasceu, onde nasceu e se te falaram alguma história sobre esse teu nascimento biológico. Se for possível. Se isso não fizer sentido para você também, não precisa falar.
R – Tudo bem, eu vejo que não há problema. Eu estava até comentando esses dias pros meus parentes sobre algumas situações, tem muita coisa da minha infância que eu não lembro, como, alguns flashs, até mesmo a adolescência, como se algumas coisas tivessem sido deletadas da minha vida. Mas assim, eu, meu pai, minha mãe, minha família morava no Itaparaná, ali próximo da aldeia era, nós morávamos, que hoje é Castanhal só lá, que é o Castanhal _______ . Mas quando foi pra eu nascer, minha mãe, naquela época a estrada tinha recém iniciado, não tinha transporte, não tinha ônibus, tinha alguns carros que passavam. E, enfim, meu pai e minha mãe já tinham dado _____ meus pais _______ muito no turismo no Rio Itaparaná. Desde _______ Solimões, da época do Solimões, a época do meu avô ainda, do ______ de madeira, pro Solimões, da migração pro Solimões, depois pra Itaparaná, do Purus pra Itaparaná. Então aquela região do Purus ali, meu pai andou muito com meu avô, até acima de hoje onde é Lábrea. Tem um rio conhecido como Rio Siriquiqui, que fica acima de Lábrea, que meu pai passou um tempo por lá, meu avô ______ por lá. Inclusive, eu tenho até uma irmã que nasceu lá nesse rio, na cachoeira do Siriquiqui. Então meu pai e minha mãe passaram por Lábrea, pelo menos meu pai me contava que ele ia de Lábrea pra Tapauá, que naquele tempo nem era Tapauá ainda, não existia a cidade, ele veio na canoa, descendo o rio, e quando anoitecia, que ele tinha remando com a família dentro da canoa, que nós, Mura, assim, sempre foi a nossa história, de canoa, né? Não dá para contar nossa história se não falar de canoa. E então durante o dia ele remava e durante a noite ele colocava a canoa no meio de uma __________ e deixava descer o rio. Ia descendo por _______ que ia baixando. Acredito que algumas pessoas que viram já esse fenômeno quando enche o rio, algumas __________ de se desprende das beiradas e desce ali como se fosse uma ilha pelo meio do rio, ali, descendo, e vai embora, descendo o rio. Então, acontece muito quando iniciam as cheias, no rio grande aqui da nossa região. E aí ele colocava a canoa no meio __________ pra não ter risco de uma balsa, de um navio, porque naquela época andava, passava por cima dele ali, que era, tinha cuidado, colocava ali. Então meu pai conhecia a cidade, naquela época ali não tinha nenhum tipo de assistência. Antes não tinha estrada lá, depois que teve a estrada, teve o acesso pra essa cidade, eles contaram.
Quando eu fui nascer, a minha mãe foi pra Lábrea, levaram ela pra Lábrea, e eu nasci no município de Lábrea e depois retornei para aldeia novamente, que até então não era hoje onde ela é localizada, na base da estrada, mas era lá para baixo no rio, ali mais ou menos em linha reta uns oito quilômetros de distância de onde passa a BR. Eu tenho lembranças ainda da minha infância lá, eu tenho coisas muito importantes assim que eu lembro, que foram coisas que nunca minha família esqueceu, meus parentes esqueceram, da nossa vivência ali no rio. E eu nasci no ano de 1978, eu sou do dia 28 de outubro de 1978. Eu fiz, recente, agora, 44 anos. Eu pensei que tava fazendo menos, mas chega um período que a gente não conta mais. (risos) E foi assim. Meu pai não sabe a origem do sobrenome que nós temos no nosso documento, ele me contou, contava pra nós que ele tirou documento, já tinha mais de quarenta anos quando tirou o documento, ele não tinha dados de documento algum. O que ele falava pra nós é que na época que ele morava ali no Purus, teve a visita dos padres, no qual tiveram contato com a mãe dele e fizeram um batismo: nesse batismo que colocaram um sobrenome. O único papel que ele tinha era o papel de batismo da minha avó, então por ter esse sobrenome lá, que a gente entende hoje, por conhecer que eles faziam isso, os padres davam sobrenome pra tentar levar o índio a viver igual - como é a palavra certa? -, de introduzir na sociedade daquela época. Largar a cultura, largar os costumes e serem vistos como pessoas que não eram de origem da floresta. Então hoje a gente sabe isso, naquela época a gente não sabia. Então foi um único documento, ele não sabe explicar de onde veio, ele sabe que não tinha documento algum, nem ninguém dos meus ancestrais, do meu povo. Meu avô morreu e ele não tinha nenhum documento, não tem nada sobre ele porque ele não tinha nenhum documento. E a partir dali foi ensinado para nós que era necessário o sobrenome, ter essas coisas, que hoje a gente entende que isso, nada disso, para nós, indígenas, é importante, pra nós é importante a nossa origem, o nosso clã, o nosso povo, a nossa essência que nós trazemos da floresta, que não dá para apagar isso de nós. Para nós é importante isso, porque a gente ainda acredita muito, nós acreditamos muito que um dia nós ainda vamos conseguir colocar os nossos nomes mesmo, só os nossos nomes tradicionais, da nossa etnia, do nosso povo, nosso clã para identificar ali. E esses nomes que a gente não sabe nem da onde veio para nós, isso daí não tem mais importância. E é de consenso geral de nós lá da aldeia, esse entendimento.
P/1 – Nemeguere Wakanã Handech. Você poderia falar um pouco sobre a sua mãe: como você descreveria sua mãe, qual o nome dela, como você descreve? Pode descrevê-la? Enfim, falar um pouco da origem dessa parte da sua família, se for possível.
R – A minha mãe já é de outro povo. Hoje ela se declara Mura mesmo, porque ela convive conosco, mas ela é, de sangue, Apurinã. A minha avó era Apurinã e era misturada com outro povo chamado Caixarari, que é lá do Purus. São povos vindos do Purus, que foi onde o meu pai conheceu a minha mãe, lá, andando, peregrinando pelo Purus. A minha mãe, hoje, é uma liderança tradicional pra aldeia, pra nós ela é fonte de inspiração, para nós, a luta dela é muito grande. Ela não tem instrução de escola, nem conhecimento de escola, ela não sabe ler, ela não sabe escrever, mas ela entende muito pelo o que ela ouve, pelo o que ela vê e muitas situações ela fala muito melhor, consegue compreender muito melhor do que muitas das vezes de quem até estudou. Isso aí é muito lindo dela. E ela, pra ela, a luta pela garantia do nosso direito é muito importante. Ela foi, para nós, um exemplo muito grande, muito lindo. Ela foi a que se esforçou mais pra que a gente pudesse estudar, para se igualar a nível de conhecimento, para lutar pelos nossos direitos, pra ter oportunidades de conhecer, estar em outros lugares. Explicando da forma que ela passa pra gente: a luta dela antes é o que a gente entende que ela queria, que ela queria para nós, que ela quer pra nós. E hoje ela tem vida ainda, a minha mãe tá com 63 anos. Ela não mora com nós, na aldeia, mas ela mora próximo da aldeia, em uma outra aldeia. Não convive com outros parentes, mas um pouquinho afastada da aldeia, mas em outro território de parentes Apurinã. Mas ela tá sempre com nós na aldeia, sempre está lá conosco, participando da luta, das reuniões, do movimento, nas festas tradicionais, que é algo pra nós muito importante, ela faz muita questão de ir, estar ali no rio bebendo, compartilhando o conhecimento dela, tudo aquilo que ela aprendeu e partilha com nós, filhos, com os netos, e vivenciando lá os momentos. Ela faz muita questão de estar. Pra nós é um aprendizado muito grande ela estar junto. O nome dela em português é Raimunda e ela não desistiu mais da luta, da nossa trajetória, conquista pelos nossos direitos, pela garantia dos nossos direitos, pela demarcação do nosso território. Pra nós ela nunca parou de lutar. Ela tem tido alguma dificuldade... esses dias mesmo ela esteve lá no Maranhão, se não me engano, foi uma palestra, inclusive, e foi organizada pela Universidade Federal do Amazonas, e ela trouxe muita coisa de lá pra nós, da experiência dela lá e de poder compartilhar da nossa luta, para ela, que nós temos, com as pessoas lá naquele lugar, para ela foi muito importante. E aí os materiais que ela adquiriu lá, para trazer, e apresentar na aldeia faz com que o nosso entendimento… a gente observa ela, que ela se sente ali ainda uma jovem na luta, com muita força e vigor, mesmo já estando de idade avançada pra lutar por aquilo que ela acredita, que é melhor pra nós, porque é, porque é o nosso território, porque são os nossos direitos que são esquecidos.
P/1 – Eu sei que está difícil se concentrar aí. (risos) É mais importante olhar pra __________ do que olhar pra mim, né?
R – (risos) É porque, às vezes, quando eu converso, às vezes eu tenho uma mania de conversar olhando pro outro lado, converso com a pessoa olhando pra baixo, às vezes. É um hábito que não é bom às vezes, né? (risos) Parece que quando eu estou falando, parece que eu estou falando __________ naquele momento e eu começo como se estivesse vendo, mas não estou olhando pra pessoa. Estou contando e estou vendo o que está acontecendo, aí eu me distraio. (risos)
P/1 – Da próxima vez eu chamo a __________ aqui, pra cá, pra ficar. (risos) Então, você já falou do seu pai, você inicia essa narrativa falando do nome dele, falando da importância dele pra toda essa luta que vocês estão dando continuidade aí, em defesa do território. Contando toda a importância que ele tem. Mas, de toda maneira, se você quiser falar mais alguma coisa sobre ele, sobre seu pai. Você já falou também como eles se conheceram, seu pai e sua mãe, mas se você quiser retomar e fazer esse comentário, sobre seu pai, sobre esse encontro deles dois, fica à vontade.
R – É muito forte, né? Papai estaria fazendo agora, dia cinco, ele estava completando mais um ano de vida. Então é muito importante pra nós lembrar dele, como foi pra nós… até uma palavra que a gente vê que foi real mesmo, que foi ali pelo __________ que ele trouxe a __________certa pra ele afirmar o que ele fez nos últimos dias dele. E ali no nosso território… ele demarcou o nosso território com o corpo dele ali. Ele é enterrado lá no __________, que para nós é um lugar sagrado. E lá ele foi o único a ser enterrado lá, naquele lugar. E a luta dele, para nós, nunca vai ser esquecida. As palavras dele, que às vezes não eram nem compreendidas, mas que tinha sabedoria da luta dele pelo território, pela natureza, __________, dos animais, das plantas, dos rios. Para nós isso aqui fortaleceu ainda mais, se fortaleceu ainda mais aqui dentro de nós, a essência do que ele acreditava e o que ele lutava: pela garantia do nosso território, pela proteção da natureza, proteção dos rios, proteção dos animais, da floresta. Pra nós, ele sempre fará parte de cada um de nós, vai sempre... As ações dele no sentido, principalmente nesse sentido da reafirmação da luta pela garantia dos direitos, pra nós é muito forte. Como pai, essa parte pra nós é muito forte, porque ele foi sempre um exemplo para nós, tentou nos ensinar o certo, o correto. E ali com a minha mãe, os dois, eles viveram ali, a maioria do tempo, no Rio Itaparaná. Ali onde hoje é nossos castanhais. Alguns lugares já foram invadidos, mas eles moravam, eles começaram ali por um lugar chamado Tartaruguinha. A minha mãe sempre foi ali da boca do rio, os pais dela moravam ali na boca do Rio Itaparaná, lá próximo de Ipixuna, que é também território indígena Apurinã. Hoje tem o território indígena Apurinã demarcado, tem uma área reivindicada lá também, no Rio Itaparaná, ali. E a partir daí, veio nós e também a possibilidade de __________ muitos parentes, que moram no rio. Tem muitos parentes nossos que são Apurinã, parte da minha mãe, e ali tem castanhais perto da gente, que também ocupa uma parte do território ali, indígena Apurinã, que fortalece esse vínculo, a união dos povos. Hoje nós temos parentes Mura que são casados com Apurinã também. Essa união Mura com Apurinã nasceu no __________ (risos) Os Mura __________. E hoje nós ocupamos ali o território, uma área que nós reivindicamos, é uma área que soma no total de mais de quatrocentos mil hectares de terra. É essencial a proteção ali do rio, a proteção da nossa existência, para proteção ali das áreas __________ de área de conservação ambiental, que fazem parte ali, duas áreas ambientais, áreas de conservação ambiental, até sobrepondo o nosso território, uma parte. Tem também proximidade com os parentes Juma, que ficam próximos ali do nosso território e dá proteção a mais ao território deles, que hoje eles também sofrem invasões lá, dentro do território. Pra nós isso é muito importante. Tudo isso começou a partir dele, a partir da luta dele, dele não desistir, dele acreditar, dele ensinar nós com o seu exemplo, com o seu testemunho. E nós continuamos a luta dele, a luta da minha mãe e dos demais povos indígenas ali, Mura... povos da floresta, né? Ali no sul do Amazonas, no Alto Itaparaná, no município de Canutama. Eu sei que nós vamos conseguir o nosso território demarcado, a gente vai festejar muito ainda.
P/1 – Nemeguere. Handech Wakanã, e seus irmãos, irmãs? Você pode falar um pouco sobre eles? Quem são, o nome deles, como é a relação de vocês.
R – A nossa relação familiar com meus irmãos é bem tranquila mesmo, colocando pra, em forma de porcentagem, 99%, assim, falando. A gente vive juntos, 99% dos irmãos vivem juntos. Tem também a parte, meu pai teve uma outra família antes, nós temos também três irmãs que são só por parte do meu pai, que hoje estão, se uniram na luta, na causa e tem alguns deles que moram com a gente na aldeia também, que somam também. Agora estava até o __________ aqui comigo, que soma também na luta, ali junto, na aldeia. Outros estão ali fora também, apoiando na causa, assumindo a sua identidade. A filha mais velha do meu pai, que é a Cacique da aldeia, Maíra, ela é a Cacique da aldeia. E morava ali embaixo na boca do rio, inclusive eles moram, eles têm até casa em Itapoá, mas têm mais dentro do rio, a localidade dentro do rio. No Itaparanã mesmo, lá embaixo. Agora, final de ano, ela está retornando pra aldeia pra continuar ali com sua função de Cacique, no qual a gente, nós, como lideranças, que já temos mais uma experiência, vamos participar ativamente ali na preparação de__________ importante da liderança tradicional pra fortalecer mais a nossa causa. E os demais, nós nos unimos pra lutar por uma causa, vivemos todos coletivamente, juntos, lá na aldeia. Só as casas de dormidas que são usadas individualmente, cada um ali tem o seu lugar para dormir, mas a nossa cozinha é coletiva, como você conhece lá, nós tomamos café, merendamos __________, trabalhamos no trabalho coletivamente, na roça, no extrativismo, na pesca, na caça, tudo e pra todos. Mas aqui temos uma dificuldade, teve um tempo na nossa vida que a gente se repartiu, um estava na cidade, outro estava estudando, outro estava na aldeia, outro estava em outro lugar e ainda aconteceu que, como eu iniciei falando, em 2015, nós retornamos ali para aldeia, nos unimos mais e somamos segurando a mão do outro, pela garantia do nosso território, pela garantia do nosso direito, pela construção de infraestrutura na aldeia, nas casas, saneamento básico, agricultura familiar. Algumas culturas que a gente planta lá, para nossa alimentação, mas ainda nós não cultivamos nada para beneficiar o comércio, para venda, para comercialização. Tudo que nós produzimos é para o nosso mantimento na aldeia, ou seja, nós produzimos. Do que nós plantamos, do que nós colhemos na natureza, somente a castanha e açaí são comercializados, os outros são pro próprio sustento da aldeia, pra mantimento da aldeia. Mas vimos que a gente produz ali em média, já produziu mais de 80% do que nós nos alimentamos na aldeia. Mas a gente tem o objetivo de produzir tudo o que nós precisamos lá na aldeia mesmo, tudo de forma natural, pra gente não precisar estar dependendo de alimentos industrializados ou que venha da cidade. Então, pra nós o importante ali é o cultural, é produzir o que é saudável pra nós, organicamente, da natureza, e daquilo que plantamos da produção do artesanato, do extrativismo vegetal, para para fortalecer aquilo que nós precisamos. A gente precisa de muita coisa ainda da cidade: ferramentas, muitas outras.
P/1 – A quantidade de irmãos, você falou tanto de irmãos por parte de pai, mas assim, quantos irmãos você tem? Irmãos e irmãs.
R – Por parte de pai, fora do relacionamento com a minha mãe, só três, mas com a minha mãe são nove. Então aí é um total de doze pessoas, doze filhos do meu pai. Que hoje já são mais de cem pessoas ali, os netos, bisnetos. Os casamentos uniram bastante gente, bastante Mura, que veio só da origem do ______.
P/1 – Handech, você gostava de ouvir histórias? Quem te contava as histórias? Se você ouviu algumas, e você pode contar alguma dessas histórias? Alguma que marcou mais.
R – Antigamente, no passado, nós não tínhamos acesso à tecnologia como temos hoje. Hoje nós estamos aqui conversando e isso aqui está longe. Então, na minha infância e até parte da adolescência também, porque não existia tecnologia. O que existia, nós não tínhamos acesso. Então a nossa forma de fantasiar era na história, as histórias contadas, de lendas, de vivências, experiências vindas da natureza, que algumas delas seria pra exemplo, outras eram muito engraçadas, que fazia, naquele momento de roda de conversa, rir. Às vezes, antes de dormir também, ali deitado, com os olhos fechados, tudo apagado, tudo escuro e a história sendo contada, imaginando tudo aquilo acontecendo. Para mim era muito legal mesmo, eu gostava muito de ouvir histórias. Então, dos contadores mais de história, era meu pai, meu pai gostava muito de contar histórias, ele ria muito também das histórias que ele contava, das experiências dele de vida no rio, de algo que alguém botou para ele, de algo que ele ouviu falar por alguém e ele guardava ali, em vários momentos ele contava para nós. É engraçado porque ele ia até mais que nós. E também tinha uma parente nossa também, que é até Maria, o nome dela, contava muitas histórias, eu gostava muito de ouvir histórias dela, que eram ali histórias de fantasia. Ela ouvia e repassava e nós ficávamos ali, eu ficava até tarde da noite, dormia ali ouvindo aquelas histórias muito interessantes. Mas as histórias que mais me atraíam eram as histórias que envolviam o sobrenatural, do que aconteceu no barreiro. Um barreiro é um lugar, da onde nós chamado de barreiro, no português, que os animais vão comer a terra que tem sal, seja ali uma nascente. E muitos são naturais, brota da terra ali aquele sal e aí vira um comedor de animais lá. Então sempre nas caçadas, a gente busca esses lugares. Hoje é feito artificialmente em muitos lugares, já é feito artificialmente, mas ainda tem muitos lugares nativos, que são a própria natureza que faz. Então tem muitas histórias que são contadas nos barreiros. Tem uma que até um parente nosso, indígena também, que ele passou por uma experiência forte. Isso daí assusta muito os caçadores, as pessoas, os caçadores, ficam lembrando quando tão lá. Que ele estava esperando a anta lá no treteiro, que é um galho de árvore que a gente procura que dá pra se sentar ou ficar em pé. Na caçada tradicional é muito usado. As pessoas usam de outras formas também. E aí, nesse período que ele estava lá, ele estava esperando a anta lá, e aí ele havia matado uma anta já e continuou lá esperando, e aí ele viu uma luz vindo na direção dele, uma luz, e apagou a luz, ele não sabe o que que era, mas ele sentiu que alguém deu um tapa nele e ele caiu de cima da árvore, no chão, que era lama e aí ele ficou surdo e é surdo. Até hoje ele não escuta... muito pouquinho do lado que ele pegou tapa, segundo ele. Ele nunca mais escutou. E esse lugar é chamado... é lá no Itaparaná, lá embaixo, no rio. É próximo lá, não é tão longe da aldeia. No inverno a gente vai mais rápido, que esse lugar é chamado de Barreiro do Mistério: nunca ninguém conseguiu explicar o que aconteceu com ele lá. Então assim, esse tipo de história me atraía muito. Tem umas que são muito fortes. Mas essa daí é algo que nunca conseguiu explicar. Ele conta que alguém bateu nele lá, ele não viu ninguém, mas ele ficou surdo, a prova de que algo aconteceu com ele foi que ele ficou surdo. E essas histórias assim eu gostava muito de ouvir, sobre o sobrenatural, o que acontecia na natureza. Vários contos. Podia ser de parentes mesmo, indígenas, e por outros, de não parentes também, ribeirinhos que moram perto, pessoas que vivem experiências na floresta.
P/1 – Tem algum motivo especial que você acha que faz com que você tenha mais interesse nessas histórias que envolvem o sobrenatural?
R – Assim, eu gosto muito do sobrenatural, eu gosto muito do sobrenatural. Não das coisas ruins, que eu sei que tem coisas ruins no sobrenatural. Mas assim, é algo que é muito... o que faz assim eu gostar, eu me atrair assim, é porque é algo que é inexplicável, é algo assim que leva a gente a fantasiar. É algo que não dá para explicar, é de muita __________ pela lógica, pelo entendimento. Sempre alguém tenta justificar, às vezes só a pessoa dormiu, mas a gente vai avaliar que aconteceu algo, verdade e teve consequências. As pessoas, sempre que afirmam, é com muita certeza de que aconteceu.
P/1 – Bom, eu tô seguindo aqui um roteiro e tem algumas questões. Sobre a questão da formação cultural, tudo que você falou até agora, tudo é conhecimento que é passado de geração para geração, que é assim que a gente vai se construindo culturalmente dentro da nossa nossa cultura indígena. Mas você poderia falar mais, por exemplo, quais são as funções culturais e institucionais da sua família?
R – São bastantes. Nós temos um calendário nosso, semanal, e nós temos pra cada função assim, tem alguém. Na questão cultural, as pessoas que são mais envolvidas no cultural são os __________, que eles atuam tanto na questão de medicamentos, quanto artesanato, quanto o ______, que tão usando na cabeça, que pra nós é proteção. Tem o __________, um poder de autoridade, que é uma proteção para nós também. Assim como a pintura, para nós também é uma proteção. Ela é diferenciada, para cada situação, e a cor também é diferenciada pra cada situação. E ali atua em várias partes. Nós temos ali, na família, Caciques: a Cacique __________, que é a nossa, a __________ é a Cacique; temos o _______, que é uma criança que ela já nasceu Cacique e está sendo preparada desde a infância pra assumir. Quando chegar na maturidade certa, como o Cacique, como a _______ pra liderar o povo, conduzir o povo ali na unidade, como nós caminhamos. Temos Pandés, temos vários Pandés, tanto mulheres quanto homens: homens são chamados de Pandés e as mulheres que são Padés, são chamadas de __________. Elas são as Pandés mulheres, que têm a mesma função, o mesmo poder de autoridade, que têm o mesmo conhecimento. E alguns estão aprendendo mais ainda, buscando mais, se aprendendo mais, desenvolvendo área de artesanato, cultural, práticas artesanais, _______, ________, as proteções, medicamentos, ali de chás e raízes. Seja qual for o tipo de medicamento e a origem dele, ali são pelos Pandés. E aí os (Haikais?), que são os guerreiros, que são aqueles que atuam na caça, são os braços mais fortes, no trabalho também, na agricultura, no extrativismo. Os __________ são os guerreiros fortes ali que atuam em vários segmentos, que é importante na nossa organização, dentro da nossa aldeia, da nossa sobrevivência, da nossa subsistência. Do trabalho que executamos, eles são de extrema importância: atuam na caça, na pesca e em outras áreas, trabalhos braçais, de agricultura familiar e extrativismo. Então são os Caciques, Pandés, os __________, que as lideranças culturais que são mais fortes, que atuam mais forte no centro da aldeia. As lideranças políticas dentro da aldeia, mas que também atua na área cultural, também atua na área espiritual, que estão ali mais para lidar com situações políticas, para reivindicações lá fora, que envolvem documentos, participar de alguma reunião ou até entrevista, como estamos aqui. Essas lideranças políticas já atuam mais assim, na forma hoje do sistema político que nós vivemos, fazendo indicações. Não que os que atuam nas lideranças tradicionais atuam só dentro da aldeia não, tem momentos que elas também estão fora para reafirmar ali o que tá acontecendo, para falar que quer, que necessita, que precisa, que quer que seja feita dessa forma, que vai lutar. ______ que hoje nós passamos pelo processo, que é o irmão do meu pai, o único irmão vivo, que é um _______ hoje ele atual mais tradicionalmente dentro da aldeia. Nós chamamos ele de Ancião, na aldeia hoje. Ele tá numa função mais de passar experiência, sabedoria, o conhecimento, até mesmo porque ele esteve com a saúde debilitada esses tempos e está numa idade bem avançada. E aí nós colocamos as lideranças mais novas pra estar atuando já, tem mais força, aprendendo na experiência da aldeia e praticar lá fora daquilo que ele tem passado para nós, quais todos são muito importantes para nós todos. Mas todos são muito importantes pra nós, todos. E os professores, que são todos indígenas da aldeia, todos são Mura, que atuam lá na aldeia. Hoje nós temos três professores, um involuntário, nós já estamos com dois anos ele atuando voluntariamente, esse é o terceiro ano que está atuando voluntariamente. Professor que a gente não conseguiu um contrato, mas não temos como ter dois professores, um daria uma matéria que atua só na questão cultural, um daria uma matéria, e outro pra dar do primeiro segmento, de crianças a partir de quatro anos até o nono ano, que não tem como desenvolver uma aprendizagem de qualidade com crianças tão pequenas em séries mais avançadas, somente com professor _____. Aí nós disponibilizamos o meu professor, da aldeia mesmo, voluntariamente, que dá aula para o segmento que é do sexto ao nono ano. E pra nós é muito importante isso. Eu sei que é um direito que o governo precisa assumir essa responsabilidade de melhorar a qualidade, de contratar professores para estar dando esse apoio, mas como nós não conseguimos essa contratação, nós mesmos, voluntariamente, disponibilizamos. E o professor aceitou de bom grado dar aula voluntariamente para ajudar a melhorar o ensino.
P/1 – Então seguindo aqui, tem algum, mais algum conhecimento que foi repassado de geração em geração especificamente para você? Você gostaria de compartilhar?
R – Muitos conhecimentos vêm passados de geração em geração. Nós, Mura do Itaparaná, a maioria de nós, somos muitos artesãos, nós trabalhamos muito com madeira. Então um dos conhecimentos tradicionais que daí eu herdei do meu avô e do meu pai foi fabricar canoas, remos, que é o _____ , paneiros, cestos. Artesanatos, os arcos, as flechas, tudo tem área de conhecimento tradicional, tudo foi algo que veio dali dos nossos ancestrais, que veio pro meu avô, pro meu pai. Outra coisa que veio da ancestralidade também foi a espiritualidade, ela veio da ancestralidade, dos nossos bisavós, do avô, até chegar em nós mais forte ainda. E essa parte para mim foi algo que veio muito forte assim da ancestralidade, do conhecimento tradicional, que é passada de geração em geração, que foi passado do avô pro neto, pro pai e agora pro neto. E cada dia tem sido fortalecido, repassado para nossas gerações futuras agora. Hoje nós temos adolescentes já como artesãos ali, que trabalham muito bem, que trabalham atuando na ______ paneiro, de cesto, de remos, de canoas e gamelas. Atuando na própria aldeia, repassando esses conhecimentos. Na espiritualidade, nós temos passado todo tempo nossas tradicionais e rituais, ali nos processos de cura, dos remédios culturais, têm sido passados pra nova geração que está vindo.
P/1 – Então, quando a gente fala de geração pra geração, desses saberes que chegam até nós, que são ancestrais, não tem como não falar dos nossos avós, tanto maternos quanto paternos. Gostaria de falar um pouco sobre eles?
R – Sim. Eu tenho conhecimento dos meus avós só de forma oral, pelo meu pai. Não conheci meus avós, nenhum dos meus irmãos conheceu os meus avós por parte de pai. Meu pai ficou órfão de mãe, ele fez cinco anos, e de pai ele tinha dezessete anos. Naquela época não tinha muito recurso e a gripe foi uma das maiores vilãs. Foi trazida pelo não indígena, que foi o que exterminou muitos povos, extinguiu muitos povos. Meu avô foi uma dessas vítimas. Morreu pela gripe, sem tratamento, porque não tinha, e ele teve pneumonia e morreu jovem ainda, e meu pai teve que viver sem ele. Mas muita coisa que meu pai me conta, me contava dele, o meu avô era pescador mesmo, pescador tradicional. Ele era muito bom, tanto de peixes pequenos como de peixes grandes, de arco e flecha quanto de arpão, que as águas eram grandes pra pescar, pra pegar outros tipos de pescado. Ele era técnico culturalmente, tinha um conhecimento cultural muito grande, então o pai sempre falava que um dos filhos dele tinha que nascer com o dom do pai dele, do meu avô, assim, de ter facilidade mesmo pra… tradicional assim, na caça e na pesca. Desenvolveu conhecimentos muito bons pra pegar o peixe, porque isso é um conhecimento tradicional lindo, que não é fácil de adquirir, de obter. Não é uma pesca da forma que hoje nós vemos, com rede, é da forma do indígena, uma pesca tradicional mesmo, com conhecimentos e com grande resultado. Essa é uma das coisas assim que ele contava pra nós, muito forte, do meu avô, da força dele no artesanato, na confecção dos arcos, das flechas preparadas pra cada situação. Meu avô introduziu uma flecha pra cada tipo de situação: pra pesca, caça, ______ . Então ele usava para cada tipo, na calçada ele tinha para cada tipo de flecha. E a gente sabe que é assim mesmo que tem que ser, senão a gente não consegue.
P/1 – Isso aí. Fiquei lembrando do seu Nelson _____ contando sobre isso também. Na tua infância, você disse que não lembra muita coisa da infância, mas ficou algumas memórias assim especiais que você traz consigo da infância?
R – Como eu falei, tenho alguns flashes. Tenho memórias do rio, da gente morando no rio, lá no Itaparaná, tenho memória da cidade, mas bem pouca da cidade. Do que eu tenho é mais de acidente, quando aconteceu mesmo com uma irmã e um irmão meu. Eles se machucaram e eu tive que ir até a minha mãe correndo pela rua para achar ela, para ver, para resolver a situação. E da aldeia eu tenho poucas lembranças, mais no rio, morando no rio, algumas situações de pesca, de caçada do meu pai e eu ficar esperando ali na canoa, sozinho. Ele me deixava pra ir atrás do _______ e eu ficava ali sozinho esperando. Eu lembro dessa imagem mais do que falando pra mim, em ficar lá quietinho até ele retornar com a caça. Em outra situação, ele me deixou na beira, mas não era longe da aldeia, era perto, perto da estrada. Foi à caça e me deixou quietinho, quando ele voltou, eu não estava lá. Aí ele entrou meio que em desespero, achou que eu tinha caído dentro da água. Na realidade, eu voltei lá pra aldeia, já era aqui na estrada, passei por uma ponte. E ele começou a gritar alto ali, me chamando e conseguiram ouvir o grito dele de dentro da aldeia, que ele estava desesperado, e eu estava lá na aldeia. Aí ele pensou que eu tinha caído dentro d’água, que tivesse acontecido alguma coisa. Eu era muito pequeno, devia ter uns cinco anos de idade nessa trajetória. Outra foi uma viagem no rio inteiro com meu pai, nessa viagem só foi eu com ele e mais duas pessoas, mas não foi ninguém mais da minha família, dos meus irmãos. Mas foi uma experiência muito linda, que eu tenho uns flashes de memória de ver uma onça cruzando na nossa frente, no rio. Foi a primeira vez que eu vi uma onça de perto, de pertinho. Já vivi muitas situações dessas aí, mas essa daí eu era criança ainda, muito criança, eu lembro que eu fiquei muito admirado com aquela onça pertinho ali da gente. Nós fomos visitar os parentes que moravam na beira do rio, em várias localidades, nós conhecemos. Tenho lembrança de um lugar que eu não consigo identificar como era, mas era o que a gente chama de estirão, é uma reta grande do rio. Estirão grande assim, e lá no final, via aquelas árvores, aquela névoa, aquela neblina ali, aquela cena muito linda de manhã cedo. Eu lembro de criança dessa imagem lá no rio. Então tudo o que tem ali naquele rio, na natureza, grande parte que está intacta ainda, faz parte de mim, faz parte não só de mim, mas de nós, Mura do Itaparaná, e tudo aquilo que está ameaçado pra ser destruído, está sendo destruído em partes. Esses dias nós fizemos uma viagem no rio inteiro _________ eu até te mostrei os vídeos, ali no rio, grandes partes intactas, falando sobre a ameaça do desmatamento, a estação de madeira. Aquilo ali é um paraíso que pode a qualquer momento ser destruído, porque está avançando muito próximo, grande parte já foi destruído, mas ainda tem uma parte que tá intacta, que a gente quer lutar para que ninguém consiga destruir aquilo ali. Para nós, destruir ali o rio, destruir a mata, a floresta, é destruir nós, é matar nós, acabar com nós, porque tudo que tem ali faz parte de nós. Tudo: os rios, a floresta, as castanheiras, os animais, as plantas. Tudo ali precisa ser protegido.
P/1 – Vamos lá, vamos em frente. Tinha alguma brincadeira que você gostasse muito? Quais as brincadeiras que tinha na época da sua infância? Se você lembra também da casa onde passou sua infância, como era essa casa, se tem imagens na memória sobre ela. Enfim, como era o lugar onde você vivia na infância, descrevendo um pouco mais.
R – Dessa parte eu lembro de muitas coisas boas. Para mim a melhor brincadeira que tinha, que existia, era tomar banho no rio, brincar no rio, de várias brincadeiras no rio. A gente brincava de caça, de caçador, tinha hora que a gente era o macaco, tinha hora que a gente era a anta, tinha hora que a gente era queixada, e tinham os caçadores e os animais. Tinha a brincadeira da tirica ali, que era a brincadeira de peixe, que pega o outro ali na água, no mergulho, quem é o melhor. Mergulha ali. E essa é uma das brincadeiras assim pra mim que eu mais gostava, era da brincadeira de rio. Brincar no rio, brincar de pescar, de caçar, de ser a caça, viver aquela emoção ali, pra mim não tinha nada... nós morávamos ali na aldeia e tinha os meus primos que moravam mais afastados, nove quilômetros até, mas todo final de semana nós íamos para lá. Nós íamos para lá na sexta de tarde e voltávamos somente domingo de tarde ou segunda de manhã. Então esse final de semana, para nós ali, para mim ali, era tudo ali, porque a gente saía ali do trabalho, da nossa atividade do dia a dia e íamos para ali para um tempo de estar visitando a família, os parentes. E para nós, que era criança, para mim, que era criança, aquilo era o final de semana inteiro só de brincar, a gente se divertia, tomava banho de rio, de brincar de todas as brincadeiras na floresta, no rio ali, e aquilo era como se renovasse de toda a força, toda a energia pra nova semana. Então essa lembrança assim, eu nunca esqueci, ficou marcado, lá. E à noite tinha as histórias - lembrando daquela outra pergunta -; de dia, as brincadeiras nos rios, ali no final de semana, e à noite tinham histórias pra gente dormir. A gente ficava até tarde ouvindo as histórias. Então isso aí foi muito bonito pra mim, muito marcante na minha vida. Lembro assim de onde nós moramos, onde eu morei, passei minha infância. Eu não costumo ter de só um lugar, porque nós vivemos muito assim, em muitos lugares. A gente tinha a característica de nômade ainda, de estar em muitos lugares, então foram vários lugares, na frente do rio, ali na beira da estrada, onde é a aldeia _____ hoje e teve algumas passagens por algumas cidades, como, Humaitá, Lábrea. Itapoá eu não tenho lembrança, porque nós moramos em Itapoá. Mas ali em Lábrea, ainda teve acho que um ano mais ou menos a gente ficou, meu pai ficou perambulando com a gente por ali e voltamos pra aldeia de novo. Saímos da aldeia, fomos pra lá e voltamos pra aldeia novamente. E aí depois Humaitá, já foi pra estudar, já estava mais crescido. Mas sempre voltando pra aldeia na época da ______, da castanha, de fazer roça. E estando ali, participando de várias ocasiões que foi pra nós, que foi aprender a lidar com o extrativismo, aprender a fortalecer mais aquilo que, na essência, na natureza, nós precisamos pra usufruir dela e contribuir com ela. Tirando dela e ao mesmo tempo devolvendo. O mínimo que nós podemos fazer como povo originário da floresta, pra devolver pra floresta, é cuidar dela. Cuidar pra que ela não seja destruída, pra preservar o que existe. Isso é importante, muito importante. Que todo o povo, que toda nação brasileira, que todas as escolas, elas precisam trazer essa conscientização de forma legítima, não da forma que é apresentado, discriminatória, que é muito triste. E as pessoas ao invés de aprender, elas fazem é rejeitar, ainda aprendem errado dos valores que é importante ter pra garantir a existência de nós povos originários e também da proteção da natureza.
P/1 – Handech, de toda essa infância de lugar em lugar, de acordo com nosso próprio jeito de viver, tem alguma imagem de alguma casa específica que ficou, foi especial pra você? Se tem, como era essa casa?
R – Do que eu consegui guardar pra mim, que eu consigo lembrar, que eu nunca fui assim de, eu falo assim, me apegar. Eu sempre não fui, nunca fui detalhista em muita coisa, assim, observador. Não sei se isso é natural do ser humano homem, que deixa passar muita coisa assim. (risos) Mas tem lugares assim que eu lembro, que foi muito importante, que foi muito legal, que foi no rio mesmo. Ali, embaixo do rio, tinha um lugar que a gente conviveu muito, que é ali no rio e numa localidade pra baixo, que é Castanhal, que é chamado de Anta lá. Lá onde aconteceu um ritual, que eu lembro que até contei na narrativa, que era um ritual do ______ que as nossas casas sempre foram de palha e paxiúba, é que não tinha acesso a tábua. Eu lembro que o meu pai, quando ele começou a usar tábua em canoa, ele tirava no machado ali, ele fazia a tábua no machado, mas era muito raro fazer um pedaço de tábua, porque também tinha que aproveitar um pedaço da árvore pra tirar ali um pedaço de tábua, ou seja, uma árvore de trinta centímetros dava duas tábua, cada lado dava uma tábua. Então era muito raro ter tábua, então era paxiúba, palha e cipó, que tinha ______ mas as casas eram nesse padrão: era paxiúba e palha, elas não tinham o que chamam hoje de oitão, elas não tinham. Algumas eram totalmente abertas e outras eram totalmente fechadas. Dos estilos, nós usava o que chamamos de ripa, que ela é uma paxiúba, só, e a parte batida, que era uma tora inteira, que era batida com um machado e se tomava um pano de mais ou menos uns cinquenta centímetros ______ de largura, cada uma. Era usado pra assoalho e pra parede, mas mais pra parede. Era feito de algumas palmeiras, como joari, que é uma palmeira boa pra alimentar peixes, ela não é usada pra alimento humano e a outra era a paxiubão, a paxiubinha, e às vezes o açaizeiro que era usado pra dar detalhe na casa. Então, ou seja, ali era um local que marcou muito pra mim, porque trouxe algo que ao mesmo tempo que me assustava, me deixava assim perplexo, admirado com a situação ali naquele ritual que era feito, porque para mim aquilo ali era real, que acontecia ali. ______ pra mim era real, tanto que nós, crianças, todos eram meio _____, tinha medo do __________. Era o bicho papão que as pessoas falam hoje e pra nós era o __________. Ele aparecia a cada data, era uma data específica do ano, ele aparecia, que na realidade a gente só conseguia ver só o vulto ali, permitido da gente ver, porque a gente ficava dentro das casas, da cabeça parecia um grande primata. Ali era feito pra assustar as crianças, e era só os guerreiros que podiam sair da casa para prender esse animal e mandar embora. A realidade era aterrorizante. (risos)
P/1 – Handech, ainda falando um pouco desses deslocamentos de lugares, você disse que passou também por cidades durante a infância, durante a vida. Você poderia falar assim qual é a diferença de viver na cidade e de viver dentro do território?
R – Essa parte é fundamental, essa pergunta aí, porque é muito importante a consciência de todo indígena, de todo povo originário, deveria ter essa consciência. Porque, para nós, na cidade, ela não pode oferecer nada, nada melhor do que nós já temos. Está lá na aldeia, na floresta. Ou seja, a diferença é muito grande, a gente não tem espaço, a gente tá fechado a um quadrado pequeno, a gente não tem a nossa privacidade que a gente tem lá, a gente não tem a nossa liberdade que tem na aldeia, a gente não tem o acesso ao nosso alimento cultural-tradicional e da forma que nós buscamos eles, que na natureza a gente vai no rio e pega o peixe, a gente vai na mata, pega uma caça, a gente vai na roça e pega uma batata, uma fruta, abacaxi, banana, cará, macaxeira, melancia, biribá. O que for, nós temos todas as... toda nossa cultura que existe, nós temos lá na natureza. Fora o que a natureza pode oferecer para nós em ativos, vários tipos de ativos _____ raízes, comestíveis também, que são muito importantes pra nossa saúde, os nossos remédios culturais, o nosso banho de rio, que a gente tem a liberdade de pular na água, de nadar, de sentir aquela água gelada no corpo. Então todo esse espaço que a gente sente, dessa liberdade que a gente sente na natureza, essa harmonia de vivenciar essa experiência, do acesso à natureza, que ela nos dá e nós devolvemos pra ela novamente. Na cidade não tem nada disso, nós vivemos ali limitados, muito mais perigoso do que na floresta, muito mais né, porque lá na natureza os animais ferozes não nos ameaçam, mas lá na cidade nós somos ameaçados em vários sentidos: é perigoso o trânsito, acidente, é perigoso um bandido, é perigoso tantas outras coisas, um alimento que não é acostumado, que pode fazer mal, contágio por pessoas com algum tipo de doença que pode ser ______ ao indígena. Todas essas questões, a questão cultural é um choque muito grande na cidade, porque apresenta tantas outras coisas que não é a realidade do indígena, que pode trazer o entendimento, principalmente de adolescentes ali ou crianças, um despertamento diferente da questão cultural. Não que na aldeia não possa, hoje tem internet na aldeia, tem energia elétrica, tem água encanada na aldeia, tudo isso nós temos na aldeia, mas a convivência na liberdade cultural, mesmo tendo acesso a essas informações, ao mundo exterior, mas com a orientação certa, com a compreensão certa da aldeia, com entendimento, ajuda muito a desenvolver uma liderança, um professor ou qual seja o segmento que o parente venha escolher, a viver uma vida melhor. E lá no seu território ainda ajudando o seu parente, ajudando o seu povo, contribuindo com o conhecimento que adquire fora, na própria aldeia, na própria base, fortalecendo a luta, trazendo um método, trabalho, contribuindo de várias formas. Então a cidade, a diferença da cidade é muito grande, eu não consigo nem medir assim o tamanho, porque para mim melhor mesmo é aldeia, mata, o rio, a floresta. Para mim, Mura, é muito importante isso.
P/1 – Sim. Foi muito forte, muito lindo como você falou que a lembrança dos lugares era o rio, porque para nós, para os nossos ancestrais aquilo que nos constitui é justamente o rio. O rio é a nossa casa, principalmente para nós, Mura. E assim, nessa vivência com a cidade, vocês tiveram contato assim com rádio, televisão? Mesmo no território, se vocês ouviram música, assistiam televisão.
R – No passado, mas quando ia para cidade. Às vezes eu lembro da minha infância, às vezes, de ver televisão na casa de alguém, passar por alguém e ver assistindo, ficar admirado com aquilo, deslumbrado ali com os desenhos passando. Eu tenho uma imagem forte disso daí, tenho a lembrança. Mas ao longo dos anos, assim, na aldeia mesmo, nós tivemos já muito depois acesso à rádio, até porque, mesmo quando conseguimos rádio, não pegava local, só pegava assim aquelas rádios que tem o alcance bem longe. Mas era muito interessante ficar ouvindo, escutando ali, ouvia notícia, o que estava acontecendo. Na cidade, a gente teve acesso a televisão já mais depois, a rádio. E nos dias atuais tem a internet. Hoje a gente já tem acesso à internet inclusive na aldeia, que para nós além de ser uma conquista muito boa, porque nós conseguimos estar acompanhando tudo que está acontecendo, a gente não fica tão distante, nós conseguimos acompanhar e, às vezes, até contribuir com alguma coisa.
P/1 – Para fechar esse bloco das perguntas relacionadas à subjetividade, aquilo que te constitui mesmo como pessoa, só perguntar mais uma coisinha sobre esse bloco de perguntas. Tem alguma comida especial assim que você guarda na memória, que você goste muito?
R – Para mim a comida especial que eu gosto mesmo, que para mim é difícil até mesmo quando estou na cidade, é o peixe assado, a moqueca. Para mim não tem outra comida melhor que o peixe, principalmente o peixe lá da Aldeia, o peixe pegado lá já assim ‘pra gelo’. Peixe assado para mim é muito especial, a moqueca.
P/1 – É bom mesmo. (risos) Vamos agora para o bloco sobre a questão da escola: você estudou em escola indígena específica e diferenciada?
R – Não.
P/1 – Não tinha escola no lugar onde você morava quando era criança? E também não era dessa categoria de escola indígena e diferenciada?
R – Não. Quando eu era criança, com muita luta, a minha mãe conseguiu trazer uma escola, que funcionou por dois anos só. Ela teve dificuldade, que para funcionar a escola, teve que ir a pé até o município mais próximo, que era Humaitá, noventa quilômetros, e trazer o material nas costas, no paneiro. Ela trouxe no paneiro os materiais para começar a aula. Eu lembro ainda quando foi, a minha mãe fez isso junto com meu tio e ela nunca esquece disso, de trazer o material para primeira escola. Eu era muito criança e não era uma escola específica e diferenciada, era uma escola rural, que funcionou por dois anos, mas eu ainda não tinha nem idade de estudar. Eu lembro que fui para a escola, mas só para ver mesmo, mas eu ainda não tava estudando, eu não era matriculado para estudar. Depois, para eu ter acesso ao ensino escolar, eu tive que ir para cidade, para o município mais perto, que foi Humaitá. Daí eu já fui com uma certa idade, já mais atrasado. E eu não estudei de forma regular, eu lembro que eu estudei até a, eu concluí a sexta série, aí eu não fui mais fazer o sétimo ano do ensino fundamental. Aí eu já concluí o ensino médio já pelo EJA, pelo Encceja [Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos], que foi pelo supletivo. Aí eu pude concluir o ensino médio. No meu caso, foi pelo Encceja, pelo supletivo.
P/1 – Nesse teu processo de formação escolar não indígena, quais foram as pessoas... tiveram pessoas, quero saber se teve pessoas e quais foram essas pessoas mais marcantes da sua vida escolar? Você teve algum professor, uma amizade marcante? Por quê? Também se tinha alguma matéria de sua preferência.
R – Eu sempre gostei muito de desenho, sempre gostei muito de desenhar. Eu me identificava em algumas matérias, nunca fui ruim em Matemática e Português. Eu fui, eu sempre me atraía mais por Matemática, mas aí eu estudei pouco de forma regulamentar, pra aprender esses conteúdos. Agora, na questão assim de professores, que assim, que foram, eu tive um professor que eu gostava muito da forma dele ensinar, que a gente mantém vínculo. Não, assim, a gente... não é assim uma amizade, mas a gente mantém contato até hoje. É o professor que, além dele ter uma postura, ser um bom professor para ensinar, ele sempre buscou, nunca agiu de forma assim discriminatória, ele sempre... eu me sentia muito confortável com ele para falar. Foi o professor que eu estudei, acho que o quinto e sexto ano com ele. Que eu me atraía muito pela parte cultural da escola, essa parte foi a que mais me atraiu. E nessa parte cultural, pela minha essência, eu consegui me destacar muito, então eu tive muita proximidade com outros professores e até com a direção da escola por causa dessa parte cultural, estar envolvido ali diretamente na parte cultural da escola, festivais. E essa parte, para mim, foi muito forte.
P/1 – Você nessa questão, nesse contexto aí de educação em escola não indígena, você lembra de algum momento que foi especial para você?
R – Essa parte que eu lembro da escola, só mesmo a parte cultural, a parte que eu me envolvi ali, que na realidade eu me sentia muito próximo da minha essência, que eu poderia ser o que eu sou de verdade ali, de forma mais clara assim, quando eu representava a questão cultural indígena na aldeia, festivais relacionados à cultura indígena, onde eu me destacava muito. Essa parte para mim foi uma das partes que marcou mais, porque me trouxe muita coisa boa da escola, fez com que as pessoas olhassem para mim diferente, fez com que as pessoas olhassem e não tinha aquele julgamento por eu ser indígena assim, de achar que, a gente vê muito hoje, o indígena não é capaz. Esses dias mesmo eu estive na faculdade, um professor que foi dar uma palestra, ele usou uma palavra muito forte lá para falar da questão indígena e eu fiquei revoltado na hora quando ele citou um exemplo de uma indígena lá que entrou para estudar, ele falou: “Entrou uma indígena aqui, pensa na índia burra!”. Ele falou bem assim: “Pensa na índia burra! Ela passou na cota indígena e ela gastou nove anos para se formar”, ainda usou a palavra assim, essa palavra para referenciar ela, que ela venceu, mas da forma que ele usou, ele acentuou mais a discriminação, quis dizer que por ela ser índia, ela era burra porquê só pode ser, porque ela entrou por uma cota. E também foi muito grave quando ele falou isso daí, fiquei muito revoltado, indignado. Mas depois ele falou que ela se tornou tão boa mesmo que todos queriam ela para fazer o TCC, todos os professores. Demorou mais tempo porque veio de uma outra realidade, de uma outra cultura e lá na universidade não é ensinado conforme a cultura, tem que se adequar. Mas nesse meu tempo na escola - eu tô usando esse exemplo para referenciar -, quando eu me envolvi na parte cultural, veio o mesmo olhar diferente, eu sentia as pessoas olhando diferente pra mim. Então isso marcou muito.
P/1 – Handech, dentro da cultura dos Mura do _______ Itaparaná, tem algum momento que é marcado essa passagem de criança para diferentes fases da vida? Criança, adolescente, jovem, adulto.
R – Tem só um processo que para nós ele representa tudo, porque... no início eu até falei sobre uma festa nossa tradicional, cultural, que é o __________, que ele é a fase onde a criança já é adolescente. É como se ela cruzasse uma linha. Não é a idade. Para nós não é a idade, não é ela completar dezoito anos, por exemplo, que ela está pronta para tomar decisões. Na nossa cultura não funciona assim. Ou seja, ela precisa adquirir a maturidade, ela precisa se tornar madura dentro dela. Isso a gente não observa só pela característica, porque a característica é um sinal muito forte da atitude da pessoa, mas a gente vai além disso, a gente vai na questão espiritual, pela nossa espiritualidade. Então é algo que a gente sente quando a pessoa está pronta, quando o adolescente ou jovem está pronto para passar pelo dia __________ que para nós é muito sagrado. Depois dessa passagem, nada mais prende, ela não está presa mais ao vínculo ali de, por exemplo, eu, como pai, no meu caso, ______ com a minha filha: a partir daquele momento é como se eu desligasse ela, que eu tava ali super protetor em tudo e desligasse ela, para agora ela conseguir caminhar sem eu estar ali pressionando ela. Agora ela vai precisar tomar decisões por ela mesma, ela vai ter que ter cuidado, porque cada atitude dela, a responsabilidade é dela mesmo. Então, esse preparo. Mas não é pela idade. Por exemplo, uma pessoa Mura ______ pode ter até quarenta anos e não passar pelo __________. Com quarenta anos, ainda não atingiu a maturidade. (risos) Ainda tá adolescente. (risos) Então nós vemos que isso aí é tão real que nos outros segmentos da sociedade a gente vê pessoas que, às vezes, têm idade avançada e não conseguem ter uma maturidade, agem ainda como um adolescente, as atitudes delas. Então é tão lindo isso para nossas vidas, para nossa cultura, para os nossos costumes, a nossa crença, que a gente vê cada vez mais que é tão real isso e é tão bonito de ver. E aquele processo daquele ritual é tão grande, é tão bonito. Eu chorei o tempo todo. Eu acredito que se a pessoa não conseguir derramar uma lágrima, eu não sei se ela ainda tem coração não, porque a emoção passada é muito forte. Eu chorei muito quando foi minha filha, eu acho que eu era o mais chorão de lá.
P/1 – Eu acho que eu participei desse. Que momento! Foi forte. Você passou por rituais assim, de marcação, de passagem de fase da vida e de idades?
R – Passei. Eu passei por outro processo, o meu processo foi diferente. Na realidade, eu nunca passei pelo __________, nunca passei. Não sei se eu ainda sou um adolescente. (risos) Engraçado, mas eu nunca passei pelo dia __________. Mas já passei por outros processos diferentes. Não foi feito um ritual para mim, eu passei por esse processo de forma diferente, de forma muito intensa. Teve todo um processo espiritual, cultural, mas não foi a festa da passagem para mim, ou seja, o ritual para mim do dia __________ não foi feito. Meu processo foi feito de forma diferente. Na cultura, na espiritualidade, mas foi em forma diferente. Foi muito intenso, mas, para mim foi muito dolorido, muito doído mesmo. É algo que foi para mim, mesmo, que eu tive que ter muita força para conseguir passar. Tem que acreditar. Se não acreditar, não consegue.
P/1 – Quando você terminou o ensino médio, você tinha uma ideia assim de profissão que você queria seguir ou você já estava em outro contexto? O que você tava pensando assim para tua vida depois que terminou o ensino médio?
R – Eu sempre falo ____ que para mim, eu não me sinto assim, eu não consigo me sentir grande em nenhum sentido e nem capaz, em nenhum sentido. Eu compreendo que esse é o meu entender de mim, eu compreendo que eu sou como um instrumento só, porque pensa em alguém que não tinha vontade de nada, objetivo de nada. Eu queria ser, antes de eu casar, alguma coisa. Por exemplo, quando eu estudava, eu queria ser arquiteto, porque eu gostava muito de desenhar, achava que aquilo lá fazia parte de mim, desenhar a casa, desenhar desenho de pessoas, tudo, gostava muito disso, então achava que a arquitetura era só isso, mas na realidade não é só isso. Mas eu nunca tive ensinamento assim de: “Vou ser doutor”, “Vou ser advogado”, “Vou ser...”, não, nunca tive. Aí depois que eu casei, aí eu já foquei mais na minha família. Se existia um pouquinho, passou para os meus filhos. Queria para eles, mas não mais para mim. Eu tive algumas oportunidades de estudar, de fazer medicina. Teve uma vez que teve um projeto para fazer medicina em Cuba e aí eu não fiz porque eu não queria ficar longe. É difícil para eu ficar longe da família, para mim é difícil. Eu sei que para todo mundo é difícil, mas para mim, eu não sei se a minha dor é maior do que a dos outros, mas é difícil. Então aí eu fui deixando passar e não me foquei assim. Ainda mais quando eu voltei para aldeia, que eu comecei a desenvolver a questão cultural mais forte, a espiritualidade ficou mais forte ainda, então eu me senti completo, eu me achei pronto para muita coisa já. E no meu entendimento assim, eu não precisava. Para mim, a minha vida lá na floresta, na mata, na aldeia, ela já era completa, eu com a minha família e lá com os meus irmãos, com meus familiares, meu povo, já estava completo. Mas aí nós temos uma situação muito importante para mim, que eu acho importante falar, é que aí, a partir do momento que nós começamos a viver coletivamente, um cuidando do outro, não se tornou mais a minha família só, mas o meu povo. A partir do momento que o meu povo entrou na história aqui dentro de mim, de eu ver a casa deles ser a minha, da luta deles ser a minha, aí mudou muita coisa. Então, a partir de uns três anos atrás eu comecei a sentir vontade de estudar novamente. Já muitos anos sem estudar educação escolar, eu senti. E a vontade era uma vontade de estudar Engenharia Química, que eu acho que eu nunca nem pensei nada sobre Química, Engenharia Química, nada. Mas com a questão cultural, com o ______ , com o Pandé, com tudo que tem acontecido lá, nós que temos desenvolvido lá, juntos, um com outro, a necessidade de unificar os conhecimentos espirituais, os conhecimentos tradicionais na ciência, provar cientificamente que muita coisa é real e isso trazer muitos benefícios para o meu povo, poder produzir algo lá na floresta mesmo, ali, de forma tradicional, usando a ciência e o extrativismo ali para muita coisa, e fazer com que pudesse produzir isso de forma... industrialmente, ou seja, em trazer melhoria para o meu povo sem destruir nada, aproveitando tudo que nós já conhecemos e melhorar isso tudo, foi o que trouxe a motivação para eu sair da aldeia. Mesmo que eu saia da aldeia só o corpo, né? E aí quando dá uma folguinha, vou para a aldeia, de lá, mas aí foi o que trouxe essa motivação e aí foi onde nós fomos buscar a confirmação espiritualmente _____________ e todo o povo ele apoiou de todas as formas. Para eles, para todo o meu povo, é uma conquista muito grande eu estar lá e tá estudando lá, por essa razão, por esse motivo, pelo benefício que vai trazer para o meu povo. Eu não sei qual vai ser a área ainda, porque o engenheiro químico ele atua em várias áreas, mas eu sei que _______ vai clarear pra nós, como isso vai poder ser benefício para o nosso território, para o nosso povo e outras pessoas também que vão ser alcançadas, seja de origem indígena, seja o povo da floresta, seja o não indígena, não importa, importa que aquilo que está acontecendo comigo eu possa contribuir e ajudar outras pessoas também. É importante isso.
P/1 – Você tá já falando da sua experiência com o curso de graduação que você tá fazendo todo esse olhar de diálogo dos saberes nos diferentes campos, que é o tradicional, o espiritual, o acadêmico. Mas daí fala para a gente qual é a universidade. Você já falou também que teve essa necessidade de sair do território para poder estudar. Conta um pouco mais para gente sobre essa universidade que você está, como está sendo essa experiência de estar lá, quais são os desafios que você está enfrentando por ter saído fisicamente do território, mas se manter espiritualmente ligado, presente. Então conta um pouco mais para gente sobre essa experiência com a universidade e sobre esses desafios todos.
R – A universidade que eu estou estudando ela se chama EST, que é a Escola Superior de Tecnologia da UEA. É uma escola que é da área de engenharia, todos os cursos de engenharia lá da Universidade Estadual do Amazonas, que é a UEA. Os desafios que eu tenho enfrentado são muitos. Na questão da minha ida para Manaus, que é a capital do Amazonas, um percurso de... da aldeia até lá, um pouco mais de setecentos quilômetros de viagem em uma estrada muito difícil, de muito difícil acesso. Já começou o ______ desde aí, que eu precisava ir para lá e por não ter um lugar lá, específico para ficar, não ter alguém para me acolher lá, eu fui para um lugar estranho, um lugar onde eu não conheço ninguém e onde eu não tenho lugar para ficar. E a partir daí, preparar um lugar, construir um espaço e montar ali um espaço para ter um conforto essencial, o básico para estudar, para se manter ali. Também não tem transporte. E não saber onde eu vou estar, para ir para faculdade, foi um desafio muito grande para mim. Então uma das coisas bem importantes que aconteceu foi o apoio, que foi algo que foi bom mesmo, do meu povo desde o início, quando foi para eu estudar já. O apoio deles foi essencial. Eu tive o apoio pra levar uma moto para lá, para o meu transporte, e aí o pouco que meu povo consegue lá, eles tiram um pouco para repartir comigo lá, para me ajudar no aluguel e ajudar em algumas coisas que são necessárias. Eu estudo integralmente, então, ou seja, de manhã e de tarde, eu não tenho a possibilidade de conseguir fazer algo para ajudar nas despesas. E a gente sabe que todo recurso na questão da educação indígena é centralizado no estado, não tem na Funai, não tem algo específico ali para o indígena, então todo o benefício é pelo estado. E nesse início, nesse primeiro período, não tem bolsa disponível, algo disponível lá para eu acessar, para ajudar. Então foi bem difícil essa parte. Eu tive ajuda do meu povo e de alguns parceiros que eu não chamo nem de amigos, como eu falei agora, eu chamo de irmão. São pessoas que em momentos ali que foram difíceis, deram a mão ali para me ajudar ali. Eu tenho problema de diabetes, então agravou mais a situação para mim, na questão da faculdade, é tudo novo, o estresse é natural já: muita coisa para aprender e, ao mesmo tempo, conseguir um local para ficar, conseguir materiais, móveis e alguma coisa para ter lá no apartamento e, ao mesmo tempo, recurso para eu me manter lá. Então foi assim, primeiro período muito difícil, com muitos desafios, mas eu consegui vencer e eu sei que é apenas o início, que são aí dez períodos em cinco anos, onde eu vou estar tempo lá e tempo com meu povo, porque se eu sou liberado da faculdade, eu vou para aldeia já de imediato, que isso é importante para eu recarregar as energias, estar perto do meu povo, perto da minha família. E nesse primeiro período, fui só eu para lá, só eu mesmo, porque não tinha como levar minha família, no caso, minha esposa e meu filho menor, que os outros filhos já são grandes. E eu tive que enfrentar essa jornada aí só, por enquanto. e eu sou muito grato a ______ por tudo que ele, pela força que ele deu, pelas pessoas que ajudaram, deram as mãos para nos ajudar, para me ajudar. E nesse segundo período, agora, abre bolsas, já abre a questão de bolsa, um auxílio transporte e um auxílio socioeconômico, mas muito pouco, mas mesmo assim já é uma ajuda. Mas aí quando foi a inscrição, foi na época que eu sofri um acidente lá em Manaus, sofri um acidente lá e o caso foi que eu não consegui ir e juntar os documentos para concorrer à bolsa. Bem nesse período eu fiquei sem bolsa. Mas vamos conseguir na luta, com o apoio. É difícil, eu sei, mas a gente vai conseguir vencer isso aí. Esse desafio para mim é grande também, mas a gente vai superar.
P/1 – Que forte! Então, já tinha adentrado na parte do trabalho, mas aí, antes de voltar para parte do trabalho, fazer uma pergunta. Assim, tá meio fora já do que a gente tava falando, mas que tem a ver com as outras questões que a gente tava conversando, desse estar lá na cidade, desse estar no território, estar perpassando por esses dois espaços. Na fase da juventude, teve assim, por exemplo, foi delimitado quando é que você já podia sair sozinho? Você tinha um grupo de amigos? Como era esse grupo de amigos? Quais eram as coisas que vocês gostavam de fazer para se divertir?
R – Nesse período que eu estava na cidade, né? É isso mesmo?
P/1 – Então, você pode falar dos dois contextos, tanto do território quanto da cidade.
R – Quando eu tava na cidade antes, que eu estava estudando ali no ensino fundamental, no ensino médio, eu não tinha muito assim amizade para sair, mais era casa e escola. Eu sempre, ________ ele foi muito, ele é muito claro, não deixava sair assim, para não perder, para não se perder ________ sempre a gente fala ________ quando a onça pega. (risos) Então, eu não tive muito, até mesmo porque eu era muito fechado, e aí eu não tinha, mas aí depois, já quando foi já para fazer o ensino fundamental, ali já no início dos segmento ________ já estudei ______ na cidade também, aí eu já tive mais amizade, aí já consegui me entrosar com as pessoas. Então, mas toda aquela amizade que eu tinha, já foi quando eu comecei a me envolver na parte cultural. E aí eu conheci vários jovens, várias pessoas onde teve amizades fortes, pessoas que até hoje tem contato. Conheci outros parentes indígenas também, parentes indígenas que também vinham para a cidade. E nossas brincadeiras assim mais eram relacionadas à questão cultural. Teve um momento da gente sair também para festa, todo mundo jovem, conhecer pessoas, mas eu nunca fui muito atraído assim. Eu ia mesmo assim, fui em algumas ocasiões mais por causa dos colegas, mas eu não me identificava. Eu sempre gostei mais de casa assim. Tem um momento de diversão ali, mas em casa, com pessoas assim que eu gostava, pessoas de confiança. Mas eu sempre fui mais calmo. Já na aldeia, já no território, é aquela questão que eu coloquei, mais brincadeiras que eu me envolvi eram mais as que envolviam natureza, do rio, das brincadeiras ali de imitar animais, fazer animais, de caçar. A brincadeira de caçar e pescar era o que eu mais me identificava assim. Na questão mais assim de sair da aldeia e ir para outro lugar só específico para diversão, nunca fui assim de ter esses momentos.
P/1 – Qual foi o primeiro trabalho que você fez? E aí, sempre dentro desses dois contextos, tendo em vista que você fez parte dos dois contextos.
R – Agora até quando você fez essa pergunta, eu até esqueci Márcia. Teve um período que foi assim, a primeira coisa que eu fiz. Primeiro, a primeira coisa que eu fiz de trabalho assim na cidade foi vender fruta, banana, laranja, ______, maçã. Vendi, mas eu não consegui me identificar muito com essa questão de venda. Eu acho que eu não era um bom vendedor, não tinha assim, porque para tudo tem que ter uma vocação ou um dom. Tem gente que consegue vender coisas que ninguém compra, ele vai e vende, mas eu não me identifiquei muito nessa situação. Mas aí depois, a segunda, eu trabalhei também no serviço braçal, com alvenaria, com construção de, era conhecido como marmorite, era fazer tanques, _____ , esse negócio para porta, janela. Eu trabalhei acho que um ano e um pouquinho com isso, aprendi a fazer tudo dessa área. Mas na área que eu mais me identifiquei mesmo, foi quando eu comecei a trabalhar com cultura, com a dança. Eu lembro que teve um período que eu dei aula de dança, eu aprendi muito, tanto na questão cultural, que aqui no Amazonas tem uma parte que foca muito, que fala, que trata da cultura indígena, é o boi bumbá. É muito forte. Apresenta rituais, danças, contos, mitos. Tem personagens ali que representam a cultura indígena de forma muito de ficção assim, algumas coisas são muito fantasiadas, mas tem coisa muito legal, tem coisa que mostra a realidade, que mostra os rituais. Então essa parte eu me identifiquei muito. E aí eu passei, teve um tempo que eu trabalhei com isso, eu lembro que eu dei aula um ano e pouco de dança. Eu gostei muito, era algo que eu era bom mesmo, porque eu aprendi com muita facilidade, muita facilidade mesmo, alguns tipos de dança, dança de salão. E alguns tipos de dança assim, eu me identifiquei na questão cultural. Não sei, só sei que me identificava com isso. E depois, outras questões de outros tipos de trabalho, de área da carpintaria. Eu, como carpinteiro, acho que eu trabalho bem. Eu construo casa, qualquer coisa que precisar construir, eu consigo fazer, de madeira, tanto na área naval quanto na carpintaria normal mesmo, de fazer casa. E também construção civil, de alvenaria, rebocar parede, assentar tijolo, esses negócios todos eu aprendi a fazer também. Então esse período que ficou na… que eu passei na cidade, eu aprendi muita coisa que não era baseado na cultura, que não era relacionado com a cultura, mas que hoje tem contribuído muito na aldeia. Eu contribuo muito na aldeia nesse sentido, porque além de eu ensinar, de eu fazer essa fusão aí com o tradicional, com o cultural, com o que eu aprendi lá fora, eu também ensino adolescente ali a trabalhar e a aperfeiçoar em algumas coisas, artesanato, ali, fazendo remo, canoa. Então eu trouxe mais clareza em algumas coisas para mim. Esses trabalhos feitos lá fora também me ajudaram a melhorar em algumas coisas na área cultural e na área da aldeia também.
P/1 – Tu consegue perceber se existe diferença da relação de trabalho na cidade e a relação de trabalho dentro do território?
R – Eu consigo. Eu consigo entender que o trabalho na cidade ele já visa... no nosso caso, né? O trabalho na cidade já é mais assim de forma individual, para adquirir ali o recurso para pagar as contas, para comprar alimentos, para sair para algum lugar, para ter acesso algumas coisas que a cidade oferece. O trabalho da cidade é mais voltado, ao meu entender, para isso. Já no nosso caso, o trabalho na aldeia já é mais para construir algo para nós, para todos. Então tudo que nós fazemos, a gente está construindo. Se é no extrativismo, além da gente zelar, cuidar da floresta, nesse processo a gente amplia mais conhecimento, produção, adentrando mais a natureza e usufruindo daquilo que a natureza oferece. Na questão do trabalho dentro, interno na aldeia, visa construir ali para todos, para melhorar a qualidade dos alimentos, o bem-estar da comunidade, as habitações, que são as casas, o transporte, no caso do rio, canoas. Então tudo isso é importante. Eu vejo que o trabalho na aldeia é voltado mais coletivamente, para construir mais, não só para nós, mas para todos. Então o que a gente faz lá, muito pouco dá para assim, pensar da forma do pensamento da cidade, mas jamais de construir para ter, para usufruir ali daquilo que você construiu com as suas mãos ou plantou com as suas mãos. Você mesmo construiu aquilo ali, fez, seja área de agricultura familiar ou extrativismo, construção de infraestrutura na aldeia, o artesanato, tudo tem um valor diferente. Lá na cidade a gente compra algo bom, uma coisa que a gente acha legal e alguém pode até ostentar aquilo ali, o relógio, um celular. Lá na aldeia é um artesanato bem feito, um anel bem feito, um cordão bem feito, um arco bem feito, uma canoa. Tudo isso é motivo de orgulho, para apresentar aquilo que você construiu, você mesmo fez, na sua roça que você plantou, sua planta que você plantou, tá comendo, produzindo aquilo: “Isso aqui fui eu que cuidei”, é muito mais gratificante isso.
P/1 – É o que na parte da minha família a gente chama de puxirum. Aí no __________, como é que chama?
R – O puxirum é a forma do mutirão de trabalhar?
P/1 – Sim.
R – É o mutirão? De forma coletiva? Nós não falamos, nós falamos só no português, o mutirão mesmo. Nós não falamos no __________ ainda. O mutirão, né, o puxirum.
P/1 – É, tem uns que falam puxirum, outros falam putirum. Depende... os mais velhos falam mais putirum, os outros falam mais puxirum. Mas é essa coisa de se reunir para fazer o trabalho coletivo também. Sobre essa questão dos deslocamentos, como nós já conversamos, faz parte da nossa própria cultura. Eu vejo que mesmo a gente esteja ali em um lugar que seja tido como se fosse o fixo, mas a gente nunca fica só naquele lugar. Eu, pelo menos, a minha família tem hora que tá lá no Arapiara, que é aquele lugar onde a minha avó... tem hora que a minha mãe tá lá para um sítio na 45, tem hora que ela tá lá no Candeias, tem hora que ela tá em outro canto e assim vai. Ela fala assim, que a gente continua nômade mesmo com todas essas fixações, com toda essa criação que o Estado fez de cidade, de estado e tudo, a gente está sempre fazendo os caminhos de deslocamentos que os ancestrais também fizeram. Mas em relação a outros territórios, vocês se mudaram, fizeram deslocamentos de um território para outro? E aí acho que também cabe trazer... você já falou sobre esse deslocamento pra cidade, mas se você quiser especificar mais alguma coisa em relação a isso, você pode falar um pouco mais, se quiser, sobre como foram esses deslocamentos, como foi a viagem, como foi se mudar para outro lugar, qual foi a sua primeira impressão e o que mais chamou a sua atenção, se vocês tiveram dificuldades, enfim. Nesse caso, é quando você sai do seu território e vai para um outro território que não é seu, que é bem essa relação de quando a gente sai do nosso território, onde a gente vive, e vai para uma cidade. Mas isso já foi até bastante comentado, mas se tiver alguma coisa a mais que você queira acrescentar, fica à vontade.
R – Nessa parte, nesse sentido, a parte que eu acho que nós não falamos ainda foi a parte de migração, da nossa migração do Madeira para o Purus, do Madeira para o Solimões, Purus, ali. Essa parte que é a parte que ainda não foi falada. Então, meu bisavô contava, meu avô contava que nós somos originários do Madeira, então vários rios da calha do Madeira, o meu avô falava deles, mas ele falava com lugar e habitação no Joari, que é um rio próximo ali de Humaitá. Não é tão longe, fica num sítio. Não sei, acho que fica em Manicoré, região de Manicoré, onde hoje ainda existem vários povos, vários Mura lá, que é de outro cano, mas que vivem lá. Então a partir dali, da invasão do território do Madeira, onde foi dizimado milhares de Mura, nossas ancestrais morreram ali, é fato histórico, historicamente contado o tamanho do genocídio que foi feito aos nossos povos, ao nosso povo, nossos ancestrais na cara do Madeira, na região do Alto Madeira. Então, a partir dali, muitos dos que sobreviveram, alguns se misturaram, ficaram ali por ribeirinhos e foram casando, alguns se mantiveram afastados, casaram com outros povos e outros migraram para outras regiões, que no caso foi o nosso caso, onde o meu avô já foi lá para o Solimões e de lá ele subiu para o Purus e depois adentrou o Rio Itaparaná. Então todo mundo nessa caminhada foi demarcando o território. A minha avó ficou sepultada lá onde hoje é a cidade de Itapoá, bem na praça. Não existia cidade ali, era só a mata, o barranco e a minha avó foi enterrada ali. Hoje é o município em cima dela, ali, dos restos mortais dela. O meu avô já foi sepultado mais embaixo, no Purus também, num lugar chamado Parati. É próximo, eu tive lá recentemente, no Parati. E aí o meu povo foi demarcando o território dentro do Rio Itaparaná. Vários parentes Mura nosso foram enterrados lá, inclusive o familiar mais próximo foi uma irmã minha sepultada dentro do rio e outros parentes em várias localidades, em todo o trajeto. Naquela época o rio ainda era não habitado, meu avô, meu pai, muito novo, contava que hoje, por exemplo, um trajeto que hoje a gente gasta quinze minutos de lá até chegar na aldeia… ele gastou uns sete dias para chegar em um trajeto que hoje dá quinze minutos, porque não tinha acesso. Não tinha, ninguém passava lá. Então o rio, que lá no alto é Igarapé, o __________, estava totalmente fechado de paus, árvores, galhos caídos no meio do Igarapé. Então não tinha sinais de ninguém passar para lá, era totalmente inabitado pelo ser humano, por não indígenas. Aí nós, povos indígenas, o povo Mura e os parentes Juma, que eram nossos vizinhos ali, eram os únicos a ambular ali naquele território, no nosso território hoje. Então nós fomos ali os primeiros a chegar ali, a conquistar esse território, a demarcar esse território com os nossos ancestrais __________ a caminhar na luta, nos castanhais, ali naquele local foi feita a habitação na beira do rio. Então essa experiência de vivência contada e repassada para nós, quanto a ocupação do nosso território, a migração de uma calha de um rio para outro rio, é algo que marca nossa chegada ali no Rio Itaparaná, que marca a nossa história contada, a nossa vida de lá para cá até nós começarmos a reivindicar os nossos direitos, reivindicar a demarcação do nosso território, até nós conseguimos ali mapear toda a área onde nós perambulamos, onde nós pescamos, onde nós caçamos, onde nós usufruímos dali da natureza, do extrativismo. Então tudo isso para nós foi muito importante para a gente conhecer a nossa origem, quem somos, de onde viemos. E onde estamos ali buscando garantia do nosso território.
P/1 – Muito bem. É uma longa história, muito importante, muito bonita. Falando agora dos relacionamentos, do casamento, dos filhos, do cotidiano: podia falar um pouco, se for possível, sobre a questão do casamento? Foi feito em qual cultura, se foi na cultura indígena, na cultura não indígena, se foi dentro da cultura do próprio povo e como foi? Se tu pode contar um pouco para gente sobre isso.
R – O meu casamento foi algo forte para mim. Quando eu conheci a minha esposa, hoje a minha __________, que ainda era __________ naquela época, foi no período que eu estava na cidade, que eu estava estudando na cidade, um tempo que eu estava envolvido na questão cultural, também estudando, e eu conheci ela assim nesse movimento cultural folclórico. Ela era uma dançarina também e a gente se conheceu. Na verdade, ela me conheceu primeiro do que eu a conheci. Ela me conheceu e eu só fui conhecer ela dois anos depois. Mas ela me conhecia, eu não a conhecia. Ela também é Mura, só que ela é da outra região do Madeira, já lá da Aldeia do Barreto, os parentes do Barreto, Mura de outro ramo, e eles moravam perto de um igarapé chamado Igarapé do Jacaré, lá dentro de um lago que eu não tô lembrando o nome agora, que me fugiu da memória. Então vieram para a cidade também em busca de estudo, de estudar, e foi quando depois, anos depois, a gente se conheceu. No princípio a gente não casou na cultura, casamos na cultura não indígena, cartório, aquele negócio. E antes de eu casar com ela já, que eu decidi, eu levei ela para a aldeia para conhecer como era a minha realidade, quem eu era, quem era a minha família, quem era o meu povo, onde eu morava. Então eu levei ela para a aldeia para conhecer. Depois a gente casou na cidade e fomos para a aldeia, morar na aldeia. E aí só voltamos para a cidade novamente quando já foi para os nossos filhos estudarem, que não tinha escola nessa época lá. __________ e aí eles ficaram estudando e a gente ficou esse período. Esse período eu trabalhei na cidade, me envolvendo __________ muito mais forte ainda e também fiz outros trabalhos, que foram aqueles que eu relacionei e falei agora pouco. Aí, somente em 2015, quando a gente retornou para aldeia para ficar mesmo, quando a gente decidiu lutar mais forte pelos nossos direitos, ou seja, nós tiramos os nossos filhos da escola: “Vamos lá para a aldeia, vamos lutar pela escola aqui”, e no mesmo ano a gente conseguiu a escola para eles continuarem dando seguimento nos estudos lá na aldeia. E aí nós casamos culturalmente. Nosso casamento foi interessante, nós casamos às três horas da madrugada, na virada do ano de 2016. (risos) Três da manhã, só estávamos nós, os Wakanãs e os Pandés fazendo a cerimônia, o resto, todo mundo tinha dormido. (risos) Mas foi muito legal, em compensação foi um casamento na cultura e aí foi quando a gente se fortaleceu cultural no nosso relacionamento, na nossa família, cada vez mais fortes os nossos filhos. Então foi muito interessante, essa parte aí foi... e eu ainda tive que ir atrás da anta pra fazer o casamento, porque o casamento da cultura nossa tem que ter a anta. O interessante é que eu não matei a anta, (risos) quem trouxe a anta foi a noiva. A noiva que salvou, que foi a vitoriosa. Então a noiva que conseguiu a anta e aí teve aprovação. Eu já pensei que não ia casar mais, tava triste porque não tinha matado a anta, tinha ficado vários dias em chuva, e de noite, acordado, e nada da anta a aparecer. (risos) Mas foi muito lindo mesmo. Então, inesquecível, não dá para esquecer. Mas é importante matar a anta, (risos) tem que ter a anta.
P/1 – Eu não sabia dessa parte que tu não tinha caçado a anta. (risos) Olha, mas aí é que ela queria mesmo casar contigo, porque ela viu que tu não tava pegando a anta e ela foi lá e pegou, quis que esse casamento acontecesse logo. (risos)
R – Foi forte.
P/1 – Vamos aqui. Estamos começando a se encaminhar para os finalmentes. Você falou dos filhos, né? Quantos filhos vocês tiveram, como é o nome deles e qual é o significado do nome de cada um? E se você puder falar também, como é ser mãe ou ser... ser mãe é difícil você falar porque só a mãe mesmo sabe dizer, mas se você puder, for permitido falar, qual é o papel da mãe estabelecido dentro da cultura de vocês. E depois falar como é para você ser pai. Aí você fica à vontade, o que for possível falar e o que não for possível.
R – Tá ok. Muito interessante a pergunta, forte. Eu tenho, nós temos quatro filhos. Tenho um relacionamento de, vai fazer, 23 anos agora. Eu tenho... logo no início a gente já teve um, na nossa cultura é o __________, ele tem, fez 22 anos. Vai fazer 23 no ano que vem, mas ele tem 22 anos. O significado do nome _______ significa que ele é o “coração cheio de amor”, que tem um coração cheio de amor. Ele sempre foi muito, foi para nós muito orgulho em tudo, nunca deu problema para nós. Acredito que __________ foi o mais importante, deu muita sabedoria para nos ajudar com as situações. Hoje, ele vai agora ser acadêmico também, passou no vestibular para Direito e vai começar a estudar agora dia 22. Depois tem a nossa filha que tem 21 anos, ela nasceu com __________ o nome dela é ________ que significa “canto dos pássaros”. Ela está estudando fora recentemente da aldeia. Ela canta, tem uma voz muito boa, e tá estudando música. Ela tá fora da aldeia esses tempos também, foi na realidade pelo estado, estudando. Foi ela que passou pelo dia (mutuá?), a que quase me mata. (risos) E depois veio outro, que é um filho homem, que é o João __________, que significa “olhos como de águia” ou “como de gavião”, que é a mesma coisa para nós, que a nossa águia é o gavião mesmo, que ele enxerga além do ser humano. É o significado do nome dele. Ele tem dezenove anos, é um dos __________ e é Pandé também da aldeia, um guerreiro muito forte também, bom caçador, bom pescador, muito orgulho para nós também. Muito orgulho, nunca deu problema também para nós. E tem o caçulinha, que é agora, para nós, ele é tudo, que é o __________, que significa a “voz de __________”, que __________ fala por ele. Ele tem cinco anos de idade. Tava aqui, era ele que tava empurrando o computador com o pé. (risos) Na nossa vida, ele é uma benção, muito. Então eles são os nossos filhos, o futuro da nossa união de 23 anos, nas nossas vidas, que foi só alegria e benção. Aí tem a questão nossa, de nós como pais. A mãe, para nossa cultura, tem um papel fundamental em tudo assim: como esposa, como mãe, ela tem uma responsabilidade muito grande em todos os sentidos, na questão do exemplo dela, na pessoa de quem ela é, que é a parte mais forte para nós. Não é só o que fala, mas o que se é de verdade, que nós entendemos que quem mais nos conhece são os nossos filhos. Eles conhecem a gente, então a gente tem que ser exemplo para eles. E na educação, ela tem papel fundamental porque sempre ali é ela que está mais próxima em vários momentos. Não que a mulher na nossa cultura seja específica dos filhos. Não, tem várias mulheres que têm posições de autoridade e hierarquia dentro da aldeia e que tem que estar à frente de muita coisa e, às vezes, é necessário o pai tá lá cuidando e o auxílio ainda dos outros parentes para estar ajudando ali a cuidar dos filhos em muitas situações, mas sempre um ajudando o outro ou cobrindo o outro onde precisa. Mas não é específico a mãe cuidar dos filhos, não é uma regra, mas os dois cuidarem. Em momentos é um que precisa estar porque alguma situação ou uma representação, uma viagem, uma luta por alguma coisa e o outro assume a responsabilidade. Então não é regra a mãe ter que cuidar, fazer esses trabalhos braçais, cuidar da casa. Não, não existe essa regra para nós. A mesma responsabilidade que é para um, é para o outro lá, em vários segmentos nossos. Agora, trabalhos rurais, braçais, mais pesados não são para as mulheres, da nossa cultura, mas elas fazem também quando nós fazemos o mutirão, quando nós nos unimos para trabalhar, todas aí elas participam juntos, mas é o único dia. Agora, nos outros dias, não, já são atividades mais leves. Já os mais pesados são para os homens mesmo, que têm que pegar o maior peso.
Aí a experiência como pai para mim eu entendo que foi a melhor coisa que me aconteceu. Eu não me acho um pai ruim, eu sei que poderia ser melhor em muitas situações, que eu poderia ser melhor ainda, que muitas vezes a gente comete erros, tentamos fazer o certo e essa dificuldades que para nós, para mim, como pai, é mais difícil, porque quando erra, eu tenho que reconhecer que errei e é difícil reconhecer que errou. Acho que para qualquer um que tenha uma dificuldade, precisa ter um entendimento. Mas para mim é forte a minha função como pai, a minha responsabilidade como pai, cuidar deles, amá-los mesmo mais que tudo, ensiná-los, ser exemplo para eles, ser testemunha para eles na minha forma de ser. Esse para mim é muito forte quando eu vejo isso e reconhecer, o reconhecimento de quando eles falam a respeito do pai que eles têm. E eu acredito que muito, muito mesmo, de tudo assim, que aos poucos eu tenho sido, me tornando, mas ainda precisando ______ muito mais, mas eu posso ajudar algumas pessoas como exemplo, com experiência de vida, com os acertos e as falhas cometidas. Então para mim a família é tudo.
P/1 – Você falou em outro momento que passou a viver não só mais em função da sua família, mas de todo o seu povo, cuidando de todo o povo como a sua própria família. Tem algum momento... como é esse momento quando tá todo mundo junto? E o momento que seja só de vocês enquanto família, quais as coisas que vocês gostam de fazer e como é que vocês fazem as atividades de lazer entre vocês?
R – É assim, nós somos muito coletivos lá, todo mundo, ou seja, trabalhamos juntos em tudo e na semana. Mas a gente tem um calendário semanal e dois dias da semana para nós ele não tem atividades, de trabalhos da rotina, ou seja, ele é específico para diversão, ou seja, para fazer algo que venha trazer alegria, que não seja aquela atividade de rotina ali, que seja uma brincadeira de alguma coisa, de bola, de corrida, de desafios. A gente brinca, faz muito... lá a gente brinca como as crianças, todos os adultos. Aí a gente faz os tesouros escondidos, esconde coisas que são muito importantes e faz mapas. A gente tem vários tipos de brincadeira coletivamente. E tem um dia que é específico para cuidar da família, esse dia é específico para família, ou seja, ele não tem regras, assim, regras do dia a dia, de horários, de atividades, a família pode decidir o que ela vai fazer. A gente... esse processo lá na aldeia é mais para construção de afinidades, de fortalecer os laços familiares. E ele é colocado como um dia específico, para que cada família venha a desenvolver isso, não só que seja aquele dia, mas que tenha um tempo específico para lidar com situações do dia a dia na família, que às vezes precisa ser resolvido não com aquela regra do dia a dia, com aquelas atividades, mas de uma forma diferente, que cada um vai se sentir bem, que cada um vai se sentir protegido, amado ali. E é importante, mesmo que ainda haja uma dificuldade porque alguns vieram da cidade, tem uma outra rotina, alguma dificuldade de vivenciar, mas a ideia é fortalecer esse vínculo familiar. E lá na aldeia é como regra para todos nós, regra de ter o dia livre. E tem um dia de espontaneidade, que é o dia de família, com os filhos e tem um dia com a esposa, com o marido nesse sentido. Então esse aí para nós é muito importante. E aí cada família escolhe, cada um. Às vezes anseia em fazer algo, querer ir para algum lugar, querem ir para o rio com a família, só eles ali, tem um momento, fazer uma atividade diferente, fazer eles assistirem um filme, alguma coisa. Depende da família. Eu gosto muito de ir para o rio, de estar com a minha família ali pegando peixe, pescando, assando na beira do rio. Gosto muito disso e eles gostam muito também. Mas não é minha vontade só, a gente combina de decidir o que vai fazer nesse dia da família. Então há essa separação dos fortalecimentos. A gente luta por todos, mas a gente tem a nossa individualidade na questão familiar, na questão do cuidar de momentos que são só nossos ali e que são necessários para fortalecer esse vínculo da família.
P/1 – Tem alguma época do ano que vocês fazem alguma atividade cultural específica, que era feita pelos mais velhos e que vocês continuam fazendo?
R – Nós temos, mais específico, um específico que é um retiro para o rio. Acho que nós falamos que é a caçada tradicional, pescaria e caçada tradicional. Então a gente vai para o rio e fica trinta dias ali no rio vivenciando várias experiências de ensinamento, que é importante na vivência, da prática ali, de estar com os nossos filhos, as famílias ali, cada um atuando de várias formas. A gente vai para pescar, para pegar _____ , para caçar, para comer pela beira do rio, juntar os acampamentos ali na beira do rio, fazer a nossa estrutura. E tem muitos ensinamentos que nesse período a gente passa para os nossos filhos, ensina para eles tudo aquilo que a gente aprendeu, na prática, vivenciando direto com a natureza. E esse período de trinta dias para nós, ele é muito bom mesmo, a gente vem de lá mesmo renovado e com muitas histórias para contar de cada experiência, que tem umas que são muito engraçadas, outras que são assim bem fortes, que são de momentos que é de pegar chuva no rio às vezes. A gente passa por tanta coisa, mas tem momentos ______.
P/1 – Qual é o período que isso acontece e é tempo de quê nesse período?
R – Geralmente é no mês de agosto e setembro, ou agosto, ou parte de agosto e parte de setembro. É uma época que tem muita fartura no rio, muito peixe. O peixe está numa época que tá começando já a querer produzir ovas, então ele está engordando, tá com sabor melhor, que ele já vai ovar mais depois, mas é o período que ele já tá iniciando aí a época dos ovos dos quelônios, aí para caçar é muito bom também. A única que é negativa é porque é uma época que de vez em quando dá umas chuvas também. Não é chuva de inverno, mas pega de surpresa, a chuva. Mas é uma época que tem muita fartura, por isso são escolhidos esses meses.
P/1 – Vocês aprenderam a fazer isso com quem?
R – Isso aí já vem com ancestral mesmo, meu pai já fazia isso com a gente. Eu lembro que eu ansiava muito por essa descida no rio que a gente tinha todo ano. Quando chegava aquela época, criança ainda, tiveram vezes que a gente foi em um trajeto muito longo e a gente não tinha nem um motor, nada, era só remo mesmo. A gente passou vários dias descendo o rio e vários dias subindo contra a correnteza. E aí tinha uma canoa pesada, trazendo casca, trazendo peixe para mantimento na aldeia, e aí... mas no retorno não é muito gratificante, não, porque a gente tá querendo voltar já e todo dia era o dia todinho remando, remando, parava para comer. Mas é uma experiência incrível, então era muita vontade de estar lá, estar participando, estar presente. Hoje isso é repassado para os nossos filhos e eles gostam muito mesmo. Esse ano nós fizemos diferente, esse ano a gente teve invasões, desmatamentos, tanta coisa que aconteceu lá na aldeia que a gente não conseguiu se organizar para ir as famílias, mas a gente mandou os jovens para ir para lá, uma turma de jovens para ir para lá, colocar em prática o que já aprenderam. É adolescente, jovens e eles chegaram... só foi uma anciã, que foi a minha mãe, que foi acompanhando eles e para ela foi tudo, tá lá com eles vivenciando aquilo. Então foi muito bom.
P/1 – Olha só, que maravilha! se _____ permitir, eu vou participar da próxima viagem. (risos) Agora, Handech, nós vamos entrar num assunto muito difícil, vivenciado pelo mundo todo, que é sobre o Covid. Como vocês fizeram para se proteger do Covid? E teve algum... se proteger do Coronavírus, né? E se teve alguém que chegou a falecer na sua comunidade, na sua família. Como o Coronavírus impactou na sua vida, na vida do povo, da comunidade? Pensando nos aspectos, assim, culturais, profissionais, e também nos pessoais, do dia a dia, e também em toda a forma de vida interligada ao ambiente inteiro, tanto no cultural, espiritual, físico. Enfim, em tudo. Nesse conjunto inteiro, como a gente foi afetado pelo Covid.
R – Agora... aí é muito forte. Nós passamos por algumas fases difíceis, mas nós conseguimos nos organizar para superar o que poderia acontecer de pior. E a questão espiritual para nós foi fundamental, a questão cultural e espiritual. Então quando surgiu o Covid, a primeira coisa que a gente buscou foi buscar um direcionamento espiritual, como a gente iria agir nessa situação, porque a gente não tinha conhecimento técnico e nem na área da saúde. Nessa situação a gente ouve muito o que a mídia fala, então a gente foi buscar espiritualmente um direcionamento para que a gente… como que a gente iria lidar na situação do Covid-19 quando começou mesmo a primeira onda, que foi algo muito grave. Então, o que a gente recebeu de direcionamento? Que era para a gente fechar a nossa aldeia. Fechar e ter muito cuidado. E a partir daí a gente foi tendo a sabedoria e discernimento de como lidar com a situação. Então a gente fechou a aldeia totalmente para a gente de fora e aqueles que saíram da aldeia para resolver situações só de extrema importância, eles, ao retornar, ficavam quinze dias de quarentena. Totalmente separado, só uma pessoa levava comida, só uma pessoa levava o que precisava. Tudo separado. Banheiro, tudo separado, para que não houvesse contato. Porque como a gente vive tudo coletivo, a gente almoça, toma café, janta junto, se reúne junto pra fazer nossos momentos espirituais, então se alguém fosse contaminado, com certeza todos seriam contaminados em questão de dias. Rapidamente. Então nós tomamos todo esse cuidado. Na primeira onda, lá, os que estavam na aldeia, ninguém foi contaminado. A partir daí, desse processo de quarentena, fechado na aldeia, a única contaminação foi feita por um indígena ______ que contraiu porque ele tava na cidade, mas foi feito todo o acompanhamento cultural e alguns medicamentos __________ e ele se recuperou bem, graças a ______. Quando ele retornou para aldeia, já ficou em quarentena também e já tinha iniciado aquele processo de vacinação. E aí nós conseguimos passar toda a onda, da primeira onda da pandemia, sem ter nenhum contágio na aldeia, sem ter nenhuma perda na aldeia por, de ninguém que foi contaminado. Graças a Deus, não foi contaminado ninguém. Teve parentes nossos, Mura, que foram contaminados, mas eram os que moravam na cidade, que estavam na cidade e moravam na cidade. E o nosso fechar a aldeia e monitorar a entrada e saída de quem chegava e ficava em quarentena, a gente conseguiu a pior fase do Covid vencer ali sem ninguém se contaminar. Já a partir da segunda onda, quando já estava vacinando, já tinha tomado a vacina, até a segunda dose, a gente deu uma afrouxada lá na aldeia e aí permitimos que um indígena que estava na cidade viesse para aldeia e não colocamos em quarentena, achando que já estava mais tranquilo. E aí foi no período na coleta de castanha, um período chuvoso do Amazonas, e aí nós fomos para o castanhal, que no período da coleta de castanha, as famílias… só fica uma família cuidando da aldeia, os outros vão tudo para os castanhais. E nós, nos castanhais, eu estava também presente, ele veio da cidade e ele tava contaminado. Na realidade, ele estava assintomático porque não teve febre, reação, mas ficou sem sentir cheiro e sem sentir o paladar. Mas foi o suficiente para que todos fossem contaminados, todos de uma vez foram contaminados. E nós estávamos longe da estrada, longe de assistência, só nós mesmos ali, no castanhal, e foi quando nós começamos um processo cultural com muito suporte, quando nós pusemos um remédio, foi feito até por mim, pelo Pandé... como eu falo, a nossa espiritualidade é algo muito forte para nós, algo muito real nas nossas vidas. Então, antes de vir os sintomas, eu nem sabia que a gente ia ter Covid. É até forte falar sobre isso, porque muita gente não acredita, mas foi algo que a gente viveu, algo real que aconteceu. Então, antes de vir o diagnóstico, a gente sabia que era Covid, os sintomas, já veio o remédio antecipado. Então a partir daquele momento que eu recebi aquele remédio do _____ , eu preparei uma seiva de uma árvore muito forte. Além de _____ muito forte, foi feito ali as dosagens para cada um com água. E o que foi muito forte foi que quando, a partir do outro dia, veio esses sintomas, já veio todo mundo ali, um atrás do outro... o segundo que apareceu os sintomas foi em mim, eu tive febre, dor de cabeça por um dia. Eu não perdi o paladar e nem o cheiro, mas minha esposa, meus filhos, todos eles ficaram sem sentir o gosto e nem cheiro. E várias outras pessoas, tiveram alguns também que não perderam o paladar. Mas a gente fez o tratamento cultural para os sintomas ali do Covid. É um remédio aí que mais para frente vou fazer uma pesquisa sobre ele, que é muito forte. E aí todos na aldeia receberam esse tratamento cultural e não tiveram reação. A equipe de saúde foi encaminhada, nós comunicamos a Sesai de Porto Velho, que é o que atende nós na aldeia, e eles foram encaminhados para aldeia, uma equipe, e fizeram o exame em todos. Todos foram diagnosticados com Covid e ficaram sete dias lá para cuidar de nós. Mas a gente não teve reação de nada, a gente só ficou sendo monitorado. E a partir daí a gente viu que tanto a estratégia de fechar a aldeia, como a quarentena, ter cuidado com máscara na cidade, álcool em gel, seguir a orientação também do Ministério da Saúde, seguir a orientação de _____ ... depois ali, esse remédio que foi dado também ajudou muito, porque ninguém teve reação, de falta de ar, e só foi mesmo para melhora e recuperação total: ninguém ficou com sequela de nada, ninguém teve nada grave. Foi tão fato que teve uma indígena que estava fora da aldeia, que veio para aldeia depois com Covid - era uma indígena idosa -, com muita falta de ar, muita dor, todo tempo gemendo. Esteve no hospital, fez tratamento, não houve melhora. Foi pra aldeia, eu fiz o mesmo tratamento cultural que foi feito por nós quando pegamos Covid. Durante sete dias com ela foi feito, e no segundo dia ela já levantou, no sétimo dia ela já tava normal, normal. Então o remédio cultural é muito bom, é forte. Então a parte cultural nossa, espiritual, cultural, e os medicamentos da natureza também tem sido uma ajuda muito grande para nós na questão de tratamentos de saúde, em alguns tipos de enfermidades. É um processo ainda que a gente está vivenciando e resgatando cada dia mais nessa essência para nós.
P/1 – Durante a pandemia, os maiores desafios, como vocês foram superando?
R – Nós, o maior desafio que nós superamos foi um cuidando do outro mesmo. Nós tivemos dificuldade em algumas coisas, a gente recebeu o apoio também, tivemos apoio de parceiros. A gente não tinha álcool gel, a gente não tinha kit de prevenção, a gente teve a iniciativa de nós mesmos fabricar as nossas máscaras, foi o primeiro passo. Fabricamos várias máscaras, mas assim mesmo não era suficiente. Tivemos apoio ali do Instituto Madeira Viva, tivemos apoio da pessoa da Dona Magda, a Márcia também, que conseguiu uns kits para nós ali de álcool gel, de máscara e de materiais ali para proteção daqueles que iam sair da aldeia, daqueles que entraram em contato com outras pessoas ali, meio que distantes, quando eles foram na aldeia levar esses materiais, eles se manterem afastados, nem entraram na aldeia. Ficaram afastados lá, debaixo de uma árvore, para não ter contato, para não oferecer risco, mesmo estando todos desprotegidos, mas foi um cuidado muito importante que eles tomaram. A gente recebeu ali também uma assistência que veio da ____________, que também trouxeram alguns kits para ajudar nós ali. Então foram essas parcerias e a nossa força de vontade ali, e a gente estar unido, colocando em prática, porque não adianta ter o material de assistência se a gente não coloca em prática para usar, para se prevenir. Então isso foi muito importante para nós e a gente conseguiu superar esses desafios assim: unidos e com o apoio de alguns parceiros.
P/1 – Quando, no caso, essas parcerias assim, elas envolvem também, quando for falar. Não é a minha, não é a pessoa, mas o coletivo Mura. Quando a gente consegue algum apoio, aí a gente compartilha enquanto coletivo, não enquanto a minha pessoa em si, o coletivo Mura de Porto Velho, junto com, em parceria com o Instituto Madeira Viva. E assim, o Itaparanã tinha alguns desafios para ser enfrentado antes da pandemia e que acabaram ficando ainda maiores? Desafios que vocês conseguiram resolver durante a pandemia e que servem ainda para vocês enquanto estrutura, pós pandemia, que possa ter colaborado a melhorar as condições de vida no território?
R – Essa parte é muito importante também. A gente teve… tinham muitos desafios. Na realidade, nós estávamos fazendo, buscando melhorias. Estávamos buscando ali apoio para algumas ações lá na aldeia na parte de saneamento, na parte do poço artesiano. Nós estávamos buscando também a garantia e proteção a mais para o nosso território, garantir mais proteção. Então na questão da proteção, de monitoramento, que nós estávamos ali lutando para proteger, identificando e buscando junto ao Ministério Público, com a pandemia, gravou muito. Então pessoas que atuam nessa área de crimes ambientais, desmatamento, _____ de madeira, esses negócios, eles aproveitaram a pandemia, quando os órgãos pararam de funcionar, o Ibama, todo mundo entrou em lockdown ali, então, e aumentou o índice de desmatamento nessa parte da pandemia, grandemente. O desmatamento aumentou, eles aproveitaram para desmatar mesmo e a gente não conseguiu caminhar nessa parte, muito. A gente fez denúncia, a gente fez registro, mas não teve muito resultado nesse período da pandemia. Eu acredito que nem é tanto a pandemia, mas mais na questão da política desenvolvida desse atual governo na questão ambiental. E as outras questões nós contornamos com o apoio de parceiros, como ______ falou sobre a questão do Coletivo Mura - que eu até esqueci de falar do Coletivo Mura -, porque eu vejo o Coletivo Mura como uma pessoa, mas tiveram parcerias que ajudaram nós ali na parte da água na aldeia. Nós estávamos tendo dificuldade com o poço que nós tínhamos, que tava secando, desbarrancando, era o poço Amazonas. A gente teve ali, com o apoio do Instituto Madeira Viva, um poço semi artesiano, mais um kit de luz solar, todo equipado para poder, filtros. Isso foi muito bom para nós, esse desafio foi muito bom e foi superado, algo que foi conquistado durante a pandemia. E o Coletivo Mura também atuando direto ali em parcerias com outras instituições que foram importantes para nós, que em momentos difíceis, quando a gente não tinha pernas para caminhar, eles vieram para ajudar e a gente conseguiu superar juntos. Outras, que tivemos dificuldades em algumas coisas, também a gente teve apoio com cestas básicas, que ajudaram ali também em algumas situações, que não precisou estar indo à cidade para estar correndo atrás de alguma coisa. Tudo que nós tínhamos, o que temos na aldeia, só melhorou nessa situação. E isso daí foi uma das coisas que a gente conseguiu vencer, conseguimos transformar algo que estava tão ruim para melhorar com os apoios necessários que foram essenciais para nós durante esse processo dessa pandemia que matou tantas pessoas, foram bastante e a gente tem muita gratidão a ______ por nós termos conseguido vencer. Cada mão aí que nos deu força e auxiliou para a gente vencer também.
P/1 – Fala um pouco mais sobre a saúde indígena. Tiveram outras doenças que durante a pandemia afetaram, assim, de uma forma mais forte, vocês? Como foi esses atendimentos pela saúde indígena?
R – Nós tivemos muita dificuldade na questão da malária. Todo o recurso do governo - não sei se serve como justificativa, porque para mim não justifica - relacionado, foi com a questão da pandemia, os outros foram esquecidos. Nós tivemos situações endêmicas na aldeia com a malária, porque aqui no Amazonas é crítico em alguns lugares. E nesse período da pandemia, para nós, foi muito difícil também, tiveram muitos casos de malária e a atenção era voltada somente para a questão da pandemia, e a gente teve dificuldade por não ter materiais para fazer coleta, não ter transporte para levar para fazer os exames, os resultados e a demora para retornar. Então só gravava a situação, porque ao invés de acabar com o mal, fazer transmitir mais, porque a demora para o tratamento fazia com que outros fossem contaminados. E nesse sentido, na questão da SESAI [Secretaria Especial de Saúde Indígena] não desenvolveu um trabalho de qualidade, ficou longe de ser um trabalho bom para nós, então foi tão ruim na questão de endemias. A questão da SESAI, os atendimentos mesmo de saúde, eles foram totalmente inferiores do que estava acontecendo, na questão da equipe não estar organizada da forma que era para ser, das questões das quarentenas, que tinham que ter. Tudo isso afundou, a gente teve dificuldades, muita dificuldade na questão da saúde e em outros segmentos durante a pandemia, muita dificuldade.
P/1 – Foram tempos difíceis, de muita política genocida. Foi o momento em que acharam que nós iríamos ser dizimados mais uma vez, mas foi um momento em que a gente mais se uniu e mais deu a mão um para os outros e mais lutou junto, mostrando mais uma vez quanto que os povos indígenas resistem há 520 anos de pandemias, de invasões, de mortes e tudo mais. Somos resistência. E com perguntas, assim, conclusivas, eu queria te perguntar quais são, hoje, as coisas mais importantes para você?
R – Para mim, o que é mais importante hoje é o meu povo, é a proteção do meu povo, a proteção do nosso território, que para isso é necessário a demarcação imediata do nosso território, que garante em grande parte, na sua maioria, a proteção tanto do nosso povo quanto a da natureza, dos rios, da floresta. E com isso, grandes benefícios alcançarão nós. Muito da luta que temos vai cessar mais, já vai focar mais em cuidar daquilo que é nosso por direito, que é garantido na Constituição Federal. Então o meu povo é importante para mim... porque é muito importante para mim mesmo, considero a coisa mais importante aqui nessa terra, na vida que temos, que é ele que é minha base, que é a estrutura que nós temos, ele vem de um e do outro, de cuidar um do outro, de lutar um pelo outro. Minha família também, que é o mesmo povo, mas ali, particularmente, minha família. E a outra coisa também, depois do nosso território, a demarcação do nosso território, para nós, é o fortalecimento cada dia mais a nossa cultura como identidade cultural, expandindo mais os conhecimentos tradicionais, na medicina tradicional e para que outras pessoas, outros parentes, outros povos também, que venham a ser motivados. Alguns parentes já perderam ali a essência do que é mesmo por causa de tanta coisa que é empurrada à eles, de tanta discriminação, de empurrar tanta coisa para eles. Enfrentam muitas dificuldades hoje, alguns estão perdendo a essência do que são, e nós podemos ser motivação para muita gente. A cada dia que nós somos construídos novamente, resgatamos mais do que somos.
P/1 – Nemeguere. E aí para encerrar mesmo agora... eu, assim, da minha parte das perguntas, mas se você depois tiver coisa para falar também, pode falar. Quais os seus sonhos? O que gostaria de deixar como legado?
R – Essa é forte. Os meus sonhos são fortes. Na realidade, meu maior sonho hoje mesmo é ver o nosso território sendo demarcado, para mim isso é o êxtase do que eu peço, do que eu quero, do que eu anseio. E só de passar pela minha mente a possibilidade do atual governo continuar no poder e essa política continuar dessa forma, para mim mesmo era quase desespero, mas aí vem ______ , vem o que nós sentimos, vem saber que nós não somos esquecidos, que estamos lutando juntos. E aí a esperança de mudança, de alcançarmos ali e chegar até na demarcação do território, para mim é só celebrar. Eu acredito que vai chegar esse dia, não tá muito longe. E para mim isso é uma realização mesmo, que é um sonho que era o que o meu pai _______ queria, que eles morreram lutando por esse território, pela demarcação do nosso território, pela proteção dali da natureza, pela proteção de nossa sobrevivência, de nossa futura geração. Esse, para mim, é o que eu mais almejo nesse momento. E como legado que eu tenho para deixar, é só mesmo a fé de acreditar e de perseverar na perseverança, de acreditar naquilo que parece ser impossível e se permitir a cada dia ser melhor. É algo que tem sido muito parte de mim assim, de querer a cada dia me tornar melhor. Não me achar melhor, mas ser melhor em alguma coisa, em algo. Isso eu sei que vai continuar, porque é algo que é tão real que traz motivação para a nova geração. Perseverança.
[inaudível]
P/1 – _________ E a gente continua firme e forte na luta, na resistência. Nemeguere. Da minha parte, eu não tenho mais perguntas, mas você gostaria de falar mais alguma coisa?
R – Eu só quero agradecer __________, a você, __________, e toda a equipe aí do Museu. Eu não lembro o nome agora do nosso moderador aí...
P/1 – Alisson!
R – DJ Alisson foi paciente aí nas zoadas, no momento que falhou. Está junto com nós aqui com as costas doendo também, aguentando. Muito obrigado a você e a toda a equipe, que vocês deram essa oportunidade, que fizeram com que acontecesse, isso vai ser muito importante pra nossa história. Então, __________ proteja todos, dê proteção a todos aí por esse momento e __________ .
[Fim da Entrevista]
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