P/1 – Bom, para começar a entrevista vou pedir pro senhor falar de novo o seu nome completo.
R – Meu nome é Cláudio Fadel. Eu sou natural de Minas Gerais, Passa Quatro [é] de onde eu vim e me radiquei no Rio de Janeiro em 1949. Estou até hoje em Bonsucesso, meu querido Bonsucesso, que eu luto tanto...
P/1 – Seu Cláudio, que dia que o senhor nasceu?
R – Eu nasci em vinte de agosto de 1939.
P/1 – Em Passa Quatro, mesmo.
R – Em Passa Quatro.
P/1 – E o nome dos seus pais?
R – Meu pai é Adib Fadel e Esmeralda Fixfexel Fadel.
P/1 – E o que eles faziam em Passa Quatro?
R – Meu pai era comerciante também em Passa Quatro, num período. Minha mãe era dona de casa, sempre foi dona de casa. Ficamos lá… Nasci lá; até nove anos de idade, aproximadamente pra dez, nós ficamos lá, mas minha mãe não se adaptou muito com o frio de lá. Depois era um local que não dava pra expandir muito, não tinha escola suficiente, estava difícil pra estudar. Não pra mim, mas pros meus irmãos mais velhos, estavam com dificuldade. Eu era o caçula na época. Então meu pai resolveu vir pro Rio de Janeiro e nos radicamos em Bonsucesso.
P/1 – E de onde a mãe do senhor era? Porque o senhor falou que ela não se adaptou ao frio.
R – A minha mãe era libanesa. Meu pai também [era] libanês, mas ela não se adaptava muito ao frio. Era muito pesado o frio, por isso que resolvemos não ficar muito lá. Não tive muita infância lá, até nove anos você não grava muita coisa a não ser aquele início de primário, escola primária.
A minha infância maior foi em Bonsucesso, Rio de Janeiro. Eu vim e fui estudar na escola Bahia, na Avenida Brasil. A Avenida Brasil só tinha uma pista ainda. Estudei na escola Bahia até que o Rui Barbosa, em 1950, ficou pronto. Pra facilitar, pra não estar atravessando a pista, ser mais perto, meu pai me transferiu; até a própria escola que...
Continuar leituraP/1 – Bom, para começar a entrevista vou pedir pro senhor falar de novo o seu nome completo.
R – Meu nome é Cláudio Fadel. Eu sou natural de Minas Gerais, Passa Quatro [é] de onde eu vim e me radiquei no Rio de Janeiro em 1949. Estou até hoje em Bonsucesso, meu querido Bonsucesso, que eu luto tanto...
P/1 – Seu Cláudio, que dia que o senhor nasceu?
R – Eu nasci em vinte de agosto de 1939.
P/1 – Em Passa Quatro, mesmo.
R – Em Passa Quatro.
P/1 – E o nome dos seus pais?
R – Meu pai é Adib Fadel e Esmeralda Fixfexel Fadel.
P/1 – E o que eles faziam em Passa Quatro?
R – Meu pai era comerciante também em Passa Quatro, num período. Minha mãe era dona de casa, sempre foi dona de casa. Ficamos lá… Nasci lá; até nove anos de idade, aproximadamente pra dez, nós ficamos lá, mas minha mãe não se adaptou muito com o frio de lá. Depois era um local que não dava pra expandir muito, não tinha escola suficiente, estava difícil pra estudar. Não pra mim, mas pros meus irmãos mais velhos, estavam com dificuldade. Eu era o caçula na época. Então meu pai resolveu vir pro Rio de Janeiro e nos radicamos em Bonsucesso.
P/1 – E de onde a mãe do senhor era? Porque o senhor falou que ela não se adaptou ao frio.
R – A minha mãe era libanesa. Meu pai também [era] libanês, mas ela não se adaptava muito ao frio. Era muito pesado o frio, por isso que resolvemos não ficar muito lá. Não tive muita infância lá, até nove anos você não grava muita coisa a não ser aquele início de primário, escola primária.
A minha infância maior foi em Bonsucesso, Rio de Janeiro. Eu vim e fui estudar na escola Bahia, na Avenida Brasil. A Avenida Brasil só tinha uma pista ainda. Estudei na escola Bahia até que o Rui Barbosa, em 1950, ficou pronto. Pra facilitar, pra não estar atravessando a pista, ser mais perto, meu pai me transferiu; até a própria escola que transferiu, estava sobrecarregada a escola Bahia. Fizeram a Rui Barbosa pra descarregar a Bahia. Estudei ali no colégio público, é meu primário, ali.
P/1 – O senhor se lembra como foi a sua viagem de Passa Quatro pro Rio de Janeiro? O que o senhor ouvia falar do Rio de Janeiro, tinha alguma coisa?
R – Eu era muito novo. Fiquei perplexo com a quantidade de luz, fiquei abobalhado, no início. A gente chega lá com muita luz; lá [em Passa Quatro] não tinha luz, era uma brazinha; você olhava, era muito fraquinha. Não tinha energia elétrica lá, pouca energia elétrica, então quando eu vi aquela quantidade de luz a gente ficava perplexo. Eu achei que estava mudando de planeta.
Fiquei maravilhado com o Rio de Janeiro. Estamos até hoje lutando ali em Bonsucesso. O meu pai veio, abrimos uma loja ali na [Avenida] Guilherme Maxwel, 587-A, a primeira loja nossa. Éramos quatro e em 1950 nasceu o meu irmão mais novo, que é o temporão, nasceu ali na casa de Bonsucesso e de lá nós fomos enrolando, acompanhando o desenvolvimento do bairro.
Conseguimos abrir mais uma loja na [Rua] Cardoso de Moraes, 95, também Tecidos Fadel Ltda. Desenrolamos um bom tempo, até que uma necessidade, ali na... Como nós éramos muitos, a gente fazia um posto avançado, aí eu fui designado pra ir pra Nova Iguaçu. Isso já foi em 1960, já. Fiquei num comércio lá na [Avenida] Nilo Peçanha, número 81 - 85, aliás - de 61 a 62, mas depois foi meio complicado. Nós fomos a fim de negócios, em 62 passamos o ponto e voltamos pra Bonsucesso aí compensamos cada um montar a sua própria empresa.
P/1 - Lá no bairro, mesmo.
R – No bairro, mesmo. Fui abrir uma loja pra mim, independente, que era na [Rua] Cardoso de Morais, 59 e ali era novo, ainda. Tentei começar a fabricar alguma coisa, mas cheguei a conclusão que a gente não pode fazer tudo: ou você fabrica e vende ou você fabrica e você vende. Cheguei à conclusão: optei pra venda.
Fiquei radicado muito tempo lá no 59, uma loja pequininha, montando a minha própria empresa; saí da sociedade montando a minha própria empresa. Quando quis expandir lá em Bonsucesso, tinha uma casa de móveis ao lado e me ofereceram uma loja com oito metros de frente, cinquenta e poucos... Loja grande. Eu me entusiasmei com aquilo e queria trabalhar com cama e mesa, um produto que ocupa muito espaço e eu não tinha ali, aí eu fiz uma alteração: passei a trabalhar com roupa de criança na loja pequena, passei adulto pra loja grande e cama e mesa - a seção é unissex, masculino e feminino e a seção de cama e mesa porque eu tinha espaço suficiente. Desenrolei ali no comércio, ficamos com aquela loja até 76; o proprietário quis vender o imóvel, eu não tive condições de comprar na época.
O Álvaro da Costa Melo, o pioneiro lá da Leopoldina, o que mais que construiu ali, mandou um mensageiro me procurar me propondo um negócio: eu ceder o contrato pra eles poderem levantar um prédio que está lá, o 61 da Cardoso de Moraes, aí eu vendi. Passei pra ele quando mudei pra Serra das Nações, 172-A em 1977. Nesse período eu montei uma nova loja, com nova fachada: Alan Modas, só com roupa unissex. Era uma loja um pouco menor, sofistiquei mais um pouco e estamos vendo, trazendo. A loja, tudo bem… Bonsucesso, um bairro de muito sucesso, até que [há] pouco tempo veio o [programa de urbanismo] Rio-Cidade Bonsucesso, que desarticulou um pouco o progresso do bairro.
P/1 – Vamos voltar um pouquinho, tenho algumas dúvidas sobre os pais do senhor. O senhor sabe como eles vieram pro Brasil, se eles vieram casados já?
R – Não, eles se conheceram em Machado, Minas Gerais. Meus pais vieram e se conheceram aqui. São do mesmo lugar e só se conheceram em Machado, Minas Gerais.
P/1 – São da mesma cidade do Líbano?
R – Do Líbano. Se conheceram em Minas Gerais, em Machado e se casaram lá quando a minha irmã mais velha nasceu, lá em Machado. Depois foram pra Pouso Alegre, nasceu outro meu irmão. Meu pai não parava, parecia cigano, né? Nasceu meu irmão Jorge lá, em Machado foi a Olésia. Depois mudou pra Jundiaí, veio a escadinha dos filhos de dois em dois. Em Jundiaí nasceu a Marlene, depois ele foi pra Passa Quatro, quando eu nasci.
P/1- E o pai do senhor sempre trabalhou no ramo de...
R – Sempre foi comerciante.
P2 – No ramos de tecidos ou outra coisa?
R – Não, ele vendia tudo, vendia tecido... Antigamente as lojas não eram lojas, não tinha determinação. Era bazar, então você vendia brinquedo, você vendia relógio, vendia botão, linha, tecido. Você tinha uma diversificação muito grande, hoje não. A evolução veio, então as coisas foram se especializando, você tem que se especializar. Até o emprego, você se especializa em alguma coisa se quiser subir na vida, então o próprio comércio hoje lhe obrigou… Hoje, você entra numa loja [e] você tem uma ou duas seções, no máximo, a não ser uma antiga Mesbla, que tinha aquele espaço, a Sears. Acabaram também, mas hoje nós temos aí a C&A. São só roupas, mas tem um sortimento muito grande, tem as três seções, do netinho ao vovô, como eles dizem. Nós temos uma loja de porte pequeno, se quisermos ter tudo não vamos ter nada; você tem que ser bom em alguma coisa, então você se especializa. Eu cheguei ali e me especializei na roupa unissex, masculina e feminina, aproveitando aquela faculdade do lado pra explorar mais essa roupa modinha. A roupa modinha hoje, porque antigamente você dependia de fábrica, hoje você trabalha em sistema de guerrilha.
P/1- Como é isso?
R – Sistema de guerrilha é o seguinte: você segura a sua compra, depois corre pra pronta-entrega e faz uma compra, tudo num prazo só, que aí você chega... [Na] minha loja, por exemplo, eu tenho uma vitrine de homem de seis metros de cumprimento de um lado e de mulher de doze; como é que eu vou fazer uma vitrine se eu compro de uma fábrica [e] uma entrega hoje, outra entrega daqui a cinco dias? Eu nunca tenho, nunca consigo mudar uma vitrine.
No sistema de guerrilha, eu viajo e quando eu venho [são] trinta, quarenta modelos novos. Mudo o panorama todinho, mudo o cenário todo, aí faço alterar o sistema de guerrilha, ele se controla. A política do governo derrubou muito o comércio e os salários andam fora da realidade, aumenta tudo e o salário não aumenta. A coisa não tá fácil de se trabalhar, então hoje em dia você tem que correr muito. Eu trabalho três vezes mais do que eu trabalhava e ganho três vezes menos pra poder sobreviver, funciona assim o comércio.
P/1- Seu Cláudio, quando o senhor chegou aqui no Rio de Janeiro, descreve pra gente como era o bairro do Bonsucesso, onde o senhor costumava brincar.
R – Bonsucesso, quando eu cheguei, não tinha nenhum calçamento: praça era de terra, o chão, tudo terra. A Praça das Nações [que] lá hoje está era um buraco, que quando chovia fazia uma lagoa, servia pra piscina.
P/1- Você brincavam lá?
R – A gente brincava, pulava naquela água suja. [Pra] criança vale tudo e tem anticorpos danados. Pulava, até que uma ocasião os moradores lá se reuniram. “Vamos aterrar aquilo lá.” Fui numa tristeza danada, mas eu ajudei. Eu gosto de colaborar, eu gosto de participar de tudo. Aí entramos, aterramos aquela praça; se você observar hoje, a praça é mais alta do que as lojas, pra evitar aquela bacia que formava ali. A drenagem ali… Sempre teve uma enchente crônica ali; nunca foi enchente de grande vulto, mas sempre a rua enche. Quando cheguei lá, quando era criança eu explorava aquela enchente. Eu botava o meu cavaletezinho com as tabuinhas e cobrava um tostão de cada um pra passar naquilo; eu já cobrava pedágio naquela época.
P/1- Não acredito.
R – É verdade, eu já cobrava pedágio naquela época, fazia o meu pé de meia ali. Aquele Morro do Adeus em frente, que hoje está todo habitado, nós fazíamos alpinismo ali, de criança pegar aquele montão de corda e emendar, remendar pra subir.
Sábado a gente pegava chuchu e maracujá pra vender, pra arrumar o dinheiro pro cinema. Meu pai era comerciante, mas você sabe, Bonsucesso era um bairro de muito pouco movimento. Cinco filhos, quer dizer ele não tinha como dar uma mesada pra cada um, então a gente aprendeu a se defender.
Quando eu peguei doze anos de idade eu já botava terninho branco, gravatinha borboleta; tinha um ponto de táxi na porta da loja, eu trabalhava no carro de noiva, abria a porta e arrumava o meu pro sábado e domingo. Parei com o maracujá, já mudei de ramo, a gente abria porta em carro. Era cinquenta cruzeiros naquela época. Sábado eram três casamentos: o primeiro era cinquenta por causa da lavagem do terno, porque terno branco sujava, os outros subsequentes seriam 25 cada um. Arrumava cem cruzeiros.
Um operário trabalhava quinze dias pra ganhar isso, eu ganhava num sábado como garoto. O salário era em torno de duzentos, 260 naquela época. A gente, garoto, ganhava isso num fim de semana. Você vê, era um grande negócio, eu sempre corri atrás disso.
P/1- E o que o senhor fazia com o dinheiro, era cinema?
R – Cinema, tomar sorvete, Coca-Cola e gastar o dinheiro todo. Eles não viam o dinheiro, porque eu não dava. Não tinha esse negócio de guardar, não, a gente gastava tudo. No outro sábado a gente ganhava mais. Criança não tem aquela ideia de economia, não pensa no futuro. A gente pensa no presente, a gente vive o presente. Foi vivendo, aquilo foi indo, aí chega num ponto que já passa da idade de fazer aquele trabalho.
Eu já estava trabalhando com meu pai, tomava conta da porta. Comecei a trabalhar nas lojas, era vendedor. Você vê que com dezoito anos eu fui tomar conta de uma loja num posto avançado lá em Nova Iguaçu.
Bonsucesso foi um bairro que quando Carlos Lacerda foi pra lá é que começou a calçar, foi o Carlos Lacerda que botou asfalto naquilo ali. Primeiro foi o paralelepípedo, depois o Lacerda veio e botou o asfalto. Aquele lugar é todo asfaltadinho, é um bairro bom, veio evoluindo bem. Sempre foi um bairro que deu pra todos ganharem, só que [com] a crise atual, de repente nós já estamos no…
O comércio já passa uma crise federal, foi quando o Fernando Henrique assumiu. O Brasil tinha oitocentos bilhões de PIB, arrecadava noventa bilhões; quando ele saiu o Brasil tinha quinhentos bilhões de PIB, caiu o PIB e a arrecadação era duzentos e tanto. Os impostos deram uma subida muito grande e os comerciantes hoje trabalham três vezes mais e ganham três vezes menos.
E mais, o poder público que não colabora com o comércio, o poder público não ajuda o comércio. Você vê que veio _______ de Bonsucesso, ali o poder público não colabora. Nós fizemos abaixo assinado, fizemos ofício, fizemos jantar pro Conde, fizemos café da manhã pro César Maia; tudo se prontificam a fazer e não sai nada. Há seis anos estamos brigando pra nos devolver parte do que nos tomaram. A minha loja, hoje nem compensa ter. Eu troco figurinhas ali e o poder público não colabora.
O próprio Sebrae, uma ocasião fizemos um almoço no Rotary. O Sebrae [disse]: “Vamos ajudar o pequeno e médio empresário.” Depois que fazem um pacote que destrói todo mundo, quebra o comércio, ele vai ajudar. “Tudo bem, quem tiver título protestado não pode.” Se você atrasar cinco dias você é protestado, quem é que não tem um título protestado no Rio de Janeiro? É a forma de não emprestar o dinheiro. Nós fizemos, quando fundamos lá... Eu, o Saraiva, seu Ernesto Salgado e outros amigos fundamos a Força Empresarial, conseguimos fazer no Senac o primeiro fórum de pequena e microempresa. Quando o Bier liberou aquele dinheiro pra emprestar, o dinheiro estava no banco - acho que o [Banco] Excel, se não me engano -, o que nós fizemos? Agimos de malandragem: botamos o balcão Sebrae, banco aqui, o Finor [Fundo de Investimentos do Nordeste] ali… Resolver no ar... Na hora, jogamos um contra o outro.
P/1 – Cláudio, acho que o Edvaldo tem uma pergunta.
P/2 – O senhor gosta de cinema, como é essa vida cultural de Bonsucesso na sua infância? Porque tinha cinema naquela região.
R – Ah, tinha três cinemas em Bonsucesso. O primeiro cinema de Bonsucesso foi o Paraíso, que depois passou a ser o Teatro Suam. Hoje está fechado por causa do Shopping Suam, que ficou com aquela área pra construir dois cinemas e um teatro, ele depois transformou em Teatro Suam também. Dali da área, o mais disputado era ele.
Depois tinha o cinema Bonsucesso, que era o ‘poeirinha’, [a gente] chamava de ‘poeirinha’. Era um cinema pequininho na Cardoso de Moraes, em frente à loja que nós tínhamos aqui. Depois surgiu o cinema Melo, que é na [Avenida] Teixeira de Castro, 10, hoje atual Casas Sendas.
Quando surgiu a televisão muita gente deixou de ir ao cinema, então o cinema veio caindo. Você vê que vocês faziam cinema de… Pertence a Bonsucesso o Rio Palace, cinema pra três mil espectadores. Hoje se constrói cinema pra duzentos, no shopping são duzentas, 150 pessoas no cinema. Não tem uma sala como tem lá em Olaria, o [Cine] Leopoldina, que hoje é uma igreja evangélica, você olha o censo quando via o fim do cinema.
P/1 – E como vocês iam, vocês iam em turma? Quem eram os amigos do senhor?
R – Nós tivemos uma infância em Bonsucesso muito sadia. A gente brigava, mas estava todo mundo bem. Ninguém usava arma, a gente chegava a ponto. Tinha o time de futebol da rapaziada, jogava futebol - saía mais briga do que futebol, mas tinha a bola.
Eles gostavam tanto de brigar, aquela garotada! Eles pegavam a turma lá da 24 de Fevereiro. Tinha um campinho chamado Os Onze Cansados, então juntava aquela turma,.vinham dez, doze, às vezes quinze de lá contra a turma da Praça das Nações, aí todo mundo brigava ali, saía no tapa. Ninguém pegava arma, ninguém pegava uma pedra, ninguém pegava no pau, tudo no tapa.
P/1 – E qual era o motivo da briga?
R – Esporte, eles gostavam de brigar. Todo mundo com a cara inchada, um tomou tapa, outro tomou rasteira, outro cotovelo ralado cheio de esparadrapo.
Todo mundo estava no cinema domingo, todo mundo respeitava o cinema, se cumprimentava. Não tinha… Não sei onde que eles arrumaram esse tal do ódio. A gente vê tanto aí, esse pessoal tem uma maldade no coração, aquele ódio de puxar uma arma pra atirar nos outros.
P/1 – Seu Cláudio, e quando o senhor chegava em casa depois da briga?
R – Apanhava mais um pouquinho. Eu aprontava com meus pais, sabe? O meu quarto… Assim que chegamos nós fomos morar na Praça das Nações, 394, apartamento 203. Você imagina que tinha uma árvore que encostava na marquise. Eu aprontava minhas safadezas na rua e o velho me botava de castigo, me gaguejava lá: “Te pego na volta.” Quando ele me trancava no quarto pra eu não sair, eu descia pela árvore, dava um couro no cara e depois voltava.
“Pô, estava lá em cima! Pera aí.” Na cara de pau, subia pela árvore, ida e volta, aí minha mãe passou a me vestir, botar vestido de mulher e fazer eu fazer crochê - crochê não, bordar ponto de cruz.
P/1- Pra não sair de casa.
R – Pra não sair de casa, me vestia com o vestido da minha irmã, aí não tinha como sair. Ela descobriu que eu descia pela árvore. Quando eu aprontava as minhas artes me botava vestido de mulher. Eu não aparecia nem na janela.
P2 – E o time de futebol, o senhor praticava futebol?
R – Eu tinha um time de futebol, na época. Era dono da camisa, mas era tão ruim que depois _______, não queriam nem me escalar. Eu, sendo o dono da bola… Eu sempre fui ruim de bola, isso é verdade, eles nunca queriam me escalar.
“Se não me escalar eu vou levar a bola.” Aí não tinha jogo, tinha que me fazer jogar. Como uma pessoa vai saber se eu sou ruim, como é que vou ser bom se eu não jogo? “Não, tenho que treinar.” Eu nunca tive intimidade com a bola, só porque ela é redonda.
P/1 – Seu Cláudio, e praia, essas coisas, vocês frequentavam?
R – Adorava, sempre adorei praia, muito. A gente saía de Bonsucesso a pé e ia à praia do Galeão. Desde garoto eu gostava, a gente corria... Quando era garoto, o esporte da garotada [era] a gente correr de Bonsucesso à praia do Galeão. Atravessava a ponte, quando a maré estava enchente a gente atravessava a nado pra praia de Ramos e voltava pra tomar o café da manhã. Era a turma do jiu-jitsu da Academia do Rubens Serra, eu já rapazola de quinze, dezesseis anos.
A gente ia a pé até lá, tomava banho de praia e depois a gente ia de bicicleta ali pescar, ia muito. A gente não saía da água.
Eu adoro o mar, [se] eu estou aborrecido eu chego na minha varanda, olho pro mar [e] esqueço tudo. O mar parece que dá uma carga na minha bateria, o lado bom aparece, o lado ruim esquece. Modéstia à parte, eu sempre tive predominante o meu lado bom, quer dizer, estou com 64 anos e nunca tive nenhum processo, nenhum de agressão, dessas coisas. A gente brigava quando era garoto porque faz parte da infância, depois que eu gastei bem aquela energia, na juventude, justamente pra nossa idade madura as coisas são diferentes, já não funciona mais dessa forma do esporte.
É muito difícil hoje conviver com as pessoas. Você tem que ter uma autoconfiança em si próprio, porque você tem que ser muito tolerante hoje em dia. Se você não for tolerante hoje, você vai se aborrecer constantemente. A pior doença do homem é o nervo, o cara que é nervoso já perdeu 50% da saúde. É por isso que eu tenho 64 anos [e] ainda pratico esporte. Não vou dizer que eu sou um super homem, isso não existe, só na história do americano lá, agora eu pratico esporte, sou um cara sadio, brinco, conto piada, adoro contar piada. Estou sempre sorrindo com o pessoal e é uma forma de viver bem, você tem que viver sorrindo.
P/1 – É verdade. Seu Cláudio, nessa época já começaram as paqueras?
R – Ah, paqueras. Eu fui lambretista.
P/1 – O que é isso?
R – Lambreta, época da lambreta, né?
Não conheceu a lambreta? Era italiana. Quando lançou a lambreta italiana, pra você ter uma ideia, as garotas davam preferência aos lambretistas. Ia com um Impala 1959 daquele, Impalão bonitão; as lambretas levavam vantagem, elas preferiam as lambretas.
Lamentavelmente, às vezes… Aquilo durou uns três anos de apogeu, depois ela começou a ser usada indevidamente, aí eles começavam a nos ver… O problema das más línguas é generalizar as coisas. Um comete o erro, que foi de lambreta, lamentavelmente… Começaram os estupros com cara de lambreta, se aproveitavam; as garotas vinham pra passear, eles não tinham paciência de esperar o momento, aí começaram a forçar.
Começou a desmoralizar a classe e eu passei pra era do [carro] Karmann Ghia, eu e um amigo que saía muito comigo. Ele tinha uma lambreta listrada, a gente chamava ele de Zebrinha. Era eu e ele, a minha [lambreta] tinha uma parte com um raio assim, com a parte pérola em cima e vermelha embaixo, tinta metálica - era raridade aqui. Tinha um tio meu que trabalhava [com] esporte, me trouxe essa tinta metálica. Todo mundo parava pra olhar a tinta, porque era tipo purpurina; ninguém conhecia essa tinta no Brasil, ela brilhava. Quando parava o pessoal fazia rodinha pra ver a tinta, enquanto durou aquele apogeu.
Depois nós passamos pra época do Karmann Ghia; eu comprei um, ele comprou outro. Ele era vendedor e eu continuava na loja. À noite, quando eu fechava a loja, a gente saía pras paqueras; a gente fazia ponto _______ de lambreta, depois passou a ser os carros. A gente fazia muita excursão na época das lambretas também. “Vamos pra Paraíba do Sul.” Aquela excursão de… Uma turma sadia.
P/1 – A turma toda?
R – Depois começaram a entrar as misturas, entrar tóxico na parada. Tem certas coisas que quando a pessoa tem… O seu íntimo não aceita determinadas coisas, você começa a se afastar, aí nós saímos e entramos pra era do Karmann Ghia. Passou a época dos playboys, [era a] época dos fãs do Roberto Carlos. Começou a época do Roberto Carlos [e] a gente fazia as farras, fazia excursão, praia todo fim de semana. Eu não perdia um domingo de praia, só no meio da semana porque tinha que trabalhar; dava um feriadinho, a gente estava lá no Jardim Guanabara, na praia, ou então Barra.
P/1 – Seu Cláudio, como é que o senhor comprou a sua primeira lambreta? Onde foi, como o senhor juntou dinheiro?
R – Essa primeira lambreta comprei em Nova Iguaçu, comprei uma lambreta usada. O cara tinha caído, tinha amassado a lambreta toda. Eu estava sem dinheiro pra comprar, ele fez um precinho deste tamanho porque ela tava acidentada. Fui consertando aos poucos, botei ela boa e começamos a ter a primeira lambreta. Depois fomos melhorando, gradativamente.
Isso não durou muito tempo, o apogeu das lambretas durou uns três anos, mais ou menos. Depois nós passamos pras motocicletas, a gente começou a ter mais sede de velocidade, né? É a idade, hoje já mudou. O Jair, ele tinha uma Honda 400 _______ e uma Suzuki 550 JT, aí a gente saía, ia pra São Paulo, viajava, ia conhecer essas beiradas todas.
Eu não tenho… Você vê, eu tiro as minhas férias... “Você quer ir pra Nova Iorque, quer ir pra Londres?” Não, eu quero ir pra Bahia, eu quero ver Canoa Quebrada no Ceará, Rio Grande do Norte, aquela área toda. O nosso Brasil tem lugares maravilhosos, até hoje eu até repito lugar, vou ali pelo lado do Nordeste e não quero viajar pro exterior. Não tenho a ilusão de viajar pro exterior, eu adoro esse Brasil que nós temos, é o maior país do mundo em área útil, mal aproveitada.
P/1 – Quando o senhor chegou lá de Passa Quatro pro Rio, essa paisagem do Rio tinha alguma coisa assim...
R – Deslumbrante, eu nunca tinha visto aquilo. Fiquei de boca aberta, aí meu irmão [disse]: “Você tá de boca aberta.” “Eu sei fui, eu que abri.” (risos) É deslumbrante aquilo, muito lindo. Eu nunca tinha visto tanta luz. Quando nós chegamos ali na Central do Brasil, aquilo tudo iluminado... “Eu tô em outro planeta”, parecia aquele dia de lua cheia. O céu todo estrelado, lindo, parecia aquilo.
P/1 – Vocês vieram de trem?
R – Nós viemos de trem. Meu pai não, meu pai veio primeiro, montou os negócios, preparou o apartamento. Depois que nós viemos de trem veio o caminhão trazendo a mudança. Veio a tropa de trem, mamãe e mais cinco filhos.
P/1 – E como era o cotidiano da família aqui no Rio, essa convivência com os irmãos?
R – Nós sempre tivemos uma convivência boa, sadia. Uma briguinha sempre tem, briguinha de irmão, mas sempre foi uma convivência muito sadia. Um sempre se preocupou muito com o outro, até hoje um se preocupa com o outro.
Hoje eu estava almoçando, chegou meu irmão: “Como é que estão as coisas, tá precisando de alguma coisa?” É muito sadio, isso. Minha irmã chega, quando está fazendo os negócios dela: “Tá precisando?”
Um sempre procurou ajudar o outro, nós sempre fomos muito unidos, muito unidos mesmo, as briguinhas tradicionais sempre teve, uns tapinhas lá, uns tapinhas aqui, mas sempre teve...
Quando nós chegamos ao Rio nasceu o mais novo, em 1950, em Bonsucesso. Já me pegou na época da motocicleta, já estava na lambreta. Ainda me recordo um dia, uma ocasião: o tempo esfriou, eu parei lá embaixo… Tudo [era] edifício. “Zézinho, pega o meu blusão de couro pra mim.” “Só se me der um galo.” Eu não sabia quanto era um galo. “Eu te dou um galo”, aí perguntei: “Um galo é cinquenta?” “Cinquenta, ha, é muito!”
Quando ele veio, trouxe, eu dei cinco pra ele. “Ah, mas você falou um galo!” “Mas esse galo é galinzé.” (risos) Eu não sabia quanto era, eu ia dar cinquenta reais pra ele subir um andar e pegar o blusão de couro, né? Tem certas coisas que marcam muito a vida da gente, nunca mais esqueci disso.
Há pouco tempo mesmo eu fui convidado pra ir ao colégio Rui Barbosa, porque [teve] o jubileu de ouro no ano 2000. Descobriram que eu estudei lá, a diretora ia lá fazer compra. “Você não era do Rui Barbosa?” Eu digo: “Era.” “Eu fui ternurista lá dos anos 50.” Ela disse: “Conta uma passagem sua aqui no Rui Barbosa.”
É infame essa passagem, mas eu sempre fui um cara bom em trabalhos manuais. Esse negócio de madeira, eu sempre trabalhei, nasci com aquele dom. Tem gente que é bom em alguma coisa, eu era bom naquilo; [em] futebol eu era ruim, mas na madeira eu sempre trabalhei bem.
Toda primeira segunda-feira do mês eu tinha que apresentar um trabalho manual - falando pra rapaziada, ela mandou eu falar a parte marcante. Rapaz, eu esqueci, tive um jogo do Brasil lá, acabei esquecendo. Tô indo pra escola e vendo todo mundo com trabalho manual. Eu digo: “Poxa, tem trabalho manual! Faltam vinte minutos pra aula, como é que eu vou fazer?” Cocei a cabeça, eu tinha uma flautinha daquela, aquelas de plástico que eu tinha, aí olhei pro chão e vi uma casquinha de siri. Eu digo: “É essa.” Corri na Rua Olga, ali atrás. Tinha um cara, o gesseiro. Eu pedi um pedaço de gesso, meti a flauta ali dentro, armei, botei na mesa da professora.
[Quando não] gostava de uma coisa, naquela época, já viu. Não era pra dar reguada, puxão de orelha, beliscão, hoje é no papo. Naquela época, o couro comia, não tinha colher de chá. Ela virou pra mim: “O que é isso?” “Isso é o sirigaita.” (risos) “Zero.” Levei um zero bonitinho, redondinho, ficou marcado na história. Depois que eu tirei dez eu nunca me clareei daquilo. Eu sempre tirava boa nota em trabalho manual, pena que em português eu sempre fui péssimo. [Em] trabalho manual eu sempre fui um dos melhores, modéstia à parte; [em] português até hoje eu não me alinhei. Eu tô escrevendo, daqui a pouco eu bolo um… Eu gosto muito de escrever mensagem, piada, aí eu bolo assim e vou escrevendo, depois eu fico rindo de mim mesmo: é uma troca de esse por zê, e boto cê onde tem dois esses. Faço uma confusão danada, mas depois tenho que parar e fazer uma correção. Não sei fazer as duas coisas, até hoje não deu certo. Depois eu dou pra um amigo corrigir, ele acha uns dez erros ainda.
P/1 – E os trabalhos manuais, do que o senhor mais gostava?
R – Eu gostei muito de trabalhar em madeira, eu desenvolvia brinquedinho. Uma ocasião eu consegui um motorzinho, aí nós fizemos uma instalação com um monte de peça velha e começamos a apertar. Nós fizemos uma mãozinha, então o motorzinho tinha rodela de motor de vitrola. Aí botava ele, passava pra velocidade, então ele vinha com a mãozinha. Nós botamos uma chapinha aqui e cobrimos com borracha. A gente botava uma moeda em pé, quando eu vi que ia… Encostava na moeda, desarmava aqui, apertava a moeda; quando desarmava aqui ele dava um retrocesso rápido, uma velocidade muito grande, aí eu fiz um motorzinho daquele, botei lá. “Olha aí”, aí ela vinha devagarinho, ela vinha na maior… Ela ia passando de velocidade, daqui a pouco ela batia e voltava rápido, um troço que a gente nem conseguia ver de tão rápido que era.
Um cara lá que me ajudou a fazer, aí levava pra tomar moeda dos trouxas lá fora: “Bota moeda aí, quando tocar o sininho, quando tocar aquela campainha de bicicleta, o que pegar primeiro é dono.” Pegava moeda com aquilo.
Tomei, fiquei quinze dias de castigo lá na escola. Eu aprontava, viu? Mas o troço funcionava direitinho. A diretora tomou aquilo, disse que eu estava me aproveitando dos garotos, tirando dinheiro deles. É aposta, o que pegar primeiro, mas o troço vem, quando ele bate aqui o retrocesso era muito rápido, aquilo dava uma velocidade enorme. O cara nem via e jogava as moedas pra dentro; quando vinha a mãozinha devagarinho, quando tocava a campainha, ela mudou de ______. Vinha numa velocidade danada, ninguém acompanhava aquilo, nem eu, nem o cara tentando antecipar, Ele pegava e achava que era roubo, aí tomei uns castigos danados. São coisas que marcam a infância.
Quando nós fizemos o nosso primeiro barco em Bonsucesso, juntamos eu e outro garoto madeira importada: caixote de maçã, dessas argentinas, bacalhau da Noruega. A gente pegava lá e fazia o nosso barco, tudo madeira importada. Fizemos alça, oito pra levar, levamos ali pra entrada da ilha - onde tem o São Cristóvão hoje era uma praia, aí levamos duas câmaras de ar cheia de remendo, mas serviam de salva-vidas. Um desamassava o prego - não tinha dinheiro pra comprar um -, desamassava o prego que tirava do próprio caixote, outro pregava. Botamos dentro d´água, não entrou água. Eu digo: “Beleza.” Subiram oito dentro do barco; nos afastamos dez metros da praia [e] o fundo saiu. A madeira inchou; a gente não sabia, era garoto.
Ah, se não tinha aquelas duas bóias! Foi um sufoco pra tirar os garotos que não sabiam nadar da água, suamos pra tirar. Levamos seis horas carregando aquele barco até chegar lá em Bonsucesso, até a entrada da ilha. Aí desistimos da indústria naval. “
“Vamos fazer um caminhão agora.” Começamos a construir um caminhão [com], caixote de bacalhau, madeira que nós pegávamos na mercearia. A turma lá tinha muita energia, a gente gastava muita energia. Botamos um volante, botei um cabo de vassoura de eixo, um volante, aí achamos um velocípede velho. Pra botar o volante a gente não ia conseguir fazer nada redondo pra botar ali, só que a entrada ali era da grossura de um dedinho e o cabo de vassoura foi afinando e ficou fraco. Tinha uma tal de Avenida Bruxelas, era uma descida. Cinco em cima do caminhão, descemos a Avenida Bruxelas. Quando eu tô lá embaixo, na curva, quando eu virei que o caminhão quebrou…
Antigamente, quando você ia ao mercado fazer compra não tinha nada de saquinho. Você pedia um quilo, botava naquele saco de papel e ia botando na bolsa. Veio uma senhora escura com aquilo na cabeça. Eu peguei ela por baixo, levantei ela com tudo, atropelei. Quebrou o caixote dela. A minha orelha ficou desse tamanho de tomar tapa da mulher; [ela] foi à loja, criou uma quizumba. Meu pai teve que pagar dezessete cruzeiros naquela época das compras dela. Meu cabelo era arroz, fubá, misturado com café. Desistimos.
Aí apelamos pro patinete, patinete não deu mais problemas. A indústria automobilística também não deu certo na garotada, entramos pro patinete. O patinete deu certo, até hoje estão fazendo patinete fabricado, antigamente era nós que fazíamos. Comprava tábua, serrava, ia ao ferro velho comprar aquele rolemã, botava. Ali tinha a Avenida Paris, que descia a Bruxelas, a Bruxelas era muito íngreme, tinha um declive muito grande; a gente preferia a Paris, que era mais disfarçada.
Levamos uma infância muito gostosa ali, sem tóxico. Eram aquelas brigas de família, todo mundo ______ uma família ali, porque a gente brigava, ninguém tinha raiva de ninguém e fomos crescendo.
Uma época fui ser militar. Fiz a minha obrigação militar e caí fora porque eu não quis ficar no exército. Continuei na loja, naquela época passei pra loja e começou aquela… Começou a época das lambretas, foi entrando a...
P/1 – O senhor lembra do nome de alguns colegas, quem era a turma?
R – Tinha o Portuga, que o pai dele era o zelador da avenida, era o que aprontava arte junto comigo na época. Tinha o Pinduca, esse aí a gente brigava sempre. Ele não se satisfazia, ele tinha que me ganhar, mas eu era mais forte, sustentado a quibe, filho de árabe; os caras comem aquele feijão magro, ficava fraco. Eu era sustentado a quibe, a gente anda que nem cavalo, tudo fortinho, meio robusto.
Tinha o Pinduca, o Portuga, o Nei; tinha o outro, o pai dele era dono de uma sapataria, a antiga sapataria Edir, o Neli. Depois foi trabalhar na Radio Tupi, então a gente sempre deixa, tem uma história pra contar. Quando a gente se encontra é a maior festa, tudo sadio, bonito.
O Medina também. Eu e ele [nos] juntávamos, saía fogo; ele tinha umas ideias meio... Ele era inteligente pra chuchu, muito inteligente; ele tinha umas ideias e eu era bom de executar, então [se] juntavam os dois tinha que separar, senão não dava certo. Até hoje ele vai lá na loja. Está velho, ele engordou muito. Ele foi lá [e disse]: “Tenho que operar o coração.” Isso me dá uma tristeza muito grande. “Vamos fazer um churrasco lá em casa.” “Qualquer dia aí.”
Até que eu fui lá, fizemos um churrasco. Ele começou a mostrar que na época do exército foi pra Suez. Era pra eu ir; eu estive lá, preparei, com ordem pra ir. Meu pai comprou uma loja pra eu não ir. “Tá todo mundo brigando, os outros saíram de lá pra não brigar, aquilo é uma briga danada.” O velho ficou no pé, minha mãe começou a chorar. Acabei que não fui, não fui com ele. Ele foi sozinho pra Suez, ficou um ano e oito meses lá, então ele tem trajes. Toda vez que eu vou lá ele mostra o mesmo facão, ele trouxe uns tapetes persas. Sempre a mesma coisa, mas a gente não esquece; é uma fase inesquecível, marca muito a vida da gente.
A gente vem amadurecendo, depois entra a fase madura, a gente vai… Eu sempre fui arteiro - casei com 41 anos de idade -, até enjoar, mas não enjoei não. Demorei 41 anos pra casar, mas casei bem, graças a Deus eu tenho uma esposa maravilhosa, uma cabeça espetacular. A gente se entende muito bem, então valeu a pena. O que deixamos pra trás? Deixamos uma recordação muito boa, muito sadia.
P/1 – As lojas, nessa época que o senhor era criança em Bonsucesso, do que o senhor lembra? O senhor falou de quitanda.
R – A loja do meu pai, que você diz? Era uma loja de roupa, era aquela miscelânea, tinha tecido, tinha brinquedo. Ele me botava pra tomar conta da porta, [eu me] distraía, ia lá pra rua jogar futebol. Quando ele me procurava não estava lá. Quando era pequeno, criança é isso. Depois eu comecei, depois que eu peguei uma idade comecei a funcionar com ele ali, com aquela loja. Cinco filhos, um bairro daquele, dificuldade pra sustentar cinco. Não é fácil, hoje em dia você vê que os casais [têm] no máximo dois [filhos], tá difícil. Com aquilo eu aprendi, tudo o que eu sei de loja aprendi com ele.
P/1 – Ele ensinava, dava conselho?
R – Dava. Foi um excelente pai, dava uns cascudos de vez em quando, [eu] ficava com raiva dele, mas ele tinha razão. Eu que não prestava mesmo. Hoje tenho até saudades dos cascudos que ele me dava. Tenho saudades dele porque uma ocasião ele andou dando uns cascudos e a gente não se alinhava.
Um dia, ele me chamou pra conversar, chegamos a um acordo. Eu digo que não valia nada mesmo, eu era tinhoso. Quando ele conversou comigo [ele disse]: “Puxa, você precisa trabalhar. Nós precisamos daqui, tô com dificuldade, você não ajuda.” Aí comecei a sentir… Quando a gente começa a sentir que pode ser útil - é muito importante pra gente, isso. Tem pessoas que eu não sei do que eles vivem, vivem do nada pro nada. O mais importante é a gente ser útil.
Comecei sentir o jeito que ele me falou, com carinho, com aquele papo. Ele tinha um papo danado, né? Era vendedor, me convenceu. De lá pra cá nunca mais deixei furo. Foi no papo, no cascudo não conseguiu, não conseguiu me levar no tapa.
Eu já tava treinando jiu-jitsu naquela época, tinha uma academia de jiu-jitsu lá perto do... Não estava fazendo nada. Ia lá ajudar a arrumar os tatames pra limpar, só pra participar. Com doze anos de idade já estava metido naquilo: toda terça e quinta tinha treino e a gente fazia aquela corrida até a praia do Galeão pra preparo físico pro jiu-jitsu. Fiquei muito tempo treinando aquilo, então a gente pega uma tarimba e o cara não revidava, mas esquivava, ele já não conseguia me acertar mesmo.
Foi no papo, ele me ganhou. De lá pra cá… Também tem um ponto, o homem amadurece. Eu amadureci muito cedo. Com quatorze anos de idade já comecei a tomar responsabilidade de loja. Eu sabia tudo o que tinha dentro da loja, controlava a loja, fazia controle de cardex.
P/1 – O que é isso?
R – Controle de cardex hoje é obsoleto, porque o cardex é o sistema de ficha. Você pega o tecido, determina uma ordem pra roupa, digamos, blusa tal, ordem 250, então eu tenho a ficha. [Para] toda a mercadoria eu tenho o número de ordem, tem a data que ela entrou. Quando você vende o produto, você tira a nota e bota o numero da ordem, aí no outro dia de manhã a gente dá baixa.
“Como é que está a blusa tal?” Você chega lá na ficha: “Vendeu tal no dia tal, demorou a sair, essa não repete, não. Isso aqui saiu rápido, saiu [em] menos tempo.” É pra dar uma base de velocidade, porque tem velocidade de venda. A gente repõe pra ter uma ideia, porque senão chega um ponto… Por exemplo, lá eu tenho oitenta, noventa modelos de blusa. Como é que eu vou saber o que está rodando mais?
Hoje nós temos computador, que é muito mais fácil, mas naquela época não tinha, computador foi de 90 e pouco pra cá que o Brasil passou a ter. O meu comprei em 92, está lá até hoje; ainda não despedi ele, um 486. Primeiro entrou… Não, o primeiro que eu tive foi um Apple II, dois disquetes 360 daquele, _________ de programa. Depois entrou o XT, saiu o 286, que eu não comprei, já passei pro 386 e por fim comprei o 486 em 92, aí já começamos a usar código de barra, uma coisa mais evoluída.
Hoje, toda loja tem um sistema bem mais prático, muito menos trabalhoso do que o cardex. O cardex morreu na praia, [era] muito trabalhoso. Você tinha que dar baixa... Por exemplo, se vendesse duzentas peças, duzentas fichas tinha que dar baixa, botar data. Se você não datar, souber quando saiu, quando tempo levou a venda… Pra você ter um controle aproximado da realidade, aquilo nunca era exato, né? Pra saber por ‘a’ mais ‘b’ você tinha que somar a venda com a quantidade de notinha e a notinha dava baixa.
Se tinha alguma coisa saindo pela janela - passei uma fase ruim de loja, aí [tinha] coisa saindo pela janela que eu custei pra conseguir normalizar, quebra qualquer firma. Tive que parar de uma vez e começar de novo, não teve jeito. Se eu trocava dois o outro ensinava aquele, se eu trocava o outro o outro ensinava aquele, então não adiantava. Tive que parar, mandar todo mundo embora e repor novamente. Era o único jeito de acabar. Aquilo é igual vírus: tem um, contamina o resto. O cara ensina, o folgado quer se dar bem.
P/2 – Por um período só ou isso sempre acontece?
R – Não, isso vai acontecer sempre. Você, hoje, pra ter uma loja tem que calcular 3% pra ser roubado. Tem mil formas. Às vezes até uma vendedora chega, uma colega, entra com três blusas pra cabine. Uma fica na bolsa e voltam duas pra prateleira. A gente não pode controlar tudo, a gente só vai saber depois, quando começa a achar que a diferença do estoque é gritante. A gente começa a ficar mais aceso, mas até então já está no cálculo.
P2 – Seu Fadel, voltando um pouquinho: como é que o senhor pode descrever pra gente a mudança no comércio de Bonsucesso? Como era na sua infância, na sua juventude? Um perfil como um todo, se tinha mais lá alimentação, vestuário.
R – Não, naquela época tinha poucas lojas. Era Sued de um lado, a casa Chique do outro. A Sued era uma casa de tecido que concorria com a gente, são os antigos lá., Já venderam pra Silhueta, hoje é Silhueta Infantil. A Elite, que [se] sustentou até pouco tempo, até o Rio-Cidade Bonsucesso, depois ela não suportou o Rio-Cidade Bonsucesso. Nós tínhamos a Pequenina, tinha o Amati, a loja-modelo do Juquinha, que era [de] ferragens. Tinha poucas lojas, não tinha muitas. Era a Sucesso, que era a nossa e Aquir, que era a outra filial nossa de modinha; a outra tinha de tudo, então aquilo foi tendo um crescimento.
A Elite se propagou, chegou a ter cinco sapatarias em Bonsucesso. A Ipirante, que era a antiga Edir. Seu Luiz comprou a Ipirante, estava vendendo cinco sapatarias em Bonsucesso; sapataria proliferou muito ali, cresceu muito, eram cinco sapatarias pra ele próprio, viu? De lá pra cá surgiu a Sapassos, subiu a Gambiê, onde era a minha antiga loja ficou a Gambiê, que não suportou. A Sapassos também não aguentou muito tempo lá, também quebrou, mas as outras sapatarias… A Sapassos era careira demais.
A Elite tinha um nome muito bom, o Álvaro era meu amigo de infância; a gente ia pro baile do Havaí juntos fazer farra, solteiro a gente ia pro baile do Havaí no Iateclube do Rio de Janeiro. A gente ia de lancha ali por trás, parava ali pra ir pro baile, então todos ali eram amigos, não tinha aquele revanchismo, “somos concorrentes”. A gente sempre foi daquilo: “Ajuda o seu vizinho, [se] seu vizinho crescer você está crescendo”. Quanto mais loja em sua volta, mais você atrai. Não é como os comerciantes antigos, que o cara botava uma loja e os caras começavam com guerra com o cara. “Ah, concorrente tirando meu freguês!” Não existe isso, quanto mais um do lado do outro melhor. O sol nasceu pra todos, nós não somos donos do sol, né?
Bonsucesso cresceu de uma tal maneira, na força da Ilha do Governador. A Ilha do Governador era nosso vizinho que mais imigrava pra Bonsucesso, comerciante da área que ficava um pouquinho melhor mudava pra morar na ilha. [Foi] o meu caso, como o caso dele, fomos morar na ilha. Mas na ilha em si, o comércio era muito fraco e o cara de mentalidade de comerciante da ilha vendia caro.
Tinha um amigo meu, quando ele foi montar uma loja eu disse pra ele: “Se você vai montar uma loja com mentalidade de Ilha do Governador nem monte; só se for pra ilha com mentalidade de comerciante de Bonsucesso você vai se dar bem.” Ele não me escutou, durou pouco. Eu falei pra ele: “O pessoal, hoje, corre preço, você não só perde um cliente. Você passa na minha loja, hoje em dia tudo é industrializado. O que você pode ter o seu vizinho pode ter; ele vê uma camisa polo da Pool por 14,99, preço que eu vendo, ele chega no vizinho vê por dezessete reais. “Pô, o cara é ladrão.” [É] a primeira coisa que o cara fala. É expressão rude, ‘ladrão’ - é careiro, mas eles chamam de ladrão. Aí o que que acontece? Amanhã o cliente quer alguma coisa, ele não volta ali, ele vem em mim, então você tem que trabalhar com um preço moderado, o que a ilha não fazia.
Achavam que a ilha é um bairrozinho bacana, que é chique e tem uma margem de lucro grande, aí eles imigravam pra Bonsucesso e nós perdemos essa fatia do queijo, a fatia grande do queijo. Eu tinha 819 fichas de clientes, só de clientes da ilha, clientes que gastavam bem. Com aquela [reforma] na cidade, em Bonsucesso eles terminaram os estacionamentos; não tinham onde parar e, pra completar, isso tem uma configuração meio não sei como… Voltando, eu não quero acusar, dá a impressão de propina porque na medida que ele chega no comércio de Bonsucesso, o primeiro arrecadador de ICM da Zona Norte somos nós, fomos os primeiros do Rio de Janeiro de arrecadação de ICM. Eles chegam num bairro daqueles, terminam [com] 280 vagas. Reivindicamos de tudo quanto foi forma pra eles nos darem 130 vagas que nós tínhamos: abaixo-assinado, fui na CET Rio, botamos faixa preta, aí me deram 22 vagas pra dividir pra 217 empresas. É uma tristeza. O nosso prefeito foi fazer campanha na televisão pro shopping e na outra semana o bairro está cheio de reboque. Eu não sei o que eu posso dizer disso, já dá conotação esquisita, a gente nem sabe o que pode ser.
Pode ser até uma coincidência, mas os reboques... No cenário que eles preencheram, nós rebocávamos carro até o lugar permitido. [Da] primeira vez rebocavam o carro e eles [os clientes] não queriam voltar, então eles criaram um terrorismo em Bonsucesso. Criaram um terrorismo de uma tal forma que nós perdemos 50% das vendas. A minha loja, que era uma loja cobiçada, todo mês aparecia um cara querendo comprar a loja… Queria o ponto, porque não uso o tamanho da minha loja. A minha área tem 53 metros de fundo, seis por 53; eu uso a metade, mas tem lugar pra expandir.
Lá no fundo é meu sítio, eu tenho amoreira, tenho uva, manga. Eu tinha antigamente tamarina, fui obrigado a tirar por causa do prédio do lado; estava arriscado cair em cima do prédio porque a árvore tava muito velha. Tinha bambu, erva-cidreira, capim-limão, tinha tudo ali, um tipo de minissítio. Era tão gostoso, entrava ali quando tinha a cabeça cheia, ia ali pra dentro. “Tomar um chazinho de capim-limão hoje pra refrescar.” Fazia até refresco de capim-limão.
Depois daquilo, Bonsucesso está em queda livre.
P/1 – Tá em?
R – Queda livre. Nós estamos caindo dia a dia. Eu sou franco pra você: não é negócio, eu estou trabalhando ali por esporte. Eu pago pra trabalhar, se na época boa não tivesse feito um pé de meia, não tivesse uma renda pra poder segurar, eu tinha fechado.
P/1 – Agora, seu Cláudio, quem é o perfil do consumidor do bairro?
R – Olha, hoje, nosso perfil… Bonsucesso hoje é uma ilha, no bom sentido. Você vê a Praça das Nações, [Rua] Cardoso de Moraes, [Avenida] Nova York, que limita o comércio de Bonsucesso. O que nos rodeia? Complexo da Maré, pelo fundo da Avenida Brasil. Do lado do hospital, nós temos a Perereca, que é outra favela, temos o [Morro do] Amorim, que imigra pra Bonsucesso… O [bairro de] Manguinhos, o Amorim, a [favela do] Mandela, a favela da Teixeira… Esqueci o nome, daquela parte, quase chegando a Jacarezinho. Temos em frente o Morro do Adeus, que desce tudo pra Bonsucesso e colado ao morro do Adeus o morro do Alemão, então nós vivemos hoje de quê? Das favelas. Eu, por exemplo, o meu padrão...
P/1 – Eles são o público consumidor.
R – Eles são os consumidores hoje. O padrão baixou muito, a política do governo abaixou os salários e hoje tá difícil de comercializar, então você tem que inventar mil coisas pra você manter... Não é tão fácil como antigamente, na época da inflação... “Ah, acabou a inflação.” Eu não sei se foi bom acabar com a inflação, porque na época da inflação todo mundo ganhava dinheiro e o dinheiro era uma batata quente, você pegava e empurrava pra ele e ele empurrava pro… Ninguém queria pegar o dinheiro na mão, se você dormisse com ele na mão perdia 1% amanhã, então se comprava logo outro negócio, já fazia o negócio casadinho - não se dá o nome de negócio casado já comprando outro. Se você vendesse um imóvel e demorasse três meses já não comprava o mesmo imóvel. Inflação de 15% e ______ de 45%, então o dinheiro corria, todo mundo pagava com medo da dívida crescer por causa da inflação.
No meu crediário, a minha inadimplência era 0,9[%]. Eu fui obrigado a parar depois daquilo que houve ali. Chegou a 38%, foi inviável de manter um crediário com 38%. “Mas você podia selecionar.” Foi selecionado: criei o cliente especial, criei o carnê especial, tudo diferente. Comecei a eliminar aqueles outros, a não aceitar mais aquele tipo de cliente. Dentro do cliente especial deu 36[%], mas sabe o que foi isso? Congelamento do salário e tudo subindo, aí a pessoa que tinha, digamos assim... Pra minha sobrevivência de casa, eu preciso pra alimentação, luz, gás, aluguel, 60% do meu orçamento; de repente, ele estava com 99% pra isso. Ele não tinha com que gastar, quando comprava [era] na esperança do momento futuro que não vinha, aí ficou inviável você manter um crediário.
P/1- Mas antigamente os consumidores eram do bairro mesmo.
R – Tinha consumidor de tudo quanto é canto. A faculdade trazia cliente de Copacabana, de Bangú, cliente de Olaria, de Ramos, de tudo quanto é canto. Nós temos a SUAM [Centro Universitário Augusto Motta] ali do lado, ela andou meia baixa de aluno, mas hoje está reativada.
Eu tenho muita esperança no bairro, desde que o político municipal honre a sua palavra e faça o que prometeu. Só honrar a palavra, mais nada. É tão bom a gente honrar a palavra da gente. A gente não tem essa vergonha, não, porque cinco projetos que eu vi sumiram lá dentro, somem dentro da prefeitura, o projeto não sai. Eles têm qualquer defesa contra Bonsucesso, não sei o que é, infelizmente eu não sei se é incompetência. Tem muita gente incompetente ali, pelo que eles têm feito lá, pelas obras que têm feito. É piada, é caso de botar um engenheiro daquele na cadeia. Eu não chamo de burro porque não vai dar espaço pra tanto burro ali, porque é problemático: o poder público, que é beneficiado pelo sucesso do comércio rema contra.
Foi feito abaixo assinado, projeto, nós acertamos com o Coronel da CET Rio. Eu já fui cinco vezes lá e não saiu, cinco projetos foram feitos e não saíram. Teve um projeto nosso de estacionamento que eu peguei o César Maia de jeito. Dei quinze minutos de… Contei a história das porcarias que eles fazem, das obras impensadas. O César Maia é um grande economista, administrador; ele não sabe o que é isso, ele larga frouxo as coisas, aí vão as menininhas que se formaram a semana passada com pranchetinha pra lá e ficam rindo. Elas estão brincando com o nosso futuro, isso que eu estou dizendo eu assino embaixo, porque como é que eles exterminam o estacionamento do comércio daqueles.
Você sabe o que ocasionou ali, pra você ter uma ideia? A Elite tinha cinco sapatarias, só tem uma; a Imperante tinha cinco sapatarias, prédios próprios; hoje ele tem um saldo lá, porque ele tem outras lojas. Ele está vendo, está botando saldo ali e já quer sair também. Ninguém tá suportando aquilo. A loja Brasileira também saiu, tinha dez lojas ali.
“Ah, mas tem outras lojas.” Tem, os caras vêm, todo mundo chega ali naquela… Bonsucesso é o primeiro arrecadador, naquela fama que é o primeiro arrecadador [de imposto] e entram, depois dá um arrependimento danado, não é nada daquilo. Bonsucesso desceu muito o nível, nós tivemos uma perda de 60% de poder de compra em Bonsucesso, muita perda de compra. Como é que você pode ter um bairro com 217 empresas ali, entre lojas e escritórios, com 22 vagas de estacionamento? Como é que pode dividir isso.
P/1 – É inviável.
R – Só no tempo de Jesus. Eu fiz um fax pro César Maia dizendo que eu não sou Cristo que sabe multiplicar o pão, não. Vou ter que multiplicar o estacionamento.
(pausa)
P/1- Seu Cláudio, antes de ir pra Nova Iguaçu, o senhor falou que ajudava seu pai na loja. Como se chamava a loja?
R – Sucesso, loja Sucesso.
P/1 – É por causa do nome do bairro?
R – Por causa do nome do bairro.
P/1 – E o que o senhor lembra, como era a loja? Descreva pra gente.
R – A nossa loja era uma loja de esquina, [Avenida] Maxwel com Praça das Nações. Uma loja com treze metros de frente, com bastante frente. Hoje a Arapuã que ficou com aquela loja. Foi vendida pras Lojas Aspar, as lojas Aspar passou pra Arapuã, então a minha infância foi quase todo tempo ali. Eu morava no mesmo prédio, na outra esquina, na outra virada da rua. De casa pra lá [eram] dois minutos, então era fácil da gente voltar pro trabalho, não precisava de condução.
Eu me lembro muito de um ponto de táxi ali também, na porta. A gente ficava batendo papo com os motoristas de táxi ali e jogava um futebolzinho naquela rua do lado, que era de terra ainda quando nós chegamos - aliás, Bonsucesso era todo de terra naquela época.
P/1 – E como era o interior da loja?
R – A loja? Aquele estilo antigo. Era prateleira e o resto, aqueles cavaletes de tecido. [A gente] fazia aqueles cavaletes de tecidos, depois a gente fazia os leques. Se usava muito fazer um leque: você ia dobrando, sanfonando o tecido, botava de um lado, imitava flores. A gente ornamentava bem. Eu tenho um irmão que é muito bom decorador, ele é desenhista então de vez em quando ele vai lá e me ajuda na loja. Ele desenha bem, é um bom desenhista e pra decorar ele é excelente, então ele ensinava a gente. A gente aprendeu muito com ele.
Até tivemos fazendo essa… Nesses dois últimos dias ficamos fazendo vitrine, segunda e terça feira lá na loja com ele. Eu disse: “Olha, vem você agora e faz porque o meu sistema tá meio cansado aí.” É verdade, vitrine tem isso. Naquela época, nós tínhamos cinco vitrines, uma vitrine pra cada produto. Era ele quem fazia naquela época.
P/1 – E era o que, tecido?
R – Tecido, não. Tecido ficava nos cavaletes, não ia pra vitrine, mas as confecções todas, cama e mesa, brinquedos, tudo ia pra vitrine. As cinco vitrines que nós tínhamos era tudo isso. O tecido já ficava atrás da vitrine, arrumado. Fazia aquelas colunas, botava as peças pra escolher e armava os leques do lado.
Hoje a gente não vê isso, hoje está todo enrolado atrás da prateleira, não expõe mais o tecido. Apesar que loja de tecido hoje tá difícil de achar, tá muito difícil. [Em] Bonsucesso parece que só ficou uma de tecido, hoje em dia não compensa. Você compra um metro e meio pra fazer uma blusa, aí você vai na costureira, a costureira quer dez reais pra fazer, ou quinze. Você compra a blusa por oito [reais] pronta; não compensa, porque a coisa feita em grande escala derrubou muito essa parte de tecido, então não compensa mais você comprar nada pra fazer. Nem terno está se fazendo mais, quase, tem o custo de uma mão de obra. Não é só isso, você vê: antigamente a pessoa usava uma roupa, [quando] você abaixava a roupa rasgava no fundilho. Hoje não, hoje você tem uma máquina que trabalha em ponto corrente. O ponto estica com o tecido, é uma overloque em ponto corrente, _______ trabalhar com cinco fios de linha não é [com] uma máquina comum, que são dois e dá aquele ponto justo, qualquer forçada estoura o ponto, ela abre. Estourou um ponto, descostura. O sistema da overloque que implantaram na indústria, no começo também teve o mesmo problema, depois que eles melhoraram. Hoje você tem uma facilidade pra roupa pronta porque o maquinário é muito moderno, você tem uma overloque que costura uma coisa que não precisa estourar o ponto; ele faz um ponto de proteção e um ponto de acabamento. Faz overloque, [que] são três linhas e interloque, que são cinco fios. Você tem um acabamento de bainha, que é uma colarete que trabalha e faz duas costuras em cima e faz o acabamento bonito embaixo.
Você vai numa costureira, ela não tem condição de comprar uma máquina industrial. Compra um metro de tecido, pra fazer vai sair muito mais caro. Não vai ficar igual o acabamento, o acabamento interno vai ficar horrível, que não tem maquinário apropriado e o custo muito mais alto. Se você chega numa loja, experimenta. Não ficou bom, larga pra lá. A costureira que você mandou fazer tem que comer batata quente.
P/1 – Seu Cláudio, nessa época que vocês usavam mais o tecido pra ir pra costura, qual era o perfil da clientela? Eram mais mulheres, famílias?
R – Sempre foi mulher, o homem só comprava aquele tecido de homem que era o tecido pra terno, pra calça. Apesar que chegou um tempo que no próprio alfaiate já tinha o tecido, então começou a escassear aquela venda de tecido. O investimento de tecido é muito grande pra você investir, esperar e o tempo de venda não compensar; chegou um ponto que não estava compensando, aí as lojas foram se especializando. Aquilo que eu falei: se você não se especializar… Hoje você vê que tem médico que toca o seu corpo todo, aí tem um pra dentro, um pra vista, outro pra garganta, tem outro que só faz pra coração, cada um pra um tipo. Você vê que é especializado e como a medicina evoluiu as lojas têm que evoluir. Elas têm que se especializar. O cliente entrou, você não pode deixar ele sair, mas não pode segurar ele à força, então você tem que segurar ele oferecendo vantagens, oferecendo um produto moderno, bonito pra você poder conquistar o cliente. Esse é o problema das lojas, loja evolui igual medicina, se especializando.
P/1 – Quando o senhor foi pra Elegâncias Fadel em Nova Iguaçu, o que mudou na vida do senhor? O senhor teve que acordar mais cedo?
R – Mudou tudo, mas mudou muito. Eu estava revoltado com aquilo, não gostava daquele lugar. Gostava tanto do Rio. E eu só tinha domingo.
Quando fui pra lá, nós compramos uma loja, mais pra segurar pra um tio que ficou de vir em dois, três meses. Aqueles dois, três meses dele renderam dois anos, aí eu fui obrigado a legalizar aquilo. Acabei de pagar a loja eu mesmo, funcionei… Tive que… Eu ainda não estava bem maduro pra aquilo, tive que encarar aquilo sozinho porque eu estava... Bonsucesso pra Nova Iguaçu não dá, todo dia tinha que ir alguém me ajudar, então eu tive que me adaptar àquilo, pegar ônibus e voltar.
Um patrício do meu pai, que veio a ser meu cunhado depois, estava morando lá, aí eu fiz uma parceria com ele. Passei a dormir lá porque estava muito cansativo, tinha que sair [às] seis horas da manhã de Bonsucesso, ir a pé até a Avenida Brasil, pegar um ônibus ir pra Nova Iguaçu.
Fechava a loja [às] oito horas da noite, porque lá tinha um esquema de venda, eles vendiam mais no fim da tarde. É igual maré, quando chegava um trem vinha aquele monte de gente, aí tinha que esperar a leva. Quando vinha a leva, daqui a pouco ficava deserto, aí parava outro trem, saltava aquela porção de gente. A gente ficava naquilo, esperando as levas. [Às] oito horas da noite, eu, garoto novo, cheio de namorada aqui no Rio… Até fechar fazer caixa, saía [às] oito e meia da loja; pegava um ônibus e chegava aqui [às] dez horas da noite, aí não tinha mais vida noturna. Tinha que acordar [ás] horas pra estar lá de novo.
Eu era revoltado com aquilo, até que comprei a lambreta pra facilitar. Foi quando apareceu a lambretinha, eu nem tinha intenção de comprar, mas apareceu. Eu pegava a lambreta pra poder me locomover mais rápido. Nos dias de chuva dava no mesmo porque eu não podia ir de lambreta, acabava dando no mesmo problema.
Foi uma parte [da vida em] que eu trabalhei muito, contra a vontade. No final eu já me conformei, era aquilo mesmo. [Se] eu tenho uma vantagem eu posso não gostar na hora, mas depois me adapto. Eu me adapto com os inimigos; o importante é ser simpático com os inimigos, eles acabam sendo seus amigos. É por isso que eu botei uma oração lá: “Que Deus dê força aos meus inimigos, Deus purifique a mente dos meus inimigos para que ele possa viver ao meu lado.” Eu tenho uma porção de orações, eu copio à beça umas por aí, faço algumas e a gente vai tocando, né?
P/1 – E depois que o senhor saiu de Bonsucesso? Aliás, o senhor saiu de Nova Iguaçu, o senhor voltou...
R – Voltei pra Bonsucesso.
P/1 – Pra loja do seu pai?
R – Pra loja do meu pai, fui pra filial que era _______ Aquir, 95A. Passei a tomar conta daquela loja ali. Foi quando eu ensaiei, tentei fabricar por minha conta porque eu tinha um corpo muito esquisito, eu tinha uma cintura muito fina e muito tórax aí nada [ficava bem] em mim. Quando botava aqui em cima ficava uma saia aqui embaixo, aí passei eu mesmo a cortar meus blusões.
Quando eu chegava nos clubes [perguntavam] : “Tem dessa camisa lá?” Aí eu fazia cheio de brincadeira, três costuras, bolsinho tipo revólver com tampinha, tampinha com prega. Eles olhavam e gostavam. Comecei a fazer, aquilo funcionou muito no início; a fabricação triplicou a venda da loja. Na primeira semana eu fiquei pensando: “Todo mundo pergunta se eu tenho, eu vou passar a fazer pra vender”, aí criei um xadrezinho cheio de bolsinho com detalhe, platina, bolsinho com tampa. Não se via, não tinha roupa artesanal ainda no mercado, era tudo arroz com feijão; era aquela gola achatada, eu fazia golinha com pé, golinha redonda com botão encapado.
Botei o primeiro [lote] lá, fiz 47 camisas. Eu disse: “Vou experimentar, se funcionar...” Aprontei umas trinta lá, vinte e poucas. Quase trinta, nem me lembro. Tive que pregar botão à mão; o botão tinha que ser à mão, não podia ser à máquina, também não tinha máquina não, tinha que ser a mão mesmo.
Você sabe que no sábado - o movimento era sexta e sábado, o resto era aquela madorninha -, o pessoal recebia [o salário]. O que eu fazia? “Bom, o salário do cara é x. O cara quer comprar um calça, uma camisa e sobrar um dinheiro pro cinema.” Então você tinha que ter uma roupa barata, moderninha pra ele poder… A gente usava essa tática, porque antigamente você ganhava melhor, dava pra você comprar uma calça, uma camisa. Hoje não dá mais. Recebiam por semana.
No primeiro dia, vendi o estoque todo. Eles levaram ainda pra pregar botão em casa, acabar de passar porque não deu tempo. Na outra semana eu meti três modelos aí a loja pegou um vulto bom, começamos a pegar o gostinho. Foi quando nós fabricamos até, aí as grandes empresas… As coisas mudam, comecei a fazer calça boca de sino. Isso aí [foi quando] já estava na outra loja.
P/1 – Isso já é década de 70?
R – É, década de 70. Calcinha boca de… Pestana dupla, o único no Rio de Janeiro que fazia pestana dupla perfeita era eu. Como eu falei, no trabalho manual eu sou um perigo. Eu desenvolvi um aparelho que era redondo. Você metia a fichinha por baixo, metia as duas pernas da calça; ela, com a união especial de duas agulhas, fazia a costura perfeita. Ficavam as duas pestaninhas. Ninguém tinha aquele aparelho, só eu.
Fui eu que fiz ‘lata de sardinha’, viu? Conclusão: os fabricantes que tentaram fazer aquilo costuravam os dois tecidos, viravam pra dar outras duas costuras, depois tinham que tirar o ponto do meio pra ficar tudo furado e não ficava bom. Quando eu desisti de fabricar… A gente trabalhava com brim e o brim caiu de moda, porque tem determinadas coisas… Tudo tem seu tempo. Quando o brim caiu de moda entrou o nycron, a Sudantex lançou o nycron, ‘senta, levanta’. Só [se] falava no ‘senta, levanta”, então você vendia cinquenta calças do ‘senta, levanta’ e não vendia mais nenhuma da outra. [Pensei:] “É hora de parar.”
P/1 – O que que é ‘senta, levanta’?
R – O nycron era a roupa que não amarrotava, não amassava. Agora tem o tergal, todo tecido sintético, não amarrota. Naquela época não tinha, quem lançou foi o nycron, era da Sudantex, então tinha a propaganda “Senta, levanta, senta, levanta e tá impecável”, aí o pessoal olhava [e perguntava]: “Tem daquela calça aí?” Matou o algodão, ninguém queria mais calça de algodão e virou modinha.
Passamos, paramos. Eu não tinha máquina, no começo era na tesoura. Você vê que eu tenho o dedo torto aqui? É da tesoura, era um tesourão. Isso aqui é cabo de tesoura: você trabalha isso aqui, cria um músculo aqui. Faz mais de trinta anos que eu não corto [e] ainda tá duro que nem pedra. Pode meter o dente que não entra, viu? É da tesoura, não sou eu que tô ferido, não.
Então chegou o ponto… Eu vendi aquela aparelhagem toda, o aparelho vendi mais caro que as quatro máquinas que eu tinha. O cara fez um em aço inoxidável desenvolvido, mas a lata de sardinha funcionou; isso tudo é evolução, chegou um tempo que você não pode ficar a vida toda, senão você cai. Tem o bondinho, se não trocasse o cabo ele caía. Demorou muito, então você tem que acompanhar a evolução. Vão surgindo os tecidos novos, você tem que se adaptar.
Às vezes, quando vou fazer a minha romaria de compra… Eu estou trabalhando num sistema de guerrilha: vou, compro tudo e volto. Mudo tudo de repente, faço aquele impacto, né? O que eu faço? Vou adiante, dou uma volta no shopping, vou ver a tendência de cores. Recebo catálogos de algumas fábricas pra ver, pra errar menos. A gente nunca acerta tudo, eu não sou dono da verdade, mas a gente procura errar o mínimo. Cada coisa que você compra errado, você não somou, você diminuiu.
A modinha tem um problema: você lançou um produto a dez reais e não vendeu; não pensa que você vai vender por doze amanhã, não pode abaixar pra cinco, salve o custo que é lucro, se você não vendeu pelo preço tem que abaixar. A modinha é isso, é impacto; se você errou, conta com o prejuízo. É que a gente acerta uma média de 80, 90%, a perda é muito pequena nisso. A gente abaixa o preço daquele, sobe a outra, o nego força a barra daquele.
Graças a Deus, ninguém acompanha muito moda, senão ia ser um perigo pra gente: só ia vender azul, o que você tem de colorido lá ia comer com batata, como eles dizem na gíria, encalha tudo. Você tem que estar muito atento.
Vida de comerciante, hoje, é muito tensa. Não consegue me enervar porque sou veterano de guerra já, então não esquento a cabeça, mas tem cara que fica num nervosismo danado porque ele faz uma viagem dessa, empata um capital na situação, todo mundo descapitalizado. O produto não vendeu, ele se desespera. Mais ainda: tem que pagar aquilo, ele vai ter que pagar. Numa maré ruim dessa você tem que errar o mínimo possível. Não tem direito nem de errar, mas infelizmente erra, né? Ninguém é perfeito, se fosse perfeito não estava mais aqui, estava no segundo andar.
P2 – Seu Fadel, quem são os seus fornecedores? O senhor fala que sai em romaria. Não tem um fornecedor Rio/São Paulo?
R – Não. Eu compro muito em São Paulo, é muito diversificado. São Paulo tem uma vantagem, eles têm uma área de pronta entrega muito vasta, o que não tem no Rio. Eu não gosto de comprar no Rio porque todo mundo vai ter, qualquer um vai lá, então eu prefiro ir mais longe. Pego o ônibus aqui [à] meia-noite e cinquenta, durmo, acordo [às] seis e meia da manhã lá. Já me perguntaram se eu tenho dificuldade de dormir no banco; eu tenho dificuldade de ficar acordado, é ao contrário. A minha dificuldade é de ficar acordado, não é de dormir, não, eu durmo no ônibus.
Chego lá, corro aquilo tudo. Eu chego num, compro cinco modelos de um, cinco modelos de outro. A vantagem é isso: eu pego na hora. Eu tenho o meu quartel-general lá, com um cara meu amigo. Já pego daqui, boto no carrinho, reboco pra lá e depois ele me despacha tudo junto. Eu sei que no outro dia… No mais tardar chega um dia depois.
Tenho tudo de uma vez, posso armar um esquema de trabalho, é por isso que eu gosto de sair nesse sistema de trabalho porque erra-se menos. Você vai catar... Primeiro eu dou uma volta pra fazer um planejamento, vejo como vou fazer a minha vitrine, aí vou em cima: cinco de um, três do outro, sete do outro, dez do outro. Às vezes eu compro tudo de um só, o cara tem o que eu quero. Tem um lá que pego carrinho de feira, vou enchendo o carrinho de feira. No fim, passo na caixa igual supermercado...
P/1 – Self-service.
R – A _________ é grandíssima, também só entra comerciante.
P/1 – Onde o senhor vai mais, ali no Brás ou no Bom Retiro?
R – Eu vou muito ao Brás, mas também compro alguma coisa no Bom Retiro. Eu prefiro o Brás; quando eu tenho muito tempo vou ao Bom Retiro, mas normalmente eu desço ali e [às] quatro horas da tarde eu tô saindo fora.
P/1 – Passa o dia e volta.
R – Antigamente eu ia muito de carro, saía cedinho de carro. Ia lá naquele… Na volta vinha o cansaço, aí você começa… Teve uma viagem que eu parei oito vezes com sono. Eu digo: “Pelo amor de Deus, eu não vou mais de carro. Definitivamente eu não vou mais de carro.” Duas vezes eu saí da estrada. “Eu acho que vou acabar…” Se eu morrer tudo bem, fui eu que errei, pago pelo meu erro. Não pode é ele pagar pelo meu erro. Não é justo que eu faça as minhas besteiras, que eu faça alguma coisa que o organismo não está suportando, então você tem que viver mais no real hoje.
Passei a ir de ônibus, [é] muito melhor. Pego dois filmes na volta, de noite passa um filme só. Tem um bangue-bangue, daqueles americanos enlatados que pensam que a gente é tupiniquim, né? A gente vai vendo aquilo, se distrai. Tem um outro [que] tem música, a gente vai escutando uma musicazinha porque… Pra ir não, não dá nem pra ver, não consigo sair nem da rodoviária, fui lá dormir. Mas na volta, chega um ponto, a gente cansado... O primeiro pedacinho dá, mas depois já não dá mais pra dormir, aí fica apreciando a paisagem e vendo os filmezinhos. Passam dois filmes.
Você chega descansado, tranquilo, não botou ninguém em risco, porque é triste quando você comete um erro que prejudica segundos. Eu tenho isso: se eu prejudicar a mim mesmo eu não fico aborrecido, chato é quando um cara que não tem nada com isso. Dá uma dor no coração, né? Muito forte.
P/1 – Seu Cláudio, quando é que surgiu Alan Modas?
R – Alan Modas foi o seguinte. Quando eu estava na Cardoso de Moraes com a loja Sucesso - um nome que eu não gostava, foi de herança, mas eu não gostava. Tinha loja de português, dava aquela impressão, aí eu quis botar meu nome, Cláudio. “Bota teu nome”, meu irmão mais novo [dizia], todo empolgado. “Vou botar meu nome.” Mandei registrar, já tinha Cláudio na Tijuca. Mandei mais três nomes. “Alan não tem.” “Bota esse mesmo.” Eu já tava cheio, queria abrir a loja. “Vai esse mesmo, bota o Alan.” Tá bonito, até.
P/1 - Mas de onde veio o nome?
R – Surgiu de uma revista que nós pegamos, porque o meu não pôde. O que eu tinha ideia de fazer eu não pude fazer. Mas o Alan caiu até bem, tem gente que me chama de Alan. Eu digo: “Tá bom.” Tudo legal, não tem problema. Não é palavrão, então tá bom.
P/1- Alan Modas vem até hoje?
R – Até hoje. [A loja] foi aberta em 1977, então estamos heroicamente sustentando até hoje. De 97 pra cá, heroicamente.
P/1 – O senhor está falando das modinhas. O que foi marcante, essa moda da pantalona?
R – Isso modifica muito. Tem época que tem pantalona, aí surge… Um tempo que muda muito, nada se cria, tudo se copia. Eu tive loja antes que teve boca de sino, eu fabriquei a boca de sino. Voltou a moda da boca de sino agora, está vendendo a boca de sino. A pantalona tá em moda, tem calça pantalona lá. Daqui a pouco surge uma nova moda, boca estreita, aí você acompanha.
Isso aí é uma forma inteligente da indústria, porque o jovem é muito vaidoso. Porque eles criam essas mudanças? O jovem está com oito, dez calças no guarda-roupa, todas pantalonas. Lançou a boca estreita, é moda agora, é o que está na televisão. Você viu a novela, o que tá na novela você vendeu. Quer vender blusa, vê novela. Todo mundo é macaco de imitação, quer imitar o artista, então se aparecer na televisão ou vir um lançamento de uma boca estreita, pode contar: ninguém usa mais o que tá lá, fica apodrecendo no guarda-roupa. Ele vai comprar tudo novo. É uma forma de fazer dinheiro.
P/1 – Tem alguma coisa que o senhor lembra que veio de novela, de alguma personagem, que vendeu bastante?
R – Eu acho que quase tudo surge, blusa lança muito moda em novela. A boca de sino nós vimos num filme francês, era calça Saint Tropez com a boca larga. Apareceram uns caras recortando calça, eu digo: “Vou fabricar esse treco”.
Começamos a lançar, funcionou. Eu também dei sorte porque conheci um amigo [que] tinha uma pequena fábrica, ele estava em dificuldade e aí comecei a dar feitio pra ele fazer pra mim. Senti que ele não estava se segurando porque a fábrica tava com umas bancadas lá... Eu olhei, fiquei pensando: “Tá muito lento, isso.” Aí o Djalma Bandeira - eu não esqueço o nome dele; ele lutava capoeira, tomou umas corças minha lá, mas capoeira não ganha de ninguém - me convidou pra sócio. Eu falei: “Entro pra sócio da fábrica, mas vou querer mudar alguma coisa aqui. Ou a gente vive uma real ou quebra.” Olhei uma bancada com treze costureiras. Eu digo: “Nunca vi, pô.” Você visitava várias fábricas e via onze, aí eu fui visitar umas fábricas pra mim.
A gente não nasceu sabendo, nada se cria, tudo se copia, aí comecei a visitar as fábricas grandes e olhar o sistema. Falei: “O negócio tá errado, vamos modificar essa bancada aí. Vou tomar conta da bancada um dia.” Botei as costureiras, comecei a fazer… Falei: “Minha senhora, tá toda torta a costura.” “Ah, só sei fazer assim.” “Então levanta, bota outra, senta aí.” [Quando] eu cheguei lá ele disse: “Você paga quanto as costureiras?” “Um salário mínimo, não. Tem que ganhar salário profissional. Eu sou exigente, então não posso exigir que uma pessoa trabalhe e ganhe mal, tem que ser profissional. Quanto é que a indústria paga? Salário profissional, então vamos pagar salário profissional. Eu não acho justo, né?”
O que aconteceu? Consegui fazer uma bancada com onze e saímos de 69 pra 114 calças. Peguei informação fora, eu não fui cego pra fazer aquilo. Eu não sabia do que eu tinha feito aquilo, então estive [em] fábrica de amigo, me informei direitinho, pra quando eu tomasse uma medida [eu] soubesse o que eu estava fazendo. Quando eu cheguei lá e tomei a medida pra fazer a dona, eu: “Minha filha, você costura torto. Tô pagando profissional, eu quero profissional, pode ir lá pra...” Despedi, ela era malcriada. “Só sei fazer assim”, então não serve pra trabalhar pra mim. Ela só sabe costurar torto, eu quero que costure reto, não posso manter um funcionário desse nível.
Foi quando nós começamos a fazer e ele tinha uma grande vantagem: ele é criativo. Aprendi muito com ele e depois com o pai dele, que passou a ser o nosso cortador, Seu Sebastião. Aprendi como se corta, até [então] eu cortava, como diz o outro, por cortar, desperdiçava muito pano. Quando ele começou a cortar [é] que eu comecei... Tirei uma _______, botei no sótão, em cima da loja. Eu tinha uma mesa de corte e duas máquinas, só o resto era feito fora. Passei a fazer fora, não tinha mais bancada porque não tinha como manter a turma, então tinha oficinas pequenas, você terceirizava. O pessoal está fazendo de 80 pra cá, eu já fazia naquela época, em 60 e pouco.
P/1- O senhor tinha outros lugares que faziam a produção?
R – É, tinha costureiras que levavam a oficina na casa dela. A gente levava cortado e ia buscar. A gente fazia o acabamento, pregava o botão e caseava, só.
P/1 - E como o senhor pagava esse serviço?
R – Aquilo era pago por peça, mas eu também não tinha encargos; é como o paulista hoje, é tudo trabalho de terceirização. Há pouco tempo, eu estava fazendo um discurso; teve um secretário de governo, Carlos Lupen, e o Coronel Paulo Afonso reclamando estacionamento lá no Bonsucesso Futebol Clube. Entrou um presidente novo que quis me boicotar um pouco, mas eu entrei como comerciante. “Alguém quer falar?” Eu digo: “Eu, eu quero falar.” Porque o cara não falou nada, pô? O que tinha que falar é reclamar do estacionamento mais uma vez, até conseguimos fazer aquelas 22 vagas rotativas. A única coisa que eu consegui com eles, fazer aquela rotativa, foi quando eu comentei com eles sobre… Quer dizer, do estado, sobre a Leopoldina por causa dos trens. Quando eu comentei sobre o governo federal que começou um pacote errado com oitenta e pouco _______ [e] quebrou as microempresas toda, foi um gaiato lá e disse “Ah, microempresa não exporta.” É lamentável, meu filho. As grandes empresas têm um quadro de trabalho, elas produzem aquilo visando o mercado interno. Ele abre o leque dela, visão, então ela não pode dobrar aquela quantidade de funcionários contando esporadicamente com uma exportação. O que eles fazem quando vem? Eles modificam. Se o importante da exportação é pra países exigentes eles produzem inverno, exporta e pra atender o mercado interno eles terceirizam pras pequenas empresas. Quando o pacote saiu [por] oitenta e poucos centavos o dólar, o nosso produto ficou muito caro no exterior, o Brasil perdeu muita exportação.O que aconteceu com as microempresas? Não tinha terceirização pra sobreviver, foi quando quebrou e começou a queda do comércio. 40% das microempresas quebraram, o que acontece? Desemprego em massa; quem está desempregado não consome. Eu, que pedia sessenta peças por um modelo, quando vi a queda de venda diminuí pra quarenta. Senti diminuir pra trinta, hoje compro quinze.
Foi diminuindo o poder de compra ou, segundo eles, não sei se é certo… Tem quatorze milhões de desempregados, o governo diz; se ele diz quatorze, tem vinte [milhões]. Ele mentem pra danar. Você sabe porque está isso tudo [assim], porque o imposto nosso é um absurdo e o povo ganha pouco. É a forma: “Ah, o INPS não vai poder pagar.” Meu filho, se o trabalhador ganha cem, você paga 10%, vai receber dez; se ganha duzentos você vai receber vinte, vai receber mais também”, mas também só conta o que sai, não conta o que entra, então o que que acontece? Se eles pegarem, vamos dar um valor simbólico. Se o imposto fosse 20%, que é o dobro, e se o funcionário, o trabalhador ganha duzentos reais, eles comeram quarenta reais do dinheiro do trabalhador de impostos - 20% de duzentos dá quarenta. Mas se ele tirar 30% do imposto e dobrar o salário pra quatrocentos, indústria e comércio nenhum vai reclamar, vai bater palma porque vai pagar menos do que paga pro trabalhador. Vai diminuir muita despesa, porque o que ele paga pro trabalhador é muito menor do que ele paga de imposto. O governo não vai perder. Ganhando quatrocentos, 20% com 30% de desconto sobre vinte cai pra quatorze. Quatorze por seis de quatrocentos dá 56, já não dá os 40.
P/1 – É muita conta...
R – Mas a palavra de Deus é clara, é dando que se recebe. Eles querem receber sem dar.
P/1 – Seu Cláudio, na década de 70 pra 80 como o senhor fazia pra atrair a clientela? O senhor fazia promoção, propaganda?
R – Eu sempre fui loja de promoção. Trabalho com as vitrines e tenho seis cavaletes promocionais. Sempre tive promoção; eu queria pegar o filé mignon. mas não queria perder o pequeno, por isso que eu não caí até hoje.
P/1 – E esses cavaletes de promoção. como é? “Compre dois, compre um”?
R – A gente bota um produto com preço bom. A gente marca um preço… É o tal problema: tudo o que é lucro… “Eu ganhei um milhão.” Em quanto tempo? Em um ano não ganhou nada. “Eu ganhei um milhão, eu ganhei cinquenta reais em dez minutos”, é um lucro fabuloso, então o que a gente considera? Eu marco um percentual menor, boto um cavalete. Em vez de botar na vitrine e vender dez peças por dia eu vou vender cem, com a metade do lucro eu ganho mais, entendeu o raciocínio? Então eu ganho muito mais, eu ganho os cavaletes pra isso. Um produto com um preço mais baixo, abaixo do mercado e o cara vê e compra. A gente roda aquilo ali pra pagar aluguel, pra pagar despesa, pra ajudar outras coisas; a vitrine vai te dar um lucro normal, um percentual normal, que hoje em dia está baixíssimo, cada dia a gente abaixa mais o lucro pra poder vender. Então você mantém aquilo no meio da loja, só cavalete pra isso, porque você vai ganhar menos, mas em compensação vai vender uma quantidade maior.
Eu não consigo entender a mentalidade do brasileiro; apesar de eu ser brasileiro, eu não consigo entender. Você observa bem: boto um produto, começo a vender. Ele vende cinquenta, digamos, laranjas por dia. Ele tá satisfeito. No outro dia ele vendeu cem, no outro dia ele vendeu 150; ele aumenta o preço. “Mas você já não ganhou na quantidade, rapaz?” Eles aumentam o preço, aí cai, a ganância derruba.
P/1 – E me fala uma coisa? Os dias de funcionamento, sempre foi o quê? De segunda a sábado? Teve época que mudou.
R – Bom, eu sempre trabalhei de segunda a sábado. Antigamente a gente fazia um acordo com o sindicato, mais quatro horas no sábado, a gente ia até às seis. Mais quatro horas a gente dava um vale lanche de cinco reais pra eles fazerem um lanchinho e mais hora extra, pagava cinco. Era 50%, agora é dobrado, então você paga aquelas quatro horas dobradas. Todo funcionário meu tem quarenta horas extras. O dia que o freguês estiver dentro da loja [é] que eu fico danado com o mau atendimento. São duas coisas que eu fico possesso. Quer me tirar do sério? [Só] você atender uma troca mal.
P/1 – Troca? Porque que as pessoas fazem isso, porque isso acontece?
R – Todo local, eles trocam com mau humor porque não vai entrar dinheiro. Acho que é a hora que você ganha o cliente, dá um atendimento mais esmerado, deixa o cliente à vontade. “Fica a vontade, meu amigo.” Tem lojas que diz: “Não troca [aos] sábados.” Ué, você não vende [aos] sábados? “Aqui troca todo dia, isso é uma bagunça da loja. Brasileiro é bagunçado, troca todo dia.” Eu acho injusto.
Quantas vezes uma senhora chega na loja: “Eu quero um vestido pra ir na festa logo mais”, aí a vendedora tá com pressa com o freguês, te empurra de qualquer jeito. “Pode levar que dá.” A gente conhece o vendedor, o vendedor quer vender. Você veste o negócio, viu que não deu. “Ah, não troca [aos] sábados.” Você queria pra ir na festa de domingo ou no sábado à noite, você vai esperar segunda feira pra trocar. É um caso esporádico, acontece, a maioria não, mas um dos principais problemas é esse. O cliente, quando entra pra trocar já entra com medo. Eu fico observando.
Teve uma época de Natal [que] eu botei quatro vendedoras extras, aí veio uma troca. “Vai trocar.” “Eu não troco, não.” “Tá bom, encosta ali.” “Vai trocar.” “Não.” “Vai trocar.” “Vai.” “Vocês duas podem ir pro contador que eu tô mandando embora.”
P/1 – É mesmo?
R – Mando embora na hora. Você vai pegar o dinheiro da pessoa; a pessoa vai lá, gasta o dinheiro. É seu cliente, você tem que bater palma. Você atende bem. Ele precisa trocar, não é favor nenhum, é obrigação.
Às vezes pediu uma coisa e o cara empurra outra. Existe isso. Lá eles não fazem, pode vir a troca que for. Se eu estiver fechando a loja eu torno abrir pra trocar. Pra vender eu não faço, mas pra trocar eu faço porque eu acho que é falta de respeito. Chega na loja [e] “Ah, não troca [aos] sábados.” É uma falta de respeito muito grande.
P/1- Seu Cláudio, o senhor é bem rigoroso. O senhor dá treinamento, como é que o senhor treina os novos vendedores, como o senhor orienta?
R – As minhas melhores vendedoras foram aprender a vender lá, as que vêm prontas… Apesar de que hoje estamos com pouca gente trabalhando, eu cheguei a ter oito vendedoras, agora tem três e já tenho uma com aviso prévio.
Outra coisa que eu queria enfatizar aqui é o descalabro da passagem de ônibus. É uma vergonha, aliás posso chamar isso até de roubo. É um desrespeito. Essa funcionária morava em Copacabana, ela foi morar em Santa Cruz da Serra. Sabe quanto é a passagem pra Santa Cruz da Serra? 3,80 centavos pra ir e 3,80 pra voltar. Ora, da Praça Mauá a Santa Cruz da Serra não chega a trinta quilômetros, da Praça Mauá a Mangaratiba são 62; da Praça Mauá a Mangaratiba você paga 1,40 e lá é 3,80? “É que passa de um município pro outro.” Mas não é tudo Brasil, não?
Penha/Copacabana é mais longe um quilômetro e é cheio de engarrafamento, um consumo muito maior de combustível. 1,40, com ar refrigerado 1,70. Pra lá eles vão pegar a estrada e o consumo de combustível é muito menor, consome 30, 40% a menos, o carro num engarrafamento é tudo em primeira, um consumo muito maior; lá, ele vai andar quase na quarta o tempo todo ou na quinta, ele vai ter um consumo bem menor e é mais caro porque muda de um município pro outro?
Isso o governo tem que ver porque isso é roubo. Viagem aqui por Mangaratiba não são 72 quilômetros, não são 1,40. Eu não consigo entender essas coisas. Se ainda fosse: “Ah, porque o ônibus é com ar refrigerado, tem televisão, tem um ônibus interestadual.” Nada, é uma carroça igual as outras, ainda pior do que eu viajo aí.
P/1- Seu Cláudio, falando em meio de transporte, qual é a importância da linha do trem dentro do bairro de Bonsucesso? Teve uma época...
R – Ela quase não funciona pra Bonsucesso. Eu vejo muita pouca pessoa descendo ali. Aquilo é um transporte obsoleto, porque aquilo foi da guerra de 14… Devia ter sido da guerra dos alemães, jogaram fora e eles ainda pegaram e botaram ali, porque não é possível que o metrô aí… Nós [estamos] precisando daquela parte. São quatro bitolas de trem abandonadas, duas abandonadas há vinte anos, já nasceu até árvore no meio. O espaço desperdiçado, ele usa dois… Entrou quando era do estado...
Eu tinha feito um projeto entitulado SOS Leopoldina pra implantar o metrô, porque a nossa linha cai dentro do entroncamento do metrô em Triagem, então o metrô viria suspenso em Duque de Caxias e esse trem seria usado pra zona rural, pra carga, pra outras coisas. Não é digno de um ser humano andar naquele trem. Ali eles venderam, preferiram fazer o de Pavuna. Com 10% que gastaram em Pavuna nós faríamos o metrô de Bonsucesso, o metrô da Leopoldina.
Você quer ver uma coisa? Arrecadador de ICM: você pega Pavuna e bota na lista dos primeiros cem, não aparece nem lá atrás; Bonsucesso era o primeiro nessa época, são 2/3 da nossa população. Porque fez pra lá? A gente mostra determinadas coisas que não consegue entender.
P/1- Mas a linha de trem nunca teve uma atualização adequada ali no bairro? Como é que era?
R – Tudo que vai pra mão do governo é mal administrado. Aquilo era uma sucata sobre roda, transportando ali. Não tem segurança, é um trem obsoleto que tem banco do lado, a maioria tem que viajar em pé, então não é digno de um ser humano.
Tem uma faixa de vinte metros ali que daria um avanço na Leopoldina de duas décadas em um ano, só de tirar o muro da vergonha, aquele muro que separa os bairros, que atrasa. Lançava ali duas pistas, uma desafogava Uranos, Ibiapina, José Maurício, até Duque de Caxias, pro lado de lá; a outra pista, pro lado de cá, desafogava Leopoldo, Bulhões, Dona Isabel, Cardoso de Moraes, Leopoldina Rego, Nicarágua, lá na Penha, vai até Duque de Caxias.
Você vê como nós temos espaço perdido, mal usado. Foi vendido pros espanhóis, se não me falha a memória. O BNDES vai lá e empresta uma grana pra eles que dava mais do que eles pagaram pela estrada, e pra pagar em dez anos, hein? Devem estar comprando terreno lá na Espanha com o nosso dinheiro.
Vocês sabem como reformaram o ter… Tá lá “Hené, Bedran, Shampoo não-sei-o- quê”. Às custas do dinheiro do comércio de propaganda. Fizeram uma maquiagem nas estações. Brincadeira, né?
R – Seu Cláudio, a gente falando da década de 60 pra hoje. Como que a clientela levava o produto pra casa, era sacola? O senhor falou quem ia ao Mercado Municipal levava saquinho, era tudo a granel...
P/1 – Antigamente, né? Hoje não, o mercado evoluiu. Você já compra o arroz pesado dentro do saco plástico. Antigamente era aquele saco grande que você ia lá e pesava. Hoje não, o mantimento evoluiu muito; você chega no supermercado, até carne já é empacotada, já compra pesadinho. Tudo limpo, já com código de barra pra você passar e não sujar nem a mão. Nós, do comércio, trabalhamos muito em cima de bolsa.
P/1- Bolsa plástica, de papel.
R – Bolsa plástica com o nome da loja, personalizada. É uma coisa digna pra pessoa sair na rua, bem superior à do supermercado, claro. A minha é uma bolsa prateada com o nome Alan Modas em vermelho, não é transparente, ninguém vê o que está dentro. É uma bolsa que não dá pra envergonhar. Outros usam de papelão, mas como hoje, segundo o bom senso, você viu que até o dinheiro está se fazendo de plástico, se eu for trabalhar com embalagem hoje você usa um aluminizado bonito, cintilante pra embrulho de presente. Antigamente[se] usava caixa; a quantidade de caixa que o comércio vende, quantas árvores tem que derrubar pra fazer essas embalagens todas? Se todo mundo tivesse bom senso ninguém usava mais caixa, usava todo mundo saquinho personalizado, porque aquilo é de borra de petróleo, eles não têm onde jogar fora. Como o nosso dinheiro também está vindo de plástico, aquilo ali… Infelizmente aqui nesse país é assim: [se] a coisa não presta pra nada se joga fora, você utiliza pra alguma coisa que vê que está saindo sobe o preço, um absurdo.
P/1- Seu Cláudio, vamos pegar os anos 60. Como é que as pessoas levavam os tecidos pra casa quando faziam as compras?
R – Naquela época, década de 70, por exemplo, não se tinha muita embalagem plástica. A gente fazia o embrulho: pegava o papel de bobina, embrulhava e amarrava um barbante. Se usava, era o estilo da época, só que as coisas vêm evoluindo. Toma tempo: é barbante, é papel, você pega o _______ de roupa, bota num saquinho bonitinho. O cliente fica todo satisfeito com a alcinha, vai com o saquinho plástico dele bonitinho, dá uma melhor aparência.
O embrulho caiu, “seja bem-vinda”, aqueles papéis todos… Antigamente tinha um papel amarelo e vermelho, o cara estava subindo o morro [e] a gente via cá de baixo, a propaganda lá em cima o nego via. Era uma atenção danada, uma esculhambação danada. Nós vamos crescendo e aprendendo, a gente aprende com as crianças. Tem cara que é orgulhoso: “Ah, eu sei.” Sabe nada, nós não sabemos nada. Outro dia eu estava vendo uma criança desenvolver um trabalho. Eu olhei, disse: “Puxa, como eu sou burro, rapaz!” A garotinha faz melhor do que eu. Digo: “Aprendi com ela.” Usei o sistema dela.
A minha filha, um dia chegou da escola de matemática, tinha um processo pra resolver, um problema. Acho que ela andou numa outra escola muito atrasada, aí nós botamos uma explicadora. Explicou, explicou, ficou boa no negócio. Mas se _______ toda na explicadora. Quando ela foi pra essa outra escola, na CÉU, lá na Ilha do Governador, aí o professor [disse]: “Mas a professora fazia assim dessa forma?” O professor olhou [e disse]: “Vamos fazer desse jeito, que é melhor.” O professor ainda estava no estilo antigo. Ela chegou toda orgulhosa lá.
Ela andou com nota ruim, a gente andou dando um duro nela danado, então ela ficou toda orgulhosa que o professor gostou, mandou ela fazer o trabalho.
De vez em quando a gente acerta uma, em mil a gente acertando uma… É aquele velho ditado da mãe: “Não existe mãe perfeita, mas há mil formas de ser uma boa mãe.” A gente procura ser bom comerciante, não tem um comerciante perfeito. Erramos muito, mas acertamos, errando é que se acerta. Nós aprendemos a ser valentes como? Tentando, correndo o risco é que nós aprendemos. Se você não correr o risco vai ser um eterno covarde. É igual o comércio: se você não errar você não acerta. Pra acertar tem que atirar, pra atirar tem duas coisas: ou acerta ou erra. Com o tempo, você vai acertando mais e errando menos.
Na época da inflação era mais fácil. Produto que você botava na vitrine vendia. Não tá vendendo, você não retoca o preço; o outro vinha mais caro, deixava aquele que aquele vendia pelo preço antigo. Eu perdia a inflação, mas o cara ia naquele porque era mais barato. Cada vez que eu ia arrumar a vitrine era mais 15%, 10%, 20%.
É uma realidade que ninguém pode negar, né?
P/1 – Ainda nessa coisa da gente aprender, tem algum ensinamento que o pai do senhor passou em termos de comércio, algum conselho que ele falava pro senhor?
R – Quase tudo.
P/1- Tem um que o senhor se lembre, mais marcante?
R – Aprendemos muito com meu pai. Meu pai era muito paciente, eu tive o privilégio de ter um pai excelente, então ele foi muito calmo. Quando eu botei minha loja ele ia lá olhar: “Tem um negócio melhor pra você aí.” Dava aqueles conselhos: “Isso aí tá dando problema, esse outro aí...”
A primeira vez que eu comecei a fabricar dei uma mancada que Deus me perdoe! Consegui fazer uma camisa de pai pra filho: o pai comprava, lavava, encolhia, dava pro filho. Pura falta de experiência. Aí ele [disse]: “Não compra tecido assim que encolhe, compra assim, que tem essa fibra assim, assim.” Hoje eu bato o olho...
Já aconselho os mais novos [com] o que eu aprendi com ele. Ele me ensinou quase tudo; o resto a gente aprende com a vida, com a prática, mas a raiz, a base eu devo a ele. Quem mais, a não ser ele que me ensinou? Se eu disser que é verdade eu tô mentindo. Era minha mãe puxando a minha orelha e ele me dando cascudo, aí eu aprendi. Antigamente era assim.
Hoje, com a minha filha, eu não boto a mão nela; estou aborrecido e acabou, não falo com ela a semana toda e ela consegue fazer o que eu quero sem eu agredir. A modernização… Ela tá na quarentena comigo, se ela ligar lá eu não atendo. Essa semana eu não atendo, fez malcriação. Eu não aceito malcriação, fez malcriação eu não atendo. Liga pra lá a cobrar, eu já sei que é ela; eu não atendo, desligo.
P/1- Mas ela trabalha com o senhor?
R – Não, ela só estuda.
P2 – Mas o senhor gostaria que ela trabalhasse no comércio?
R – É um pouco nova, então ela não tá muito madura ainda não, eu acho que ainda não tá no ponto. A gente sente quando a pessoa começa a se interessar pela coisa e é um momento de você explorar. Não adianta forçar, você vai forçar a natureza. Tudo que não é espontâneo não é bom, espontaneidade é uma coisa muito importante pra gente. Tudo que é forçado é feito de má vontade, não funciona bem. Aquilo que você faz por amor… Tudo tem que ser feito por amor. Eu sempre digo pros empregados: “Não trabalha por obrigação, trabalha pela satisfação da missão cumprida. É muito importante, é o feijão que você vai levar pros seus filhos, é a compra do mercado e a roupa que você vai levar pra ele.”
É isso que lhe dá a vida. Se você trabalhar de má vontade aqui você vai produzir menos, eu vou produzir menos. A tendência [de] uma firma quando tem gente trabalhando com insatisfação… É duro você trabalhar num recinto e a pessoa estar com a cara amarrada pra lhe atender, é muito triste.
O sorriso é uma coisa muito importante. Eu vou te mandar uma mensagem do sorriso, o dia que eu for pegar umas fotografias eu vou mandar a mensagem do sorriso. “Sorria sempre”, então são certas táticas. Tem freguesas [que dizem] “Eu me sinto bem em entrar aqui. O senhor está sempre sorrindo, brincando, conta piada.” Mas tem que ser assim, já imaginou todo mundo sisudo? Você não vai a lugar nenhum.
Acabou esse tempo, o cara ali [dizendo] “eu sou importante”. É bom você ser importante, mas é muito mais importante você ser bom. Isso aqui é uma vida passageira. No segundo andar a conversa é outra, o que você plantou você vai colher; se você não plantou nada você vai comer capim lá em cima, é o tal problema. Capim é força de expressão, né? Então é uma forma… Ou você determina uma forma de vida, porque não adianta fazer guerra com ninguém, não.
Eu sou descendente de árabe. O que eu acho mais errado são aqueles árabes brigando com os judeus. Estão brigando há séculos, não sabem nem o porquê. Um joga pedra no outro, o outro dá tiro. Porque vocês estão brigando? O cara nem sabe, o cara pequininho já está jogando pedra, já nasce com aquele instinto.
P/1 – Me fala uma coisa, seu Cláudio. Dos cinco irmãos, só o senhor seguiu a carreira no comércio?
R – Não, todos os cinco.
P/1- Todos têm suas lojas.
R – Todos têm.
P/1 – Todos lá em Bonsucesso.
R – Não. O mais velho teve loja em Pilares. Eu abri a sociedade com ele lá, mas resolvemos… Ele quis se aposentar. “Então vende, porque eu não ficar correndo pra lá e pra cá pra loja que não dá grandes vendas.” Aí se aposentou. Até me ajudou a fazer as vitrines, vai lá de vez em quando pra matar as saudades.
A minha irmã mais velha também, ela sempre teve um problema de vista, então ela está com a idade mais… Você vê, ela é seis anos mais velha que eu. Eu estou com 64, ela está com setenta anos. Ela teve a loja dela; eu mesmo vendi, fiz negócio pra ela. Vendi a loja dela, ela agora está aposentada. A mais nova também, que é dois anos mais velha do que eu, ainda mantém a Balu Modas em Bonsucesso, mantém o negócio; o mais novo tem uma loja em Bonsucesso e outra em Resende, ele está morando em Penedo e aqui no Rio, em Ipanema, então ele fica revezando. Ele ainda está naquela disposição toda, eu estou naquela de pendurar chuteira. Não adianta, eu tenho que agora partir pra outra; se aparecer um bom negócio eu vou vender. Dizem que tem uma obra prevista, tomara que a prefeitura entre no bom senso e corrija o erro deles, pra gente poder… Porque não está sendo vantajoso trabalhar. Pra animar um pouco.
Se você está ganhando um pouco, tudo bem. Eu já botei na loja minha casa de praia, um Omega meu - agora eu não tenho mais carro. Botei um apartamento em Friburgo e 110 mil dólares que eu tinha, que eu não sabia o que fazer com eles. Quer dizer, fiquei duro. Hoje vocês veem, a cor da bancada lá é colorida, tudo vermelhinho.
P/1 – O bom é que o senhor tem bom humor, né?
R – Resolve de outra forma, me ensina outra forma de resolver. Eu tenho que correr atrás do colorido, não tem outra forma.
P/1 – Então vamos partir pra nossa última pergunta. Infelizmente, está acabando o tempo, a gente ficaria aqui muito mais tempo porque o papo é muito bom. O que o senhor achou de ter passado esse tempo com a gente e ter contado a trajetória de vida do senhor, a experiência no comércio pra esse projeto que é pioneiro aqui no Rio, Memórias do Comércio da cidade do Rio de Janeiro?
R – Eu acho isso muito importante. Não sei se vai servir, mas tomara que sirva de exemplo. Às vezes, determinadas coisas que a gente não acredita são exemplos muito bons no futuro. Às vezes eu leio determinadas mensagens que me dão exemplos muito grandes, por isso que eu gosto de colecionar mensagem.
Fiquei muito feliz aqui porque eu tive pessoas simpáticas, me atenderam muito bem. Eu fico satisfeito quando a pessoa é bem atendida, ela se sente à vontade, né? Eu me senti como se fosse em casa aqui, à vontade. Você sentiu que eu não fiquei nervoso nem um pouquinho.
Eu não fico nervoso nessas ocasiões porque todo cara que praticou jiu-jitsu não fica nervoso; a hora que ele ficar nervoso ele perde, porque você quando fica nervoso perde 60% do seu raciocínio, esse é o problema. O cara calmo usa 100% do raciocínio, então foi uma satisfação muito grande. Colaborar com o futuro do país também, se for servir pra alguma coisa futura de exemplo ou ajudar alguém eu estarei sempre a disposição de vocês. Muito grato por ser escolhido por vocês, [foi] uma imensa satisfação. Precisando, podem contar comigo.
P/1 – Tá jóia, obrigada pela entrevista. Em nome do Sesc a gente agradece demais.
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