P/1 – Então para começar sr. Luiz Antonio, eu queria que o senhor dissesse o seu nome completo, local e data de nascimento.
R – Meu nome é Luiz Antonio Duff Azevedo. Eu nasci em São Paulo, em 9 de julho de 1937.
P/1 – E toda a família é de São Paulo?
R – Bom, toda a minha família, quer dizer, por parte de pai é de São Paulo. Meus avós e minha mãe nasceram na Europa. Minha mãe nasceu na França e meu avô era cidadão inglês, nascido em Portugal, em Lisboa.
P/1 – E o senhor conhece um pouco a história desses avós da Europa? Por que eles vieram para o Brasil?
R – Então, o meu avô trabalhava no Bank of London, que hoje é o Loyds. E por isso que minha mãe nasceu em Paris. Ele rodava pela Europa, era gerente do Loyds em Paris. Depois, foi transferido para Portugal, que ele já conhecia. Inclusive, ele tinha vivido em Portugal porque ele tinha nascido lá. Depois foi transferido para o Brasil e morreu aqui, no Brasil. Mas ele fez uma carreira, por isso que ele rodava tanto. Meu avô por parte de pai era político, foi senador da República Velha aqui por São Paulo. E ele caiu junto com o Washington Luís. Ele era presidente da Câmara quando o Washington Luís foi derrubado, foi posto para fora. Ele foi preso. Na verdade, ele fugiu e se asilou na embaixada de Portugal, na época. Mas depois foi liberado pelo Getúlio (Vargas) e terminou a carreira política dele. Ele estava bem velho. Mas fez toda uma carreira. Era fazendeiro também de café, no Vale do Paraíba. É um dos poucos políticos que eu conheço que perdeu duas fazendas por causa da política. Naquela época o sujeito tirava o dinheiro do bolso para ser político, né? [risos] E é isso.
P/1 – E o senhor chegou a conviver com esse avô político?
R – Convivi. Até os 6 anos mais ou menos, convivi. Me lembro dele muito bem.
P/1 – Como o senhor descreveria esse avô?
R – Olha, eu o peguei em uma fase em que ele era muito...
Continuar leituraP/1 – Então para começar sr. Luiz Antonio, eu queria que o senhor dissesse o seu nome completo, local e data de nascimento.
R – Meu nome é Luiz Antonio Duff Azevedo. Eu nasci em São Paulo, em 9 de julho de 1937.
P/1 – E toda a família é de São Paulo?
R – Bom, toda a minha família, quer dizer, por parte de pai é de São Paulo. Meus avós e minha mãe nasceram na Europa. Minha mãe nasceu na França e meu avô era cidadão inglês, nascido em Portugal, em Lisboa.
P/1 – E o senhor conhece um pouco a história desses avós da Europa? Por que eles vieram para o Brasil?
R – Então, o meu avô trabalhava no Bank of London, que hoje é o Loyds. E por isso que minha mãe nasceu em Paris. Ele rodava pela Europa, era gerente do Loyds em Paris. Depois, foi transferido para Portugal, que ele já conhecia. Inclusive, ele tinha vivido em Portugal porque ele tinha nascido lá. Depois foi transferido para o Brasil e morreu aqui, no Brasil. Mas ele fez uma carreira, por isso que ele rodava tanto. Meu avô por parte de pai era político, foi senador da República Velha aqui por São Paulo. E ele caiu junto com o Washington Luís. Ele era presidente da Câmara quando o Washington Luís foi derrubado, foi posto para fora. Ele foi preso. Na verdade, ele fugiu e se asilou na embaixada de Portugal, na época. Mas depois foi liberado pelo Getúlio (Vargas) e terminou a carreira política dele. Ele estava bem velho. Mas fez toda uma carreira. Era fazendeiro também de café, no Vale do Paraíba. É um dos poucos políticos que eu conheço que perdeu duas fazendas por causa da política. Naquela época o sujeito tirava o dinheiro do bolso para ser político, né? [risos] E é isso.
P/1 – E o senhor chegou a conviver com esse avô político?
R – Convivi. Até os 6 anos mais ou menos, convivi. Me lembro dele muito bem.
P/1 – Como o senhor descreveria esse avô?
R – Olha, eu o peguei em uma fase em que ele era muito sisudo. Ele era um sujeito muito assim, fechado. Ele parecia zangado. Eu sei de histórias dele, quando ele estudava Direito em São Paulo, que ele tocava piano muito bem. Ele tinha umas meninas. E poesias. E o pai vivia desesperado atrás dele. Naquela época, quem tinha carro, tinha um Faiton [Ford Faiton]. Faiton era uma pequena carruagem que o pessoal, o solteiro, usava porque era pequenininho. Ele usava esse Faiton, andava de um lado para o outro. Um cara todo alegre. Eu o conheci mais sério.
P/2 - Mas ele foi o primeiro político e fazendeiro da família, ou isso já vem do bisavô? O senhor sabe?
R – Ah, não. O pai dele era político também. O pai dele foi deputado e era fazendeiro também. Deputado por Lorena. Deputado da província. E o meu tataravô também.
P/2 - O senhor lembra do nome deles?
R – É Antonio Rodrigues Ferreira... Azevedo Ferreira.
P/2 - Esse era...?
R – Antonio Rodrigues Azevedo Ferreira. Esse era o meu bisavô. Ele foi o barão de Santa Eulália. Era aquele tempo de barão de café. E o outro se chamava... meu tataravô se chamava João Rodrigues. João Azevedo Rodrigues. Então, era toda uma velharia lá em Lorena, no Vale do Paraíba.
P/2 – Em Lorena eles produziam café?
R – Eles tinham fazenda de café em Lorena. E meu avô não era um fazendeiro, assim, nato. Ele herdou a fazenda, mas gostava de política. Todos eles fizeram Direito aqui em São Paulo, na Faculdade de Direito, aqui. E ele, o meu bisavô, gostava da fazenda. Meu avô não gostava. Ele mexia e tal. Contratou um americano para plantar arroz, na época. Imagina no século passado. O americano veio e fez um monte de bobagens. No fim, ele foi cada vez mais se dirigindo para a política. Naquela época, como hoje também, você precisa ter dinheiro. Hoje em dia, para você conseguir dinheiro para o partido, tem todos esses problemas que a gente conhece aí. Naquele tempo ele vendia as coisas para financiar a campanha. No fim, vendeu fazenda, vendeu tudo o que ele tinha. Todas as fazendas - eram duas - para financiar a própria campanha. Foi um cara extremamente honesto, viu? E, naturalmente, um “quadradão”. A República Velha ficou com nome ruim. Era um pessoal muito antiquado. Muito orgulhoso. Muito assim. De uma certa maneira eles eram preconceituosos. Eram sujeitos que se consideravam uma elite. Mas eram sérios. Eram sérios, né?
P/1 – E o senhor sabe por qual partido político?
R – PRP. Partido Republicano Paulista.
P/1 – Na verdade...
R – Que era República Velha.
P/1 - ...eles participaram do movimento republicano no Brasil?
R – Então, eles derrubaram a...
P/1 – Monarquia.
R – Meu avô era republicano. Eles derrubaram a monarquia. Ele moço, já estava brigando. Eles eram todos a favor da libertação dos escravos. Houve muitos problemas com essa libertação dos escravos. Vocês devem ter lido a respeito. Meu bisavô praticamente quebrou, na época. Você imagina que um escravo valia o equivalente a um Volkswagen. Um Gol, digamos hoje. E os caras tinham... o capital deles eram os escravos. Então essa briga toda... no fim, a monarquia caiu por causa disso. E meu avô estava no meio, com grandes brigas com o pai. Você imagina? Era uma coisa... O Brasil, eu acho que foi, vergonha, foi um dos últimos países a libertar os escravos, a terminar com a escravidão.
P/2 – E a figura feminina nessa família, a tataravó, bisavó, avó? O senhor sabe um pouquinho também das mulheres?
R – Bom, falando do lado do meu avô. A mulher do meu avô era uma pessoa assim, sabe o que é? Todas essas mulheres, eu digo, ela, mas digo as outras também. Eram mulheres que tiveram muitos filhos. Eram mulheres que eram âncoras, piques da molecada e das pessoas. Elas seguravam a barra toda dentro de casa. E acredito também que as barras psicológicas porque os homens eram muito duros e viviam afastados, fazendo um monte de coisa. E as mulheres estavam lá, com o reinado delas. A minha avó teve, por exemplo, 10 filhos... 11, 12.... 12. Morria gente, nascia... na fazenda, sem assistência médica. Então, era difícil. Por exemplo, a educação era toda feita com professoras. Professoras que vinham de fora, por exemplo, tinha uma francesa, uma alemã e uma americana. Eles aprendiam as línguas, aprendiam... uma dava Geografia, a outra dava... Na fazenda tinha uma casa para as professoras. Quando tinha uma sala de aula, o pessoal ia. As mães é que tocavam tudo isso. Não havia escola, não havia nada para o sujeito porque depois, ele fazia esses cursos particulares com professoras e geralmente estrangeiras. E depois eles iam para o Pedro II, no Rio, prestar concurso, que o Pedro II era o único lugar que você podia prestar um concurso e ter um título para ir para a universidade. E então, a presença da mulher era importante nesse sentido. Não havia, sabe, aqui no Brasil pelo menos, as sufragistas, que já existiam desde o século passado, querendo uma liberdade maior para a mulher, mas aqui não. Quero dizer, eram figuras maternais, donas de casa, mãe de todo mundo.
P/2 – O senhor chegou a conhecer essa fazenda de café?
R – Conheço. Inclusive eu me correspondo com o sujeito que comprou a fazenda, até hoje. E essa fazenda foi vendida em 1919, para você ter uma idéia. Ela foi comprada por um camarada, por um alemão. Depois por outro. No fim, caiu na mão desse que é o diretor de uma companhia grande de construções, o Thomas Mckray. Ele procurou meu pai. Meu pai não deu muita informação para ele. Meu pai tinha muito sentimento, assim, em relação à saída da fazenda porque ele tinha 10 anos na época e meu avô estava na política. Ele ficou muito triste. E esse Thomas Mckray fez amizade comigo depois que meu pai morreu. E eu dei todas as informações sobre a fazenda. Por exemplo, ele descobriu túneis, trilhos do tal americano que esteve plantando arroz e ele não sabia o que era. Ele cavava, achava um túnel com vagão e coisa dentro e tal. Então, eu contei toda a história. E eu tinha fotografias da inauguração da plantação do tal americano, do vagão... que na época foi um investimento grande. Aí ele começou a reconstruir a capela da fazenda. Eu arranjei fotografias da época e ele reconstruiu com todos os vidros bisotê. Um trabalho muito bacana. Um sujeito muito bacana, esse Thomas Mckray.
P/2 – Mas o senhor não chegou a passar a infância na fazenda?
R – Ah, não. 1919.
P/1 - O senhor é bem depois?
R – Eu tenho contato com a fazenda porque aquilo lá ficou uma raiz para a gente. Ele me chama lá.
P/2 – O pai do senhor contava histórias dessa fazenda?
R – Muitas. Muitas. Para ele foi muito importante.
P/2 – Alguma em especial?
R – Era isso, das professoras. Quando tinha uma professora desagradável porque eles vivam aquele mundo. Quando tinha uma professora desagradável e ela ia embora, eles tocavam o sino da capela quando ela estava saindo. Esse tipo de coisa. Porque as professoras eram malvadas, quer dizer, malvadas? Imagine. Eram...
P/1 – Severas.
R - ...eram severas. Batiam nos moleques. Aquela coisa. Mas era uma vida muito fechada. Porque era um mundo. Eles viviam só na fazenda. Não iam para a cidade praticamente.
P/2 - E saindo da fazenda eles vieram para onde?
R – Então, aí cada um deles veio para São Paulo, conforme eles iam ficando mais velhos e iam estudar. Meu pai, por exemplo, foi estudar Direito. Como o meu avô, como o meu bisavô. Foi lá para o Largo São Francisco. Só que ele foi estudar no Rio, na verdade. Foi estudar no Rio porque meu avô, em um determinado momento, foi para o Rio de Janeiro. É isso aí. Ele foi para o Rio e aí ficaram no Rio também porque ele era político e a capital do governo brasileiro era o Rio de Janeiro. Então eles foram todos morar no Rio. E alguns ficaram em São Paulo, os mais velhos. E então é isso. Quer dizer, o meu pai foi fazer Direito. Fez Direito no Rio e aí começou a dar aulas de Geografia, e foi se entusiasmando com a Geografia. Ele se formou em Direito, largou o curso de Direito e foi ser professor de Geografia. Ficaram furiosos com ele. Aí ele começou a escrever livros didáticos e teve um sucesso enorme. Toda a geração de pessoas com até 45 anos estudou nos livros didáticos dele. Era o único livro didático praticamente da época. Chamava-se Geografia do Brasil – Aroldo de Azevedo. Era um livro didático muito usado nas escolas. Ele teve muito sucesso com isso. Foi para a USP e acabou sendo catedrático lá da USP. Interessante até como você pode mudar uma profissão que você foi fazer para agradar os antepassados.
P/2 - Verdade.
R – Que não era....
P/1 – E o senhor sabe como é que ele conhece a sua mãe? Como é essa história?
R – Ele conheceu a minha mãe no Rio, justamente. A minha mãe estava morando no Rio de Janeiro. O meu avô tinha morrido e ela estava lá, instalada com a minha a avó, as irmãs dela e tudo mais e meu pai a conheceu. Eles moravam na frente da casa do meu avô. Meu avô foi preso lá. A polícia estava atrás dele quando caiu o Washington Luís. Foi aquela correria e tal e eles acompanhando tudo. Meu pai começou a conversar... se ofereceu para ir no lugar dele preso. E aí ele foi para a Embaixada que era ali perto, em Botafogo. A embaixada de Portugal era ali perto. Então, meu avô ficou na embaixada e minha avó, ajudando. No fim, meu pai e minha mãe começaram a namorar e se casaram.
P/2 - E aí passam a morar no Rio de Janeiro ou vieram para São Paulo?
R – Então, aí meu pai foi para Curitiba. Abriu uma firma. Ele tentou fazer vários negócios. Ele gostava mesmo era de Geografia, mas tentou fazer uns negócios. Não funcionou. Ele veio para São Paulo e começou na USP. A USP estava sendo fundada naquela época. Vieram aqueles professores franceses e Pierre Deffontaines. Toda essa turma aí que fundou a parte da Filosofia e Letras e que tinha a parte de Geografia. Então ele pegou, por exemplo, todas as aulas em francês. Quando ele veio para cá, já era casado. Estava se virando, dando aula, com livro, os livros publicados, e assim foi, quer dizer, ele fez a carreira dele.
P/2 – A família da mãe do senhor trabalhava com o quê?
R – Então, a família da minha mãe... o meu avô era do Banco de Londres.
P/1 – Sim.
R – Ele veio da Europa. Minha mãe chegou no Brasil com 10 anos, mais ou menos... 8 anos. Ele então se instalou no Rio de Janeiro e teve muito problema com o clima. Você sabe que, naquela época, o pessoal usava aquelas roupas de lã, pesadíssimas? Era um “inglesão”, o cara. Imagina o calor! Ele chegou no verão e o sujeito foi tendo problemas de saúde por causa disso. Ele tentou vir para o Banco de Londres, em São Paulo, que era um pouco mais frio, mas as coisas aconteciam no Rio. São Paulo era província ainda. No fim, ele foi para o Rio. E olha, ele morreu, eu acho que por causa do clima. Ele não...
P/2 – Mas ele continuava usando a roupa?
R – É, os caras tinham que andar daquele jeito. Você andava com 17 quilos de lã em cima e ia. Ninguém, todo mundo...
P/2 – Chapéu?
R – Chapéu, aquela coisa. Ele sofria muito com o calor no Rio. Era um sujeito... típico nórdico, né?
P/2 – A mãe do senhor contava alguma coisa dessa viagem que ela fez para o Brasil?
R – Contava. Ela sentiu muito em deixar sua terra. Eles moravam em Lisboa. Sentiu muito deixar Lisboa. Ela tinha os animais dela, os cachorros e veio para cá. Na viagem, eles se divertiram muito a bordo. Aquela história toda. Criançada esquece rápido. Gozado. Ela depois lembra de quando partiu, mas na verdade, foi se divertindo. Chegou aqui e era tudo novidade. Uma mudança de país é difícil, mas para ela deve ter sido agradável porque eles vieram em uma condição, assim, muito boa, pelo Banco de Londres. Então, grandes brincadeiras. Não estavam, digamos, no porão de um navio [risos].
P/2 – E eles foram morar no Rio, aonde?
R – Olha, eles foram morar no Rio, em Laranjeiras. E ficaram em Laranjeiras, depois foram para...
P/2 – Que devia ser um bairro na verdade...
R – Muito bom. Laranjeiras era um bairro bom lá no Rio, mais sossegado. Tinha muitas árvores, era um lugar muito agradável. Depois mudaram para Botafogo. Aí meu avô morreu e minha avó foi morar na casa do pai, que também morava em Laranjeiras. Assim, a coisa foi indo e depois foram para Botafogo, onde ela conheceu o meu pai.
P/2 – Essa avó, mãe da mãe do senhor, o senhor tem que lembrança dela?
R – Olha, era uma pessoa que tocava piano muito bem. Cantava músicas muito bonitas. Cozinhava maravilhosamente.
P/2 – O que ela fazia?
R – Olha, ela fez o Cordon Bleu. É um curso que tem lá em Paris, de cozinha... na época, lá no fim do século passado. Então, ela cozinhava maravilhosamente. Todos aqueles pratos mais sofisticados. Suflês especiais, tortas, essas coisas assim. Ela tinha aquela paciência que havia antigamente, de fazer doce de tangerina. Você pega as coisinhas da tangerina, abre a tangerina e tira milhares de gominhos e põe tudo [risos], sabe? É um negócio que não se consegue mais. Ninguém mais tem paciência para fazer isso hoje [risos]. Eu achava o máximo.
P/2 – E o estilo de vida dessa parte da família do senhor era de uma família imigrante, mas na verdade, eles vieram para o Brasil em boa situação?
R – É, ele era um executivo internacional. Quer dizer, era um cara que vivia no meio do pessoal de banco, embaixadas. Ele vivia bem.
P/2 – A parte de festas, o senhor sabe alguma coisa da vida social?
R – Olha, eu não sei muito. Eu sei que eles tinham uma vida social grande, inclusive, cruzavam com o meu avô (pai do meu pai) que, como político, também estava em grandes festas e tudo mais. Tinham uma vida bastante movimentada no Rio.
P/1 – Certo.
P/1 - E o senhor disse que nasceu em São Paulo?
R – Sou produto da Pró-Mater.
P/1 - [risos] E todos os irmãos também nasceram em São Paulo?
R – Todos nasceram em São Paulo.
P/1 - Então foi só quando seus pais mudaram para cá é que passaram a nascer os filhos?
R – É.
P/1 - E da infância? O que o senhor se lembra, senhor Luiz Antonio?
R – Olha, eu tive uma infância muito gostosa. Meu pai construiu a segunda casa do Vale do Pacaembu e, então, eu praticamente vivi ali. O Vale do Pacaembu, para você ter uma ideia, era como se fosse uma fazenda. Eu tomava banho de cachoeira. Sabe onde é a Casa Cor, hoje? O asilo, que se chamava Asilo Sampaio Viana, naquela época... então, na parte de baixo, tinha uma cachoeira. Tinha um riozinho e tal e eu andava a cavalo ali. Ali era tudo deserto. Nossa casa estava no meio do ermo total. Tinha uma outra casa do lado, só, e nós, afastados de tudo e barro para todo lado. Então, era interessante porque a gente estava lá, você vê, o Pacaembu hoje [risos] é um lugar... Mas a gente vivia, assim, uma vida de fazenda. Então para mim era ótimo.
P/1 – E como era essa casa?
R – Era um chalé estilo normando. Uma casa muito bacana. Muito bonita. E para nós, tem uma memória, assim, muito bonita.
P/1 – Por que razão essa memória é assim? É algo marcante na casa?
R – Bom, nós todos fomos criados lá. Eu, meus irmãos e, naturalmente, quantas vezes eu não entrei escondido lá para não apanhar? Aquela história toda de garoto. Então, você fica...
P/1 – Tinha muitas brincadeiras na infância?
R – Brincadeiras.
P/1 – Quais que eram as brincadeiras da infância?
R – Olha, naquela época era tudo diferente, sabe? Por exemplo, nós brincávamos com casca de noz e fazíamos navios. Fazíamos, então, grandes batalhas navais. Nós nos vestíamos de, por exemplo, houve a guerra lá e durante a guerra tinha blecaute em São Paulo. Então sobraram panos pretos para todo lado. Toda casa tinha um monte de pano preto porque tinha que se fechar todas as janelas com pano preto, sem acender a luz. Não podia acender luz. E então eu usava aqueles panos pretos, eu e meus amigos porque as casas também estavam cheias de panos pretos. A gente fazia roupas e aí fazia aquela coisa, Sir Lancelot, castelo e tal. Luta de espada. Quer dizer, as brincadeiras eram brincadeiras ligadas com os romances que a gente lia, que eram todos romance de capa-e-espada. Havia, por exemplo, velhas construções abandonadas onde ficava a sede do castelo. Um atacava e o outro defendia, sabe? E a turma machucava mesmo. Era esgrima, esse tipo de coisa. Usava-se muito a imaginação.
P/2 – Como era essa história do blecaute?
R – Então, na verdade era mais um treinamento porque o Brasil tinha entrado... Como o Brasil entrou na guerra, começaram-se uma série de limitações de consumo. Por exemplo: não havia muito pão. Não havia gasolina. Usava-se gasogênio. Os carros tinham um negócio enorme atrás, que era o gasogênio. Ele era uma caldeira que queimava, produzia o próprio gás. Era assim que os automóveis andavam nessa época, automóvel e ônibus. Os poucos automóveis. E tinha o tal blecaute. O blecaute você não podia acender luz, a não ser que você tivesse tudo fechado com pano preto. Então as pessoas ficavam assim. Você olhava, por exemplo, se você passasse de avião em cima de São Paulo, você não via nada de noite. Você não via luz à noite. E então era isso. Depois sobraram esses panos todos aí para o pessoal brincar [risos].
P/1 - O senhor falou um pouco do bairro do Pacaembu, mas que lembrança o senhor tem da cidade nesse tempo?
R – Olha, fabulosa porque eu, naquela época, para você ter uma idéia, com 8 ou 9 anos, eu pegava o ônibus e no Pacaembu tinha o ônibus 107, que saía lá do meio do barro, atravessava toda a Avenida Pacaembu e ia para o centro da cidade. E o centro da cidade era frequentado pela garotada. Eu ia comer sanduíche de cachorro-quente no Juca Pato, ali na esquina da São João. E mexia muito com casas filatélicas. Eu tinha um amigo que colecionava selo junto comigo, então, a gente ia para as casas filatélicas. Ia para a São Bento com a Libero Badaró. O centro da cidade era o meu recreio, digamos.
P/1 – Ia sozinho, em grupo?
R – Sozinho. Naquele tempo um garoto de 9 anos pegava o ônibus e ia para a cidade. Minha mãe nem se preocupava. E ficava. Tinha uma porção de lugares para você passear. Cinema. Cine Dom Pedro, Cine Cairo, ali no Anhangabaú. E bons cinemas.
P/2 – E tinha passeios em família também?
R – Bom, nós passeávamos. A gente ia... passeios de fim de semana, lá para o Embu, esses lugares de automóvel. Molecada fazer piquenique e tal. E tinha também as férias. Todo mundo ia para Caxambu nas férias. Caxambu. Sabe que naquele tempo era tudo diferente, assim com as crianças. Por exemplo, a criança não comia junto com os pais. Por exemplo, nos hotéis você tinha o restaurante das crianças e o restaurante dos adultos. Então, era uma pândega. Todo mundo lá no restaurante das crianças [risos], era uma bagunça danada. Uns pobres coitados, seguranças, essa turma toda lá no hotel, eram pagas para isso. Voava garfo para todo lado.... E os pais, bacanas, lá, almoçando. Era gostoso para burro. Imagina, toda a estação de águas era a mesma coisa.
P/2 – O senhor tinha muitos irmãos?
R – Então, eu tinha três irmãos e uma irmã.
P/2 - Como se chamam?
R – Minha irmã se chama Regina. O meu outro irmão se chama João. O outro irmão Ricardo, e o outro, Alberto. Só que a Regina e eu é que convivemos. Eu e minha irmã somos mais velhos. Meu próximo irmão... morreu gente no meio... então ele tem 8 anos de diferença comigo. Então, fazia uma diferença enorme nessa época, quer dizer, era eu e minha irmã mesmo que fazíamos as coisas.
P/1 – Tá certo. A farra...
R – Isso que eu estou te contando do Pacaembu e tudo mais, quer dizer, eles já pegaram o Pacaembu cheio de casas. Eu, por curiosidade, trouxe para vocês duas fotografias: uma do Pacaembu, com estádio e tudo deserto, e outra, da minha casa sendo construída lá. Você vai morrer de rir. Se vocês conhecem aquela zona lá... era um deserto, na época.
P/1 – E o senhor se lembra da escola? Da primeira escola?
R – Lembro. Minha primeira escola foi o Colégio Stanford, que era um colégio [risos] meio inglês, meio brasileiro, e me amarravam de manhã para eu não fugir. Passava um ônibus lá, me jogavam dentro do ônibus. Eu ia aos gritos para o tal colégio. Enfim, eu gostava e tal [risos], mas todo mundo gritando no ônibus, ninguém queria ir para o colégio. Aquele tempo você começava mais tarde, inclusive. Com 5, 6 anos... Hoje em dia, com 2 anos já está na escola. E então foi esse o meu primeiro colégio.
P/1 – Mas era muito rígido?
R – Ah, era tudo muito rígido. Quer dizer, eu sempre tive problema com escola porque eles eram muito bravos. Todos, com a garotada. Fui para o São Luiz. E fiquei no São Luiz lá uns anos. Ia de bicicleta, ali pelo Pacaembu todo. Pegava aquele ladeirão, ia lá para a Avenida Paulista de bicicleta. E também mil problemas. Eu, na escola, não me dei muito bem, viu?
P/1 – O senhor se lembra de algum fato mais marcante?
R – Eu fui expulso de vários colégios. Então esse que foi o problema. Então isso marcava. Chegava no fim do ano você era mandado embora. Meu pai ficava furioso. Então, no fim, me puseram no colégio interno.
P/1 – Mas era expulso por causa das brincadeiras em excesso?
R – Brincadeiras, jornalzinho... as pessoas não aceitavam brincadeira. Nós tínhamos e fizemos muitas piadas. Não era, assim... não era por falta de disciplina, exatamente. Era mais gozação mesmo. Eu tinha o azar de ficar, azar ou sorte, de ficar perto de gente que brincava muito e o pessoal não gostava.
P/1 - E ter um pai professor influenciou bastante?
R – Sem dúvida. Essa é a resposta que você dá para o pai intelectual. Então, ele sofreu para burro.
P/2 – O senhor lembra do pai professor assim?
R – Sem dúvida. Eu vivia de castigo, ele me levava para a USP e a USP, naquela época, era na Praça da República, onde é hoje o metrô, ali. Sabe o Caetano de Campos? Então, a Faculdade de Filosofia funcionava lá. E eu vivia lá, assistia aula em francês. Imagina só, descobri que eu entendia tudo de francês a primeira vez que eu viajei. Eu cheguei: “Mas como é que eu estou entendendo tudo isso?” Porque eu ficava ouvindo [risos] o pessoal falar francês, né? E ele me deixava e eu assistia as aulas todinhas da USP durante um período grande. Por exemplo, eu era mandado embora do colégio, meu pai ficava furioso e me levava com ele. Então eu ficava tendo um curso universitário com 10 anos, 11 anos. Ficava sentado lá para... era a maneira dele me controlar. Então foi bom nesse aspecto. Aprendi uma porção de coisa.
P/2 – Ele lendo e preparando a aula, corrigindo provas. O senhor lembra um pouco disso?
R – Perfeitamente. A vida dele era isso. Eu lembro dele uma vez chegando em casa, aliás, é uma carreira fascinante, chegando em casa às 11 horas da noite, cansado. Imagine, Pacaembu? Aquela lama e tal. Eu cheguei: “Você não fica cansado?” Ele chegou e disse: “Olha eu adoro isso aqui.” Ele falou: “Ver essa turma crescer e ver as pessoas se desenvolverem” Ele fazia muito trabalho de campo. E você sabe que a Geografia passou por uma revolução na época dele. Não era mais um negócio de decoreba, de ficar (FTD?), sabendo nome de rio... O pessoal começava a ir para o campo. Era o começo da Geografia Econômica também. Então você ia para o alto do Pico do Jaraguá dar uma aula sobre São Paulo e falava de Saint-Hilaire, Martius e Spix... todo esse pessoal que passou por São Paulo. Os viajantes do século retrasado. Então tudo isso era fascinante. Eu estava junto lá, inclusive. Ao invés de ir para a escola, lá aprender, eu estava junto com ele [risos] aprendendo outras coisas.
P/1 – Mas, por outro lado, o senhor falou da leitura dos romances. Os hábitos de leitura começaram cedo?
R – Ah, bom. Eu lia desde moleque... eu sempre lia. Li muito.
P/1 – É? Tem algum livro que tenha marcado mais a infância?
R – Todas aquelas coleções: Terra, Mar e Água. Acho que isso nem existe mais hoje, né? E o Royce Burroughs. O (Winitet?) do Karl Marx. Do Karl May, não Karl Marx. Karl May. E tinha muitas histórias. Todas aquelas aventuras de Tarzan, índios... E cavaleiros.
P/1 – Aí depois crescendo um pouco mais, também passou a adolescência no Pacaembu?
R – Então, aí eu fui mandado para o colégio interno porque as coisas não estavam muito boas. Você imagina? Eu tomei pau. No fim, me despacharam para o colégio interno. Esse colégio era em um lugar bastante longe. Era lá em Minas, na Zona da Mata. Mas era um lugar muito bacana porque era um prédio construído pelo Niemeyer. E a cidade de Cataguases, que é onde eu fui estudar, era a terra de cineastas. Por exemplo, esse famoso filme, Limite, foi feito pelo Peixoto, lá, João Peixoto. João Peixoto, se não me engano, de Cataguases. Era um lugar muito bacana. E as casas da cidade, se vocês um dia puderem ir para Cataguases, vale a pena. Muitas foram construídas pelo Niemeyer também porque ele ficou amigo dos Peixoto lá, da família. Então, no fim, foi bacana o colégio. Eu servi o Exército e fiquei lá e depois eu voltei para São Paulo. Passei praticamente a minha adolescência lá em Cataguases. Voltei para São Paulo falando “Uai, sô, quantas hora”... aquele negócio de mineiro.
P/1 – [risos]
R – Aí me adaptei rapidamente em São Paulo de volta e arrumei um emprego. Eu fui trabalhar na Wheaton, que foi um lugar importante pelo seguinte, porque eu tinha uma coisa comigo: eu sabia falar inglês desde pequeno. Então, eles só queriam que eu soubesse falar inglês para me comunicar com eles; eles eram americanos, naquela época. E ninguém me perguntou nada de escola. Porque o meu medo era esse. Pô, saindo do colégio, colégio interno e me deram a chance de eu poder trabalhar e pagar as minhas contas.
P/2 - Foi o primeiro emprego?
R – O meu primeiro emprego e onde eu fiquei independente. Aí eu comecei a estudar de novo por minha conta. Aí eu estudei [risos].
P/1 – E na Wheaton, começou a trabalhar com o que?
R – Então, a Wheaton, para você ter uma ideia, veio do século retrasado e ela se especializou em produtos para a indústria farmacêutica. Ela é uma indústria pequena nos Estados Unidos, em Millville, Nova Jersey. Quando chegou a época da guerra, eles inventaram o vidro de penicilina. O Frank Wheaton inventou o vidrinho de penicilina, que era o que se esperava. Você sabe que naquela época, por exemplo, se você estivesse morrendo e fosse rica em São Paulo, dava para você trazer de avião, em embalagens especiais. Com gelo, com um monte de coisa, vinha de avião a penicilina que te salvava. Por exemplo, o meu avô morreu em 1920 e tantos porque ele não tinha penicilina. Ele teve pneumonia por causa do clima e morreu. Precisava-se achar uma maneira de primeiro transformar aquilo em pó, depois, quer dizer, liofilizar a penicilina e depois uma embalagem para aquilo. E o Frank inventou essa embalagem junto com a família West, que inventou a rolha de borracha, para você enfiar a agulha e injetar aquilo. Então, a Wheaton estava vindo com isso para o Brasil, que era uma grande novidade. E nessa época estava se instalando aqui a indústria farmacêutica multinacional. Eram só aqueles laboratórios de produtos miraculosos e tossinha... como é mesmo? Regulador Xavier. Todos esses produtos assim, mais antigões. Eles estavam trazendo realmente a cultura da penicilina, que são bichinhos. Você tem que trazer a cepa. Tinham pouquíssimos especialistas para desenvolver aquele produto. E eu fui trabalhar na Wheaton, que estava começando a fazer os vidros de penicilina na época. Então, eu fui preparado para vender. Uma venda técnica, para vender para a indústria farmacêutica os vidros de penicilina. E vocês têm que lembrar que, nessa época, tomava-se penicilina. Eram milhões e milhões de embalagens porque não havia receita, não havia nada. O que morria de gente de choque anafilático, era uma coisa assim, incrível. Volta e meia o cara “pum”, caía morto na farmácia porque tomava. Penicilina resolvia tudo, tanto que você vê, pagamos essa conta hoje. Com toda a criação de anticorpos e tudo mais que houve, porque tomou-se tanta penicilina, né? Mas a cepa da penicilina daquela época, hoje em dia não cura nada. Não cura nada porque ela foi ficando fraca. Tivemos que criar várias cepas, digamos. E esses americanos estavam começando essa firma na época...
P/1 – Em que ano isso?
R – Em 1900 e... bom, eu entrei em 1956, mas eles começaram em 1952. Havia indústria de vidro no Brasil, a Santa Marina, que estava sendo comprada pelos franceses. Eles tinham xaropes mas ninguém sabia fazer penicilina. Inclusive, o Frank teve uma idéia brilhante. Ele teve uma outra coisa interessante: com a guerra, houve o racionamento de barrilha nos Estados Unidos. E o Frank é um cara muito esperto, o Frank Wheaton. Então o que é que ele fez? Ele falou: “Olha, eu sou fabricante de vidro de penicilina. Faço produtos farmacêuticos.” Aí liberaram toda a barrilha só para ele nos Estados Unidos. E ele fez vidro de perfume também.
P/2 – Barrilha, o que é?
R – Barrilha é a matéria-prima básica para se fazer vidro. Você põe a areia, barrilha e cal. E a barrilha você encontra na natureza. Em inglês, chama-se soda. É barrilha. Quer dizer, a fórmula dela eu não posso lembrar agora para você. Eu não consigo lembrar, mas depois eu lembro.
P/2 – Mas é a matéria-prima básica do vidro.
R – Básica. E se você não tem barrilha, você não produz vidro. E ele, então, com essa história de farmacêutico, fazia toda a quantidade necessária para a guerra e tudo mais. Ele começou... continuou fazendo vidro de perfume e ganhou uma fortuna porque ele era o único que tinha vidro de perfume, lá. Então, as “Helenas Rubinsteins” da vida, aquele pessoal... O Frank, por exemplo, o pai dele, o velho avô deu uma mala de vidro para ele na virada do século e falou: “Vai vender vidro em Nova Iorque.” E vidros de pote, vidros de perfume. Então, ele foi com a mala cheia de vidro, procurou uma mulher no Bronx que misturava pomadas e cremes na banheira do apartamento dela. Chamava-se Helena Rubinstein e ele começou a fazer amizade com ela. Ficaram grandes amigos. Ele desenvolveu um monte de produtos para ela. Aí vieram as amigas: Helen Curtis e todo aquele pessoal que mexia com perfume ficaram amigos dele. Ele tinha a barrilha, então ele foi e aí apareceram outros. Aquilo cresceu como indústria. E no auge da década de 1930, quando houve a quebra da bolsa, houve um cara chamado Charles Revlon. Esse Charles Revlon pensou – era um desses caras que tinham idéias boas de marketing. Ele pensou: “Como é que eu vou fazer as mulheres se sentirem felizes se os maridos delas estão desempregados? Se não há comida e está todo mundo desesperado? Pintando as unhas.” Aí ele lançou os esmaltes Revlon. Esse Charles Revlon era o fundador da Revlon. E foi assim, um sucesso. Então, de repente, no meio daquela recessão, ele começou a vender esmaltes, todas as mulheres pintando a unha porque era baratinho. Pintava a unha de vermelho e pelo menos ficava em uma boa. E ele, o Frank, fazendo os vidros lá de esmalte. Aí foi um grande sucesso. Daí que ele pegou a tecnologia de vidro pequeno para fazer penicilina.
P/1 – O que esse vidrinho de penicilina tinha de especial?
R – Se você comprar uma penicilina, que é um vidrinho pequenininho assim, tem uma terminação toda especial. É um vidro pequeno que é produzido em grandes quantidades por um preço bem barato. Tem uma tecnologia na tampa. A parte interna da terminação tem que ser feita de uma maneira muito especial para a rolha se encaixar para não entrar ar de maneira nenhuma porque aquilo é liofilizado. E aí você entra com... talvez vocês nem sejam mais do tempo da penicilina. Hoje em dia a maioria dos antibióticos são tomados via comprimidos, mas naquele tempo só se tomava isso. Ninguém queria, ninguém tomava comprimido, ou melhor, tomava-se, mas eram comprimidos grandes, feios.
P/2 – E era um líquido, a penicilina?
R - Pó. Ela vinha em pó e era transformada em líquido, quer dizer, você punha água destilada. Então vinha: um frasco de penicilina e uma ampola de água destilada. Você pegava com a seringa a água destilada e enfiava na borracha e transformava aquilo em líquido.
P/2 – E a grande sacada dele foi produzir vidros tão pequenininhos como esse...
R – Ele inventou. Tanto que aconteceu uma coisa engraçadíssima. Isso eu assisti. O Frank... sabe, esses caras dos Estados Unidos, eles eram todos industriais lá do interiorzão. O Frank era um cara que era um milionário, mas ele catava a lenha dele no mato. Com um machado, sabe? Levava lenha para casa. Era um sujeito, assim, do tipo que vivia ao ar livre. E ele não tinha aquela “finesse” que havia, inclusive, já em São Paulo. Aquela influência europeia e tudo mais. Ele veio para cá porque o Fleming vinha para a inauguração. O Olavo Fontoura tinha se juntado com o pessoal da Wyeth-Whitehall, para fazer a Fontoura-Wyeth. E fazer penicilina, trouxeram o Fleming, que era o pai da penicilina. Aí disseram: “Pô, traz o Frank aí, que ele inventou o vidrinho de penicilina” [risos]. O Frank ficou todo contente e veio. Chegou aqui e era traje a rigor. Aí levaram... o Frank era enorme. Toca arrumar um smoking para ele. O cara todo, sabe... enfim, gravatinha borboleta para ele. Ele ficou... parecia... você via a camiseta dele, de trás do smoking. Ele não tinha jeito para aquilo. De qualquer maneira enfiamos o Frank na festa. Ele estava todo enfarpelado, assim, falando com o Fleming, justamente: “Ô, Frank Wheaton, você que viabilizou o meu produto, embala o meu produto...” Aí chega o maitre, também de traje a rigor. Chegou e disse: “Estrogonofe?” Ele chegou e disse: “Mr. Estrogonofe? Frank Wheaton. How do you do?” [risos]
P/1, P/2 - [risos]
R – “Frank Wheaton” [risos]. Então, cenas incríveis. Ele era um grande técnico e um grande homem de negócios.
P/2 – Ele já era a segunda geração da empresa?
R – Terceira.
P/2 – Terceira geração.
R – Terceira.
P/2 – A origem então é lá no começo do século?
R – Foi em 1870. A Wheaton começou, era um velho farmacêutico que tinha um amigo vidreiro que quebrou. Esse Theodore Wheaton, então, comprou o resto lá da vidraria do amigo. Eram aquelas maravilhas curativas que se vendia no Oeste. Saía o cara de carro lá, levava um índio junto. Aqueles vidros, xaropões e tal. Então, voltando para São Paulo, eu comecei a estagiar nessa firma e fui vender para a indústria farmacêutica. E a indústria farmacêutica era uma indústria que estava começando. Então, nesse tempo, as famílias, por exemplo, o Olavo Fontoura se juntou com a Wyeth. A família Fontoura que fazia o Biotônico, aquela história toda, que o Biotônico, na verdade, era um vinho... um vinho. O cara toma aquilo e fica com vontade [risos], fica meio bêbado, inclusive. Passa a fome porque ele toma álcool. Mas era um sucesso. A família Pires de Oliveira Dias, se não me engano, era dona da Bristol, da Laborterápica. A Laborterápica foi comprada pela Bristol e ficaram. Os Pires, durante muito tempo também, dirigindo a Bristol junto com os americanos. Chegou a Pfizer, chegou a Johnson... várias indústrias. Richardson Merrel, por exemplo, comprou o Moura Brasil no Rio de Janeiro.
P/1 – E esses foram os primeiros clientes da Wheaton?
R – Eles estavam querendo a penicilina. Eles vieram fazer a penicilina. Então, nós viemos atrás. Por exemplo, a Pfizer, foi um dos primeiros. A Squibb veio fazer penicilina e precisava do nosso vidro porque ninguém tinha essa tecnologia. E nós produzíamos em alta velocidade. Foi uma coisa que ninguém conhecia quando nós chegamos, e ao mesmo tempo, eu tinha essa satisfação quando eu visitava os clientes; eu percebia que trazia uma coisa muito boa em termos de tecnologia porque eram frascos de excelente qualidade para a época. A Santa Marina fazia, na época, uma droga de vidro. Um vidro todo comprido. Quebrava. Tinha problema de quebra. O nosso também quebrava, mas quebrava muito menos. Mas a penicilina era a chave da coisa. E os perfumes. De repente começaram a aparecer frascos de perfumes muito bonitos. Por exemplo, a Lever já estava no Brasil e tinha o English Lavander e todas aquelas, eles tinham comprado a Gessy-Lever. Era da família Fontana. Fontana? Não, família Milani, que então começaram a fabricar perfumes. Eu entrei na hora que estava nascendo tudo isso, que era essa indústria. E a indústria nacional reclamando. Reclamando porque naturalmente eles estavam sofrendo concorrência e foram sempre, de uma certa maneira, reclamando. Era muito difícil você ter um produto, o pessoal do Aché pode contar para vocês. Você ter um produto... Como é que se diz? Básico. Para você inventar um produto, você criar, por exemplo, veja esse Viagra da Pfizer. Eles gastaram 300 milhões de dólares. Ganharam trilhões [risos], mas gastaram. Então você tem que ter um capital enorme para criar um produto. E esse pessoal tinha pesquisa. Então, eles investiam em pesquisa fora. Tanto que tinha penicilina, por exemplo. Trouxeram toda essa tecnologia de fazer remédio também. E esses laboratórios nacionais, - agora nós vamos chegar perto do Aché - esses laboratórios nacionais, eles reclamavam muito. E muitos começaram assim, por exemplo, eles iam para a Suíça... Existem firmas até hoje que vendem produtos. Você pode comprar, por exemplo, uma determinada formulação de produtos e você lança o teu tipo de vitamina. Nenhum Viagra da vida você vai comprar em laboratório porque isso aí é uma coisa muito especial, mas remédios contra azia, esse troço aí, então, você pode comprar. Uma porção de outras coisas. E o pessoal do Aché, que estava vindo da Squibb... eles eram da Squibb. Foi interessante pelo seguinte, porque havia um laboratório chamado Sintofarma que, aliás, existe até hoje, foi um dos últimos nacionais a ser vendido, que era da família Magalhães. Eu era muito amigo deles. O Magalhães e o Edmundo Xavier eram os dois sócios. E eles precisavam de um corpo de vendas melhor. Naquele tempo não havia... estava começando a aparecer a palavra marketing. E todo mundo achava que marketing era sinônimo de picaretagem. Você falava: “Não, o cara é especialista em marketing”. O cara: “Pô, leva ele embora [risos] porque a minha filha já casou” [risos]. Sabe esse tipo de coisa? E eles contrataram esses caras que estavam saindo da Squibb, que era o Miro, o Depieri, o Vitor. Eles tinham uma firma chamada Prodoctor. Vocês ouviram falar nisso?
P/1 – Sim.
R – Então essa firma Prodoctor, era uma firma de Marketing. Vendia e fizeram um sucesso enorme lá com a Sintofarma. Eu lembro que nós começamos a ter contato com eles porque eles tinham ideias diferentes. Eles, por exemplo, se preocupavam. Você sabe que o marketing farmacêutico é uma coisa muito sofisticada, quer dizer, não existe talvez um marketing mais específico e mais fantástico para convencer pessoas que o farmacêutico. Para você ter uma ideia, o dia que meu irmão entrou na faculdade de Medicina, meu pai recebeu uma carta, daí a três dias: “Parabéns, o seu filho entrou, não sei o que lá...” e uma caixinha cheia de produtos Johnson e Johnson. Quer dizer, os caras começam a trabalhar com o pai. O meu filho fez Medicina também. Quando ele estava olhando lá para ver se ele tinha passado no exame, rasparam a cabeça dele. Chegou um cara do Andrômaco, que tem uns produtos do Andrômaco [risos]. Meu filho ficou e nunca mais esqueceu do Andrômaco, que aliás, hoje, sumiu, mas deu uma mala para ele. Ele chegou e disse: “Mas eu sou um pobre rato aqui, todo raspado, todo. E me dão uma mala de coisas?” Pô, foi lá, Hipoglos, não sei o que lá. Então, eles fazem esse trabalho na cabeça das pessoas. Mas havia muito a fazer. E esse pessoal do Prodoctor começou, por exemplo... eles nos entrevistavam sobre ideias de embalagem. Isso era uma coisa diferente para nós porque normalmente embalagem você tratava com pessoal de produção, pessoal de compras. Nenhum cara de Marketing falava de embalagem. Eles estavam interessados. Tipos de embalagem. Você percebia que era um pessoal diferente. E logo depois eles começaram, fizeram lá o caminho deles, fundaram o laboratório Aché e...
P/1 – E logo o Aché passa a ser cliente da Wheaton?
R – No momento que eles compraram um vidro, já era nosso cliente. Então, eu nunca mais esqueço, por exemplo, do dia que eu fui na Rua Nova dos Portugueses, lá em Santana. E o Miro que já era amigo e tal, veio me mostrar todo orgulhoso. Acho que o Vitor estava junto também. O laboratório de Controle de Qualidade era a cozinha da casa. Eles tinham transformado a cozinha da casa no Controle de Qualidade. Um negócio bacana. Inclusive, fizeram um investimento grande. Mas agora você imagina que, para quem conhece o Aché hoje, quer dizer, aquela cozinha... Porque era uma cozinha, no fim das contas. Tiraram o exaustor, o fogão e tal e puseram lá um monte de coisas, compraram lá um monte de aparelhos de qualidade, mas era uma cozinha.
P/2 – E o senhor lembra do primeiro produto que a Wheaton forneceu para o Aché?
R – Olha, eram frascos standard. Então o que é que aconteceu com o formato do vidro? A gente produzia vários frascos standard. Nós vendíamos um tipo de xarope para eles. Um tipo de... se não me engano, havia comprimidos também - naquela época comprimidos vinham em frascos também. Agora, o vidro, o frasco de vidro, ele veio caminhando na direção do ovo. Ele era um xaropão. Você precisa de uma coisa para produzir em alta velocidade, você precisa do formato do ovo. Quanto mais próximo do ovo, mais rápido você produz. Então, nós fizemos. Tanto que você vê, hoje em dia, o frasco de xarope é gordinho, redondinho, parece um ovo. Nós fomos nessa direção e começamos. Naquela época a gente fornecia ainda xaropão para eles. Aí logo depois, em 1971, eu não sei quando é que eles começaram. Eles começaram em 1970 ou 1960 e tantos.
P/1 – Um pouquinho antes.
R – O Aché?
P/2 - 1966.
R – 1966. Eles pegaram o xaropão porque em 1971 nós lançamos a linha leve, que era uma linha toda já sofisticada, que existe até hoje, que é a linha do formato de ovo. Então, eu lembro que eles começaram, fizeram um sucesso danado. E aí eles fizeram uma outra coisa que eu achei, assim, fascinante. Eles mostraram como eles poderiam ser porque eles cresceram, ficaram com um laboratório grande e aquela choradeira, todo mundo reclamando. Porque realmente, você competir com multinacional é muito difícil. Problema de capitais, problema de produtos, quer dizer, você fica com aqueles produtos chinfrins e os caras trazendo uns troços espetaculares. E aí o que eles fizeram? Inclusive, na época, ninguém entendeu direito. Pensaram que eles tinham sido comprados, mas eles, na verdade, se juntaram. Sabe o negócio do Maomé? A montanha que vai ao Maomé? Eles se uniram à indústria multinacional. Por outro lado, havia muita insegurança aqui no Brasil, sempre houve. O americano se sente... todo sujeito de primeiro mundo fica muito assustado aqui no Brasil, com essa incerteza. Todo mundo quer que seja preto no branco e não é. É cinza, é amarelo. E o cara nunca chega às 5 horas. Chega às 6 horas. Eles aproveitaram tudo isso e pegaram produtos do Parke-Davis e da Warner Lambert, que eram laboratórios internacionais muito bons. E os produtos da Parke-Davis eram ótimos. E do Warner Lambert também. Na época, falou-se muito. Só sei que eles deram um salto enorme com essa história e não foram comprados por eles. Eles, na verdade, tinham uma espécie de terceirização. Tomaram, fizeram uma troca lá, não conheço a história direito. Nunca tive curiosidade de perguntar para o Miro porque eram coisas deles. Depois eles foram atrás da Merck e também fizeram um contrato com a Merck. Tanto que virou Prodome. Foram atrás da Schering, a mesma coisa... Hoje em dia, parece que se separou. Então, a montanha foi para o Maomé. E foi o primeiro caso em que a montanha foi para o Maomé porque o resto ficou gritando. Bandeira, todo mundo xingando. Eles entraram na história, se adaptaram, fizeram, e cresceram desse jeito, graças a esses produtos todos. E naturalmente pegaram a tecnologia porque o contrato com a Merck Sharp, era um contrato que envolvia tecnologia. Foram momentos muito importantes, eu acho, em que eles mostraram o valor deles, digamos.
P/2 – Voltando um pouquinho, eu queria entender quando a Wheaton vem para o Brasil, ela vem para produzir aqui?
R – Sem dúvida.
P/1 – Onde a fábrica foi criada?
R – Então, nós temos até hoje o velho galpão lá na Avenida Jabaquara. Avenida Jabaquara, 2979.
P/2 – E naquela época qual que era a tecnologia de produção de vidro?
R – Máquina IS, fornos... nós tínhamos um forno de 40 toneladas de vidro. Um outro de 20. E eram máquinas IS, que se chama IS porque é Independent Section. São várias seções independentes. Por exemplo, o vidro vem de trás, leva o primeiro sopro. Ele é levado, leva o segundo sopro quando faz a terminação e as várias seções funcionam separadamente. Então, por exemplo, se encrenca um vidro, você tem o número de cada seção, você pára duas e continuam as outras. Por isso que se chama IS e nós viemos com essa tecnologia toda para cá porque antigamente se produzia muito o que a gente chama de semi-automático. E máquinas, o sujeito pega o frasco, assopra, é tudo meio manual. Nós trouxemos essas máquinas que já havia aqui. Havia máquina já com o pessoal da Cisper e...
P/2 – E nenhum trecho dessa produção, nenhuma fase era manual? Era tudo automático?
R – Tudo automático. Tudo automático.
P/1 - Quantas pessoas trabalhavam em média naquele tempo?
R – Olha, quando eu entrei na Wheaton devia ter uns 250, 300 funcionários, no máximo. No máximo, se não fosse menos. Hoje em dia, para você ter uma ideia, nós estamos com 2000, 2600... chegamos a ter 3000 e tantos. Mas houve toda uma racionalização lá, era uma firma relativamente pequena. Para a época, era até uma firma muito importante. Muito diferente. Fazia coisas que ninguém conhecia direito.
P/1 - Por exemplo?
R – Esse frasco de penicilina, esses trabalhos de cosméticos... Por exemplo, a Avon veio para o Brasil - a Avon é uma das maiores perfumarias do mundo. Acho que eles são. Naquela época, eles eram muito grandes. Só eram menores do que L’Oreál. Vendia aquele negócio de porta a porta no mundo inteiro. Eles usavam o seguinte sistema: eles vendiam aquilo que o pobre achava que o rico usava. Então, por exemplo, eles chegavam no Brasil e pegavam pessoas de sociedade, pessoas da burguesia paulistana ou carioca... mulheres, para vender produtos da Avon. Aí elas começavam a vender nos clubes elegantes e tudo o mais, e todo mundo começava a comprar. E as empregadas todas, e todo mundo, as classes C, D e E ficavam de olho naquilo porque era uma coisa que a patroa usava. E aí a patroa parava de usar, eles aumentavam a produção, diminuíam os preços e entravam em todos os nichos de mercado. Esse é o sucesso deles. Basicamente. E então eles vieram para o Brasil, falando de coisas de quantidade. Você imagina, a Avon é um negócio enorme. Vieram com aquilo que eles chamavam de vidas curtas, produtos muito diferenciados: a granada, cabeça do padre, o ursinho... eram frascos feitos de vidro que exigiam uma tecnologia que empurrava o vidreiro para mostrar a melhor flexibilidade que poderia haver com o vidro, mas era difícil. Ninguém conseguia fazer aquilo. Só nós porque já fazíamos nos Estados Unidos. Então, começamos a trabalhar também com essa tecnologia.
P/2 – E para a indústria farmacêutica era basicamente os vidros de penicilina?
R – Penicilina e havia um consumo enorme de snap caps, que eram frasquinhos para pílulas com tampinha de plástico. Isso foi sumindo. Hoje em dia, esse strip de alumínio, essa coisa toda, comeu esse produto.
P/2 – E vidro de que cor?
R – Âmbar e flint. Âmbar e transparente. A gente chama de flint o vidro transparente.
P/2 – E o fechamento? O fecho do vidro foi mudando?
R – Foi. Isso foi um dos grandes problemas. Para você ter uma ideia, nós chegamos a fazer um simpósio de fechamento de vidros. Todos os vidreiros do Brasil para puxar a orelha dos fabricantes de tampas porque o vidro sem tampa não existe. E você sabe que o vidro foi viabilizado no século XVI? Para cerveja, por exemplo, ele começou a crescer em produção industrial quando apareceu o fechamento. Apareceu a rolha. Quando não havia rolha, fechavam com aquelas ceras. Com aqueles troços não havia viabilização. Quando foi possível ter cerveja em um frasco foi com aquela tampa. Então, esse pessoal todo para a indústria farmacêutica, que tinha umas tampas de rosca, muito vagabundas. Aí foi melhorando. Apareceu um camarada com uma tampa muito boa que existe até hoje, que é uma tampa boa para produzir e péssima para você abrir. Que é a tampa vic. Você abre, corta mão, essa tampinha de alumínio. Hoje em dia já foi mudada. Eles mesmo viram que tinha que mudar, então mudaram para uma tampa que se chama pilfer proof, que é à prova de roubo. É a tampa da Coca-Cola. Você abre e ela vai... é uma coisa sofisticadíssima. Fazer tampa é difícil, viu? Porque você tem que ter todo o molde e tal. E tem que se encaixar com a terminação do vidro.
P/2 – Era outro fornecedor?
R – Ah, sim.
P/1 – Não uma produção interna.
R – Os fabricantes de tampa, por exemplo, para a indústria farmacêutica, o nome é Vedatti. Foi um cara, um italiano da indústria farmacêutica que começou essas tampas. Mas por exemplo, crown cork é tudo o que se refere à cerveja e tal. Vieram com aquela tampinha: crown cork, que hoje já foi mudada também. É um outro tipo de fechamento.
P/2 – E para o Aché, por exemplo, como é que funcionava essa rotina de trabalho? Eles iam até lá fazer um pedido e entregavam? Como era essa entrega?
R – Bom, no começo, eu era vendedor na época. Então, eu visitava lá os caras. O Depieri, o Miro e tudo o mais, e pegava os pedidos com eles.
P/2 – Pedido? Como era?
R – Pedido. Dá o pedido aí. De vez em quando você ia junto lá no estoque. O estoque era ali do lado da cozinha. Via lá quanto tinha. “Vai precisar?” “Ô, então 5 mil xaropes.”
P/2 – Anotava?
R – Então tomava nota em um papel. Mandava confirmação do pedido e mandava entregar. Fazia geralmente pedidos no planejamento de 3 meses, 2 meses. Em algumas entregas e tocava para a frente.
P/2 – Quem é que era responsável pela entrega? Era o Aché? Ia buscar?
R – Não, nós. Nós mandávamos entregar.
P/2 – Caminhão?
R – Caminhão.
P/2 – Tinha um transporte específico para vidraria?
R – Olha, no começo não. No começo era uma bagunça. Eram uns caminhões horríveis. Depois a coisa... porque sabe, nós não tínhamos espaço ali no Jabaquara. Então nós começamos a alugar depósitos em todo o Jabaquara e Vila Mariana. Chegou um momento que nós tínhamos 20 depósitos. E a logística daquilo era uma loucura, mas ninguém ligava para qualidade naquela época. Vinham aquelas caixas em vidro. Quebrava vidro, mas chegava. Quer dizer, a nossa qualidade ainda era bem melhor do que a qualidade que existia no Brasil quando nós chegamos. E justamente, esse fator qualidade fez com que nós nos desenvolvêssemos. Toda a indústria porque, naturalmente, eles começaram a investir em qualidade. Ninguém aceitava mais ter dor de barriga com produto farmacêutico. Tinha que ser uma coisa séria, uma coisa limpa. Por exemplo, o Aché já pegou uma época de produtos extremamente sérios. Tanto que você vê, a primeira coisa que eles fizeram foi gastar um monte de dinheiro em Controle de Qualidade, mas anteriormente eu cheguei a conversar com um cara pegando pedido, com 19, 20 anos... O cara mexendo com uma pomada lá e fumando charuto. Caiu a cinza na pomada dele e ele mexendo com a mão lá, com um pauzinho. Eu cheguei e disse: “Olha, caiu cinza do charuto na pomada.” Ele chegou e disse: “Mas pomada ninguém come, meu filho” [risos]. Sabe?
P/1/2 – [risos]
R – E continuou mexendo. Quer dizer o cara... [risos]. Aliás, um laboratório que ficou até grande. Houve essa consciência e eles, então, entraram com qualidade. Por exemplo, o Aché é hoje e foi sempre um laboratório de qualidade internacional, quer dizer...
P/2 - Em termos da produção da vidraria houve também um aumento, uma exigência maior de critério?
R – Sem dúvida. A última vez que eu conversei com o pessoal do Aché [risos], há relativamente pouco tempo, o Toninho Russo, que é um grande cara lá, o diretor de produção, ele virou e disse: “Olha, nós estivemos na Alemanha, estamos comprando uma máquina”. Aí eu perguntando: “E o cestinho do frasco? Para frasco rejeitado?” O alemão perguntou: “Por que?” E eu lhe disse: “Não, para o frasco quebrado.” Ele chegou e disse: “Aqui não quebra frasco.” [risos]. Eu olhei para ele: “Ô, Toninho.” Quer dizer, hoje em dia eles caminham para um nível de zero defeito. Fala-se em zero defeito, coisa que é muito difícil em termos de indústria, mas realmente há uma ideia fixa em se fazer uma qualidade muito boa.
P/2 – Depois daqueles primeiros vidros que o senhor falou, que eram vidros de xarope...
R – É.
P/1 – Depois desses quais foram os outros vidros?
R – Então, nós desenvolvemos esse frasco redondo, que é a linha leve que hoje em dia foi se transformando em um vidro cada vez mais leve e mais resistente a impacto, mas, na verdade, se você olhar, o formato é o mesmo. Por exemplo, nós estamos fazendo um Museu de Vidro. Vai ter a festa de 50 anos da Wheaton. Eu estou juntando uma porção de produtos velhos. Eu peguei um vidro do óleo Johnson, por exemplo, é um tijolo. Você pega na mão, assim. Existem garrafas que perderam 40% do peso de vidro. Negócio incrível. Agora... mas deixa eu te contar a seqüência do Aché, para mim, pessoalmente, que foi muito interessante. Foi o seguinte: de repente os anos foram passando e eles lá, Parke-Davis, Warner, cresceram. Ficaram um laboratório importantíssimo aqui no Brasil. E houve o Plano Cruzado. E todos nós, industriais, vínhamos, principalmente da indústria farmacêutica, nós do vidro também, por causa da indústria farmacêutica, vínhamos com aquela inflação enorme e com os preços congelados. Você só podia subir o preço com ordem do Governo. E acontece que na semana em que houve o Plano Cruzado, - o Plano Cruzado foi decretado em uma sexta-feira. Durante o fim de semana praticamente - e nós íamos receber um aumento de 68% – isso eu nunca mais esqueço – na segunda-feira. Estava tudo programado. Então você imagina. E a indústria farmacêutica a mesma coisa. Então você imagina, isso é como uma dança louca, né? Porque se você para, você morre porque aquela inflação, que é uma coisa que vocês não devem ter vivenciado isso, é terrível. Some o dinheiro. Some tudo. E você tem que estar ali, pulando no meio. É como se fosse um grande baile onde se você sai, você olha para aquilo e fala: “Isso é uma loucura que está acontecendo.” E aí nós nos vimos com a inflação, com uma defasagem de custo de 68%. Aí, briga. No começo, briga com a indústria farmacêutica. Nós dissemos: “Olha, vamos parar de fazer esse troço. Não dá. Mais um mês e nós vamos fechar a produção.” Aí não tinha vidro. Corre daqui, corre dali, Abifarma (Abifarma Associação Brasileira da Indústria Farmacêutica) e tal. Começamos a ir para Brasília. E nessas alturas, muita vivência com o Miro, com o pessoal da indústria porque eu ia representando o vidro e aprendi muito. Aprendi muito. [risos] O Miro é um dos camaradas, talvez um dos caras que melhor explica as coisas no momento de necessidade. Em um momento de briga, de agressividade, ele é muito bom. E eu observava tudo aquilo e tinha que, naturalmente, fazer o meu papel. E o Miro levava tudo no bolso. A gente tinha que falar com o Miro: “O que é que você está fazendo?” Aí briga com o Funaro. Depois continuou na sequência de vários ministros, mas ele levava no bolso uns produtos do Aché. Chegava na hora da briga com o pessoal, ele jogava [risos] os produtos em cima da mesa e dizia: “Olha agora, veja aqui, esse produto o preço era isso e agora ficou assim.” Fazia um discurso incrível. Ele, e tinha um outro sujeito fabuloso também, chamado Omilton Visconde, que faleceu até. Um grande cara, dono da Biossintética. Faziam um rebuliço, você não imagina. E eu aprendi tudo aquilo. Falei: “Puxa, esse cara é genial.” Aí eu arrumei um vidrinho de penicilina e levava no bolso também. [risos] Todas as vezes que a gente falava, eu punha meu vidro [risos] de penicilina: “Esse vidro existe desde 1952. Agora veja só vocês e...” aquela história toda. No fim conseguimos um aumento. No nosso caso, nós pegamos o Funaro no elevador do Clube Sírio Libanês, Monte Líbano... no Monte Líbano. Ele veio fazer um almoço aqui, nós arrumamos com um amigo da indústria farmacêutica, entramos no elevador com ele. Ninguém conseguia transmitir direito o que estava acontecendo, então era eu, o nosso presidente, o Peter, o nosso amigo que nos levou, o Dílson Funaro e um capanga dele lá. Um segurança. Bloqueamos o elevador no meio de dois andares quando ele estava descendo para ir embora do almoço. “Olha, está acontecendo o seguinte: vai parar a indústria de penicilina, de tudo, porque nós não aguentamos mais.” E fomos explicando a coisa. Bom, aí saiu o nosso aumento. [risos] E logo saiu o da indústria farmacêutica. Fizemos um acordo lá em Brasília e tudo o mais.
P/1 – Aqueles 68%?
R – 68%. Na realidade pegamos 70 e poucos. E o Miro sempre junto. Fazendo a paz com todo mundo, tentando ajudar. Brigando como um leão. Um cara ótimo, viu? Aprendi muito.
P/1 – Essa foi a época do Plano Cruzado?
R – Então, o Plano Cruzado... Quer dizer, na verdade, a gente ia lá para Brasília e existiam as associações, que você tinha que falar com o Governo: você falava com o ministro da Fazenda, o ministro da Saúde e tudo mais. E todo mundo brigando. Central de Medicamentos, tudo. E tinha, então, os laboratórios, que era a Abifarma, e se não me engano, já tinha o Sindusfarma (Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos). E tinha a Alanac (Associação Laboratórios Farmacêuticos Nacionais), que era a parte dos laboratórios nacionais que também iam brigar. Eram associações. Você não falava em nome de uma firma. Eu ia pela Abividro, que é a Associação Brasileira dos Fabricantes de Vidro. E a briga era essa e o cara dizer, engana daqui, engana dali, mostrando as necessidades. Eles estavam carecas de saber que a gente precisava daquilo. E o Miro com aquele estilo dele tal, super... [risos] mostrando os remédios em cima da mesa. O Maílson da Nóbrega uma vez chegou e disse - isso lá no tempo do Maílson. O Miro se levantou, chegou e disse: “Senhor ministro!” E o Maílson disse: “Olha, se você for mostrar aqueles teus vidrinhos de remédio, [risos] por favor, deixa eu ir tomar um café lá, que eu já volto, que eu não aguento mais.” Chegou e disse: “Então, por isso, porque os preços...”, aquela história toda. Era muito gozado. E eu com o meu vidrinho de penicilina também. E, no fim, nós éramos praticamente o rabo sacudindo o cachorro. Porque você imagina, nós tínhamos um negócio de 100 milhões de dólares para a indústria farmacêutica e eles tinham um negócio de 5 bilhões de dólares. Então nós éramos titica. Era o rabo sacudindo o cachorro, compreende? Um negócio assim, nós éramos totalmente pequenos. Mas só que nós tínhamos, na época, a possibilidade de brecar aquilo, tanto que depois começaram a importar. Foi terrível para nossa indústria também tudo isso. Foram momentos muito difíceis, mas aprendemos muito, e...
P/1 – Esse foi o momento de maior crise dessas últimas décadas?
R – Sem dúvida. Para nós foi porque você vê, no Plano Collor, todo mundo acabou recuperando. Mas o Plano Cruzado foi terrível porque morria. Você morria, compreende? Eu lembro que a primeira indústria que conseguiu liberação dos preços... Liberação? Conseguiu um aumento. Foi a indústria de vinhos, vinicultores. Depois viemos nós, farmacêutico e vidro.
P/1 – E nesses anos, como é que foi avançando o relacionamento da empresa com o Aché?
R – Olha, foi crescendo, naturalmente as pessoas foram se distanciando. Eu, por exemplo, não vejo o Miro há muito tempo. Eu encontrei o Miro... Eu voto ali no Pacaembu, lá na Fundação Alvares Penteado, que chama? A Faap, né?
P/1 – É.
R – Ele também vota lá. Então, por exemplo, encontrei com ele em uma eleição. A gente perdeu o contato, praticamente, porque você fica falando já com todo o pessoal, cada um segue o seu caminho. O engrandecimento da empresa faz com que as pessoas percam o contato. Infelizmente. E acompanhei, por exemplo, uma das coisas que me deixou mais triste, foi essa briga que eles tiveram. Eu torci tremendamente. Um dia, eu li no jornal, há poucos dias até, que eles fizeram as pazes, e que tudo funcionou. Para mim foi uma alegria muito grande porque acho que aqueles três lá não tinham que estar brigando. Acho que ajudou muito eles terem trazido o Bandeira para o Aché porque o Bandeira é um camarada que teve muita vivência. Ele foi presidente do Sintofarma, foi do...
P/1 – Da Abifarma?
R - ...do Biolab. E depois ele foi presidente da Abifarma. Quer dizer, é um sujeito que sabe pôr as pessoas, sabe brigar na hora que tem que brigar, tipo o Miro. Ele diz e não manda recado. Diz o que tem que ser dito, mas é um cara que sabe pôr as pessoas juntas. E conhece o negócio.
P/1 – Lá no começo, o Aché era um cliente importante para a Wheaton?
R – Não.
P/1 – Não?
R – Era um cliente muito pequenininho. Mas as pessoas... Você sabe que é a roda que range mais que leva mais óleo? Então, se você é pequenininho, mas é simpático e faz onda e tal, todo mundo fica prestando atenção em você. Isso é interessante; isso é uma prova de vida. Você sabe que nós tivemos um cara que lançou uma geleia. Só se falava na geleia do cara. Era um consumo pequenininho de geleia. Essa geleia Queensberry, na época, quando foi lançada, era de um médico que não entendia nada de geleia. E o cara da Qualidade, o cara do Desenvolvimento, todo mundo falando do molde, tal. Aí um dia eu o conheci. Mas olha, o cara era um charme só, compreende? Ele vendia a companhia. Todo mundo trabalhava para ele. O pessoal do Aché era assim com essa ideia de marketing e tudo o mais, quando estavam os três, mexendo. Eu lembro, por exemplo, que eles tentaram ir para a perfumaria. Há uns anos, nós tivemos uma reunião muito interessante com o Victor sobre frascos de perfumaria, embalagem de cosmético. Era um pessoal sempre pensando em ideias novas, nunca repetitivo. Isso que era bacana. Depois, perdeu-se o contato. Quer dizer, na verdade, ficam os cartões de Natal, de vez em quando um telefonema, ou abraço quando a gente se encontra. Mas a vida é essa.
P/1 – Quantos anos de fornecimento da Wheaton?
R – Quantos anos eles têm? 35? Então, 35. Quer dizer, desde que eles fundaram. Eu fornecia para a Sintofarma, que foi quando os conheci. Eles, evidentemente, quando se separaram da Sintofarma, eu era fornecedor. Eu os conheci por causa da Sintofarma. Quando ia para a Sintofarma, o pessoal dizia: “Ah, a Prodoctor. Os caras vendem para burro.” Aquela história toda. No fim, começaram o laboratório deles, já com aquelas cores. Eles têm todo um sistema de embalagens diferentes, de programação visual diferente.
P/1 – E era um fornecimento exclusivo?
R – Não, frascos standard.
P/1 – Mas o único fornecedor de vidraria era a Wheaton, ou não?
R – Olha, no começo era. Infelizmente depois eles nos traíram tremendamente, viu?
P/1 – [risos]
R – Compraram de um monte de outras vidrarias, viu? [risos]
P/1 – Tá certo.
R – Mas aí a gente está lá, brigando. Até hoje nós fornecemos.
P/1 – E hoje, o Aché representa um cliente importante?
R – Sem dúvida. É um dos maiores laboratórios do Brasil.
P/1 – Hum, hum.
R – O Aché é um dos maiores laboratórios do Brasil. Quer dizer, junto, e taco a taco com as multinacionais.
P/2 – E o senhor lembra, nesses anos, algum vidro especial que tenha dado mais trabalho para produzir ou sempre foi standard? Tinha uma produção específica para um produto do Aché?
R – Não tinha, sabe? Eles tentaram, justamente, estudaram ir para cosmético. Ir para perfumaria e tudo mais. Aí iria ter coisa muito especial, mas acabaram não indo. Eles fizeram alguns produtos, mas não era em frasco de vidro. Não tinha, digamos, colônias, que usaria vidro. Então, não houve. Sempre foi uma coisa standard. Os grandes problemas que aconteceram foram problemas na proporção que eles melhoravam. Uma coisa é você produzir com um monte de gente empurrando com a mão lá, na produção. Outra coisa, você arrumar uma máquina. Aí você arruma uma máquina do alemão que não pode quebrar nenhum frasco, é complicado, quer dizer, você começa a produzir em altíssimas velocidades e o frasco não pode quebrar. Então aí começam os problemas. Tivemos muitas discussões. Nós temos melhorado muito. Fizemos investimentos enormes. Hoje em dia você entra em uma Wheaton, por exemplo, parece uma produção farmacêutica. Todo mundo de touca, mascarinha, aquela história. Chão especial. Tivemos que fazer tudo isso. Para poder ficar ao nível de fornecer gente como o Aché.
P/2 – E a tendência foram vidros cada vez mais leves e mais finos?
R – E mais fortes.
P/2 – Mais fortes.
R – Porque você, por exemplo, passa a usar processos, você entra em uma tecnicalidade, digamos. Mas, por exemplo, o processo inicial era e ainda é sopro e sopro. Mas acha-se uma maneira de você distribuir melhor o vidro. Apareceu o processo prensado-soprado, que entra um macho na massa de vidro depois um sopro, em vez de um sopro e um sopro, compreende? Então, conseguiu-se uma série de melhorias nisso, mas nós estamos ainda com o sopro-sopro, até hoje. Mas está se estudando passar líquidos no frasco para ele ficar mais resistente. Isso aí vem muito da experiência do pessoal da cerveja e do refrigerante. A cerveja é produção, por exemplo, você pega uma água mineral. Você pega a... Como é que chama essa francesa? Perrier. Eles têm dentro da Perrier, na França, uma vidraria. E você não imagina a velocidade que é aquele troço lá, porque vende-se no mundo inteiro. Então você pega muita experiência de vidro de alta produção com esse pessoal porque farmacêutico ainda é uma produção relativamente pequena.
P/2 – Porque a idéia é acompanhar o avanço das máquinas da indústria farmacêutica.
R – Exatamente. E toda tecnologia. Hoje em dia, para você entrar em uma produção farmacêutica, você tem que se vestir. Usar sapato, tirar o sapato. Você entrou?
P/1 – Sim.
R – Então, você tem que usar toda uma roupa. No meu tempo, o cara entrava. Você via [risos] o cara lá misturando com o charuto. Quer dizer, isso foi evoluindo e de maneira certa. Hoje em dia é uma coisa altamente sofisticada. E fazer vidro também.
P/1 – Alguma mudança em relação ao transporte e a embalagem dessa vidraria?
R – Bom, nós mudamos para o invólucro de plástico e eliminamos cada vez mais as caixas de papelão. Ninguém aguenta mais aquele problema do cisco de caixa de papelão. Não é possível, inclusive, existem lugares, a indústria farmacêutica, por exemplo, o próprio Aché, eles têm pressão positiva. Você não pode mandar caixa de papelão. Manda sim, alguns tipos de frascos, mas a maioria já vai tudo xilincado. A gente chama de xilincado. Você põe pallets e o frasco é coberto por uma camada de plástico e aquilo vai... Você pode pôr até ao relento. Ele fica completamente impermeável.
P/2 – E a participação do senhor nessa história? O senhor começou como representante comercial e seguiu esses anos todos nessa função?
R – Então, eu era vendedor. Quando eu comecei, era muito difícil porque ninguém acreditava em mim. Meu pai estava cheio. Eu tinha vindo de um colégio interno. Aí eu tinha um dinheirinho e comprei uma lambreta na época. Era um dinheirão comprar uma lambreta. Comprei uma lambreta e fui trabalhar com a lambreta. Aí me deram a praça de Campinas. Então eu ia para Campinas de lambreta. Eu lembro que eu chegava naquela rotatória que tinha em Campinas, eu ia ao banheiro do posto Shell lavar a cara porque você chegava preto lá [risos]. Eu me lavava todo e ia visitar os clientes com um malão de vidro. Depois fui evoluindo. Aí eu comecei, fui para a parte internacional. Comecei a viajar. Fiz muitas pesquisas no Caribe, América Central. Aí foi, fui crescendo como profissional.
P/1 – Pesquisa de produto?
R – É, eu fiz vários tipos de pesquisa. Quer dizer, eu estava tentando na década de 1970 começar um esforço de exportação aqui do Brasil. E também os Estados Unidos procuravam um lugar para se fazer uma outra fábrica de vidro. Então eu ia com a intenção de vender e de exportar do Brasil e com a intenção de achar um bom lugar para fazer - onde tivesse boa areia e mão de obra e tudo mais -, para fazer uma fábrica.
P/2 – Isso já com qual cargo?
R – Aí eu já era gerente de vendas, uma coisa assim.
P/2 – E o passo seguinte qual foi?
R – Eu fui ser Superintendente Comercial, tem uma porção de títulos aí. [risos]
P/2 – Tá certo.
R – Superintendente Comercial, depois me convidaram para ser Diretor, eu passei a ser Diretor. Então...
P/2 – E atualmente, isso já está se aproximando dos últimos anos?
R - Não, eu na verdade parei de trabalhar, teoricamente. Eu estou aposentado. Eu me aposentei. Eu tenho uma porção de gente lá no meu lugar. Eu criei uma equipe para poder parar.
P/2 – Quando foi?
R – Então, em janeiro eu pedi, quer dizer, eu me aposentei.
P/1 – Han, han.
R – Fizeram uma festa lá para mim e eu fui embora. Mas aí eu fico voltando. Por exemplo, sexta-feira, eu vou ter uma recaída. Eu vou lá para uma reunião. Eu vou duas vezes por semana hoje.
P/2 – Olhando para trás, como o senhor vê sua trajetória na Wheaton?
R – Olha, foi uma grande aventura. Momentos incríveis. Eu acho que foi uma vida cheia. E tenho sorte de estar em boa forma ainda para poder continuar fazendo outras coisas, lembrar de tudo isso. Porque o chato é você chegar um caco lá na ponta. Eu ainda não cheguei a ficar caco. Então é importante isso também. Vejo um passado assim, super bacana. Coisa para se lembrar, o que nós estamos fazendo aqui. Aliás, falei até demais já. [risos]
P/1 – [Risos] Nesse meio tempo o senhor se casou também, teve filhos? Conta um pouquinho dessa parte.
R – Então, eu casei com 23 anos. 23 anos. E estou casado há 41.
P/1 – Como chama sua esposa?
R – Chama-se Ana Maria. Minha mulher é italiana. Então, namoramos, aquela história toda. No fim eu a pedi em casamento. Meu pai foi lá e disse: “Olha, cuidado com esse cara aí. Espera um pouco.” [risos] O meu sogro chegou e naquele tempo, você pedia a mão, né?
P/1 – É.
R – Então ia o pai lá pedir a mão. Então meu pai foi pedir a mão, mas me traiu. Na última hora ficou sozinho com o meu sogro, chegou e disse: “Olha, espera aí uns 2 anos para ver se o cara... Sabe, esse cara já teve uns problemas no passado.” [risos] Ele disse que eu era uma pedra que tinha que ser lapidada ainda. Eu falei: “Ó, pai.” Aí, no fim, eu casei de qualquer maneira e...
P/1 – E como foi o casamento?
R – Muito bom. Eu sou muito feliz. Estou casado há 41 anos. Eu sou um cara que posso dizer que vida de casado é muito boa.
P/2 – Foram morar onde naquela época?
R – Fomos morar na Rua Peixoto Gomide. Meu pai dizia para mim o seguinte: que para você viver com uma pessoa, você sabe que você vai conhecendo a pessoa e ela te conhecendo a uma tal profundidade que você pode machucar com muita profundidade também, né? Dizendo coisas. Então na hora de dizer as coisas, na hora de ser desagradável, você deve fazer o seguinte... Porque você não pode depois puxar a coisa de volta. Porque você disse. Disse, machucou e a pessoa não esquece mais. Então meu pai dizia assim: “Se você chega na hora e vê que vai dizer uma coisa muito cruel, vai tirar uma sonequinha.”
P/1 – [Risos]
R – Aí eu ia tirar uma sonequinha, tal, passava. Eu ficava com raiva, mas passava a raiva e você não diz, né? Porque aí que você consegue ficar casado muito tempo. [risos] Senão, não dá.
P/1 – E os filhos? Quantos filhos?
R – Dois filhos.
P/2 – Como se chamam?
R – Um chama Paulo, tem quase 30 anos. O outro chama Fábio, está com 38. E o Paulo é médico psiquiatra, está aqui em São Paulo. O Fábio trabalha na IFF nos Estados Unidos. Fez carreira lá e mora em New Jersey. Tem 2 filhos.
P/1 – Os netos já. Como se chamam?
R – Eu tenho uma neta chamada Júlia e um neto chamado Felipe.
P/2 – Certo. Olhando tanto para trás, eu queria que o senhor olhasse um pouco para frente. Que sonho ainda tem pela frente?
R – Olha, eu tenho uma porção de sonhos. Quer dizer, eu, na verdade, mexo com história postal e, aliás, eu trouxe um negócio que vou deixar com vocês depois. Para me despedir do mercado eu escrevi um livro sobre história postal misturada com história do Brasil. Eu coleciono envelopes circulados de um determinado período. De 1900 a 1942, que é o período do réis. Antes de começar o Cruzeiro, que foi em 1942. Então, eu mexo muito com isso, estudo isso. Eu mexo com música e gosto de piano, gosto de um monte de coisa. Mexo com jazz.
P/1 – O senhor toca piano?
R – Toco um pouquinho. Mas ouço, gravo. Faço pirataria entre mim e meus amigos. Copio lá CD e aquela história toda. Então, eu mexo com isso o tempo todo também, com música. Leio muito. E viajo. Vou atrás de selo viajando pelo mundo. Você vê... Todos os lugares têm essas feirinhas. É flea market, o mercado das pulgas. Onde você acha selo, envelope do Brasil. Coisas de um resgate assim fantástico. Você vê envelope que circulou, que viajou, passou por aqui, passou pela censura e tal, chegou lá durante a guerra... Esse tipo de coisa.
P/2 – E de tudo isso, fica qual sonho?
R – Ué, o sonho de continuar tudo isso. Quer dizer, na verdade, não se pode parar. Eu estou mexendo também com a Wheaton, com uma porção de projetinhos dentro da Wheaton. Projetos mais light, né? E sabe, a vida é essa. Na verdade, você tem que tocar. Tocar para frente.
P/1 – Por último eu gostaria de perguntar para o senhor o que achou de ter contado um pouquinho da sua história?
R – Olha, eu achei muito gostoso porque, na verdade, todos nós somos tremendamente egoístas. Então você ficar falando sobre você mesmo é uma delícia [risos].
P/1 – [Risos]
R – Mas é bacana. Quer dizer, eu acho que é uma boa ideia. Vocês têm aí, vão fazer um acervo juntando... como eu falei para você, procure Geraldo Nunes porque ele tem, eu falei algumas histórias aí sobre cidade, São Paulo, aquela história toda. Para você juntar tudo isso realmente, você fica com um acervo interessantíssimo sobre a cidade.
P/2 – Muito obrigada pela participação.
R – Olha, obrigado vocês e um abração para todos os meus amigos lá do Aché.
P/1 – Tá certo, será dado.
R – E é isso.
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