P/1- Seu Mariano, vou começar a entrevista pedindo para o senhor se apresentar. Seu nome completo, local e data de nascimento.
R- Meu nome é Mariano Toríbio Filho. Eu nasci em São Paulo, na capital, 31 de maio de 1939.
P/1- O nome dos seus pais?
R- Meu pai, Mariano Toríbio e minha mãe, Maria Camacho Toríbio.
P/1- O senhor sabe a origem da família, do nome?
R- Sei. Meu pai é filho de imigrantes espanhóis e minha mãe neta de imigrantes italianos.
P/1- O senhor sabe a história dessa imigração, como é que eles vieram?
R- O meu pai, mais especificamente, eu sei. Foi por conta de pressões políticas havidas na Espanha, vem do Franco. Os pais deles decidiram que não tinham condições de viver na Espanha e já tinham sido acenados por outras pessoas que, no Brasil, havia condições melhores. Eles, então, deixaram a Espanha, vieram para o Brasil. O meu bisavô era um artífice. Minha avó tinha um relacionamento muito grande com pessoas de bem na Espanha e achava que ela utilizaria toda aquela facilidade, com a qual ela se empenhava na Espanha entre as famílias ricas. Que ela utilizaria isso aqui, no Brasil. Mas, desastrosamente, não foi nada disso. Porque, chegando aqui, enfrentaram grandes dificuldades e ela teve problemas gravíssimos de saúde que afetaram, inclusive, o seu comportamento. O meu bisavô, o pouco dinheiro que ele trouxe, ele... Aliás, avô. O pouco dinheiro que ele trouxe ele aplicou numa atividade semi-industrial, tipo de serralheria e carpintaria, recuperar rodas de carroça, porque, naquele tempo, era o meio de transporte mais utilizado, principalmente...
P/1- Em que época isso?
R- Isso foi, mais ou menos, em 1920 e pouco. Não sei exatamente, mas foi nos anos 20. As revoluções, principalmente a Revolução de 32, foi a parte qual em que eles perderam quase tudo. Os filhos todos foram trabalhar, inclusive meu pai, desde menino, pequenininho, foi trabalhar. Conheceu... O meu pai não...
Continuar leituraP/1- Seu Mariano, vou começar a entrevista pedindo para o senhor se apresentar. Seu nome completo, local e data de nascimento.
R- Meu nome é Mariano Toríbio Filho. Eu nasci em São Paulo, na capital, 31 de maio de 1939.
P/1- O nome dos seus pais?
R- Meu pai, Mariano Toríbio e minha mãe, Maria Camacho Toríbio.
P/1- O senhor sabe a origem da família, do nome?
R- Sei. Meu pai é filho de imigrantes espanhóis e minha mãe neta de imigrantes italianos.
P/1- O senhor sabe a história dessa imigração, como é que eles vieram?
R- O meu pai, mais especificamente, eu sei. Foi por conta de pressões políticas havidas na Espanha, vem do Franco. Os pais deles decidiram que não tinham condições de viver na Espanha e já tinham sido acenados por outras pessoas que, no Brasil, havia condições melhores. Eles, então, deixaram a Espanha, vieram para o Brasil. O meu bisavô era um artífice. Minha avó tinha um relacionamento muito grande com pessoas de bem na Espanha e achava que ela utilizaria toda aquela facilidade, com a qual ela se empenhava na Espanha entre as famílias ricas. Que ela utilizaria isso aqui, no Brasil. Mas, desastrosamente, não foi nada disso. Porque, chegando aqui, enfrentaram grandes dificuldades e ela teve problemas gravíssimos de saúde que afetaram, inclusive, o seu comportamento. O meu bisavô, o pouco dinheiro que ele trouxe, ele... Aliás, avô. O pouco dinheiro que ele trouxe ele aplicou numa atividade semi-industrial, tipo de serralheria e carpintaria, recuperar rodas de carroça, porque, naquele tempo, era o meio de transporte mais utilizado, principalmente...
P/1- Em que época isso?
R- Isso foi, mais ou menos, em 1920 e pouco. Não sei exatamente, mas foi nos anos 20. As revoluções, principalmente a Revolução de 32, foi a parte qual em que eles perderam quase tudo. Os filhos todos foram trabalhar, inclusive meu pai, desde menino, pequenininho, foi trabalhar. Conheceu... O meu pai não tinha sequer, ainda, feito o Curso Primário. Estava no segundo ano Primário quando teve que largar tudo, assim como os seus irmãos, e começou a trabalhar como ferreiro para consertar aros de roda de carroça, na Companhia Cervejaria Brahma. Porque a distribuição, naquela época, era feita com carroças.
P/1- Isso em São Paulo?
R- Isso em São Paulo. Com isso, foi tendo oportunidades depois, foi conhecendo outras pessoas. Foi tendo oportunidade de trabalhar em atividades mais nobres, dentro da fábrica da própria Brahma. Foi se especializando em cervejaria e, em pouco tempo, ele se transformou num mecânico. Depois, até supervisão de mecânica e, quando ele se aposentou, na própria Brahma, ele era, praticamente, o homem que comandava toda a operação da Brahma. Já nessa circunstância, apesar de manter... O curso básico dele ser apenas o segundo ano Primário, mas falando inglês, conhecendo bem o espanhol, dominando o italiano perfeitamente, que eram algumas necessidades profissionais da época. Primeiro, porque italiano, em São Paulo, era necessário, espanhol porque era filho de espanhóis e inglês em razão das máquinas que eram dos técnicos. Então, foi praticamente um homem...
P/1- Autodidata.
R- Um autodidata que se dedicou integralmente à família, exclusivamente à família. Passou quase toda a sua vida trabalhando. Saiu da Brahma como aposentado por conta de uma compulsória, porque a Brahma, na época... Eu não sei se ainda tem... Ela tem um plano de complementação de aposentadoria. Mas, desde que o empregado adquire condição, ele é obrigado a sair, senão ele vai perdendo o benefício, vai reduzindo o benefício. Ele foi obrigado a sair e, em seguida, foi trabalhar na Coca-Cola, depois na (Siquine?), em outras empresas. Trabalhou, praticamente, o tempo todo para criar a família e conseguiu, dos seis filhos, formar todos eles, trabalhando como mecânico. A minha mãe era tecelã, trabalhava em fábrica, naquelas máquinas de tecelagem, em turnos. Esses turnos de 24 horas. Numa vez, num espetáculo circense, foi quando conheceu o meu pai e dali, eles (risos)... Em razão das dificuldades que ambos viviam, começaram... Logo se namoraram, casaram e ela continuou trabalhando depois, como costureira. Ela saiu da fábrica, porque não podia trabalhar em turnos por causa das crianças, mas continuou trabalhando em casa como costureira, para complementar. Nos deram, então, isso que eu chamo... Pelo menos, o que eu observo no caso dos meus irmãos e de minhas filhas, eu observo na nossa geração, todos os que foram gerados por eles, uma certa garra. Nós nunca tivemos muito medo dos problemas que temos que enfrentar. Desde a nossa origem aqui, no Brasil, a gente conheceu dificuldades e como superá-las. E tem bastante exemplos na minha família de pessoas que superaram dificuldades, até então intransponíveis. Eu poderia citar um monte delas. Eu vou apenas citar uma, que eu tenho como referência daquilo que os nossos pais nos legaram como garra. Eu tenho uma irmã que era dentista e, num acidente automobilístico, perdeu as duas vistas, ficou cega. Não pôde mais trabalhar como dentista. Evidentemente, foi traumatizada por isso, passou por todos os processos de perda de auto-estima que ocorre com quem perde a vista numa circunstância como ela. Tinha um consultório excelente no Largo do Machado aqui, no Rio, e continuou estudando. Estudou Psicologia e trabalha hoje como psicóloga sem ter necessidade da vista, trabalhando perfeitamente. Criou os seus filhos todos, porque o marido se separou dela. Ela criou três filhos e os três filhos estão formados. Então, é uma demonstração... Tem outros casos para citar. Mas eu tenho a impressão que essa força interior vem lá na nossa origem, lá dos nossos avós, porque eles passaram por grandes dificuldades, principalmente na Revolução de 32. Já o meu pai trazia isso com ele. A única coisa que eu sinto que nunca houve na nossa família... O tripé de equilíbrio de uma família, que é trabalho, lazer e família, é o tripé de equilíbrio do homem. Eu sempre achei que, no nosso caso em particular, esse tripé ficava desequilibrado porque nós nunca tivemos muito lazer. Pelo menos, o satisfatório. Sempre mais dirigido para trabalho e família, apesar de existir o lazer. Mas nunca na proporção que deveria ser. Eu acho que isso foi a única coisa de mal, em conseqüência dessas vicissitudes que eles atravessaram. O meu pai não tinha tempo para lazer porque ele trabalhava demais, inclusive sábados, domingos e feriados. Ele tinha necessidade disso para poder sustentar os filhos. E minha mãe também trabalhava, sempre que podia, em todas as folgas, além de criar os os filhos.
P/2- E vocês trabalhavam, também?
R- Todos nós fomos trabalhar com 14, 15 anos de idade. Inclusive, eu fui office-boy aqui no Rio de Janeiro, aos 15 anos de idade. Trabalhava na Cimaf distribuindo correspondência. Impedido de andar de ônibus, de lotação, naquela época, porque gastava muito. Tinha que andar de bonde. Isso é um fato curioso, porque...
P/1- O senhor dá licença só um minutinho?
(P/2)- O senhor se incomodaria de tirar o óculos?
P/1- O senhor consegue?
R- Então, todos nós... Meu irmão foi trabalhar com 15 anos na Geco, office-boy também. Minha irmã mais velha foi ser datilógrafa num cartório. A Norma foi aprender costura, trabalhava para fora como costureira e a Maria Teresa trabalhou na Sears. Todos trabalharam, todo mundo. Isso já foi... Além do que, também, não havia alternativa. Porque meu pai, na condição de mecânico, apesar de ter se aposentado numa condição muito boa, nessa época ele não tinha boas condições financeiras e as despesas eram muito grandes. Então, ele teve que tomar algumas decisões. Eu lembro que teve um período crítico da minha vida, que eu lembro perfeitamente. Foi quando os recursos não eram suficientes para todos estudarem, então, alguns tinham que parar de estudar. Meu pai decidiu que as meninas parariam de estudar e o homem, que era eu o mais velho, seria o único, porque o ensino era pago. Mas logo em seguida, foi criado aqui, no Rio de Janeiro, um Educandário gratuito, um chamado de (Seneguer?), era Campanha Nacional de Educandários Gratuitos. Um homem extraordinário teve uma idéia maravilhosa de utilizar todas as escolas públicas do Rio de Janeiro... O doutor Felipe Tiago Gomes, eu não esqueço desse homem. Ele implantou em todas as escolas públicas do Rio de Janeiro ensino gratuito para todas as crianças pobres. Nós morávamos no subúrbio do Rio, na Penha. Meus irmãos, logo em seguida, puderam voltar à escola e estudar. Teve uma fase que tiveram que interromper. Quem pagou um preço um pouquinho maior nisso aí foi a Norma, que foi aprender costura para trabalhar. Mas, logo depois, isso foi retomado. Tão logo eu me formei, eu destinava 50% do que recebia, exclusivamente, à família, para complementar o salário do meu pai até que o meu irmão se formasse. E só depois que isso ocorreu é que, então, eu me decidi casar. Porque já não tinha mais esses compromissos, os filhos estavam todos formados e a família, todo mundo... Então, eu tenho irmãs dentistas, como é o caso da Inês. Tem a Maria Teresa... Eu tenho uma irmã que hoje é diretora, ela trabalha na UERJ, ela é professora em cinco ou seis universidades. Trabalha no departamento internacional, já tem oito livros publicados. Tem a Inês, essa Maria Teresa, essa professora. O Maurício que é engenheiro, também aposentado. A única que não terminou completamente os estudos foi a Dorotéia, a mais velha de todas, porque casou muito cedo e o marido, infelizmente, não deu oportunidade a ela continuar estudando. Mas todas... A Norma se formou em Jornalismo, trabalhou no BNH, depois na Caixa Econômica e se aposentou como jornalista. Todos se formaram, todos se realizaram. E observo também que, nos meus sobrinhos, todos nós trazemos um pouco dessa garra. Tem um outro exemplo de uma sobrinha minha, que tem uma deficiência terrível e poucas pessoas sabem que ela tem essa deficiência. É uma grande analista de mercado de capitais e poucas pessoas sabem que ela não enxerga. Algumas pessoas lêem para ela. O pouco que ela lê é com uma lupa muito grande, não escreve e as pessoas fazem por ela. E ela é respeitada no mercado de capitais. Então, você vê aquilo. São coisas... Isso é uma degeneração que ela teve na retina, foi perdendo a visão, mas não perdeu a garra. Não se deprimiu e continua, até hoje, trabalhando e convivendo com pessoas que nem sequer notam que ela tem isso, porque ela não deixa transparecer. Isso nos orgulha, pertencer a uma família que tem garra. Tem garra mesmo, e consegue.
P/2- O senhor e seus irmãos moravam todos na mesma casa?
R- Na mesma casa, num apartamento pequeno, de uns 80 ou 90 metros. No máximo, 80 metros quadrados. Num conjunto residencial, desses conjuntos residenciais feitos no governo Dutra, em 1900... Na década de 40, era 47, 48. Nós fomos morar num conjunto na Penha. E morávamos em dez pessoas num apartamento pequenininho. Então, veja só em quais condições que... E ali que vivíamos. Foi nesse mesmo conjunto que tinha uma escola pública, onde se instalou uma escola da Campanha Nacional de Educandários Gratuitos, e todos, depois, puderam estudar.
P/1- Mas como foi a transferência da família para cá? Em função do trabalho do seu pai?
R- Em função do trabalho do meu pai.
P/1- Em que ano isso?
R- Isso foi em 1949.
P/1- E como é que foi? Como era antes, em São Paulo, a infância, a casa, as brincadeiras?
R- A casa é o seguinte: minha avó tinha comprado um terreno num subúrbio, que hoje, em São Paulo, é quase que cidade. Mas num local afastado, mais ou menos uns dez quilômetros do centro da cidade, da Praça da Sé, num bairro próximo da Penha chamado Tatuapé. Ela comprou um terreno e deu esse terreno para a minha mãe e para o meu tio, que dividiram em dois. Era um terreno pequenininho e os dois construíram, num terreno muito pequenininho... Para vocês terem um idéia, ele tinha cinco de frente por 20 de fundos (risos). Então, eles construíram a casa e coabitavam ali, o meu tio com os meus pais. E, no fundo, tinha um barraco onde morava a minha avó, a minha avó por parte de mãe. O que tem de particular na minha vida, que eu não conheço por partes do que contei para vocês, se trata do lado do meu pai, do meu avô que migrou da Espanha em razão de um problema na Revolução Espanhola, a Revolução Civil. Do lado do meu avô é uma incógnita.
P/1- Avô materno?
R- Meu avô materno é uma incógnita, porque o meu avô era filho de uma família muito rica aqui, no Rio de Janeiro. Tão rica que o pai dele era dono de navios que, já naquela época, mandava fazer transporte para o Nordeste. Eu lembro de uma coisa que ele falava, que os flagelados do Nordeste já existiam quando ele era menino. E eles tinham cavalos no Jóquei, eram donos da Confeitaria Colombo, eram donos dessa casa aqui, em Santa Teresa, onde mora o arcebispo. Eles tinham muito dinheiro, uma família grande e ele viveu muito bem. Foi internado, fez um curso em Seminário e, como seminarista, ele aprendeu grego, latim e francês. Era um homem muito culto.
P/1- Qual é o nome dele?
R- Augusto Camacho. Esse homem teve um problema grave, um conflito com a família. Ele tinha uma irmã com apenas 14 ou 15 anos... Eu não sei nem sequer o nome, parece que era Isabel. E que, por interesses da família, ela foi obrigada a casar com um homem de 60 anos da família Mascarenhas de Moraes, alguma coisa assim. Eu sei que é Mascarenhas de Moraes. Ele não aceitou aquele casamento. Ele achou um absurdo uma menina, que ainda brincava de boneca, casar com um homem que já era um sujeito vivido, viúvo e outras coisas mais, apenas para poder salvar, guardar fortunas. Eram as fusões... Era a globalização das fortunas (risos). Aqui, as fusões que se faz hoje, nas empresas, se havia muito no passado em fusões de famílias, para salvar outras que estavam em dificuldades. Eu não sei qual das duas estava em dificuldade, se era a de lá ou a de cá. E ele não aceitou aquilo, que aquela menina tão ingênua, que não queria... Se trancou no quarto, chorou e ele disse que, se por acaso ela fosse obrigada a casar, que ele sairia de casa. Então, disseram que, se ele saísse de casa, ele seria deserdado. Ele foi deserdado. Realmente, saiu de casa e assumiu um compromisso de nunca falar nada com ninguém. Nós sabemos essa história contada aos pedaços, juntando retalhos. Ninguém sabe contar direito como é que é. Juntamos retalhos em função de algumas pessoas que conheciam, foram ouvindo história aqui, outra ali. E aí, para poder enfrentar este problema, ele entrou numa companhia teatral e viajou pelo Brasil inteiro naqueles... Tipo saltimbancos, que faziam esses teatros em barracas de lona. Era um artista de teatro, com muita cultura e com um conhecimento muito grande. Se desenvolveu muito nesse ramo e, quando chegou numa cidade no interior de São Paulo, essa empresa de teatro quebrou. Quebrou e ele arrumou um emprego numa cidade, hoje chamada... Em Americana, perto de Cotia. Ele arrumou um emprego numa fábrica de tecidos que tinha lá. Nessa fábrica de tecidos, tinha uma pessoa que ele conheceu que tinha uma irmã muito bonita. Segundo ele, claro (risos). Ele disse: “Eu vou casar com a sua irmã”. E casou com ela. Minha avó era analfabeta, morreu analfabeta. E ele casou com ela, de onde nasceu minha mãe e um tio meu. Ele sempre, inclusive quando morreu... Morreu em 1948, eu já tinha quase 10 anos, nove anos. Um pouco antes, ele reuniu todo mundo e falou: “Eu peço a vocês que, agora, depois de morto, não procurem a minha família. Não procurem nada, não quero nada, por favor. E se vocês forem procurados, vocês não aceitem qualquer tipo de reconciliação.” Então, sinceramente, eu nem sei o que é real e o que é fantasia nessa história toda. Pode ser até que eu não esteja nem contando a realidade, mas o que eu sei... Que ele era um homem muito culto, era. E essa cultura foi muito interessante, porque também influenciou no meu pai. Quando o meu pai casou com a minha mãe, meu avô era um homem... pelo fato de ter muita cultura, ele era um sujeito que sabia abordar os problemas, sabia enfocar os problemas, sabia discutir e gostava de ler. E começou a emprestar livros para o meu pai que, apesar de ter apenas o segundo ano Primário, era um homem que tinha conhecimento profundo de História e ele era capaz de descrever cidades na Europa, como na Espanha ou na Itália, como se ele tivesse morado lá. Em razão dos livros que ele leu. E ele encontrava com espanhóis, italianos, além de falar em espanhol e falar em italiano, ele descrevia como eram as cidades e as pessoas ficavam impressionadas. Falavam: “Não é possível que uma pessoa possa conhecer com tanto detalhe uma cidade na Itália...” Ele falava italiano em quatro dialetos. Ele falava o romano, falava o napolitano... Eu não lembro os outros dialetos que ele falava. Tinha um dialeto que era difícil, mesmo. Acho que era do Sul da Itália. Era tão difícil que nem parecia italiano. Então, as pessoas achavam que ele conhecia a Itália. Demais tudo isso nos livros que ele lia, que o meu avô emprestava para ele. E nós também lemos alguns desses livros que ficaram e que, depois, nós demos. E adquirimos também, desde pequeno, a mania de ler, o interesse pela leitura, em razão daquilo que o meu avô nos dava. Ele era um excelente avô, daqueles que... O avô que todo mundo quer ter. Ele senta e sabe tudo, conta tudo, explica tudo sempre. Ele foi isso, vamos dizer assim, em razão da cultura que ele tinha, que era muito grande. E nós adquirimos também. Os presentes que ele nos deu, o meu pai também, sempre foram coleções. Então, nós sempre recebemos todas as coleções, as mais famosas coleções que as crianças liam. Depois, quando já numa idade avançada, líamos Oscar Wilde, Cronin, as coleções todas. Os de Monteiro Lobato, tudo isso nós líamos em decorrência dessa influência do meu avô. E apesar da minha avó ser analfabeta, igual ela que nunca quis aprender a ler.
P/1- Nunca?
R- Nunca quis aprender a ler. Mas era um homem interessante, porque ele deixou, pelo menos, uma coisa em cada um de nós, que o conhecimento é uma coisa muito importante. Ele até dizia assim, não sei se era exatamente com essas palavras, que não existem pessoas mais inteligentes ou menos inteligentes. Existem pessoas mais informadas e menos informadas. A inteligência está apenas na utilização das informações. Ele não dizia exatamente com essas palavras, mas dizia de forma que a gente entendia que ter informações é importante. E depois, o veículo de informação da época era, principalmente, os livros. Você não tinha outro acesso, os outros eram precários. Todos os veículos eram muito precários, depois é que vieram os outros, a televisão. Então é que veio o grande choque que, segundo o Maclean, aí revolucionou todo o sistema de informações. Agora, nós estamos vivendo num processo que não dá nem para entender. O negócio é tão violento! Mas, na verdade, quem... nós conseguimos obter do vovô, pelo menos aqueles que conviveram mais do lado dele, essa base. Não há esse problema, o importante é ter informação, não é ser mais inteligente, isso, aquilo. Ter QI tanto, QI aquilo. Pode ter o que for, se não tiver informação, não faz nada, absolutamente nada. Então, aquela ansiedade por informações era muito grande, foi assim. O mais gozado é que, quanto ao lazer, por exemplo, ninguém foi desportista, não somos grandes apreciadores de outros esportes, de outras coisas, porque não tinha. O máximo que a gente fazia era piqueniques na praia ou algumas pescarias. Mas não tinha programas de lazer tanto quanto daqueles relacionados com... O foco maior era leitura, mesmo. O foco era tão grande, e exagerado inclusive, penso eu, mas nós não sabíamos. A minha irmã, essa que tem livros publicados, ela foi... A professora na escola, quando ela estava no ginásio, chamou meus pais lá e pediu que ela parasse de ler, porque, naquela idade, não era possível que uma menina falasse sobre a República de Platão, por exemplo, a Ética de Aristóteles (risos)... Que não tinha nada a ver com a idade dela. Ela já tinha lido umas séries de livros e ela ia pegando assim. Ela via lá: “A República de Platão” e lia aquilo. Não é que ela assimilasse o que Platão queria, não absolutamente. Não que defendia Aristóteles, claro. Ela não assimilava. Ela lia aquilo pela vontade de ler, pelo costume de ler, somente isso. Mas, realmente, era uma menina que eu posso dizer assim... uma pessoa que... um fenômeno! Ela, até hoje, guarda todas as fichas de escola. Nunca tirou um nove sequer, só tirou 10. Para tirar um nove... Teve um caso em particular, isso é interessante. Um professor que era nosso cunhado, professor de Matemática, deu nove de propósito e ela falou: “Então, você vai...” Foi lá no diretor e falou: “Ele é meu cunhado. Me deu nove de propósito, de pirraça, porque ele sabe que eu nunca tirei nove na vida. Agora, eu quero que ele venha aqui explicar porque é que ele deu nove.” E ele mudou para 10 (risos). Nesses congressos estudantis que a Campanha Nacional de Educandários Gratuitos fazia, ela representava o Rio de Janeiro porque, em vários concursos, ela foi sempre premiada como melhor aluno do Brasil... Melhor aluno do Rio de Janeiro. Depois, participou de vários outros concursos. Mas lia obcecadamente e escrevia, também. Já pequenininha escreveu um livro que ela mesmo intitulou de A Rainha de Toseli, não sei porque. Conta a história de uma mulher.
P/1- A Rainha…?
R- De Toseli, não sei porque, de onde ela tirou esse nome. E escreveu esse livro, um manuscrito interessante sobre uma história cheia de fantasias. Ela era pequena demais para escrever essas histórias de...
P/1- Qual é o nome dela?
R- Maria Teresa. Ela tem livros publicados e faz conferências. Hoje, vive, faz conferência... Nos países que ela mais faz conferência, México, Colômbia, Polônia, Romênia. Porque ela conhece a economia básica desses países e vai lá conversar sobre a história desses países, a história básica. Ela tem um livro publicado sobre a influência do café no desenvolvimento econômico da Colômbia. E faz palestras, na própria Colômbia, sobre a influência do café no desenvolvimento econômico e social da Colômbia.
P/2- Ela é professora?
R- É professora aqui, na UERJ, e em várias universidades aqui, umas quatro ou cinco.
P/2- De quê, mesmo?
R- De História. E é diretora do departamento internacional da UERJ, faz essa cobertura. Faz essa ligação da Universidade com convênios internacionais. Então, essas coisas a gente tem orgulho de dizer. E outra coisa, ela teve uma fase difícil da vida que teve uma interrupção por causa do casamento, de um casamento mal... Vamos dizer assim, ela conheceu um rapaz, era muito bom, um sujeito muito culto também, que servia para ela. Um rapaz que lia muito, era baiano. Um cara extraordinário, um conhecimento extraordinário. Um cara extraordinário, o caso mais engraçado que eu já conheci na minha vida. Porque ele, durante todo o tempo que namorou com ela, foram quase sete anos, fez voto de castidade. Não conheceu outra mulher de jeito nenhum, só se reservava todo e se reservava para ela. Eu, que tive duas ou três namoradas, ele me considerava um pervertido (risos). Só por namorar. Você imagine se falasse qualquer outra coisa (risos). Só pelo fato de namorar, ele me considerava um pervertido. Se dedicava exclusivamente a ela, era um rapaz muito culto. Muito culto mesmo. Trabalhava como presidente da Biblioteca Nacional e, talvez por conseqüência daquele convívio, se encaixava perfeitamente com ela. E eles casaram. Ele foi convidado para um programa... Não sei se foi na Esso, ou na Shell, fez um programa, uma época de... Contratou umas gatinhas para atender nos postos de gasolina, isso na década de 50, uma coisa assim. Umas moças para atender. E ele gostou tanto... Ela já tinha dois filhos. Gostou tanto desse novo mundo que ele conheceu que, só noivado, ele ficou umas quatro ou cinco vezes. Noivo, depois de casado (risos). O cara fez voto de castidade por sete anos...
P/1- O inverso total (risos).
R- E depois, descambou, né?
P/2- Quando soltou...
R- Soltou, mas soltou direto. O bom era ter que pegar os filhos no colo, ia lá, batia na casa das noivas dele, falava assim: “Escuta, minha filha. Eu sou a esposa do Humberto. Esse aqui é o filho dele, está aqui a certidão de casamento. Ele é seu noivo. Você vai ter dificuldade, não pode...” Essa fase foi uma fase terrível para ela, então interrompeu tudo. Nós até achávamos que a situação dela seria irrecuperável. Aquela menina, que tinha um desempenho extraordinário na escola, interrompeu tudo e passou a ter uma vida terrível em razão disso. Porque aí, ele passou a gostar de coisas que nunca tinha demonstrado antes. No Carnaval, por exemplo, ele saía na sexta-feira e voltava na quinta-feira, nem era na quarta-feira de Cinzas (risos). O cara foi... Foi uma transformação!
P/1- Abriu as comportas (risos).
R- Abriu as comportas. E é interessante. Até que chegou um ponto que não era mais possível viver junto e ela, até hoje, não tem nada contra ele. Nunca permitiu que alguém sequer falasse mal do marido dela perto dos filhos. Os filhos querem bem o pai porque ela não permite, absolutamente, que considerem aquilo como um defeito. Depois, ela teve a oportunidade de conhecer uma outra pessoa que também, da mesma forma... Um jornalista do Estado de São Paulo, editor de Economia. Um rapaz extraordinário, de uma inteligência! Colega de vocês, porque, hoje, ele é... Trabalhou como... Foi editor da parte... Cobriu Petrobrás, cobriu a parte de BNH, cobriu muito tempo no Estadão. Trabalhou com esse moço que está envolvido num caso trágico aí, infeliz, do Estado de São Paulo.
P/1- Da Gazeta?
R- Pimenta não sei o quê.
P/2- Pimenta da Veiga?
(P/3?)- Pimenta Neves.
R- Pimenta Neves? Trabalharam juntos, são amigos. Esse rapaz se aposentou por contingência e hoje ele tem uma empresa em que ele trabalha com jornalistas de renome. São só jornalistas que... No sentido de treinar grandes executivos para comunicação com a imprensa.
P/1- Seu Mariano, eu queria perguntar um pouquinho...
R- Esse rapaz é extraordinário, tem uma cultura muito boa que se ajustou totalmente a ela. Vivem muito bem, tiveram filhos e construíram um novo lar. Ela continuou crescendo e ele, também. Foram pessoas que...
P/1- Eu queria perguntar um pouco para o senhor... Em relação à casa, à família, teve uma formação política também?
R- Olha, o interessante sob esse aspecto é... A única pessoa que, inicialmente, começou a tratar de assuntos políticos, conversar sobre assunto político em casa, foi esse rapaz que era baiano, que namorava com a minha irmã. Ele freqüentava a UNE, na época, e defendia determinadas ideologias que, sinceramente, como nós líamos livros... A leitura que nós nos dedicávamos eram leituras que nos mantinham... Nós não estávamos capacitados a conversar com ele, nós só nos limitávamos a ouvi-lo. Mas ele não chegou a nos influenciar pelas suas ideologias, apesar dele ter argumentos extraordinários para falar sobre tudo. Porque nós estávamos, no meu caso, no nosso caso em particular, exatamente na contramão do que ele dizia. Tratava-se de uma família de poucos recursos, pessoas pobres, e que estavam conseguindo vencer com trabalho, entendeu? E ele defendia mais... Ele era um socialista de primeira, desses cara que achava que o Estado devia estar presente em tudo, que não devia haver diferença de classe, era isso, era aquilo. Chegou até a ser radical, como a UNE era naquela época, no final da década de 50. Mas ele não conseguia nos influenciar, porque nós vivíamos uma realidade exatamente o contrário. Pelo que ele falava, nós não teríamos oportunidade nenhuma. Nós éramos marginalizados na sociedade, porque a sociedade era elitista, só dava possibilidades a quem tinha e que o nosso regime só privilegiava os que podiam... E, ao contrário, nós estávamos conseguindo, todos nós estávamos conseguindo. Então, apesar dos argumentos teóricos dele serem muito bons, na prática a gente tinha essa influência. Por outro lado, em razão de um medo, eu vou chamar de medo mesmo, de qualquer envolvimento maior poder trazer prejuízos para toda a família, a gente vivia afastado. Eu, particularmente... Eu dizia assim: “Eu não tenho capacidade, absolutamente nenhuma, de julgar politicamente o que eu quero, porque eu não conheço nada.” Eu não sabia nem fazer diferença entre duas ideologias diferentes. Se você me colocasse duas ou três ideologias diferentes e dissesse assim: “Qual a diferença disso para isso?” Eu não saberia. Eu tinha noções. Então eu me sentia desqualificado para assumir qualquer posicionamento político, em razão dos conhecimento que eu detinha. Eu achava interessante alguns colegas meus que radicalizavam e conheciam tanto ou menos do que eu. Eu achava: “Como é que ia...” Me chamavam de alienado, mas também não conheciam absolutamente nada e tinham um posicionamento. Mas um posicionamento que eu achava de baderna, simplesmente. Esculhambar aquilo que estava sendo feito sem, absolutamente, ter razões ou conhecimentos suficientes. Como lá atrás eu já tinha dito, o meu avô disse que o importante era conhecer. Eu dizia assim: “Eu não sei fazer diferença entre Nazismo, Comunismo e não sei o quê.” Eu não sabia fazer diferença. Eu conhecia o que predominava num país, o que predominava no outro, o Capitalismo. Mas não sabia como é que aqueles países viviam, a função do Estado, como é que era. Sabia o que estava acontecendo, mas não sabia estabelecer as diferenças na base, na estrutura. Eu não era especialista, não conhecia a teoria geral de Estado suficientemente, não conhecia o papel do Estado. Então, toda vez que eu era interrogado nesse sentido... E a gente era muito na universidade, nesse sentido. O pessoal queria que a gente se definisse naquele tempo, porque a UNE... Um dos colegas meu é o Aldo Arantes, que era presidente da UNE, que agora é deputado pelo PCdoB em Goiás. O Aldo Arantes era o nosso colega de república, eu morava em república nessa época. A turma queria: “Você tem que se definir, rapaz. Você não pode ficar assim”. Eu falei: “Mas definir sem ter conhecimento? Eu sei o que você quer.” Eu dizia para as pessoas, eu dizia para o Aldo: “Você quer que eu me defina a seu favor. Porque, se eu me definir contrário, eu estou errado, eu sou burro, sou alienado, sou isso tudo. No instante em que eu me definir ao seu favor, eu passo a ser inteligente.” Esse meu cunhado tentou trazer isso para nós, não foi suficiente. Agora, tivemos um problema, o seguinte. A minha irmã Maria Teresa, como professora de História, ela não se negava a reconhecer o fato histórico. E conhecia todo o processo para o qual o Brasil chegou até a Revolução.
P/2- Que Revolução?
R- De 64. Apesar de pressionada na Universidade, ela não se negava a trazer a realidade para dentro da sala de aula. Conversar com as pessoas e botar em debate algumas coisas. O que era, naquela época, em 65, logo depois da Revolução, um absurdo. Logo foi presa. Foi uma situação desagradável que, para poder prendê-la... Quando ela soube que ia ser presa, porque ela foi avisada que o pessoal do DOPS já estava na porta da Universidade, ela saiu pelos fundos e fugiu. Mas, para prendê-la, eles prenderam o meu pai. Disseram assim: “O seu pai vai ficar preso enquanto você não...” meu pai era um senhor de idade. Falou: “Se você não se entregar, seu pai não sai.” Aí, ela se entregou e não aconteceu absolutamente... Não fizeram nada com ela, só foi apenas interrogada. O que atrapalhou na vida dela foi que, durante muito tempo, não pôde viajar até correr o processo todo, limpar a ficha e apagar o processo lá. Então, foi um impacto que nós tivemos. Mas, no exercício da profissão, ela disse ao diretor da escola que ela não se negaria, quando chegasse naquele fato histórico, ela dar um salto na História. Ela disse: “Não, não vou dar um salto na História. Eu vou trazer todo o processo. Agora, cada um julga com o nível de conhecimento que tem.” Não era militante, mas conhecia todo o processo que ela, como professora de História, tinha que conhecer. Ela tinha que dar para os alunos, fazer todos os posicionamentos, tudo aquilo que era parte daquele momento da História do país. E ela não se negou a fazer. Um aluno infiltrado, que não era aluno, era um agente do DOPS... Que tinha isso nas universidades. Tinha um aluno infiltrado que denunciou e ela foi presa por causa disso. Foi o caso mais grave, mas não foi torturada, absolutamente. Eu mesmo fui visitá-la. Eu pedi a alguns amigos que pudesse visitá-la, estive com ela. Ela falou: “Não estão me fazendo nada demais. Estão apenas me interrogando e eu estou mantendo aquilo que eu estou dizendo. Não sou militante, conheço o processo, não estou metida nisso. Tenho simpatia por algumas coisas de lado a lado, tenho minha opinião, mas, como professora de História, eu não vou deixar de levar para a sala. Não há ninguém que me possa impedir de eu levar para a sala um processo de discussão. Eu não vou ali dizer que fulano tem que ser isso, mas eu tenho obrigação de trazer isso...”. O marcante, o desagradável foi que, para poder prendê-la, prenderam meu pai, um homem idoso, que estava em casa, coitado. Exatamente no mesmo período que aconteceu o acidente com a minha outra irmã que tinha perdido a vista. Ele estava arrasado. Ele falou, inclusive, para o agente do DOPS: “O senhor vai me levar preso? Eu estou aqui, tomando conta de uma moça que acabou de ter um acidente, perdeu a vista. É minha filha e está aqui desesperada para se recompor emocionalmente”. Porque a visão tem esse problema. A pessoa que perde a visão tem uma regressão emocional de quase dez anos. Até depois de se recompor, demora. “Eu estou aqui tentando dar apoio moral para a minha filha e vou preso?” Ele falou: “Não, o senhor não vai preso. O senhor vai ficar apenas detido até a sua filha aparecer”. Não fizeram nada com ele, mas foi desagradável sair carregado num camburão.
P/2- Seu Mariano, como é que o senhor optou pela profissão de engenheiro mecânico? Como é que foi?
R- Interessante isso, também. Eu trabalhava como desenhista. Eu comecei a trabalhar como office-boy e...
P/1- Onde?
R- Na Cimaf, cimento, madeira e ferro. Era uma empresa na Avenida Brasil, número 720. Era uma subsidiária da Companhia Belgo-Mineira. Tinha um chefe muito chato, murrinha feito uma desgraça e como eu lhe disse antes, não me deixava sequer viajar de ônibus. Eu tinha que andar de bonde, nem de lotação. Naquele tempo, o Rio de Janeiro tinha uns lotações. Vamos supor, os preços eu não sei se eram esses. O bonde era 500 réis, o ônibus era um mil réis e o lotação 2500 réis. Era mais ou menos essa faixa. Quase cinco vezes o bonde, mas era rápido. Eu trabalhava na cidade, ia entregar correspondências em Ipanema, Leblon, Madureira. Depois, eu podia pegar uma lotação e chegaria logo em casa, porque eu estudava à noite para poder trabalhar. E o chefe, o seu Rui... Se eu usasse lotação ou ônibus, quando chegasse no fim do mês, ele descontava a diferença. O meu salário, naquele tempo, era metade do salário mínimo. O salário mínimo era 600 mil réis, eu recebia 300 mil réis. Teve um mês que ele, praticamente, me pagou 100 mil réis, porque 200 mil réis foi descontado. Eu estou falando em réis porque era a moeda da época. Foi descontado pela diferença. Eu pegava o ônibus, a lotação, porque eu não queria perder a aula na escola, onde eu estudava à noite. Eu falei: “Seu Rui, eu andei de ônibus, de lotação, porque eu não podia perder a aula. Eu estava longe demais.” Eu estudava num colégio lá em Ramos, no Colégio Pedro I. Eu tinha que chegar lá. Ele falou: “A mim não interessa. Interessa é que você está gastando além do que está permitido. Então, você vai pagar, vai descontar.” Eu fiz uma coisa que... Evidentemente, eu não vou repetir o palavrão. Eu mandei ele para um lugar muito interessante e disse para ele: “O senhor anota, pode anotar aí. Eu ainda vou ser muito mais do que o senhor está pensando. Talvez, o que o senhor está fazendo comigo serviu apenas para acirrar meus ânimos, para me dar mais força. E eu nunca mais venho trabalhar aqui. O senhor vai lembrar de mim um dia.” E nunca mais voltei. Mas, como eu disse um palavrão para ele e aquele emprego foi um emprego de favor, a pedido do meu pai, eu tive que sair de casa também. Fiquei com medo de ir para casa. Meu pai, rígido como era, jamais poderia admitir que eu mandei meu chefe para aquele lugar. E eu mandei textualmente, mesmo (risos). Então, saí de casa. Fui para a rua, fiquei rodando, perambulando. Fiquei na Cinelândia, comi um sanduíche. Os ônibus interrompiam, naquele tempo, meia-noite. Depois, quando foi cinco horas da manhã, continuavam a rodar. Às cinco horas da manhã, eu peguei um outro ônibus, fui lá. Estava lá na Penha, sentado num banco na praça. Que eu fiquei rodando pela cidade. Eu fiquei com medo de ficar rodando lá, que era perigoso. Então, fiquei rodando, dormi num banco na Praça Paris. Cheguei lá... Eu tinha 16 anos. Meu pai estava em pé na esquina e falou: “Olha, rapaz...” Quando eu vinha passando. “Vamos para casa.” Eu falei: “O senhor vai me bater?” Ele falou assim: “Não. Não vou, não. Eu quero conversar com você.” Ele chegou em casa, ele falou: “Você fez muito bem. Eu teria feito pior.” (risos).
P/1- Que ótimo! (risos)
R- Pois é. E não me bateu, que o meu medo era ter... porque nunca o meu pai tinha me batido. Eu fiquei imaginando o meu pai me batendo. Foi besteira, coisa de garoto, criança. Eu achei que fugir de casa era mais barato, mais fácil. Mas não fugi, não. Essas fugidas, ficar a noite acordado. Mas estraguei a noite do meu pai. Bom, o meu cunhado, que era arquiteto e viu aquele caso, falou: “Faz o seguinte: você vai se inscrever no Instituto Oberg, que tem na Presidente Vargas, vai aprender a desenhar e eu vou te empregar como desenhista.” Eu falei: “Eu não preciso nem ir para o Instituto Oberg. Você me ensina como é que se desenha, eu vou desenhar direto.” Me levou lá para o escritório, me deu uma prancheta e me mostrou umas plantas, como é que era, explicar. Um mês depois, eu já estava trabalhando como copista, eu copiava uns detalhes. Logo em seguida, eu já era desenhista. Quando eu comecei a desenhar e conhecia, comecei a fazer detalhes de plantas... Eu trabalhava fazendo plantas de Arquitetura, desenhos residenciais. Mas não de prédios grandes, eram prédios de, no máximo, três andares. Geralmente, construídos naquela região de Brás de Pina, Irajá, onde nós morávamos. Os chefes de obra, aqueles portugueses que predominavam na região, pediam para ir lá explicar detalhes sobre as plantas. Tem histórias maravilhosas para contar disso aí. Com isso, eu comecei a pegar gosto pela Engenharia. Continuei estudando à noite e fazendo desenho. O meu cunhado me prometeu... Isso tem uma marca. Ele já morreu, o coitado. Morreu há dois anos atrás, mas tem uma marca na minha vida impressionante. Ele disse assim: “Você tem um desempenho muito bom, você aprendeu a desenhar rápido, você conhece bem. Você sabe fazer a planta na prancheta e sabe ir para o campo ensinar os mestres de obra, os detalhes da obra. Então, eu vou fazer o seguinte, eu vou te dar sociedade. Quando você se formar... Você vai fazer Engenharia mesmo?” Eu falei: “Vou fazer Engenharia.” “Quando você se formar, você vai ser meu sócio.” Eu já estava com aquela vontade de estudar violenta, porque eu queria... Eu tinha o seu Rui na minha cabeça engasgado, como eu tenho até hoje. Aliás, eu até devo um pouco a ele, né? (risos). Eu tinha o seu Rui engasgado e eu queria estudar, porque eu falei um dia: “Eu quero mostrar para esse homem que, um dia... Eu vou pegar o meu diploma e vou mandar. Eu vou tirar uma cópia e mandar para ele. O dia que eu for diplomado, eu mando uma cópia do meu diploma para ele e agradeço: ‘Seu Rui, muito obrigado. Porque, senão, eu ainda seria o seu contínuo aí, seu office-boy.’”. Se ele aceitasse... Então, foi boa aquela pressão que eu recebi, eu não sou contra. Hoje, eu até acho que foi bom. Certas coisas são boas que acontecem com a gente. Aí, fui estudar, fui fazer Engenharia. Ficou combinado que eu iria fazer Engenharia Civil, evidentemente, porque eu trabalhava num... Naquele tempo era, até o segundo ano de Engenharia, todo mundo junto. Você só definia as suas especialidades a partir do segundo ano. Quando chegou no segundo ano, eu tinha que definir minha especialidade. Eu fui lá no meu cunhado, falei: “Escuta...” Sílvio o nome dele Eu falei: “Sílvio, essa história de que eu vou ser teu sócio é verdade? Não vai ser igual aquela da lambreta?” Ele falou: “O que é que é?” Porque ele tinha me prometido, uma vez, que ia me financiar uma lambreta, que era um veículo da época. Nós fomos na loja, eu montei na lambreta, fiquei nervoso, suado, tremendo, me imaginando na lambreta e, até hoje, não foi financiado (risos). Eu falei: “Você não vai me dar o mesmo... Não vai me enganar do mesmo jeito que você me enganou na lambreta?” Porque a gente se ilude, ainda mais naquela idade. Ele disse assim: “Eu vou te financiar uma lambreta, você vai pagar por desenhos. Eu compro na loja...” Nós fomos numa loja na cidade, não lembro qual foi. “E você, depois, vai me pagando aos poucos.” Eu fiquei entusiasmadíssimo: “Eu, de lambreta, puxa vida!” Mas não comprou e eu fiquei numa mágoa dos diabos. Eu falei: “Não vai ser a mesma história da lambreta, não?” Ele falou assim: “Olha, rapaz, a construção civil está numa crise violenta. Meu cunhado, eu estou até pensando em fechar esse escritório. Não vou continuar mais com isso, não.” Ele também era despachante da Prefeitura. “Eu vou ficar só trabalhando como despachante, porque não está dando e para dividir para dois, menos ainda. Mas se você tiver outras opções, tudo bem.” Fui para casa frustrado, parece que o mundo caiu em cima de mim de novo. Contei para a minha mãe que eu tinha aquilo... Eu já me sentia diretor, né? (risos) Sócio da empresa. E ele ganhava dinheiro, ele tinha dois automóveis, tinha três casas. Ele fez um bom patrimônio. Daí, eu ficava até imaginando, eu também ia ter um bom patrimônio, aquele negócio todo. Fui frustrado... Para casa. Naquele ano, nós tínhamos um presidente na República, Juscelino Kubitschek. Um homem extraordinário, um homem de um carisma do diabo. E ele, várias vezes, veio a público através de todos os meios de comunicação, se dirigindo principalmente aos jovens. Ia nas universidades incentivando as pessoas a estudarem Eletricidade, Eletrônica e Mecânica, porque ele iria desenvolver um parque industrial no país. Porque o Brasil estava na primeira onda, ainda. Era um país agrícola, mas não tinha uma atividade industrial. E até incentivou certas universidades a transformar currículos. Pegar engenheiro civil, já na época quase em condição de formado, transformar em engenheiro eletricista, fazer um mecânico, fazendo cursos de pós-graduação. De complementar, no sentido... Então, várias universidades adaptaram rapidamente o currículo para entrar... E a demanda era grande. Era impressionante o que havia com a implantação dessas indústrias automobilísticas, de empresas que estavam se instalando aqui. A gente, cada vez mais, vendo o parque industrial em São Paulo crescendo e a demanda, cada vez, aumentando mais. O carisma do presidente era extraordinário, aquele era um homem... Juscelino foi um homem que vou te contar! Que deu para a juventude, naquela época, uma sensação de esperança. Todo mundo nas universidades, no terceiro ano, já tinha um... Era assim, se você tirasse até determinado... Vamos supor, o cara que tirar em primeiro lugar, ele já tem uma bolsa garantida para a Alemanha ou para isso, tem um emprego na Metaleve. Já tinha uma forma de premiação para os alunos que tivessem o melhor desempenho e uma oportunidade de emprego muito grande. A Petrobrás se expandindo violentamente, uma demanda de emprego... O que mais tinha, nessa época, era emprego. Como o meu pai era mecânico e, para complementar salário, ele consertava automóveis aos domingos, eu era o ajudante dele. Eu sempre fui o ajudante do meu pai. Eu nunca fui um bom mecânico de automóvel, mas um bom ajudante, lavador de peças. Sabia a ordem de montagem, a ordem de desmontagem de um carburador, e sei até hoje isso. Tenho uma certa habilidade manual, até hoje, para fazer essas pequenas montagens e adquiridas com ele, como ajudante dele. Eu era o lavador de peça. Ele pegava aquele serviço e fazia para poder ganhar mais algum dinheiro. Fazia isso, principalmente, aos domingos, e eu sempre fui o ajudante. Tinha essa habilidade. Principalmente, eu achava que, pelo fato de eu ser um bom ajudante de mecânica, eu também seria um bom engenheiro mecânico. Eu falei: “Então, eu vou optar por Mecânica.” Continuei trabalhando como desenhista e fiz Engenharia Industrial, modalidade Mecânica. A Engenharia Industrial era mais ampla, ela focava muito mais o aspecto de produção, organização, método. Era o mais perto dessas coisas ligadas à produção e à modalidade Mecânica. Bom, aquelas expectativas criadas pelo presidente Juscelino Kubitschek se confirmaram. Quando eu me formei, eu tinha cinco oportunidades de emprego, o difícil era escolher.
P/1- Inclusive a Vale do Rio Doce?
R- Exatamente. Eu tinha cinco oportunidades de empregos. Tinha na Celma, em Petrópolis, para trabalhar em manutenção de aviões. Ela fazia manutenções da... A Celma fazia da... Uma empresa que faliu, esqueci o nome. Cheguei a fazer um estágio lá. Tinha na Fábrica Nacional de Motores, tinha na Petrobrás, tinha na Vale do Rio Doce e tinha uma, parece que numa empresa que... na Eletromar.
P/1- E por que é que o senhor escolheu a Vale do Rio Doce?
R- Vamos ver porquê Vale do Rio Doce: naquele tempo, existia... não sei se era legislação, o que é que era. Só sei que chamava salário mínimo de engenheiros. Eram dez salários mínimos. Nenhuma empresa poderia pagar menos que dez salários mínimos para um engenheiro. Todas essas empresas pagavam, inicialmente, o salário mínimo. Exceto a Petrobrás, mas que exigia profundos conhecimentos de inglês. E eu não conhecia inglês, não sabia inglês. No teste para a Petrobrás, eu tive um ótimo desempenho na parte de avaliação, todas as outras avaliações. Proficiência em inglês, nenhuma. Isso até, na época, me revoltou, me deu aquela sensação assim, um sentimento nativista. Fiquei revoltado na entrevista: “É um absurdo que eu fique reprovado por uma empresa nacional, por não saber uma língua estrangeira.” Hoje eu entendo mais ou menos, mas, naquela época, eu não conseguia assimilar a razão de eu não ter sido admitido na Petrobras por não ter proficiência em inglês, numa empresa nacional. Achava aquilo uma agressão à cidadania. Hoje, eu entendo que, se não tivesse conhecimento de inglês, eu não teria condições de manter os equipamentos, porque os manuais eram todos em inglês. Mas não engoli isso fácil, não. Fiquei muito chateado, porque o melhor salário era o da Petrobrás. O segundo melhor salário era o da Vale do Rio Doce. Para vocês terem um idéia, eu até trouxe o contracheque. Não é nem contracheque, é envelope de pagamento. A gente recebia, era um trem pagador. Enquanto o salário mínimo de engenheiro estava, na época, em torno de uns 165 milhões... Eu acho que era o número. Não sei se o número era milhões ou mil cruzeiros. A Vale pagava, já na época, 300 e pouco, 325. Bom, tinha esse aspecto, o melhor salário. E eu precisava de dinheiro para poder complementar o orçamento da minha casa. Eu sabia que, quanto maior o salário, melhor. Tinha um outro aspecto que eu aprendi lendo em outros livros, que santo de casa não faz milagre. O que significa isso? É mais ou menos a história do sucesso da maioria dos imigrantes. Quando você vai para uma outra cidade, para um outro local onde as pessoas não te conhecem, você não tem origem, você é obrigado a adquirir uma identidade que você mesmo vai criar. Trabalhar, se desenvolver e crescer. E pior é que o interessante que, de repente, aquilo tudo passou e você esquece. Você vira uma outra pessoa e as oportunidades vão aparecendo. Impressionante! Agora, quando você fica na mesma cidade... Por favor, eu não estou aqui querendo influenciar ninguém para abandonar o Rio de Janeiro. Mas quando você fica na mesma cidade junto com os seus pais, dentro de casa, naquele mesmo ambiente, você se acomoda um pouco naquela situação. Começa a entrar aquele dinheiro, você se acomoda e fala: “Está bem. Estou morando aqui, não tenho despesa nenhuma. Comida eu tenho de graça, empregada eu tenho de graça, não sei o quê... é tudo de graça.” Em relação aos seus amigos, o seu padrão aumenta em razão do seu salário. Então, você tem... Vamos dizer assim, as suas referências permanecem. Você sobe e você acha que aquilo atingiu. E quando você se translada para um outro universo, você muda as suas referências. Você começa a ver outras referências. Você começa a estabelecer o que, hoje, é um termo que se usa muito: bem te marque. Você começa a estabelecer metas diferentes daquelas que você tinha antes. Você começa a ver pessoas que tiveram uma vida simples e subiram, conseguiram subir. E por que você não pode subir também? Aí, você começa a ver que há possibilidade de você chegar lá e começa, então, a adquirir condições para isso. Porque você não tem a retaguarda política. É o meu caso. Eu tinha retaguarda política, eu não tinha ninguém.
P/1- Mas isso significava ir para outra cidade, então. E para onde seria?
R- Seria uma outra cidade. E um dia eu pensei com meus botões: “Como é que eu posso subir nessa empresa? Sem pisar no pescoço de ninguém, é claro. Se eu não tenho retaguarda política. É aprendendo tudo, tudo! Eu sou engenheiro mecânico, mas vou entender tudo de custo, vou entender tudo de gerência de material, tudo sobre gerência pessoal.” Eu ia nas pessoas... Teve um professor, o Bráulio, que foi o homem que... Não sei se esse homem merecia passar por esse sistema, ser entrevistado aqui…. Que foi o homem que implantou o plano de (cargos e salários?). Eu dizia: “Professor Bráulio, o senhor tem que me explicar como é que funciona um plano de cargos e salários. Qual é a filosofia, como é que se faz isso, como é que se constrói, como é que se monta, qual é a consistência dele? Como é que você pode chegar numa empresa com 20 mil, 30 mil pessoas, distribuir tarefas, agrupar essas pessoas por cargos, por isso, por aquilo? Você dar salários e você ter isso tudo sem conflitos, dentro de carreiras planejadas. Me explica essa mágica?” Ele me ensinou e eu aprendi. “Na área de material, como é que você faz? Como é que você gerencia 165 mil itens de material distribuído em 30 almoxarifados? E são materiais... Como é que você consegue ter tudo aquilo sob controle, sem ter que estar inventariando permanentemente?” Custos, você tem centenas e centenas de procedimentos que geram custos. E todos eles são identificados por quem faz, como foi feito, quanto custou, quanto tempo levou e qual o material que foi aplicado. Então: “Quando você tem aqueles centros de custos, como é que você canaliza?” Como é toda a filosofia de custos. Essas coisas, independentemente das minhas atribuições como o chefe da oficina... Eu era chefe da oficina.
P/1- Aonde?
R- Em Governador Valadares.
P/1- Na estrada de ferro?
R- Na estrada de ferro Vitória-Minas. Aí, eu me interessei por isso e quis estudar. Resultado: acumulei conhecimentos, o velho conceito do vovô Augusto Camacho. Quando surgiu uma necessidade maior na empresa e disse: “Olha, eu estou precisando de uma cara aqui que conheça procedimentos operacionais e, também, conheça isso.” “Aquele cara conhece.” Foram surgindo várias oportunidades e eu aproveitei quase todas.
P/1- O senhor partiu, então, para a área mais administrativa?
R- Não, eu fiquei na área técnica durante muito tempo, mas sempre lendo. Era um chato, mesmo. O professor Bráulio dizia assim: “Eu não posso te receber na hora do expediente que eu não tenho muito tempo.”, “O senhor está em qual hotel?”, eu disse. “Eu estou no hotel tal.” “Depois do jantar, das nove às dez, dá?” Ele falou: “Dá.” “Então, das nove às dez eu estarei lá.” Ele falou que aí me explicava tudo, direitinho. “Eu quero aprender isso.” Ele falou: “Por que?” Eu falei: “Não sei, uma dia vai ser necessário.” Teve uma colega, o Alceu, que era um profundo conhecedor de toda a sistemática de custos. Fiz a mesma coisa com o Alceu e o Alceu devia ter uma raiva de mim dos diabos. Eu falei: “Enquanto eu não entender todos esses procedimentos de sistema de custos, apropriações, código de apropriação, não sei o quê, boletim de apropriação, me contarem como é que é isso... Enquanto eu não entender essas coisas, eu vou te encher, Alceu.” Até que eu não sou um expert no assunto, mas conheci o suficiente para me permitir, depois, acumular conhecimentos e fazer carreira na empresa.
P/1- Seu Mariano, a gente podia ressaltar... O senhor falou que trabalhou anos na parte técnica e, também, trabalhou como superintendente, chegou a superintendente da administração.
R- E da ferrovia, também.
P/1- E da ferrovia também, exatamente. Na parte técnica, o que o senhor ressaltaria nesses anos?
R- O que aconteceu comigo e com várias pessoas... Eu entrei na Vale num período muito bom, ótimo. Foi um período ótimo da empresa.
P/1- Devido a...
R- A Vale, na administração anterior, eles identificaram uma determinada potencialidade. Porque a Vale do Rio Doce, na sua história, tem patamares muito bem definidos. A primeira parte importante dela... Eu não conheço detalhes, só a própria constituição como empresa, que foi um processo estrategicamente, muito bem montado. Na verdade, nós não éramos donos absolutamente de nada. Quem era dono da mina eram os ingleses, então, a concessão da ferrovia era quase que uma reserva de mercado. A Vale passou por um processo desde de 1901, da criação da estrada de ferro Vitória-Minas. Aquela ânsia dos mineiros de construir um grande pólo siderúrgico em Minas Gerais forçado pela Escola de Minas, aquelas coisas todas que tinham, aquela pressão de Minas Gerais, a importância de Minas Gerais no contexto, na economia nacional, isso veio bater exatamente no governo Getúlio Vargas. O Getúlio Vargas foi um homem extraordinário e, com aqueles poderes todos adquiridos com o Estado Novo, ele criou a Companhia Siderúrgica Nacional. Contrariando os mineiros, que queriam a siderurgia lá. E criou a Vale do Rio Doce em 1942. A Vale do Rio Doce foi criada em 1942. Outras pessoas devem ter repetido aqui, mas, num esforço de guerra, no sentido de fornecer um milhão e 500 mil tonelada de minério de ferro para os americanos e os ingleses... A sua criação foi, mais ou menos, assim. Os ingleses cederam as minas, eles eram os proprietários da área de mineração. Os americanos fizeram um financiamento. O Brasil entrou com a ferrovia e criaram a Vale do Rio Doce para fornecer 1 milhão e 500 mil tonelada de minério de ferro, naquele esforço. Mas a guerra acabou em 45 e nem sequer houve exportação nesse sentido. Desse período de 42 até praticamente a década de 50, a Vale ficou se reestruturando, se montando, em razão daqueles dinheiros havidos pelos americanos. A presença americana foi muito forte. Até para ser nacionalizada houve ações estratégicas de pessoas brasileiras que defenderam, senão, ela estaria... Os americanos emprestaram o dinheiro, mas eles queriam a presidência da empresa, a diretoria de obras e a diretoria de suprimento. E o material todo fornecido pelos Estados Unidos. Seria a presença americana total. Eles teriam duas diretorias, uma presidência, teriam o contrato de remodelação porque o dinheiro era deles, e mais o fornecimento de materiais. Isso foi aceito inicialmente, mas depois, por uma estratégia muito bem montada, foi desmontada e passou tudo para o controle de brasileiros. Então, nessa fase, a empresa foi se montando. Logo em seguida, na década de 50, ela começou a criar sua própria identidade, quando ela fez... As empresas, segundo os autores, passam o que eles chamam de pontos de inflexão. Pontos de inflexão, numa empresa, são circunstâncias que alteram a forma da empresa operar. A Vale tem vários pontos de inflexões. O último, agora, foi a privatização. Um grande ponto de inflexão na Vale do Rio Doce, na história da Vale, que eu considero... Outras pessoas poderão considerar outros. Foi quando ela assumiu a sua própria comercialização. Quando ela deixou de comercializar minério através tradings, que tanto vendiam o minério dela como o de concorrentes e talvez, nessas condições, essas tradings não iriam vender tanto minério da Vale assim. Quando ela assumiu a sua própria comercialização, ela entrou num mundo muito grande que era o mercado transoceânico. Exatamente numa fase crítica do mundo, que foi o crescimento da indústria automobilística e da famosa linha branca, geladeiras, máquina de lavar. Deu uma demanda de aço enorme no mundo inteiro e começaram a aparecer siderurgia por todos os lados. O aço passou a ser um produto... Naquela época, foi a mola da economia, tal como hoje é a informação ou a comunicação. A mola era o aço, como foi ferrovia em 1700. Então, nessa hora, a Vale entrou fazendo a sua própria comercialização e descobriu aquele potencial imenso. As pessoas começaram a mexer com isso e começaram a trabalhar na empresa. Verificaram que, do jeito que ela estava sendo constituída, do jeito que ela era, ela não tinha base sólida, consistente suficiente para enfrentar todo o desafio. Ela fechou, praticamente, a década de 50 com uma exportação em torno de (3 e meio?), 4 milhões de toneladas, mas já com uma nova política. Toda a estrutura da empresa era, vamos dizer assim, comandada por pessoas de culturas diferentes, porque uma forte influência inglesa na Mina, uma forte influência do pessoal da ferrovia, que era a antiga Bahia-Minas, da Vitória-Minas... Então, não era uma cultura integrada, era uma cultura formada por pessoas que tinham origens diferentes. Nessa época, foi contratada uma grande empresa de consultoria chamada (inaudível). Essa empresa, o que ela fez foi o seguinte. Ela fez um novo conceito operacional da ferrovia. Ela fez um conceito de um projeto integrado de produção, transporte e embarque no porto, operando como se fosse uma coisa só, tirando aquela característica feudal. A (inaudível) eram unidades independentes. E introduzindo conceitos modernos.
P/1- O senhor sabe em que ano, especificamente?
R- O trabalho dela foi 1962, por aí, 63. E previu uma injeção de recursos humanos. O trabalho da (Sofferail?) tinha três aportes importantes. Um aporte de hardware, de novos equipamentos, novas tecnologias. Um aporte de software, de novos procedimentos, novos métodos de trabalhar. E um aporte de conhecimentos, o Vmware. Nisso, estava embutido trazer um grupo de engenheiros grande, bem grande... Na época, era uma admissão... Também, naquele calote, o Juscelino Kubitschek, o Brasil crescendo... E uma quantidade que foi em torno de uns 40 ou 50 engenheiros. E pessoas... Quem já participou dessa estratégia... Essa estratégia já foi montada com Eliezer Batista. Já foi ele o homem comandando essa estratégia, foi na presidência dele isso. Lá atrás já estava ele... Eles observaram também o seguinte. Que, se houve uma multiplicidade de currículos... Não sei quem foi o estrategista disso, mas atribuem a Eliezer Batista. Porque o sujeito estudava, por exemplo, em São Paulo. As escolas de São Paulo eram mais forte em lógica. Quem estudava na PUC aqui, no Rio, eram ciências mais humanas. Quem estudava na Nacional, eram mais o pessoal que dá cálculo. Então, eles fizeram o seguinte: “Vamos pegar engenheiros da Bahia, de Minas Gerais, do Paraná, de São Paulo, Rio de Janeiro e vários lugares do Brasil e vamos trazer para a empresa. Primeira coisa, não vamos formar corriola, que é uma coisa muito desagradável, já um fenômeno de certo modo conhecido em algumas empresas do Brasil. Aquelas corriolas que se sentem dona da empresa, está certo? Não vamos formar corriola.” E a Vale já tinha passado por um processo difícil, porque o grupo de Escola de Minas de Ouro Preto tinha criado algum problema na mineração. Por que, também, considerando que a mineração era uma empresa deles e independente. E conta-se, não sei se o certo é isso, que o Eliezer, já como presidente, quando ele percebeu que eles queria fazer uma administração paralela, não pensou duas vezes. Demitiu todo mundo, não ficou um para contar para contar história. E botou gente nova, mas de vários lugares para evitar que se formassem esses grupinhos, essas coisas. Não sei se foi ele mesmo, mas que foi na administração dele, foi. E como é que foi a ponto de chegar a isso, eu não sei. Ele colocou lá o doutor Mascarenhas para tomar conta da mina e admitiu um grande número. Nessa leva foram várias pessoas, inclusive eu. Eles chegaram na empresa... Nós pegamos de cara o relatório da Soffer. No meu caso, a Sofferail era só em relação à ferrovia e a Soffermins era em relação à mina. Eu peguei para trabalhar, especificamente, para implantar naquilo que a Sofferail definiu.
P/1- Isso em que ano, seu Mariano?
R- 64.
P/2- Quando o senhor entra, né?
R- Quando eu entrei, está certo? E outras pessoas também entraram. Além disso, eles contrataram o professor Bráulio para organizar a empresa, porque a empresa não tinha nem organograma. Ela tinha essas estruturas montadas dessa forma, porque aqui era o chefe, o supervisor, o encarregado, feito tudo em cima da perna. Mas não tinha uma estrutura de organograma que permitisse você ter um controle, ter conhecimento de toda a estrutura. O professor Bráulio não era só organograma, é toda a estrutura de salário, porque a companhia não tinha cargos profissionais. Ou o cara era artífice ou trabalhador, só tinha duas funções. Ou ele tinha uma profissão que era identificada na relação das profissões da CLT... Vamos supor, se ele era um maquinista, um agente da estação, era uma profissão identificada. Ou ele era artífice ou trabalhador. Ele podia ser mecânico, eletricista, o que fosse, ele era artífice ou trabalhador. Artífice era o que era mais bem remunerado. Ele era artífice, vamos supor, padrão oito, comissionado no padrão 21. Era uns negócios assim. Eu era um artífice comissionado ou era um trabalhador. Que o trabalhador ia desde os serviços não-qualificados até os semi-qualificados, até o ajudante, mas o nome era trabalhador. Só tinham essas duas categorias na empresa. Então, veio o professor Bráulio e ele fez o seguinte. Ele separou isso tudo, agrupou, separou todas as atividades por afinidade laboral. Pegaram as pessoas que tinha essa afinidade laboral, formou... Ele chamava isso de um agrupamento funcional. Nesse agrupamento funcional, ele tinha um ranking) de cargos. Então, nesse agrupamento funcional, ele separava por especialidades o mecânico, eletricista, civil. Ele fez o ranking, que o cara podia sair como ajudante de mecânica até supervisor de mecânica. Estabeleceu esses rankings todos e, depois, por um processo de pontos, ele fez a profissiografia de cada cargo. Dentro dessa profissiografia, estabeleceu o sistema de integração vertical e horizontal, fez o equilíbrio e, depois, foi a fase mais difícil para nós. Nós tivemos que pegar todos os empregados, foi a nossa função, e enquadrar. Tinha um indivíduo que chamava-se artífice. Eu fazia o cadastro de capacitação dele, pegava a profissiografia do cargo, via qual era a mais próxima e fazia o enquadramento dele.
P/1- Isso o senhor em que função? Qual era o seu cargo?
R- Todo mundo foi obrigado a fazer. Eu era o chefe da oficina, eu fui obrigado a fazer de todos os 400 empregados que trabalhavam comigo. Eu tive que aprender toda a filosofia da estrutura de cargos para poder fazer o enquadramento certo, como todas as pessoas. Quem não aprendeu a estrutura do regulamento de cargos e salários, errou no enquadramento. Mas tinha uma comissão de enquadramento, que chamava, e o erro máximo... A empresa implantou tudo isso e só deu um erro de, mais ou menos, uns 5% e depois foi corrigido. As pessoas que acharam que o cargo foi errado, estavam prejudicados, prejudicou a sua carreira... Então, veja só, nós tínhamos um conceito operacional, tinha uma estrutura de organização que estava sendo implantada. Em paralelo, foi contratada uma empresa chamada Decotec, do professor Dias Leite, que foi ministro, que desenvolveu um sistema chamado SICOC, Sistema Integrado de Contabilidade e Orçamento de Custo. E esse SICOC usa, basicamente, o seguinte. Toda atividade onde é feita uma ação qualquer, onde ocorre uma ação, é um centro de responsabilidade. Vamos supor, aqui é um centro de responsabilidade. Toda atividade é um centro de custo. Você tem um centro de custo para um, para outro. Então, ele tem um centro de custo. Dentro de um centro de responsabilidade tem um centro de custo. Daquele centro de custo, você tem um detalhamento. Um gasta oxigênio, outro gasta combustível, outro gasta estopa. Você tem os gastos com o pessoal e com o material. Então, tem as apropriações e tem os boletins de apropriações que você faz dentro de cada centro de custo e dentro desse centro de responsabilidade. Ele fez esse centro de responsabilidade. Foram os mesmos códigos de organograma. Quer dizer, se eu tenho um setor dentro de uma oficina de sessão de solda, ele tem um código de organograma. Aquele código, vamos supor, é 30. O centro de responsabilidade também é 30. O que é que aconteceu? Casou a organização com toda a estrutura de custo e, a partir daí, você podia fazer gerenciamento. Se eu quisesse saber quais eram as despesas que ocorriam dentro de um determinado centro de responsabilidade, detalhada, eu teria apenas acessando ao sistema. Esse trabalho feito pela Decotec, que era uma empresa do professor Dias Leite, que foi ministro... Um homem também de uma capacidade extraordinária.
P/2- Presidente da Vale?
R- Ele foi presidente da Vale. Foi implantado isso e nós todos tivemos que aprender como é que funcionava isso. Porque passou a, também… Logo em seguida a isso, foi implantado um sistema de MAS (Maner and Information Sistem?), que era você tirar relatórios gerenciais desses relatórios do SICOC, para os gerentes tomarem decisões operacionais e outras. Foi uma fase muito boa no início da década de 60, que a empresa se organizou, criou oportunidade e, mais do que isso, cresceu. Começou a crescer, crescer. Então, as pessoas que já estavam na empresa, que detinham esses conhecimentos, foram tendo oportunidade. À medida que a empresa ia crescendo, elas eram convocadas para trabalhos desafiantes.
P/1- Seu Mariano, enfocando um pouquinho mais na sua história dentro da empresa. Nesse momento, então, o senhor tem oportunidade de crescer, de mudar de cargo, e o que o senhor assume?
R- Eu fui chefe... Nessa fase ainda, eu gostaria de citar alguma coisa. Essa fase foi uma fase que marcou todo mundo. Evidentemente, eu que vou contar aqui são coisas que ocorreram com quem trabalhou no interior. Talvez, na mina, foi um pouco igual. O escritório no Rio, aqui, era apenas um andar, no Edifício Novo Mundo, para vocês terem uma idéia. A Vale do Rio Doce, aqui, era pequenininha, 400 metros quadrados. Talvez, isso não tenha ocorrido muito em Vitória. Mas quem trabalhou no interior conheceu muito isso. Essas pessoas que trabalhavam na Vale, que foram enquadradas, que estavam nisso, foram pessoas que, como eu falei, humildes, moravam na… uma grande parte eram analfabetos. Então, surgiram uma série de problemas graves. Por exemplo, a empresa tinha dificuldade em fazer o pagamento... Eu trouxe até um envelope de pagamento para mostrar como é que era. O dinheiro era colocado dentro do envelope e um trem pagador percorria a linha e entregava às pessoas. Mas tinha problema de assalto, tinha que ter acompanhamento da polícia, tinha os problemas dos agiotas que iriam lá no trem tomar o dinheiro do empregado. Mal o cara recebia o envelope, o agiota já tomava. Tinha problema de tudo quanto era tipo. A empresa, então, decidiu fazer o pagamento através de banco. Mas tinha um problema, a quantidade de analfabeto era muito grande. Esses empregados analfabetos e, principalmente, dos serviços não-qualificados, era uma grande dificuldade, inclusive para efeito de enquadramento. Porque, às vezes o camarada era analfabeto, conhecia muito bem o seu serviço, era até encarregado, tinha até casos de supervisores, mas não sabia sequer assinar o nome. Ele não podia preencher um boletim de apropriação de mão-de-obra. Então, o que aconteceu? Isso foi no final de 64 e início de 65. A empresa entrou com um programa maciço de educação.
P/1- Alfabetização?
R- Alfabetização e educação básica. E, gozado, fez por ela própria. Ela contratou um especialista e fez por ela própria. O trabalho foi tão bem feito, com resultados tão excelentes, que passou a ser modelo para a Unesco, para ser implantado em outros países. Veio um homem da França, o Mister Fields, verificar o que a Vale fez. Ela se aproveitava das horas de trabalho, dos próprios documentos que alguns empregados... O que eu estou falando aconteceu comigo. Pode ser que algumas pessoas falem: “Isso eu não vi.” Mas aconteceu comigo. O empregado era alfabetizado e, em seguida, os próprios documentos com os quais ele ia trabalhar eram com que ele era treinado na sala de aula. Ele tinha que preencher, por exemplo, o boletim 501A, que é o boletim de apropriação de mão-de-obra, um BG52 para retirar o material do almoxarifado. Eles eram treinados naqueles próprios documentos de que estava escrito. O material de ensino era, também, o material de trabalho e a hora de aprender... O local de aprender era uma sala lá dentro das oficinas. Então, foi uma revolução que foi muito mais importante... Que o Brasil, nessa época, devido a esses projetos todos que estavam passando, criou até o Mobral e criou um outro local que chama PIPMO, que era um programa intensivo de preparação de mão-de-obra. Nenhum dos dois conseguiu um desempenho tão grande quanto esse feito pela Vale. A Vale inovou alfabetizando as pessoas dentro do local de trabalho, utilizando o mesmo material com o que o sujeito lida diariamente. Não veio com cartilhazinha, não sei o quê. Usou aquilo que é o trabalho diário e eles aprenderam. Foi possível, já em Fevereiro de 65, transferir as contas para os bancos. Ficou um ou dois casos só. E os empregados passaram a receber em banco. Então, foi uma transformação cultural que nós fomos encarregados de implantar. Eu lembro perfeitamente que o professor que conduzia isso, esse professor Talmo Luís, dizia assim: “Não conseguiremos nada se não houver o comprometimento de vocês. O chefe tem que estar comprometido com isso. Se não estiver, o empregado não vai se preocupar.” Nós estávamos presentes porque, primeiro, que era no horário de serviço e, segundo, que a gente queria que aquilo ocorresse o mais rápido possível. A empresa tinha um cronograma para transferir o pagamento para os bancos, que era um problema que estava desgastando muito a empresa administrativamente, e tinha que implantar os instrumentos. Porque esse homens é que formam a base de dados de todo o sistema gerencial. Se eles não preenchessem aqueles documentos básicos perfeitamente, as informações que entrariam no computador... Naquele tempo já tinha o CPD. Elas entrariam erradas e toda a contabilidade estaria errada. Foi uma fase muito importante. E em paralelo, a empresa crescendo, com metas de crescimento. Já não eram mais seis milhões e meio de tonelada, já se falava em 20 milhões de tonelada e já estava terminado a construção de Tubarão. Tubarão entrou em 65, já começou a operar. Aí, vem o que eu chamo... Eu disse para vocês que eu considero que o primeiro ponto de inflexão da Vale foi ela fazer a sua própria comercialização. Para mim, o segundo ponto de inflexão que, aliás... A Vale só é a Vale que é hoje... Ela não seria essa Vale se não tivesse construído Tubarão e criado a Docenave. Por quê? Porque o minério de ferro tem no mundo inteiro, em qualidade até competitiva com o nosso. Nós estamos em desvantagem com os mercados e os navios que predominavam na época eram navios pequenos. A empresa não tinha condição de ser competitiva nesses mercados distantes. Com Tubarão, ela poderia receber navios grandes, até 230 mil toneladas. Mas não tinha armadores interessados em construir esses navios. Porque os navios capesize, que são chamados esses navios grandes, eram os navios praticamente só oil, só navios para petróleo. Em razão disso, foi desenvolvido o (aoil?), que é o navio que pega minério e óleo. Ele poderia levar o minério e trazer o petróleo. Foi a grande coisa. Para fomentar esse mercado, foi criada a Docenave. A Docenave, então, entrou nesse mercado de frete transoceânico com navios de grande capacidade. Os portos dos clientes foram... Aí, entrou de novo Eliezer Batista. Foi convencer os clientes que também deveriam adequar seus portos. Essa foi a grande visão que o doutor Eliezer tem do mundo. Ele foi a vários países, inclusive Iugoslávia, o general Quito. Foi em várias no Japão convencer de que, se eles tivessem portos para receberem esses navios grandes, eles teriam maior quantidade, teriam garantia de fornecimento, preços menores, competitividade. A Vale começou a crescer violentamente, a partir de Tubarão. Logo em seguida, em 69, o mercado começou a ser mais exigente qualitativamente. A empresa, então, começou a fazer as usinas de pelotização, que nada mais era que um beneficiamento, agregando mais valores. E ela explodiu, começou a ganhar mercado. Os fatos anteriores da Vale mostram o seguinte, que a Vale estava como uma empresa que pagava bem, excelentes benefícios, todos os empregados tinham... As escolas todas da região pertenciam à empresa. Ela sempre cuidou dos empregados, o serviço de assistência médica da empresa era extraordinário, muito bom. Em todas as cidades, ela tinha médicos próprios. Então, o empregado da Vale era um empregado que gostava da empresa. Não há registro de greve. O único registro que teve, que existiu um arremedo de greve foi em 1947. Passou por todo aquele período da República Sindical do Brasil, que tinha greve pipocando em tudo quanto é lado, que resultou na Revolução. Passou por aquilo sem nenhuma greve, os empregados felizes, satisfeitos. E uma coisa interessante: alguns especialistas em Ciência do Comportamento diz que o maior fator de agregação do homem é o infortúnio, que as grandes amizades são forjadas no infortúnio. Eu posso lhe dar, como exemplo, a simples amizade de escola, banco de escola. A gente não esquece nunca porque ela foi forjada no infortúnio. O colega de cadeia e outras... O infortúnio, realmente... Até nós vimos um programa na televisão agora, o No Limite, que as pessoas se tornaram grandes amigas. Realmente, o infortúnio tem um poder de agregação muito grande. No latim diz que asinus asinum fricat, quase o outro, que as pessoas se procuram, não? Então, as dificuldades pelas quais a empresa passava, operacionais, com essas metas que eram verdadeiros desafios... Era quase que, operacionalmente, impossível de cumprirmos. E acrescente-se aí um poder violento de convencimento dos dirigentes de acreditar nos empregados. Cada dia chegavam... As informações chegavam via telex, que era o meio de comunicação. Não tinha nem sequer telefone para isso. As informações chegavam, eram desafios em cima de desafios. As pessoas se agregaram e formou uma grande família. Vocês já devem ter ouvido, aqui, vários depoimentos que os empregados da Vale não eram nem melhor nem pior do que qualquer outro ser humano na região, mas eram diferentes. Eles, internamente, era uma grande família. Brigavam um com o outro feito uma desgraça. Tinha que ver as... Nós chamávamos aquilo de guerras intestinais. As guerras intestinais eram terríveis, mas que alguém de fora se metesse... As metas eram perseguidas e todo mundo vibrava com aquilo, havia um entusiasmo. E também era remunerado, recebia 15, 16 salários por ano. A Vale era uma empresa de economia mista, juros adicionados ao Ministério de Minas e Energia, mas o Estado não tinha nenhuma ação. Não tinha, naquele tempo, Secretaria de Controle das Estatais. A diretoria tinha um poder muito grande de decidir o que ele bem queria em termos de salário, remuneração, gratificações, política de saúde e de investimentos. Os homens que administravam a Vale, hoje seriam considerados irresponsáveis, mas eram ousados. Todos, Eliezer Batista, João Carlos Linhares, doutor Marinho, eles eram ousados. Para vocês terem uma idéia de ousadia, a mina precisava de caminhões fora de estrada, caminhões grandes, 19 caminhões, eu lembro como se fosse hoje. E seriam financiados pelo Exebank, um banco americano. Os caminhões já estavam na mina trabalhando, já estavam quebrados e o financiamento ainda não tinha sido aprovado. Porque a Vale, com uma credibilidade muito grande, e ela tinha um escritório no exterior pelo qual passavam todas... Uma inteligência muito grande do Rony Lyrio, que é o presidente da SulAmérica hoje. O Rony é um cara muito inteligente, ele fez o nosso escritório em Nova Iorque. Era por onde passava todas as receitas da Vale. Era uma empresa pequena, com dez empregados, com uma receita de milhões e milhões. Era a melhor empresa americana e tinha um crédito bancário tremendo. Com esse crédito bancário, ele negociava qualquer coisa. A Vale comprava e negociava nessa base, de ela ter garantias de mercado. Os bancos americanos garantiam suas operações a ponto de ela ter equipamentos já funcionando, já operando e, ainda, o financiamento está sendo discutido. Veja só. Ela fez vários trabalhos iguais a esse. Por exemplo, para fazer grandes obras, ela comprou vários equipamentos, colocou nas obras, entregando às empreiteiras para abaixar seus custos. Coisas que, hoje, seria praticamente impossível. Eu posso citar um outro exemplo aqui, esse aconteceu comigo. Nós precisávamos comprar dois mil vagões. Vê se isso, hoje, seria possível no Brasil. Nessa época, eu era chefe do setor de suprimentos. Fui autorizado a procurar o doutor Pimentel, dono dessa fábrica Santa Matilde, no Estado do Rio, e, simplesmente, comprar toda a produção da fábrica. Eu falei: “Doutor Pimentel, o senhor chama o contador, vê quanto é as suas receitas, suas despesas. O senhor fixa um overhead, um lucro seu, e nós vamos comprar a sua produção.” Ele disse que só podia produzir 80 vagões por mês. Nós precisávamos aquilo de um ano, era pouco, então, nós compramos da Mafesa. Fomos na Mafesa do doutor Muylaert, fizemos a mesma coisa, discutimos um valor. Para vocês terem uma idéia, um vagão, na época, estaria custando em torno de 90 mil dólares comprado nessas condições. Quer dizer, nós compramos um fábrica, bancamos todas as despesas da fábrica e, ainda, pagamos um lucro para ele.
P/1- Que ano isso, seu Mariano?
R- Foi em 1971, 72. Os vagões saíram em torno de 60 mil dólares, a Vale ganhou milhões. A Vale ia gastar 200 milhões de dólares, praticamente, nessas compras todas. E gastou, no máximo, acho que uns 140 milhões de dólares. Como os dirigentes eram ousados! Apesar da empresa ser juros adicionados no Ministério de Minas e Energia. Mas não tinha esse controle. O controle veio mais tarde, quando foi criada a Sest. Aí, então, começou a dificultar um pouco, que acabou descambando na privatização porque os controles foram exagerados. Esses homens foram importantes e transferiram, para aqueles que estavam no campo, essa mentalidade. Que a empresa tinha metas, tinha desafios e que, se eles quisessem a parte deles, os chefes daqui fariam a sua parte e seriam recompensados. Então, não houve um caso sequer de um compromisso assumido pela Vale que não tivesse sido cumprido, apesar dos problemas que ela tinha enfrentado. Teoricamente, em alguns casos ela não poderia assumir determinados compromissos. Enquanto algumas empresas mineradoras vendiam dois, três tipos de minério, ela venda à la carte. Se esteve aqui o doutor João Carlos Linhares, ela ia ter falado isso. O cara diz: “Eu quero minério assim.” Tem esse minério, acabou. E falar para a produção: “Se virem”. O pessoal da produção: “Mas isso é um absurdo. Vai ser complexo demais para produzir”; “Não interessa. Já está vendido e nós vamos entregar esse minério”. E entregamos, mesmo. O doutor Linhares deve ter contado isso aqui. Ele vendia o minério e não queria saber, a produção tinha que fazer aquilo. Ele não fixou assim: “Eu só tenho os produtos tais, tais, tais, e eu coloco, disponibilizo isso. Quem não quer, não leva. Não, o que você quer, eu levo.” Quando a Vale entrou nisso, veja só. A Vale passou por esse processo que eu chamo de o segundo ponto de inflexão. O terceiro ponto de inflexão, na minha opinião, foi a automação e a informatização. Aí, foi um negócio, porque foi um choque cultural violento contra tudo aquilo que a gente...
P/1- Só um minutinho, por favor.
R- O outro ponto de inflexão que eu achei importante na Vale, muito importante, foi a informatização. Porque a informatização e a automação foi um choque cultural muito grande, porque é uma empresa cuja a cultura era viver da participação dos seus empregados. Participação direta, mesmo, dos empregados. Não há um empregado... Primeiro, porque todos nós temos consciência que aquilo não tinha dono. Não tem alguém que venha aqui que diga que a Vale tivesse um dono. O dono éramos nós, isso era uma consciência generalizada. Não era minha, não. De todo mundo. Houve até um episódio interessante de empregado dizer ao próprio chefe: “O senhor é empregado igual a mim, o seu número de matrícula é o meu. Aqui, o senhor não é, o senhor está chefe. Amanhã, eu poderei estar aí, entendeu?” (risos).
P/1- Olha, que bacana! (risos).
R- “Nós todos, aqui, todo mundo somos iguais, absolutamente iguais.” Essa consciência existia. A informatização veio rompendo coisas assim. Por exemplo, o setor de estatística. Tinham 40 pessoas que faziam estatísticas, estatísticas diversas para poder fazer o rateio de custos. Ninguém, o computador faz tudo. Contabilidade, tudo automatizado. Controle de material, sistemas gerenciais, todos aqueles sistemas manualizados. O sistema de coleta de dados, o cara vai no campo com a caderneta, anotando isso. Você tem, hoje, data collect, sistemas que você... Locomotivas, você tinha que abrir um diagrama unifilar, o eletricista ia lá no diagrama unifilar verificar qual era o defeito: “Aqui passa por um relé, passa por outro, isso aqui, não sei o quê lá”. Agora, não. Você tem um microprocessador que diz onde está o defeito. Então, a automação, eu poderia dar 500 exemplos disso aqui. Principalmente na operação de trens foi tremenda, porque toda a operação que era manual de licenciar o trem, fazer o trem andar, é tudo automatizado. Essas tecnologias todas... E a Vale sempre teve uma característica. O doutor Linhares que deve ter estado aqui, ele dizia o seguinte: “Nós não pecamos por excesso de tecnologia. Vamos investir.” Aliás, há pouco tempo, eu estava lendo uma entrevista que o doutor Eliezer teve com o presidente Fernando Henrique e ele estava lamentando isso: “A Vale não mediu esforços para desenvolvimento tecnológico. Tanto aportando recursos, como desenvolvendo as pessoas.” Todo empregado da Vale, como eu, tivemos oportunidades. Poucos deles, não. E conhecem o mundo inteiro. Onde tinham atividade igual a nossa, se tinha alguma coisa importante para conhecer na Austrália, na China, no Japão, nos Estados Unidos, onde fosse, África do Sul, a gente iria para lá. A Vale não media sacrifício em nos manter fora do país quatro, cinco, até dois, três anos se necessário, se era para absorver novos conhecimentos. Várias pessoas passaram por isso, várias, porque eu também tive essa oportunidade. Hoje, as despesas com treinamento... Eram centros de treinamento. A despesa do treinamento per capto é muito grande. Esse choque, realmente, afetou muito aos empregados, porque muitos deles não tiveram capacidade. Como hoje já está havendo em função da filosofia. A informatização foi isso. Só que a informatização evoluiu que, agora, é o quarto patamar, que é a telemática. É você juntar a telecomunicações com informática e utilizar aquilo para gerenciar a empresa. Quando isso começou a evoluir, e saiu de um sistema que era o que a gente chamava... Grandes computadores, mainframes, você tinha todo um sistema de processamento, um computador grande em Vitória, outro em São Luís, e você mandava todas aquelas informações, criava aquela base dados, processava, depois retornava. E, agora, você vem com uma filosofia totalmente diferente, em que você tem processamento descentralizado, desenvolvido dentro de um ambiente computacional para atender, exclusivamente, àquelas necessidades e operando em rede, se desenvolvendo. Cada um se desenvolve de acordo com as suas necessidades, os sistemas que acham que é mais adequado a si próprio. O negócio explodiu e, em cima disso, você veio com a globalização, com a internet, onde, antigamente, para absorver conhecimentos externos,
você tinha que ir lá ficar seis meses, um ano num país. Hoje, você troca direto essa informação. Então, o negócio explodiu de tal forma e a empresa está seguindo isso. Não pára, ela continua seguindo isso. Hoje, todo empregado, em qualquer função, a mais simples, trabalha com um terminal e ele acessa tudo quanto é informações. As informações são bastante democratizadas, ele tem acesso a informações de todos os tipos. Ela não mede sacrifício para isso. Ela facilitou bastante para que os empregados pudessem trabalhar. É uma nova empresa, com um novo perfil. Ela foi, então, obrigada a implantar programas de incentivos à aposentadoria, depois demissão voluntária, para que aqueles que estavam tendo dificuldades de viver na nova empresa pudessem, sem o mínimo de constrangimento, sair dali e ter uma vida saudável. Porque sempre ele recebia um prêmio, um valor referente ao período que ele trabalhou na empresa, como se fosse uma compensação pecuniária pelo sacrifício, pelo que ele deu. E, quando estivesse em condições de aposentar, se aposenta. Os que não têm condições de se aposentar ainda puderam trabalhar no mercado, porque eles estão incompatíveis com o nível da empresa, mas estão plenamente compatíveis com o restante do país, com a maioria dos países. A maioria deles, que não tiveram tempo de aposentadoria, se empregaram, então não houve comoção social. Há algumas insatisfações, sempre existem. Isso, para mim, foi o grande ponto de inflexão que ela passou por último, que foi a era da informação. Agora, ela está entrando... Foi privatizada, consequentemente, para poder entrar nesse mercado com maiores liberdades, sem a visão do Estado. Isso é muito importante. Adquirir melhores condições de gerenciar os seus negócios, entrar e sair de negócios com velocidade. Hoje, o presidente da empresa pode chegar e dizer: “Eu vou me desfazer dos ativos relativo à celulose.” Não causa trauma, mas, se fosse empresa do Estado, Deus me livre! Tinha até passeata na rua que não podia vender, na porta da Vale. Hoje, ele pode entrar e sair, modificar seus ativos, definir novas áreas de negócios, se concentrar, comprar uma nova empresa. A Vale adquiriu uma flexibilidade muito grande e necessária para o país, muito importante para o país. Ela tem capacidade de endividamento, tem dinheiro, tem caixa para essas coisas todas e ela tem condição de alavancar muita coisa para o país. E está fazendo. Realmente, a privatização veio nesse sentido. Agrediu muitas pessoas porque não estavam preparadas para isso. Porque aquela cultura da década de 60... Foi o grande choque. E outras coisas mais virão aí pela frente, ninguém sabe o que vai acontecer com a Vale. O que eu acho é que ela vai se transformar numa empresa globalizada, ligada à atividade de logística. Ela vai se globalizar como logística. Daqui há uns dez anos, mais ou menos, ela estará globalizada. Essa é minha opinião. E vai ficar concentrada em minério de ferro. Vai ter outros negócios, energia, tal, que ela necessita e que tem atratividade. Como é que a gente se encaixa nisso? Eu quero iniciar com essa pergunta. Como você vê, a Vale é uma empresa que nasceu com dificuldades iniciais. Tomou identidade na década de 40, no governo Getúlio Vargas. Foi crescendo, crescendo e chegou a esse ponto. As pessoas que entraram na década de 60, como eu, tiveram que aprender essas coisas básicas. Essas coisas básicas são muito importantes. Quem entra hoje não tem essa chance. Porque, quando você conhece o processo... Se você conhece o processo, você tem capacidade de intervir no processo e o processo não muda. Se você perguntar como a sua mãe faz o bolo em casa, ela faz igualzinho a tua avó fazia, a tua bisavó fazia. O processo é o mesmo. Se você não conhece o processo, não tem jeito. Você tem que comprar o bolo na delicatessen, até mais barato. Mas você não pode desconhecer o conhecimento de quem conhece o processo. Então todas essas pessoas, por conhecerem o processo, tiveram grandes oportunidades. No meu caso, em particular, foi o seguinte. Eu trabalhei muito tempo na mecânica de vagões e locomotivas e enchi muito o saco do professor Bráulio quando ele estava implantando o plano de cargos e salários. Chateei muito, ia para o hotel. De repente, o diretor administrativo da Vale precisou ser deslocado, porque estava sendo feito o estudo de viabilidade do Projeto Carajás. Precisou ser deslocado para ficar em Belém do Pará acompanhando o projeto. O doutor Pragano. Veio um outro superintendente para ocupar o lugar dele e perguntaram ao professor Bráulio se não havia chance de ter alguém que pudesse colaborar na área administrativa. Ele falou: “Tem um cara da oficina que conhece o negócio profundamente. Apesar de ser engenheiro, trabalhar na oficina, ele conhece profundamente.” Eu fui sondado para isso. Quando eu fui sondado para isso, me despertou uma coisa que nunca tinha despertado até então, que era mudar de carreira. Eu estava feliz, gostava da mecânica, convivia muito bem com os empregados. Aquela amizade forjada no infortúnio. Conhecia todo mundo pelo nome, sabia quantos filhos tinha. Via que estava me acomodando naquilo. A verdade é isso, estava me acomodando naquilo. Ao receber esse... Fiquei mordido pela mosca azul, falei: “Opa!” Nessa mesma época, passou um diretor da Esso, que era nosso cliente. Nós éramos cliente da Esso porque comprávamos óleo lubrificante e combustível. E ele nosso cliente, porque nós transportávamos para ele pela ferrovia. Começamos a conversar sobre manutenção de vagões e ele me convidou para trabalhar na Esso, na parte de distribuição de combustível. Naquele tempo, eles usavam muito a ferrovia para a distribuição. Olha, eu tinha um convite de uma pessoa para eu ir trabalhar no Rio pela Vale e tinha um convite da Esso. A Esso me ofereceu um mundo, como os americanos oferecem. Eu falei: “Eu vou sair da empresa.” Não sei se foi uma coincidência, eu não fiz como golpe, não fiz nada. Eu falei: “Eu vou sair da empresa e vou trabalhar na Esso.” E fui, falei ao nosso diretor, que era o doutor Linhares, que eu ia sair da empresa e ia trabalhar na Esso. Eu tinha sido despertado, porque eu tinha outros conhecimentos além daqueles de ser apenas um mecânico. Ele falou: “Não, você vem para o meu gabinete. Você vai trabalhar comigo.” Eu falei: “Mas o professor Bráulio me indicou para a área administrativa.” “Não, esquece o Bráulio, deixa ele para lá. Você vai trabalhar aqui.” Ele era autocrata, mesmo, desses caras que... “Você vai ficar aqui.”; “Tudo bem. Então, eu venho para cá”. Comecei a trabalhar no gabinete dele para assessorá-lo na parte econômica e financeira, que era o outro sistema, o SICOC, parte de orçamento. Principalmente orçamento de investimentos. Aquisições, ampliações, construções que a Companhia estava fazendo, que era uma obra monstruosa. Naquele tempo, era mais de 700 milhões de dólares. Hoje, seria uns dois bi, mas, naquela época, com a inflação do dólar... Uns 700 milhões de dólares. Comecei a me entusiasmar com esse assessoramento. Só grandes projetos, grandes equipamentos, duplicação da linha, sinalização, comprar usinas, fazer mais usina, fazer aquilo, ampliar o porto. Era um negócio impressionante, para capacitar a empresa para 40, ou até 100 milhões de tonelada. Quando eu estava assessorando o diretor nessa coordenação, surgiu um problema de suprimento desses equipamentos. Nisso tudo, a Vale estaria comprando quase 500 milhões de dólares de equipamentos para as usinas de concentração, para a ferrovia. Eram trilhos, locomotivas, vagões. Para o porto, que eram equipamentos portuários. Precisavam colocar na área de suprimento uma pessoa que conhecesse o processo, conhecesse as pessoas no campo para ter diálogos com eles e que tivesse acesso a esse pessoal da obra. Então, me convidaram para ficar como chefe de suprimento. Aí, eu saí da assessoria do diretor, fui para a chefia de suprimento.
P/1- Em que ano isso?
R- Isso em 1972. Quando eu cheguei no suprimento, a data é mais ou menos essa. Não sei se é 71 ou 72. Quando eu fiquei no serviço central de compras, foi um grande desafio. Eu comecei a tomar contato com um mundo que eu nunca conheci. É um mundo que, realmente, as pessoas devem até fazer análise, porque deforma o seu caráter, a sua personalidade. É tanta gente te puxar o saco para poder vender, os fornecedores, te agradar, que você se sente importante mesmo. O cara que é chefe de suprimento de uma empresa como Petrobrás, Vale do Rio Doce, ele só vai conviver com pessoas alto nível do mundo dos negócios. O mundo inteiro, com diretores, presidentes e tal. Vai ser badalado, vai participar de reuniões, de decisões que envolvem milhões de dólares. Se ele não tiver... E eu, em particular, procurei um livro bom sobre isso, para poder ajustar a minha vida e não afetar o meu comportamento, não modificar o meu caráter, não achar que eu era o dono risos)... Que eu era o maior, como eles faziam. O que os caras puxam o saco seu, não é brincadeira. Eu lembro que, chegava o Natal, eu ganhava 30, 40 agendas. Só agendas, assim. Cartão de Natal, então, era pilhas. É um negócio... Faz parte do marketing você... E tantas outras coisas, aquelas que você é obrigado a rejeitar para não se comprometer mais. E eu menino novo, mas me preparei. Tinha um livro chamado O que um presidente espera de um chefe de compras. Li aquele livro, vi bem o que era, conversei com a minha mulher, falei: “O nosso padrão não vai mudar. Nós vamos continuar com a mesma vidazinha humilde, jeitinho. Não vou nessas badalações, nada de Copacabana Palace, passear em iate. Podem convidar, o que for, eu não vou me envolver com isso. De repente, eu perco essa função e acaba tudo.”
P/1- Aí, o senhor veio para o Rio de Janeiro?
R- Fazer isso aí. Vim fazer, eu fiquei no gabinete do diretor e fiquei como chefe. Depois, em seguida, fui para o chefe de suprimento. Passei por essa fase, comprar coisas importantes, viver ao lado de pessoas importantes, ricos, diretores e presidentes de empresa. Comandar licitações e tal. Mas consegui passar ileso sobre isso, porque defini um padrão de comportamento que me ajudou bastante, a partir de uma boa leitura e boas orientações. Inclusive, do meu próprio chefe. Ele disse como é que devia ser, falou: “Não se encante, porque você vai ser badalado mesmo.” Passei por isso, fiz grandes amizades dentro e fora da empresa. Logo em seguida, o superintendente administrativo foi convocado para trabalhar diretamente no projeto, que já era o início de implantação do Projeto Carajás. Aí, precisou de uma pessoas na área administrativa e eu fui chamado para lá, porque eu já tinha sido indicado antes. Nesse período, os convites vinham, se sucediam quase que semanalmente: “Você tem que vim para cá, tem que ir para a área administrativa, tem que dar um apoiozinho.” Eu fui para a área administrativa. Um fato interessante que eu contei, que, até um pouco tempo atrás, quando chegava no final do ano o Natal, eu ganhava 100 agendas. Fui para a administrativa, no Natal não ganhei nenhuma (risos). Para você ver. Não me deram uma sequer, eu tive que pedir: “Pô, me arruma uma agenda aí, cara.” (risos) Para você ver como era ilusório aquele... Fora as garrafas de vinho, que nem pensar. Das não sei quantas garrafas de vinho que eu ganhei quando eu estava no suprimento, depois nem vi mais. Nunca mais me deram nenhuma garrafinha sequer, nem de guaraná. Para você vê como é que aquele cargo é. Aquilo tudo que fazem com você é fictício, faz parte do marketing. Mas eu estava preparado, aquilo não me afetou, não. Eu fui para a área administrativa como assessor, porque houve um problema administrativo. O superintendente, na Vale, ganhava mais do que o coordenador do estudo da implantação da viabilidade. Então, ele não quis perder salário, combinou com o presidente e eu fiquei como assessor. Era bem remunerado, o mesmo nível, e foi uma boa oportunidade. Eu fiquei algum tempo ali, como assessor dele. Eu era o superintendente de fato, mas não era de direito. Fiquei quase um ano assim. Depois, passei a ser de direito. E passei a ser de direito numa circunstância um pouco ruim, porque houve um problema conturbado na história da Vale. Essa é a história que eu conheço. Em razão de uma falsa visão da Vale a respeito dos assessores, ou até mesmo da própria pessoa do presidente Geisel, o ministro na época. A Vale passou quase por um processo de intervenção, veio um presidente com novas pessoas. Parece que, naquele instante, eles estavam entendendo que a Vale precisava passar por uma modificação muito grande e que teria que alterar tudo, mudar tudo. E vieram com um caráter totalmente reformador.
P/2- Mas que tipo de reformas eram essas?
R- Totais. Começou exonerando do presidente, trocando todo mundo. Os processos, mexeram em tudo. Descentralizou jurídica, mexeram... Uma reforma total, achando que tudo o que se fazia estava errado. O presidente, nessa época, era um homem muito corajoso, inteligente que só ele. Tinha uma capacidade de raciocínio rápida. Ele era economista, mas também era jornalista. Era presidente do BDMG, Fernando Roquete Reis. Ele tinha uma capacidade de síntese, era um homem que tinha uma capacidade de escrever com quatro linhas o que eu não conseguia fazer em duas páginas. Mas para implementar essas coisas todas, eles não tinham o conhecimento da empresa. Então, tinha o que fazer, implementar todas essas modificações com uma pessoa que conhecesse profundamente a empresa. E me pegaram para isso. Sorte por um lado, azar por outro. Sorte, porque eu conseguia levar a ele aquilo que era absurdo, que não deveria ser feito, que poderia, inclusive, ser ruim para ele e para os empregados. Sorte para os empregados que eu poderia, em tempo, proteger alguma coisa de onde ele estava mal informado, de modo que ele não tomasse medida intempestiva que provocasse erros muito grande. Algumas foram tomadas e provocaram erros muito grande. Mas logo em seguida, não só por minha causa, mas por outras, ele por si próprio verificou que não era bem isso e mudou um pouco. Ou melhor, mudou bastante em relação à própria empresa, mas alguns estragos já estavam feitos. Algumas coisas foram recuperadas. Ele preservou algumas coisas como a área operacional, para não afetar a operação. Nessa área adjetiva, ele mexeu violentamente, mudou muita coisa. Mas, de certo modo, foi bom para a Vale, apesar de que nós sofremos muito. Ele desmistificou um pouco a empresa. Porque a empresa vinha sendo administrada, anos e mais anos, com as mesmas pessoas, dentro daquela vida que a gente conhecia, de que tudo era desafio. Todo problema era um desafio, a empresa estava numa fase muito boa. Você quer ver que uma empresa está ruim quando um desafio é um problema. Agora, quando as pessoas entendem que um problema é desafio, a empresa está boa.
P/1- Um bom sinal, né?
R- É bom sinal. Então, tem coisas que a gente identificava. A empresa ruim é o seguinte: tudo é proibido, exceto aquilo que está expressamente permitido, essa empresa é ruim. Agora, tudo é permitido, exceto aquilo que está expressamente proibido, essa empresa é boa. A Vale era uma empresa, mais ou menos, assim. Essa teoria não é minha, não. Teoria, evidentemente... (risos). Então, na área administrativa, com o presidente Fernando Reis, eu procurava fazer isso. Mostrar a ele, quando possível, que determinadas coisas não se deviam ser feitas daquela forma. Eu fui até interpretado, uma vez, como Dom Quixote, era um “quixoteano”. Eu tentava provar demais a certas coisas e criei uma série de antipatias. Não em relação a ele, mas aos seus outros diretores, porque dificultei. Comecei a criar dificuldades para implementar algumas coisas e, evidentemente, quem procede assim não tem outra alternativa senão tirarem. E eu fui tirado do cargo, tirado mesmo.
P/1- Isso em que ano, seu Mariano?
R- Isso em 1974 ou 75. O diretor Linhares falou: “Você vai ser tirado e eu sei porquê. Não tem problema, você vai vem trabalhar comigo.” E eu fui trabalhar com ele. Eu estava trabalhando com ele, já coordenando um projeto na Venezuela nesse caso. Um projeto grande que era uma integração, uma associação da Vale com a Petrobrás para desenvolver um projeto na Venezuela, que a Venezuela nos pagaria com petróleo.
P/1- Projeto de quê?
R- De uma ferrovia de 500 quilômetros lá. Criaram uma empresa de intervalo ferroviário, me colocaram na vice-presidência da empresa e fomos para lá para tocar esse projeto. Estava tocando isso quando, na estrada de ferro Vitória-Minas, começaram a surgir algumas dificuldades, porque ela estava saindo de uma fase de obras e tinha que se transformar numa empresa de operação. Estava havendo umas dificuldades institucionais e o diretor estava meio chateado com algumas coisas. Principalmente, era a área que estava havendo o maior conflito com a presidência, com esses novos diretores. Eu conhecia perfeitamente todos eles, porque eu tinha trabalhado com eles. Então, ele falou: “Você vai para lá para ficar um ano, pelo menos. Você vai tomar conta daquela ferrovia. Eu não quero mais ter atrito com esses diretores que estão aí, com essas pessoas, com o presidente, porque, de lá, é que eu estou tendo as maiores contribuições. E você sabe de tudo, porque você trabalhou ao lado deles como superintendente. E sabe de tudo o que eles querem, como é que querem. Por favor, vamos administrar esses conflitos, que eu não quero que eles cresçam mais do que já cresceram.” Eu fui para lá para ficar um ano. Fiquei dez na superintendência da ferrovia. Peguei uma fase muito boa da ferrovia, que ela bateu os recordes e mais recordes. Foi uma fase em que, naquela história que eu estava contando, que ela se informatizou violentamente, se automatizou. Eu participei de todo esse processo. Tive oportunidade de conhecer todas essas melhorias tecnológicas que foram implementadas na ferrovia e participar como a pessoa que coordenou a implantação da maioria delas. Isso me deu uma formação, uma capacidade profissional maior, de ficar dez anos com aquilo. Terminado ali, passados esses dez anos, eu fui convidado a trabalhar com uma superintendência de produção, que seria uma coordenação de estudos operacionais referente a todo o sistema de mineração, transporte e embarque, objetivando a utilização do sistema. Isso é um processo que usa modelação matemática e que, também, me deu oportunidade de conhecer coisas mais, trabalhar com pesquisa operacional, um outro tipo de cultura com a qual eu não tinha convivido até então.
P/1- No Rio de Janeiro isso?
R- Isso, voltei para o Rio de Janeiro como superintendente de produção e trabalhar, principalmente, assessorando diretamente o diretor, com um grupo de pessoas que trabalhavam na coordenação da operação e em estudos. Eu passei a ter contato com outro nível de informação que, até então, eu não tinha. Foi muito saudável para mim, foi uma oportunidade profissional excelente. Nessas condições foi quando houve uma grande modificação na empresa. Eu tive um problema grave de saúde. A empresa começou a se preparar para ser privatizada, foi no governo Collor. O governo Collor foi um governo que, no início, me entusiasmou muito, porque eu fui, junto com outras pessoas, indicado para trabalhar para o governo no bolo de noiva, para fazer o plano do governo. Uma das coisas mais maravilhosas, mais bonitas, que eu tive oportunidade de participar foi a elaboração do Plano Collor, do governo Collor. Foi uma das coisas mais bem boladas que eu já vi. O bolo de noiva em Brasília, uma grande salão com dezenas de mesas. Uma mesa era assunto portuário, outra ferroviário, outro siderurgia, outro agricultura. Todo mundo junto, quatro, cinco pessoas, sempre com um coordenadores. Porque a economia é igual uma rede. Quando você puxa um ponto da rede, você puxa vários. Quando você aumenta o combustível... Quando você faz um plano grande de um país, quando você mexe em alguma coisa, você afeta uma série de outras. Ali estavam presentes todos os nós dessa rede. Quando você iria fazer alguma coisa: “Vou mexer na atividade portuária. Então, os terminais portuários privativos poderão movimentar a carga de terceiros. O que acontece? Afeta isso...” As pessoas... Você não precisava mandar a carta para ninguém, já estariam todas presentes. Eu trabalhava na parte de logística. Quando nós chegássemos em algum consenso a respeito de alguma coisa sobre logística, vinha o coordenador e perguntava: “O que tem que ser feito para isso? É um decreto, é uma lei, é não sei o quê? Passa no Congresso, é isso? Vai, procure os advogados fulano e faça.” A gente fazia a minuta, mandava por fax para um escritório contratado pelo governo em São Paulo e ele já preparava o projeto de lei para o Collor mandar. Foi um negócio que todos que ali participaram... Foi um projeto integrado do país, com uma visão globalizada impressionante e que, se fosse implementado, nós não estaríamos... Alguma coisa foi. Por exemplo, do governo Collor, alguma das coisas de que nós estamos nos beneficiando foi essas tarifas portuárias, os custos de portos que foram reduzidos. Realmente, ele conseguiu afetar bastante a nossa indústria no sentido de produtividade, abaixando as taxas de importação. Isso, realmente, fazia parte disso…. Então, foi uma oportunidade muito boa. Só que no governo Collor tinha uma coisa desagradável. O secretário geral, o João Santana, queria de qualquer maneira reduzir pessoas, ele queria número: “Quantos caras vão ser demitidos?” Eu achava aquilo um absurdo. Achava uma visão míope você dizer: “Vou demitir 500, 600. Eu quero (20%?).” Tinha outras maneiras de melhorar a produtividade, mas o João Santana era o secretário que, depois, passou a ser ministro de Infra-estrutura. Ele exigia isso. Da Vale ele exigiu também dessa forma linear, como se homens fossem... Seria a mesma coisa que chegar numa biblioteca e cortar os livros para ficar bonitinha a biblioteca. Você corta os livros e fica tudo do mesmo tamanho, a biblioteca fica linda. Esses cortes lineares envolvem uma imbecilidade dessa ordem. Você dar um corte linear não pode. Mas é assim que vinha e eu fui obrigado a... Por razão de um corte linear, tem que demitir uma série de pessoas que não deveriam ser demitidas e eu enfrentei. Enfrentei pessoalmente, me chateei, me aborreci dentro da empresa, fora da empresa. Fui buscar recursos para não fazer aquilo que eu achava que não tinha sentido, que não é aquela forma. Você tem meios de baixar custos, inclusive de pessoal, sem dar cortes lineares. “Quantas pessoas você tem?” “Eu trabalho com 1200.” “Demite 120, ou demite 240.” O que é isso? Não é assim, não.
P/2- Não era feito nenhum estudo prévio?
R- Não. Brasília não pensava nesse termo, ela dava um número para a empresa. “Na rede ferroviária tem que botar 25 mil. A Vale tem que ser quanto?.” Eu peguei exatamente essa função. Me deram um papel terrível e eu não concordei, me chateei. Vi casos absurdos. Sei que aquilo, associado a outros fatores, com descontrole de saúde, eu tive um enfarto. Enfartei, falei: “Agora, eu vou repensar a minha vida.” Dei uma parada, fiquei com a saúde debilitada. Vi que a loucura continuava, a arbitrariedade do governo continuava, tinha tempo de aposentadoria. Falei: “O que é que eu vou ficar fazendo aqui, se eu posso me aposentar, ficar vivendo com meus filhos, com meus netos? Eu vou cuidar da minha vida.” E me aposentei.
P/1- Que ano?
R- 1991. O meu próprio cardiologista dizia: “Rapaz, o que é isso? Deixa isso para lá, o importante é a tua vida. Esquece a Vale, esquece isso tudo.” Foi bom, repensei minha vida, achei que não voltaria mais a trabalhar. Mas, como eu falei anteriormente, assim como outras pessoas, eu aprendi o processo. Como vocês sabem, se você for procurar saber onde está a tecnologia, ela está no cérebro das pessoas. Todo o resto, desenhos, mapas, filmes, computadores, isso é periférico do conhecimento. O verdadeiro conhecimento está no cérebro das pessoas, é aquilo que você aprendeu, aquilo que você guardou. Aquilo que eu aprendi está comigo e, de vez em quando, eu sou solicitado. Porque, embora seja um conhecimento primário, eu não estou nem qualificado mais para trabalhar nesse mundo informatizado e globalizado, pelo menos o processo eu conheço e tenho capacidade de interferir. Então, normalmente o meu trabalho é nesse sentido. Eu utilizo hoje para trabalhar, por incrível que pareça, os conhecimentos adquiridos na década de 60.
P/1- Sua experiência também conta, né?
R- É, também a experiência nessa parte gerencial, de conhecer sistemas de custos, sistemas de orçamentos, itens de controle dentro de um determinado sistema. Se você me põe dentro dessa casa e fala: “Eu quero estabelecer itens de controle”, em meia hora, eu te digo o que você pode ser controlado, para saber se aqui está funcionando bem ou mal. Essa experiência você adquire na vida prática, como se faz uma dona de casa, que vive dentro da casa. Ela sabe perfeitamente. Só entrar dentro de casa, ela sabe o que... Ela tem os seus itens de controle já tudo registrados e não precisa ninguém dizer nada. Ela olha, ela sabe: “Alguém mexeu aqui, alguém mexeu ali, não fez isso.” (risos). Isso chama-se itens de controle. Nós, os profissionais, somos exatamente isso.
P/1- Mas, então, qual é a principal ocupação do senhor hoje, a principal atividade?
R- Exatamente em logística, na parte de procedimentos.
P/1- O senhor é consultor?
R- Consultor, exatamente. Você tem, dentro de uma cadeia logística complicada, que passa por cinco... Um produto passa por cinco estocagens diferentes, modalidades diferente. Como é que você pode racionalizar essa cadeia, como é que você pode interferir, quais são os pontos importantes que você tem que monitorar? Você vai monitorar tudo? Principalmente quando é uma coisa distribuída no mundo inteiro ou no país inteiro, cada item de controle, se depender de comunicações via satélite, os custos são exponenciais. À medida que você quer mais informações, os custos para obtê-las vão sendo mais altos. Então, você tem que trabalhar com poucos números, mas que sejam representativos, e ter capacidade de interferir no processo. De modo que você possa, além de acompanhar toda a cadeia produtiva, interferir aonde você julgar conveniente para melhorar o desempenho do seu produto ou do seu sistema. É essa a experiência que eu tenho e que estou vendendo às pessoas. Aliás, eu até confesso, não sou tanto eu que procuro, não. Porque, pessoalmente, eu não estou a fim de me envolver muito. Depois que eu infartei, eu coloquei um componente na minha cabeça que é um componente... Aparentemente, uma pessoa... Parece que é uma pessoa anormal. Mas não é anormal, não. Eu comecei a trabalhar com vida residual, como um equipamento tem uma vida. Um carro não tem uma vida de dez anos, cinco anos? Nós também temos uma vida residual, só que não passa na cabeça de nenhum de vocês trabalhar com uma vida residual. Mas eu, que já enfartei, tenho vida residual. Eu sei que eu estou com 62, que daqui há 20 anos, se eu conseguir ter uma vida residual é muito, em razão da vida que eu levei. Eu comecei a trabalhar cedo. O tipo de desgaste que essa máquina teve e pelo que ela passou, o que é que eu tenho que fazer? Ter a melhor vida residual possível e a maior. Se você quiser me contratar para trabalhar por dois anos, você está contratando 10% da minha vida residual. Então, você vai pagar bem por isso. (risos)
P/1- Gostei da lógica (risos).
P/2- Ótima! (risos)
R- Entendeu? Eu vou vender 10% da minha residual e, o pior, é vida residual e decadente. Aquela onde você começa a perder reflexo, essas coisas toda. Agora, quanto mais curto, mais caro é. Se você quiser me contratar quando eu estiver babando na gravata, velhinho, tudo bem (risos). Mas se você quiser contratar agora, é mais caro. Porque é vida residual e eu estou ativo. Eu podia estar aproveitando, lendo os meus livros, fazendo algumas viagens, pescando, tirando algumas... Fazer o lazer que eu não tive na infância. Quer dizer, não
é uma maluquice tão grande. Mas não deixa de ser um negócio meio doido, né? (risos)
P/1- Seu Mariano, eu queria, para encerrar a entrevista, que o senhor nos dissesse o que o senhor achou de ter participado do projeto e ter dado o seu depoimento.
R- Eu só lamento que a Vale só tenha pensado nisso agora. Porque, várias vezes, vários episódios da Vale são tão ou mais importantes do que isso e não foram filmados. A Vale já teve linhas obstruídas por índios, ela atravessa reservas indígenas. Eu acho que a Vale devia registrar essas coisas. O que não vão dizer os nossos, se daqui há 50 anos saber que a estrada de ferro Carajás foi impedida de operar porque os índios ocuparam a linha? Então, tem várias coisas. Eu acho que vocês, pessoas de comunicações, devem fazer o seguinte: Não se deve somente registrar isso, deve-se registrar coisas que estão ocorrendo agora, que são importantes e que, no futuro, não precisa vir alguém para contar. Elas estejam registradas. Quantas coisas! O antigo traçado da ferrovia, as antigas estações, como é que eram? Como é que viviam essas turmas, como é que os empregados deviam permanentemente trabalhavam? Como é que eram as instalações portuárias, as antigas instalações? Por que é que não se gravou aquelas coisas? Talvez por influência da minha irmã Maria Teresa, eu sempre disse assim: “Vocês não sabem como é importante para o homem conhecer o processo histórico.” Quem conhece o processo histórico está preparado para qualquer tipo de vida, de mudança, porque a História se repete. Ela vem de forma diferente, mas ela é cíclica. As coisas, os fatos são cíclicos no mundo. Isso que eu estou falando mais é cultura da minha irmã (risos). Eles vêm, eles vão se repetindo e você, conhecendo o processo histórico, se você registrar isso tudo... Eu só lamento é que só agora se pensou em gravar essas coisas. Deviam ter gravado outras pessoas, as que me antecederam. Eles tinham coisas maravilhosas para contar, dificuldades, a febre, a malária, a doença dos macacos, que matou milhares de pessoas. Milhares de pessoas foram mortas para implantar essa empresa aí, pela febre dos macacos, que era conhecida, e outras coisas mais. As dificuldades, como é que as pessoas que não tinham recursos tecnológicos... Como é você definia que uma ferrovia vai passar num determinado ponto numa cidade? Procurava: “Quem é a pessoa mais velha da cidade?” Falava assim: “É o seu Manoel das Couves ali.” “Quantos anos ele tem?” “85 anos.” “Seu Manoel das Couves, o senhor mora aqui há quanto tempo?” “Eu moro há 50 anos nessa cidade.” “Quando teve a maior enchente aqui, a água passou aonde?” “Passou aqui.” Então, coloca a ferrovia um pouquinho mais em cima. Você não tinha estatística de precipitação pluviométrica. Usava, então, essas coisas, os conhecimentos das pessoas. Isso tudo está inserido... Eu teria milhões de histórias para contar aqui de coisas que eu ouvi, que não ocorreram comigo, mas são muito importantes. Talvez, muito mais importantes do que essas que eu contei e que não foram registradas, porque somente agora se pensou nisso. O importante é que registre para ficar. Vou parodiar uma burrice que já foi dita por alguém, eu não vou dizer quem foi: “Para ficar para a posteridade futura.” (risos).
P/1- Queria agradecer, então, a sua participação, seu Mariano. Muito obrigada!
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