P/1 – Então, Cida, pra começar a gente pergunta o nome completo, o local e a data de nascimento.
R – Maria Aparecida da Silva Trajano. Eu não sou muito fã dos Trajanos por causa do significado Trajano. Eu era Carlos do meu primeiro marido, aí faleceu, eu queria manter Carlos Trajano, o juiz não deixou - eu tenho raiva do juiz até hoje -, ele tirou o Carlos e deixou o Trajano. O Trajano cansa a minha beleza, mas, eis-nos aqui!
P/1 – E data de nascimento e local?
R – Primeiro, a data social é 31 de maio de 1941, a verdadeira é 26 de novembro de 1940. E socialmente, eu tenho que viver socialmente, então é 31 de maio, que todo mundo conhece. Local: nasci em São Paulo, ali na quadra do Vai-Vai, acho que é por isso que eu gosto de samba. Desde 40 que a gente curte esse mundo divertido.
P/1 – Cida, conta um pouco dos seus avós, o nome deles, o que é que eles faziam? Suas lembranças com eles.
R – Meus avós: da parte da minha mãe é que eu tive mais contato, eles eram agricultores em Piracicaba: Sebastião Botelho, tinha uma chacarazinha e fazia dessa chácara o seu sustento, ali plantava, ele criava, ele colhia. E a minha avó ajudava. Todos os filhos da minha avó, ela era chamada de Nhá Dina, mas ela se chamava Maria Florinda da Silva. Minha avó era gorda, forte! Quando eu era pequena eu me lembro dela bem alta, sabe, assim? Engraçada, sorridente, fazia muito doce pra vender, colhia, plantava mandioca, abóbora, tudo que plantava eles vendiam no povoado, em Piracicaba. Dez filhos: seis mulheres e quatro homens! E o sustento era pra família toda. Fantástica! Eu me lembro que na época de férias. Nossa, eram netos e netinhas, mais três ou quatro, hoje em dia tudo em Piracicaba, na fazenda da minha avó, do meu avô. Tinha um trem que passava na lateral, todo mundo corria pra ver o trem passar. Tinha a boiada que subia ladeira acima, a rua era tudo de terra. Eu tô falando pra você de 1943, 44, 45 Eu acho que 45 foi o último ano que a gente foi pra lá, depois a gente não foi mais, a gente não viu mais.
Meu avô, ele era um mameluco bem alto! Desses mamelucos legítimos, assim, negro do cabelo bom, amarrava o cabelo assim! Quando o sol tava muito quente, ele ficava vermelho! Ele era mameluco legítimo! Ele era muito bravo, muito exigente! Vinha de convivência com um jagunço, tudo dele era de violência, as histórias dele no povoado eram terríveis! E a gente parava pra ouvir e olhava aquele homem bravo, chegar sem sorrir, sem nada, sentava na mesa, contava pra ver se tava certo todo mundo, se não tava faltando ninguém. Mas era muito gostoso. Sumia, ia pras quebradas dele, que ele fazia derrubada de árvore, ficava tempo sem aparecer, de repente aparecia! Mas cada vez que ele saía pra fazer as derrubadas, deixava aqui na chácara tudo recomendado pros filhos. Cada um tinha a sua missão, porque a vida aqui continuava! Ele ia somar com aquilo que ele trouxesse pra casa. Então, essa é a lembrança que eu tenho dos meus avós da parte da minha mãe. E da parte do meu pai eu só conheço por fotografia, não tive acesso a eles não. Da parte do meu pai, do meu pai mesmo.
P/1 – E os seus pais, qual era o nome deles, o que eles faziam?
R – Vixe, nossa, a agora é a hora mais complicada da história! Minha mãe Maria Ercilia da Silva Rosa; o Rosa veio bem depois, seria Maria Ercilia da Silva, que seria o primeiro. Minha mãe foi casada lá em Piracicaba ainda, na companhia da minha avó e do meu avô, com 13 anos de idade! Conheceu o marido através do buraco da fechadura no dia do casamento, e a pressão pra que esse casamento acontecesse era pra acabar com as brigas de dois fazendeiros, por causa de um rio que corria no fundo da fazenda lá da chácara. O fazendeiro de lá, o chacareiro, dizia que o rio era dele, e o meu avô dizia que o rio era dele, e aí tinha tiroteio, desavença, as mulheres viviam sempre em pânico. O fazendeiro de lá tinha uma quantidade enorme de filhos machos! Filhos homens! O fazendeiro de cá, que era o meu avô, tinha uma quantidade maior de filhas mulheres, e tinha uma que era muito bonita, tinha o nome de Mulata, que era a minha mãe. Então fizeram um acordo: casava um filho de lá com uma filha daqui, que seria a minha mãe, e acabava a briga do rio. E isso aconteceu, foi um festão no povoado! A festa maior foi porque iam acabar as brigas, e realmente as brigas acabaram. Minha mãe se casou com um dos filhos de lá do fazendeiro, aí veio os dois primeiros filhos da minha mãe.
Mas filho homem de jagunço tem por herança ser jagunço também. Foi muito difícil pra minha mãe se adaptar, se acostumar, ela não aceitava esse tipo de coisa e a brutalidade era muito grande. Aí entraram em acordo, dois anos depois a minha mãe fugiu pra São Paulo. Não foi dois anos não, ela já deixou as crianças, os meus irmãos era bem maiores. Mas ela acabou fugindo pra são Paulo. Vixe, foi o maior auê! Não começaram tudo de novo porque já tinham deixado a briga pra lá e o rio corria feliz. Mas foi muito difícil! Minha mãe veio pra São Paulo fugida mesmo! Porque não agüentava mais a situação de pressão do lado de lá. Aqui, o que é que ela sabia fazer sem ser o trabalho da roça? Ela sabia cozinhar muito bem e sabia fazer doce muito bem. Ela foi ser doméstica, que era a única coisa que tinha naquela época pra trabalhar. Principalmente pra nós, os negros, era mais aberto na época. Nossa, todo mundo queria, de preferência, uma negra na cozinha pra dizer: “A força do meu poder”. Mas a minha mãe, ela deu muita sorte, porque ela trabalhou em duas famílias muito grandes e por muitos anos, e até o fato de não conhecer direito São Paulo, ela deu sorte nas casas em que ela trabalhava. Aí ela conheceu uma família negra também aqui em são Paulo, que foi logo depois que ela veio de lá, ela se relacionou muito bem com essa família! Era a família dos Henriques. Aí não podia porque a minha mãe já tinha uma certa idade; você ser separada do marido com 18 anos, naquela época, era um escândalo! Morre, até o fim, mas não se separa: “Ruim com ele, pior sem ele”! Quando você tem uma coragem de jogar tudo pro alto e pôr o pé na estrada: “Ê, cuidado, essa mulher é meio complicada!”. E minha mãe começou a namorar um dos Henriques da família, muito escondido porque a minha mãe não era muito bem vista, essa era situação real e concreta. E principalmente porque ele tava saindo da menor idade, entrando pra maior idade e a minha mãe tinha dois anos mais que ele: “Imagina, que isso? Criar criança!”. “Cuidado com essa mulher! Ela é problemática!”. E começaram a se gostar. Lá um dia eles – eu acho que é parte mais cômica; triste, mas é a mais cômica, ela sempre repetia isso pra gente – eles se encontravam e ela resolveu falar pra ele que ela tava grávida! O susto dele foi tão grande, mas foi tão grande, tão grande, que ele achou impossível acontecer isso com ela, e ela ficou sozinha embaixo da árvore, ele pôs o pé no mundo e nunca mais apareceu. Gente, mas a minha mãe quando contava isso, hoje eu dou risada, mas, nossa, ela chorava tanto, mas ela chorava tanto, coitadinha! Dá uma olhada há quanto tempo que a mulher é massacrada por esse tipo de atitude. É incrível! Incrível!
Aí a história foi até a família dele, lembraram que ele tinha uma prometida em São Carlos do Pinhal, correram e pegaram essa prometida, fizeram o casamento lá rapidinho pra não dar espaço nem tempo pra ele voltar pra minha mãe, e ele se mandou pro Rio de Janeiro. Lá no Rio de Janeiro ele ficou. E a minha mãe foi tocando a vida. Ainda a parte mais difícil que eu acho, assim, da minha vida, foi exatamente no momento em que a minha mãe resolveu anunciar da chegada da gente, daí começou as agonias. Eu fui alguma coisa, que eu vim atrapalhar muito a vida dela: sozinha, sem família nenhuma, sem parentes nenhum aqui em São Paulo, esperando, grávida de uma criança que ela não sabia como tirar fora, porque não tinha condições de tirar, porque também não tinha coragem e não sabia como é que ia ter essa criança. Amparada pelas poucas amizades que ela tinha. Até que a gente nasceu, com atenção de uma amiga dela e que deu amparo e guarita até onde pôde. Que enquanto ela pôde esconder a barriga, ela trabalhou na casa de família, quando ela não pôde mais, ela teve que sair, essa amiga acolheu. Na mão dessa amiga da minha mãe que eu acabei nascendo.
Então, porque na quadra do Vai-vai? Porque essa amiga da minha mãe morava nos arredores do Vai-vai e pegava todos os ensaios do Vai-vai e levava a minha mãe. Aí num desses ensaios, as dores vieram. E foi a chegada da gente Aí, eu sou dos toques do tamborim, agogô. Aí quando correu pro hospital, que aí já tinha acontecido, já tinha vindo pra fora. Uma página da vida da minha mãe, curiosa, já junto comigo: aos oito dias de vida, eu tinha oito dias de vida, ela arrumou um serviço numa casa, numa família, os Pereira da Silva. De cozinheira. E essa senhora – minha mãe trabalhando pela metade do preço na época -, ela não se incomodava que ela levasse eu com oito dias. Foi a melhor coisa que aconteceu porque a minha mãe pôde voltar a trabalhar, ter a independência de vida dela, nesse serviço. Que ela foi trabalhar, ela pôde me levar, e lá nesse serviço que a minha mãe arrumou tinha uma negra de mais de 60 anos que tinha sido ama do doutor Augusto, do dono da casa, do patrão. Você fecha o olho: uma senhora com mais de 60 anos, naquela época, tinha sido ama do patrão, dá pra você voltar na história. Da onde que ela vinha. Tava lá encostada porque já não tinha mais condição de trabalhar por causa da idade, e a família era mais ou menos abastada. Pelo fato dela ter sido ama de leite do doutor Augusto, tinha uma certa consideração por ela, ela tinha um cantinho lá, tava encostada. Eu cheguei com oito dias, eu dei vida à avó Rita, a avó Rita arrumou ocupação, então a minha mãe trabalhava tranquilamente, fazia todo o serviço da casa sem a menor preocupação, porque eu tava em muito boas mãos! A avó Rita foi a mãe que eu tive em todos os sentidos que vocês possam imaginar! Banho, roupa Eu cresci nas mãos da avó Rita. Essa avó Rita era muito chique: ela lia, escrevia, tocava piano. Ela foi criada na casa, no casarão, certo? Porque ela tinha sido filha de uma escrava com o homem da Casa Grande, essas coisas da época de lá. Então já teve uma educação diferente do pessoal, dos terreirões. E cuidou, cuidava das crianças da Casa Grande, o doutor Augusto era um.
A Casa Grande, que eu me lembre de ter ouvido falar, foi lá em Jaú, em Piraju que acontecia tudo: as grandes fazendas, os remarques de escravos. Então essa avó Rita, ela me criou dos meus oito dias até os meus 15 anos. Então, assim, foi tudo! Tudo, tudo que eu sei, hoje eu devo A minha primeira infância, sabe? A ponto de quando a minha mãe se casou pela segunda vez, a minha avó Rita ela não queria deixar que a minha mãe me levasse, porque o meu padrasto não ia cuidar bem de mim. Porque a minha mãe teve que levar ela junto, ela não abriu mão de mim, ela não ia ficar, não tinha mais condição de ficar sem mim. Então eu me lembro que o doutor Augusto e a dona Isaura dava uma pensão pra ela, de lá, e ela foi morar com a minha mãe pra continuar cuidando de mim. Minha avó Rita faleceu eu já estava com 15 anos e eu sinto falta dela até hoje! Eu já to com quase 70, eu ainda sinto falta da avó Rita! Foi a fase melhor da minha vida, que a avó Rita tava sempre por perto: pra dar um conselho, pra estar junto, pra conversar, pra puxar a minha orelha, que eu sempre fui muito boazinha, eu era uma santa! Vivia com as orelhinhas pendurada! “Não faça mais isso!”. Da parte gostosa, que eu tenho de lembrar, é essa, dos meus oito dias até os meus 15 anos, que a avó Rita faleceu, no dia 17 de outubro de 55.
P/1 – Posso perguntar uma coisinha antes? Si pra você descrever um pouco a sua casa, esse ambiente de São Paulo dessa época, suas diversões, o que é que você fazia..
R – Diversão? Eu tinha? Tinha. A minha mãe era muito pândega, a minha mãe era muito divertida, minha mãe gostava de muita festa, de muito baile, de ir em baile! Salão! Ela dizia assim que eu ficava com a avó Rita, ela dormia no emprego, ela terminava o jantar às sete e meia, oito horas, ela ia pro salão. Mãe dançava de segunda à segunda, ela dançava de segunda à segunda porque ela gostava de dançar! Quando dava, ela levava a gente; quando não dava, a gente ficava dormindo e ela ia dançar. Mãe era muito pândega, mas muito, muito, muito! Em 1945, mãe se casou pela segunda vez. Ela casou de raiva. Ela se casou com um primo do meu pai. Ai, mulher sempre foi um eterno problema, era um barato! Eu mesmo me divertia com as histórias dela. Então o meu padrasto, ele era pai da minha irmã caçula, essa foi a última que a minha mãe teve, mais pra fazer desaforo pro meu pai, porque o meu pai tinha rejeitado-a. Aí quando o meu pai soube que ela tinha casado com primo dele, mandou um recado: “Ele que não pusesse a mão na filha dele, porque ele ia fazer e acontecer”. Ele nunca tinha se preocupado com nada. Aí num momento desses Ai, homem tem uns negócios esquisitos. Aí a fama de divertir que nós tínhamos na época: a gente aprendeu a gostar de baile cedo, de roda de samba e de cantar, porque não tinha diversão, o pessoal se aglutinava, se agrupava, tocava seu violão, seu cavaco, seu pandeiro. Até hoje eu sou alucinada por percussão, porque eu cresci ouvindo percussão. Eu, nossa, onde tem uma percussão eu vou pela batida! Eu falo: “Gente, eu sou da época do Fantasma!” Nas florestas da África, que bate o tambor pra chamar os pigmeus, eu tava no meio também, porque tudo meu é através de som, um barato! E a gente ia muito em festa, depois das rodinhas de samba de sábado – domingo, domingo de manhã, sábado de manhã – qual a diversão que a gente tinha na época que eu me lembro? Tô falando pra você da década de 40. Eram as quermesses, que eram muito lindas! Boas, enormes! Eu não vejo quermesse de hoje nem um pouquinho parecida com a quermesse da minha época de menina.
Outra diversão também que tinha, que a gente não via hora que chegava: o mês de maio! Porque logo atrás do mês de maio, vinha o mês de junho, aí as festas juninas começavam com as orações do mês de maio, que era época de casamento, das filhas de Maria. E eram uns casamentos, as orações, mês de Nossa Senhora. Nossa, mês de maio tudo acontecia! Terminava o mês de maio, começava as festas juninas, aí aquelas roupas de quermesse, ensaiar quadrilhas, aqueles fogueiraços. Você olhando pro céu – eu tava me lembrando no dia 13 do mês passado! Você olhava pro céu, mas era tanto balão, que dava a sensação de que você tava olhando uma Via Láctea de tanto balão que tinha na época! A gente não ouvia falar de tanto incêndio, como se coloca hoje. Solta dois, três balões já pegou fogo não sei onde, explodiu não sei quem, morreu não sei quantos. E não eram tantos os fogos como são hoje nos jogos, principalmente do Corinthians, que é um horror! Mas você via balão de todos os modelos! Isso me marcou muito na minha infância! E hoje você vê um Santo Antônio, um São João, não tem nada! Era impossível não ter uma fogueira, um vizinho que não tivesse uma fogueira! Se caçava pra assar carne na fogueira, sabe? Ia pro mato caçar: trazia veado, trazia jaguatirica, paca. Hoje não tem nada disso mais, acabou, aí foi proibido soltar balão, vai preso, o escambau.
Então era a forma de diversão da época. Quem tinha uma condição melhor nas periferias ia pro seu cinema, cada periferia tinha um cinema! Eu me lembro que nós morávamos ali na Vila Matilde, lá em cima no Talarico. O único cinema que tinha era o São João lá em cima. Não tinha mais, então vinha todo mundo, dos arredores pra aquele cinema ali, que era a única diversão que tinha. Um barzinho aqui, outro barzinho acolá, que tinha aquelas vitrolas ainda, eu ainda cheguei a pegar o gramofone pro pessoal ouvir chorinho e dançar, mas enchia de gente! Os baiãozinhos do seu Luiz Gonzagão! Ia pra ouvir os discos, mas era divertido; a gente tendo chance, a gente não perdia. Uma outra coisa de distração também que eu me lembro: tinha o pessoal que gostava de cantar as musicas da época, então eles faziam uma equipe de calouros, e aí os presentes pra quem ganhava primeiro e segundo lugar era queijo, requeijão , era marmelada. Quando eu ia cantar, o que eu trazia de queijo, de marmelada pra casa só que a minha mãe não podia saber que eu tava cantando no Clube do Savóia, se não eu ia apanhar! Minha mãe dizia: “Você vai aonde?”. “Ah, mas eu vou na igreja ver a história de São Sebastião”. Cada vez que eu dizia que eu ia a igreja ouvir a história de São Sebastião, aí eu podia, que era catequese, aí eu podia ir. Mas ir, assim, pra se divertir, pra se distrair, não podia não! Só com o pai ou com a mãe, que a gente ia pra roda de samba, pras musicazinhas lá embaixo, do contrário não saía.
P/1 – E você tinha irmãos?
R – Eu tinha. Os meus dois irmãos ficaram na criação da minha avó, quando a minha mãe fugiu de Piracicaba.
P/1 – Tá. Aqui em são Paulo?
R – Não, aqui em São Paulo eu vim ter a minha irmã caçula, que nasceu em 45. Pra casa da minha vó a gente ia todas as férias até 1945. Daí eu via meus irmãos que estavam lá, do contrário não se via. Vim ver meus irmãos depois em 56, 57, quando a minha mãe conseguiu trazer todos os irmãos pra cá pra São Paulo.
P/1 – E nessa época, até os 15 anos que é onde parou mais ou menos a história, você lembra de algum sonho de infância?
R – Ah, lembro! Eu lembro, lembro sim. O meu maior sonho na infância era estudar. Eu me lembro que essa casa que a minha mãe trabalhava era perto do Sion, no Nove de Julho. Eu via aquelas meninas todas vestidinhas de saia xadrez, blusinha branca, de boina Eu ficava pendurada na cerca, meu Deus: “Quando é que eu vou poder estudar.” Nessa época eu já tinha feito o meu primeiro ano até a quinta série. Já tinha feito admissão. No dia da admissão o meu diretor ficou na minha casa do meio-dia até às oito da noite esperando a minha mãe chegar pra falar pra minha mãe – o meu diretor era o doutor Odilon; uma escola de madeira, foi a primeira escola de madeira de São Mateus, Pedrosa; ele era um diretor tão exigente que ele tratava o pessoal, as crianças, com tanta seriedade, e o que encantava em todos nós, crianças, é que a gente não via o sorriso dele, ele não sorria, ele era sério; a gente não sabia se ele era banguela, se ele tinha dente de ouro... Dente de ouro naquela época era moda! “Você viu? Ela tem dente de ouro!”. Era sério, sabe? Mas ele tinha uma atenção muito especial com os alunos. O que não ia bem, por que é que não ia bem, se tinha problema em casa. Eu aprendi muito com o doutor Odilon, dele, de sentir o tanto que ele observava a equipe, sabe? E aquela equipe nossa, era a primeira da área de São Mateus. “Fulano, que melhorou a nota, foi bem na prova?”. “O que é que ele tem que ver com isso? Ele não é nosso professor!”. Professor era ela, ou era ele, não é ele. Então eu aprendi muito com o doutor Odilon, foi uma marca muito forte. Eu nunca imaginei que o doutor Odilon, quando no final do curso, fosse ficar na minha casa como ele ficou, a tarde inteirinha sentado atrás da porta esperando a minha mãe chegar! Aí a minha mãe chegou e ele falou assim: “Dona Ercilia, eu vim pedir pra senhora se a senhora deixa eu levar a Aparecida pra minha casa, eu quero custear o estudo dela. Dona Ercília, a cabeça da Aparecida só aparece de cem em cem anos!”. Eu não entendi o que é que era a cabeça que aparecia de cem em cem anos. “A sua filha é muito inteligente, a senhora sabe disso?!”. “Ah, eu sei, mas eu não vou deixar ela ir não, porque eu vou casar a minha filha, já arrumei um noivo pra ela, um namorado, um oleiro da Vila Rica. E assim que terminar esse ano, que eu tiver mais folgada, eu já fui no juiz, o juiz já deu permissão, eu vou casar”. Ele ficou com o olho desse tamanho: “A senhora sabe o que é que a senhora vai fazer?”. “Certeza absoluta! Já tá na hora dela casar!”. O senhor Odilon despediu de mim, a minha mãe foi embora. Nossa, gente, é muito forte isso pra mim, fantástico, aquele homem sério, que não ria, ir na minha casa pedir pra minha mãe se ela dava permissão dele me custear os estudos! Uma coisa fantástica, na minha cabeça eu sempre me lembro disso! Minha mãe não deixou. Aí eu fui conhecer o homem com quem eu ia me casar.
Era um oleiro, na Vila Rica, eu olhei pra cara dele... Aí eu tinha um amiguinho, muito meu amigo, ninguém queria que a gente tivesse amizade, mas a gente fugia pra bater papo, era a única pessoa com quem eu conversava, ele já era um senhor na época. Eu falei: “Você sabe que a minha mãe vai me casar?”. “Com quem?”. “Eu sei que ele faz tijolo! Lá na Vila Rica. Ele toca pandeiro e ele participa dos forrós que tem aí na sede, toca no conjunto”. Acho que era Pedro Simão, o nome do camarada do conjunto, que tocava sanfona. “Você quer casar?”. Disse: “Eu não!”. “Mas a gente tem que dar um jeito então!”. Mas até então essa pessoa que era muito amiga da gente, a gente trocava muita idéia, a gente se dava muito, a gente tinha muita amizade! Ele foi arquitetar uma forma de impedir esse casamento. “Você tem alguma tia?”. “Eu tenho uma tia que é cunhada do meu pai.”. “Então eu vou falar com ela!”. Ele foi na casa da minha tia, cunhada do meu pai, falou com a minha tia. Minha tia falou com meu pai, meu pai mandou que fosse me buscar imediatamente porque eu não tinha idade pra casar. Fui salva pelo gongo! Mesmo sem com muito contato comigo ele fez algumas coisas pela minha vida futura. Mas foi assim num tapa: naquele final de semana a tia Maria apareceu lá em São Mateus na casa da minha mãe: “Que papo é esse que você vai casar a Negrinha?”. Minha mãe falou, reclamou, falou, mas eu não me dava com meu padrasto! Eu não me dava mesmo! Não tinha nada a ver. Minha avó já tinha falecido. Nossa Senhora! Minha tia fez as minhas malas e me levou embora. Eu presumo que quando o noivo veio pra gente noivar já não encontrou mais a noiva. Esse foi o primeiro drible que eu me lembro que eu dei na minha mãe com a ajuda desse rapaz!
Eu tô falando pra você de 1954, eu vim casar com esse rapaz em 1990. Por quê? Porque ele já gostava de mim na época, mas eu era muito menina. Ele era casado! Pai de filhos, tinha esposa, ele tinha que ficar no lugar dele! Aí eu sumi daquela época, desapareci. Eu fui pra casa da minha tia, por isso eu conheci a Vila Madalena na década de 50. Nossa, não tinha nada a ver com aqui! Era terra tudo! Que a única rua que era asfaltada era a Fradique Coutinho, que a gente veio pra cá criança! Bem criança! Criança que eu digo é 14, 13, 14 anos 15 anos. Eu fiz 14 anos e 15 anos aqui, na Vila Madalena.
P/1 – Na casa da sua tia?
R – Na casa da minha tia.
P/1 – E aí, a partir daí, o que é que você começa a fazer, como é que começa? Que rumo toma a sua vida?
R – A casa da minha tia era muito boa! Pelo menos pra as coisas novas. Na época, São Mateus praticamente era uma roça grande, era no meio do mato. A Vila Madalena ela já representava já o urbano, com toda a situação difícil da época, mas era diferentíssimo de São Mateus, que ainda tinha carreata de boi, carro de boi ainda em São Mateus. Então eu era a caipirinha que tava vindo pro centro da cidade. A casa da minha tia, irmã do meu pai, era muita gente! Minha tia ela tinha aquela educação de todo mundo que vinha do interior e não tinha onde ficar, arrumava um canto, nem que fosse embaixo da mesa Na mesa nunca faltava um prato vazio pra quem chegasse com fome, era tradição da família, abraçar a família! E foi abraçar eu lá em São Mateus e trazer lá pra casa dela, vocês imaginam como era a casa da minha tia! E a minha tia tinha cinco filhos: Helena, Aparecida, Lurdinha, as mulheres Era cinco filhos. Todos adultos, todos criados já, alguns casados, já com filhos. Mas quem chegava não ia faltar um cantinho pra dormir, mas tinha que trabalhar pra ajudar na casa. Então, o que é que aconteceu? Eu fui trabalhar. Eu me lembro que fiz amizade com uma outra família pra frente, que também tinha muitas meninas moças; eu fiz amizade com uma, minha amiga Dita, tadinha! E ela me arrumou um serviço na Artur Azevedo. A dona Deni. Ela era professora de piano. “Você limpa tanto esse piano, Aparecida! Você gosta de piano?”. “Gosto.”. “Assim que tiver um tempinho eu vou começar a te ensinar”. Nossa, a ilusão de um dia aprender a tocar piano. Ela tocava muito, muito. Ela nunca me chamou pra ensinar, mas eu mantive essa ilusão muito tempo.
E tudo eu me lembro quanto eu recebia na época, tudo que eu recebia ia pra casa da minha tia, ajudava a minha tia. Depois da dona Deni, já com 17, 18 anos, eu fui trabalhar na casa de três senhores, três rapazes: Vanderlei, Luiz e tinha mais um. Eles eram jovens, a casa era muito divertida, muita música. Eles se encantavam, porque eu cantava o dia inteiro, limpava a casa em cima, embaixo, fazia almoço, servia os amigos deles. Fiquei um bom tempo trabalhando com eles, três senhores maravilhosos! Foi assim uma segunda família. Nesse ínterim a minha mãe trabalhava ainda com essa família que eu fui criada, mas dessa vez com a filha do doutor Augusto, com as filhas dele, na rua de cima, então a gente tinha muito contato. Ela dizia assim: “Nossa, você foi criada pela gente, Aparecida, assim que der uma chance vou trazer você pra cá!”. Eu tinha a ilusão que se ela levasse eu pra casa dela, agora dessa vez ela já era uma pessoa adulta, já tinha três filhos, ela ia permitir que eu estudasse, o sonho de estudar me perseguia. Aí a chance que tive eu voltei a trabalhar com os Pereira da Silva, dessa vez com a filha do doutor Augusto, aquela dona Isaura. A casa tinha três andares. Gente, eu cuidava desses três andares mesmo! Levantava quatro e meia, cinco horas, pra limpar essa casa, porque a minha mãe era cozinheira e passadeira. Eu cuidava da copa e dos três andares e das quatro crianças! Trabalhei. Trabalhei! Nossa! Eu trabalhei com uma Francisquinha. Dos meus 16 anos até meus 23, trabalhei com a Francisquinha. Quando eu saí da Francisquinha, o serviço que eu fazia ela colocou quatro.
P/1 – Tia Cida, te perguntar: nesse tempo todo que você tá contando, essa coisa da música que você fala que gosta muito, do batuque, isso continuava com você sempre, você freqüentava? Conta um pouco.
R – Eu acho que até pela herança. Eu sou filha de um músico, cantor famoso, tinha história muito forte na caminhada dele. A família da parte do meu pai era gente de percussão, tocar pandeiro. tambores, zabumba. A família da parte da minha mãe vinha também dos Reisados, de organização de Reisados de Piracicaba, de Jongo. E sempre que podia a minha bisavó, mãe da minha avó levava os netos, bisnetos pra ver as rodas de Jongo. Então sentava todo mundo ali: “Não sai dali!”. Obediência era plena, ninguém saía, e de vez em quando vinha um pedaço de bolo, vinha um chá de não sei o quê, pra não sair dali. E ali a gente participava de todos os acontecimentos, acho que era a última pra encerrar é que tinha a permissão pra trazer as crianças pra aprender, pra ensaiar. Então, por isso que quando eu tô na roda de samba, que eu rodo e eu tô rodando a minha avó, a minha bisavó. Que foi com esse povo que eu aprendi, com esse povo que eu aprendi a amarração, a palma da mão, bater palma Então a gente gostava disso, porque apesar de todas as necessidades que se passava tinha esse lado alegre, divertido do pessoal. A minha avó comprava uma boneca: “Ah, vamos batizar essa boneca!”. Batizado de boneca na casa de gente grande, sabe? Não precisava ter motivo pra festa! Qualquer coisinha reunia o pessoal pra tocar. Seu Jaú que tocava violão, Eduardo que tocava pandeiro, não sei quem que aprendeu a tocar repique... aí já tinha uma roda de samba formada, e a gente cresceu gostando disso! Eu criei os meus filhos levando roda de samba. Eu tenho um músico, o outro é percussionista. Até hoje eu morro de vontade de tocar pandeiro, não parei pra aprender, mas eu acho desaforo morrer sem aprender a tocar pandeiro. Não, ainda vou tocar, ainda vou! E se eu aprender a tocar pandeiro, se eu comprar um fusca, ninguém me segura mais! Aí a questão de gosto e de estar mesmo no sangue da veia.
P/1 – E mais: essa aproximação com a Vai-Vai, de ter nascido lá, continuou?
R – Não, foi só uma história mesmo, que a gente nasceu. A gente nunca se encantou muito pela Vai-Vai, minha paixão é a Camisa Verde e Branco. Meu primeiro marido, ele era pintor decorador artístico, em Santos. Quando a gente casou em Santos, ele trabalhava na CMTC –aquela linha era garagem de ônibus que tinha lá na época, agora não sei mais, não voltei mais pra Santos –; daí quando nós viemos aqui pra São Paulo, que a vida complicou e nós tivemos que subir – eu me casei em 63 –, quando nós tivemos que subir, o ponto de encontro que ele tinha, o pessoal de conhecimento dele, que vivia muito em Santos e tinha referencia dele aqui em São Paulo, era o pessoal da Camisa Verde e Branco. Então as minhas crianças todas foram criadas no terreirão da Camisa Verde e Branco. Não tinha quadra na época, na época, tinha um clube de ensaio no Bom Retiro. E a gente se apaixonou pelo Camisa, então ficou muito forte o Camisa, e eu sou Camisa até hoje. As crianças minhas são Camisa até hoje. Marcelo, que é o músico, que se apaixonou pela bateria do Nenê de Vila Matilde, mas eu, Gil e a Carmem Silvia, a gente continua firme no Camisa, desde os anos 60!
P/1 – Então, vamos voltar a história, que você tava contando: depois da Francisquinha, com 23 anos sai de lá, e essa questão de estudo sempre na sua cabeça?
R – Ah, sim, sempre na minha cabeça. Então eu saí da casa da Francisquinha com 23 anos pra casar. Francisquinha tinha um apartamento em Santos, Zé Menino, a Rua da Paz, e ela descia. Eu fui trabalhar com ela. Ela descia todas as férias do mês de dezembro pra Santos; as férias do mês de julho ela ia pra Campos de Jordão. Tanto é que eu conheci Campos de Jordão em 57, 58. Não tinha nada a ver com Campos de Jordão que você vê hoje, era bem diferente! O frio sim! O frio era real. E Santos sempre foi Santos. Excesso de gente, aqueles apartamentos enormes atrapalhando a praia. Lá em Santos eu conheci o pai das crianças minhas. Eu namorei, noivei e casei em 45 dias. Uma fuga sensacional! Eu tava com as paciências cheias: “Não agüento mais!”. Vinha de uma decepção de uma pessoa que a gente gostava muito e que e fui pra Santos, conheci o Zé Carlos e ele: “E aí, mina, quer casar comigo?”. Falei: “Eu caso, o que é que você faz?”. “Trabalho na CMTC”. “Muito bem, vamos morar onde?”. “Vamos morar no Macuco”. Tá bom!”. Foi sensacional! Nossa, a minha mãe quase morreu: “É louca!” “Mas, imagina eu tô com 23, a senhora ia me casar aos 13 , já sou dona do meu nariz agora, já posso fazer aquilo que quero”. Mas ela ficou me olhando, não disse muita coisa porque ela realmente não podia dizer.
Aí eu fiquei, eu morei em Santos de 63 até 65. Daí as coisas ficaram difíceis, pro meu marido. Por que é que ficaram difíceis pro meu marido? Porque no Golpe do Estado em 64, foi aquela devassa. Todo mundo na rua, desempregado, as docas, cais, e a CMTC não foi diferente, mandou metade do pessoal pra rua e ficou muito difícil. 64 foi muito difícil pra Santos. Muitos movimentos, muita matança, muito desaparecimento, foi terrível! Meu marido, ele não era ativista político não, ele era percussionista, eles tocavam em boates. Ficou difícil também porque o pessoal fugia muito, quase não saía, tinha toque de recolher. 64 de março até o final do ano foi terrível a Baixada. Nós viemos embora pra São Paulo. Aqui em São Paulo eu tive que voltar pra casa da minha mãe, dessa vez já tinha Carmem Sílvia minha, de colo, e meu marido foi desenvolver o que ele sabia fazer bem que era pintor, decorador artístico; ele pintava quadro. Se ele pintasse 20 quadros pequenos e saísse na Rua Direita, na Praça da República, ele vinha sem nenhum quadro pra casa, pintava muito, muito, muito! Ele era um artista nato!
Mas todo artista é acomodado, ai como eu não suporto essa raça! Nossa Senhora da Aparecida, eu sofri demais por isso, então vendia aqueles quadros e era aquele sossego enorme! A gente conseguiu viver bem, viver junto até 69, depois em 69 a gente se separou que eu não agüentava o sossego dele, e ele não agüentava eu me calar. Mas aí continuou com as atividades dele de pintura na Camisa Verde e Branco, foi decorador artístico por muito tempo! Ele foi convidado umas três vezes pra ensinar pintura na França! Você sabe lá o que é você torcer pra um cara ir pra França? Ia ser uma outra cultura, estar dividindo conhecimento dele, que era muito fino! Ele fazia tons de cores que ninguém fazia, só ele fazia, então admiravam muito, foi convidado umas três vezes. Ele foi convidado pra expor na Alemanha. E o fato dele não se deslanchar enquanto artista plástico deixou ele muito depressivo, foi muito complicado pra vida dele, pra estar enfrentando; e a gente percebia por uma série de coisas: ou a questão da discriminação, ou a dificuldade de furar o bloqueio do talento Foi muito difícil pra ele. Ele não avançou não. Nessa fase, eu tô falando de 1968 a 1970, nessa fase a gente tentou reatar, em 68, e novamente não deu certo. Ele foi embora, já tava muito sem paciência. Essa última vez que ele foi embora, eu fiquei grávida do Marcelo, meu último filho. Minha mãe: “Ai, que não tá certo, você engravida”. Outro quebra pau! Mas aí tinha que segurar. Aí eu já tinha a Carmem Sílvia, eu já tinha o Gil, meu marido foi embora pela segunda vez e deixou eu grávida do Marcelo, foi outra briga.
Ele tinha trazido pra mim um menino da rua, meu marido tinha muito bom coração, ele morria de dó de idosos, ele morria de dó de crianças, se a gente deixasse ele enchia a casa de criança de fora. Mas teve um que ele trouxe uma vez, um pouco antes de ele ir embora... Ele foi tocar, foi fazer uma vernissage e depois da vernissage dos quadros ele ia tocar. E chegou de manhã com o menino, assim: “Minha preta, olha o que eu achei debaixo de uma construção?”. “Você é louco.”. “Não sou não. Se você apertar ele, é de carne e osso. Ele tá sujo, tá com fome, ele tá com sede, e não fale muito pra não assustar o menino!”. Gente de Deus, a a gente já passava uma vida tão apertada! Mas aquele menino, o cabelo dele desse tamanho, com o pé alto assim de cascão, sabe? “Tudo bem? Como é que você chama?”. “Vanderlei.” “Que idade você tem?”. “Nove”. Tá, levantei: “Vai lavar a mão Vanderlei”. Se eu mandasse o menino tomar banho naquela hora ia estar ofendendo a moral do menino. Lavou a mão, sentamos, tomamos café. “Minha preta, ele falou que ele quer um pai e que ele quer uma mãe, ele escolheu eu de pai e eu tô apresentando a mãe dele”. Rapaz do céu! Eu olhava pra cara do meu marido e não acreditava! Incrível!
Mas ele tinha essa coisa mesmo, via aquele grupo de criança cheirando cola, ia lá, sentava e conversava, conversava com o dono do bar, punha todo mundo pra comer, dava café, dava almoço. Esse lado dele me encantava. Com pessoal de idade ele era muito preocupado. Me encantava. Esse menino, a gente deu um tempo de seis meses, ele não tinha pai, ele não tinha mãe. Ele tinha um pessoal que ele morava lá em Santo Amaro, que ele não queria voltar porque faziam ele pedir, fazer e acontecer, já naquela época. Eu me lembro da data em que ele chegou em casa: ele chegou em casa dia 23 de fevereiro de 1967. Isso me marcou muito, o dia que ele chegou. Ele ia fazer dez anos em maio. Com seis meses, a gente arrumou um dossiê e fomos lá no cartório da Vila Prudente registrar o moleque . Pusemos na escola; pra colocar na escola tinha que ter documento. Mas foi muito engraçado. E esse menino foi tão forte na minha vida, me ajudava a olhar as crianças pra eu trabalhar. Fez o ginásio. Naquela época não tinha computador, fez datilografia, entrou no banco, trabalhou no Banco Itaú um bom tempo. Fez concurso no Correio e passou, foi trabalhar no correio. Foi um braço direito que a gente teve.
E nessa fase que o meu marido foi embora e eu tinha ficado grávida do Marcelo, e o meu braço direito foi esse menino, acredita. Nossa, foi uma experiência muito rica, incrível. Mas a minha mãe não aceitava não, porque a minha mãe achava que era do meu marido, e eu sabia que não era. Mas a minha mãe achava. Ai, meu Deus, como é que a minha mãe complicava a vida, a compreensão dela era estreita, sabe? Esse menino estava fazendo um curso de atendente de firma: atendente – não existe mais – em 76! Esse menino, já tinha documentado ele, já tinha mais de 14 anos, já tava trabalhando fora. Foi fazer inscrição pra trabalhar no Jumbo de Santo André. Pediram a biografia – lembra da biografia, você chegou a conhecer ou não? É do seu tempo? A biografia era uma chapa de pulmão pequenininha, e o pessoal tirava, hoje tira o raio X, antigamente era a biografia, pra saber se você tinha pulmão normal, se tinha problema no pulmão, no coração. Ele foi tirar a biografia, deu que ele tinha o coração grande, o médico falou assim pra ele: “Menino, você tem só um ano de vida, seu coração tá muito grande pra sua idade”. Ele tava com 17, 18 anos. 18 anos. “Mãe, o médico disse que eu vou morrer porque meu coração tá grande, porque eu tenho um ano de vida” – ele tava começando a namorar, curtir a vidinha dele. Falei: “Que médico doido!”. Eu voei em Santo André, eu quase acabei com o médico: “Minha senhora, foi uma falha minha, a senhora tem toda razão, mas o seu filho tem um coração grande, a senhora vai ver por que, se ele tem problema no coração ou se ele tem algum problema na corrente sanguínea.” Fomos tirar, se aprofundar no caso e deu que era Chagas. Nossa, foi um bum na nossa vida. Daí mandaram avisar o pai dele. E ele tava trabalhando no Correio nessa época. Nós conhecemos todos os médicos que tinha problema de cardiologia, havia um projeto do Incor na época, o pessoal separava os problemas e a gente se encaixou no programa cardíaco, a gente aprendeu tudo sobre doença de Chagas, estudamos o máximo que pudemos! Daí quando começou a aparecer os primeiros sintomas, o próprio medido disse que ele ia morrer com um ano de vida, ele faleceu em 82, mas não teve como escapar. Quando ela começou a dar os problemas já vieram me chamar nos finais já. Nossa, eu fico chocada, até hoje eu fico chocada! Já se avançou tanto e ainda continua gente morrendo com Doença de Chagas. Já a AIDS praticamente tá controlada, a Chagas não controla não! Porque acontece muito cedo, ela vem progredindo no corpo. Isso, em 82 que ele faleceu.
Voltando, quando a gente descobriu que ele tava com esse problema, que eu já tava separada do marido, já trabalhava sozinha, as crianças ficavam em casa, batalhava O Vanderlei me ajudava muito na educação das crianças, já maiores, já adolescentes, já E as crianças já sabiam que ele tinha esse problema, então ele era muito presente nas crianças, o pai que as crianças precisavam, que não era presente, o Vanderlei era; o mais velho presente, aconselhando, orientando um, orientando outro.
Em 78, com esse problema do Vanderlei, que tava me afligindo muito, eu resolvi estudar, tava com 38 anos. Tinha um básico que era até a admissão. Faltava o ginásio e o colégio, aí eu fui fazer um teste lá no Métodos, no Parque das Nações, como quem vai pra Santo André. Falou assim: “Mas a senhora tem vontade de estudar por quê?”. Falei assim: “Não sei, eu tinha vontade de estudar, a chance que deu foi agora.” “Por quê?”. “Porque eu sempre quis, não tem um porque especifico!”. “O que é que a senhora faz?”. “Eu desenvolvi um trabalho aqui na parte de São Mateus na ação social”. Tinha chegado uns padres novos e eles queriam uma pessoa que fosse moradora antiga da área, e alguém me indicou e lá fui eu pra paróquia. Conhecia todo mundo, apresentaram os padres novos que tinham uma outra visão de igreja. Acabando aquela coisa de latim, de padre de costas pros fiéis. O padre tava virando de frente, rezando a missa em brasileiro, em português. Aí fui eu, chamada pra trabalhar na paróquia, e fui bem mais cedo. E o Vanderlei gostava de cantar, fazia parte do coral, organizou um coral muito grande pra igreja, um movimento na comunidade Quando fazia as festas em casa, os padres desciam: “Ai, tia Cida, sua casa tá ficando santificada, nas suas festas até padre tem!” Mas era o conhecimento que a gente tinha da área.
Aí tudo bem, quando o Vanderlei faleceu, o Vanderlei era muito conhecido na área pelo trabalho que ele tinha na paróquia, pelo trabalho que ele tinha na escola, e por ele mesmo, ele era um menino muito carismático! Se fosse filho legitimo da gente não era tão parecido com a gente! Muito carismático! Foi um abalo muito grande quando ele faleceu! Voltando pra 78: a equipe do Métodos, se assustava da facilidade que a gente tinha pra aprender e pra decorar, então, o que as pessoas faziam normal, um ano e meio pra fazer o ginásio, eu já tava me preparando - já tinha feito um ano e meio -, e já tava me preparando pro colégio. E eu trabalhava na paróquia, o Franco tinha feito negócio comigo que as crianças na casa da minha mãe estavam muito pressionadas em termos de educação, a gente colocava uma norma, minha mãe vinha e tirava, e foi: “Minha mãe me colocou de castigo”. “Que castigo, nada!”. Sabe? Tava atrapalhando um pouco, meu marido já tinha ido embora, tava atrapalhando um pouco assim. “Ô, mãe, eu obedeço quem? A senhora ou a avó?”. Complicado isso. Casa lá da minha mãe, a força dela era maior Mãe sempre foi assim: determinar rédeas, normas, falava sério, ela falava sério. Dava a vez a tudo e a qualquer coisa nos dias de festas, que ela ficava muito alegre! Dia normal dela ela tinha as rédeas muito fechadas. E meu marido não tinha forma de estar voltando numa vida normal, vida dele não tinha, vida dele já estava estabelecida do outro lado, ele já tinha formado uma outra família do outro lado. Eu falei: “Meu Deus, eu tenho que pensar um pouco” – aproveitar que o Vanderlei dá um apoio muito grande na educação das crianças e ver o que eu posso fazer comigo. Daí eu falei com Franco: “Franco, tá me aborrecendo muito essa dependência com da minha mãe, minha mãe também quer sossego, também tem a minha irmã que todo final de semana tá lá”. “O que você decidir você me fala, porque a gente vai precisar de você por muito tempo”. “A gente vai precisar de você por muito tempo” me dava uma certa segurança pra fazer a coisa, abrir um crediário. Aí nesse lugar que eu moro hoje tava abrindo loteamento, e lá tinha uma casa, tinha um quintal grande, a casa não tinha lá grande coisa não, mas dava agasalhar a cabeça e o corpo, sabe? A gente fechou negócio, e o Franco me ajudou na entrada. E por isso que eu tenho aquela casa lá, condições pra ter na época eu não tinha.
E eu tava estudando, tinha começado e tava encantada, já tinha terminado o ginásio, já tava fazendo o colégio! Sempre correndo. Péssima em matemática, química, física! Passava mal, a pressão não abaixava, nossa, não tinha zabumba, já teve duas provas de matemática que eu fui pro pronto-socorro. Agora, me desse um livro, me desse um português, eu fazia qualquer coisa; mas matemática, física e química não, pelo amor de Deus, apavorada! Ficava apavorada!
P/1 – Cida, posso te perguntar uma coisa Interromper um segundinho pra duas coisas, só pra gente marcar, porque você falou vários nomes e às vezes eu fico perdido: Franco era...?
R – O padre, da paróquia.
P/1 – Tá. E só pra gente não perder esse fio: essa paixão pelo livro, você lembra o primeiro livro que você leu?
R – O primeiro livro que eu li?
P/1 – Ou o primeiro que te marcou então?
R – Livro que me marcou? A minha cabeça crítica e política eu devo ao Jorge Amado e Luís Carlos Prestes, foram as minhas referências de vida, porque o que é que acontece do outro lado? Eu acho que se não tivesse lido “Capitães de Areia”, eu acho que eu não teria avançado; se eu não tivesse lido a trilogia do Jorge Amado...
P/1 – Subterrâneos da Liberdade.
R – Esse mesmo. Nossa, o que me encanta foi começar essas leituras. Você era uma pessoa, quando você terminou essa leitura você era outra pessoa. Porque existia algumas coisas na área, justamente na igreja que a gente trabalhava, eu não entendia muito o porquê daquilo, mas admirava a preocupação do Franco. Franco era ativíssimo, ativista roxo! Ele sofreu muito por minha causa, porque tinha aquele problema de ser negra, de ser mulher, separada, e trabalhava numa paróquia onde só passava bons costumes! Sabe? Nossa, ele enfrentou muita briga por minha causa! Eu dirigi um grupo de noivos, pessoal adorava a minha palestra, aí falavam: “Mas como? Que ela não pode fazer isso porque ela é separada do marido, ela não tem moral nenhuma pra fazer isso”. “Mas ela tem, ela tem uma carteira assinada, ela é uma mulher trabalhadora, ela tem quatro filhos, ela sustenta os filhos dela!” Complicado, uma bucha assim que a gente pegou. Nossa, terrível! E eu me dava muito com o Dom Paulo, eu me dava muito com o Dom Luciano! Eu fiquei trabalhando muito forte em área social da paróquia! Eu fundei aquela catequese na área todinha de são Mateus, tinha mais de 16 bairros, então a gente tinha um conhecimento muito forte ali. Mas tinha algumas pessoas que sabiam que o meu íntimo não era o catolicismo pleno. “Você sabe o que você tá fazendo?”. “Eu sei. Tudo começou no catolicismo, depois foi uma questão de opção, porque a igreja nunca foi santa”! Essas coisas não podia falar. De vez em quando escapava alguma coisa! Mas essa minha cabeça crítica eu devo ao Jorge Amado, sinceramente, se eu não tivesse lido a Trilogia, se eu não tivesse lido “Capitães de Areia”, eu jamais teria essa cabeça; se eu não tivesse um Franco pela minha frente também.
Então nessa área de São Mateus acontecia muitas reflexões do que a gente enfrentava, e o momento era aquele momento fantástico que você não podia abrir a boca, que você não podia falar. E eu tinha quatro filhos, pequenos. Eu batalhava pelos meus quatro filhos. Então ele dizia assim: “Cida, como é que tá a catequese?”. “Tá ótima, Franco!”. “Tá indo bem?”. “Tá”. “Tá com algum problema em alguma área?”. “Não, quando eu tenho eu te levo”. Eu lembro que eu levei pro Franco dois problemas. Assim, ninguém queria ficar com os adolescentes, adolescentes eram sempre meus, não sei por que cargas d´água! Ninguém queria ficar com os adolescentes! Davam catolicismo pro pessoal de sete, de oito, de nove... de dez pra frente ninguém queria, então ficava comigo o pessoal de 10, 11, 12, 13, até 14, 15 anos, que já era a preparação pra crisma, eles ficavam comigo. O papo era totalmente diferente, claro! Não tinha nem “Cida, eu queria ter esse jeitão que você tem de lidar.” E as mães vinham, cumprimentavam a gente: “Parabéns, o meu filho conseguiu me ajudar”. Então eu via frutificar o trabalho da gente e o trabalho era imenso! E o grupo de catequese era muito grande!
Aí já começava a implicar, a época, era numa época maçante, assim: “O que é que aquela negra faz que ela consegue aglutinar tanta gente?” Tinha as reuniões na catequese Então a gente raciocinava um problema da comunidade na reunião, frente um evangelho de João, de Marcos, Mateus. Refletia o problema da falta de água na favela. Coisas que não era muito bem vistas, sabe? Uma área de São Mateus terrível como era a nossa, que não tinha um posto de saúde, o bairro crescendo. Como é que a gente ia se organizar pra esse tipo de coisa? Então, de repente eu me lembro de uma vez que a gente questionando – acho que João XV: “Se não houver amor não tem sentido tudo que você faz” – meu texto, eu me lembro que era esse. Daí: “Quem que é responsável por isso?”. Aí não sei quantas metralhadoras. “Sou eu”. “Quem é a senhora?”. “Eu dirijo a catequese, tô fazendo reunião com os pais”. “Nós ouvimos uma denúncia, tá tendo uma reunião subversiva”. É, realmente eu acho que o Evangelho sempre foi subversivo, o texto é isso: “Ai, vocês me desculpem”. Foi o ponto mais alto que eu vivenciei aqui até hoje, eu consegui manter a minha respiração normal e todo mundo que tava comigo, ninguém ficou nervoso – a referência era a gente, a gente não ficou nervoso, ninguém ficou nervoso. Nossa, rapaz, essa época era 68, 69. Chumbo mesmo. Então foi uma experiência muito rica, cresci muito nessa época. Aí eu já lia, e fazia muito cursos também, social e político. Nessa época, a pessoa que mais a gente trabalhou foi Eduardo Jorge, nordestino fantástico. Não posso comparar ele com ninguém daquela turma, porque o resto conseguiu vender a cabeça, eu acho que ele ainda é fiel, ele ainda é fiel. A gente evoluiu a ponto de procurar algo mais pra gente, precisava o sonho de estudar e o sonho de que aquele seus filhos, crianças na época, conhecessem uma vida melhor, um mundo diferente que não fosse repressão. Onde tivesse um pouco mais de liberdade de escolha.
Aí tava estudando ainda: “Tia Cida, teu curso tá no fim!”. “Ai, que pena, vou sentir falta!”. Já tinha acontecido o 27 de março, na Vila Euclides, terrível! 27 de março na Vila Euclides, um auê terrível, balanço de estrutura, assim, muito forte. “A senhora vai fazer faculdade?” Tensão: “Nossa, mas a senhora é muito atrevida!”. Falei assim: “De repente, pode ser que não dê, mas que eu intenciono, intenciono”. “Então a senhora não vai precisar dessa matéria, nem dessa, nem dessa”. Que eram aquelas três terríveis que eu tinha na minha vida. “O que é que a senhora vai fazer?”. Caso chegar até lá, a gente vai fazer Serviço Social, Pedagogia – mas eu não tenho muito jeito pra pedagogia, eu tô por aqui de criança, não agüento mais, não quero continuar, eu posso até estar ajudando alguém. Bom, prova final de curso, daí com o Everson, fantástico, disse: “Dona Cida, vem cá, pega essa Novalgina, a senhora vai tomar. Vamos tentar fazer prova, a senhora vai fazer as três”. “Ah, pode ficar sossegado!” – porque ele já tinha me levado pro pronto-socorro duas vezes. Não fiquei nervosa, era a última e eu tinha estudado bastante dois dias atrás, foi um amigo da gente em casa, me ensinava! Nossa Senhora, não acredito que eu passei por aquilo. Aí fui razoável nas provas, algumas coisas eu consegui, outras coisas não. No dia seguinte que eu fui buscar o resultado, eu cheguei mais ou menos umas nove horas da manhã, estudava à tarde, mas eu podia, tava liberado, fui cedo, antes de ir pro serviço passei lá pra saber, ele tava na porta: “Passou em todas, pode ficar”. Ai, foi demais, viu? Foi demais! O trabalho que a gente fazia no nível para o que é uma favela era muito grande, e as assistentes sociais de Itaquera eram responsáveis pelo trabalho na favela e a linguagem do pessoal em relação à equipe da favela era muito diferente! “Tia Cida, outra vez que aquele pessoal for lá, a senhora tem que estar lá, porque o pessoal enrola a gente!”. “Não enrola a gente, a gente tem que respeitar, elas são profissionais”.
Um dia eu já estava na paróquia mesmo, já tinha resolvido dois encontros de catequese, o pessoal da favela chegou: “Tia Cida, a senhora já saiu do colégio?”. “Já”. “Tem inscrição aberta na faculdade da Zona Leste, o seu Antônio acha que a senhora tem que fazer inscrição”. Eu falei: “Mas eu não quero fazer, porque eu não tenho condição de pagar”. Gente, eu recebo 500 reais por mês e eu tenho que pagar uma casa de 500 reais por mês, presta bem atenção: o mês que eu pago a casa eu não faço compra, o mês que eu faço compra eu não pago a casa; o que é que vocês estão colocando na minha cabeça é impossível!” O papo foi desse jeito com a equipe de favela. Voltaram todo mundo desconsolado, e eu fiquei arrasada de ter falado isso, eu fui muito dura com o pessoal, não devia ter falado aquilo, que já havia um trabalho muito grande, o pessoal já entendia bem o que a gente conversava. À tarde, veio seu Antônio: “Mas, mulher, como é que tu faz o pessoal sair daquele jeito cabisbaixo”. Falei: “Ai, seu Antônio, eu não menti, eu fui muito grossa de manhã, eu não devia ter feito aquilo”. “Mas eles vêm falar em faculdade E tem que falar de quê? Complicado, acabou de sair da escola e tirou o seu segundo grau”. “Mas eu não tenho condição”. “Mas o pessoal tá pensando ”. “Ah, não! Não vou aceitar pensar”. Eu já sabia o que eles estavam propondo: “Não quero saber!”. Aí o seu Antônio volta de novo: “Faz o seguinte, pra deixar o pessoal feliz, vai prestar o vestibular”. “Tá, não custa.” Fui lá, peguei, sofri, achei que ia cair bêbada de estudar química. Todo mundo lá: “Aí, já foi?”. “Não.”; “Já foi?” “Não.”.“Já foi?” “Não.”. Ah, tá bom, daí eu fui. Fui e fiz. Meu sonho era – já que eu tava entrando, caso fosse entrar – eu tinha três opções: Enfermagem – fazia parte do primeiro curso que fiz, falei pra você que fiz curso de Enfermagem; Estudos Sociais – que eu tinha uma paixão por estudos sociais, por causa das matérias que tinha, o aprendizado era muito grande; e Assistente Social.
Então, fui fazer a vontade do pessoal. “O que é que a senhora colocou?”. Falei assim: “Ah, coloquei três opções, coloquei Enfermagem, que era vontade da gente, quem sabe com o tempo; Estudos Sociais e Assistência Social”. “Ai, que legal!” Falei: “Gente, vocês mandaram eu fazer vestibular, agora eu não quero ver ninguém com raiva, ninguém de cara feia” Uma festa, que eu tinha ido fazer o vestibular – tinha tanto serviço na paróquia, mais as minhas preocupações de casa, as crianças minhas já estavam assim em desenvolvimento de ter atenção. Lá um dia eu tô trabalhando – tinha offset, sabe o que é offset? Acho que foi a coisa mais recente que eu aprendi: passava a papelada e botava na paróquia e tinha aquele outro aparelho que a gente virava, mudava a folha, esqueço o nome...
P/2 – Mimeógrafo
R – Mimeógrafo! Era esse mesmo! E tinha o offset que a gente trabalhava pra fazer a documentação pra todas as comunidades, e tinha o mimeógrafo que a gente trabalhava pra fazer os trabalhos da igreja. Eu tô lá atarefada de trabalho, Nossa Senhora, me chega o pessoal: “Parabéns! Não falei? A sua cabeça de gênio!”. “O que é que aconteceu?” Mas como tava todo mundo feliz: “A senhora passou!”. Eu tinha esquecido, a preocupação deles de ficar me sondando lá, olha. Você não tem idéia, São Mateus, pra você tomar ônibus em São Mateus pra você ir longe, é chão! Eles irem lá pra seguir: “Tia Cida, daqui três dias vai encerrar, a senhora vai fazer a sua matrícula”. Falei assim: “Mas eu não vou fazer.” “Ah, mas a senhora vai!” Gente, eu fui pra faculdade empurrada, por esse pessoal, porque a gente já trabalhava, esse é o maior orgulho que eu tenho de dizer: “Não passei pela vida em branco”. Esse pessoal que a gente trabalhava, sentava, se orientava, esse pessoal me empurrou pra faculdade. Tá, essa coisa de se cotizarem pra ajudar a pagar no final do mês, o Franco acho aquilo fantástico! O Franco abraçou. Eu ganhei, fui lá na faculdade, consegui 75% de bolsa, que tudo que vem de graça não tem valor, um pouquinho tinha que sacrificar, o pessoal ajudava a pagar, assim a gente fez os quatro anos de Serviço Social na faculdade, sempre aprontado!
Era essa época os anos de chumbo ainda. A gente, os movimentos que tinham saído da faculdade, nossa, professor nenhum me deixava pra trás, era briga pra disputar os professores da área, aonde que ia ter tal encontro pra faculdade participar, pra Tia Cida participar, pra gente já ir pra lá. Nossa, teve um ministro, ele queria saber quem eu era e aonde que eu morava, Murilo Macedo. Foi no encontro que o pessoal me levou da faculdade ali na frente, deixava eu sentar bem na frente: “Cida, você vai ouvir, você não vai falar nada”. Os grandes encontros que a gente tinha na Vila Euclides em São Bernardo, nossa, ele nunca podia ir! Mas tinha aqueles ministros muito gostosos de curtir. Uns não eram ainda, outras já eram. O Teotônio Vilela, eu era apaixonada pelo Teotônio Vilela. E um camarada, que era muito forte na época, esse cara tá vivo até hoje, que é o Suplicy, enrolado do jeito dele, mas ele era um ponto de apoio muito firme pro partido! Ele não tinha preguiça e nem se omitia. E aí ele assume lá na época. Santo Amaro era uma referência forte de mente e cabeça! Questionar as coisas que aconteciam na época! E esse dia, o Murilo Macedo, eu levantei a mão, nossa, era tudo A imprensa voltava pra quem ia fazer perguntava – porque ninguém se atrevia a fazer pergunta. Meu professor quase desmaiou. “E aí, como é que fica pro senhor sentir que existe um grupo de formigas lá em Santo Amaro, São Bernardo crescendo, pra todos os santos São Mateus, São Paulo, Santo André, São Caetano Os santos estão dando a mão e fazendo força pra que as coisas aconteçam pra um futuro melhor, como que é a posição sua de política?”. Nossa, mas vocês viam neguinho fazer assim...! Me deu uma vontade de rir, até hoje, eu faço alguma coisa errada, pesada, a minha reação é rir; tava com uma vontade de rir, não conseguia rir. “Poxa, a senhora consegue falar em códigos, utilizando os santos e as formigas”. Eu já falei: “Só que o senhor entendeu o que eu falei.” “Entendi”. Tava embaixo e ele tava em cima. “O novo sempre vem” – achei que ele foi muito inteligente na resposta: o novo sempre vem! “Quer a gente queira, quer não, a gente tem que estar preparado pra tudo”. Aconteceu em outras épocas também, não passou disso, tenho isso aqui pra aquela cara dele, que ele não era um dos ministros maus, não, não era, só que ele vivia num regime em que não se podia perguntar nada. Nossa Senhora, querendo saber da onde que eu era, o que eu tinha feito, o que é que eu fazia, o que é que eu estudava, que idade que eu tinha, um escândalo! Um escândalo, nossa mãe! Ainda não para! Uma semana depois do encontro, ainda tinha gente indo lá pra saber da onde que eu era, e eu meio escondida, porque fiz uma pergunta pro ministro Olha a época, você não podia falar, não podia.
Aí não sabiam o que faziam comigo, eu tive que ficar três dias, uma semana sem ir na escola. Depois eu voltei. Eu voltei, quando eles quiseram me expulsar foi por um auê ,que eu fiz no Centro Acadêmico, também pelos direitos do pessoal, de estar revendo matéria. Porque tinha uns engodos fantásticos na época. Eu tinha uma professora que ela não me suportava, ela me detestava, e ela cismou de não deixar eu passar de ano, e eu sabia que eu tinha passado. Você acha? Eu fui atrás, eu consegui, provei por A mais B que eu tinha passado de ano, você imagina, o pessoal sabendo de um negócio desse: “Ah, eu também fiz” “Eu também”. “Eu também”. “Você tem o direito de ir atrás”. Esse tipo de cidadania sempre foi minha, sabe? Hoje eu tô mais deixando as coisas passar porque o pessoal me cansa, às vezes. “Ai, gente, eu quero dormir um pouco!”. Eles não deixam! Assim está, a gente caminha ainda.
P/1 – Vou perguntar umas coisinhas que ficaram pra trás, e fiquei curioso de saber: o nome da faculdade?
R – Na época era: Faculdade da Zona Leste – Fazole! O pessoal falava assim: “Na zona?”Trabalha na zona?” Hoje é Unicid. Ano passado eu fui fazer um curso de mídia lá, nossa, que emoção.! Eu me formei em 80, meus 40 anos, e saí em 85 – não, em 85 eu tava trabalhando já -, 84, era quatro anos. Aí fiz. Aí hoje é Unicid.
P/1 – Que é na Vila Carrão?
R – É, no Carrão, muito boa a faculdade, excelente! Nós tínhamos professores fantásticos! Tinha uns chatinhos, sempre tem, uns professores cansadinhos. Quando o pessoal queria me expulsar da escola, alguém falou assim: “Sabe alguma de vocês com a Cida, gente?”. “Claro, a tia Cida é a tia Cida, ela veio acrescentar todo o conhecimento dela com uma teoria que tava faltando, agora, se vocês não reconhecem, vocês são só teóricos! Vocês são só teóricos, mais nada!” Então três professores abraçaram a minha causa, os três melhores, os de economia, o de política – ai Meu Deus do Céu, incrível! A gente aprontava mesmo! Essa Marina, que não gostava de mim, ai coitada, ela queria me pegar na frente dela, ela jurou que ia acabar na faculdade comigo. Mas o santo dela não é melhor do que o meu! Mas a satisfação e o prazer dela era falar assim: “Olha, você ficou na matéria”. “É, tá bem, professora, eu peço desculpas”. Brava! “Quanto que você me deu na matéria?”. “Eu te dei dez”. “Ah, só pra saber”. Que era uma matéria com dois professores, e como é que ela pode me dar dois e o outro me dar dez? Não existe isso! Gente, mas foi uma vitória fantástica!
E eu trabalhava na paróquia, eu já tinha me inscrito no Estado, já tinha entrado no Estado. Eu estudava, fazia o vespertino, mas é um sacrifício! E organizava no sábado, nos domingos, os encontros ou com o pessoal da favela, ou com o pessoal da educação ou com o pessoal da saúde. São Mateus tava ainda em expansão interna social, era muito grande o ativismo do pessoal. Então a gente se cansava muito. Então eu ia pra casa da minha mãe. Quando eu conseguia uma folga, passava a mão nas crianças. Gente, meu Deus, era fantástico, mas foi uma forma também que me ajudou a esquecer um pouco daquela coisa de família, de ser separada do marido, ter filho pra criar, pra sustentar, não ficar presa naquele sofrimento, ao drama. Você tem que erguer a manga e partir pra luta, enfrentar as coisas de frente, e questionar como é que você tem que resolver isso. Não ficar se sentindo vítima. Eu acho que foi a coisa que melhor me aconteceu: enfrentar os meus problemas a ponto de meter as caras, comprar minha casa no Carrãozinho, de colocar meus filhos numa escola melhor que podia, de brigar pela educação, de ter condição de ter bons professores, ter espaço, trazer a realidade pro bairro, para os moradores do bairro, pra sua família, pra sua vida, pra condição de vida melhor. Não dá pra você ficar lamentando a sua vida: “Ai, dona Cida, eu tô sozinha” “Para com isso! Você tá sozinha, tem saúde? Tem? Então esquece! Porque você é sozinha, você tem saúde, tem filho, você vai batalhar pra criar seus filhos!”.
Com isso, comecei a ser muito observada. Eu me lembro do Amazonas, que foi conversar comigo pra eu ir pra política. Eu não quis ir porque eu ainda tinha que me aprofundar um pouco mais nisso. Mas lá no fundo é que eu nunca tive Intenção. Tinha vontade de estudar, mas pra conhecimento, eu faço isso até hoje. Terminei o PLP ano passado. E por quê? Eu tinha necessidade de uma reciclagem: como é que estão as coisas hoje, juridicamente? Politicamente, o que é que eu vejo, o que é que eu percebo, o que é que eu sinto? Nossa, um ano e meio que eu fiz de PLP, agora foi um resgate dos meus tempos de faculdade, fantástico! Com um pessoal que esteve junto com a gente, dividindo conhecimento deles: juízes, médicos, advogados. Uma bagagem! Meu Deus, como vale a pena! Terminou o curso e eu me senti assim muito importante, de ter conhecido aquele pessoal todo, e a preocupação daquele pessoal tá multiplicando, que tem muita gente ainda que sai da faculdade simplesmente saindo. Tão somente. E isso me pega muito. Eu preciso estar visitando o pessoal lá na Cidade Tiradentes, que o curso foi pra lá e eu ainda não fui lá.
Esse é um lado, outro lado é que a gente faz parte do espaço cultural, no sentido total da área de São Mateus. Acaba que um passa pro outro, outro que conhece, outro que já teve, outro que já foi meu aluno, outro que conheceu meus filhos... O Marcelo, a tendência dele foi pra música muito cedo. Aos oito anos o Marcelo meu já ia pra beira do campo no jogo das peladas, bater tamborim, bater surdo, tocar zabumba do baião do pessoal de lá. “Tia Cida, esse menino leva jeito!”. “Ué, que bom que ele leva jeito, mas vocês têm que trazer ele pra casa cedo, porque ele é criança!”. Eu ia pegando gosto pela música também. Então assim: o pessoal centraliza a gente nessa história de conhecer, dos festivais que o pessoal inventava, as danças ciganas que aconteciam, sabe? Então a gente é uma referência de cultura muito forte na área, querendo ou não! Tanto eles ligam como eles “Ah, eu vim convidar pra senhora participar de um grupo com a gente, a senhora não pode dizer não!”. Dizia: “Ah, mas já tô dizendo não, porque eu não quero pegar, tô cansada”. Não adianta! Pessoal vai: “Eu não consegui convencer a tia Cida, mas se você convencer, vai lá, porque a gente não vai fazer se a senhora não participar”. Então é um compromisso, mesmo que você não queira, é muito forte essa responsabilidade, querendo ou não. A Luci falou: “Cida, é impressionante como é que o pessoal tem a referência em você”. Falei assim: “Ah, eu acho que é o fato da gente morar aqui desde 48, a gente foi nascida, praticamente quase que nascida e criada aqui, a gente já é setentina, e nós estamos aqui ainda, então acho que deve ser nesse sentido”.
P/1 – E esse trabalho, que agora virou uma referência, mas esse trabalho anterior junto com as pessoas, desde a paróquia, era de mediação de cultura, e mediação social, de conscientização? Como é que era no concreto isso, e como é que eram os resultados concretos disso?
R – O que eu trago de concreto hoje dessa época da paróquia que o pessoal convidou a gente, de 68, 69 pra cá... o movimento de saúde é uma realidade hoje histórica muito forte na nossa área – acho que foi o movimento que mais rendeu! Foi dessa época que começou os primeiros passos, a gente tava junto; o movimento da educação, eu acho que foi um braço do movimento de saúde, aquele que eu te falei, trabalhando no bairro em benefício da gente próprio – cada área nossa tem uma creche hoje e não foi à toa; cada bairro nosso tem uma escola e não foi à toa. O movimento de educação, que foi muito forte! A gente ainda dá prioridade ao melhor possível, essa humanização caiu como uma luva pra gente. Ainda as falhas são muito grandes, porque ainda falta, temos muita falta de bons professores! Não aquele que vem pro giz e pra lousa. De integração mesmo! Nós ainda temos falta de médicos nos nossos prontos socorros, no grande Hospital de São Mateus – o hospital lá de São Mateus ainda sofre uma carência muito grande de médicos pro pronto socorro, porque você tem que estar preparado pro que caminha paralelo. Você, querendo ou não querendo, o SUS é uma conquista da gente, trabalhada por muito tempo! Organizado! Um dos melhores trabalhos que nós temos ali. E você vê uma AMA, em paralelo, derrubando o nosso SUS; isso dá um nó, um caroço assim de abacate que não desce. O pessoal tá refletindo o que é que a gente pode fazer.
Um braço pro movimento de transporte saiu do movimento de saúde, porque eu me lembro dessa do transporte, fantástico! Porque a gente tinha alguém da área de São Mateus que tudo quanto era movimento que a gente fazia: abaixo-assinado... e era engavetado e com chave. Não saía nada, meu Deus, aqueles ônibus horrorosos, acidentes, quebrando. E a expansão dos ônibus por aí e em São Mateus não chegava “Cida, se você quiser você vai saber o que é que acontece”. “É, mas eu não quero ir, não me meto com esse pessoal, a gente já tem fama de ser desordeira”. “Ah, mas a gente vai aumentar essa fama!”. Meu Deus do céu! A prefeitura era lá no Ibirapuera, lá foi a gente pra lá e descobriu uma quantidade enorme de gente que a gente conhecia. A gente deu umas aberturas: “Ai, precisava saber de alguma coisa que trouxe que não melhora nunca nada!”. “Ai, eu vou tentar saber” – naquela época telefone era muito difícil, hoje não, hoje qualquer lugar tem telefone. Nossa, esse celular então é uma praga, concorda? Um gafanhoto que chegou pra acabar com tudo! Mas naquela época não, uma briga. Desce lá na São Mateus “Mas como é que eu vou na garagem dos ônibus pra você me ligar lá?”. Porque aqui pra cima não tinha telefone ainda, pra cá não tinha pagado, cortaram e o escambau. Desce nós lá. “Consegui abrir a gaveta”. “E aí?” “Tem razão, continua tudo trancado”. “Então pra quem é que a gente denuncia?” “Ai, vem aqui que a gente arranja”. Passei a mão em dois senhores e fomos lá: ah, mas acabamos com o camarada! “Ele não tinha direito, vou dar parte de invasão de domicílio”. “Vai fazer o que você quiser! Eu quero a DSV agora, já, nesse instante!”. Aí fizemos uma reclamação terrível, na semana seguinte entrou a CMTC Especial em São Mateus. Eu naquele ônibus enorme entrando, lindo! Falei: “Gente, mas por que é que veio o especial? É mais caro pra nós por quê? Porque nós somos pobres, pretos? Vamos voltar!”. Voltamos e fizemos outro esparramo. Na semana seguinte tava o preço comum. Então essas coisas é muito gostoso de lembrar hoje, sabe? E falar pro pessoal que sem história, sem luta, você não consegue nada! Hoje a maior parte do pessoal que já usufrui não tem a menor idéia da história como foi, como não foi Esse político, nossa, ele tinha tanta raiva de mim, porque ele sabia que tinha sido coisa da minha cabeça. Era uma coisa que não foi descoberto nunca, então o pessoal tem gana pra pegar a cabeça da gente.
Ai, o Eduardo Jorge, esse que hoje é do Meio-Ambiente, os anos eram anos de chumbo e o movimento de saúde ainda encaminhava. Conseguiu, antes da CMTC, lotar 20 ônibus! Pensa você reunir as periferias das periferias de São Mateus e lotar 20, lotar! De vir gente de pé, de ônibus pra jogar lá no INPS, pra conseguir esse Hospital de São Mateus e a permissão pros postos de saúde pra gente, todos os postos de saúde da área pra Zona Leste. Alguém, como sempre: “Cadê a tia Cida?” “Tô aqui”. “Tia Cida, corre aqui”. Alguém avisou, porque no terceiro andar o nosso superintendente se escondeu. “Tudo bem. O pessoal vai tentar subir, se não conseguir você me fala, que a gente pega no terceiro andar”. Ai, menino, mas pegar o terceiro andar, abrir aquele banheiro e dar aquele flagrante, foi muito importante! “Não, eu vou, eu vou conversar” Não, a gente só queria isso. “Eu sabia que o senhor ia conversar”. Essas coisas sempre foram a minha paixão particular. Hoje eu não faço mais nada, hoje eu sou setentina, quero sossego na minha cabeça, mas o pessoal não me deixa em paz. A melhor coisa que eu me descobri, que eu acho que a gente tenta passar pra todo mundo, que você tem esse lado dos grandes homens, é isso que vai resolver. “Você não gosta da expressão ‘política’, mas só que você é política, querendo ou não, você pode não descobrir, mas você é, você tem que ativá-la, só isso”.
P/2 – Ô, Cida, o que é que é PLP que você falou?
R – Promotoras Legais Popular, o curso que a gente fez. E a vastidão das PLPs é o conhecimento geral que ela tem das coisas pra estar encaminhando, orientando, aonde quer que ela esteja. E desde a Maria da Penha – eu peguei alguns inimigos da Maria da Penha, peguei uns inimigos: “Tia Cida, a senhora tem que entender!”. “Não, não entendo nada, tudo que você pode fazer: você abra um diálogo; a agressividade, graças a Deus, tá dando cadeia, entendeu? Não importa o que houve, o sexo frágil é a mulher, você com essa fortaleza toda, para, para!” “Ah, eu vi a senhora com outros olhos antes disso”. Sabe, que eu dei a cartilha da Maria da Penha pra ela se defender. É engraçado. Porque essa violência que a mulher sofre, faz parte da cultura desse povo, é impressionante! E eu tô falando isso porque eu tô voltando lá do que eu tô te falando, dos jagunços dos meus avós, dos meus bisavós, das minhas avós, das minhas bisavós. Elas tinham que apanhar de boca fechada, pra não fazer barulho, pra ninguém ficar sabendo. Vai, para com isso! O momento é outro agora! À medida que você vai se atualizando frente às coisas que estão acontecendo, gente, vocês vão concordar comigo que até uns dez anos atrás você não ouvia falar em pedofilia, o que é que aconteceu que tá todo mundo abrindo a boca, todo mundo se condenando? A gente percebe que é uma área difícil de você penetrar pela história do fechamento. As coisas aconteciam, aconteciam, mas ninguém comentava. Graças a Deus, hoje o momento é aberto. Não dá mais pra dizer: “Eu não sabia disso, é mentira”. E cada grupo que você participa você observa que a história é real, alguém viveu isso no passado. O momento é outro, tem que saber sim. Até pra ver aonde você pode se situar psicologicamente pra estar ajudando outras pessoas com o mesmo problema. Nesse sentido que eu acho que o momento é outro e bem diferente; não é todo mundo que aceita não, mas que é verdade é.
P/2 – Sabe o que eu fiquei curiosa, eu queria saber como é que foi a sua formatura da universidade?
R – Ai, triste, trágico! Uma coisa que você não devia, porque é muito triste. Foi lindo o que o pessoal armou. Você já ouviu falar da Ilha Porchat, em Santos? Então você fecha o olho, você imagina uma faculdade da Zona Leste formando em Serviço Social e fazer a formatura lá na Ilha Porchat, para F.P. – filhinhas de papai. E as Dona Maria da esquina? Lá na Ilha Porchat, a dona Maria da esquina não tinha condição de ir, certeza absoluta. “E aí, mãe, passou?”. “Passei.”. O TCC meu foi muito procurado. A gente trabalhou o que a gente já fazia na área, levou pro TCC. Foi muito rápido de fazer, não foi difícil. Na educação e na saúde, se você pensa em desenvolver um trabalho você não tem que estar dividindo paralelas, você tem que abraçar a causa juntamente com o objetivo. Então quem você vai separar? Você pode na educação separar o professor, ele tem matérias diferentes, mas todos somos agentes, todos somos responsáveis, pela criança, pelo espaço. Sabe? Comunitariamente, de ter que envolver a comunidade, ver os mais interessados trabalhando junto, é mais fácil de você lidar. Eu fiz um trabalho – tô voltando um assunto – na Creche do Carrãozinho, a creche do Carrãozinho era pra 120 crianças, eu cheguei a 200 crianças. Por quê? Por que eu gostava de excesso de criança e fazia da creche um depósito? Não. Por causa da fome, por causa do desemprego, por causa do emprego também – a mãe era sozinha pra trabalhar e não tinha com quem deixar, tinha pouca comida em casa. Eu não tinha. Mandava os funcionários visitar, ver a situação, funcionários se compadeciam: “Ai, dona Cida, não tive coragem de deixar, eu trouxe todo mundo, deixei um recado”. Percebe? Então quando você trabalha com as pessoas e você desenvolve a consciência deles, que eles não estão trabalhando pra ninguém estranho e sim pra comunidade deles, o resultado é melhor. Eu desenvolvo, eu faço parte da minha comunidade e desenvolvo um trabalho pra comunidade. Não dizer pra mim que o pagamento vem do prefeito, não é isso, não vem do prefeito. Então eu consegui colocar essa consciência no pessoal. O trabalho da gente foi muito bom! Então faltava feijão, era o mercado A, o mercado B, mercado C, a gente descia, ligava, telefonava, eles mandavam feijão, as crianças não iam ficar sem feijão. “Ai, mas tia Cida, não tem carne!”. Ah, o açougue de cima, com o açougue de baixo, com outro açougue: “Ó, dá pra vocês arrumar um tanto de carne moída ou um tanto de carne picada?”. Sabe? Nunca eu fechei a creche por não ter! Nunca fechei, nunca! A minha chefe dizia assim: “Gente, a Cida faz coisa do outro mundo!”. Falei assim: “Maria, não fala muito de mim, porque esse pessoal não vai muito com a minha cara, você começa a dizer que eu sou do outro mundo, daí que o muro vai cair mesmo!” Você tem que desenvolver mais a consciência. Eu não tinha preguiça de fazer reunião; dava reunião sábado, domingo, no meio da semana, porque aquele pessoal ajudava muito.
Então, voltando à formatura, no dia da minha colação de grau, porque eu não tive a satisfação e o prazer de vivenciar a minha formatura, não tinha condição, também não fui atrás. O impossível tava acontecendo! Eu tinha que fazer a colação de grau! Escutem essa: a minha colação de grau foi dia sete de fevereiro de 1985. Eu não tinha um tostão pra ir pra faculdade, porque era final do ano, tinha parado os passes escolares - que eu vendia o passe pra comprar pão; muitas vezes eu ia a pé pra faculdade da onde eu trabalhava. Pra faculdade era uma linha reta, eu ia a pé. Carmem Silvia: “Mãe, e agora?”. Falei assim: “Não sei, alguma coisa tem que acontecer até a hora da gente sair. A colação vai ser às cinco e meia, quatro horas a gente tem que começar a pensar”. E eu até hoje tenho essa dificuldade, se eu tiver que chegar em você, falar ó: “Me arruma dez reais?”, eu tenho uma dificuldade enorme, eu não sei pedir dinheiro emprestado, você acredita isso? Até hoje eu não consegui vencer isso. Carmem Silvia: “Mãe, três e meia”. “Vai se vestir Carmem Silvia”. “Mas a senhora conseguiu dinheiro pra condução?”. “Não”. “E como é que vai ser?”. “Ai, filha, sei lá”. Bom, eu vou falar com o Chico da padaria, vou falar pra ele me arrumar dez reais, amanhã eu falo com o Franco, o Franco me dá, eu pago. Eu tinha decidido, ai que nervoso, meu Deus, a minha filha Carmem Silvia saiu nervosa na frente, daqui a pouco ela vinha: “Mãe, eu falei com meu coleguinha, ele tá de carro, ele vai levar nós de carro”. Disse assim: “Ai, Deus é pai, não é padrasto!”. Mas a essa altura já era 15 pras cinco, a estrada era péssima, o carro era velho, fecha o olho e imagina: 1985, uma estrada cheia de buraco e um carro velho. Ai meu Deus, entra eu e Carmem Silvia nesse carro. Ai, chegamos lá, descemos na porta da faculdade, aquela escada pra subir, eu me lembro que uma coleguinha tava lá, graças, ela já tinha protelado o começo várias vezes porque sabia que eu tinha que chegar. Eu entrei pela porta adentro, fecharam a porta. Me viram assim: “Até no último dia você é complicada pra nossa vida” “Pois é, mas eu vim!” Foi muito bom, a minha filha até hoje lembra e fala: “Gente, vocês não podem imaginar a colação de grau da minha mãe”. Essa a gente curtiu muito! De conversar com os amigos, trocar as idéias, mas eu não tive condição de ir pra Santos, onde foi a grande festa!
Teve outro momento também que me marcou muito da época de estudante. Meu Deus, segundo mês de faculdade, o professor entra na sala, dizendo: “Vocês estão de parabéns, vocês têm que deixar de ser ameba!”. Dá uma olhada pra expressão do cujo dito! “Vocês têm que deixar de ser amebas. Por quê? Vocês fazem parte de uma sociedade alta, não é qualquer um que tem peito pra entrar numa faculdade”. Ai, mas eu me senti muito ofendida: “Que sociedade alta é essa que eu fazia?”. Vim da onde que eu vinha, fazendo aquele sacrifício que eu fazia pra estudar. Eu tinha amigas que elas tiravam pra mim xerox, porque eu não podia comprar o livro; eu tinha amigas que me davam o livro de presente, sabe? Nossa, eu levantei, mas eu quebrei um pau com esse professor na sala, por causa da expressão “ameba”. “É bom o que você levantou, porque você entendeu o que eu falei, porque muitos aqui não entenderam”. Mas o pessoal ficou só na briga dele comigo, eles não perceberam a mensagem. Foi um momento forte isso.
Outro momento: eu já tava no terceiro ano, as coisas estavam muito difíceis em casa, financeiramente, o Gil já passando de frango pra galo, já falando mais grosso. O pé crescendo, o kichute já era mais caro, já não queria mais usar Conga. Meu Deus, e a renda tava muito rente, já tava devendo já pra faculdade, “Deus do Ceú, vou ficar sacrificando as crianças?” E um grupo de amigos da gente da faculdade, porque era cada sábado um estudava numa casa: “Mas vocês não podem ir em casa, a gente é muito pobre, eles não vão aceitar”. Ah, não deu outra, quando o pessoal foi estudar em casa, ficaram horrorizados como que a gente era pobre! Falei assim: “Eu to estudando pra ver se eu dou condição melhor pra essas crianças minhas pro futuro, a gente não vai ter condição só de viver de salário mínimo.”. Mas eu perdi muita amizade com aquele grupo que foi em casa estudar, quer dizer, veja como que o pobre é discriminado, mas tudo bem, tocamos pra frente. E me impressionou o momento, eu parei assim: “Mas será que eu tenho que continuar mesmo?”. Aí eu chamei as crianças, chamei o Gil, o Carmem Silvia e o Marcelo: “Gil, ó, a mãe não comprou o Kichute pra você esse mês, mas o mês que vem a mãe compra”. “O que é que aconteceu?”. “Que a mãe vai deixar de estudar”. Aí a Carmem Silvia falou assim: “O que, mãe?”. “A mãe vai deixar de estudar, tá difícil, precisa reforçar a comida em casa, vocês estão com problema de calçado, com problema de roupa” – a gente ganhava muita roupa, reformava, tinha uma amiga minha que reformava as roupas pras crianças, sabe? O Gil ficou sério me olhando, o Marcelo era o menor, um olhou pra cara do outro. Mas aquela coisa da emergência, vamos dizer, até o mês passado ele calçou 37, agora já tá calçando 39, então o calçado já é mais caro, entendeu? “Não, vou sair da escola.” “Mãe, mas a senhora tem que sair da escola?”. “Ai, Gil, fiquei chateada porque o seu Conga tá furado, o Marcelo não quer mais colocar Conga, ele quer um Kichute pra ele jogar”. “Ah, mãe, quanto tempo falta?”. “Ainda falta um ano e meio, quase dois anos”. “Mãe, nós somos os únicos na escola que temos mãe que faz faculdade, mais ninguém!”. Levei um susto com isso “A senhora não vai sair não mãe! A senhora vai se formar como todo mundo tem de se formar!”. O Gil, o do meio. Carmem Silvia falou assim: “Ô, mãe, eu falei pra minha professora que ela tinha ensinado a história da escravidão errada, porque ela não sabia lá da escravidão; ela falou que é pra senhora dar um pulo lá pra ver como é que ela vai ensinar melhor pra nós. Isso a senhora vai fazer porque a senhora tá fazendo faculdade, se não ela nem ia saber disso. A senhora vê, a gente ia ficar que nem as outras mães: aprendendo tudo de errado!”. Eu falei: “Gente, olha como é que tá a cabeça dos meus filhos!”. É isso daí me fez pensar, comentei com meu chefe: “Ai, chefe – chefe não, o meu professor –ontem eu tive uma decisão, fui sentar com as crianças, que eu ia desistir, você precisava ver a reação dos dois, eu mesma fiquei com vergonha. A história da escravidão que a professora ensina errado mexeu com a minha cabeça, porque já pensou como é que tá essa professora? Uma aluna levantar e colocar isso? E o Gil falar pra mim que eles eram os únicos que tinham mãe que fazia faculdade”. Ele me olhou “Como é que tá a situação?”. Aí eu coloquei a situação pra ele. “Vamos fazer o seguinte: eu tô dando aula pra um outro pavilhão, um grupo de dentistas, todos filhinhos de papai, ninguém estuda. Eu vou falar pra eles dar o trabalho de casa pra você fazer”. Eu dei um salto, a minha chefe me emprestou a máquina de escrever – até hoje eu não sei mexer em computador, mas eu sou uma exímia datilógrafa! A minha chefe me emprestou a máquina de escrever que eu trouxe pra minha casa – minha chefe do estado, que trabalhava no Estado. Eu pegava aquele livro, ele me ensinou a ler: “Você lê os prefácios do livro, objetivo, você lê as duas capas e dez folhas da metade, pra ter uma base do que é o livro inteiro”. Nossa Senhora, rapaz. Eu passava a noite inteira fazendo rascunho, a noite inteira escrevendo. Dia seguinte o trabalho tava pronto e aí levava. Ele vinha com dinheiro. Comprei todos os livros que eu precisava, comprei sapato pros meus filhos! Passamos a comer carne duas vezes por mês em casa! Foi um sucesso! Eu terminei a minha faculdade com essa ajuda que esse professor me deu, acredita nisso? Fazer o trabalho pro pessoal da área da escola dele. Eu fazia os trabalhos, ele colocava o preço, perguntava como é que estavam as coisas. Terminei o ano assim. E o que me fez pensar e conversar com ele foi a colocação das crianças: “Mãe, nós somos os únicos que temos mãe que faz faculdade, ninguém mais faz”. Hoje eu olho pra eles e falo: “Meu Deus, o Gil com 44 anos, o Marcelo com 39 pra 40, Carmem Silvia com 45” E não faz tanto tempo assim, que eu me formei em 85, incrível, incrível!
P/1 – E depois da faculdade você foi trabalhar em quê?
R – Foi engraçado, a faculdade, porque eu passei os quatro anos ouvindo que eu tava estudando pra colocar o diploma no caixão – as gozações do pessoal da sala da faculdade. “Ah, essa idade, não sei o que, não sei o que lá. Essa dificuldade que tem pra arrumar serviço, tá infestado, Assistente Social tem que ser boazinha, bonitinha, ela vai trabalhar pro Estado, pra Prefeitura, porque se ela for trabalhar em firmas, ela vai ter que estar puxando uma sardinha pro lado do patrão, não é seu estilo, como é que você vai fazer?”. “Ai, gente, o amanhã, deixa o amanhã chegar! Não precisa preocupar” – até hoje eu não sou preocupada com o que vai acontecer amanhã. E também não vivo de drama. Tô insatisfeita? Vira a página, tira o de melhor, o que de melhor aconteceu no dia de ontem, aproveita; o que não dá, esquece! Até hoje eu não sou de estar levando as coisas comigo não.
E aí me formei. Vamos continuar na paróquia, o pessoal da paróquia ficou feliz da vida! A maior parte do pessoal participou da formação da gente. “Tia Cida, e agora?”. “Agora nada. Tudo bem.”. Teve dois movimentos da favela que a gente assessorou: que foi da água e foi da luz, na época; já tava em andamento já há muito tempo. E teve um de moradia que a gente tava se organizando, se aprofundando - eu tô falando de 85, do ano todo de 85. Já tinha entrado a água na favela, já tinha entrado luz e tava naquela expectativa de fazer organizações de moradia com o pessoal da favela. E eu acho que nessa época a gente brigou no sentido de não acontecer um Cingapura da vida, pra que desse espaço pro pessoal ter o direito de escolher o tamanho do seu quarto, da sua cozinha E não fazer como a gente tinha visto. A briga tava feia, tava terrível! E a gente conseguiu dois líderes, levarem o caso muito pra frente.! Alguém falou pra mim: “Cida, vai até o Mário Covas – vem na comunidade que a gente vai preparar seu currículo”. Quem preparou o meu currículo foi a comunidade, aí eu nem sabia o que tinha no currículo, eles que organizaram. Aí fomos, batemos um papo, saí pra uma reunião, eles ficaram organizando meu currículo. Aí foram colocar o currículo em ordem. Aí a Dagmar falou: “Cida, o Mário Covas tá pegando currículo porque tá inaugurando várias creches nas periferias”. “Mas com o currículo que vocês fizeram eu não vou ter essa missão”. “Com o Mário Covas você vai ter!”. O Mário Covas é um cara disfarçado, mas ele sabe o quanto ele admira da cabeça do pessoal que batalha, ele não é acomodado. E eu já tinha feito um curso. Nossa, gente, fantástico, de trabalho com a comunidade, quando eu entrei no Mobral. Você sabe quem é que tava organizando esse curso na comunidade numa época em que não podia abrir a boca? O Paulo Freire. Barradas, Paulo Freire, Amelinha – que era a esposa do Paulo Freire. Desenvolviam esse curso nas periferias, e a gente tava com vontade de conhecer mais por causa dos grupos que estavam surgindo, o momento era das comunidades de base, só que tinha que saber como fazer, porque o pessoal tava caindo em cima de todo mundo e desaparecendo com todo mundo.
Aí o meu currículo foi pra mão do Mário Covas. E quando chegou na mão do Mário Covas era o Barradas que tava: “O que é que você faz aqui?”. “Ninguém sabe que eu sou subversivo!” Foi muito bom. Muito bom! E aí paramos e conversamos um tempão: “O que é que você vai fazer?”. Falei: “Eu vou entregar o currículo, diz que estão preenchendo as vagas de direção”. “Ah, verdade!”. Chega lá: “Ah, não chega não, deixa que eu levo!”. Pelo amor de Deus, Nossa Senhora! Voltei pra São Mateus: “O que é que você achou?”. “Certeza que eu vou ser chamada, certeza. Você nem sabe quem eu achei lá!”. “Foi?! Nossa!” Bateram ali, 15 dias tava sendo chamada. Só que ia inaugurar uma creche no nome de Júlio São Mateus e o pessoal me conhecia muito, eles iam dizer que eu estava me formando pra tomar o lugar deles, e as vagas eram dos funcionários, e não ia pegar bem a minha presença ali. Aí eu fui lá e falei que aquela creche eu não queria. “Mas como?”. “Porque eu tenho direito de escolher e eu não quero”. Eu não podia explicar o porquê, vixe! Voltei: “E aí?”. Eu falei que não queria, que a Vicentina ia acabar comigo – era uma outra líder, do Nove de Julho, que a gente tinha brigado muito, questão postura, tal. E essa chamada ela foi Tirei, fiz colação de grau em fevereiro; em abril fui chamada a primeira vez, não aceitei; julho fui chamada a segunda vez pra uma outra creche também em São Mateus – porque o movimento da educação tinha não tinha saído de lá, certo? Eu queria sim que o pessoal fosse convocado para trabalhar, mas a gente não, porque ia criar problema. Aí a terceira vez que me chamaram, aí foi o próprio Mário Covas que me chamou, ainda colocou embaixo na entrega oficial: “Urgente. Maria Aparecida da Silva Carlos” – na época eu era Carlos. Eu fui. Fui na Cidade Tiradentes, aí eu assumi.
E foi um momento bom, que eu dei um salto social e financeiro muito grande, pra acolher meus filhos. Foi pela primeira vez que eu vi resultado daquilo que o pessoal tinha me empurrado pra fazer, sabe? Cheguei na Bárbara Heliodora, e lá no alto da Cidade Tiradentes. A Bárbara Heliodora só tinha diretor, não tinha funcionário. Me colocaram no Juscelino, uma creche que tava coberta de funcionários e não tinha diretor, então eu fui pro Juscelino. Nesse Juscelino eu fiquei de 85 até 87, era uma quadra em obra que tava inaugurando, fantástica essa quadra! Conheci o pessoal, conheci a estrutura da quadra, porque até então a gente só via como era feito, como é que era organizado. Foram dois anos que deixou saudade, o trabalho que a gente fez, a implantação da creche; o Mário Covas foi duas vezes na creche, me deu os parabéns, foi muito bom! Quando foi pra sair, porque eu fui pro Carrãozinho, o pessoal de lá: “Quando é que a senhora vai voltar?”. Eu dei a primeira festa, a primeira festa que eu dei, eu dei 24 horas de samba! A primeira! A primeira festa! A gente tava com algumas faltas de algumas coisas, umas deficiências em algumas áreas pra conseguir. Foi dois segundos. Vim aqui, falei com o pessoal da cultura, do grupo. Nossa, que fantástico que foi! A organização do pessoal foi fantástica! Tinha um rapaz que trabalhava na Gessy Lever, ele arrumou pra gente vender 20 quilos de sabão em pó, ai que beleza que foi, o sabão era Omo! Foi muito bom! Colocamos cortina na creche, fizemos espaço melhor pras crianças lá fora, foi muito bom, mas: “E como é que a senhora teve essa coragem?”. Eu falei: “Eu não! Vocês é que me deram”. Porque tinha alguns artistas embutidos aqui, a gente colocou esses artistas tudo pra funcionar, e eu trouxe meu pessoal de lá. Foi muito bom, foi muito marcante. Virava e mexia depois que eu saí, o pessoal: “E aí, não vai voltar pra lá não?”. Eu: “Não dá pra voltar agora, agora tô em outra área”. Mas foi muito marcante, essa direção de creche, a primeira que eu peguei na Juscelino me deu um cabedal muito grande, já tinha um pouco por causa do Mobral e fortaleceu o que a gente já tinha.
P/1 – E aí de lá pra cá? Conta um pouquinho dessa trajetória. Eu sei que você casa em 90.
R – Antes de 90, em 87, meu marido foi assassinado lá. Meu marido tava esperando as crianças, que iam chegar do serviço – primeiro emprego do Gil. Ele tava esperando as crianças chegarem, tinha um policial reformado testando as balas do revolver no poste lá em cima. Eu tava trabalhando, não tinha chegado em casa ainda. E o meu marido E o meu marido com aquela cachorra na mão, com a Laika na mão, na corrente, o barulho de estampilho do revolver, a cachorra se agitava, meu marido falou: “É perigoso você ficar atirando, a cachorra fica agitada é porque pra ela é difícil ouvir o barulho, como se fosse bombinha, o ouvido deles é muito sensível”. Falou pra ele isso, teve gente que ouviu e repetiu. “O que é que você tá achando ruim? Não é com você e nem com a sua cachorra!”. “Mas é errado ficar dando tiro pra cima, pode cair uma bala perdida em alguém”. Disse: “É, vai cair em você”. Virou e atirou no meu marido. Três balas. Nesse ínterim o ônibus encostou, tava chegando lá no ponto de ônibus, que tava esperando as crianças. Meu filho viu o pai cair, desceu pra acudir o pai, não sabia o que tava acontecendo. Ele imaginou – meu filho é muito alto – que o meu filho fosse atacá-lo, virou e atirou no meu filho, no Gil. Nossa, foi uma tragédia, rapaz, nossa mãe. Isso foi sete de maio de 87. Terrível, terrível, terrível, terrível, terrível! Meu marido faleceu no final do mês de maio e o meu filho teve a sorte de sair fora de perigo e voltar pra casa. Mas a gente enfrentou essa violência assim, perguntando “Por quê?” sem encontrar resposta.
Mas essa não foi grande, pra gente ter que enfrentar, o que mais me doeu, foi eu não poder acompanhar meu filho e meu marido pro hospital, porque eu tinha que acudir a família do policial, porque o pessoal invadiu a casa dele e queria pôr fogo na casa com a família dentro. Porque ele já era uma pessoa marcada pelas estripulias que ele fazia na área. E se eu fosse acompanhar meu filho e meu marido, eu não sei o que é que podia acontecer. E a família não tinha culpa. Cabecinha era o cara, não? Nas periferias você está exposta a todo tipo de violência. “Gente, essa mulher, essas crianças não têm culpa!”. A essa altura ele já tinha fugido, só que fugiu pelo fundo da casa dele. Nossa, mas o bairro inteiro foi pra casa desse homem que fez isso. Ali que eu vi o tanto que a gente era conhecido e estimado na área, porque até então a gente só vivia. Nunca tinha sentido na pele isso, foi demais mesmo! Eu só pude ir pro hospital quando eu senti todo o pessoal calmo, pra garantir que a senhora tava em segurança, que o pessoal não ia atacar mais ninguém. Quem conhecesse ele que não pusesse os pés no carro junto, porque o pessoal ia pegar ele. Foi um horror, um horror! Uma fase de tragédia que a gente passou, muito difícil! Aí uma semana, duas. A quadra 49 correu com o caso logo, foi pro Fórum. “Dona Cida, a gente tá ouvindo falar que a senhora não quer que ele vá preso”. “Não, não quero não, pode deixar ele solto. Eu só não quero que ele vá pro bairro. Porque é muito cômodo você ir preso, ele tem quatro filhos pra sustentar, tem mulher, é um aposentado reformado, como é que vai ficar essa mulher e esses filhos? Meu marido não vai voltar mais, meu filho, se Deus quiser, vai estar de volta; agora vai ficar comendo e bebendo na cadeia? Pelo fato dele ser polícia, ele não vai pagar por muito tempo, não vão dar essa satisfação, esse prazer pra ele, pra ficar lá muito tempo. Ele tem que enfrentar essa violência que ele é responsável é aqui fora. Aqui, ele vai sentir o quanto é bom fazer o que ele fez”. Ninguém entendeu a minha cabeça! “É um absurdo!”. Eu disse: “Gente, polícia não fica preso nunca! Ele é um polícia reformado, ele tem que cumprir aqui fora”.
A única coisa boa que aconteceu é que eles mudaram o Carrãozinho, mas assim mesmo segurar o pessoal que conhecia a gente, que já era um pouquinho barra pesada, que descobriu onde que ele mudou, pra onde que ele morava, ia em casa: “Vamos lá Toco, vamos lá Gil, vamos acabar com o caso!”. “Gente, eu não quero, deixa esse cara viver, é mais fácil pra ele pagar o que ele fez aqui fora, porque a violência não vai acabar”. E até acalmar.. Foi nessa fase que o Marcelo tava desnorteado porque tinha perdido o pai, e o pessoal fazendo pressão em cima dele, que alguém teve a misericórdia de dar de presente um cavaco quebrado, Tim Maia que deu o cavaco quebrado. “Olha, como ele tá muito nervoso lá por causa do pai, Tia Cida, dá esse cavaco pra ele brincar um pouco, pra ele relaxar, porque ele tem um jeitão pras cordas”. Foi aí que o Marcelo aprendeu a tocar cavaco, e ele aprendeu a tocar banjo – a Beth Carvalho considerou o Marcelo o segundo banjo do Brasil, o primeiro era o Arlindinho! Ele é orgulhoso por causa disso! Ser o segundo banjo do Brasil! Aí o pessoal fala: “Que Arlindinho, que nada! O Toco eu posso pegar, eu posso abraçar, eu posso falar pra ele cantar a música que eu quero, o Arlindinho tá muito longe!”. Eu acho o maior barato, a periferia simplifica as coisas. Muito bom! E esse aprendizado de cavaco e banjo nessa fase da perda do pai dele já levou ele pra África, pra Soweto, a Beth levou ele. Já conheceu bem o Brasil por causa desse violão e desse banjo! Até hoje ele fala que valeu a pena! Eu pensei comigo: “É preciso que alguns morram pra que os outros possam viver”. Se não tivesse acontecido essa tragédia na nossa vida, possivelmente ele não estaria, porque foi nessa fase, pra ele esquecer os acontecimentos, alguém lembrou de dar o cavaco quebrado que ele aprendeu e se profissionalizou.
P/1 – E depois disso, daí você vai retomar a sua vida, como é que é depois disso?
R – Foi difícil retornar à vida depois. Não difícil porque eu tava trabalhando já. Eu já trabalhava na Prefeitura, eu tinha saído do Estado, ido pra Prefeitura Desenvolvia os trabalhos sociais na área, porque o pessoal nunca deixava a gente terminar. Já tínhamos conseguido muitas coisas: a área social de São Mateus estava em evolução plena!
Em 90, aquele camaradinha que me ajudou a fugir do casamento que a minha mãe tinha arrumado... Eu já trabalhava na creche do Carrãozinho. Então trabalhava na creche do Carrãozinho e houve uma reclamação numa reunião de pais: “Tia Cida, essa creche tá precisando de reforma”. “Eu concordo plenamente! Ela já tá com um bom tempo e a manutenção é meio pobre, estamos precisando de umas pinturas” Na verdade, uma creche nova. Mas em todos casos a gente conseguiu, a nível de Prefeitura, estar provando por A mais B, pela comunidade toda, através da SBT e da Globo, a necessidade de uma reforma, de uma ampliação ou de uma creche nova, maior. E a Globo foi lá fazer reportagem, o SBT também foi. O Arlindo, que fazia anos que não me via, desde a época de 1900 e bolinha, me descobriu. Ai, eu fiquei louca de raiva, não me conformo com isso. Incrível! A Carmem Silvia foi fazer cabelo, foi trançar, lá em são Mateus – morava em Carrãozinho: “Mãe, veio um homem me dar um abraço e ele me chamou pelo seu nome, disse que viu eu na televisão denunciando da creche, eu acho que é a senhora!”. “Que homem é esse, menina, tá ficando louca?”. “Ah, mãe, pelo jeito que ele falou, é a senhora.”. “Não é não, Carmem Silvia, quanto tempo que eu não tenho conhecimento, nenhum contato. Um monte de gente me conhece”. “Mas pra tirar a dúvida, a senhora vai fazer aniversário, e eu convidei ele pro seu aniversário” – que todo aniversário eles fazem alguma coisa, todo aniversário meu! Não precisa convidar, sabe assim, 26 de novembro, 25 de maio, 26 de janeiro, gente, aquela casa enche! Eu já falei pra mudar de data, não dá pra mudar de data, tirar o documento? Vou mudar, porque eu não agüento esse povo. Não adianta falar que eu não quero, que eu vou viajar, não adianta falar, não adianta!
Aí em novembro, no meu aniversário de 89, eu tô lá numa roda de samba fechada, daqui a pouco chega uma turma: “Adivinha quem tá aqui?”. “Quem tá?”. Tiraram o corpo da frente, ele entrou: “Minha preta!”. Eu falei: “Arlindo, você não morreu?” Ai, meu Deus, todo mundo queria ver, queria saber, que as pessoas já tinham anunciado lá pra fora. Meu Deus do Céu, incrível! Daí ele tinha ficado viúvo em 88, e eu tinha ficado viúva em 87. Ele não pensou nada, nada, nada! Na semana seguinte falou com os filhos deles que eu podia desistir, pôs o papel pra correr Em seis meses a gente tava casado. A gente casou – foi em novembro de 89 que a gente se viu, em maio de 90 a gente tava casando. Aí eu falei: “Nossa, outra vez um casamento esquisito como esse, eu não caso mais!”
Nós ficamos de 90 até 2001, 2001 ele faleceu. Mas foi marcante. Porque foi o meu namorado dos meus 14 anos. Nossa Senhora da Aparecida, incrível! Tem umas coisas assim que acontece que você não entende, mas acontece, acontece! Os filhos deles se divertiam muito, os meus também: “Pô, esse casal de velhos dá uma novela!” Ai, incrível! Mas foi um trabalho, eu tive um trabalho com ele de estar revertendo ele pra vida presente, que ele era muito interiorizado, muito complexado, sabe? Ele era negro bem negro – era não, é! E me marcava. O ponto mais alto que eu achava da vida dele, ele não queria que ninguém soubesse: ele era um dos últimos filhos de escravos que o Brasil tinha, e quando eu falava isso, gente, ele não aceitava de jeito nenhum! “Mas que é que é isso, tá ficando louco? Você faz parte da História! História de sofrimento!”. Por isso que eu não gosto do Trajano: o Trajano é uma marca muito triste que o Norte e o Nordeste tem. É uma família riquíssima que veio de navio de lá pra cá e abraçou uma quantidade enorme de terras e precisava de gente cuidando dessa terra. Cada um que descia do navio, já pegava a marca dos Trajanos, nas costas e no braço. Quem fugia, com certeza absoluta, ia ser entregue de volta pro dono. Como tirar a marca se a marca era feita no braço? Meu nó do Trajano é esse, porque a história do Trajano é triste. E o pessoal perdia o nome mesmo. Porque ia ficar com o nome de quem nos comprasse. E ele era um dos últimos filhos de escravo da História. O meu marido faleceu em 2001. 2003 faleceu a outra irmã dele.
Eu conheci um irmão dele em 90, o irmão dele tinha 116 anos. Em 90! Fazia 25 anos que ele não ia pra Pernambuco! Eu falei: “Mas que absurdo que é esse, você vem de uma família tradicional!” Era esse tio Luiz, com 116 anos, era as duas irmãs que ele tinha – uma era a Nhá Silvia, que tava com 96, a outra que tinha 103 anos. Um pessoal que vive muito, que tem uma tradição de viver! E ele não queria nem que tocasse no assunto. Nas minhas primeiras férias até pela curiosidade minha, eu queria conhecer esse povo, eu sempre fui alucinada por esse outro lado, estar vendo um pouquinho as suas origens Aí eu fui pra lá, nossa! Sabe assim, a pobreza da gente não ter a malícia de levar um documento, uma filmadora, uma máquina fotográfica. Eu cheguei lá com a minha retina tão somente, Nossa Senhora! O meu marido tinha uns relances, assim, à noite, ele ressonava, você não entendia o que ele falava. Mas que coisa impressionante! Você percebia que tava ligado ao conhecimento, à passagem, à história dele: “Nenê, você levantou pra ir no banheiro e quando você voltou, você falava tudo enrolado”. “Eu falava o quê?”. “Eu não sei”. Eu comecei a prestar atenção, isso era quase que constante. Aí comentei com um amigo meu, psiquiatra: “Cida, precisa ver a origem dele, tem coisas que ficam no passado que estão adormecidas, quando ele tiver chance, ele vai colocar isso pra fora”. “Eu penso que é loucura!”. “Não, não é loucura! Você não entende porque você não tem velhice, é alguma coisa que tá no subconsciente dele”. Mas nunca eu podia imaginar que fosse estar.
Aí tô indo de Itapemirim pra Pernambuco, desesperada, 47 horas de viagem: Deus, que loucura que foi aquela! Chegamos. Primeira semana, nossa, ele foi recebido assim como um rei, até o prefeito do lugar hasteou bandeira, colocou faixa, sabe? Aí na semana seguinte a gente foi lá pra Agrestina, conhecer o tal tio Luiz, irmão dele lá, era o irmão mais velho! Era o encontro do irmão mais velho com o irmão mais novo, com o irmão caçula. Gente de Deus, o encontro dos dois conversando em afó é forte. Nossa, menina, que coisa! A gente nessa vida, não sabe nada! Você tem que viver pra você aprender! Eu olhava pra dona Eunice, dona Eunice olhava pra gente, a gente não entendia o cumprimento deles em afó, a linguagem da terra. Os dialetos da África, criatura, e eu sem uma filmagem, eu sem uma máquina. Ai, meu Deus do Céu; aí eu fui entender, esse meu amigo psiquiatra tinha certeza, alguma coisa ficou no subconsciente, que coisa. Nossa Senhora, se cumprimentando! Batendo com as mãos no chão! Muito forte! Eu e a dona Eunice nós ficamos mais de uma hora, a gente não conseguia abrir a boca, a gente não conseguia falar nada, só eles falavam! Incrível! Foi aquela coisa que não tem explicação. Não é a televisão, não era jornal, você tava lá vendo e ouvindo! Não, realmente, a herança deles era muito forte, africana! E a família não conseguia saber quem eles eram. Aí teve uma hora que ele falou pra mim assim, o irmão: “Agora eu sei que eu tô perto de partir, porque eu não aceitava partir sem ver a minha criança! Eu não falei pra você, fulano, que ia chegar gente nova e a gente ia ser muito feliz?”. Eu fui nas férias de 90, no meu primeiro dia de férias que foi dia seis de junho. Ele faleceu em março seguinte. Agora ele sabia que ele já podia partir. Foi demais.
Então, me impressionou. Se eu falar a pobreza, eu minto, porque o pessoal já está acostumado a viver esse tipo de vida, já faz parte da cultura deles o fogão de lenha, panelão de ferro, a simplicidade da casa. Então aquilo faz parte da cultura. deles. Agora o que me impressionou foi a necessidade. Agrestina é um bairro pobre, o que tem lá, que o pessoal se alimenta, é mandioca e côco. A gente não tá acostumado com essas coisas, a gente apanha. Tinha um mercado na esquina, e o Nenê dizia assim: “Minha Preta, o que é que a gente vai fazer?”.“Você não esquenta não. A gente vai embora pra São Paulo a pé mas a gente vai aproveitar tudo que a gente tem e deixar pra esse pessoal, porque vai valer à pena!”. Nós ficamos lá três, quatro dias. Aí o mercadinho da esquina ficou feliz da vida conosco. Isso me deixou impressionada! E trabalhar com a cabeça do meu marido, que ele era uma pessoa importante, que aquele momento que eles tinham vivido era um momento histórico, isso só nós tínhamos assistido, ninguém mais. A gente ia carregar Aquele homem falando com a gente de forma que é impossível de você imaginar que alguém pudesse falar daquela maneira, a lucidez dele. Sabe, ele não usava óculos pra ler. E 116 anos. Nossa, incrível! Incrível. Então, essa experiência foi muito rica, e eu tenho um nó ainda, eu não consegui, naquele mês que eu fiquei lá, eu não consegui conhecer Palmares; fui lá perto, mas não cheguei, ainda quero conhecer Palmares: andar por lá, olhar, ver as ribanceiras, rolar as ribanceiras abaixo. Mas foi um momento muito grande! Então do meu segundo marido o que ficou foi essa satisfação e esse prazer que eu batalhei demais pra mostrar pra ele o quanto que ele era importante. Mas ele tinha muita raiva da coisa, ele não aceitava não!
Um outro momento também que passou que eu não coloquei, voltando um pouco no estudo, é quando eu falei pra vocês que eu tinha feito em 76 um curso de atendente de enfermagem. O curso de atendente de enfermagem naquela época tinha o valor mais aprofundado de auxiliar de enfermagem hoje. Eu me lembro que eu fiz três meses, seis meses de estágio e as cinco que sobressaíssem no final do curso, que era um curso de dez meses - ia fazer estágio com a própria enfermeira que tava dando o curso; a enfermeira era a professora Guiomar: muito exigente, muito séria, carregava o Hospital São Paulo nas costas aquela enfermeira! E eu me sobressaí entre as cinco. Ela disse pra mim: “Aparecida” – falou pro Franco, já tava na paróquia, falou pro Franco: “Eu vou levar essa menina pra fazer estágio comigo e eu não sei se ela vai voltar não!”. O Franco falou assim: “Eu quero a minha negrinha de volta! Gente, vocês não sabem o que é que era São Mateus naquela época, de condução! Gente, que loucura! Então eu pegava às sete horas da noite, eu fazia estágio à noite, porque de dia eu tinha que trabalhar, tinha que estar jogando. E tinha também as crianças pequenas nessa época. Quando eu terminei o estágio, ela pediu a minha carteira, eu já ia ficar trabalhando. Hoje eu me arrependo, devia ter ficado trabalhando de atendente na época. E eu pegava a veia, eu dava injeção; eu pegava a jugular – hoje, quem pega a jugular é só médico – olha, como era profundo o curso! A minha filha fez agora técnica de enfermagem, o meu curso de atendente na época era mais profundo do que o que a minha filha fez. Eu mandei ela voltar e refazer umas três vezes. Que coisa. A qualidade do estudo me choca. Pra você avaliar a saúde, eu vejo a tragédia desse pessoal das plásticas. Uma em cima da outra, a diferença! Nossa, eu tenho a minha saudade da época de mocinha, porque as coisas aconteciam, as normalistas lindas .
P/2 – Então, Tia Cida, depois que você contou todas essas histórias, e com certeza deve ter muito mais pra contar, a gente queria que você contasse um pouco pra gente o que é que você acha que significa a palavra mudança, depois de ter feito toda essa volta?
R – Quando você se propõe a descruzar os braços, é porque você anseia uma mudança; se você cruza os braços, você está acomodada, se você descruza, você está propensa a fazer alguma coisa. Mudança é estar melhorando, a tua vida, teu alto astral; mudança é você estar trocando com as pessoas o que você pode aproveitar de melhor; mudança é mudar o teu eu mesmo. E ter consciência daquilo que você quer, porque às vezes tem gente que caminha e não sabe pra onde vai. O que quer? Caminha porque os outros empurram. Essa coisa de mudança tá muito em você: seus objetivos, seu conhecimento, seu crescimento interior – que eu sempre falo que é o crescimento espiritual. Que às vezes um não bate com o outro, o material não bate com o espiritual, algum vai na frente e os outros ficam pra trás, dificilmente caminham juntos. Acho que essa coisa da busca. Eu vejo a internet hoje, influenciando bastante a pesquisa, mas também acomodando o pessoal, de certa forma. Tem dois pesos, duas medidas. Típico do vagabundo! Mas eu acho que pra quem sabe trabalhar, nossa, muito bom! Agora pro acomodado, que ele já nasceu de espermatozóide acomodado, ele vai continuar sendo acomodado. Isso de um lado, que eu vejo; do outro lado, quando você vê toda uma estrutura adulta: “Fulano precisa mudar”. As pessoas não mudam se elas não quiserem, elas fingem, elas ficam latentes, a chance que eles tiverem, eles voltam à estaca zero, àquilo que eles realmente sempre foram, isso é visível! “Fulano tá com outra cabeça, não faz mais aquilo, é outro moço, é um outro momento! Pessoal conseguiu empurrar ele, até que ele conseguiu mudar por ele próprio”. Se o pessoal empurrou ele, ele não mudou, porque tem que partir de você: eu quero, eu estou para. Porque eu vou retornar sempre: “Por que é que eu errei tanto assim?”. Você vai questionar tuas falhas. Eu questiono as minhas. Meu Deus do Céu, como que eu que sempre fui avessa a casamento pude casar duas vezes?
Voltando no mesmo exemplo: a primeira vez que eu participei de um grupo lá em São Mateus, devia ser em 52, foi logo depois que o Francisco Alves morreu. Alguém se revoltou que queria trabalhar, o ônibus não vinha, quando veio demorou pra sair, na hora de sair o pessoal já tinha perdido a hora, mandaram o motorista e o cobrador descer, viraram o ônibus de perna pra cima e tacaram fogo Ai, que delícia! Nunca mais esse ônibus atrasou! Não é preciso chegar ao extremo, mas chega um momento que se a gente não fizer alguma coisa, as coisas não vão mudar nunca. Percebe o extremo que você chega? Então é isso por quê? Porque você já trabalhou o suficiente pra ver que é preciso você ter atitude e assumir essa atitude sua. Aí, nossa, nunca mais ônibus atrasou; outras linhas de ônibus vieram, mas houve uma atitude brusca: “Ai, não precisa tanto de violência!”. “Não sei”. Não sei se não precisava, que às vezes tem gente que não acorda! É triste você colocar isso, mas é verdade. Só que você não tem que ter isso como parâmetro, só mesmo quando não tiver mais como caminhar.
P/1 – E a pergunta que a gente queria fazer, que a gente sempre faz aqui: tia Cida, o que você achou de contar um pouco dessa história para o Museu?
R – Foi curioso, eu não sabia nem se eu ia ser capaz. Foi uma experiência transcendente, transcendente mesmo, porque eu não achei que eu fosse buscar tanto, tinha coisas que estavam bem adormecidas, que eu já não lembrava mais. A coisa da escola, tanto foi um momento bom porque eu consegui superar uma série de coisas que foram momentos muito tristes, a gente sofreu muita discriminação. E não podia deixar essa discriminação fluir, sabe, se não ia apagar toda aquela luta sua. Muita discriminação! Por ser mulher, por ter idade e estar no meio do pessoal mais novo, discriminação por ser negra, discriminação por ser pobre, essa coisa de perder a amizade: gente! Eu tô te falando de 20 e poucos anos atrás, que já era pra ter bem menor agora. Ainda é real isso. Isso choca a gente. Quando que as coisas vão mudar? É uma questão de cultura. Você tem que esperar as pessoas amadurecer. Nem eles sabem da onde vem isso, mas a gente tem idéia da onde veio, quando, como, onde e por quê. Então, assim, tem coisas que eu não gosto de lembrar. Tava falando do meu marido que ele não gosta de lembrar do fator dele ter sido escravo, mas eu olhava pra ele e eu via por que é que muita gente foge do assunto, porque é muito dolorido! É muito angustiante! Quem não tem na pele uma história que você tem, não entende o porquê, porque é só você passando por ela.
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