Projeto Histórias que Mudam o Mundo
Entrevista de Raquel Barros
Sorocaba, 24 de Julho de 2009.
Código da Entrevista: HMM_HV012
Revisão: Nataniel Torres
P/1 – Raquel, pra gente começar, você fala o seu nome completo, o local e a data de nascimento.
R – O meu nome é Raquel Barros e eu nasci aqui em Sorocaba no dia 16 de fevereiro de 1966. Tenho 43 anos.
P/1 – A gente vai voltar um pouquinho na história. Você conheceu os seus avós?
R – Conheci, ainda tenho uma avó. Conheci todos os avós. Os da família da minha mãe eram mais distantes, moravam em uma outra cidade, mas tinha um avô que era muito legal, se chamava Zeca. Ele tinha tipo um armazém que vendia meio que de tudo, uma pessoa super boa gente, bacana, fazia coleção de estribos, era um cara assim. E casado com essa minha avó que era muito agitada, que queria ensinar boas maneiras pra gente quando a gente ia passar o final de semana lá. Era uma avó legal, mas não muito adorada porque só queria ensinar boas maneiras, tal. Na verdade, essa casa aqui é dela. E os outros avós são os mais próximos, os da parte do meu pai, que tem toda uma característica: São mais afetivos, sempre foram muito pobres e foram tendo dinheiro. Eles têm uma característica mais... Eu sou mais parecida com eles, meio aos trancos e barrancos. Meu avô meio que bebia, arrumava umas namoradinhas, a minha avó ficava brava. Ia na chácara, trazia ovo, abria aqui embaixo, vendia. Era uma coisa mais, assim, “bagunção”. Na verdade, eu sou muito ligada a minha avó. A minha mãe sempre foi muito chata comigo, tem toda uma história aí, então, eu me liguei muito nessa avó. Eu morava duas casas pra cima dessa e a minha avó aqui, e eu vinha para cá em todas as situações críticas e ela me acolhia. Eu fazia regime, ela me levava em lojas de estoque de doce, sabe? Então, ela era esse tipo, a transgressão. Foi ela que me ensinou a falar todos os palavrões... Ela ainda é viva, é a única viva. Sempre fui muito “avó-avô”. Todas as viagens que eu fazia, fazia com esses dois. A minha avó, por exemplo, tirou a carta de motorista, fez sete exames, não passou em nenhum e no oitavo ela pediu pra passarem. Ela tem uma chácara aqui perto e pediu a carteira, porque ela só ia fazer aquele trajeto. E ela só fazia aquele trajeto, eu lembro que saía sempre com ela e a gente só ficava pra lá e pra cá porque ela queria dirigir. Mas como ela tinha prometido que só iria fazer aquele movimento... Ela sempre foi muito legal. Eu acho que a minha avó sempre me ajudou muito. Ela foi sempre meio desestruturada, não tem essa coisa de educação, sempre foi muito relaxada. A comida dela era horrorosa, de você falar: “Ai, meu Deus, hoje tem que comer aqui na casa da minha avó”. Mas, ao mesmo tempo, sei lá, fazia pão. Tudo que não pode a minha avó fazia. Mas ela sempre foi muito animada, muito engraçada. E o meu avô já era um pouco mais metido e ele tinha um pouco de vergonha dela ser assim. E eu achava isso legal, eu gostava. Eu tenho uma tia que é 12 anos mais velha que eu, então, sempre que ela ia namorar, eu ia junto. Essa minha avó todo final de semana ia em uma comunidade e levava comida, bala, era super legal, eu me divertia muito com ela. Ela era uma pessoa de muitos programas, muitas atividades, tinha uma parte social muito forte, não o social da sociedade, mas assistencialismo, não era o que é o meu foco hoje. Mas ela ia e dava comida. Tem uma cena que até hoje eu lembro, elas fizeram lá tipo arroz com frango, levava umas coisas assim, atrás da caminhonete, porque o meu avô tinha uma caminhonete. O meu avô só servia pra dirigir. Chegava lá, minha avó abria assim a caminhonete, subia aquelas crianças em cima e pegava com a mão. Aquilo pra mim era um negócio estranho, mas era toda essa coisa muito nova, muito transgressiva. Era tudo com a minha avó.
P/2 – Como é o nome dela?
R – É Rosa.
P/2 – E o avô?
R – Augusto. Depois tinha a outra chamada Dolores. Legal também, mas assim, zero transgressão. E o outro que chamava Zeca, morreu quando eu tinha 11 anos, já tive menos contato.
P/1 – Esse você falou que morava em outra cidade...
R – Morava em outra cidade, Pedreiras, uma cidadezinha aqui, mais interior que aqui.
P/2 – Você sabe a origem da sua família, de onde veio?
R – A minha avó, não é que eu gosto, é feio falar isso, mas essa aqui é filha de índios daqui mesmo. O meu avô, marido dela, de portugueses. O meu avô Zeca era de italianos e a outra espanhola. Então, tem uma mistura interessante. Todo mundo tem um pouquinho de cada um disso. Mas tem essa coisa que eu acho bacana que é essa parte meio índio da minha avó, essa coisa de andar descalça, de ter a estrutura dela, sempre foi muito legal. Interessante que ela foi ficando mais velha, saiu daqui, foi morar com a minha tia, e a minha tia casou com uma pessoa rica, ela é rica, o marido tem dinheiro e tal. E a minha avó foi entrando em um padrão que não era o dela. Então, ainda hoje, é muito assim: ela tem a sala dela, o quarto dela que é cheio de santo, tudo desarrumado. Dentro de toda estrutura da casa da minha tia, tem a loucura da minha avó. Acho que é bacana isso.
P/1 – E essa casa aqui, como era na época que a sua avó morava aqui?
R – Ela é muito parecida com o que é agora. Essa escada, que me lembrava muito, porque a gente sempre subia e descia. Eu lembro muito porque esse quarto aqui que estamos era o quarto da minha tia, o de lá o quarto da minha avó e o do meio, assistia televisão. E a minha avó, eu me lembro que, como eu, não podia comer e fazia regime sempre com a minha mãe, a minha avó sempre subia e deixava. Era uma coisa até engraçada: Ela fazia pão, não sei o quê, lá embaixo, e eu assistindo televisão. Eu e os meus irmãos. Se eu tivesse que lembrar o momento que eu e os meus irmãos estávamos com a minha avó eu não consigo lembrar. Eu me lembro mais eu com eles. E ela deixava em um buraco, um copo de coca-cola, comida, bolo, bolacha, tudo ali. Era uma coisa assim: “Eu estou te dando, mas faz de conta que eu não estou”. E descia. Ela dormia naquele quarto, era tudo muito parecido. Tinha só um armário. Aqui embaixo. Ah sim, era nojento o corredor e lá fora porque ela tinha cachorros, já teve porco, tudo assim. A parte de trás que hoje tem o teto tinha uma casinha no fundo que, teoricamente, era pra passar roupa, essas coisas, mas era tudo sujo. Aquilo é a garagem. A garagem sempre foi a mesma, se vocês forem ver a garagem, ela tem um buraco na frente porque uma época o meu avô teve um carro, já nem lembro mais o nome do carro, mas era enorme, comprido, então, tinha que entrar a parte da frente assim. Mas o portão é o mesmo. Só que essa casa, quando eu vim morar e tinha minhas filhas, quando vim da Itália, vim pra cá, ela não estava aqui, ela deixou eu morar aqui e eu tive que fazer umas adaptações. Mas está muito parecida. O chão sempre foi esse.
P/1 – Vamos falar um pouco dos seus pais, um pouco da história deles, origem, nome.
R – Meu pai, filho dessa “tchurminha” é o mais velho, só tem uma irmã, que é essa minha tia. Eles devem ter, sei lá, uns 20 anos de diferença, um pouco menos. Ele sempre foi um cara que cuidava muito da família. Estudou. Aqui em Sorocaba tem faculdade de Medicina. E acho que na época que ele tinha que fazer vestibular, o bacana era ser médico, então, ele foi fazer pra Medicina, não passou. E, como não passou, parece que a minha avó não deixou mais ele tentar. Foi um cara que não fez faculdade, mas como o meu avô trabalhava na estrada de ferro Sorocabana... Olha, eu não sei, vou contar uma coisa que talvez eu esteja mentindo, mas eu sempre escutei uma coisa assim: ele sempre trazia alguma peça, acho que roubava alguma peça, alguma coisa, da Sorocabana. E parece que isso era uma constante de muita gente que trabalhou lá, como deve ser constante de muita gente que trabalha em um monte de lugar. Ele sempre trazia umas peças, tal, e foram montando aqui atrás como se fosse uma espécie de, sei lá: o meu avô começou a fazer pilão e a minha avó vendia na rua. E o meu pai, com essa coisa. O meu pai tem um espírito meio empreendedor que não deu certo, eu fico até meio angustiada de falar, que eu não seja como ele. Eu gosto do jeito dele, mas ele não foi funcionando de um tempo pra frente. Ele montou uma empresa, uma metalúrgica. Ele não estudou, mas, junto com o meu avô, que tinha essas habilidades e tal, montaram a metalúrgica e ela rolou legal. Ele foi um cara que teve muito dinheiro através dessa coisa da metalúrgica, teve sócios e tal. E sempre era o cara da sociedade que fazia os contatos porque todo mundo conhece ele. O apelido dele aqui é Sérgio “Bocanegra” porque ele é meio preto. Como a minha avó é meio índia e o meu avô era meio português acho que com negro, era bem escurinho, não me lembro direito, mas acho que era. Então, chamavam ele de “Bocanegra”, jogava futebol, era uma pessoa bem conhecida aqui na cidade. Até porque tem esse espírito muito animado, fazia muita gozação. E também acho que era bonito, tinha todas umas características. Tanto se achava tão lindo que quando foi pra botar óculos, não queria por óculos porque tinha olhos verdes, ele é todo assim. Esse é o meu pai. Sempre foi uma pessoa muito afetuosa comigo, hoje a gente tem uma relação muito ruim, mas ele sempre foi uma pessoa muito... Vamos dizer assim: Eu sou a primeira filha e existe uma coisa meio família desse lado da família, e um tem que gostar do outro, todos tem que se amar. Pelo fato de eu ter sido a primeira filha, acho que ele depositou muito em mim. Ele me levava no carnaval, sempre foi muito ligado a mim, mesmo. Muito. E eu a ele. Talvez eu mais a minha avó que a ele. Mas ele essa coisa. Ele é muito afetuoso, um cara que beija. E a minha mãe absolutamente o contrário. A minha mãe, filha de uma professora com um cara que tinha posses, que tinha vindo da Itália, era mais chique, vamos dizer assim. E aí se apaixonou pelo cara, casaram. A minha mãe morou em colégio interno em Botucatu, depois veio estudar aqui em Sorocaba, se conheceram, tal, e acabou casando. Ela fez Pedagogia e depois fez Administração de Empresas, mas pelo fato dela ter filho, ela teve quatro, ela não conseguia trabalhar. Ela até queria, se intrometia e tal. Tem esse lado de trabalho da minha mãe muito frustrado. Apesar dela ser super competente. E sempre foi uma pessoa muito dura. E não sei muito bem, mas comigo muito dura mesmo. A gente nunca se deu muito bem até a dez anos. Porque ela sempre foi muito assim, ela exigia e fazia, muito difícil. Mas, por outro lado, tem uma coisa na minha mãe que eu acho que tenho que agradecer. Tem o meu pai empreendedor, dele ser e fazer, mas eu não acho que peguei dele, acho que peguei da minha mãe, porque a minha mãe sempre foi uma pessoa muito assim, por exemplo: eu tinha dez anos e queria ir na casa da minha avó, ela falava assim: “Vai sozinha, eu não vou”. Eu falava: “Como, vou sozinha? Eu só tenho dez anos” “Ah, não vou. Você acha que eu vou sair daqui pra te levar? Eu não vou, vai sozinha”. Ela assinava o termo e eu ia sozinha. Quando eu passei na faculdade em São Paulo e tinha 17 anos, tinha que fazer a inscrição lá na USP e em outra. Era São Paulo e ela falava: “Não vai dar, eu não vou. Você vai com os seus irmãos”. Pegamos o ônibus, tinha que parar na Ponte não sei o quê, foi um rolo, nunca tinha ido sozinha pra São Paulo. Por exemplo, namorado. O primeiro namorado que eu tive eu cheguei pro meu pai: “Olha, estou namorando”. Ele falou: “Não”. Ela falou: “Sim”. Foi tão engraçado. Ele falou: “Absolutamente, não”, e ela: “Absolutamente, sim. Ela vai namorar, pronto e acabou”. Eu sentia como se ela estivesse meio “tô nem aí”, mas, aos poucos, fui percebendo o quanto isso foi me dando uma certa segurança, tanto que hoje eu me mando pra qualquer lugar e não estou nem aí. Eu me lembro que quando eu fui pra Itália, já era bem mais velha, tinha 24, 25 anos, eu fui pra ficar seis meses. Como ela falou: “Você se vira”, eu vendi meu carro, não sei o quê, e fui. Depois de um mês e meio: “Ah, não vou ficar aqui, muito frio”. Liguei pra ela e falei: “Não, não vou ficar aqui, é muito frio. Não estou afim e não sei o quê”. Ela falou: “Você inventou, agora fique. Você tem que assumir as coisas que você quer”. Eu falei: “Mas mãe, aqui é frio, eu estou longe”. E ela falava assim: “Você vai ter que ficar”. E ela me convenceu assim: “Você pense que como você vendeu seu carro não vai ter dinheiro pra comprar outro”. Aí, eu fiquei. E fiquei sete anos. A minha mãe sempre foi muito essa coisa de dar a independência, de fazer as pessoas entenderem que dá pra você fazer, você faz e tal. E o meu pai já uma coisa... Por exemplo, quando eu fui morar em São Paulo, eu comecei a trabalhar escondida, eles não sabiam. Ela descobriu, não falou nada, ficou quietinha. Quando ele descobriu quase teve um ataque: “Como que eu não dependia mais dele?”. Mas no meio da minha adolescência e tal, o meu pai começou a fazer um monte de besteira, tipo, emprestava dinheiro de agiota, coisas assim, e a minha mãe, como ficou mal, não sei muito bem como foi o lance, ela fez o voto de pobreza. Coisa mais louca. Nunca ouvi falar, fora o São Francisco de Assis, eu nunca conheci nenhuma pessoa que tenha feito. E ela fez esse voto de pobreza e a gente tinha que entrar na onda de pobreza dela. Porque a gente foi morar numa casa que é onde a minha tia mora. Tem isso na minha vida que é assim: como a minha tia é rica, tudo o que meu pai ia perdendo, ela ia comprando. Então, a gente nunca perdeu nada, eu nunca perdi nada. A casa tá lá e tal. A gente foi morar em uma casa de mil metros quadrados e minha mãe fez o voto de pobreza, justo nessa época. Eu cozinhava, minha irmã tinha que limpar, meu irmão tinha que fazer... Todo mundo tinha que fazer, e ela dormia deprimida. Ela com o voto de pobreza, deprimida, e a gente pobre lá, fazendo, ralando. E nesse voto de pobreza mudou também muita coisa nessa relação. E eu falei que não queria, de jeito nenhum, morar com ela. Porque meu pai tinha uma fazenda e ela resolveu que iria lá. E o meu pai ia também, ela mandou todo mundo pra lá. Eu falei que eu não ia, ela falou: “Você só não vai se passar na faculdade”. Eu falei: “Pode deixar”. Passei em todas que eu prestei. Falei: “Tenho que passar aqui, senão...”. Minha mãe e meu pai são pessoas interessantes. Acho que o meu pai foi um filho muito mimado. Ele foi muito empreendedor, mas sempre contando com os mimos. Nunca segurando a própria onda. Sempre fazendo coisas legais, nunca quis sacanear ninguém, mas sempre quis alguém segurando o colo dele. E a minha mãe já menos, empreendedora de outro jeito, super-realista, prática. Acho que essa coisa do colégio interno era um negócio meio pesado. Esses são meus pais. Hoje são velhinhos, depois que eu tive filhos, minha mãe passou a ser a melhor pessoa da minha vida, até eu ter filho eu achava ela horrorosa, mas depois, além dela me dar uma super força eu comecei a entender, porque é pesado. E o meu pai, no meio tempo, começou a se embaralhar com um monte de coisa e eu comecei também a ficar muito afastada, ele teve uma outra mulher, outra filha. Outra mulher, mas sempre com a minha mãe. Outra filha. Eu acabei aceitando essas duas pessoas, depois, sei lá, foi tudo muito confuso. De uma pessoa que eu achava legal, amável, muito bacana, tudo, passou a ser uma pessoa que... Hoje eu olho, acho uma pessoa legal, um cara que as pessoas sempre gostam e tal. A sensação que eu tenho, quando voltei da Itália e vim morar em Sorocaba, meu pai trabalhava aqui com o meu tio um pouco na fazenda, eles moram numa fazenda hoje, enorme, mas caindo aos pedaços. E eu me lembro que, como ele trabalhava com o meu tio, eles tem os carros coorporativos, eu fui colocar gasolina no posto aqui embaixo e na hora que eu fui pagar, fui no balcão, olhei e li assim: “Não vender para Sérgio Barros”, que é o meu pai. “Puxa, que coisa, meu pai”. Eu liguei pra ele: “Por que não pode vender pra você?” “Não sei” “O que você aprontou?”. Esse é o exemplo da sensação que eu tenho um pouco do meu pai. Na hora que você vai conversar com ele tem que tomar cuidado que ele vai aprontar alguma. Não vai sacanear alguém, mas vai fazer alguma coisa que você vai ter que segurar a onda. Então, é melhor ficar longe de encrenca. Essa é o cenário que tenho. Antes, lógico, eu morava na Itália. Mas quando cheguei aqui, nos primeiros três meses, vejo um negócio desses e falo: “Jesus, que situação. E é o meu pai”.
P/2 – Raquel, vamos voltar um pouquinho lá na sua infância. Então, você era a mais velha de quatro irmãos ou irmãs. Fale o nome deles.
R – A Cristina é oito, nove meses mais nova que eu, pouquíssimo tempo, não dá um ano mais nova que eu, ou um ano e pouco. Depois tem o Serginho, depois tem o Zé. O Zé é dez anos mais novo que eu, o Serginho, três.
P/2 – Do que você lembra dessa época de infância, do que vocês brincavam? Alguma história que você lembre, que marcou essa época.
R – Na infância sempre fui de ter minhas brincadeiras imaginárias, eu e as minhas brincadeiras. Pouco me lembro de brincar com a minha irmã, apesar de depois a gente sempre ficou junto. Mas da infância mesmo, de brincadeira eu me lembro da minha avó, de sair com ela. Lembro que na minha casa tinha cachorro, a gente tinha foto com cachorro. Mas é um pedaço da minha vida que não sei, eu não me lembro de brincar com meus irmãos. Mesmo porque o meu irmão Serginho, quando ele era pequeno a minha mãe voltou a estudar, ela levava meu irmão com ela porque ele era muito pequeno. Eu me lembro que a minha mãe ia estudar, ela arrumava tipo uma frau, sempre alemãs, uns tipos estranhos, pra cuidar da gente, duas casas pra cima. As mulheres eram terríveis e eu fugia pra cá quase toda noite e a minha irmã se trancava. Essas coisas eu me lembro. Eu lembro que essa mulher tinha uma bunda desse tamanho, assim. Essa é impressionante, não dá para não lembrar porque ela usava uma roupa verde limão todo dia, era loira e tinha essa bunda enorme. E como ninguém gostava dela, quando ela abaixava o meu irmão jogava a bola, tipo vôlei, na bunda da mulher. A minha mãe ficava brava, dizia que a gente estava espantando a mulher. Essas coisas lembro com os meus irmãos. Mas tinha uma coisa muito também de brincar sozinha, ficar muito aqui com a minha avó, tinha mais essa praia. O outro irmão é dez anos mais novo, então, ele nasceu, a gente ajudou a cuidar, mas não me lembro exatamente de ter brincado; desse irmão eu lembro quando a gente foi morar junto em São Paulo, mais nessa época. Eu lembro muito da minha avó, da minha tia, de ir passear, de ir na chácara. Mas esses outros personagens, meu irmão e tal, é muito difícil lembrar dessa época. Talvez também porque tinha uma coisa de competição porque a minha mãe realmente tinha uma certa birra comigo e eu não era o padrão de filha legal: Eu não era bonita, era gordinha, usava óculos. Isso também era horrível: ela ia comprar óculos, em vez dela comprar um bonitinho, não, ela comprava o pior, mas que era mais cômodo, que não fazia não sei o quê, resistente, que durava o resto da vida. Aquela coisa que você virava um monstro. Outra coisa, quando eu ia cortar cabelo: Eu sempre tive cabelo crespo e ela cortava curtinho. Eu me lembro, não sei por que, mas ela era um horror. Não sei também se ela era ou se eu me lembro, mas eu lembro que eu passava o dia inteiro, do dia que eu tinha cortado o cabelo, trancada no quarto. Ou nesse quarto, ou em um outro que era parecido com esse na minha casa. Ou depois usava lenço pra ir na escola. E a minha outra irmã é o oposto: Ela é magrinha, toda direitinha, o cabelinho, não reclama, não briga. E eu sempre fui assim: “Ah, esse eu não gosto”. Por exemplo, se meus irmãos estavam assistindo televisão e passava um irmão na minha frente eu fazia sair. Não falava dá licença, não tinha essa... Eu era muito parecida com a turma de cá. Pra ela já era muito ruim isso, primeira filha, meu pai muito ligado a mim e eu muito espalhafatosa, e xingava, brigava. Não era uma filha muito padrão “bombonzinha”, com a fitinha. Acho que pra ela era mais difícil de lidar, com os outros era mais fácil. Acho que tem isso com os meus irmãos. Talvez eu sentisse ciúmes naquela época, sei lá, e ia pra casa da minha outra avó. A gente fazia lá o curso de etiqueta. Eu tinha uma prima da minha idade, mas magrinha, bonitinha, como a minha irmã, então, elas saíam, brincavam. Mas nunca nos demos mal, a gente dormia no mesmo quarto. Todo mundo na minha família sempre teve alguma crise. E a minha irmã teve uma época que foi muito... Eu falo isso porque tenho uma filha que é igualzinha a minha irmã e a outra é igualzinha a mim, são gêmeas. Ela teve uma crise, não me lembro exatamente o quê, mas ela tinha muita pressão. Ela ia segurando, segurando, aceitando tudo. Tem que ser muito boa na escola, muito bom isso. E teve uma época que ela parou, não ia estudar e fazia uns desenhos, assim, e tudo o que ela queria dizer, ela dizia com a primeira letra da palavra. Então, n, f, não sei o quê, e ninguém entendia. E o quarto era meu também, e eu ficava brava porque eu falava: “Ó, a menina tá em crise e está contaminando o meu quarto!”, porque era cheio de desenhos, tudo meio esquisito. Era tudo assim. Tinha que fazer a prova e não ia fazer a prova e escrevia no desenho. Eu me lembro muito dessa época da minha irmã, quando ela teve esse crise, ela pregava na parede os desenhos pra chamar atenção. Ficou horrível o quarto. E eu falava, se pelo menos a gente conseguisse decifrar aquilo, mas não conseguia, era tudo esquisito. Ao mesmo tempo que tudo era muito confuso porque tinha essa coisa da minha irmã ser bonitinha, sempre teve uma coisa de relação. Por exemplo, o meu irmão Sérgio, a gente chama ele até hoje de Té. E eu penso, se a gente até hoje chama ele de Té, de alguma forma a gente tinha uma relação legal. Acho que eu tenho algumas vezes essa imagem de distância, mas acho que, na verdade, tinha uma relação que não aparecia muito, não era aquela coisa de: “Ah, vou convidar a minha irmã pra brincar de casinha”. Se bem que a gente tinha uma casinha atrás da casa da minha mãe. A minha mãe era assim, prática. Então, no quintal da minha casa tinha uma casinha feita de tijolo, com pia, quarto, cozinha, banheiro e tudo, pra nós. Então, imagina o quanto eu brincava com a minha irmã nessa casinha, porque era muito legal. A gente queria um porco, ela pôs o porco lá, tinha uma casinha do porco. Mas ela nunca falou: “Vamos brincar com o porquinho”. Ela nunca foi assim. E eu tenho essa outra irmã, mas aí é em uma outra fase da minha vida.
P/2 – Nessa época da infância você não tinha uma turma de amigos?
R – Eu sempre tinha o vizinho, o que morava lá em cima, ia na casa. Hoje a maioria trabalha comigo. Eu sempre fui muito “saideira”, de sair, ir na casa. Eu sempre fui muito de relações, a minha irmã não gostava de sair e eu era sempre a que ajudava. E tinha uma coisa que eu gostava de estudar. Eu me lembro, desde os seis, sete anos, eu trazia toda a turma em casa pra fazer lição em casa, entendeu? Eu gostava dessas coisas, do coletivo. Fazer lição sozinha? Não. E eu chamava todo mundo. A coisa começou a ficar: “Tem que fazer prova” “Então, vamos estudar na casa da Raquel”. A minha casa era sempre cheia desses amigos. Tinha a coisa brincar, mas o que tinha mais era: “Vamos estudar junto, ela era a professora”. Eu ensinava. Nossa, passei tanta cola na minha vida! Eu sempre tive esses amigos, sempre tive umas brincadeiras mais mentais, nunca gostei muito de correr. Aliás, na escola eu quase fui reprovada por quatro anos na Educação Física porque tinha aquele shorts e eu não ia de shorts e a professora ficava brava que eu não punha shorts, porque eu tinha a perna gorda. E eu me lembro da primeira, segunda série, sei lá o ano, que tinha Educação Física, você fazia fila e alguém falava atrás: “Olha a perna dela”. Imagina se eu iria por algum shorts. Eu não ia de shorts e a professora falava: “Vou te dar falta”. Eu falava: “Pode dar”. Eu sempre fui muito assim: “Eu não vou por shorts, eu não vou correr, eu não vou competir”. Tinha isso também. Naquela época, Educação Física era uma coisa meio imbecil: “Vamos competir. Fazer corrida de competir”. Era tudo uma competição. Eu falava pra ela: “Não vou competir, não quero saber, não estou nem aí”. E ela me botava falta, me dava nota baixa. Mas como eu era muito boa nas outras matérias, eu chegava pro Diretor e falava assim: “Eu não vou ser reprovada”. Com exceção da minha irmã, todos nós sempre fomos assim, de chegar e falar: “Não. Tirei oito, tinha que ter tirado dez. Você reveja aí que tem alguma coisa errada”. Sempre meio petulante. E teve uma história que essa eu contei pras minha filhas outro dia. Eu era gordinha e a minha mãe mudou para uma escola que estava começando. Quando eu estava na terceira série e tinha oito, nove anos, fui para uma escola que tinha quatro alunos na minha classe: Era eu, um outro gordinho que era meu amigo, tinha uma outra que era bem magrinha, a Analu, que trabalhou comigo até mês passado, trabalhou cinco anos aqui, e tinha uma outra insuportável. E essa outra fez aniversário, primeiro aniversário daquela turma de quatro e era numa pizzaria. E ela falou: “Você eu não vou convidar porque você come muito.” Eu tinha nove anos. Nossa, aquilo acabou comigo. Imagina, já tinha que usar shorts e não fui convidada. Nunca mais. Eu vejo a menina às vezes aqui, passaram-se 40 anos, eu vejo a menina e falo: “Filha da mãe”. Quando eu vejo as minhas filhas também com algum problema de pessoa gorda, eu falo: “Fala pra ela...”. Eu era assim, nessa coisa meio revolta na escola, mas sempre tive amigo, sempre tive muitos amigos. Ou era porque eu gostava de ensinar, ou era porque as pessoas me achavam engraçada. Eu sempre tive muito essa coisa do meu pai, ele sempre tirou muito sarro das pessoas, então, eu também tirava. Mas não pela gordura. Sempre fui uma pessoa que vai falando o que pensa. E as pessoas se sentiam bem, não sei. Tantos que eram meus amigos, que a minha vizinha de lá, por exemplo, que também trabalha comigo aqui, ela contava que eu ia brincar. Eu lembro que tinha as festas de aniversário de duas vizinhas e, especialmente, uma vez aconteceu de fazer a festa de aniversário e não ir ninguém. Fui só eu de convidado e algum outro. Então, ficava angustiada nas festas de aniversário das vizinhas porque eu já ia preparando, ligava pras pessoas: “Você vai.” Eu lembro disso, dessa coisa dos amigos, meio de proteger, de ficar ligada, mais ou menos.
P/1 – E a cidade de Sorocaba? Gostaria que você falasse um pouco da cidade.
R – Vou falar um pouco daqui. Essa rua, porque muito eu vivi nessa rua. Primeiro, a gente conhecia todo mundo. Era esta que morava sempre estudantes de Medicina. Era muito interessante porque toda a vizinhança ficava ligada: “Quem vai morar nessa casa agora?”. Estudante geralmente faz baderna, essas coisas. A gente conhecia desde a velhinha que morava na primeira casa, hoje é uma casa de massagem, ela fazia festa de São Cosme e Damião e todo ano distribuía bala e não sei o quê. Até outro dia o meu irmão veio aqui trazer um negócio no escritório e falou: “O que aconteceu com a casa de São Cosme e Damião?” “Virou um point”. Tem a casa da dona Ercília, a gente brincava. Mais do que brincava, porque tinha neto ou não, a gente entrava mesmo nas casas, a gente circulava por essas casas porque a gente conhecia todo mundo, a minha avó conhecia, minha mãe. A gente ia circulando e era muito legai isso aqui. E a outra rua também. Perto do centro, então a gente tinha uma certa mobilidade. A gente - não lembro se eu estudava à tarde -, mas sempre ia de manhã na igreja. A minha mãe sempre muito religiosa, a minha avó nunca foi na missa, ela sempre foi na igreja. Porque era assim: era uma passagem rápida, um tour, eu adorava. Entra, faz um giro rápido na igreja e sai. E era legal passear na cidade, ia na praça comer pastel, tem essa coisa que rolava e que era mais com a minha avó. Aqui embaixo tem feira toda sexta-feira. Então, era super legal porque a gente ia na feira e era um passeio mesmo, ficava na feira. Ou ia pro centro. Sempre foi mais essa área, que era centro. E a gente sempre tinha essa chácara que minha avó ia, em Araçoiaba. Mas Sorocaba o que me lembra mais é esse ambiente aqui, o centro da cidade. Depois, quando vai ficando adolescente, tem os points, que você começa a frequentar e você lembra daquela rua lá de cima, que hoje também tem uma loja e você fala: “Ai”. Mas é legal... Acho que a cidade também cresceu, ficou bacana. É uma pena que, na verdade, o lugar que você cresceu, tenha virado um espaço mais agressivo. Eu não digo que é um bom espaço, um espaço ruim, é um espaço que tem que existir. Mas ele ficou mais agressivo. Ninguém tem coragem de deixar o carro aqui na frente, só eu que deixo porque acho que eu morei aqui e falo: “Pelo menos, bom, acho que não vão roubar...”. Mas ninguém tem coragem. Porque roubam mesmo e já roubaram a nossa própria perua aqui na frente. Ninguém tem coragem, mas eu deixo. Ou, por exemplo, a coisa que como tem o terminal de ônibus aqui embaixo, que na época não tinha, então, sobem muitas pessoas que, às vezes, fazem esse circuito do terminal até a rodoviária. É um lugar mais underground do que era antes. Você fica imaginando: “Nossa, antes por aqui circulava uma população e hoje circula outra”. Eu não digo que seja boa ou má, eu só digo que não teria mais condições de existir mais famílias morando nessa rua e crianças circulando pra lá e pra cá. Tem uma história, por exemplo, que meu irmão estava assistindo televisão, acho que aqui na casa da minha avó e sumiu, ninguém achava meu irmão. E chama a polícia e não sei o quê, e ele estava assistindo televisão na casa da vizinha aqui da frente. Mas como ela tem duas casas, a da frente, dela, e a do filho, atrás, ele estava lá. Chegou lá, ligou a televisão e começou a assistir. Ninguém viu ele entrando. Eu imagino hoje. Imagina, se tivesse sumido. Sorocaba tem esse lado muito acolhedor, esse lado da rua, mas pra mim, por muito tempo, foi uma cidade que eu falei: “Não volto mais”. Eu acho que o fato de eu ter ido embora daqui me fez crescer muito. Lógico que a cidade cresceu e, com a cidade crescendo sempre tem várias oportunidades, mas essa coisa meio do bairrismo, de você ter que ter um status, do carro que você usa, que em qualquer lugar tem. Mas, como eu fazia parte do ponto de equilíbrio entre ser muito rica e ser muito pobre, essa coisa meio que quem não sabe o que é direito, fica meio confuso, você tem que se autoafirmar. Essa coisa de: “Ai, que carro que tem”. Eu lembro que quando a gente foi morar nessa casa que hoje é em um bairro nobre de Sorocaba, tal, na época estava começando o bairro, o loteamento. Acho que o meu pai não tinha mais dinheiro pra terminar, era uma casa enorme, ele fez uma cerca de arame farpado em volta da casa. Tinha as outras casas que eram mansões e tal, e a minha era de cerca de arame farpado. porque todo mundo falava assim, e era muito engraçado: “Vamos lá na casa da cerca de arame farpado”. Todo mundo conhecia que era a coisa diferente. Acho que é assim, por um lado Sorocaba foi legal, acho que pelo fato de ser uma cidade menor, acho que se eu tivesse crescido em São Paulo, as coisas teriam sido diferentes, mas eu acho que foi muito bom sair daqui também. Acho que foi fantástico.
P/2 – Como era essa época de adolescente, das paqueras, dos namoros?
R – Tinha aqui as paqueras. Eu sempre oscilava em ser muito gorda e emagrecer. Então, tinha época que eu estava muito gorda e não tinha nada, só ficava paquerando, mas não conseguia nada; e tinha época que eu emagrecia e daí já... Na verdade, eu tive tanta confusão na minha vida e acabei casando com um italiano que é um caretão, chatão. Eu paquerava algum cara aqui que não era o tipo padrão, porque eu nunca gostei dessa coisa meio tipo padrão, o cara não precisava ser o estudante de Medicina. Eu gostava do cozinheiro de não sei onde, tinha que ser sempre alguma coisa. Não precisava ser bonito ou feio, mas tinha que ter um status, mesmo que se fosse “o cara do lixo”, mas era o cara do lixo. Também teve uma época da adolescência que eu oscilava entre aqui e a fazenda onde meu pai foi morar. Eu sempre tinha essas paqueras. Eu sempre falo, acho uma coisa até feia, mas, eu nunca tive uma pessoa aqui, sempre tive várias. Acho que isso é complicado também, a pessoa acha que eu não estou tão dedicada, não é que eu não estou dedicada, mas na verdade eu gosto de me dedicar a várias coisas: “Ah, mas você não está gostando de mim” “Não, eu gosto, mas eu também gosto disso, daquilo”. E acho que isso, em alguns momentos, nessa coisa de namoro não é muito bem aceito. Tinha um monte que eu paquerava e que não dava nenhuma bola pra mim, ou que, sei lá, queria só tirar sarro. Aqui em Sorocaba tinha um pouco disso: Ia lá, para o bailinho, paquerava, às vezes rolava alguma coisa, às vezes não rolava. Dependia muito da minha autoestima, de quantos quilos eu pesava, porque dependendo de quantos quilos eu pesava era como eu me comportava. E é engraçado porque eu tenho uma prima, essa também é uma pessoa interessante na minha vida, mais do que a minha irmã. Todo sábado e domingo eu ia pra casa dessa minha prima, Adriana, mas sempre foi meio assim, meio boba. Nunca pensava além do que era necessário, vamos dizer assim. Mas eu adorava o pai dela, eu passava o final de semana lá porque eu sempre fui muito saideira, minha irmã nunca quis sair. Eu ia lá, ficava lá, almoçava, à tarde assistia televisão e não sei o quê, e ficava com essa minha prima. E ela tinha uma irmã que era uns oito anos mais velha e a gente saía. Quando saía, saía com a irmã que era quem levava. E essa prima sempre foi gordinha também, mas uma certa época ela emagreceu, ficou muito magra e eu falava: “Impressionante, como a menina é magra”. E ela tinha os namorados e ficava falando: “Não, você tem que ser magra, tem que emagrecer”. E teve época que eu queria emagrecer. Porque tem isso também, quem diz é a minha tia, mas acho que deve ser verdade também. Com oito anos a minha mãe me levou no médico pra fazer regime - eu tô levando as minhas com sete, mas isso é mera coincidência -, e eu comecei a fazer o regime. Na verdade, tinha essa coisa que eu tinha que atingir um padrão. Se eu não atingisse o padrão não dava para eu conseguir paquerar. Ela sempre me levou, mas como eu tinha minha avó que me desvirtuava, eu fazia regime lá e aqui eu comia doce. E ela falava: “Como é possível que você não está emagrecendo?”. Porque a minha avó, não sei se era de propósito, ou não, mas ela comprava caixas de toblerones, caixas, não era um. Era caixa de suflair. Tinha um armário que você abria, assim, e era “a” sensação. Pra quem está fazendo regime... Até hoje não gosto muito de chocolate. Mas eu tinha essa coisa. Eu lembro que quando eu tinha mais ou menos 16 anos, um pouco antes de eu ir embora, eu falei pra ela: “Quero ir nesse médico porque a minha prima emagreceu, eu quero ir também”. Porque ela ficou bonitona. Eu falei: “Mãe, eu quero ir nesse médico”. Ela falou: “Não vai mais. Chega. Já acabou”. Eu já tinha 16. Desde os oito até os 16, eu emagrecia e engordava. Eu me lembro que eu comia, comia, pra ficar bem gordona e ela me mandar no médico. Aí, ela levou, eu emagreci, fiquei bonitona, emagreci 20 quilos, foi muito bacana. Foi uma época de sucesso total, época de desbunde, porque fica 20 quilos a menos. Eu não lembro mais, se eu tivesse alguma foto, gostaria até de procurar pra ver o panorama da coisa. O que mudava mesmo, acho que mudou bastante, lembro que eu usava roupas da minha irmã. E a minha irmã sempre foi uma pessoa insuportavelmente neurótica. Ela arrumava as camisetas dela, colocava uma régua pra ver se estavam... E eu roubava as roupas pra poder usar porque eu saía à noite e ela não gostava de sair. Eu levantava, puxava, mas ela percebia. Porque ela colocava a régua e eu não consegui nunca colocar no mesmo lugar. Então, por exemplo, nessa época que eu emagreci eu usava roupa dela escondida, então, eu devia estar legal. Eu saía, tinha vários meninos, a coisa meio do deslumbre, fiz muito disso.
P/1 – Você falou muito que brincava sozinha, pensava, tinha uma brincadeira imaginária. Você tinha algum sonho? Aquele sonho mais maluco possível de infância?
R – Nunca consegui lembrar, esse é um problema sério que na próxima terapia eu preciso...
P/2 – Não sonhar de noite, sonho do que você quer ter quando crescer?
R – Não. Eu tinha essa coisa de sempre estar perto das pessoas, de ajudar as pessoas. O meu imaginário era sempre alguém que eu estava ajudando, apoiando. Isso acordada. Sempre tinha alguma amiga minha que eu estava com ela, dando uma força. Tanto que quando eu tinha nove, dez anos, lembro que estava na quarta série, eu resolvi que eu ia ser psicóloga. Eu falei: Eu vou ser psicóloga. E eu sempre fui assim, eu resolvo uma coisa e todo mundo falando: “Você é louca, psicóloga”. Porque eu tinha dez anos, ainda faltavam uns seis anos para decidir e eu já tinha decidido que queria ser psicóloga. Também porque a minha mãe me obrigou a ir na psicóloga aqui e todo mundo fala que é influência da psicóloga. A minha mãe me obrigou ir na psicóloga e eu ia a pé porque era descendo essa rua. Foi na mesma época do gordinha, tinha oito anos, sei lá. Eu ia, mas como eu não suportava a ideia, eu ficava 45 minutos. Eu ficava meia hora embaixo do lugar e subia no prédio nos últimos 15. Isso durante um ano. E a mulher tentava fazer de tudo, era a melhor de Sorocaba. Era sempre assim: Eu ia, ficava meia hora e depois subia, sentava, falava: “Hoje eu fiz isso daqui, lição tal”. Ficava quieta e não abria a boca. E ela tentava. Até que um dia eu falei: “Posso trazer um livro?”. Ela falou: “Não, porque se você trouxer o livro não vai rolar e tal”. E eu lembro que depois de um ano e pouco, acho que a mulher não estava aguentando mais, ela foi dura e eu também, sempre. E a minha mãe falava assim: “Como você chega atrasada se você sai na hora?”. Eu falava: “Não sei, eu sou devagar e tal, se você quiser me levar”. Ela começou a me levar e eu parava no primeiro andar. Era sempre assim. Quando acabou um ano e pouco, eu cheguei pra ela: “Tá bom, você quer que eu fale. A partir da semana que vem eu vou falar”. Eu comecei a ficar 15 minutos embaixo e meia hora em cima. E eu falava e resolvi, não sei muito bem, mas todo mundo falava que foi por essa. Eu acho que não foi pela psicóloga, acho que tem a questão da psicóloga, mas acho que tem a questão da minha avó, essa coisa das pessoas, que todo final de semana eu via personagens diferentes, com necessidades diferentes, uma coisa meio de necessidade. Fora isso tinha essa coisa da minha mãe ter essas crises. Então, sei lá, eu resolvi que queria ser psicóloga, decidi. E o mais engraçado dessa história: eu tinha essas amigas que eu ensinava, começou o primeiro colegial, eu dava aulas, mesmo. Às vezes tinha plateia, aula de Física. Era engraçado, tudo na minha casa. E a minha mãe inventou de dar aula de catecismo, fazer crisma, essas coisas, pros meus amigos. E foi uma crise total, porque a minha didática era uma, a da minha mãe era outra, a dela era uma linha dura. Mas enfim, fizemos crisma e tal. Quando eu fui prestar vestibular pra Psicologia, seis amigas minhas, dessas, fizeram vestibular pra Psicologia também. Eu falava: “Gente, que horror! Que coisa pegajosa”. Algumas ficaram e outras fizeram, mas não tinham nada a ver mesmo. Eu acho que essa coisa das minhas brincadeiras, dos meus amigos, era assim. Sempre tinham pessoas e de alguma forma eu estava sempre dando uma força: Ou eu estava ajudando a cozinhar, ou eu estava fazendo comidinha pra levar, esse imaginário era assim. A minha mãe conta que tinha nomes, mas eu não me lembro. Eu sei que tinham alguns nomes que eram mais frequentes na minha vida do imaginário.
P/1 – Então, a escolha pra Psicologia foi fácil?
R – Era ok, não tive essa crise de pensar. Na verdade não é nem que eu escolhi, eu decidi que ia ser isso. Do mesmo jeito que eu decidi que iria morar fora e fui. O único problema foi quando decidi que ia ter filho e não tive, essa foi a parte mais complicada. Mas assim, eu tinha uma coisa: “Ah tá, vou fazer isso”. E a Psicologia foi assim: “Ah é, vou fazer isso”.
P/1 – Conta um pouco desse momento de passar no Vestibular e morar em São Paulo. Como é a sua chegada em São Paulo, todo esse processo?
R – Eu comecei a perceber o meu poder e a minha determinação, eu saquei nesse momento. Porque ela falou assim: “Nós vamos todos morar na fazenda”. Eu falei: “Eu, no meio do mato, nem pensar. Com você, no meio do mato, nós vamos nos matar”. Ela falou: “O único jeito de você não ir morar no meio do mato é passando no vestibular”. Eu era inteligente, mas não era uma sumidade. Eu falei: “tá bom”. Prestei três Psicologias, PUC Campinas, PUC São Paulo e USP. E era muito engraçado o vestibular porque eu não fiz cursinho, terminei o colegial e tinha que passar. Eu falei: “Não, eu vou passar porque eu não posso morar no meio do mato”. Podia ter mais um ano pra fazer cursinho e tal, mas como eu não tinha mais esse tempo, ia ter que entrar. Até hoje eu me lembro que na prova da USP perguntava assim, em Geografia, sei lá dos Estados Unidos. Eu não sabia responder, mas eu respondi o que eu sabia dos Estados Unidos. Não tinha nada a ver com a pergunta, mas eu falava: “Eu tenho que entrar. Se o cara pelo menos souber que eu sei alguma coisa dos Estados Unidos, falo inglês, sei lá, uma coisa assim, ele vai dar um pontinho pra mim.”. Tanto que eu entrei nas duas PUCs e, na USP, na segunda lista. Eu sempre passo de raspão em tudo, vou entrando. E fui pra São Paulo. Teve uma coisa muito legal, eu falei pra minha mãe que eu ia e fui. E nessa época eu tinha um namorado que morava em São Paulo, era um cara que era um pouco mais velho, ele tinha sei lá, uns dez anos mais que eu. Ele morava em São Paulo, mas era de Minas, não me lembro direito. E eu fui morar na casa da minha tia, que era a irmã da minha mãe. Sabe aquela coisa boa de morar com tia, chega e a comida tá pronta, tem a roupa lavada, alguma coisa assim? Não, a minha tia era a anti-tia. Eu tinha que cozinhar, lavar a louça, às vezes arrumar a casa porque ela era uma bagunceira. Foi o momento que eu comecei a me ligar que qualquer coisa que eu fizesse, eu poderia fazer o que eu quisesse. Desde usar drogas até ir pra missa todos os dias, o que eu quisesse eu faria e qualquer uma daquelas coisas que eu fizesse, a responsabilidade seria minha. Isso foi bom da tia. Porque a ideia da minha família era: “Bom, vai morar com a tia porque a tia dá uma enquadrada e tal”. Mas era uma tia tão “despirocada”, totalmente fora do padrão, que eu comecei a me ligar que: “Bom, aqui o negócio é comigo mesmo”. Acho que foi o momento de muita crise, foi muito pesado. Minha mãe morava na fazenda, eu decidi que estava muito sozinha, que minha tia era louca, não tinha muito amigo ainda e tinha que ir de ônibus pra USP. Ah, sim, porque eu queria fazer PUC e começou a fazer toda uma campanha: “Ah, mas USP”. Eu falava: “PUC é mais legal” “Mas USP”. O convencimento foi assim: “Na USP você não vai depender do seu pai, na PUC vai”. Eu falei: “É verdade. USP, então”. E fui pra USP. Esse momento foi um momento bem assim, como eu posso dizer? Eu fui pra lá, tinha essa tia que não funcionava muito como tia, entendi que eu podia fazer o que quisesse, que teria que começar a decidir e aquilo me deu um certo medo. Porque uma coisa era enquanto eu lutava pela minha liberdade, batalhava, fazia, aqui, com a minha mãe, e conseguia. Mas eu sabia que, de alguma forma, eles estavam ali e iriam segurar a minha onda. E outra coisa era ter de lidar com ela eu mesma. E eu comecei a querer voltar de final de semana na casa da minha mãe. Fui um, dois. Chegou no terceiro ela falou: “Olha, pode parar” “Como pode parar? Eu tenho saudades da minha família” “Não, muito caro. Você tem que ficar lá, tem que estudar. Você não falou que você ia ficar lá? Agora você fica”. Minha mãe era assim, ela é muito assim. E eu: “Mas mãe...” “Não é nada disso. Você vai lá, fica. Você não está com tantas saudades assim”. Foi um ano bem complicado, eu lembro que eu tinha que fazer alguma prova, tinha matéria que eu nem entendia direito, eu entrava em crise. Aí, minha tia era boa nesse momento, ela falava assim: “Se você não quer fazer, não faça”. Meio segurava a onda. Depois eu fui morar sozinha. E na faculdade eles dividiam por ordem alfabética. Então, eu fiquei amiga de Roberta, Stela e Paula. E essas pessoas foram muito importantes na minha vida. Roberta era uma super patricinha, filha de uma bailarina famosa, que tinha perdido o pai, a mãe morava com outro cara, ela tinha outros irmãos. Ela era do tipo assim, tinha um namorado e ficava um mês sem gastar nada porque ela tinha que ir em um restaurante muito chique no mês. Eu achava aquilo absurdo, fui conhecendo essas personagens. E ela tinha esse namorado que era o filho de não sei quem. Stela também era filha desse tipo de família quatrocentona que a mãe também tinha separado e tinha casado com outro cara. Completamente louca: fumava maconha, chegava pra fazer prova com óculos escuros, de bicicleta, morava no Alto de Pinheiros. Paula, ao contrário, era filha toda direitinha. Todas elas tinham muito dinheiro, eram ricas. Eu tinha essa turma, elas eram todas muito bonitas e a gente sempre fazia coisa junto.
E a gente começou a fazer uma matéria que era “Treino e Pesquisa”, nós ganhamos uma bolsa, que era pra trabalhar com droga com rato. E aí, imagina. Eu já tinha me identificado: uma completa louca, uma revolucionária. O namorado dela era surfista, ela passava o final de semana lá, chegava na segunda. Eu era aquela que tirava todas a Xerox para todas, porque elas não se ligavam muito nisso. A Paula fazia, mas ela era mais toda direitinha, comprava o livro. Apesar delas serem ricas, a gente tinha que tirar xerox e tal. Eu era a que organizava a turma assim: “Eu tiro xerox, te entrego”. Mas elas eram muito diferentes do meu padrão. Eu tinha uma família meio católica. Duas eram casadas, uma a mãe era casada pela terceira vez. Ela pulava janela pra chegar. Ou então, fumava maconha e a mãe descobriu e ela falou: “Mãe, mas é só pra ir no cinema”. E a mãe falou: “Mas você vai no cinema todos os dias”. Era assim. A gente ia estudar e esses eram os temas. A mãe chegava: “Stela!!!”. E ela falava: “Mas mãe, é o cinema”. Era outro panorama na minha vida. A gente começou a fazer esse trabalho já no primeiro ano de faculdade e a gente falou pra mulher que propôs a matéria: “Por que a gente não faz com gente? Por que fazer com rato?”. A mulher era da Ciência Comportamental e falou: “Imagina, onde nós vamos conseguir?” “Ah, nós conseguimos”. Eu tinha uns amigos, elas tinham, e a gente começou a fazer pesquisa com maconha. No começo não dava maconha. No primeiro ano a gente era mais assim. A Stela tinha a turma dela, a Roberta, a dela, eu tenho a minha. Eu tinha uns namoradinhos também e eu falava: “Eu vou nas baladas, eu não vou usar, fico anotando” “E o que a gente ganha com isso?” “Eu faço torta de morango”. Eu levava torta de morango e na hora da larica eles comiam torta de morango e eu fazia a pesquisa. E foi super legal. A Stela já fazia essas coisas. E a gente começou a fazer essas coisas de pesquisa com maconha, usuários de maconha, essas coisas que você faz na universidade. Como a gente começou a ficar muito próximo por essa coisa da maconha, a gente ia na faculdade, ficava atrás, era mais eu, a Stela e a Roberta e ficava olhando pro resto, na frente: “Será que aquela já transou?” “Aquela não tem cara”. Tinha uma que era amiga da freira: “Não, acho que essa”. A gente era convidada a sair da classe, várias vezes. Mas foi uma época legal. E eu estudava, mas não era mais... Primeiro, porque eu achava chato, se eu tivesse que escolher Psicologia de novo, eu teria escolhido de um outro jeito. A USP era muito reacionária, chata pra burro. A professora mais legal era a nossa da maconha. Então, a gente encontrou um quadro com uma folha de maconha enorme. E a gente comprou pra ela, assinou, tem dedicatória. Até hoje, ela se aposentou esse ano, mas se você entrasse no laboratório dela, tem o quadro da folha da maconha, tudo lá. Nesse movimento, teve um momento de grande depressão, de sair, de ter de melhorar, e quando eu descobri que eu poderia fazer alguma coisa, que tinha essas pessoas diferentes, mas, ao mesmo tempo, eu me identificava muito, adorava. Então: “Raquel, posso ir dormir na sua casa hoje porque a minha mãe trancou e a vassoura...”. Porque uma tinha que pra entrar tinha que tirar a vassoura, tinha uma vassoura que ela empurrava e abria a porta. E às vezes a mãe sacava que ela entrava com a vassoura, porque ela entrava bêbada, enfim. A outra: “Ai, arrumei um namorado no Rio, mas eu não tenho dinheiro pra comprar a passagem”. Ela vendia... como se fosse Natura hoje. Ela tinha dinheiro, mas era aquela que queria ir sempre no lugar chique. Então, ela vendia. E ela falava: “Você não quer comprar o meu mostruário?”. Eu comprava o mostruário pra ela poder comprar a passagem pra ir pro Rio. Eu entrei nessa coisa do ilegal de uma maneira super legal. Eu ia comprar maconha com os caras, eu ia junto e tal, mas eu não me via como uma usuária. Fumei, mas o interesse meu era aquele ambiente, as pessoas, aquelas coisas engraçadas, aquele movimento. Tinha época que eu já tinha acabado a pesquisa, os caras me ligavam e: “Raquel, olha, hoje vai ter uma galera aqui, super legal, a gente vai fazer uma festa”. Eu falava: “Ah meu, já acabou, eu não tenho.” “Não, mas traz a torta de morango, mesmo, não tem problema”. E eu ia e convivia muito com os meninos que, sei lá, fumavam maconha ou bebiam, tinha essa coisa assim, mas tudo bem, eu era eu mesma, não precisava usar maconha ou beber e estava ali, nesse ambiente. Eu falo que foi interessante porque eu poderia ter usado drogas, poderia ter bebido - eu não gosto de beber -, poderia ter feito um monte de coisa, mas, na verdade, eu fui entrando meio legalmente, porque oficialmente eu era uma cientista. Foi super legal. Teve uma pesquisa que a gente fez que a gente deu mesmo a droga, a gente dava a droga, o cara usava. E era um professor que você olhava pra ele, parecia... Ele era alemão, uma mistura de Hitler, uma coisa assim. E ele era ótimo, uma graça, ninguém entendia o que ele falava, mas ele falava: “Então, hoje você vai dar maconha, amanhã você vai dar não sei o quê”. Eu ia, só que a gente não pôde publicar até hoje, acho que também já caducou. Mas foi muito legal. Eu fazia umas pesquisas assim e eu entrei nesse mundo desse jeito. E aí, já começou a turma dos gays, comecei a ter um monte de amigo gay. E os gays superlegais. Então, ia ter um desfile, ou o cara tinha brigado com o namorado, entrava em crise e me chamava porque, afinal de contas, eu era psicóloga. Sabe, essa coisa assim? Alguns caras que eram gays aqui em Sorocaba, que foram morar em São Paulo, aqui não podiam ser gays, mas lá... E me contavam toda a história e eu fazia os meus aconselhamentos. Eu nunca fui uma pessoa muito transgressiva, mas, ao mesmo tempo, eu sempre estava no meio de situações de transgressão e me divertia.
P/2 – Uma curiosidade: onde era o bairro da casa da sua tia em São Paulo?
R – Pinheiros.
P/2 – Pinheiros? Morava perto da USP.
R – Era. Eu morei em Pinheiros, depois morei na Francisco Leitão e depois, onde foi que eu mais morei... na Haddock Lobo com a Bela Cintra, lá em cima, perto da Paulista já. Era perto da USP, mas tinha que ir de ônibus. Até que eu ganhei um Fusca, mas eu aprendi a dirigir em São Paulo, acho que eu estava no terceiro ano da faculdade. Eu aprendi a dirigir em São Paulo, um carro que não era Fusca. O meu pai pega e me dá um Fusca, eu não sabia dirigir. Então, na primeira semana, bati e aquela parte redondinha do Fusca ficou quadrada. E eu nunca mandei arrumar, sempre tive o Fusca quadrado. A gente saía com o Fusca quadrado. Eu morava em Pinheiros, depois fui morar lá em cima, já era mais chique porque eu tinha meu Fusca. E os meus irmãos reclamam que eu fui a única filha que teve carro, três. Porque depois do Fusca eu mudei pro Uno, o Uno eu bati, mudei pra outro. Eu sempre batia também. Lembro uma vez que eu vinha buscar o carro aqui em Sorocaba, meu pai tinha trocado, acho que era um Gol, eu vim buscar o carro aqui, voltei pela Raposo e já na Raposo, nem me lembro mais como eu bati, mas arrebentei toda a lateral. Aí, pro meu pai não ficar sabendo e não ficar bravo, eu já deixei numa funilaria na mesma estrada, falei: “O senhor arruma aí pra mim que depois eu venho buscar”. Tinha que conseguir dinheiro. Durante a faculdade eu comecei a trabalhar, não só na pesquisa, mas eu comecei a dar aula em uma favela no Embu. Porque essa minha tia era Supervisora de Ensino. Esse foi um momento legal na minha vida porque eu queria trabalhar, eu trabalhava como recreacionista nas férias, isso tem muita história. Mas durante o ano eu queria trabalhar. Essa escola era na biboca, pra você chegar você tinha que descer, subir uma ladeira, porque não tinha ônibus pra esse pedaço. E eu não tinha o Fusca ainda. Não tinha ninguém pra dar aula de História e na época aceitavam estudantes universitários. Então, eu fui dar aula de História. Não sabia nada, nada, mas estudava um dia antes e ia achando o máximo. E achei o máximo os alunos. Como eu era a professora mais assim, que chegou lá, então, eles me davam duas quinta série na sexta-feira, as duas últimas aulas. Imagina, quinta série era a pior classe que você pode querer. Depois, sexta-feira, nas duas últimas aulas, você quer morrer. Mas eu aceitei, como eu era a fim. E toda sexta-feira eles pegavam bolinhas, jogavam, jogavam. E eu ia falar. Eu tinha me matado de estudar no dia anterior, então, eu tinha que mostrar minha performance e nada, ninguém dava a menor bola e só bolinha. A Diretora era meio chata. Até que chegou um dia que eu falei: “Vou dar um jeito nisso”. Eu peguei e falei: “Todo mundo pega uma folha de papel!”. Todo mundo pegou, morrendo de medo de ser prova. “Agora, todo mundo amassa! Agora, a hora que eu falar já, todo mundo começa”. Eu também fiz as minhas. E começamos. Cinco minutos depois não tinha mais graça, todo mundo parou, ficou quieto, só que a Diretora viu. A Diretora viu e me suspendeu. Eu fiquei suspensa por um período, quando eu voltei, eu virei “a” professora, me adoravam. Aí, eu consegui fazer tudo o que eu queria, mas naquela época, aqueles alunos, era assim: “Ah, porque teve um assalto à mão armada e ele morreu”. E no começo eu achava que o assalto a mão armada tivesse sido contra o cara, não que o cara tenha feito. “Ah, não sei quem morreu porque ele enfrentou o bandido de não sei onde”. Enfim, eram umas histórias que eu falava: “Gente, esta turma aqui é a turma que meu pai sempre falou que eu não podia ficar perto. E eu tô aqui com a turma”. Mas, ao mesmo tempo, as pessoas eram super legais, super bacanas. Mesmo que eu trabalhasse com a turma da maconha, eles eram mais elitizados, eram estudantes da GV, sei lá. Com essa escola foi a primeira vez que eu entrei em contato com essas pessoas, que eram pessoas que fumavam maconha, traficantes, que matavam, bandidos... E como eu comecei a assimilar aos poucos, eles já faziam parte da minha vida, já tinha feito guerra de bolinha. Já tinha toda uma praia. E eu lembro que teve uma história muito forte, de uma prova. Eu lembro até hoje do rosto do menino, tinha o cabelo enroladinho, assim. Eu falei: “É prova”, ele falou: “Não vou fazer”. Eu falei: “Não, vamos fazer uma prova. Eu tenho que fazer a prova”. Tipo, se eu pudesse não fazia, mas tinha que fazer. E ele falou: “Não, mas não vou fazer”. Eu falei: “Vai, faz”, dei o papel. Ele amassou o papel e jogou no lixo. Eu falei: “Por quê?” “Porque eu vou ser bandido. Meu pai é bandido, está preso. O meu irmão também é bandido, a minha mãe se prostitui. Então, eu vou ser bandido. Pra que eu vou fazer prova, dona?”. Eu falei: “Não sei”. E aquilo me pegou muito, que coisa. Porque o menino era legal, eu não sabia que a mãe era prostituta. Ele era um cara legal, era líder, agitava, tinha umas ideias legais. Naquele dia estava meio revoltado, não quis fazer a prova e colocou ali: “Segura essa onda, você tá pensando que a vida é assim? Não é”. Eu acho que essa foi uma... Como se esse menino me tivesse dado a minha primeira, não sei se a primeira lição de vida, mas eu não conseguia responder. Porque eu sempre fui muito: “Não, assim é assim”. E essa vez eu não sabia. Porque realmente, pra que vai servir essa prova mesmo? Eu mesmo já achava que não prestava pra nada porque eu mesma não sabia a tal da História. Só pra contar uma outra parte da minha história, quando eu era recreacionista. Eu fui recreacionista, comecei com uma coisa super simples, fazia recreação em hotel pra criança, tipo essas empresas. E como eu era engraçada e não sei o quê, me botaram pra trabalhar em hotel nas férias, no spa de não sei onde, e eu ia e fazia. Era uma época que eu estava me achando o máximo, o meu pai não gostava que eu trabalhasse. E eu fazia sempre assim: Uma colônia de férias para crianças deficientes, que o meu pai tinha ataque histérico: “Como que essa menina vai passar 15 dias com um monte de deficiente mental nas férias dela?”, ele achava isso muito estranho. Depois eu passava mais dez dias das minhas férias, em janeiro, fazendo recreação pra ganhar dinheiro. Depois dava minha aulinha e tal. Uma das vezes eu fui naquele spa da Ala Szerman, que era no Guarujá, não lembro mais o nome do hotel. Eu não era recreadora infantil e eu comecei a conhecer as pessoas, eu era amiga dos cozinheiros, não sei o quê, e teve uma noite que eu entrei na cozinha, comi bolo, não sei o quê, depois eu fui nadar. E a Ala Szerman me mandou embora do hotel, ficou brava. No mesmo dia estava começando o Campeonato de Tênis, nem lembro mais o nome. Eu tinha sido mandada embora, estava me preparando pra ir no café da manhã porque eu tinha infringido a lei lá. Chega um cara pra mim e fala: “Eu vi que você estava fazendo as atividades aqui e tal. Você conhece alguém que pode trabalhar comigo na revista Matchpoint?” Ele era coordenador do evento. Eu falei: “Não conheço”. Depois eu pensei: “Como não conheço? Eu!” “Eu posso. O que eu tenho que fazer?” “Você tem que ficar o dia inteiro no stand, você pode ficar de biquíni ou com uma roupa de praia, porque era na praia, não precisa ficar de calça comprida. E depois você tem que assistir a uma partida por dia e tem que vender revista” “Ah, tá bom”. Aí, foi ótimo. Eu vendia um monte de revista, um monte de assinaturas. Eu estava expulsa do hotel, o evento era no hotel. E foi a maior complicação porque na hora de almoçar eu ia entrar e o cara falava: “A senhora está barrada”. Eu falava: “Não posso, estou trabalhando”. Eu chegava pro dono e falava: “Como eu faço aqui?”. Como eu estava vendendo bem a revista, ele me fazia entrar. Então, eu era “a” poderosa. Eu vendia revista e não sei o quê. E isso foi super legal porque ele foi me chamando pra outros, eu fui ganhando muito dinheiro. Eu comecei a ganhar muito dinheiro porque eu ultrapassava as metas. Porque era fácil: você só tinha que ir lá, ver, ficar olhando pra lá e pra cá, e depois vender a revista. Antes eu chegava, conversava e falava: “Agora você vai comprar duas, e você também vai comprar”. E vendia, conseguia, comecei a ganhar dinheiro e fui tendo dinheiro comigo. E meu pai não sabia que eu fazia todos esses movimentos. Meu pai começou a ficar bravo: “Como você não pede mais dinheiro pra mim?” “Imagina, eu estou gastando pouco”. Depois descobriu, mas, mesmo assim, comecei a trabalhar, continuei trabalhando, mas da escola eu tive que sair. Eu fiquei por muito tempo trabalhando na Matchpoint e fazendo pesquisa sobre maconha. Na Matchpoint era ótimo porque na verdade era só vender. Viajei muito, era jovem. E conheci muita gente, conheci um monte de tenista, porque você ia fazendo amizade. Foi uma época legal porque foi a coisa deste mundo e o mundo do crime. Eu contrabalanceava um pouco o mundo do crime com o da Ala Szerman, que eu... Acho que já morreu. Nem sei, mas lembro que teve uma época que eu até fui pro Guarujá, no hotel e falava: “Ai, tomara que a mulher não me reconheça” porque não sei se o hotel não era mais dela, mas tinha aquela coisa do spa.Eu era um pouco subversiva. Depois que eu me formei, como eu já fazia o trabalho de pesquisa com drogas, por acaso, existia um negócio de Centro de Medicina Social e Criminologia do Estado, que trabalhava com orientação pra pais. E tinha um cara que era pesquisador e era o chefe lá. A gente foi apresentar a nossa pesquisinha que a gente tinha feito da maconha, tal. O cara era um antropólogo gay completamente louco, ele viu a pesquisa, também já tinha feito uma pesquisa e falou: “Ah não, vocês tem que vir fazer estágio aqui”. A gente começou a fazer estágio lá, as outras duas não seguraram a onda porque não conseguiam chegar no horário, eu que tinha que ligar pra falar: “Olha, acorda, tá na hora”. Porque eu sempre fui assim e elas sempre foram: “A Raquel vai ligar mesmo”, não seguraram a onda e eu acabei ficando, trabalhando nesse lugar. E aconteceu uma coisa interessante, eu era estagiária ainda, mas a equipe, que era contratada, esse negócio de Governo, não sei o que aconteceu que todos foram mandados embora. Todos. Sobrei eu. Então, eu fazia a parte do técnico e com isso eu tinha 23, 24 anos e já ia dar palestra. Até contratarem outra gente, não sei o quê, eu que fazia o meio de campo, e eu comecei a ficar com mais areia que o meu caminhãozinho. Sei lá, tem negócio na televisão sobre drogas e eu ia, sabe assim? 24 anos. E nessa época eu morei com um cara em um barco à vela no Guarujá. Era um argentino que era velejador e estava no Guarujá por um ano, eu comecei a namorar esse cara e morei lá. E juntou um pouco essa coisa que eu era, que eu fazia, com essa história que depois o argentino foi embora, eu fiquei mal e tal. Aí, eu resolvi que eu tinha que ir pra Itália. Eu trabalhava, trabalhei com drogas desde essa coisa de orientação até clínica de internação. Depois de seis meses, comecei a perceber que você preparava o cara pra ir embora, mas, se o cara estava dando lucro pra clínica eles não mandavam embora. E eu comecei a denunciar. Como o cara não aceitava, eu pegava e falava pra família: “Tira o cara que já está bom, eles que não estão deixando tirar porque está dando lucro”. E eu comecei a dar prejuízo pros caras. Em todos os meus trabalhos, sempre teve um momento que eu falava assim: “Isso aqui não está legal, vocês não estão sendo honestos”. Eu trabalhei no Estado, imagina. E eu resolvi, chegou uma bela hora que achava que eu tinha um status que não era meu. Lembro que uma vez me chamaram, era um outro tema, tipo exploração sexual, uma coisa assim. Quando eu cheguei lá que eu me liguei que era exploração sexual, não sabia. E eu falei, fui falando. Eu tinha essa coisa de quando eu ficava segura, eu ficava segura demais. Era muita segurança, sabe? “Então, se eu posso fazer isso, eu posso fazer aquilo também”. E eu sempre tive essa coisa, que eu iria fazer Psicologia e depois iria morar fora um tempo. Apareceu um italiano pra dar uma palestra, eu cheguei pro cara e falei: “Eu estou indo pra Itália no ano que vem”, mentira, “e eu queria saber se eu poderia fazer um estágio lá”. E o cara falou: “Tá bom. Você tem que ir conversar com fulano de tal”. Que era o meu ex-chefe que eu tinha brigado. Eu fui lá conversar e falei: “Eu sei que o senhor não gosta de mim, eu também não gosto do senhor, mas para eu poder ir fazer estágio lá na Itália eu tenho que falar com o senhor e o senhor tem que falar comigo. Como é que nós vamos fazer?”. Foi tão engraçado, ele falou assim: “Bom, não temos mais o que fazer. O que você quer que eu faça?” “Que o senhor faça uma carta falando que eu sou uma pessoa que pode ir. E eu vou começar a gostar do senhor”. Ele falou: “Então, tá bom!” Ele escreveu a carta. E o engraçado da história da Itália é que, esse cara da Itália, ele falou assim: “Você sabe falar italiano?” “Estou fazendo o curso, já”. Tudo mentira. Eu tinha conhecido em março, em julho o cara me escreve. E eu escrevi em italiano porque eu tinha uns amigos que sabiam escrever em italiano. E o cara escreve: “Olha, se você quiser vir, vai ter que vir em outubro porque vai ter um curso, e você tem que passar pelo curso”. E eu escrevi em italiano: “Ok, vou”. E eu não sabia falar em italiano. Então, tinha julho, agosto e setembro pra poder aprender. Falei: “O que eu vou fazer?”. Liguei para uma amiga minha, ela falou: “Olha, vai escutando música, Lucio Dalla. Vai escutando Lucio Dalla no carro que você pega. Pelo menos você pega o sotaque.
P/2 – Em que lugar da Itália?
R – Veneza. Outra história. Eu sempre via na televisão, mas eu nunca tinha realizado, nunca realizei que aquele lugar não ia ter carro. Eu vendi meu carro, sem falar italiano, e fui pra Itália. Ia ficar seis meses lá fazendo estágio em um lugar que era uma comunidade terapêutica. Na época, aqui no Brasil não tinha essas comunidades terapêuticas evangélicas pra drogas, não sei o quê. Eu queria entender melhor isso. Depois começou um boom, com um monte de coisa de rezar. Eu fui pra lá e eu iria morar com os usuários de drogas, nessa comunidade, ficar seis meses. Primeiro, que eu cheguei lá, era um domingo e foi um desses caras que foi me buscar, não tinha entendido nada. Como iria passar seis meses, imagina, brasileiro leva mala pra uma semana, imagina pra seis meses. Tinha dado excesso de peso, mas eu consegui conversar com o cara e ele me liberou. Cheguei lá com umas quatro malas. E os caras me olhavam, assim, porque tinha que andar de Vaporetto. E olhava, todo mundo empurra mala. Eu já comecei a ver o estresse que era o negócio. Chegou a noite lá e a gente dormia numa coisa assim, que era o escritório do chefe lá. Dormia no escritório, aquele frio. E no dia seguinte, eu fui falar com o cara, ele falava italiano, eu falava: “Tutto bene, tutto bene”. Ele falava: “Mas você não sabia falar italiano?” “Ah, più o meno”. Eles são muito práticos, europeus. “Ah tá, não sabe, então, tá bom” e ele me largou. Eu dormia com umas meninas lá, acho que ele falou assim: “Essa daí vai me dar mais trabalho, então, deixa ela aí, e que se vire, mentiu pra mim”. Eu ia no curso, entendia tudo, mas não falava nada. Mas o super legal disso foi que os usuários de drogas, então, eles me testavam. Lá tinha uma regra que era pra acordar às seis horas da manhã pra fazer café. Como eu dormi no quarto, teoricamente, também tinha que entrar na mesma estrutura. Mas eu não sabia e não ia fazer o café. Teve um dia que a menina me deu a maior dura: “Você não quer fazer nada, veio de outro país”, brava. E eu, rainha da cocada preta lá no Brasil, na televisão, e chego aqui e levo duras da menininha. Eu não sabia muito o que eu era porque eu não era psicóloga, porque lá não podia ser psicóloga. Não era educadora porque não sabia falar italiano. E também não era um deles porque não tinha usado heroína. Então, era tudo muito confuso. Eu não sabia quem eu era. Eu cheguei lá e entrei em um crise existencial, que foi super interessante porque eu tive que me aguentar. Uma das coisas interessantes de eu ter ido pra Itália foi eu ter que me aguentar, entender como é difícil me aguentar porque era eu comigo mesma. E os meninos que, de qualquer forma eu estava lá, interagia do meu jeito. E eles começaram a me ensinar o italiano. Isso para mim foi muito legal também porque os caras que teoricamente são a caca, os usuários de drogas, drogados, não sei o quê, os caras eram os meus professores. E foi super legal, porque eles perceberam que talvez eu tinha mais potencial, perceberam que, de repente, eu estava sendo completamente excluída pela equipe porque ninguém me dava bola. Diziam: “Ah, você é um desastre”, alguma coisa assim. E aí, eles pegaram e montaram um esquema de aula, mesmo. De manhã eles corrigiam o que eu escrevia de noite. Tinha os que iam pra horta trabalhar durante o dia e à noite fazia verbos, só verbos. Tinha uns que só me ensinavam besteira, uns que me ensinavam, sabe aquela coisa do ‘o rato roeu a roupa do rei de roma’. Foi uma coisa legal e eu digo que eu devo a minha inclusão lá a eles. Porque eu só comecei a ser aceita, as pessoas começaram a darem bola pra mim, quando eu comecei a falar o italiano. E eu devo a eles. Eles me aprontavam, eu ia nas reuniões. E eles falavam: “Você vai na reunião e fala assim, assim, assim. Se tiver um assunto assim”. E eu falava, e a palavra era besteira. Depois eu contava que eu falei, e eles davam risada. Era uma coisa que eu também divertia e isso fez com que eles gostassem muito de mim, principalmente as meninas, porque era meio difícil. Então, depois de três meses o chefão falou: “Olha, você quer trabalhar aqui?”. Eu tinha a coisa italiana lá e falei: “Não, vou embora daqui a seis meses e tal”. Ele falou: “Ah, fica aí trabalhando mais seis e você vai embora”. Eu falei: “Tá bom”. Porque ele percebeu que eu estava fazendo... Imagina, eu tinha ligado pra minha mãe, como eu contei: “Mãe, eu vou embora”. E comecei a ganhar, comecei a trabalhar e, lógico, tudo que era encrenca era pra mim, porque é sempre assim. Em qualquer lugar o mais novinho fica com as encrencas. Mas assim, usuário de heroína é pesado, você tem que lidar com uma coisa complicada. E eu me dava bem, eu gostava, eu ficava com eles. Na verdade, eu gostava mais de ficar com eles que com os educadores, os psicólogos. E eu não morava em Veneza, eu morava no Lido no começo. Vocês conhecem? O máximo do fim do mundo. Imagina o fim do mundo, é Lido no inverno. Porque eu cheguei no inverno, não tinha nem festival de cinema, nada. Mas, enfim, fui ficando, foi ficando legal. Depois de um ano e meio eles começaram a pensar em fazer um trabalho pra mulheres e me chamaram pra estar coordenando. Porque as italianas competem muito, as italianas usuárias de heroína não são como as minhas aqui. Elas são muito diferentes, tem um nível cultural alto, tem toda uma história. Existia uma certa competição entre as mulheres e eu não estava nem aí, entendeu? Estava lá, me dava bem, era minha amiga. Eu lidava mais desse jeito e quando eles abriram essa estrutura eu fui lá coordenar. De seis meses que eu ia ficar, fiquei sete anos. Todo ano eu pedia demissão, todo ano. Mas aí, todo ano não me demitiam. O cara sabia se comunicar comigo, ele falava: “Vai passar um mês no Brasil, eu pago, vai lá. Vai trabalhar, vai lá fazer alguma coisa lá, vai lá no Quixote”. Porque eu gostava de ir no Projeto Quixote. “Vai lá, fica lá um mês e depois você volta. Se você quiser ir embora mesmo, você vai”. Eu vinha, ficava um mês, tal, voltava e falava: “Ah não, vou ficar mais um pouco. Mais um ano”. Fiz Psicologia lá de novo. Aí, tive os namorados lá e conheci esse meu marido.
P/2 – Como ele se chama?
R – Alessandro.
P/2 – Como foi?
R – Eu fazia voluntariado no bairro dos marroquinos chamado Terang, porque lá os marroquinos são super mal vistos. E eles montaram um bar, uma coisa noturna. Era super legal o bar, super típico, mas existia uma certa resistência. Então, tinha um grupo, eu e mais umas pessoas, e a gente ia. Era eu, brasileira e uma que era italiana e a gente ia dar uma força, ia lá, fazia turno, trabalhava na cozinha, tudo, pra dar uma força pra eles. Não somente porque eles não podiam pagar, mas também por essa coisa de: “Olha, ela está indo ali, ela também, e você pode ir também”. E em todo verão em Veneza, na Itália, tem esses bares e eles vão pra fora, tem as festas alberi. E eu fui trabalhar na festa alberi, servi champagne, eu não bebo champagne. E esse Alessandro, toda noite ele ia tomar um chopp, tinha vários outros que serviam, mas ele ia nesse que eu servia chopp. Eu falei: “Acho que o cara...” Não tinha me despertado muito, mas ele tinha cabelo comprido, e eu achava interessante pessoas interessantes. Ele tinha cabelo comprido, uma cara meio diferente. Chegou no quarto dia, já ia acabar a festa. E foi engraçado, eu olhava, ele vinha vindo beber o chopp e eu fiquei olhando, mas não parei de olhar. Eu fiquei fixando. Bom, vai ter que rolar, conversar, alguma coisa. Pelo menos para eu ouvir a voz do cara. Porque ele vinha, pedia o chopp, mas não falava nada. Mas, enfim. O cara falou: “É comigo?”. Eu falei: “Lógico que é com você. Você está aqui há quatro dias, se não é comigo fala logo!”. Aí, rolou, conheci. E é assim: “Você se apaixonou?” “Não” “Você...” “Não”. Mas existia uma coisa assim. Ele era tão completamente diferente de mim, eu sou muito briguenta. Eu começava a brigar e ele saía fora. Isso me irritava. “Como uma pessoa me faz um negócio desses? Eu tô brigando, tenho que ter o outro que briga também”. Ele ia embora, ou ele pegava a guitarra e começava a tocar. “Pô, que falta de respeito com a minha briga, entendeu?”. No começo me irritava, eu largava. Eu era muito assim: “Eu não quero, não estou a fim”, ficava uns dois meses. Meu pai, alguém, falou assim: “Você tem que pensar que aguentar você não é uma coisa muito simples. Se o cara pelo menos toca uma guitarrazinha, pelo menos ele tá conseguindo”. Eu falei: “É verdade, de repente, é um cara que tem essa capacidade de lidar comigo porque não é fácil, eu sei o que eu quero, não é muito fácil”. De repente rolou, eu morei junto. A minha irmã ia casar aqui, eu sempre pedindo demissão, sempre queria voltar pra cá. A minha irmã, sempre muito religiosa, e eu morava com o cara lá na Itália, cabeludo e tal. E a minha irmã falou: “Eu vou casar em abril do ano que vem. Por que você não casa junto comigo?” “Tá louca? Imagina que eu vou casar”. Porque ela é uma pessoa careta, ia casar na igreja. E pra me convencer, ela falou assim: “Mas Raquel, você não quer morar aqui no Brasil? As pessoas vão te dar geladeira, fogão, não sei o quê. Você vai ganhar toda a casa” “Isso é verdade.” “Não vai custar nada porque vai ser a minha festa, eu vou fazer tudo e você só casa” “É, não é uma má ideia”. Meu marido sempre foi muito tranquilo, eu cheguei e falei: “Viu, nós vamos casar”. Era tipo assim, junho. “No ano que vem, em março, nós vamos casar” “Ah, tá bom”. “Porque se a gente for pro Brasil, já tem geladeira, fogão...”. Ele falou: “Ah, legal”. Tudo bem, continuamos a nossa vida. Só que ele comentou com a mãe dele, e ele é filho único, de uma mãe italiana. Nossa, a mulher ficou doente, um horror, como se eu tivesse dito: “Estou matando o seu filho daqui um mês, entendeu? Ele vai morrer.” Eu não sabia como sair dessa situação porque já tinha falado pra minha irmã que iria casar, liguei pra minha irmã falando: “Não vou mais casar porque a mulher ficou brava”. E ela falou: “Mas, não tem sentido”. Eu falei pra ele: “Então, vamos casar aqui também”. Ah, sim, porque ela tem medo de pegar avião e não podia vir de avião. Foi engraçado porque eu cheguei e falei pro meu chefe: “Eu vou casar” “Ah, então, eu faço a festa”. Todo mundo se empolgou e a gente casou lá no civil. Ele queria que a gente casasse em Veneza porque só japonês vai casar em Veneza. Você sabe. Porque sai na gôndola... Eu tinha que casar antes de março do outro ano pra minha sogra não ficar chateada, era esse o intuito de casar na Itália. E não tinha, porque só tinha japonês, você tinha que fazer um ano antes. Nós casamos numa cidadezinha do lado, a minha sogra ficou feliz, fizemos festa, veio a família. Eu casei duas vezes e foi engraçado que eu casei de amarelo ouro, com um monte de pedras da Índia. A minha mãe chegou um dia antes do casamento, quando ela viu o vestido ela falou assim: “Esse vestido não dá pra você casar lá no Brasil” “Fique tranquila”. Quando eu vim pro Brasil pra casar, cheguei dois dias antes e cheguei com o vestido que eu achava que era maravilhoso. Eu tinha uma paciente que era costureira e ela que costurou, um negócio assim, azul. A minha mãe e minha irmã quase tiveram um ataque, elas falaram: “Nós vamos dar uma ajeitadinha”. Deram uma mudada no vestido, ficou, sei lá. Eu lembro que a minha irmã falava assim: “Vamos ver se você vai pôr ou não luva”. E o meu marido entendia uva. A gente morava na Itália. Foi um desastre o casamento. Não foi um desastre, mas foi assim, ele não estava entendendo o que estava acontecendo. Um dia antes, à noite, minha irmã falou assim: “Tem que confessar”. Ah, sim, porque tem toda uma história. Pra casar no Brasil a gente tinha que pedir autorização pro padre da igreja do nosso bairro lá em Veneza. E nós fomos lá pedir autorização. Achei que fosse lá, pedir um papel, mas não, tinha que conversar com o padre. “Nós queremos a autorização” “Eu não vou dar” “Como não vai dar?” “Porque não vai dar certo esse casamento” “Como não vai?” “Não, porque você é brasileira, ele é italiano, essa coisa de cultura não vai dar certo, não vou dar” “Não, o senhor tem que dar porque já está reservado lá o casamento” “Não vou dar”. Ele falou: “Então, vamos tentar fazer o seguinte. A gente faz cinco sessões que vocês vão conversar comigo, tipo terapia de casal, e eu vejo se eu acho que vou dar ou não”. A gente se submeteu às cinco sessões. Eu falo pro meu marido: “O padre tinha razão”. Ele não quis dar, eu tive que pedir pro Bispo, pro Bispo pedir pra Igreja pra darem o papel porque o padre da minha igreja não deu. Ele falou: “esse casamento não vai dar certo, não vou dar, não vou compactuar com um negócio desses”. Eu falava: “Gente, como um padre pode...”. Eu falo hoje pro meu marido: “Bendito padre, devia ter aceitado”, mas enfim casamos, deu certo. E começou essa história... Na verdade, eu já tinha tentado engravidar...
P/2 – E vocês continuaram morando lá?
R – Morando na Itália. Eu tinha esse processo, eu ia fazer Psicologia, depois iria morar fora, morando fora eu estaria aprendendo as minhas coisas, depois eu iria voltar pro Brasil, ia casar e ter filhos. E eu tinha esse sonho, não é filho só, esse negócio de levantar de manhã, a manteiga, essa coisa meio, e eu tendo de resolver probleminhas assim. Eu casei, agora falta ter filhos. E não engravidava. E começou a minha crise. Porque uma coisa é não poder ser mãe, a outra coisa também, era: “Como uma das coisas que eu tinha programado não está acontecendo? Que história é essa? Tem alguma coisa errada”. Isso era 1995, quase 95. Eu comecei a fazer tratamento, fui eu que comecei a fazer. Aí, não era problema comigo, era com o meu marido. Ele foi, não queria ir, mas foi. Aí, durante quatro anos eu fiz tudo o que podia. Você pega uma lista e diz assim, quais os tratamentos... O único que eu não fiz foi a inseminação in vitro. Eu não tinha um médico, tinha três, porque se um falasse algo pra mim que eu não gostava, eu ia no outro. Nenhum sabia o que eu tinha. Imagina que coisa louca. Quando eu penso na quantidade de hormônio que eu devo ter tomado na minha vida...O cara fez duas cirurgias no meu marido que não tinha a menor necessidade. Uma das cirurgias eu ainda larguei ele porque tinha que ir dar uma palestra em Lisboa. Eu falei: “Olha, você vai fazer a cirurgia, se vira aí porque eu não tenho como ficar com você”. Ele ficou lá sozinho, eu fui viajar. E aí, assim, chegou um dia que um dos médicos falou: “Olha, você não vai ter filhos”. E ele foi muito, que nem a minha mãe. “Você não vai ter filhos, chega, você está aí vai fazer quatro anos, isso está acabando, você está ficando louca porque você está exagerando”. E comecei a trabalhar com mulheres. E essa coisa de você ver grávida, toda vez que eu pedia demissão e ele me mandava pro Brasil eu vinha, ia pro Quixote e me botavam trabalhando com as meninas mães, parecia que era tudo de propósito. Era tudo uma coisa. Quando ele falou isso eu fiquei mal. E eu tenho uma coisa, eu fico deprimida por dois dias, é o dia que eu recebo a notícia, eu deprimo aquele dia, e no outro dia já começo a tentar bolar uma solução. No outro dia eu to bem. Eu não suporto ficar deprimida. A minha morte vai ser de depressão, eu não suporto. Quando eu vejo que estou indo para um movimento mais... eu tenho que sair fora. E essa foi pesada. Eu resolvi que eu ia voltar pro Brasil e iria trabalhar com essas meninas que tinha no Quixote, essas meninas que eram mães. Porque elas sempre falavam: “Meu sonho é que meu filho me chame de mãe. Meu sonho é que eu possa, um dia, ir ao abrigo que está o meu filho e ficar com ele, porque, afinal de contas ele é meu e eu não tenho condições”. E eu falava: “Bom, já que elas são e eu não sou, então, vamos resolver esse problema”. Eu decidi, falei pro meu marido: “Vamos pro Brasil”. Ele me admirava, fora que ele me amava porque é impossível você falar: “A gente vai sair de Veneza e vai pra Sorocaba, tá?”. Não é uma proposta muito... é bem indecorosa. “Você vai deixar de ganhar o dinheiro que você ganha e vai ganhar quase nada” “Você vai ter que deixar o seu carrinho aqui e vai ficar a pé”. Ele adorava, ele tem um carro quatro por quatro. Acho que tinha uma coisa, uma que ele gostava de mim e que ele sacou que estava sendo dura a história do filho. E outra, eu tenho essa sensação, que esse jeito que eu tenho, nesse nosso casamento na Itália tinha dez convidados dele e oitenta meus. E eu era a brasileira, ele que era o italiano, casamos na cidade dele. Acho que ele achava que era aqui no Brasil, que as coisas eram diferentes. Acho que ele também tinha vontade de vir para o Brasil pra também vivenciar umas coisas assim. Então, ele não se opôs. Não tive problema nenhum. Eu falei: “Nós vamos”, e ele falou: “Que bom, que legal”. Já tinha vindo umas duas vezes aqui. Ele também imaginou que seria uma coisa bacana pra ele. Sabe que tem toda uma parte que ele não entendeu que ele teria que fazer um esforço também. Não é só o Brasil que vai levantar a poeira, as pessoas também tem que levantar. E a gente veio pra cá. Eu tinha que fazer uma coisa, uma ONG aqui, eu cheguei pro meu ex-chefe, pro que eu sempre pedia demissão, e dessa vez eu falei: “Não vim pedir demissão, eu vim falar uma coisa mais séria. Eu pensei, pensei, tal, e eu acho que você é a única pessoa”, porque italiano é muito narcisista. Principalmente os venezianos, então eu falei: “Você é a única pessoa que pode resolver o problema das mulheres jovens mães no Brasil. É o único”. Eu falei bem assim: “Não consigo pensar em outra pessoa, porque você é sensível, tem essa experiência. E eu acho que eu tenho que fazer isso lá, e eu acho que você tem que comprar pra mim um lugar para eu poder fazer isso lá e poder voltar. Eu não vou me demitir, vou continuar trabalhando, mas lá. Vou fazer lá.”. O cara olhou pra mim e falou: “Vou pensar” “Tá bom, então pensa”. Acho que ele pensou que eu fosse fazer um busto dele, deve ter sonhado assim. “Aí, eu compro, vai fazer um busto com o mapa da Itália atrás, acho que eu vou ajudar ela”. No dia seguinte ele me ligou: “Tá bom”. Aí, pronto. Vim aqui, comprei lá onde é, que é longe. Quando ele veio a primeira vez, ele quase morreu ao saber o investimento que ele tinha feito, mas tudo bem. Porque Araçoiaba é um lugar longe pra chegar, mas o dinheiro que ele me deu não dava pra fazer muita coisa também. Vim e comecei a história da Lua Nova.
P/1 – A gente chegou na parte do Lua Nova agora. Gostaria que você contasse um pouco do começo dele, do funcionamento, histórias marcantes, articular um pouco isso.
R – Tá. A Lua Nova agora, mas acho que na época também, ela transpassa um pouco a ideia da instituição. Na verdade, eu queria ter filho, eu queria ter filho, acabou. E eu sou assim, eu quero, eu vou fazer. Quando eu montei a Lua Nova, quando ela surgiu na minha cabeça e tal, nunca passou pela minha cabeça algo assim: “Ah, eu vou montar agora uma ONG, não sei o quê”. Eu queria ter filhos e o jeito que eu resolvi a história da minha não-maternidade era ficar junto com mães. Ficar junto com mães dondocas, chatas eu não estava a fim, estava a fim de ficar junto com aquelas que pelo menos a gente poderia ter uma troca, poderia fazer alguma coisa. Quando começou a Lua Nova, foi nessa perspectiva de trabalhar em parceria, junto com, estar com. Eu estava muito mais preocupada em resolver o meu problema que o problema dos outros. Eu não comecei a Lua Nova porque eu era a salvadora da pátria e iria resolver a vida da pobre coitada. Não. Era mais assim, eu era uma pobre coitada que não podia ter filhos, que estava com meu sonho rompido e eu precisava resolver isso. Eu acho que foi essa motivação, de uma forma ingênua, talvez o meu inconsciente, eu acho que foi muito legal. Primeiro não tinha lido o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), não tinha o menor interesse em ler o ECA no primeiro ano, vamos ser politicamente corretos, eu li depois do terceiro, mas enfim. Não tinha lido ECA, não me interessava. Falavam: “É um abrigo?” “Não, não é um abrigo, é uma casa onde tem mães”. A Lua Nova começou assim: eu tinha essa chácara; quando eu comprei, foi em Araçoiaba porque foi o dinheiro que o italiano me deu. A idéia que eu fazia era como aqueles grupos que tinha no Quixote, aquelas meninas. Eu tinha uma idéia, assim, dez mães, dez filhos. Trazer mães pra estarem junto comigo e eu ia desenvolver o potencial da maternidade junto com elas, que era uma coisa que eu não sei, íamos descobrir juntos, fazer com que a maternidade fosse um fator de transformação na vida dessas meninas. Porque eu entendia que era um fator de transformação na minha não maternidade, e já que elas tinham, mas não podiam cuidar, fazer com que a maternidade, em vez deles serem vistas como: “Ah, mãe solteira, prostituta”, que esse ser mãe pudesse ser uma coisa poderosa. A ideia era essa. Eu tinha tido uma experiência na Itália de trabalhar com mulheres, sabia que quando existiam as crianças era muito mais legal porque elas tinham mais objetivos, era mais claro o que elas queriam, como elas queriam, e elas tinham uma coisa concreta, que era delas, que elas tinham produzido, que era o filho. Eu trouxe isso da Itália, essa coisa desse poder da criança em qualquer trabalho, dessa coisa do colorido, também. Porque como a criança é ingênua, você não fica muito no: “Ai, porque a pobrezinha...”. A criança traz outras histórias. E também dessa experiência que tive na Itália, que todo mundo tem o seu potencial, você tem que desenvolver as habilidades, as pessoas tem que conhecer as habilidades dela, foi um pouco isso que eu aprendi lá nesse tempo que eu fiquei. Então, a Lua Nova nasceu assim. “Ai que bom, tem um monte de mãe aí, que está querendo ser mãe, mas não pode ter o seu filho. O que eu vou fazer? Vou pegar, acolher a mãe e dar a possibilidade pra que venha o filho junto. E ela vai viver feliz com o seu filho, a vida dela vai se transformar, ela vai ser a pessoa mais feliz do mundo e eu também”. Esse era o enredo. Super fora mesmo, imagina, eu estava na Itália. Porque lá na Itália todo esse processo de trabalho o governo dá 150 euros por dia por pessoa. Você imagina, é muito dinheiro... 4500 euros por pessoa. Eu cheguei aqui no Brasil e sabia que era difícil, mas não era esse o meu plano, ficar preocupada com o dinheiro. Cheguei, comprei a tal da chácara, comecei a fazer o trabalho com as meninas lá no Quixote para um trabalho desse, porque afinal de contas algumas já tinham passado por um trabalho desses, mas era aquela que você fica grávida e depois de três meses que tem o bebê tem que sair. E a proposta minha era outra: não, vamos pegar esses filhos e vamos amar esses filhos. Eu não lembro mais, as pessoas entram na minha, nem eu entendo. Tinha essa chácara, eu já achava que estava tudo ok, até que eu percebi que não tinha equipe, não tinha nada, que era um elefantão branco que eu tinha, não tinha dinheiro. E como eu iria fazer? Comecei a trabalhar com o bairro onde estava a chácara. Bom, vamos ver primeiro o que são e como são. Tinha um monte de gente que queria emprego, encher o saco, meio assistencialista, mas tinha umas três ou quatro que pegavam: “Vamos fazer reunião, vamos fazer isso”. Eu comecei a perceber que existia uma certa liderança na comunidade, de mulheres. Fui atrás do Estado, até ontem encontrei o Deputado, na época ele era Vereador, ontem encontrei e falei: “Você foi meu padrinho e nem sabe”. Eu falei pra ele: “Eu estou fazendo esse negócio aqui e eu tenho que ter dinheiro pra, pelo menos, pagar a comida, alguma coisa assim”. E ele falou: “Vamos lá conversar”. Ele me ajudou, mas a pessoa do Governo do Estado falou assim: “Pode ser, podemos fazer um convênio”. Foi essa a fala. Eu cheguei e falei: “Ah, já vamos abrir, porque vamos ter convênio com o Estado”. E abri. Não tinha nada. Essa coisa passada na Ashoka, eu tinha passado na Ashoka também assim. Tinha um projeto, uma ideia, uma vontade, mas a coisa era tudo meio assim. Tinha uma chácara aqui, umas meninas ali e o cara falou: “Olha, você vai entrar esse ano e em um ano você tem que fazer tudo isso que você está falando que vai fazer, senão você sai” “Tá bom”. Então, eu tinha o dinheiro que a Ashoka me dava, eu chamei essas mulheres do bairro e falei: “É o seguinte, nós vamos receber um dinheiro, não sei quando. Vocês topam trabalhar de graça comigo e quando eu receber eu pago tudo o que estou devendo?”. Comecei assim, pagando cem reais por mês. E elas toparam. Era uma coisa também nova. Começaram a chegar essas meninas e era muito engraçado. Eu tinha programado dez pra dez e chegava uma menina e quatro filhos, era completamente zero o que eu tinha programado. Zero programação. Eu lembro que chegou uma menina, essa foi um super aprendizado. Porque outra coisa, como eu não tinha lido ECA, não tinha essa praia, cheguei da Itália e resolvi fazer o negócio, não tinha muita noção dessa coisa do Conselho Tutelar, de toda essa trama, essa rede meio complicada. Então, eu não coloquei limite de idade para menina, para o filho, não coloquei nenhum critério. Qual é o critério? Tem que ser mãe e estar em situação de risco. E foi um prato cheio pro Conselho Tutelar, porque imagina, tinha uma situação de uma menina que estava grávida, ou que tinha acabado de ter o bebê no hospital, não tinha onde ficar, ou que era abuso, ou estava no meio da droga e tal. Teoricamente, eles teriam que achar um abrigo pra mãe e um pra criança. Tinha essa Lua Nova, que a mulher era louca e aceitava de qualquer jeito. E começou a chegar. Eu programei cinco, depois mais cinco. Imagina, ia chegando de montão. Teve um vez que ligou um Conselho Tutelar e a gente falou assim: “Não tem vaga, não tem cama” “Não, não sei o quê”. “A menina e as crianças vão ter que dormir no chão”. Passaram-se cinco horas a gente vai sair e tem na frente cinco colchões, duas camas e a família, sentada em cima do colchão e da cama. Os caras deixaram elas lá e foram embora! Sabe, assim, não se apresentaram, nem nada. O nível da desgraça era tanta. A minha ideia de maternidade era muito legal e tudo, mas eu não tinha entendido onde eu estava me metendo, entendeu? Eu não tinha entendido que eu estava me propondo a trabalhar com quem ninguém queria trabalhar, com a nata do “não quero, não tem mais jeito”. Sabe, assim? E na verdade, como elas eram mães, elas eram muito poderosas para mim e eu não tinha a menor dúvida de que era legal e tal. E era quem ninguém queria e ia chegando. Teve uma menina que chegou, a gente tinha, na época, quatro berços, não tinha dinheiro pra nada, tudo uma coisa meio assim, do meu jeito. Pra entrar, sempre tinha que ser assim: “O que você pode dar pra nós na Lua Nova?” “Nada, dona. Eu moro na rua, não tenho dinheiro, não” “Não é dinheiro, conta o que você pode dar, a sua parte positiva” “Ah, não tenho” “Mas não sabe fazer nem um bolo?” “Não sei. Mas eu faço verdura na latinha” “Ótimo, essa é a sua parte que você vai dar pra nós”. Tentar mostrar essa coisa da parceria porque eu tinha essa coisa de que vocês são minhas parceiras, não é que eu estou assistindo, que vocês são as desgraçadas e eu sou a poderosa. Tem essa coisa da troca. E essa menina. “E aí, quando é que vai nascer esse neném?” “Ah, eu ainda estou de seis meses, faltam três meses”. Ah, legal, três meses dava tempo para eu comprar um berço. O neném nasceu no dia seguinte. Porque na verdade, a cocaína, o crack, são vasoconstritores, então, o neném nasce mesmo antes. Eu não estava com essa praia na cabeça, entendeu? Foi a primeira vez que eu falei: “Jesus”. Teve uma que chegou, era o terceiro filho dela, também ia nascer não sei quando. Três dias depois que ela estava lá, ligaram pra mim: “Raquel, tá nascendo”. Falei: “Tá bom, chama uma ambulância” “Não, você não entendeu: Já está saindo”. A gente não tinha carro na época e eu tinha um acordo com os vizinhos que era assim: “Quando o senhor tem o carro disponível à noite?” “Tal dia” “O senhor se disponibiliza, assim...”. Era um turno de quais eram os vizinhos que podiam dar uma força; isso aqueles que aceitavam a Lua Nova, porque a gente foi apedrejado, tudo, porque lá podia ser um tipo ‘joga a pedra na Geni’. Agora que eu lembro, eu falo: “Como é que...”. Mas tinha essa coisa do poder da maternidade. Chegava grávida, ou com bebê, eu já ficava derretida, achava o máximo, lindo, maravilhoso. E elas iam chegando e a gente ia criando. Fomos criando atividades, eu lembro, até com a Karen Worcman, porque uma das coisas que eu mais falo, que tenho que trabalhar, é a minha parte; sou psicóloga. Então fazer grupo de maternidade. Falar sobre sua relação com o seu filho, sobre sua gravidez e tal. Foi um desastre, horrível. Porque todas elas tinham tentado abortar, tinham se jogado na frente do carro pra tirar o filho, todas, de alguma forma, aquele filho não era um filho desejado. O desejado era o meu filho, não o delas. Na verdade, foi um desastre. Era uma choradeira e eu era a psicóloga, como eu estava fazendo? Foi horrível. Foram uns oito meses, até que eu falei: “Chega de fazer isso aqui, que está sendo uma tortura pra mim, pra elas”. Esse negócio do grupo de maternidade. E comecei a perceber que existiam outras formas de trabalhar. Depois, a gente trabalhou com a coisa de fazer a linha do tempo e tal, nós fomos criando outras alternativas. E a coisa foi meio que indo e teve uma situação muito especial, que era a Paulete. Eu conhecia a Paulete desde o Quixote e ela foi a marca porque ela falou: “O meu sonho é que a minha filha me chame de mãe”. Ela tinha uma filha e um filho, mas a filha morava com a mãe dela, que morava na favela, e a filha dela não reconhecia ela como mãe. Ela era filha de um abuso de rua, não abuso de pai. E ela falou: “O meu sonho é que a minha filha me chame de mãe”. E aquilo me pegou, imagina. Ela veio pra Lua Nova, trouxe o primeiro filho, a filha não quis vir. Depois conseguimos que a filha viesse, tal. Mas era uma cena horrível. Ela não conseguia tratar bem a filha. Era uma situação super complicada. Eu falei: “Ai, onde eu fui me meter?”. Porque você não sabe que hora que é, que não é, que tanto que essa maternidade é poderosa, mas por que isso está acontecendo? Mas essa Paulete começou a trabalhar, a gente começou a fazer a fabriquinha de boneca lá e ela começou a guardar dinheiro. No paralelo, ela ia guardando dinheiro. E ia ser a festa da filha e ela falou: “Eu queria fazer o aniversário da minha filha, queria eu mesma decorar”. Era um lugar até meio escuro, eu falei: “Tá bom”. E no dia da festa, chegou uma bicicleta. Ela comprou uma bicicleta pra filha. E na hora que ela dá a bicicleta pra filha, a filha fala: “Obrigada, mãe”. Nossa, ela começou a chorar, eu chorava. Era uma coisa que eu falava assim: “Nossa, deu certo! É isso mesmo!”. É isso. Eu posso ser louca, a maternidade poderia ser minha, do outro, mas é isso. E não era a bicicleta, mas o fato de que ela estava sentindo que aquela pessoa podia ser a mãe dela. Aquilo pra mim, assim, falou: “Tá, é isso, é por aí, mesmo”. E, lógico, comecei a ler o ECA, a aprender e entender melhor o que eu estava fazendo. Mas a ideia maior era essa coisa de: “O que a maternidade pode fazer na vida de uma pessoa?” E logo depois dessa situação aconteceu uma outra, da que teve o neném lá na Lua Nova, que quem fez o parto foi essa Paulete. Porque a educadora, que era uma enfermeira, quando viu que o neném estava nascendo, ela se trancou no banheiro. A educadora. E eu tava indo porque eu morava aqui e eu tinha que chegar até lá. O meu marido queria morrer, imagina. Ligava duas horas da manhã: “Vai nascer!”. Eu saía, ia pro hospital. E essa: “Está nascendo” “Tá bom, chama a ambulância” “Não, a cabeça já está saindo’. A única coisa que eu falei: “Não corta o cordão. Deixa que saia o que quiser, mas não corta o cordão” Eu não sei porque também eu falei isso, eu achei que a melhor coisa era ela não cortar, pelo menos ficava grudado e não morria ninguém. Foi a única coisa que eu falei e saí correndo. A Educadora se trancou e a Paulete, que tinha acabado de fazer o aniversário, fez o parto. Disse que ela foi tirando, tirando. Eu não vi, quando eu cheguei já tinha nascido, a ambulância já tinha chegado e estava dentro da ambulância e ela não tinha cortado o cordão. Foi super bonito porque realmente era o terceiro filho dela, tinha mais facilidade pra sair e tal. Foi o primeiro neném nosso, quase corria o risco de ser presa, porque imagina, a minha educadora, que era enfermeira e estava lá sumiu, saiu correndo, e a outra fez o parto. E essa Paulete, então, se achava o máximo porque além dela ter a filha, ela ainda era parteira. Toda essa denominação. Não cortou o cordão, graças a Deus, senão iria infeccionar, alguma coisa iria acontecer. E essa menina depois de um tempo chegou pra mim e falou: “Raquel, adorei, muito legal. Eu amo meus filhos, é isso mesmo, essa coisa da maternidade, de ver que aquela criança saiu de você, que ela está ali, esperando você, o que você pode dar pra ela. Lindo. Só que eu, na verdade, sou neta de prostituta, minha mãe herdou a profissão, então, ela também tem os clientes que eram da minha avó, seus filhos e tal, e eu também sou. Então, o que agora vai acontecer é que eu vou me prostituir duplamente pra poder dar o leite para os meus filhos”. Porque antes os filhos não ficavam com ela. Eu falei: “O quê?”. Ela falou: “Tudo isso que você me proporcionou foi maravilhoso, é muito legal, só que tá faltando um pedaço, na verdade eu não ficava com o meu filho não só porque eu não gostava dele, talvez eu não ficava com ele porque eu não podia”. Eu entrei na depressão de novo: “Que história é essa? Estou aqui fazendo toda a minha masturbação na maternidade com a dos outros e agora a outra vai ter que ralar pra poder trabalhar mais pra poder ficar com o filho dela. Que história é essa? E eu comecei a ir atrás de trabalho pra elas. Isso tinha sido logo no primeiro ano da Lua Nova. E como eu estudei aqui em Sorocaba, dei aula, ensinei todo mundo, era professora, tinha plateias, tal, muitos dos que hoje são empresários em Sorocaba eram meus amigos e passei cola pra eles. Eu pensei: “Eu passei cola pra eles. Se eles são empresários hoje é porque eles devem pra mim alguma coisa. Uma ajuda. Então, eu vou pedir e eles, obviamente, vão dar emprego pra elas”. E ninguém deu. E a primeira coisa era assim: “Raquel, você me manda o currículo” “Tá bom”. E ia fazer currículo com elas, e era muito engraçado: “Vamos lá. Você?” “Ah, eu fazia aviãozinho” “Você conseguia vender?” “Ah, vendia bem”. Então, eu colocava: ótima vendedora de porta em porta, trabalhou assim, em tal lugar. Ninguém ia saber. E a outra: “A minha mãe se prostitui e eu ficava com os meus irmãos” “Baby-sitter, trabalhou na recreação de não sei o quê”, e mandava. E ninguém me dava bola. E chegou uma época que eu ia jantar em algum restaurante ou ia na padaria aqui e as pessoas meio que desviavam de mim. Ninguém mais queria falar comigo. “Ih, tá difícil o negócio”. E um dos meus amigos me falou um negócio, foi como o médico meu: “Peça cobertor, peça leite, peça o que quiser. Mas não me peça pra colocar uma menina dessas na minha empresa. Porque elas vão ter caso com os caras, vão contaminar, não sei o quê”. Eu falei: “Como? São as minhas poderosas mães, que história é essa?”. E ele falou: “Raquel, não dá. Olha pra cara delas, você tem que perceber”. Eu fiquei irritadíssima e falei: “Tá bom”. E o cara falou: “Mas você peça o que você quiser” “Tá bom, eu vou pedir pra você. Aguarde”. Eu voltei pra elas e falei: “Nós é que vamos ter que arrumar dinheiro, mesmo. Vamos ter que nos virar”. Tinha as vizinhas que tinham máquina de costura, não sei o quê, fui pedindo. “A senhora não empresta? A senhora me ensina, tal”. E começamos a fazer, produzir guardanapo. E aí, pensei em fazer boneca, porque achei que boneca tinha a ver com mãe, filha, não sei o quê. Pensei nessa coisa da boneca e começamos a fazer. E eram horríveis, indecentes. Era muito feio, uma coisa horrorosa. Mas eu vendia pra minha mãe, pra não sei quem, chegava um dinheirinho, trocava, tal. Até que a gente conseguiu uma doação de malha de camiseta. Só que eram desse tamanho assim. Então bolamos, imagina, eu, psicóloga, especialista em produtos, bolamos uma centopeia, que eram umas bolas coloridas, ia juntando as bolas, depois juntava com cola quente, aí tinha a bolinha preta que virava olho e virava um negócio que era menos horrível que as outras. E eu comecei a vender em larga escala para esses caras. Eu falei pra esse cara: “Você quer ajudar?” “Quero” “Posso pedir?” “Pode” “Eu quero que você compre cem centopeias”. O cara comprou, foram comprando centopéias e foi começando a dar certo essa história de gerar renda porque eu fazia a centopeia. Só que o filho de um deles, que inclusive era marido de uma amiga minha, engoliu o nariz da centopeia. E o nariz ficou preso e teve que ir pro hospital. Foi um horror. Eu também fui pro hospital, eu era culpada e comecei a ver que não dava pra continuar vendendo centopeia pelo resto da vida, centopeia assassina. Tinha que melhorar. E, na Ashoka estava tendo aquele curso de Plano de Negócios pra aprender a fazer negócios e eu entrei com uma ideia, sempre romântica ideia, de que ia fazer uma boneca, a boneca mãe com a boneca filha. E essa boneca mãe, com a boneca filha, teria um livrinho, as minhas meninas iriam fazer e vender pras mães pra melhorar a relação das mães com os seus filhos. E acharam linda a minha ideia. Porque primeiro é a ideia, se ela passa, tem vários processos. No primeiro processo, quando falaram: “Você passou”. Pra vocês terem uma ideia, eu era a psicóloga de Araçoiaba da Serra que trabalhava com essa população que ninguém quer; eu era, tipo, a caipira que juntava com um monte de outras caipirinhas e a gente vendia centopeia. Eu era vista assim no meio do Terceiro Setor. Eu era meio caipira, morava em Sorocaba. Não era, assim, do Instituto X, não tinha apoio do C&A, não tinha esse status, eu era a caipirona. Quando passei na primeira, todo mundo falou. E quando eu passei na primeira eu descobri que estava grávida de gêmeos. Aí, aquele ano foi o ano da transformação: Eu, grávida. E eu falei pro meu marido que eu estava grávida de gêmeos e ele falou: “Você me enganou” “Não, enganei, não. Vou saber? Eu engravidei. Que bom!”. A gente estava fazendo esse plano de negócios e tinha que fazer o plano, tinha que contar quantas horas fazia a boneca, não sei o quê. E, ao mesmo tempo, eu grávida. E tinha as fases, eram cinco fases. Você fazia uma fase, se o que você tivesse feito era legal, você passava pra outra fase, ou era eliminado. Passamos a primeira fase e eu comecei a ficar grande, porque eu estava de gêmeos. E a parceria começou a existir naquele momento. Elas me ensinavam como que eu ficava grávida. Então, enjoar: “Não, toma chá de não sei o quê”. E eu falava: “Bom, se elas ficaram grávidas na rua, se viraram e os nenéns nasceram, a dica delas deve ser boa” “Come beterraba”. Hoje eu não posso nem ver beterraba na minha frente de tanta beterraba que comi. Porque elas também compravam. E a gente ia passando. O interessante desse ano é que, elas não sabiam nem contar hora, não sabiam como olhar o relógio: “Vamos lá, em quantas horas se faz a boneca? Começa”. E eu grávida. Foi um ano bacana e a gente ficou na final, entre os dez últimos, que é uma coisa assim, super... E era muito engraçada porque todo mundo falava assim: “Mas você está na final?”. A Karen também: “Mas você?” “É”. Se nem eu acreditava, imagina... Eu com aquele bando de meninas, ninguém sabia contar, e no dia da apresentação eu fui grávida, o médico não queria que eu fosse porque eu estava desse tamanho, falando em relação mãe e filho, da boneca, não sei o quê. E elas chegaram lá. Era aquela “tchurminha”, com aquele monte de boneca que ainda era feia, bem feinha. E a gente começou. Nasceram as minhas filhas e a gente montou essa fabriquinha de bonecas. E, como a gente aprendeu a fazer o plano de negócios e tudo, foi mais legal porque a gente começou a ficar profissional. Eu chamei algumas pessoas pra trabalharem, artistas plásticos, e a boneca começou a ter a característica dela nova. Foi a primeira coisa que começou a mostrar para as pessoas que elas tinham capacidade de fazer alguma coisa que não só se prostituir. Era o meu slogan, eu não falava: “Agora, essas mães poderosas”, eu pegava e levava uma boneca, que era bonita e começou a ficar mais bonita ainda. Então, começou a ter essa coisa de: “Olha, ela se prostituiu, mas elas também fazem boneca”. Isso deu um super plus na Lua Nova. Começou a entrar dinheiro e as pessoas começaram a procurar, começou a ter patrocinadores e a caipira de Araçoiaba da Serra começou a ter um certo respeito. E principalmente começaram a respeitar porque começaram a ver as meninas. A primeira vez que as meninas apareceram foi nesse evento da Ashoka, começaram a entender, mais ou menos, do que se estava falando. É violência mesmo, prostituição de rua, mesmo, cracolandia, são aquelas meninas lá. E você fala: “E agora ela faz bonequinha”. Uma coisa é a menina que estuda, que está em uma situação vulnerável, mas não está na lama, não é miserável. E outra coisa é você trabalhar com essa turma. Por exemplo, estão fazendo a boneca, uma começa a brigar com a outra e voa cadeira na cabeça, entendeu? Tem todo um... enfim. Começamos e rolou a história de fazer padaria, eu não queria, eu falei: “Ai, meu Deus, imagina se um começa a ficar mal, com dor de estômago, porque elas fizeram besteira, sei lá”. Mas uma delas insistiu: “Não, não, não”. E a Lua Nova tem essa coisa de desenvolver o potencial. E fizemos a tal da padaria. Eu falei: “Só se vocês me prometerem que não vão fazer pão, vão fazer só bolacha”. Aí, no primeiro ano só fizeram bolachinhas. No segundo ano começaram a fazer coffee break, agora elas vendem. Elas começaram a perceber essa coisa, que tinham um potencial ali que era também, não só eu posso ficar com o meu filho, como também posso criar alguma coisa, algum sonho meu, alguma ideia que eu tenho, eu posso transferir e isso pode gerar renda. A gente estava super legal. A gente ganhou um prêmio da Abrinq em 2002, de Convivência Familiar e Comunitária. Tinha o Edital Abrinq para esse prêmio Criança e era o primeiro ano que o prêmio não era indicação. Você mandava. E tinha tipo quatro seções: Cuidados com o Bebê, Violência Sexual, tinha outro que era não sei o quê e tinha outro que era Convivência Familiar e Comunitária, que estava no ECA. Eu não sabia, não li, depois disso eu li direitinho. Então, eu me encaixava em todos. Eu escrevi, tinha tido neném já, estava fazendo aqui, acho que tinha até alguém aqui que estava comigo fazendo e na hora de colocar eu liguei pra moça e falei: “Moça, eu acho que eu estou em todas”. Ela falou: “Se você colocar todas, você vai ser desclassificada” “Ah, tá bom”. Eu li e falei: “Acho que o meu é Convivência Familiar e Comunitária”. Não sei por quê. Porque eu poderia facilmente colocar na parte de cuidados do bebê. Coloquei e a gente ganhou. E foi uma coisa super legal porque elas são uma família, a ideia é essa. A convivência familiar, ela e o filho são uma família, era isso que eu sempre queria falar, e a tal da Abrinq conseguiu entender, foi uma coisa bem bacana. Começamos a trabalhar bem. Começamos a trabalhar nas comunidades, onde elas voltavam. Estava muito legal a Lua Nova, era 2002, 2003. A gente começou a ter uma certa visibilidade, as pessoas vinham conhecer. “Ah, mas tem outras instituições que fazem”. Tem. Mas na verdade não tinham essa coisa de desenvolver potencial, de fazer geração de renda. A menina chegava e já tinha a perspectiva de ganhar direito. E tem também essa coisa, a nossa geração de renda sempre foi geração de renda. Nunca foi fazer de conta que você está dando uma aulinha e depois você vai tentar procurar emprego, entendeu? Tinha que entrar dinheiro porque eu sempre lembrava da história do leite da outra que ia se prostituir. Tinha que entrar dinheiro, não tinha jeito, a gente tinha que fazer. O lucro, na verdade, é poder entrar uma menina a mais. Essa era a pauta: Tem que estar com o filho, cuidar do filho. Não pode produzir hora extra senão você vai deixar de ficar com o seu filho. Tem um pouco esses princípios. E estava tudo muito feliz até que eu fui visitar uma das meninas - eu sempre ia nas casas, porque elas saíam, alugavam casa por aqui, ou mesmo em São Paulo, algumas voltam pros seus lugares. Já passaram mais de 600, 700 meninas e elas vem de todo o estado de São Paulo. Eu fui visitar a casa de uma delas, era tipo dois cômodos, um aqui, um ali. Você chegava assim e tinha alho, banana, tudo pendurado no teto. Eu falei: “Nossa, a sua decoração está ousada, você está usando a sua criatividade”. E ela falou: “Tem rato e o rato de noite come. E eu tenho que pendurar. Por mais que eu ganhe, eu pago aluguel e aluguel é caro, não sei o quê”. Eu sempre falo, se ela tivesse falado: “Tem cobra, tem barata, tem crocodilo”, talvez eu não ficasse incomodada. Mas eu não suporto rato. Se tem um animal que poderia eliminar da face da Terra, pra mim é rato e morcego. Eu tenho medo. Eu assisti ao filme Ratatouille e agora assisti àquele outro, sabe aquele do ratinho poderoso? Esqueci o nome. Juro que eu não durmo de noite, eu fico pensando no rato que pode estar vindo no meu pé. Sabe como tem gente tem com monstro? Eu tenho com rato. Eu saí da casa da menina acabada, acabada. “Gente, depois de tudo isso, e sai da encrenca, sai da rua, e vem pra cá, e fica com o filho. Depois ela fica com o filho e tem que trabalhar, e ganha dinheiro, e trabalha, aprende. Aprende a ver hora, não sei o quê, tudo isso pra morar com rato?”. Foi a sensação que eu tinha, que eu nadava, nadava, nadava e morria na praia. Chegou e tchum, morreu. Eu falava assim: “Com rato!”. E falavam pra mim: “Mas lógico, esgoto a céu aberto. Onde elas vão conseguir pagar aluguel não tem condições”. Eu fui atrás, na época eu conhecia o Secretário de Habitação de São Paulo, eu fui atrás e falei: “Olha, não dá”. E na época não tinha aquela lei, que agora tem em São Paulo. E eles falavam assim: “Elas não são consideradas família, elas tem que ir pra albergue, não morar em casa popular”. Imagina. A minha sensação era: “Eu estou fazendo todo um processo que vai chegar aqui e não vai ter espaço, não vai ter nunca. Mesmo se elas puderem pagar, elas vão pagar pra morar na lama, mesmo”. E eu conheci um cara que era fellow da Ashoka também, que era um cara de Uberlândia. Em um encontro da Ashoka, esse cara mostrando, ele fazia casas populares, autoconstrução e tal. E mostrando que eles faziam aqueles tijolos só no cimento. Eu vendo, achando legal tudo, e chegou uma hora que tinha uma foto com uma mulher com o tijolo na mão. Eu falei: “Mas essa mulher também participa?” “É” “Mas ela faz comida no mutirão, como é que é?” “Não, ela faz o tijolo” “Ela faz o tijolo?” “Faz” “As minhas vão fazer também”. Eu cheguei lá e a gente tinha uma turma que era mais hard, sabe? Mais homem, eu sou homem, não quero saber de ser mulher, não sei o quê e tal. Eu cheguei pra essa turma e falei: “É o seguinte. Eu descobri a mina. Tem um negócio aqui que faz o tijolo, não sei o quê. Vocês topam? Porque eu não vou por a mão, eu não suporto ficar fazendo tijolo, não vou por a mão. Vocês topam, eu seguro a onda”. Elas sempre foram muito assim: “Vamos”. Começamos. O cara veio pra ensinar e precisava ter a máquina. Não tinha a máquina e eu comecei a pedir pras pessoas que precisava comprar a máquina, que custava 700 reais, custava pouco e tal. As pessoas falavam assim: “Olha, Raquel, boneca é uma coisa mais fácil porque você rasga... Agora, casa cai”. Eu falava: “Não, não vai cair porque elas vão aprender a fazer” “Não, até a gente entende que você é da Lua Nova, mas não....” “Tá bom”. Aí, fui tentar achar essas máquinas e não conseguia. Fui pra Votorantim, tinha um terreno lá da areia que precisava lá e tal. Aí, chegaram pra mim e falaram: “Raquel, tem uma incubadora de empresa. Dentro da incubadora de empresa eu vi em um dos lugares lá muitas máquinas dessas e está fechado, trancado, porque o cara roubou a Caixa Econômica Federal, fugiu e deixou a fábrica dele. Porque ele tinha feito o programa da Caixa Econômica pra fazer casa, construção civil pra prefeitura e tal. E está lá, eu vi essas mesmas máquinas que você está querendo”. Eu falei: “Ah, é? Eu já vou lá”. Fui lá e consegui, com um advogado, que enquanto o cara não fosse encontrado eu era a fiel depositária. Peguei as máquinas, ele nunca foi encontrado, dou graças a Deus. Hoje já pode, mas eu rezava pro cara não aparecer. A gente conseguiu a máquina. Conseguimos a máquina. Precisava de um terreno pra fazer as casas. E começou uma história assim: “Ah, interessante isso que você está fazendo”. Porque elas começaram a fazer tijolo, as pessoas começaram a falar uma coisa assim: “As meninas, mulheres, fazendo tijolo”. Eu pensei: “Eu não tô com essa bola toda, alguém vai roubar a minha ideia”. Peguei e meti uma reportagem no jornal: “Venha aqui ver as meninas fazendo tijolo”. Reportagem, reportagem. Elas foram fazendo, e elas são engraçadas. Deu muita visibilidade e, com essa visibilidade a gente foi conseguindo mais apoio e eu consegui... A ideia era fazer esse projeto que elas aprendiam a fazer o tijolo, a casa, mas na verdade, a casa era um TCC, vamos dizer assim, pra elas serem mestre-de-obra. Mas, como eu tinha aprendido que tinha que fazer a coisa direitinho, senão a casa ia cair, que nem tinha acontecido com a boneca, eu entrei de novo nesse concurso de plano de negócios da Ashoka. Só que eu falei: “Dessa vez eu vou ganhar”. E foi tão engraçado porque eu falei: “Dessa vez eu vou ganhar”. E eles falaram: “Ah, Raquel”. Tudo bem. Fui passando as fases, aprendendo, tentando organizar. E ia ficando mais claro na minha cabeça o que eu estava querendo fazer, como é que isso iria gerar renda, como é que a casa não iria cair. Comecei a fazer parceria com o Senai, com a Faculdade de Engenharia. A Faculdade de Engenharia achou bacana porque não tinha nenhuma ação social e começaram a perceber que oferecendo esse tipo de tecnologia... E eles me deram o exame de laboratório grátis. Eu tinha que arrumar um terreno pra fazer as casas e eu não conseguia, não tinha dinheiro, ninguém me dava o terreno. E tinha uma briga entre dois vizinhos e tinha uma pirambeira. Eu falei: “Se eu conseguir liberar na Prefeitura pra vocês, vocês me vendem por dois mil reais esse lugar aqui, a pirambeira?” “Ah, vendemos”. Porque era um lugar horroroso. Mas não tinha dois mil reais também. E consegui e tinha que pagar os dois mil reais. Uma delas tinha guardado 200, outra tinha 50, fomos juntando. Eu tinha não sei quanto, peguei emprestado não sei quanto. Quando vimos, conseguimos os dois mil reais e compramos a pirambeira. Achando que estávamos com a bola toda. E aí, pra fazer a terraplanagem? Porque como você vai fazer a casa numa pirambeira? Fomos atrás e fomos começando a conseguir. E lá no prêmio a gente tinha aula com os caras da Mackenzie. Na terceira fase, eram cinco ou seis, o cara chegou pra mim e falou assim: “Olha, Raquel. Vamos fazer assim: Por que você não constrói casa pra rico, vende pra rico e depois você pega o dinheiro e dá a casa pro pobre”. Eu falei: “Você não entendeu nada. Eu quero é vender casa pra morador de rua.” “Mas como é que morador de rua vai ter dinheiro?” “Eu não tenho ideia, mas a minha população, que eu quero vender, é delas. É delas pra elas” “Mas como que essas outras, elas vão ensinar? Como é que vai ser isso?”. Enfim, o cara me desestimulou e eu falei: “Olha, eu não estou aqui pra ganhar prêmio, estou aqui pra entender como fazer esse negócio direito. Então, vou sair fora porque não vai rolar, ninguém está me entendendo. Eu acho que dá dinheiro porque eu acho que é uma Política Pública fantástica, a pessoa que mora na rua fazer a sua própria casa, você economiza nisso, nisso e naquilo, mas estou fora”. E a Comissão falou: “Não, continue”. Eu continuei e ganhei. Ganhamos, teve a festa e tal. A gente ganhou e automaticamente a gente teve apoio da Petrobrás, da Camargo Côrrea e a gente conseguiu montar, fazer esse condomínio. Elas fizeram a própria casa, fizeram 12, elas eram em 12, fizeram curso no Senai, todas tem oito diplomas. O Senai não queria aceitar porque, na verdade, o Senai exige escolaridade e muitas delas não tinham. E eu prometi que eu ia colocar uma escola. Eu coloquei uma escola dentro da geração de renda para elas aprenderem, irem se alfabetizando à medida que forem fazendo. Então, foi toda uma luta, mas fizeram a tal das casas. E eu sempre falava assim: “Elas estão fazendo mais dez e tal”. A ideia nunca foi resolver o problema habitacional no Brasil, a ideia sempre foi a de mostrar que uma pessoa que está na rua, que tem um filho, que está numa situação de vulnerabilidade, tem potencial, capacidade, e que falta oportunidade. E se conseguir oportunidade ela vai conseguir entrar e até resolver a sua moradia. A ideia é um pouco essa, não quero ficar fazendo casa pelo mundo. Com o projeto das casas é impressionante. A aderência na Lua Nova mudou. A menina chega, pra ela falar: “Eu não quero ficar aqui”, é quase impossível, porque ela percebe a perspectiva de ter uma casa, mesmo que não seja uma casa feita ali. Isso já é uma mudança. Muitas delas são vítimas de abuso sexual, exploração sexual. Essa coisa do público e privado é muito confuso pra elas; o que é meu, o que é meu espaço. Por sempre morarem em abrigo, na rua, é tudo de todo mundo. Ter a própria casa é um processo de entender que, na verdade, eu tenho esse direito a esse espaço, e a coisa de eu ter o meu filho junto comigo. Porque quem constrói uma casa faz qualquer negócio. Na verdade, o meu problema era o rato. Num primeiro momento eu não tinha entendido o poder que esse projeto tinha. É difícil porque imagina, tem que ralar. Porque agora elas tem máquina hidráulica, mas na época elas fizeram tudo na mão. Quando a gente comprou a máquina hidráulica e o cara veio instalar, ele olhou assim, as 12 casas feitas e falou: “Isso é um milagre”. Acho que não existia mais, tipo, a Idade da Pedra e a Idade Moderna, e a gente estava na Idade da Pedra, fazendo com mulher. E mulher que tem uma hora que tem que levar e buscar o filho na escola, tem toda essa parte também. Elas não são pedreiras, são pedreiras mulheres. É muito legal, é um projeto que mudou muito o status da Lua Nova e das meninas. Não das meninas pra serem consideradas, elas já eram, mas agora com: “é possível”. Porque eu acho que fazer geração de renda, tem muitos que inventam, fazem, mas passa batido. Porque entrar dinheiro na vida de uma pessoa é fundamental, mas muita gente fala que faz, e fez, é moda e não sei o quê. E acaba meio que ficando; você não sabe se a pessoa está ou não por dinheiro, mas ter a casa é difícil. Ou é o movimento de moradia que faz essas casas, ou então não é um grupo que se mete a trabalhar com essa população que não sabe nem ler, nem escrever, nem ver a placa do ônibus, e você fala: “Não, agora ela vai construir a casa dela, ainda vai ganhar com isso”. Esse ano eu perdi cinco pra Construção Civil. Quer dizer, é bom por um lado, por outro a gente tá tendo que treinar mais. Mas é esse o intuito. Na verdade, ele não é mais um projeto, ele é um slogan. Se você acreditar que a pessoa pode, ela pode. E se ela acreditar também é ótimo porque aí você vai pra qualquer lugar. Então, esse é o projeto, essa idéia. E isso é tão engraçado, porque a gente recebe gente que vem de tudo quanto é lugar e eu falo assim: “Gente, são 12 casas”. Bom, agora tem mais dez, são 22 casas. Tem um projeto em Salvador que é lindo, na favela de Alagados, não sei se vocês conhecem. E eu falava assim: “São 12 casas”. Mas realmente tem todo um valor ali porque são 12 casas feitas por essas mulheres. Mulher na Construção Civil já é uma mudança grande de paradigma. Ainda, moradora de rua. Tem toda essa história e realmente com esse projeto, eu consegui uma coisa que foi a parceria: “Vocês são minhas parceiras, não são minhas assistidas, clientes. Vocês são minhas parceiras”. Porque ali, eu mesmo não sabia fazer nada. Tinha que dar palestra sobre o projeto das casas, eu tinha que levar elas porque eu não sabia falar. Eu falava da ideia, não sei o quê, e chegavam elas pra falar: “Não sei quanto de cimento com não sei quanto de não sei o quê e tem que fazer. Aí junta três, porque daí você faz o mutirão aí, não sei”. Tem toda uma coisa que era delas, não é mais meu. Isso foi super legal, acho que é um projeto... Tem outros, mas essa coisa de juntar a encrenca com a “desencrenca”, sei lá, essa coisa de fechar um ciclo, acho que dá essa coisa bacana de poder viver, ter uma outra vida. E aí, a maternidade é realmente possível porque você tem o espaço pro seu filho, tem um lugar pra colocar... Se vocês conhecerem as casas. Isso eu não tinha pensado, mas assim: Você entra tem a foto do filho, ou os carrinhos do filho. Aquele espaço físico também serve pra você colocar à mostra, você exibir o que você produziu, o que é seu. Então, é muito legal, você tem quarto. Tem casa bagunçadíssima, mas sempre tem a exibição daquilo que é “meu”, daquilo que “eu produzi”. Isso é muito legal. Têm os carrinhos, umas coisas assim, às vezes umas decorações mais ou menos, mas de uma maneira geral, sempre tem... Sabe como tem a mãe na Febem, que os meninos botam a mãe como a santa? Nunca pensaram na mãe, mas quando estão na Febem mãe é a santa. No caso das meninas, é o filho. E assim, eu nunca falei: “Bota foto do seu filho na sua casa”. Você vê que realmente essa coisa da maternidade é importante e se ela tem espaço pra acontecer, ela vai acontecer. E ela é um dom, acho que tem toda essa história aí. Agora, a história da Lua Nova também está num processo bem legal. O que está acontecendo? Elas estão assumindo a Lua Nova. Porque a causa da Lua Nova não é a causa das minhas filhas, as minhas filhas são as minhas filhas, são um problema meu. Na verdade é uma causa, a gente não é uma ONG, é uma causa que a gente quer mostrar, que dando oportunidade a coisa rola, e tal. Por mais que você não saiba falar, isso acontece porque as pessoas tem afeto. “Mas é prostituta, matou alguém” “Não interessa, vamos daqui pra frente”. Teve a crise, tem, tem. E na crise eu tive que cortar 40% do meu RH, da minha equipe. Foram fazer um estudo, uma análise e eu falei: “Corta quem vocês quiserem, menos as meninas. Elas vão continuar gerando renda, fazendo não sei o quê”. E aí foi o maior angu. “E aí, mas quem corta?” “Os coordenadores” “Mas quem coordena?” “As meninas”. Aí, foi a maior revolução. “Como as meninas?” “Ué, é delas, elas são parceiras. Agora chegou a hora delas darem uma força porque nós não vamos conseguir bancar”. Mandamos embora todos os coordenadores e a cada setor de geração de renda assumiram duas meninas. Menos no abrigo, que agora três delas trabalham como fixas, mas não são coordenadoras ainda.
E isso está sendo super legal porque a Secretaria dos Direitos Humanos pediu pra Lua Nova disseminar em alguns estados. E você fica pensando: “Como é que você vai disseminar tudo isso? Porque não é assim, chega, monta um abrigo. Depois, pá, boneca”. Não é isso. A ideia é: essa gente tem poder. Você poder montar abrigo, aí faz uma casinha, ou faz mesmo uma casa de prostituição e bota elas pra gerenciar. Sei lá, entendeu? Mas a ideia não é essa. A ideia é que elas possam vivenciar a maternidade e que elas tenham esse poder. Com essa história delas estarem assumindo, chegar o Direitos Humanos e pedir pra disseminar, primeiro que não tem equipe pra ficar indo em tudo quanto é lugar. Daí, eu cheguei pro Direitos Humanos e falei o seguinte: “A gente pode, acho legal. Mas não tem o menor sentido pra Lua Nova disseminar se não for de menina pra menina” “Como assim?” “Como assim, assim: as meninas da Lua Nova, as coordenadoras, que já saíram, elas vão até Fortaleza e mostram pras outras meninas, que as outras meninas podem fazer o que elas já fizeram. E daí, o máximo que a gente pode fazer é trabalhar com os educadores pra segurar a onda deles porque eles não vão aceitar, e a gente segura a onda deles pra que eles abaixem a bola e tal”. E a mulher falou: “Tá bom. A gente faz o primeiro encontro com os gestores que são Secretários desses Estados e você explica isso”. E a gente fez, há duas semanas, as meninas coordenando. Eram todas Secretárias, Secretários, Rondônia, Fortaleza, as meninas fizeram uma oficina que eles faziam jogo, tudo coisa lúdica, que mostrava que todo mundo tem habilidade. E foi muito legal. E elas, lógico, do jeito delas. Mas é muito legal, fiquei super feliz. Lógico, fiquei super angustiada, tem horas que eu chego e falo: “Meu Deus”. Porque tem uma delas que fica metendo o pau no ECA e eu falo: “Gente, será que ela leu tudo pra falar tão mal?”. Porque elas são tudo empoderadas. Daí, eu fico meio mãezona, meio: “Jesus!”. Mas o legal é isso, eu acho que com essa oficina. E quem quer a Lua Nova é assim: a Secretaria dos Direitos Humanos vai bancar, mas tem que ser assim: Elas vão, falam, organizam, a gente tem um programa e a gente fez as oficinas. Era tudo quanto era Estado, chamando, pedindo, falando: “Não, mas a gente quer”. E são oito que iam começar, tinham os 27 Estados lá, mas a gente convidou só os oito para a oficina. E acho que um falou pro outro, não sei o quê. Eu fiquei super feliz, lógico, a gente não sabe exatamente o que vai acontecer porque vai começar Fortaleza primeiro. Mas eu fiquei feliz dessa coisa de não existir uma rejeição, existe uma dúvida. Mas eu acho que isso já é disseminar, você poder dizer: “Olha, não só a vida delas pode mudar, como elas podem mudar a vida de outras pessoas. Porque elas tem esse poder e se você der esse espaço pra elas, elas fazem isso”. Tem muitas que estão hoje, por exemplo, em Santa Catarina, no Oásis, já tem duas. Tem muitas que já me representam, que vão. Eu estou super feliz e a sensação que eu tenho é que meio que estou passando pra fase da sucessão, vai dando uma congestão, mas eu tô passando a bola pra elas. E eu queria isso mesmo, eu quero que elas assumam pra estar junto disso. Como se fosse um movimento: “Se eu posso, você também pode. Levanta aí, você pode ser mãe, pode estar com o seu filho, ter a sua casa, pode ter o seu dinheiro. Vamos nessa”. E falando pras outras pessoas também: “Dá espaço”. Porque acho que a Lua Nova também é mais espaço, mais isso, é mostrar: “Fizeram só 20 casas?” “Só, mas com as 20 pra mostrar pro resto de não sei quantos milhões de pessoas, que se elas quiserem, elas também podem fazer”. Demora, é chato, a menina tem lá suas crises, dor nas costas, emagrece também, é ótimo pra emagrecer. Mas dá pra fazer, dá pra gerar renda. Existe a coisa de falar: “Está aqui. Se você não acreditava, dá pra acreditar porque está aqui. E se você acreditar, então, faça alguma coisa”. Porque precisa parar dessa ideia de ficar: “Não, essa aqui tem que ir pro abrigo, temos que tutelar”. Não. Bota na mão que eles fazem, acho que são pessoas com poder, tanto como qualquer um de nós. Só que precisa botar a ferramenta na mão delas e elas vão. Então, é um pouco isso a Lua Nova.
P/2 – Raquel, nesse contexto de tudo o que você contou, o que é mudança?
R – Eu acho assim... Acho que essa coisa de você poder viver mundos diferentes, coisas diferentes, estar sempre em processo. Pra mim, acho que isso é mudança. O que é a história de mudança pra mim na Lua Nova? Acho que é essa coisa não só de eu ter arriscado, porque tinha hora que eu achava: “O que eu quero? O que é isso?”. Mas acho que tinha uma coisa muito minha, de que eu queria viver aquilo, eu achava que tudo o que eu queria viver, eu queria que os outros vivessem. Eu acho que, pra mim, mudança, é você poder mostrar pra pessoa que ela pode ter uma outra lente pros óculos dela, que ela vai poder ver outra coisa e que isso não é ruim. Isso pode ser bom, também. E que ela pode mudar a lente, pode ter várias lentes. Acho que isso é mudança. A gente poder ir mudando a lente dos óculos sem necessariamente achar que tem que viver o resto da vida só com aquela. Acho que é isso. Por exemplo, eu não sei se a Lua Nova vai ter essa cara daqui a dez anos, esse jeito. Eu não sei, mas não interessa. O que interessa é que ela possa estar usando esses óculos porque as pessoas têm direito de ter várias cores: hoje é amarelo, amanhã é azul. E cada um usa a cor que quiser, no dia que quiser. Mas eu preciso ter a oportunidade de poder usar. Acho que isso é poder mudar, coisa de você poder ter oportunidade e poder vivenciar essa... Eu acho que isso aqui eu proporcionei pra mim e queria proporcionar pra elas. E tem essa coisa das minhas filhas. Porque, na verdade, eu também sou mãe, mas eu não consigo ser mãe só das minhas filhas. Eu tenho essa coisa, na verdade eu acho que elas já estão até acostumadas, assimilando mais, que é essa coisa do coletivo. Eu funciono muito, eu vivo melhor no coletivo. Outro dia me ligou a Isabel, uma das meninas, que está indo embora amanhã porque vai casar com o pai do filho, sei lá, resolveu casar. Ela ligou pra mim e falou: “Viu mãe, eu to indo embora, mãe, você vem me ver?”. Eu falei: “Vou te ver, quero ver você bonita”. Você também vai poder ser mãe, irmã, tia...”. Ela falou: “Acho que sim, mas você vai continuar sendo a minha mãe”. Eu falei: “Continuo sendo a sua mãe”. Eu acho que é isso. Lógico, a atenção que eu vou dar pra Isabel é diferente da atenção que eu vou dar pras minhas filhas, Júlia e Sofia são as minhas filhas. Mas acho que é a coisa do óculos, eu tenho um foco ali, outro ali, mas não é porque eu deixo de ser mãe. Acho que essa coisa do coletivo, dessa maternidade, dessa maneira... Às vezes tem gente que vai lá na Lua Nova e diz: “Nossa, mas elas estão tão assim, tão descalços, estão sujinhas essas crianças e você fala tanto da maternidade” “Por quê? Maternidade é ficar lavando o tempo inteiro? Só ficar tirando as sujeiras do esfregão? Maternidade pra mim é poder gostar, poder viver. Elas poderem ter prazer, namorar também. Isso também faz parte. Por que maternidade é ser mãe e sofrer no Paraíso? Lava, limpa, limpa. Não é isso. Nem é essa a minha, e nem o que eu quero pra elas”. É muito bonito, é uma coisa assim, sai uma criança de dentro de você - no meu caso saíram duas -, mas sai assim, e é uma pessoa. E aquela pessoa começa a falar, é uma coisa impressionante. Como é que você pode tirar isso de uma pessoa? Por uma questão de Justiça, por uma questão de um problema social. Porque não é um problema de vagabundagem, de sacanagem da mãe. Não dá pra tirar isso de uma pessoa, é pior que matar alguém. Eu acho que a pessoa tem que viver, se ela não quiser é um problema dela, é outra lente que ela põe. É isso.
P/1 – Vou fazer a última pergunta, que é de praxe do Museu: o que você achou de contar um pouco da sua vida para o Museu?
R – Ah, eu gosto de contar, adoro contar a minha vida, falar. Acho que gosto de falar muito, até porque quando eu falo eu vou integrando as coisas. Mas eu acho que tem uma coisa do Museu, eu sei que essa história vai ter o valor que ela tem. Isso, pra mim, é que é legal falar pro Museu da Pessoa. É diferente de falar para um jornalista, é como se eu estivesse dando um pedacinho do meu ouro pra vocês e eu sei que vai ser guardado em um lugar direitinho, que isso vai ser bem cuidado. Eu acho que é legal, por isso que eu acho que vale a pena contar sempre pro Museu. Eu já contei coisas até que eu nunca contei pra ninguém.
P/1 – A gente agradece pelo tempo.
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