Dez anos da Fundação Gol de Letra
Depoimento de Olga Cristiane Lembo
Entrevistada por Ricardo Petroni e Camila Prado
São Paulo 25/06/2009
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número: FGL_HV010
Transcrito por Karina Medici Barrella
Revisado por Luiza Gallo Favareto
P/1 – Pra começar, Olga, você poderia falar o seu nome completo, local e data de nascimento?
R – Meu nome é Olga Cristiane Lembo, eu nasci na cidade de São Paulo no dia 30 de junho de 1967.
P/1 – Quais são os nomes dos seus pais?
R – Marcos Antonio Lembo e Dione Longhi Lembo.
P/1 – E a atividade deles?
R – Meu pai é fotógrafo profissional, trabalha em outras coisas mas, na prática, ele também foi músico, pistonista. E a minha mãe trabalhou sempre em área administrativa, foi costureira por um tempo. Hoje os dois estão aposentados, mas tem essa mescla entre os dois.
P/1 – Você sabe a origem da sua família?
R – É uma família de origem italiana, pelos nomes, Longhi e Lembo, porém não vindos diretamente de lá, e sim bisavós, mas não avós. Meu avô materno nascido no estado do Rio de Janeiro, na cidade de Macaé. Embora de família italiana, mas mais concentrados nessa região. E a minha avó, da qual eu tenho o nome, a minha avó materna chamava Olga, é de São Paulo mesmo. A família veio pra cá, foi quando eles se conheceram e casaram. E do lado do meu pai é Lembo, também de alguma região da Itália, mas mais bisavós, o avô já brasileiro. Era o ngelo e a Francisca. Brasileiros, mas com ascendência, de ambos os lados, italiana.
P/1 – Você sabe como os seus pais se conheceram?
R – Minha mãe e meu pai sempre moraram na Mooca, onde eu moro hoje, e eles eram colegas, na verdade. Porque as famílias tinham uma característica na época de circular muito nas ruas de comércio, passear. Eles faziam essa coisa do final de tarde, na caminhada, então eles se conheciam do bairro mesmo, do trabalho, também trabalharam juntos na São Paulo,...
Continuar leituraDez anos da Fundação Gol de Letra
Depoimento de Olga Cristiane Lembo
Entrevistada por Ricardo Petroni e Camila Prado
São Paulo 25/06/2009
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número: FGL_HV010
Transcrito por Karina Medici Barrella
Revisado por Luiza Gallo Favareto
P/1 – Pra começar, Olga, você poderia falar o seu nome completo, local e data de nascimento?
R – Meu nome é Olga Cristiane Lembo, eu nasci na cidade de São Paulo no dia 30 de junho de 1967.
P/1 – Quais são os nomes dos seus pais?
R – Marcos Antonio Lembo e Dione Longhi Lembo.
P/1 – E a atividade deles?
R – Meu pai é fotógrafo profissional, trabalha em outras coisas mas, na prática, ele também foi músico, pistonista. E a minha mãe trabalhou sempre em área administrativa, foi costureira por um tempo. Hoje os dois estão aposentados, mas tem essa mescla entre os dois.
P/1 – Você sabe a origem da sua família?
R – É uma família de origem italiana, pelos nomes, Longhi e Lembo, porém não vindos diretamente de lá, e sim bisavós, mas não avós. Meu avô materno nascido no estado do Rio de Janeiro, na cidade de Macaé. Embora de família italiana, mas mais concentrados nessa região. E a minha avó, da qual eu tenho o nome, a minha avó materna chamava Olga, é de São Paulo mesmo. A família veio pra cá, foi quando eles se conheceram e casaram. E do lado do meu pai é Lembo, também de alguma região da Itália, mas mais bisavós, o avô já brasileiro. Era o ngelo e a Francisca. Brasileiros, mas com ascendência, de ambos os lados, italiana.
P/1 – Você sabe como os seus pais se conheceram?
R – Minha mãe e meu pai sempre moraram na Mooca, onde eu moro hoje, e eles eram colegas, na verdade. Porque as famílias tinham uma característica na época de circular muito nas ruas de comércio, passear. Eles faziam essa coisa do final de tarde, na caminhada, então eles se conheciam do bairro mesmo, do trabalho, também trabalharam juntos na São Paulo, Alpargatas, tinha a sede inicial ali na Mooca. E eles curtiam muito dançar, os dois dançam muito bem e na época que eles se conheceram, essa coisa das orquestras e tal. Eles tinham como lazer ir aos bailes. Isso foi dando afinidade e aproximação. Meu pai também tocava nos bailes. A coisa foi aproximando.
P/1 – Como é que era o bairro quando você nasceu?
R – Quando eu nasci morava na Rua Marina Crespi, é uma travessa da Rua da Mooca, é uma rua tradicional e antiga, das famílias que fundaram mesmo o bairro, os Crespi. A Mooca era um bairro fabril, muito têxtil, muitas fábricas. E hoje a gente ainda vê isso. Os condomínios estão chegando, estão construindo um monte de prédio (risos), mas você ainda vê alguns espaços de antigas fábricas. Então aquelas coisas muito grandes dentro das ruas e com algumas casas meio que coletivas. Aquela coisa da vila, do morar várias famílias juntas no mesmo espaço. O bairro era muito sonoro, muito barulhento do barulho das fábricas e das máquinas funcionando. Eu lembro bem pequena, a gente andava muito, na época não tinha carro, hoje em dia as pessoas estão mais motorizadas. A gente fazia tudo muito a pé: “Vamos na Rua da Mooca”, é a rua do comércio, ia muito a pé. Ia a pé pra escola, sem essa coisa do carro de hoje. Essa coisa do passar, lembro muito bem disso. Você passar nos muros, nas calçadas e aquele barulho das máquinas trabalhando e aquela quantidade de homens nos horários específicos: almoço, café. Todos ali, sentados nas calçadas. É uma coisa que me lembra muito. E essa coisa das casas coletivas, das famílias vivendo ali todo mundo junto. Com mais quintal. Na Vila Albertina, onde a gente tá, já não vê isso, mas isso a gente tinha mais quintal, mais espaço de convívio. Isso é uma coisa que me marca muito no bairro. Andar muito de ônibus. Minha mãe tinha a mania de falar: “Nós vamos pra cidade”, “Mas a gente já está na cidade, né mãe?”. Mas a cidade era o centro da cidade, pra comprar alguma coisa. Era muito legal.
P/2 – Você mudou de casa? Você lembra de ter morado em várias casas coletivas ou foi mais em uma?
R – Eu morei mais nessa que eu tenho mais imagens de pequena e as lembranças da infância são mais presentes, pela aquela coisa do espação, da brincadeira, do jardim. A gente sempre pegava os pedaços de plantas da dona da casa pra fazer comidinha e ela ficava brava (risos). Vivi por muito tempo, até os nove anos, mais ou menos, nessa casa, com meu irmão e amigas e tal. A partir dos nove, dez anos a gente continuou na Mooca, um pouco mais afastado, para uma casa também de vila, mas menos coletivo. Era uma coisa mais assim: São quatro casas, onde a minha mãe mora até hoje. Mas uma coisa mais casa, menos grupão, menos esse espaço de muitas habitações. Nesse contexto.
P/1 – Fala um pouquinho dessa primeira casa que você morou, como era o cotidiano?
R – O cotidiano era assim: eram umas cinco famílias morando nessa mesma casa. Era uma casa da dona da casa, era uma casa enorme, e ela morava no andar de cima. Era como se fosse uma casa de fazenda, com aquele andar de cima, mais imponente, e ela tinha o porão embaixo que era o lugar que ela alugava pra duas famílias. Mas um porão que tinha condição das pessoas viverem, não uma coisa muito baixa, nada. Ela alugava uma ponta da casa dela e nós moravámos no fundo, numa casa maior. E não era uma casa com vários quartos, então dormíamos junto com pai e mãe. Era uma casa que tinha um quarto, sala, cozinha. E os banheiros dessas casas, normalmente, eram banheiros externos. Não tinha a coisa do banheiro estar dentro da casa. E essa coisa de você ir tomar banho no final da tarde, São Paulo é uma cidade mais fria mesmo. E o fim de tarde tinha que sair todo mundo enrolado em toalha para não passar tão frio e não ficar tão doente (risos). E eu lembro, na época, meu pai trabalhava numa empresa, na Vasp, e ele se incomodava muito com isso porque era uma casa de aluguel, não era nossa. E uma das primeiras coisas que ele fez, vendo essa situação, foi fazer um banheiro junto. Na verdade ele puxou, fez uma obra com permissão da dona da casa, pra que a gente tivesse um conforto maior, não precisar tomar banho, sair no frio, toda enrolada em pano, toalha e tal. Ele foi melhorando um pouco essa casa, embora ela não fosse nossa, mas naquela condição pros filhos terem uma vida um pouco mais saudável. E nessa época, embora a gente tivesse uma vida muito coletiva, de famílias mais empobrecidas, de uma tradição mais de migrantes e tal, eu tive um convívio, porque eu nasci em 67, nessa época devia ser setenta, setenta e pouco, com cortiços ao lado, porque eu considero meio cortiço onde a gente vivia, menores, e uma presença maior de migrantes nordestinos. Foi a leva que veio pra São Paulo, pras construções e tal. Então era um contraste interessante. O som é sempre uma coisa presente pra mim, porque eu falo do som da fábrica e aí começou a ter uma interferência dos sons, de ritmos de músicas diferentes. A coisa do forró começou a introduzir, os ritmos e músicas diferentes do que a gente tinha o hábito de ouvir. O nordestino tem muito isso, o som sempre muito alto e a necessidade de ter o aparelho de som. Era uma briga de sons entre as casas. O meu pai, músico... A gente ouvia uma diversidade de coisas e os caras com as músicas... Então parecia uma guerra entre casas (risos).
P/2 – Mas tinha briga?
R – Não, o convívio sempre muito positivo. Existia toda uma questão preconceituosa que a gente observava, pessoas sempre sozinhas vindo morar nessas casas. Então aquela construção da vida sem a família. A gente observava muito isso, sempre sozinhos, as pessoas muito saudosas, isso é uma coisa que sempre ficou muito presente pra mim, de pequena. Mas não brigas. Pessoas harmônicas. E aí começou a ter uma troca cultural bacana. E o bairro, hoje, não tanto, mas por um bom tempo, já crescendo, tinha uma presença muito marcante de nordestinos, também pela condição central, o acesso às fábricas, enfim. E as famílias mais numerosas, filhos. A gente tinha algumas casas pra frente uma senhora que veio da Bahia, ela morava na garagem da casa com muitos filhos. E estudávamos na mesma escola. Essa troca sempre foi muito bacana, dessas diferenças, essa maneira diferença de ser, agir, de trocar e de se relacionar. É uma lembrança muito grande pra mim.
P/1 – E você tem um irmão, né?
R – Eu tenho um irmão, Marcos, mesmo nome do pai, pra ficar mais fácil, só que é Júnior. Ele é dois, três anos mais novo que eu e ele era o meu grande companheiro das brincadeiras nesse grande quintal que a gente vivia, com uma amiga, a Sandra, estudávamos juntas e tal. A gente ia pra escola e a volta já vinha, porque tinha o período da hora do almoço porque tinha os programas de televisão, não vou lembrar o nome agora, loucos pra assistir o desenho. Almoçar, assistir o desenho e continuar a brincadeira do dia anterior. E a gente não desmontava a brincadeira, a minha mãe ficava meio brava, ficava: “Não mexe, hein, mãe?”. E ficava ali a casinha, não sei o quê, para no outro dia continuar a brincadeira. Então era um grande ambiente lúdico. Tudo ali era favorecedor da brincadeira da gente. E era muito bom.
P/2 – Você lembra das brincadeiras?
R – Ah, comidinha, a gente acabava com as plantas da dona Brasilina. Olha, chamava Brasilina (risos). E a gente não tinha dó. Eram aquelas folhagens compridas, já pegava da ponta até o final, já vinha bastante comidinha e os pratinhos e fazia... “Põe um pouco de sal”, era a terra do chão. Fazia café, amassava a planta que tinha pego e fazia alguma coisa. E mamãe, papai, filhinho. A coisa dos bonequinhos. E aquele canto que ninguém podia limpar e mexer, porque se tirasse alguma coisa do lugar ficava todo mundo bravo. Enfim, corria, pega-pega... A gente tinha um espaço favorecedor pra brincar. A gente brincava muito de elástico, aquela coisa dos modelos de pular, tira assim e tal. Corda... Tinha muita coisa legal. Mas na rua, mesmo, a gente não ia. Tinha uma preocupação muito grande das mães, porque como era uma rua de fábricas. Hoje já não é mais, porque já virou rua de condomínios de apartamentos. Essa coisa da presença dos homens na rua sempre assustou um pouco mais. A bicicleta na rua a gente não tinha. Mas a vila proporcionava um super espaço que dava pra andar de bicicleta, pular, correr e tal. E sempre com o portão fechado. Aquela coisa do cuidado coletivo também. As mães na época não trabalhavam, não era uma coisa muito comum. A mãe que tinha a casa mais pra perto do portão, era a mãe que ficava mais de olho pra ver se nenhum ia lá e puxava a cordinha do portão para, de repente, experimentar a rua. A minha ficava mais no fundo. Então elas tinham os combinados de cuidados ali (risos). Mas saía uns tapas, uma arranca cabelo, um chute. Aí fazia uma conversa coletiva e aí se acertava, pedia desculpas. De bico, e a coisa caminhava. No outro dia tinha que ir pra escola juntos. E a coisa do levar e buscar também era combinado. Então a mãe de uma levava e a minha mãe buscava, pra facilitar a vida delas. Porque, embora não trabalhassem fora, tinha toda uma preocupação de ter um trabalho caseiro, ou de cuidado com a casa, com as questões dos filhos. E minha mãe era costureira, ela tinha a máquina como uma fonte de garantir recursos, enquanto ela tava terminando uma roupa que foi encomendada, a outra ia buscar. Enfim, tinha toda uma ajuda entre as mulheres, ali.
P/2 – Quantas famílias viviam mais ou menos lá?
R – Nesse espaço, cinco. Algumas com filhos, outras não. Cinco famílias, era um espaço grande, mas era uma mesma casa. Só a gente que morava nos fundos, na verdade era uma casa à parte. Mas os porões e os quartos na frente que a mulher alugava, era a mesma casa da pessoa. E a dona da casa era sozinha, ela e a irmã. Quer dizer, ela tinha todo aquele espação pra ela, e de alguma maneira ganhava um dinheiro e alugava pras pessoas. Um meio de sobreviver.
P/1 – E como era a sua relação com as outras crianças ou eram só vocês três, mesmo?
R – Tinha nós três que brincávamos mais, e tinha um outro menino, só que ele era um pouco menor, chamava Evandro. E ele ficava com a gente, ele era sempre o filhinho (risos), era o menor. Ele era o filhinho daquela família que a gente meio que fazia ser, todo dia, e brincar. Mas era aquilo de criança, tem dia que você está mais amiguinha dessa e mais inimiga dos meninos. Enfim, cada dia um era tirado pra alguma situação, mas era muito gostoso, harmônico, divertido. Fim de tarde as mães já começava a gritar: “Fulano, vem tomar banho!” “Vamos jantar”. E aí: “Aí, não acredito, a gente tem que parar. A gente quase não brincou”. Estava brincando desde a uma hora da tarde e já eram seis (risos). Aquela coisa da hora da lição, mas enfim, tudo bem. Tudo muito gostoso. Embora tivesse o povo todo, todo mundo cuidando um pouco de cada um, não tem uma individualidade, só dentro das casas, mesmo. Então a gente tinha uma coisa maravilhosa, mágica até, naquele espaço. Bárbaro, muito bom.
P/1 – E escola? Quando você começou a estudar?
R – Então, agora eu não vou lembrar o ano (risos), mas eu comecei cedinho. Eu tinha uns quatro anos, alguma coisa assim, eu já fui pro prezinho. A escola era bem em frente da rua, é uma escola muito antiga na Mooca, acho que ainda funcionam algumas salas, é a Oswaldo Cruz. Minha mãe e meu pai estudaram lá e a gente estudou lá também. Era aquela coisa do horário da escola, de ter uniforme. Era um horário que eu sofria muito porque eu nunca gostei muito de pentear cabelo, e a minha mãe puxava, e o meu cabelo ficava esticado, parecia japonesa, esticava até o olho. Era a hora mais sofrida (risos). Mas tinha que ir todo mundo arrumadinho, usava conga, uniforme era todo igual, eram umas sainhas com umas preguinhas na frente. Tinha uns saquinhos que a gente usava e levava toalhinha, escova de dente, sabonete. O material ficava todo na escola. Mas era tudo muito divertido também, porque acabava continuando as brincadeiras, porque éramos nós mesmos que continuávamos a brincar na escola. E era uma prédio antigo, ainda é um prédio histórico. Os bancos eram muito antigos, os espaços tinha muitas árvores. Tinha umas coisas meio de labirinto lá dentro. E tinha umas salas embaixo que pareciam porões, ficavam no nível da rua. Eram as salas mais frias, mais escuras, esquisitas. Inventavam aquelas histórias que tinha não sei quem, não sei o que lá, e tinha medo, enfim. Mas brincava muito no espaço também, no pátio. E a gente foi também acompanhando umas reformas da escola porque a escola também foi sendo adaptada no processo para esse novo ensino que foi se configurando. Antes as crianças levavam lanche, as escolas não tinham obrigação de dar e depois começou a aparecer a cantina da escola. Aí tinha o contraste do antigo e do mais novo, porque eles foram adaptando a escola às novas exigência da lei na época.
P/2 – Você lembra como eram as salas de aula, como que eram __________?
R – Salas grandes, bem numerosas. Uma coisa mais rígida, não podia falar, não podia rir, não podia levantar, não podia sentar. Uns professores mais flexíveis, outros muito mais duros. Aquela coisa de chegou o professor todo mundo levanta, aquele barulho. Aí volta todo mundo pra carteira de novo, mas legal. Mas uma coisa não flexível, a sala de aula um atrás do outro, às vezes meio chato.
P/2 – E tinha alguma coisa que você gostava de estudar, alguma coisa te interessava mais?
R – Nessa época eu era muito desencanada. Ia na escola, mas não me ligava muito, não curtia muito Matemática. Acho que não tanto pela Matemática em si, porque depois foi indo bem, mas a gente acabou tendo uma professora japonesa. Japonesa, japonesa. Ela não falava português direito. E eu falava: “Mãe, eu não consigo entender o que ele fala” (risos). E ela, coitada, tinha toda uma questão de dicção bem complicada. E imagina, Matemática com uma professora japonesa. Era um terror. Chorava, enfim. Mas tinha essa coisa da rigidez. E uma coisa bacana da escola que eu lembro, e que eu trago hoje sempre em supervisão pras meninas, e acho que influenciou muito na trajetória profissional. Eu acredito muito nessas coisas que vão se inter relacionando e trocando. Nós tínhamos uma professora, dona Guiomar, que adorava jujubinhas, aquelas balinhas de goma coloridas. Queria deixar ela feliz, dava uma balinha daquela pra ela. E ela era uma pessoa à frente dessa questão educacional. E ela tinha uma amizade muito grande com uma professora. Na época, eu peguei as tais classes especiais que separavam as crianças que tinham algum tipo de deficiência, rebaixamento intelectual, enfim. E essa professora, como elas eram muito amigas e tinham uma visão diferenciada, mesmo, de ensino, eram as únicas que conseguiam fazer um momento da semana de salas juntas. Então juntava sala das crianças especiais com a nossa sala, eu nem me lembro que ano era. E era o momento que se tentava proporcionar, tentava porque às vezes não dava, um momento diferente de aprendizagem. Essa professora da classe especial tocava violão. E eu lembro que elas estavam tentando que a gente cantasse uma música, eu não vou lembrar agora, mas era do Taiguara, muito legal. Elas escreviam a letra toda na lousa e a gente fazia um trabalho junto com essas crianças. E, coitadas, elas tentavam. Acho que foi um inicio de educação inclusiva (risos). De alguma maneira eu estava ali, experimentando (risos), porque na verdade elas tentavam fazer porque eram as duas únicas salas que topavam fazer essa troca, porque eles tinham horário de intervalo separado, eles entravam em horário diferente, não tinham relação nenhuma com a escola. E as duas ficavam incomodadas com isso, elas tinham uma coisa de bater, de: “Vamos mexer nesse negócio porque esse negócio não está legal”.
P/2 – E você lembra o que você sentia?
R – Eu? Eu morria de medo, cara. Porque os meninos eram estranhos. E eu ficava: “Ô, é...”. Aí quando eles entravam na sala ficava a turma da gente, a turma dos caras, ninguém se misturava (risos). A única coisa que mexia nisso era a música. Ela tocava, e a professora escrevia a letra do Taiguara - eu não vou lembrar - e a gente cantava junto, mas cantava numa tensão. Porque, na verdade, elas não estavam ainda preocupadas em nos inserir, de trocar, enfim. Ficava o tempo todo uma tensão tremenda, os meninos da sala especial não prestavam atenção em nada, porque tinham dificuldades em concentrar, e a gente (risos) arrepiados em um canto da sala. E isso marcou muito, e a gente ficava tenso e tal. E o engraçado é que não é, porque a gente sabe que são experimentações que vão bater lá na frente, eu tive uma vivência muito grande com pessoas portadoras de deficiência quando eu entrei na profissão, no Serviço Social. E o quanto isso me auxilia hoje, porque são pessoas muito diferentes e tem coisas maravilhosas pra trocar e o quanto isso favorece na troca de grupo, de pessoas. Porque você começa a identificar: Existem diferenças, pessoas diferentes, e dá pra gente fazer um trabalho legal, vamos respeitar o cara, o outro. Você também tem alguma questão que difere do outro. E você aprende muito no trabalho. E eu acho que foi uma marca que me levou depois a ter essa coisa do desafio, de buscar essa população e entender melhor que medo era aquele que eu tinha na época, era natural, óbvio, porque não é só meter todo mundo na mesma sala (risos). Você tem que ter uma proposta, uma aproximação, uma troca. E isso me marcou muito. Mas, pessoas muito corajosas que foram contra, uma escola muito grande. Todo mundo olhava de maneira diferente, e o quanto, com certeza, embora o medo, embora não tinha uma troca tão significativa, favorecia aquele momento pras pessoas, e foi marcante. Foi uma vivência interessante.
P/1 – Você falou que depois você chegou a se mudar de casa, né?
R – Isso, lá por uns nove, dez anos, o meu pai conseguiu comprar essa casa na Rua João Caetano, é paralela à Radial Leste. Foi a primeira casa da família, até hoje a minha mãe mora lá, comprou pelo BNH, pagou em anos e anos. E era uma casa que era nossa, tinha uma cara de casa diferente, com dois quartos. O quarto do meu pai e da minha mãe, um meu e do meu irmão. A gente não tinha cama quando morava lá, eu tinha uma caminha de abrir. Então a cama desaparecia durante o dia e a noite ela aparecia (risos). Não tinha um lugar, e nessa casa tive uma cama. Eu e o meu irmão tínhamos uma cama. Ele tinha um berço que era meu e depois foi pra ele. E lá eu tinha uma cama, era um lugar, antes não. Às vezes eu falava: “Mas onde está a cama?”. A cama desaparecia, como mágica. E lá não, a cama tava lá. A gente tinha um quarto, tinha armário, porque o armário era usado por todo mundo, tinha um pedacinho pras crianças. Era dessa maneira que a gente vivia. E nessa casa não, tinha sala, quarto, cozinha, enfim... Tinha o quintal que era só nosso, não era do coletivo. Embora fosse uma vila, você tinha aquele coletivozão, a gente também tinha um amigo, até hoje temos o amigo, é o Marcos. Fizemos mil bagunças nessa vila, mas que tinha essa coisa nossa, esse espaço que era mais da gente, que configurava mais a casa, de fato. Tinha uma garagem, aquela coisa da família burguesa, vai. A gente foi entrando em outro contexto (risos).
P/1 – E o que mudou no cotidiano?
R – Uma distância um pouco maior pra acessar a escola. Eu já estava um pouco maior e a mãe já deixava ir pra rua sozinha, atravessar a rua. Também começar a conhecer esse ambiente externo, é um pouco da idade, um pouco da necessidade. Bacana isso. Eu ia um pouco mais na rua pra andar de bicicleta, jogar bola. Sempre joguei futebol, sempre fui muito moleca. Andava em muros de todas as casas que você possa imaginar. E minha mãe não conseguia entender porque eu andava nos muros, mas aquilo, pra mim, era a coisa mais deliciosa do mundo.
P/2 – Você subia no muro das casas?
R – Subia e andava em cima do muro das casas. Da minha casa que fazia divisa com as outras casas. E era o meu lugar, era aquele canto que eu me equilibrava, naquele cantinho e tranquilo. Nunca caí.
P/1 – Você nunca deu problema?
R – Nunca quebrei muitas coisas (risos). Essa fase eu dava menos problema, depois eu dei mais.
P/3 – E que ___ você falou que você ganhou o quarto, os seus pais tinham o quarto deles. Como ficou essa dinâmica familiar? Porque antes todo mundo dividia um espaço e...
R – Era uma coisa meio do coletivão. É legal porque você tem seu pai e sua mãe muito perto, numa fase da infância que é gostosa. Mas, ao mesmo tempo, quando você começa a crescer você quer ter um espaço, que acho que a exigência é maior, você sai do grupo, da mãe, do pai, aquela coisa, você começa a ter a necessidade do cantinho. Mas era legal também. Um quarto quente, onde dormiam quatro pessoas, a coisa ficava mais aconchegante. Sempre tinha uma luzinha acesa porque meu irmão sempre teve mais medo. A mamadeira do meu irmão que era uma coisa... A minha mãe e meu irmão tem uma relação muito interessante. Ele exigiu mais dela, ele nasceu um pouco mais doente, eu sempre fui a mais solta, andava no muro (risos). E ele tinha uma coisa de comer à noite e não mamava no peito mais, porque já era grande. E eles tinham uma coisa muito engraçada da mamadeira. E, às vezes à noite, criança tem isso, de acordar e ficar observando o espaço. Eu ficava olhando a sombra da luz na parede, no armário, será que é monstro, será que não é? E eu via os dois, ela dormindo e ele fazia assim no berço, e ela pegava na mamadeira, dava na mão, dormindo. Aí, ele mamava, batia a mamadeira no berço, ela pegava. Que sincronia, né? (risos). E essa coisa de ficar observando os dois naquela coisa do cuidado materno e que tinha uma relação dormindo. E a casa entrou como uma coisa nova. Tinha uma escada, na outra casa não, era porque era tudo térreo. A gente tinha que subir e descer, subir e descer. E nenhum modo, não tinha uma coisa de conseguir subir e descer sem fazer barulho, porque era uma escada de madeira. E aquilo era a grande maravilha da casa. E são casas geminadas, o que quer dizer, o barulho que você faz aqui, ouve lá. E era assoalho, putz. A gente blum blãm, blum blum. Um dia minha mãe: “Para todo mundo! Vocês precisam aprender a subir essa escada”. E ela ficou umas duas horas sentadas no sofá: “Você vai subir, agora você vai descer. Não quero ouvir um barulho” (risos). Porque a vizinha, aquela coisa, não tinha ninguém, não tinha criança e chegaram dois bonzinhos. E aí blãlã, subindo a escada. A mulher já estava uma pilha. E aí esse lance de: “Vamos educar os filhos agora, numa nova situação” (risos). E sentou no sofá e a gente subiu, juro, umas vinte vezes aquilo. Até a gente ter o tom da batida do pé, ela achou tranquilo. E o corrimão da escada virava escorregador. Sempre. Essa coisa do explorar o ambiente sempre foi muito meu. Escorregava, ia no muro, andava de bicicleta, corria. Essa coisa minha sempre muito presente. Meu irmão mais preservado, sempre mais na dele, mais caladão: “Deixa o menino. Não fica mexendo com o menino”. E eu era mais a coisa da bagunça, mesmo.
P/21 – Você ficava provocando ele, irmã mais velha?
R – Ah sim, sempre. Tem que ter, porque sempre foi magrão, secão, então: “Palito, magrão”. Eu sempre fui magra também, mas eu comecei a ter um pouco mais de tamanho, roliça e tal. Ele magro, seco, não comia. Sempre aquela coisa de ficar na disputa, na briga entre os dois, mas muito amor, a gente sempre se cuidou muito. Muito mesmo.
P/1 – E você estava estudando no Oswaldo Cruz ainda?
R – Ainda estudava no Oswaldo, íamos e voltávamos a pé. Aí teve uma ruptura nesse processo. Eu estudei até a sétima, porque nessa época meu pai trabalhava na Abril Cultural. E a Abril teve um esquema de oferecer pro funcionário de mais tempo e tal uma praça que eles chamavam praça comercial. O litoral precisava de alguém que criasse, instalasse uma distribuidora de revistas da Abril que servisse da Praia Grande até Mongaguá, todo o litoral paulista. O meu pai viu uma oportunidade de trabalho porque era uma coisa diferenciada, iria melhorar e tal. E os dois se reuniram, mãe e pai: “Vamo encarar?” “Vamo encarar”. E aí então: “Nós vamos mudar”. Nossa, foi a grande tragédia porque nessa época eu estava na sétima série, treze anos, é o momento que você já tem o grupo, o seu grupo já é uma referência, já tem os meninos e você já tem os esquemas, aquela coisa do namorico, do namorado. E aí, foi mais sério essa ruptura. Embora a gente ter morado bastante tempo nessa casa, dos nove até mais ou menos treze anos, mas tudo muito tranquilo, você tá na sua casa, uma casa legal, você vai criando todo um contexto de vizinhança, pessoas, trocas, de escola. Sempre estudei na mesma escola. E de repente veio essa notícia. Nossa, foi trágica. Meu irmão já não, porque achou bacana. E pra mim foi um sofrimento muito grande. Mas aí, treze anos, com pai e mãe não tem muito o que falar. E aí, vamos embora todo mundo pra Praia Grande. Essa casa não foi vendida, foi alugada, e a gente foi pra lá (risos).
P/2 – E foi pra Mongaguá, e aí?
R – Não, moramos na Praia Grande. Aí foi triste, eu lembro que quando a gente chegou nessa cidade... Meu pai foi antes pra conhecer o espaço, tinha uma loja onde constituiu essa empresa, tinha que fazer todo um sistema de distribuição de revistas pra todo o litoral. E hoje a Praia Grande já passou, foi toda reconfigurada. Na época que eu morava já foi mudando, mas quando eu cheguei aquilo era um caos. Eu falava: “Meu Deus, que lugar é esse? O que é isso?”. Tinha aqueles canais de esgoto que iam com a água pra praia, na época a gente não tinha a questão do sistema de esgoto, era tudo a céu aberto e tal. E aí eu falava: “Eu não quero morar nesse lugar”. E chorava, chorava, desespero muito grande. Mas é aquilo, pai e mãe, não tem outra opção. A gente chegou à noite na cidade. O litoral é muito marcado por temporada. Entãoperíodo de férias, seja de dezembro-janeiro-fevereiro, ou de julho, sempre tem muita gente. Fora isso, a não ser Santos que é uma cidade maior... É pouca gente na rua, aquele deserto, não vê ninguém. Um lugar escuro, não tinha muito recurso, não tinha nada. Mas era o que tinha.
P/2 – E a escola?
R – Teve a mudança da escola que foi difícil. Fui estudar numa escola que fazia Ensino Fundamental e Ensino Médio, já. Uma escola grande. Na Praia Grande só tinha duas escolas que faziam até o Médio, e ficavam bem nas praias das pontas: No Boqueirão e na Cidade Ocian. Como eu morava mais próximo do Boqueirão, fui estudar nessa escola que se chamava Reynaldo Kuntz Busch. Era uma escola lá, até hoje existe. E fomos pra essa escola. Nos primeiros dias, imagina, uma adolescente emburrada. Eu não falava com ninguém (risos). E aquela coisa da adaptação, e as pessoas: “Ah, temos uma aluna nova na sala”. E todo mundo olha pra você e você fala: “Quero morrer, um buraco para me enterrar”. E as pessoas querem saber por que você veio de São Paulo. São Paulo é sempre a referência. E você conta, e as pessoas ficam te olhando, e querem pegar em você, querem ficar perto de você. Mas eu tava muito triste, não queria ter mudado. Foi demorado ainda pra me adaptar. Mas aí vai, você vai criando todo um grupo de pessoas, com todo mundo. Vai adaptando e daí cria o amor, porque você acha um novo grupo e porque a praia é legal, e você vai à praia todo dia (risos). Quer dizer, reconfigura a história. E meu pai e a minha mãe trabalhavam lá…
A reconstrução do grupo. Aí, teve os lances das lojas, o meu pai foi organizar loja. E a minha mãe, nesse momento, entrou meio como uma parceira dele no trabalho. Ela ajudava administrativamente, tinha toda uma questão de organizar, contratar as pessoas e configurar um esquema de trabalho. E a gente, nessa fase, meio que teve que ir se virando, porque era um negócio da família, então: “Não dá pra você ficar chorando, né? Já chorou, (risos), já tá bom”. E aí eu achei um lugar para mim, para essa adaptação. A minha casa, a casa onde a gente foi morar, que também não era nossa, era um apartamento alugado, eu achei o lugar. Eu limpava e arrumava a casa, fazia bolo, nunca fui muito de fazer comida. Mas aí eu achei um lugar pra mim, pra adaptar. Acho que foi a coisa saudável nisso aí. Minha mãe achou um lugar novo pra ela, meu pai achou um lugar novo. Meu irmão estava sempre junto, pela questão da idade, ele se achava no meio dos dois. E eu precisava achar um lugar, e eu virei uma dona de casa, vai, um lugar que eu me sentia melhor. Isolada, claro, adolescente. E aí botava as músicas e chorava, mas eu tava lá fazendo a faxina da casa (risos). E quando a minha mãe chegava tava tudo arrumadinho, e ela começou a ficar mais feliz também. E você começa a ver um outro lado, a coisa da autonomia, da ajuda da família. Você começa a criar coisas pra você. Tem que ir na escola porque é regra, é lei, e a casa virou espaço pra ir me significando, me achando e perdendo a raiva. Porque eu fiquei com raiva daquela coisa toda nova (risos). Mas aí você vai arrumando os amigos... E foi quando o esporte entrou na vida. E eu sempre fui a pessoa do muro, do futebol, da bicicleta, do pular, do saltar, do rolar e lá, uma coisa que eu já não observava aqui em São Paulo, no Oswaldo, lá tinha um incentivo maior pra prática esportiva. Eu lembro que aqui em São Paulo, a única coisa que jogava, quando jogava, era a queimada. Sempre fazia Educação Física, mas uma coisa um pouco mais configurada, de Educação Física. A gente jogava queimada toda hora. Ninguém fazia uma proposta diferente de um esporte coletivo, porque a queimada é o anterior ao handebol. Pra você começar o handebol você dá a queimada. Mas o cara não saía da queimada, só fazia aquilo, que era legal, mas pô... E lá na praia não, a estrutura permitia uma vivência em outras modalidades. E aí eu experimentei basquete, vôlei. Ainda muito nesse recorte de: “Meninas, basquete e vôlei; meninos, futebol”. A menina que, por acaso, achasse legal jogar futebol, já olhavam meio diferente. Eu curtia, mas a professora falava: “Não”. Até colocava algumas coisas, mas: “Não está dentro da grade”. E tinha um pouco de atletismo, corrida. E o ambiente da praia favorece muito essa coisa da prática esportiva. Às vezes a gente ia pra praia, e eu convivi com o mar. Quer dizer, não sabia nadar mas você começa a aprender a lidar com esse outro meio que é a água. Aí a coisa explodiu, mesmo, para o esportivo pleno. E o interessante é que eu era uma ótima aluna em todas as matérias, coisa que em São Paulo já não acontecia como uma coisa muito forte, e virei a esportista. O que é algo que às vezes não bate. Eu era uma coisa meio fora do normal.
P/3 – Como era a sua rotina, era dentro do período?
R – Era no período contrário. Não é como hoje acontece, hoje está inserido no horário. Antes não, a gente ia no outro horário para fazer Educação Física na mesma escola. Então se você fazia toda caminhada de ida e volta, eles davam o tempo pra começar a Educação Física que permitia que você fosse pra sua casa e voltasse caminhando. E você tinha o contraturno, hoje a gente fala. A atividade complementar à escola você tinha na escola. E quem era do esporte jogava todo dia, porque você é chamado pra jogar todo dia, pra treinar, e não sei o quê. E aí essa vivência esportiva foi favorecendo o despertar, mesmo. Aí já tinha um perfil mais... As professoras já te olham diferente, já começa a observar que você tem o domínio da bola, da situação de jogo, e te estimula mais mesmo pra ver o que você vai escolher ali. Aí no basquete eu não me achei (risos), porque era uma coisa que tinha que correr pra lá, pegar a bola e marcar... Não me achei. Mas o vôlei, eu falei: “Esse negócio aí eu gostei”. E foi quando eu comecei a treinar na escola e a prefeitura, na época, teve um incentivo pra começar a criar os times do município, de futebol, voleibol, basquetebol. E eles meio que circulavam nas escolas, conversavam com os professores, porque é tudo da rede municipal ou estadual. E começou a ter um incentivo pra procurar os clubes. Tinha um clube, o Clube de Praia São Paulo, na Praia Grande, que era o lugar que a prefeitura tinha, como se fosse um subsídio, um apoio pra poder organizar, porque na época a cidade não tinha ginásio, não tinha espaço da prefeitura. Então usavam o que tinha de particular. Aí a vida começou a caminhar mais pro esporte, mas o legal é isso, eu era uma ótima aluna, sempre ótimas notas e segurava a onda nos dois lados, o que não é comum, cuidava da casa, e fazia bolo. Olha que pessoa bacana, né? (risos). E foi muito bacana. Comecei a viajar pra jogar. Tinha sempre o período contrário à escola que era o treino, andava sempre muito de bicicleta. Quem mora em praia, interior, é uma coisa muito comum, a bicicleta é um objeto necessário. E na época eu tinha uma amiga, a Edilene, ainda amiga, a gente morava no mesmo prédio e a gente tinha bicicleta. E pra não ir em duas bicicletas, duas pessoas econômicas (risos), iam na mesma bicicleta. Uma levava, a outra de pé, atrás. Aquelas Caloi que tem aquele bagageirinho, de pé, né? E era um pedação. E na volta a outra trazia, porque também, tudo bem que a gente era atleta, mas não dava pra segurar, porque você ainda tem que treinar o período da tarde todo. Então essas perninhas finas não são por acaso (risos), elas foram preparadas ao longo do período. O pedalar e o treinar eram algo presente. E era paixão. Podia pedir o que quisesse, mas não me pedia pra faltar no treino porque era o vínculo. E o bacana dessa questão do esporte, e eu considero isso muito forte na minha vida, porque é a regra, é o momento da troca, é o momento da disciplina, mas é o momento do grupo e o respeitar esse coletivo e o individual. A questão do corpo muito presente, dos amigos e das amigas. Muitos namorados nessa fase, coisa boa demais. Eu conto e as meninas morrem de rir, eu falo: “Mas namorei mesmo” (risos). E todo mundo, “ou cara era do futebol, ou do basquete, ou do vôlei”, enfim. Essa coisa de você ter um grupo de pessoas que tinham o mesmo objetivo, a mesma atividade. Era muito gostoso. E as descobertas foram aparecendo junto com esse processo, o namoro, a descoberta sexual mesmo, os namorados, as trocas, as primeiras relações, tudo foi se configurando nesse ambiente. E tudo muito bacana porque o ambiente de praia é favorável, a liberdade é maior, as roupas são diferentes, a cor das pessoas. A gente tem uma cor mais bonita. E muito legal.
P/2 – E quanto tempo você ficou lá?
R – Ah, fiquei bastante... Fiquei dos treze, quatorze, foi mais ou menos essa fase, até os dezessete. Então bem fortão.
P/2 – Adolescência plena.
R – Plena. Nossa, vivências maravilhosas. E uma coisa de autonomia que eu fui construindo pelo esporte, e isso é uma coisa legal. Uma confiança muito grande da minha mãe porque ela sabia onde eu estava, o que eu tava fazendo. Poucas vezes eu vi algumas situações de desconfiança, de eu não estar: “Acho que você está me enganando”. Não, ela sabia o que eu tava fazendo. Eu nunca fumei, sou alérgica, e eu tinha amigas que fumavam. Ela tinha uma confiança tão grande em mim que eu ia com cigarro dentro da bolsa e ela sabia que não era meu. Essa coisa do esporte também traz uma relação familiar positiva, duradoura, fortalecida. Porque aquilo é bom, é gostoso. “Eu sei que o grupo lá é de gente bacana, não é um pessoal que não é bacana pros meus filhos”. Essa coisa da confiança também foi se estabelecendo. Essa coisa da praia, de você ter a turma do vôlei e você tem a turma na praia do sábado e domingo que se encontra pra jogar vôlei também (risos), vôlei de praia. Tudo muito simples, sem dinheiro. Eu falo pras meninas, não precisava ter dinheiro, não precisava ter essa troca financeira. A gente saía e não tinha grana. E se divertia, dava risada. Eram sempre os mesmos passeios, mas os passeios não enjoavam. Tinha a feirinha de artesanato, toda praia tem. Todo domingo você ia na feirinha, não comprava nada, mas ficava andando na feirinha, mas o que significava ali era o grupo, as pessoas, as trocas, as coisas muito bacanas que eu mantive e mantenho até hoje.
P/1 – E você falou também que você viajava pra jogar?
R – Viajava, chegava super tarde. Porque é assim, a cidade tinha o incentivo, então a gente jogava com as outras cidades próximas, o tempo todo. Treinava pelo time da cidade, quer dizer, você tinha que ir fazer os treinos coletivos. Aí tinha os campeonatos, enfim. E a gente tinha o ônibus, aquela coisa do ônibus. Tinha a coisa do horário, você tem o horário que tem que ir com as coisas, e tal. Nas primeiras vezes a mãe levava, mas depois já sabia como era o esquema. Tinha as autorizações, a gente se encontrava, ia pro ônibus e tal. E os jogos sempre à noite, porque eu estudava de manhã, à tarde tinha os treinos e à noite que a gente jogava. Eu não chegava em casa cedo, chegava meia-noite, uma hora da manhã, duas horas. E a minha mãe, na boa. Ela sabia que eu tava lá. E não tinha celular (risos), não tinha nada. Você já sabia os horários e quem era o grupo que ia, enfim. E, às vezes, atrasava um pouco mais o jogo porque era uma cidade um pouco mais distante, até todo mundo tomar banho, tem essa questão. E a gente não tinha a chave de casa, e como eu tinha uma boa habilidade para pular o muro, eu pulava o muro (risos) pra poder gritar, pra mãe jogar a chave, tudo sempre já trancado. Já uma fase menos segura das cidades, você começa a ver pessoas mais sérias nessa época de entrar, roubar, enfim. Eu pulava o muro, fazer o quê? (risos) Sempre entrava, pegava e abria. E essa coisa da independência, treze, quatorze anos, essa coisa já foi se configurando comigo, de cuidar da roupa, da comida, do horário... Já uma regra, né? Essas coisas foram se organizando.
P/1 – Você passou o colegial todo na praia?
R – Todo. Concluí lá, fechei o processo, sempre boas notas, sempre muito focada. E nesse processo de Praia Grande, eu fui contando da adolescência e não falei mais da família. Meu pai tinha essa loja, as coisas foram se organizando, mas meu pai. É uma coisa do artista. Nesse momento ele escondeu um pouco o artista, o fotógrafo, o músico e tal. Ele era mais administrador. E a gente fala, é um péssimo administrador. Não é um cara bom pra isso. Ele realmente não fez um bom negócio nessa mudança e o negócio lá não deu certo, foi se deteriorando, não foi conseguindo se organizar. Não só por ele, mas acho que uma questão do momento. Ele não tem muito esse tino comercial. Tudo deu errado comercialmente, ele voltou a procurar emprego e foi morar em Manaus. Nós ficamos na Praia Grande, eu, minha mãe e meu irmão. E meu pai foi para uma empresa de transportes porque quando ele trabalhava na Vasp, ele trabalhava bastante com transporte aéreo. Então ele tinha uma boa experiência nisso, uma pessoa que viajou bastante pelo Brasil. E foi quando ele foi trabalhar numa empresa chamada ________, não sei se ainda existe. Tem um canguru roxo e laranja, era uma empresa australiana. Era uma vaga pra lá. O casal senta, aquela história: “Precisamos sobreviver, é lá que apareceu, então vai pra lá”. E se a gente começa a olhar um pouco na linha da história do mundo e do Brasil, em São Paulo, começa a se configurar um pouco aquela questão de viver um período de pleno emprego, que era o Brasil em pleno desenvolvimento, as coisas acontecendo. E nessa fase já começa a deteriorar mesmo as possibilidades de trabalho, de recursos e tal. O que, às vezes, ele conseguia com muito mais facilidade na cidade de São Paulo, não existia mais. E aí a oportunidade foi Norte.
P/3 – Que ano era?
R – Quinze, dezesseis... Precisamos fazer a conta. Então se olhar um pouco na história, é quando começam as quedas. E foi onde apareceu e foi pra lá. O casal se desfaz obrigatoriamente e ficamos nós três, ali. E momento de muita dificuldade. Minha mãe não estava trabalhando porque era parceira dele nesse trabalho que não deu certo, que acabou em nada. E ele foi pra lá. Até se estabelecer, se organizar, duas famílias. Porque você pode pensar duas famílias mesmo, sobrevivendo. E a dificuldade de manutenção. A situação financeira ficou bem complexa, dois adolescentes, uma jovem e um adolescente, comemos muito, adolescente come muito (risos). Embora a gente sempre foi muito simples, não teve uma vida de consumo, a gente nunca curtiu esse tipo de coisa, mas é algo da necessidade, da água, da luz, do gás, da comida, é uma dificuldade. Aí a família ampliada, avós, a gente tinha ainda, primos de São Paulo, ajudando muito essa família na Praia Grande que estava sem o provedor, sem esse pai, e a mãe numa situação de: “Vou ter que arrumar uma coisa pra poder sustentar”. E a gente viveu uma coisa mais de ajuda das pessoas, situações bem delicadas. Foi toda essa trajetória da parte esportiva, e foi se configurando essa economia junto, não positiva.
P/3 – Uma fase prestes a sair do colegial...
R – É, a questão do emprego, do trabalho, já começava, na verdade, a assustar. Porque o jovem tem muito isso.
P/2 – Ainda mais na sua situação?
R – É, eu falo muito isso na Fundação. Porque o jovem começa a criar a barba, pelo, e a família já começa a dar a autonomia do trabalho, pro cara e pra menina. E, às vezes, não tá pronto pra isso e que talvez não seja a melhor alternativa. Incentivar o estudo pra continuar, pra não experimentar essa vida do trabalho tão cedo. E começou um fantasma mesmo porque eu tinha uma vida toda esportiva, deliciosa, de estudo, uma coisa mais minha, de grupo, de jovem, positiva, saudável, de escolha e começar a pensar em questões, mas vivendo uma situação financeira que não favorecia isso. E aí, eu venho de uma família de pessoas muito lutadoras, corajosas. E minha mãe é aquilo, é pão-pão, queijo-queijo: “Vamos lá. Caiu tudo? Então por onde a gente começa a limpar?”. Então tira aqui, bota ali, que é um pouco a Olga aqui: “Vamos embora, vamos resolver”. E começa a assustar, porque você tem tudo tão organizado, mais uma vez, e isso tudo vai quebrar, e eu já sabia que ia quebrar, porque morar na Praia Grande, vai fazer o quê? Ou você vira funcionário público, eu não tinha idade para (risos), ou você vai trabalhar no comércio e você vai ser explorado. E a família começa a puxar pra voltar pra São Paulo. Porque aí começa: “Então, mas como é que vai ficar aí?” “Você tem a sua casa lá”. Tudo bem que a gente tinha tido uma ascensão, tinha comprado apartamento lá na praia, tinha uma casa em São Paulo e uma no litoral. Tinha as lojas, mas foi perdendo. A coisa foi se deteriorando, deteriorando, até chegar ao ponto de: “Eu só arrumei lá e eu tenho que ir embora”. E a família aqui, tinha toda uma questão de ajuda e apoio, falando: “Ôpa, agora vocês vão ter que se mexer, porque não dá ficar esperando aí, né?”. Foi quando teve a decisão de voltar pra São Paulo, foi outro sofrimento, outra quebra, outra tristeza. E em plena situação de experiência de esporte, possibilidades de idade, de estudo e que foi derrubando, caindo, quebrando, foi se perdendo na minha ideia.
P/2 – No meio dessa crise toda de mudança, de fase da vida, existia alguma coisa de profissão na cabeça?
R – Ah, eu queria ser professora de Educação Física, era isso que eu queria. Professora de Educação Física. Era o meu barato. E tinha uma influência mesmo, do educador que estava ali com você, do teu técnico: “Aquilo é muito legal! Que coisa bacana estar com os jovens, com as crianças. Ensinar é uma coisa legal. E o esporte é tão legal porque ele me ajudou muito em muitas coisas”. Era o que configurava. Mas dentro desse quadro, e essa ideia era a que estava rolando e aí: “Vamos, bora, vamos, bora, tem que ir”. A gente voltou pra São Paulo, mas numa condição bem ruim, porque aí não tinha nada, não tinha carro, nada, nada. Teve que vender até o apartamento pra pagar dívidas, enfim. A gente tinha essa casa que estava alugada. E também não dá pra você pedir pro inquilino sair de última hora, você tem que se organizar. A família ampliada acolhe pra ter uma condição de viver. E nós fomos morar na casa da minha avó paterna, da vó Francisca, Chica. Então já moravam nesse lugar a vó e a tia, minha tia da parte do meu pai, mais nova que ele, tinha toda uma dinâmica, uma estrutura. E chegam três pessoas. Não é fácil você morar com alguém, na base da ajuda, da troca, da adaptação, enfim. Mas era o que tinha. Aí a pessoa se organiza, põe você em um quarto, e não tem uma cama. A cama, de novo, desaparece (risos), porque não tem. É o que tem. Porque a gente voltou com roupa só: mala, bolsa, sacola, livro e só, é o que tem. A gente tem essa cama, mas vai ter que se organizar. E tem esse quarto, então eu vou dormir lá com a minha mãe. Você atrapalha toda a dinâmica daquela família. E a comida que não é tua. Tudo incômodo. E a gente jovem, adolescente, emburrado, incomodado. Deixa o namorado pra trás, amiga. E, não tem internet, não tem e-mail, não tinha nada disso (risos). Era só o telefone, ou a carta. E isso tudo muito triste, muito complicado, mas já tinha concluído o colegial e a gente foi morar nessa casa. Minha mãe é muito prática, organizada e disse: “Vamos tirar a carteira de trabalho”. Aí eu falava: “Cara, carteira de trabalho”. Eu não me achava uma trabalhadora, mas. “Todo mundo vai ter que trabalhar. Eu vou trabalhar, você vai trabalhar, seu irmão vai trabalhar porque a gente precisa voltar pra aquela casa e o seu pai está lá e vai ver se consegue uma transferência pra cá”. E trabalhar. E eu falava: “Meu, que fantasma é esse, agora, do trabalho. Que história é essa”. E eu vim da praia, agora eu estou mais gordinha, mas eu era uma pessoa... Chamava a atenção, pernona, bundão. E com dezessete anos eu era uma mulher, um mulherão. E eu morava na praia e andava de shorts e camiseta. E aí eu fui resolver descer a Rua da Mooca de shorts e camiseta. Nunca mais eu pus um short e uma camiseta (risos), fiquei traumatizada, porque os caras quase que me arrebentaram na rua, ninguém foi me pegar, mas eu ouvi coisas horríveis. Na praia você anda assim, as pessoas te olham, até te paqueram e tal, mas não nessa agressividade. E São Paulo tem isso, ela acolhe, mas ela agride, ela é louca, ela é triste, ela é alegre, ela não tem tempo. Imagina chegando, contrariada, e fui descer a Rua da Mooca de shorts. Toda em cima pra tirar a carteira de trabalho. Não dava. Concebe isso? Não, nem eu. E aí os traumas da cidade: “Que coisa louca é essa? Mas eu sou daqui. Mas isso aqui não me pertence mais”. E aí, eu botei outra roupa pra tirar a carteira de trabalho, porque aquela eu vi que não dava. No mais ficar em casa de shorts e camiseta, mas na rua, não. E a gente foi pra tirar a carteira de trabalho com dezessete anos. Então eu tinha carteira, meu irmão com quatorze, quinze. Na época não tinha Lei do Aprendiz, não tinha nada disso, tinha que trabalhar. E a minha mãe acionou uma rede. Minha mãe é uma pessoa que devia ter feito Serviço Social, na verdade. É uma pessoa que mobiliza, organiza, vai, aciona as pessoas, e ela vai reconfigurando as questões. E a gente tirou a carteira de trabalho e ela começou a acionar essa rede pra poder ver que tipo de trabalho, onde a gente podia se empregar. Ela foi trabalhar em um consultório odontológico, médico. Eu fui a que tive mais sorte, no final das contas, fui trabalhar no escritório da Bolsa de Valores, na Rua Boa Vista, a rua dos bancos. Primeiro emprego fui trabalhar numa corretora de valores. Um amigo, também, uma pessoa conhecida que trabalhava e as coisas foram se configurando dessa maneira. E o meu irmão foi trabalhar em uma loja de fotos, na Rua da Mooca, no amigo do meu pai. Era balconista. Estava todo mundo trabalhando, minha mãe estava sossegada. Próximo passo era sair da casa da vó, porque é vó, mas não estava tão feliz com os netos tão grandes, que comiam tanto (risos). Com a nora que me tirou de dentro do meu espaço, desconfigurou a minha casa. Algumas situações meio chatas de ir morar junto com as pessoas, embora tenha acolhido e ajudado nesse momento, porque eram pessoas próximas a gente, pessoas da família, mas não é o seu espaço, não é o seu canto. Quer dizer, sofre. E aí a briga. Como ela botou todo mundo pra trabalhar, a briga era voltar à casa que estava alugada na Rua João Caetano e que tinha um inquilino. Aos poucos ela foi se aproximando. Porque o cara pagava. Na época a casa não estava paga, o aluguel pagava a prestação da Caixa Econômica. Quer dizer, não tinha a receita, tinha a garantia do imóvel porque o aluguel... O cara já até pagava direto lá, meio que fazia... Eram pessoas conhecidas, amigas e tal. Então é uma maneira, ainda bem, de garantir esse único imóvel nosso. E como estava todo mundo mais ou menos instalado no emprego, foi a questão da volta pra casa. O casal tava vendo de comprar a casa deles e acabou dando certo deles comprarem o imóvel e eles saíram. Mas eles saíram e não conseguiram levar os móveis deles, porque estavam fazendo uma reforma na casa que eles compraram. A gente deu um jeito nos móveis, colocou lençol em tudo pra poder entrar. Só que não tinha nada: Não tinha geladeira, fogão, não tinha nada. E aí o trabalho de cada um foi dando pra reconstruir esse espaço. Muito trauma por ter que trabalhar porque aí eu saí do jogo, do vôlei.
P/2 – Não estava mais ___?
R – Não, não tem como. Nunca esqueço. Os ônibus elétricos que ainda tem na Mooca. Eu pegava muito esses ônibus porque eu trabalhava no centro. Então eu pegava o elétrico e rapidinho chegava. Eu chorava da porta do ponto até o ponto que eu tinha que descer (risos). E as pessoas não entendiam. Eram aqueles elétricos antigos que os bancos ficavam de lado, eu ficava lá sentada, chorando, com o lencinho. As pessoas olhavam, eu disfarçava. Porque era um caminho penoso, não era legal. Eu ia de bicicleta jogar e eu vou de ônibus elétrico trabalhar, mas vamos embora. E a coisa se acertando, foi se organizando. Aí, você faz novos amigos, novas pessoas e você vai reorganizando tudo (choro).
P/3 – Como é que foi essa readaptação? Como foi entrando nos eixos?
R – (risos). Aí tem as histórias engraçadas, dos ônibus elétricos, porque parece que você está sempre dentro de um liquidificador (risos). Os antigos, principalmente, que balançavam pra caramba. E você vai vendo pessoas diferentes, sentadas do seu lado. Aquela coisa apinhada de gente, milhões de pessoas. E desce todo mundo, e sobe todo mundo no ônibus. E você fala: “Meu, que louco isso daqui, né?”. Mas aí você vai se acostumando, vai incorporando aquela nova situação, novos amigos, um novo trabalho. E aí: “O que eu tenho que fazer?”. Eu fui trabalhar no departamento financeiro de uma corretora de valores. Imagina, né? Tem umas histórias.
P/3 – Você disse que teve mais sorte, eu queria saber por quê.
R – Eu tive mais sorte porque eu era a que tinha melhor salário. Porque era uma condição assim: pra minha formação, eu acabei o colegial, não fiz técnico, mas o meu colegial, na época, eu não sei qual era a configuração da Educação na época, mas todo escola de ensino público porque tinha o colegial, tinha que estar junto dele uma questão de escolha de área, como se fosse uma coisa técnica. Enfim, tinha umas coisas de escolha. E você nem sabia. Eu lembro lá na praia que a pessoa que fazia sua inscrição ela falava: “Você tem que escolher entre isso, isso e aquilo”. E eu falava: “Nossa, mas o que é isso? O que é aquilo?”. A pessoa falava: “Não sei, você só tem que escolher”. Aí eu falava: “Meu Deus, mas eu não sei o que é isso” (risos). E não tinha uma coisa de você escolher, tinha a coisa da mulher botar o que você tinha que ir lá. E uma coisa engraçada que você nega, mas que depois você volta, é uma coisa meio de ensaio e erro. Eu não queria fazer Magistério. Porque eu falava: “Meu, que coisa louca, só tem menina na sala. Imagina, estudar numa sala que só tem menina?”. Imagina, doida, subia no muro... Mulher chata, mas que é o caminho da Educação. Eu não quis fazer o Magistério, e todas as meninas iam pro Magistério. Eu falei: “Não, essa sala é muito chata, cara, só tem menina!”. Eu falei: “Qual é a outra sala que tem?” “Ah, tem essa na área de Exatas”. Porque não tinha um intermediário. E eu falei: “Caramba, mas só Matemática, meu?”. “É” “Mas tem mais menino, né?” (risos). Então eu quero essa, a escolha foi assim (risos). Pirada, né? Pra explicar essa questão do emprego. Eu tinha Matemática Pura e Matemática Aplicada, Química Pura e Química Aplicada, Física Pura e Física Aplicada. Então eu só fazia cálculo. E eu acho que ajudou pra caramba porque nesse emprego, teve lá uma questão de seleção e eu era boa no cálculo, questão de porcentagem. Na boa, olha e já pá-pá-pá e fazia. Três anos vivendo isso. Tinha uma coisa de textos e tal, mas era menor. Mas é onde tinha mais meninos e meninas legais, não chatas como o pessoal do Magistério, então fui fazer. E isso ajudou muito nessa colocação, embora não tenha ido em um processo seletivo de participar e tal, foi uma pessoa que levou, um amigo da família que me colocou. Mas que teve teste porque eu ia trabalhar na área financeira da corretora, então eu tinha que fazer conta o tempo todo e com certeza isso ajudou. E era um emprego melhor porque corretora de valores tem salário melhor, as pessoas que trabalham, mesmo você sendo uma auxiliar de escritório, era uma salário diferente do meu irmão que trabalhava na loja de fotos. E minha mãe que era a atendente do dentista. O meu era maior. E tinha umas coisas de fechar períodos do ano, quando a Bolsa subia, umas coisas malucas. E, às vezes, os caras pra... Hoje a gente entende, pra desovar do imposto, o que ele fazia? Até que fazia legal, pelo menos ele dava pros funcionários, ele dava dois salários. Foi a época que eu comprei meu Fusquinha, som, as coisas que eu queria. Quer dizer, tem as compensações, perdi de um lado, compensa de outro. E a casa foi tendo cara de casa, o sofá, a cama. A cama aparece de novo (risos). Geladeira, fogão, o casal que morava lá tirou os móveis e deu para a gente fazer uma sala de jantar. E a gente foi construindo. Os três, meu pai longe lá, mas a gente foi reconstruindo. É um pouco a marca da família, mesmo. Essa coisa do dar tudo errado e: “Vamo embora, vamo rever”, um pouco a minha marca também. E lá eu consegui ter uma poupança, uma grana. Mas não era aquilo. Que coisa chata aquele lugar, embora fosse um ambiente interessante porque era muito dinâmico, muita bagunça, muita gente falando, mas não era aquilo que eu queria. Eu tava ali por uma necessidade. E fui aprendendo coisas, fui subindo, melhorando. Mas eu parei de estudar, porque eu fiz o colegial e parei porque eu sou uma pessoa que não vivenciei escola particular, nunca paguei escola. A escola pública que eu tinha da minha família, essa é a linha. E aí, eu falei: “Agora eu tenho dinheiro e eu tenho que voltar a estudar”. A necessidade do estudo, do voltar, que é meu também. Toda hora estou inventando uma história nova. E eu falava: “Preciso estudar, mas vou fazer o quê? Faculdade, mas não sei o que eu quero”. E aí apareceu um curso no Clube Atlético Juventus, na Mooca, de Técnica em Desportiva. “Ah, é lá!”.
Eu vi o curso, não atrapalhava, eu podia continuar trabalhando, porque era uma realidade, uma necessidade, não tinha como pensar em não, e o negócio acontecia à noite. Tudo dentro, eu tinha a grana, dava pra pagar, minha casa já estava no esquema, não iria onerar em nada o processo de reconstrução e eu ia agregar coisa que era aquilo que eu queria. Eu fui fazer e muito bacana. Porque eu trabalhava, ganhava dinheiro, fazia tudo direitinho e à noite fazia a coisa que eu mais curtia. E um novo grupo de amigos, aquela coisa toda se organizando e tal. Nesse período teve uma oportunidade interessante de vivenciar um espaço de estágio que foi oferecido pra gente pela Federação Paulista de Atletismo, um dos professores era da Federação. E ofereceu espaço de estágio pra gente aos domingos. Então todo domingo eu virei árbitra da Federação de Atletismo. Não era a área que eu queria, que era vôlei e tal, mas era uma maneira de estar presente, vivenciando. E foi legal porque eu fiz algumas competições internacionais, fiz meeting internacional, fiz Troféu Brasil no Ibirapuera. Porque é um boom quando tem. Todo domingo eu estava lá, competições menores também e fiz essas grandes competições. Ganhava uma grana e experimentava essa coisa de estar na presença dos atletas, estar fazendo parte do processo. Era uma coisa muito bacana. E sempre levando muito à sério, fazendo aquela coisa com muito empenho. Escolhi duas modalidades pra estudar, como era um curso técnico tinha que escolher, e escolhi voleibol, óbvio, e natação. Só que a natação foi uma escolha de espertinha. Porque embora tenha morado na praia, nunca aprendi a nadar de fato, eu aprendi a sobreviver. Eu falei: “Vou escolher natação porque eu quero aprender”. E o professor ficava muito bravo porque não é isso. Na verdade você está ali pra desenvolver outras pessoas. Mas a maioria das pessoas fez escolhas muito parecidas. E foi quando eu aprendi a nadar e foi muito legal porque eu fiz natação utilitária, que é a natação feita pelo Corpo de Bombeiros, é de salvamento, então aprende a buscar as pessoas embaixo, em cima. Se tem fogo na água, como é que se faz pra mergulhar. Um monte de coisa legal. E sempre metida no muro, no meio do incêndio, no meio do salvamento, em coisas de risco (risos), interessantes assim. E muito bem, sempre muito legal, curtindo. Um frio de rachar e nós naquela piscinona do Juventus gelada. E o professor falou: “a presença era o tibum na água”. Adivinha, né? Saía todo mundo entupido duas horas depois (risos). Mas enfim, teve toda essa vivência e fui aplicando esse conhecimento, aí sim, focado na questão da Educação Física. Para mim foi meio que um experimentar o processo de uma possível situação de educadora. E o engraçado é que eu fui desencantando com a questão. Porque, na verdade, a escolha estava mais pautada numa questão do esporte, prática, e não do esporte pela Educação, por uma coisa de dar aula. Embora eu acho que identifiquei muito a questão Educadora, orientadora, é muito meu isso, mas eu fui reconfigurando esse meu desejo. Mas fiz até o final, gostei bastante, curti pra caramba, e nunca usei. Na verdade não fui definitivamente pra ser uma educadora física. Foi bom, na verdade foi uma experiência para identificar espaços e lugares. Continuei trabalhando, fui passando de uma empresa pra outra, saí da corretora e fui pra Editora FTD. Trabalhei na FTD uns dez anos, também numa área financeira. Porque minha mãe foi pra lá, também através de outras pessoas, e apareceu uma vaga e as minhas habilidades nas contas me fizeram ir para a área de Contabilidade (risos). Fui pra lá e comecei a pensar mais seriamente na questão da profissão. Já sabia que, embora tivesse habilidade pra contas, cálculos e pensamentos mais práticos, matemáticos, não era isso que eu queria. Ali era uma questão mais de ganha-pão. Foi quando começou a aparecer essa coisa da possibilidade de um curso universitário mais focado na área de Pedagogia, Psicologia ou de Sociologia, as coisas que foram amadurecendo mais em mim. E foi uma tentativa mesmo de vestibular, aquela coisa de fazer cursinho. E você vai tendo umas escolhas, direções e tal e vi que uma dessas áreas me chamava mais atenção, a área administrativa realmente era uma necessidade de sobrevivência, e que era isso que eu queria. Aí eu fui, passei nas três e falei: “E agora?”. E não sei, o Serviço Social me chamou a atenção, não sei, hoje posso falar pela amplitude, porque é uma profissão muito generalista, é uma coisa ampla: você trabalha a questão de Educação, orientação, pessoas, você vê que é contexto político, econômico, social, história. E isso me motivou mais. E eu escolhi o Serviço Social, a escolha foi nesse sentido. Mas continuei trabalhando, porque eu que paguei minha faculdade, me banquei. Já sabia que isso não era, um fator assim: “Ah, entrou na universidade e aí, tudo de bom”. Não, eu e eu e vamos embora. Eu continuei trabalhando nessas áreas que não tinham relação, mas estudando a noite e construindo a carreira. As coisas foram aparecendo e aí vem os namorados, junto disso. Nessa época que eu tava fazendo a faculdade e trabalhando na FTD eu conheci o meu ex-marido, pai da Giulia. As coisas foram se organizando para a vida mais afetiva, mais essa outra família, sair da família de origem e ir pra sua família, seu espaço. As coisas foram acontecendo mais ou menos todas no mesmo tempo.
P/1 – Qual é o nome do seu ex-marido?
R – Marcelo Manzini Aguado.
P/1 – Vocês se conheceram como?
R – Ah, muito legal essa história (risos). Eu sempre curti muito a questão do movimento do corpo, das baladas, das saídas, dos grupos e de música. Isso tudo teve uma influência muito grande na minha vida. Meu pai é uma pessoa muito desse meio, essas coisas acho que é um pouco dele. O meu pai e minha mãe, dois dançarinos, essas coisas ficaram um pouco em mim. E quando eu trabalhava na FTD e já fazia faculdade, a gente vai ficando mais maduro e vai tendo um grupo mais maduro de sair pra balada, pra noite e não sei o quê. E eu tinha uma amiga, Jaqueline, que está numa das fotos lá, ia muito para um sambão na Avenida Ibirapuera. Não existe mais, chamava Vila Samba. E ela ia lá. Eu tinha saído de uma questão amorosa com um cara que não deu certo, um romance. E ela: “Ah, vamos sair, você está meio pra baixo, tristinha e não sei o quê. Tem um pessoal que vai para um sambão” “Ah, vamos embora”. Trabalhava já com essa idade, novinha, tinha dinheiro, tinha carro. E elas iam nesse sambão. E era muito engraçado porque ia todo mundo em dois, três carros, só mulher. Uma coisa muito engraçada, enchia aqueles carros, tudo de mulher, mulher, mulher, mulher. E ia lá pra Avenida Ibirapuera, parava o carro e atravessava a rua. E aquela mulherada atravessando a rua, entrando no sambão e tal. E a gente já chegava meia-noite e tanto, porque todo mundo estudava, fazia cursinho, ou já estava na faculdade, já estava todo mundo na pilha pra ir pra noite. E o Marcelo era frequentador e amigo da Jaque, e dançava também, junto. E formava aquele grupinho que dançava, que curtia samba e tal. E eu me inseri no grupo, por conta dessa desilusão, dessa tristeza. E um dia, dançando lá, todo mundo dançando. Sai uma briga no meio do salão, coisa comum. Sei lá, alguém pisou no pé de alguém, sei lá o que, começou a brigar e eu sempre fui muito pacífica: “Deixa disso, imagina, vai ficar batendo e não sei o quê”. Eu me afastei porque sempre tem os seguranças e não sei o quê. E o Marcelo, pai da Juju, meu ex-marido, também é o pacífico. O cara na boa, sossego, tranquilidade. E eu já tava de olho nele porque ele dança muito bem, e ele é ruivo, como minha filha, brancão, mas samba que você fala: “Gente, de onde esse homem veio?” (risos). Eu via aquele cara e falava: “Gente, de onde é esse cara?”. E aí tava naquela briga e tal, eu me afastei, ele também. E aí, né? “Mas menino, que coisa”, sempre fui de brincar com as pessoas (risos). E ele falou: “É mesmo, essas pessoas ficam brigando, que bobeira, vem aqui pra se divertir”. E eu falei: “Pois é, né?”. E a briga já tinha passado, a coisa já tinha se acalmado e a gente no meio da pista conversando. E ele: “Nós estamos aqui conversando da briga, então vamos dançar”. Eu pensei: “Tudo o que eu queria era dançar com esse cara, porque ele dança pra caramba”. E aí começamos uma amizade que se afinou, na verdade, por conta dessa questão da dança. Ele dançava muito, eu gostava de dançar, então: “Pô, achei o negócio que tava faltando”. E toda sexta-feira, aquela coisa de você ter um ritmo e o grupo envolvido. E começamos a sair: “E o que mais você gosta de fazer?” “Ah, vamos comer pizza”, vamos não sei o quê. E aí começou o namoro. Ele é mais novo que eu dois ou três anos. Muito jovem, começou a trabalhar muito jovem. Mesmo esquema de estrutura de família, organização e tal. E as coisas vão batendo. Também fazia faculdade, fazia Matemática na Unip, e eu tava fazendo Serviço Social, e as coisas foram se afinando. Já trabalhava, embora novo, já tinha um bom emprego, trabalhava na IBM, prédio ali da 23 de maio. Toda uma coisa mais organizada. Namoramos, nem vou lembrar quanto tempo, mas casei em 93. Eu tava mexendo nas minhas coisas, eu falava: “Quando foi que eu casei pela primeira vez?”. Eu não lembrava, não lembrava. E achei umas fotos, um álbum lá. Casei em 93, tinha uns 25 anos, ele tinha uns 22, 23 anos.
P/2 – Fizeram casamento?
R – Casamento, tudo aquela coisa de festa. Imagina, dois que dançavam, adoravam, não ia ter. Foi uma loucura o casamento, gente pra caramba, todo mundo dançando, brincando... A coisa muito legal. Duas famílias, a minha não tão festeira, mas entrou na dança da dele. Ele de uma família de italianos e espanhóis. Nossa. “Nasceu os cachorrinhos da vizinha”. Festa. Nasceu, nem sabe quem é, mas fazia festa. Aquela coisa animada, agitada e tal. Eles, moradores da região da Zona Norte e eu, da Zona Leste. Isso foi, foi, foi. Namoramos um tempo, noivado, aquela coisa toda de família. A gente tinha uma coisa muito de organização, ele também, uma pessoa que estudava. Então esperamos acabar a faculdade pra poder configurar o casamento de uma maneira mais tranquila. Casamos com casa, um apartamento, foi uma coisa bem mais organizada, bem ajeitadinha, da família todo mundo ajudando. Mas o Marcelo, na verdade, foi um grande amigão do sambão. Um cara bacana, legal, gente fina. Pessoa boa pra ir pra noite, pra bagunçar, o cara encarava no outro dia o trabalho, o estudo, mas não era uma paixão. Era uma cara legal. Dentro dessa história toda. E na hora você vai, você fala: “Acho que é legal, porque está tudo tão certinho. Vou buscar quem?”. Vamos lá. Então o casamento, na verdade, no meu lado e hoje eu vejo isso com mais tranquilidade, foi se configurando mais nesse sentido. E o casamento terminou com o casamento da Giulia. Eu falo que a Giulia veio pra amarrar essa história toda aí e encorajar a mãe pra vida verdadeira (choro). Então, a Giulia é mais uma mulher que briga pra caramba. E as pessoas se assustaram porque: “Como você vai desfazer seu casamento tão bonito? Tudo tão bacana. Agora com a menina tão pequena” (choro). A Giulia tinha um ano, ela fez um ano em outubro e eu me separei em dezembro. Mas eu falei, não, era a questão que eu precisava, mesmo, pra encerrar a história. E na verdade, o casamento foi uma necessidade de reconstruir algumas coisas que ficaram meio soltas, meio perdidas aí. E que teve seu valor, sua importância. Não tenho ódio nenhum, não desgosto do Marcelo. Um cara legal, um super pai, um super companheiro, mas que não tinha, na verdade, uma paixão pra manter. E a Giulia veio pra falar: “Então, e agora? O que você quer? Você quer essa vida muito certinha que não é a sua cara, ou você vai encarar o que é mesmo?”. E veio um bicho e só desfiz porque me apaixonei, isso é fato. Aí me apaixonei pelo Antonio, meu colega de trabalho.
P/2 – Da FTD?
R – Já não estava mais na FTD, já tinha concluído faculdade. A conclusão da faculdade também me fortaleceu pra buscar o mercado de fato, que eu queria, era o Serviço Social. Eu saí desse meio administrativo e comercial que era o que me sustentava, ainda casada com o Marcelo. Mas aí eu falei: “Bom, agora é o que eu quero mesmo”, era a questão do Serviço Social. E eu encarei um lance assim: Saí de um emprego de 2.500,00 pra um de 300,00 reais. Todo mundo pôs a mão na cabeça e eu falei: “Mas se não for assim, não vai ser de outra forma”. Porque o entrar é assim. E eu tive muito apoio do Marcelo porque ele tinha um bom emprego na época, IBM, era um cara bem seguro financeiramente. Ele falou: “Não, é isso que você quer, vai”. E eu não tinha filhos. É uma outra situação, você pode experimentar, você pode embarcar nas histórias de uma maneira diferente. Foi quando eu entrei no Serviço Social. Dando um breque na história afetiva e entrando mais no profissional, e eu entrei pra trabalhar na Estação Especial da Lapa, um braço do Fundo Social de Solidariedade do Estado de São Paulo. A primeira-dama que administrava a proposta e era um espaço para atendimento da pessoa portadora de deficiência. A história lá que volta. Porque o primeiro emprego é o primeiro emprego. “Eu quero trabalhar como assistente social. O que pintar, pintou”. Não dá pra escolher. Comecei a mandar currículo e veio um monte de coisa, ainda trabalhando. E apareceu essa história. Fui numa entrevista, passei. E aquela história da classe especial volta pra se organizar. E foi muito bacana. Eu tive uma vivência de um ano só, mas pleno o trabalho. Nunca trabalhei tanto, mas tão feliz na minha vida. Era super longe. Porque quando eu e o Marcelo nos casamos, a gente tinha uma grana, mas não dava pra comprar um apartamento legal na Mooca, em Santana. Fomos morar em Guarulhos, ali no Parque Cecap, é meio Dutra. Você fica ali perto de rodovia, mas era onde dava pra comprar, a gente não queria aluguel. E aí era meio punk, porque morar lá, pegava a Dutra. Embora a gente tivesse um carro, ele me deixava no metrô Belém, do Metrô Belém eu ia pra Barra Funda, de lá eu pegava o trem. Era muito legal porque você sai do metrô a coisa é de um jeito, daí você entra no trem tem uma brecha pra você entrar. Você salta pra você entrar no trem. E os caras vendendo coisas, o outro fumando um baseado. Umas coisas que você fala: “ô, mas que lugar é esse?”. Era uma estação, mas era uma vivência muito legal. E eu sempre muito desprendida dessas questões de estar no meio de pessoas muito finas, muito chiques e num espaço que você tem pessoas muito simples. Pra mim, na boa, isso é tranquilo. E eu não me sentia mal, incomodada. Aquilo pra mim era muito legal porque aquele povo gritando vendendo não sei o quê. E eu comecei a trabalhar lá e fiquei um ano.
P/3 – O que você fazia lá?
R – Eu era assistente social, fazia portaria.
P/3 – O que é?
R – É atendimento. Entrevista social, atendimento de caso. E lá era uma grande oficina, um espaço educacional voltado pra pessoa portadora de deficiência, bateu muito na época, não me lembro agora o período, mas quando começaram a aparecer as leis de apoio, de direitos. Então aquele espaço era um espaço importante pro Governo... Fleury. Se a gente olhar um pouco na linha da história, foi o momento em que começaram a aparecer as leis de direitos, a Constituição, a questão das garantias do ECA e da pessoa portadora de deficiência e tal. Até então não se tinha muito espaço, onde tinham as tais classes excludentes que eu vivenciei, ou nada. Ou tinha uma Apae, uma Pestalozzi, mas não esses espaços mais abertos. E quando eu fui pra lá tinha uma coisa de muitas oficinas, muitos espaços de formação profissional e tinha uma lista de espera imensa de pessoas pra entrar, pessoas de toda São Paulo e que não se viabilizava a entrada delas naquele espaço público com tanta área, tanto curso pra fazer, e não se conseguia colocar. Aí me chamaram, uma pessoa que põe as coisas pra funcionar, pum (risos). Uma lista de mais de mil pessoas, eu baixei aquilo. Em dois ou três meses aquilo pegava fogo de gente, e começou a chamar atenção pras coordenações e tal porque eram oficinas que estavam ali ociosas. Tinha educadores, material, ninguém fazia nada, mas precisava da assistente social que fizesse o processo. Pra mim, eu falei: “Pode botar na minha mão que eu vou encher isso aqui”. E aí começam os conflitos, porque o educador também ficava no meio da tranquilidade, e você enche de gente pra dar aula e o cara fica no desespero (risos). Porque você junta um monte de gente que tem diversas questões, mas tinha uma equipe muito bacana de atuação. Foi um ano muito intenso, ganhando pouquíssimo, mas que eu tive mil experiências. E a saída desse primeiro espaço de experiência se deu com a questão da mudança de governo, do Fleury para o Covas. E começa a se configurar dentro da questão do poder público uma coisa do esvaziamento cada vez mais presente dos serviços e as terceirizações, a questão das ONGs aparecendo mais e mais fortalecidas nesse espaço e tal, porque o poder público já não tinha mais condições de manter. Foi quando teve a saída de um governador pro outro, eu não era contratada pelo Estado como funcionária porque não teve um concurso, eu era Baneser, era o banco que fazia essa intermediação. Na mudança dos governos teve que acabar com todos os contratos, e eu perdi esse primeiro emprego. Mas pra mim tava bom porque eu já tinha uma primeira experiência muito forte, intensa. Realmente ali, de fato, eu pus em prática o meu trabalho, aquilo que eu tinha aprendido, já comecei a exercitar. Foi muito bacana isso. O Marcelo também me possibilitou essa questão, essa entrada no mercado. A gente tava casado, não tinha Giulia, nada, voltando à história anterior. A gente morou uns dois anos, eu acho, um ano e pouco, em Guarulhos nesse apartamento que era nosso. Foi quando o pai dele faleceu, uma coisa repentina, teve um ataque fulminante do coração. E como ele é filho único, a mãe sozinha, isso favoreceu uma saída desse apartamento em Guarulhos, uma coisa mais distante. Eu já tinha perdido o emprego também por conta de uma questão política, e a gente resolveu ir morar mais perto da mãe dele. E aí a minha entrada na Zona Norte, como uma profissional da Zona Norte, porque eles são uma família da Zona Norte, Água Fria, toda aquela região. E com o falecimento do pai, a gente tinha o nosso apartamento, tinha uma grana, o pai também deixou um seguro. Por conta da minha ex-sogra, da Marisa, sozinha, porque não tem outros filhos, uma preocupação de estar mais perto, até pra dar suporte, assistência. Com esse dinheiro, vendemos o apartamento e com a grana que a gente já tinha, compramos um imóvel no Metrô Parada Inglesa, uma região bem central de toda Zona Norte, fácil, boa. Fomos pra morar nesse imóvel. Eu tava desempregada, com essa vivência interessante, pelo menos uma vivência inicial, não tinha filhos. Foi quando eu comecei a procurar emprego, porque, como falam, eu já tinha esquentado a carteira como Assistente Social e fica mais fácil. Quando você não tem nada as pessoas te olham meio de lado. Eu comecei a procurar, procurar, procurar e apareceu em uma ONG da Zona Norte, meio que casou: Eu tive que ir pra Zona Norte e arrumei emprego na Zona Norte, na Promove Ação Socio Cultural. E lá eu fiquei uns oito anos, trabalhei bastante tempo lá, foi quando eu tive a Giulia, trabalhando lá. E lá eu já entrei como coordenadora de uma área de profissionalização pra pessoas portadoras de deficiência, a coisa se configurando porque eu me mantive no recorte da pessoa deficiente, perto de casa, enfim, tudo foi se organizando. Trabalhando como coordenadora eu tive a Giulia, eu tinha uma coisa meio facilitada porque tinha a vó perto, o trabalho perto de casa, a coisa foi bem mais tranquila. Mas aí é o fato, aí é que vamos ver se essa família vai mesmo, ou se é só um conto de fadas. Era um faz-de-conta, sem dúvidas, mais da minha mãe do que dele, era uma coisa que pra mim foi uma necessidade, em um momento e situação. E as aberturas, os canais abertos facilitam a entrada de novas pessoas. E pra mim isso é muito tranquilo, porque fiz terapia três anos pra entender até como isso tudo aconteceu. Porque “eu sou uma pessoa muito má, como eu posso fazer isso? Como eu posso destruir uma família?” O peso do mundo veio todo pra mim (risos), não só das pessoas, mas de mim mesma, me cobrando. Os canais muito abertos e o ambiente de trabalho é um ambiente favorecedor de você achar o seu namorado, a sua namorada, a pessoa que você gosta. E o Antônio era um colega de trabalho, na época, ele coordenava uma outra área. O António é psicólogo de formação, pernambucano, formado na Paraíba. É um brigador também, e é por isso que a gente não fica junto, e não tá junto, porque perfis muito parecidos. Uma pessoa nascida muito longe, que veio pra cá sozinha e foi criando toda uma condição de trabalho e sobrevivência. E essa coisa do aproximar, do estar junto, dos olhares muito próximos, do jeito de fazer as coisas. Eu tive a Giulia, e a coisa do pós-parto. Provavelmente eu tive uma depressão, eu tive um esquema de rejeição de tudo, e a minha vida era a Giulia e a Olga, Giulia e a Olga, e nada mais me interessava, nem o meu trabalho. Quando eu voltei da licença maternidade a minha antiga chefe, a Presidente da organização, sempre nesses hiatos, nessas paradas, principalmente da licença maternidade, fica um tempo distante da coordenação do seu espaço. E a coisa precisava de uma ajuda de uma intensidade maior pro trabalho acontecer e ela pediu para que o Antônio me ajudasse. E eu, “Mas...” (risos). Pediu pra pessoa errada, ou pediu pra pessoa certa. Ela pediu: “Antonio, eu queria que você ficasse um pouco mais próximo porque essa coisa da licença, até pegar o fio da meada de novo, com o bebê”. E a coisa se aproximou muito, a gente já era amigo, já batia muito papo, mas nunca, nunca mesmo, uma intenção, um interesse, de um pro outro. Mas os canais abertos e as coisas mais fragilizadas, favoreceram. A coisa foi ficando intensa, grande. E eu sou uma pessoa muito direta, aberta, franca. E eu não gosto de coisas de meias-palavras, meias-frases. Se eu gosto, eu gosto, e se não gosto, não gosto. E eu cheguei junto. E é muito engraçado porque ele ficou branco. Eu falei: “Amigo, está acontecendo algo aqui, você pode me explicar?” (risos). Ele ficou parado. Eu falei: “Você está parado não é por acaso, tem alguma coisa”. Ele ria e eu falei: “Você vai continuar a rir, eu vou dar porrada em você”. Aí, ele falou: “Não, tá rolando, você não tá maluca” “Não to doida cara, ou eu to doida, ou você tá brincando comigo” “Não, não. Tá rolando, mas acho que a gente vai ter que sentar pra conversar”. Falei: “Ainda bem, pelo menos eu não perdi a sanidade. Eu to focada, to entendendo que tem alguma coisa nova acontecendo comigo”. E aí foi uma coisa muito forte, intensa e uma coisa muito difícil porque você tem um casamento, uma família, uma filha novíssima. E a gente sabe que quando tá com uma pessoa que a coisa tá boa ou se a coisa não tá, isso é muito claro. Você pode enganar aos outros, mas não a você e ao seu companheiro. E aí, a coisa foi se configurando até que não deu mais, porque eu não queria ter um relacionamento paralelo, como não tive. Quando a coisa se configurou, um mês depois eu tava separada. Porque eu não achava justo, porque o Marcelo é “o” cara, ele não merece, nunca mereceu. Mas eu precisava ter aquilo, porque senão também não sabia o que era. Mas aí definiu e eu falei: “Amigo, acabou”. Nossa. Nossa. Cara... Aí, a história voltou, o negócio explodiu mesmo, porque aí torna público, você precisa comunicar às pessoas. Porque o interessante do casamento é que você não casa com uma pessoa, você casa com um monte de gente (risos). E aí é punk, porque você tem que descasar tudo isso. E como fazer isso sozinho? Eu fiz. Como? Às vezes eu falo: “Meu Deus”. E a coisa foi se... Eu falei: “Não dá mais, não dá mais, não dá mais”. E foi fato. Aí eu fiz mesmo, definitivamente, o pedido da separação. Ele foi muito sensível de sair da casa, eu fiquei com a Giulia. E para que isso acontecesse, eu precisava ter uma devolutiva de duas pessoas: A minha mãe e a minha sogra. E um dia eu resolvi isso. Não, é fato. E ele não me cabe mais. Isso eu já sabia e eu configurei isso, de verdade, com o Antônio. A minha filha é minha filha, filha do Marcelo. Ela vai continuar sendo minha filha e dele, mas não cabe nessa família. E eu falei: “Bom, eu só preciso de duas pessoas”. Sentei com a mãe e com a sogra, separadas. Relatei, elas ficaram paradas. Porque a quebra também acontece com elas (choro). Quando casa alguém, uma filha ou um filho, tem os casamentos desejados que não aconteceram dessas mães e desses pais. E eu via que eu era muito um desejo da Marisa, o Marcelo era o desejo da minha mãe. E aí, bom. Eu sou ruim pra caramba, eu to quebrando tudo isso. Mas eu falei: “Não cabe mais”. E as duas, muito engraçado, porque as duas eram as pessoas… Eu já sabia o que era, não dava mais pra voltar atrás, eu já tinha acertado isso, mas eu precisava falar. E as duas me apoiaram e eu fiquei... Aí, eu falei: “Bom, se as duas me apoiam, o mundo pode abrir um grande buraco. Não to aí pra ninguém”. E veio uma força de poder segurar e encarar tudo isso de frente. E as duas, com falar muito interessantes, cada uma com uma fala. Não estavam juntas, foi no mesmo dia, mas em momentos diferentes, e a coisa fechou mesmo. E eu falei: “Agora, vamos lá”. Foi uma confusão muito grande porque a coisa de você casar com todo mundo mesmo, então você tem que descasar com todo mundo. É um processo cansativo, estressante, preocupante. Porque na hora que você provoca isso numa outra pessoa, e principalmente com a pessoa que você está promovendo a separação. Então, o cara que você tava e você não quer mais. Foi complicado porque era uma tristeza, mas a tristeza virou ódio, rancor, incômodo. E as coisas foram se reconfigurando de uma maneira diferente. E você tem que administrar isso, organizar isso, e continuar a sua vida porque você tem que pagar a conta de água, luz, comida (risos). E cuidar de tudo isso ao mesmo tempo. E as coisas foram organizando. Eu tinha o meu emprego, eu sempre fui muito independente, muito segura de assumir essa nova situação e isso não me assustou. Mas era uma tristeza porque eu não queria, mas que não tinha outro caminho. E uma alegria muito grande por ter encontrado uma pessoa que era a pessoa, que dilema, que coisa mais maluca, tanto o bom e o ruim, o certo e o errado, tudo acontecendo ao mesmo tempo. A família toda se virou contrária, mesmo. A dele óbvio, porque é uma situação que pega na pessoa que tá mais próxima e ele era a pessoa da família. E a minha também, porque, embora eu tenha tido uma devolutiva positiva da minha mãe, num primeiro momento, depois ela se organizou: “Não, mas você está errada”. E vem um monte de história porque eu sempre fui a que botei banca, a que procurei, a que peitei. E tudo aquilo que não ficou resolvido aparece.
Esse emprego no Promove, essa aproximação, acabou fechando o meu novo casamento. E aí já tava inserida no contexto da Zona Norte, como profissional já atuante do Terceiro Setor. A Promove é uma organização antiga na região, que vem de uma história muito bacana de construção. Era uma funcionária da antiga LBA que trabalha muito aqui na Assistência Social, ela é uma assistente social, dona Marilena, é uma pessoa que vislumbrou coisas muito interessantes com essa questão da configuração do Terceiro Setor. Ela tinha uma clínica de saúde mental que se desmembrou antes da minha entrada lá, com esse Promove sem fins lucrativos e que tinha toda uma esfera de atuação com esse público de pessoas especiais, principalmente numa questão de atendimento clínico ambulatorial, depois foi se configurando para espaços pedagógicos e educacionais inclusivos e depois, a questão do mercado de trabalho. Então, a construção dela também vem muito com a questão da história mesmo. De que maneira as leis voltadas para as pessoas portadoras de deficiência foram se organizando, foram aparecendo pra sociedade. E na Promove eu assumi o papel de coordenadora das oficinas profissionalizantes. Aí, teve a questão da Juju, do nascimento, afastamento, aproximação com o Antônio que coordenava a área de saúde mental, o ambulatório.
P/2 – Você não saía pro entorno da Zona Norte?
R – Não, a Promove fazia um trabalho que a gente fala que é o antigo formato da Assistência. Ela ficava numa região central e as pessoas das comunidades mais periféricas que procuravam. É o formato mais antigo, a maneira como as pessoas antigamente configuravam o serviço. E atuando nas oficinas, eu já tinha me separado, reorganizado a minha vida, o Antônio entrou como o meu novo companheiro e a gente foi se organizando, ainda morando na Zona Norte. E o Promove pediu para que eu fosse implantar um projeto na Vila Albertina, é por isso que eu cheguei na Vila Albertina. Um projeto que trabalhasse com o viés da profissionalização, mas para jovens não portadores de deficiências e necessidades especiais, por conta de uma abertura do Governo Municipal dentro da Assistência Social, de possibilidades de financiamento dentro desse recorte de qualificação profissional pra jovens da periferia.
P/2 – Por que vocês olharam pra Vila Albertina? Quero só entender esse contexto.
R – A Promove ficava mais central e tinha uma relação muito intensa com as secretarias municipais. Então quer dizer: Tinha parceria com as Secretarias de Educação, de Assistência... E como todo relacionamento com o poder público, em relação à parceria de conveniamento, as organizações mais antigas sempre são procuradas pelas equipes técnicas pra ver: “Olha, a gente ta com uma configuração nova de projeto. Como vocês são antigos e estão bem estruturados e já tem uma cabeça muito boa no trabalho que vocês fazem, vamos pensar alguma coisa para esses projetos novos que estão aparecendo?”. E aí já era no modelo PT, Marta. A mudança de Governo também favoreceu essa coisa de abertura, de modificação das políticas e da forma de atuar com o público na ponta. E começa a aparecer a prática mais focada nos territórios. Não que não existisse, sempre existiram essas ONGs menores, estão mais nas comunidades, são mais periféricas e que também tinham parcerias com o poder público. Mas começa a aparecer a política mais fortalecida porque a política da assistência social tem o recorte da questão do território, da transformação local, da sustentabilidade, de trabalhar com a pessoa daquele ambiente, e diretamente com o público. Não fazer mais esse atendimento, modelo Pestalozzi, modelo Apae. Você fica na Vila Mariana, em um lugar assim, e as pessoas vão. Isso foi desconfigurando cada vez mais, apesar de ainda ter algumas coisas. E houve um convite da Prefeitura, na época acho que não tinha subprefeitura ainda, era uma questão regional, tem as regionais, pra gente conhecer um projeto novo, que tinha uma cara nova pelo atual governo da época. E como eu era a pessoa da profissionalização que trabalhava com esse recorte, falou: “Olga, vale a pena uma parceria. Uma parceria boa, é legal e a gente quer que você vá pra lá. Então a idéia de que você saía daqui e assuma o trabalho lá”. A princípio foi um choque porque eu tava com toda uma equipe montada, toda uma estrutura, um público que eu já tinha um domínio e aí, eu vou trabalhar em uma comunidade, em um recorte de território, um público bem diferente.
P/2 – Mas pra entender a Vila Abertina, é um lugar de maior risco na Zona Norte?
R – A Zona Norte tem muitos lugares de muito risco. Toda periferia apresenta. Naquele momento era um espaço que estava disponível, exatamente isso. Porque saiu de uma configuração de modelo de Governo Pitta, era uma coisa bem assistencialista, bem ruim. E aquele espaço já era usado como um espaço alternativo pra jovens, idosos e tal, mas sem uma proposta bacana. Os caras montavam fechadura, ficavam quatro horas montando fechadura de porta. E com a mudança de Governo veio uma proposta totalmente educativa, focada na questão da transformação, da formação profissional, não especificamente fazer fechadura. Ampliar o universo da pessoa. E o espaço tava disponível. O espaço lá não é do Promove, é um espaço da Prefeitura que veio no pacote. “Vou te oferecer espaço, equipamento”. Dessa maneira que se negocia. Então, ofereceu porque estava disponível. Eu fui pra lá e é uma novidade porque você está em um lugar que tem restaurante perto, as lojas, bancos e você vai para um canto que não tem. E com um contexto diferente, de marginalidade, violência, conflito entre as pessoas de uma forma complexa. Você está no território das pessoas, a lei é diferente, a maneira de lidar, de se relacionar. E você tem que entrar nesse contexto. Foi uma super aprendizagem, eu criei o espaço lá, na verdade eu desconfigurei um história e criei uma nova dentro de uma atual política, implantei a proposta, criei equipes, selecionei pessoas. Eu fiz todo o contexto e aquilo era um espaço muito delicado, hoje é o Jogo Aberto. Porque ali ainda continua o Promove, que é uma companheira de trabalho minha e que tem a Angela que está instalada lá numa idéia que foi aparecendo. Foi a minha chegada na Vila Albertina e a Fundação já tava lá quando eu cheguei, ela já existia, já tinha um trabalho, uma estrutura, enfim, a coisa já rolava. Eu implantei a proposta, organizei o grupo. E a questão do trabalho em rede que é necessário, se faz presente em todos os espaços. E quem está no contexto do território mais ainda, é diferente. E a necessidade de sair a campo, conversar, ir ao posto, à escola. E a Fundação Gol de Letra é um lugar pra conversar, também, porque muitos jovens estavam lá e estavam comigo. E as coisas foram aparecendo e foi quando eu conheci a Célia, que estava lá no workshop, foi a pessoa que deu o início como coordenadora do local. E a gente estabeleceu algumas coisas juntas porque eu tinha alunos que eram dela, ou que já tinham saído dela e que iam pra mim, lá embaixo, no Promove. Coisas de comunidade mesmo, de troca. “A gente está precisando disso” “Ah, tem aqui. Então, leva pra você”. Foi quando a rede Vila Albertina começou a surgir, e eu muito presente, sempre. Tiveram as reuniões, as questões que a gente discutia, o que a gente quer, o que precisa. E aí foi quando a gente afinou mais, eu me afinei mais porque era uma profissional ali, estava atuando, mas já estava num momento de atuação profissional com o Promove já meio desgatado. Eu estava cansada, queria alguma coisa nova. Estava querendo voar um pouco, profissionalmente. Foi quando eu comecei a pensar em mandar currículo, ver isso, aí você entra em site, vê vaga. Eu já tinha o Henrique, que é o meu segundo filho, com o Antônio, ele era bebezinho, pequenininho. E na época, uma tia que é essa irmã mais nova do meu pai estava desempregada e precisava de uma ajuda. Então quem nos acolheu, naquela época, agora precisava de uma ajuda. E ela ficou comigo na minha casa e eu, de alguma maneira, remunerava ela. Uma pessoa que me apoiava, cuidou do meu filho. O meu filho teve uns problemas, muito novinho eu deixei ele em escolinha e ele teve um problema intestinal, não se curava. E a opção foi sair da escola, ficar em casa. Essa tia estava desempregada e acabou assumindo o papel de cuidadora dele. E lendo um jornal, o que foi muito bacana isso, ela sabia que eu tava cansada, que queria uma coisa nova, ela viu a vaga de coordenadora pedagógica na Fundação Gol de Letra. E a gente do social, a gente que está na assistência tem muito isso. O cara não é assistente social, é um coordenador pedagógico social, é um multi. E a descrição do cargo batia muito com as coisas que eu fazia lá embaixo. E ela falou: “Ó Olguinha”, a família me chama de Olguinha, “eu tava lendo esse jornal, olha que interessante, essa Fundação não é perto de onde você tá?”. Eu falei: “É”. E ela falou: “Olha, não são as coisas que você faz? Que você conta” “É mesmo, tia! Puxa!”. Ela falou: “Manda um currículo”. Eu falei: “É mesmo”. Até a minha apresentação, quando eu fui pra seleção da vaga, eu usei essa fala. Porque a gente tinha que se apresentar de uma maneira diferente. E eu contei a história da minha tia Miriam, que tava lendo jornal na minha casa, cuidando do meu filho, e viu uma vaga da Fundação e tudo começou. E aí eu mandei o currículo. Mas, na verdade, eu tinha contato com a Célia. Então falei: “Célia, tá precisando?” “Puxa, Olga, você tá querendo sair?”. Eu falei que eu tava cansada, afim de novas coisas e tal. “Ah, me manda teu currículo”. Ela deu na mão do Sóstenes e eu, na verdade, já tinha uma ficha, um currículo, porque eu já tinha participado de outros processos na Abrinq, e outras seleções que teve pelo pessoal de uma empresa que foi contratada, não vou lembrar o nome. E eu sei que fui inserida nesse grupo, fui chamada.
P/2 – Cipo? Porque a Mônica participou junto com você, né?
R – Não, é um outro nome. É esse nome? Não sei, enfim, não, na boa. Eu estou tentando lembrar mas acho que não era esse aí. Mas enfim. E eu participei do processo, a Mônica tava no mesmo grupo. E engraçado, a gente acabou estando no mesmo grupo de seleção. E ela fala, né? Ela é de falar, de se colocar e não sei o quê. Quando eu vi eu falei: “Ah, é ela que vai”, meio que um feeling, assim. Mas eram vários grupos que passa por processo e faz teste e faz não sei o quê. Eu falei: “Ixi, acho que isso não vai dar em nada. Mas, sabe? To lá, trabalhando, to querendo coisa nova. Se pintar, pintou. Se não pintar, vamos embora, vamos tentar”. E na verdade não pintou porque a vaga era pra Coordenação Pedagógica e a Mônica foi selecionada, mas no mesmo período a Célia pediu um desligamento porque tinha uma proposta diferente, mais perto da casa, enfim. E deu um toque: “Sóstenes, a Olga participou do processo todo da IPO”. IPO, IPO! Lembrei. “A Olga participou de tudo, fez os testes, tudo. Dá uma olhada como foi o processo dela”. E eu acho que foi verificado. Na verdade eu tive uma nova oportunidade porque a vaga ficou realmente pra Mônica. Mas aí, apareceu a vaga da Coordenação Social. E eu querendo sair, tava interessada no desligamento, já tava um tempo satisfatório. E houve o convite. Quer dizer, eu participei de todo o processo, mas o convite foi mais entre Sóstenes e Célia. Eu saí do Promove, me desliguei, mas me mantive dentro da mesma comunidade, dentro de um trabalho em rede. A coisa só mudou de casa.
P/3 – Durante esse tempo, como foi se configurando a sua relação com a vila, a comunidade da Vila Albertina?
R – Inicialmente mais complexa. Nas primeiras semanas a gente já tava organizando espaço, mudando coisa, pintando parede. Porque aí a mudança foi muito séria. Sair dos caras fazendo maçaneta pra você botar curso pro cara pensar, criar e ter perspectiva, já foi impactante. E a comunidade chegou em peso, querendo apavorar mesmo. O meu carro foi roubado na primeira semana, foi aberto, levaram um toca CD, a gente já sabia que ia rolar. As ameaças que tem, veladas e não veladas. “Porque você é uma pessoa nova. Quem é você? Como é que você vem aqui e muda tudo? Porque a gente fazia maçaneta e ganhava ‘dé real’” (risos). Aquela coisa. “E agora não vai ganhar mais, né?” Uma coisa meio pesada mesmo que é comum. Mas aí a gente vai configurando na conversa, chama pra conversar. Num primeiro momento todos os meninos mais difíceis da comunidade foram inseridos no programa (risos), até estrategicamente pra você ter as pessoas junto com você e pra você fazer uma conversa e abrir um espaço de mudança de paradigma. Meninos muito difíceis, mas que são meus amigos até hoje. “Dona Olga!”, eles me vêem passar (risos). E menino difíceis. Eles explodiam bomba dentro do negócio, estouravam vaso sanitário... Roubava coisa. E a gente nessa construção bem complexa. Mas até hoje eles lembram de mim: “A Dona Olga tem uma paciência, a gente tocava bagunça dentro daquele lugar e a Dona Olga segurava”. Mas assim, primeiro porque é o espaço das pessoas e segundo porque, estrategicamente, é o caminho da construção, mesmo. Mas tiveram situações muito complexas. Porque o campo que hoje é a quadra, onde a Angela tem as aulas, o espaço dos educadores, ali era um campo de terra de futebol. E era um campo muito disputado pelas pessoas. E foi a primeira vez que aquele espaço recebeu uma proposta esportiva, somada à profissionalização e a trabalho com cidadania. Então, às vezes você estava na aula, num campo porcaria, mas é o que tem, vamos embora. E os caras desciam o morro com bola e: “Vamos jogar bola”. E você fala: “Então, a gente tá em aula” “Não, a gente vai jogar”. E os caras fumados, cheirados, doidões. “Moçada, vamos parar um pouquinho pro lanche?” (risos). Íamos um pouco pra dentro. “É, dona Olga, pessoal é da pesada”. E a gente mudava a estratégia, tentava chamar uma liderança pra conversar: “Ó, a gente não tá falando que não é pra usar, mas tal dia, tal dia e tal dia a gente tem essa atividade, se vocês puderem não vir nesses dias a gente agradece, porque agora está inserido” “Ah, é? Agora é assim?” Alguns respeitavam, outros não, e você começa a criar um ambiente: “Quando não tiver atividade o espaço é de vocês, mas quando tem...” E você começa a criar um esquema. Uma vez aconteceu uma coisa muito interessante, eu achei que ali a gente ia dançar feio. Entre as ONGs têm muito essa coisa de pessoas que cumprem penas alternativas, vem um pedido pra ONG, da Secretaria de Segurança Pública, pra você acolher uma pessoa que está em meio aberto e poder ficar. E veio um senhor que foi pego por uma questão de porte de arma, pra limpeza. Mas era trabalho mesmo, ele não ia cumprir só a pena, tinha questão de remuneração e tal, que o pessoal ficou até feliz porque era um cara legal, a gente acolheu e ficou como funcionário, mas o cara também não era fácil. E os caras desciam pra jogar bola. E ele, de uma maneira provocativa, ia lavar o banheiro na hora. Como não tinha ralo a água escorria e ia pro campo. E teve um dia que eu achei que o caldo fosse entornar porque a água desceu, fez uma lamaçal. E eu trabalhando, ia selecionando meninos, ia acompanhando educador, aquela loucura, e os caras muito loucos na quadra. Porque aí fez uma lama e começaram a sair da quadra e vir pra dentro do espaço e atacar, com lama, todo o prédio. Teve uma hora que eu ia sair e quase, pláf. Mas não veio em mim, ainda bem (risos). Eu falei: “Meu Deus, o que é isso?”. Aí, eu fui pondo a cara devagar: “Ó, desculpa aí”. Um jeito. Eu falei: “Mas o que aconteceu?” “Pô, esse cara não sei o quê”. A gente teve que afastar o cara, pra ele ir para outra unidade porque tinha umas coisas de... Tinha umas horas ali que a gente ficava bem tenso. Tenta invadir, entra pelo telhado, rouba coisa, situações difíceis. Mas que começou a se configurar com o novo formato. E que é isso? Um vem e faz uma parte do trabalho, outro vem e dá continuidade, até você entrar de fato e instalar uma nova coisa. Mas é difícil (risos), mas nada é impossível.
P/1 – Quem são as parcerias, como é que funciona o trabalho social em rede?
R – Lá na Fundação a gente tem um financiador só pra área, que é a Johnson & Johnson. Desde que eu entrei já existia, e que continua até hoje, é uma coisa meio de fidelização, muito legal. Teve uma reconfiguração desse projeto, que era uma coisa bem ampla, então eles financiavam toda a área, a bolsa dos agentes, todas as práticas e eles foram também fazendo um recorte, mais voltado pra área deles, e ficou uma coisa mais ligada à saúde, que são as oficinas ligadas à sexualidade, com as agentes sociais. Em termos de financiamento é isso que a gente tem. Hoje a gente tem um programa, é o programa Comunidades, que engloba os três projetos principais do programa e da área. Eu trabalho com família, tem essa coisa do olhar mais cuidados, de aproximação, de vínculo dessa família, abertura de diálogo, uma leitura dessa família, não pelo viés do que eu idealizo de família, mas assim, daquilo que foi configurado, não importa o formato. Por isso que eu fui fazer especialização, até pra entender melhor essas questões. Então são espaços de diálogo, a gente tem as reuniões com os pais, aí a gente tem os momentos mais específicos, entrevista social entra como recurso, a visita domiciliar, o trabalho de acompanhamento de alguns casos, e encaminhamento é também fundamental. Porque a gente tá dentro de um contexto da vila que é um contexto de vulnerabilidade social, não risco. Dentro da política isso é muito claro. Temos casos de risco mas o mais marcante é a vulnerabilidade, aquela pessoa que tá dentro de um contexto de família e comunidade que ameaça uma situação de conflito, confronto, de problemas mais sérios. E o fato do serviço da Fundação existir, ele entra dentro de um contexto de proteção básica, é essa coisa do complementar a escola. Porque se eu estou em uma comunidade desprovida dos recursos e espaços favorecedores, marcada por questões tão sérias e ligadas ao que a gente chama de estressores da família: o desemprego ou subemprego, ou emprego não bem qualificado e bem remunerado; a ausência de renda ou a renda precária; as moradias também, precárias; um número grande de pessoas para um espaço de moradia pequeno; a questão educacional presente, mas não com uma qualidade que possa fazer um processo de transformação; as oportunidades mais distantes; a questão do narcotráfico, da presença do tráfico muito forte, é uma marca da Zona Norte, é o recorte de problema social da Zona Norte; a marginalidade, a vida de uma maneira precária. Você tem água, luz, mas nem sempre de uma maneira oficial, a coisas das ligações clandestinas, a casa adaptada; o número excessivo de pessoas na casa; o abuso de substâncias. Isso é uma outra questão interessante. Se psicoativas, que podem ser drogas, álcool. Enfim, tudo isso marca muito essa comunidade, é uma presença não só nossa mas de toda a comunidade que tem uma questão de vulnerabilidade, mas que tem essa marca da vulnerabilidade, não do risco. Esse é o contexto.
P/2 – O risco é uma coisa mais grave?
R – Mais grave, porque é a criança abusada sexualmente, a criança que já está inserida no contexto do crime, do tráfico, a criança em situação de trabalho infantil, fato. São questões de risco, que exige, na política, um outro nível de proteção, que é a proteção especial, não é a básica. Algo posterior. E um trabalho diferenciado. A criança de rua, ausência da família, são outras situações. A gente até tem alguns casos, não dá pra falar que não tem situação de risco, mas é mais forte a vulnerabilidade mesmo.
P/2 – Como foi identificado esse traço maior de vulnerabilidade da Vila Albertina do que de risco, Olga?
R – Todo processo de entrevista social, visita domiciliar, pré-visita, tudo isso é registrado. A gente segue todo um protocolo da profissão, nada ali é empírico, tudo segue padrão profissional, eu sou formada, tem uma psicóloga junto. A gente segue os padrões e isso te dá números, índices e isso vai te qualificando. Fora isso você tem como comprovar dentro da própria política, os recortes, os índices, que a gente tem de desenvolvimento do município. E que tem as marcas. A questão do tráfico é algo presente, a gente já sabe pela estatística da polícia, e a gente vê isso no dia a dia. As coisas só se comprovam, mas é dessa maneira que a gente caminha.
P/3 – A gente pulou um pouco. Você estava começando a contar quando você chegou na Gol de Letra. Queria escutar um pouco as suas primeiras impressões.
R – Quando eu cheguei, como eu já era de lá, as pessoas já me conheciam de alguma maneira, já tinha participado de algumas reuniões. Mas a chegada pra assumir o papel é aquilo que precisa do entendimento, olhar, uma leitura. É aquela coisa dos primeiros dias, primeiros meses, que você fica quietinha, vendo observando... A mim assustou bastante principalmente a marca da Fundação que é fortíssima, e é maravilhosa, que é a do protagonismo. A coisa de você envolver a comunidade todo tempo, a todo instante, em todas as coisas, em um processo de construção e transformação. Bárbaro, mas também um pouco assustador de início porque era uma coisa meio sem regras. E eu falava: “Gente, mas é assim que o negócio acontece? Pera lá, né?”.
P/2 – Por que? Dá pra descrever uma situação?
R – A ausência de profissionais na época. Na verdade era a comunidade presente ali, eram poucas pessoas formadas, assumindo coordenação e tal. E a comunidade muito presente, muito forte, com orientação, sem dúvida nenhuma, mas em algumas ações que requer uma calma maior. Um trabalho com família, eu adoro, sou adepta do protagonismo, acho que esse é o caminho da transformação, mas tem alguns aspectos que não dá pra você e não é qualquer pessoa que vai entrar nesse contexto. Não é o não-profissional que vai lidar e atuar com essas questões. Eu acho que a mescla disso que dá o resultado e a qualidade do trabalho que a gente tem hoje. Inicialmente me assustou bastante, porque eu falei: “Meu Deus, mas elas fazem tudo? Elas entrevistam a família, visitam a casa, fazem encaminhamento. Mas quem são elas?” “São agentes sociais” “Legal, agente social, mas ele não tem recurso suficiente pra fazer tudo isso”. Tem que ter um limite, até pra preservação dessas pessoas porque a ausência de formação deixava essas pessoas numa situação de fragilidade emocional muito grande. E o envolvimento que nem sempre era favorecedor pra promover uma transformação para aquela pessoa atendida. E aí ficava um monte de gente doente tentando ajudar todo mundo doente (risos). Eu falei: “Pera lá, não é por aí”. E isso me assustou. E foi a nossa entrada e a gente foi organizando a casa.
P/2 – Como estava a Gol de Letra quando você chegou?
R – Ah, era um racha, um pau, porque eu e a Mônica, acho que ela deve ter comentado isso, quando a gente entrou, uma olhou pra outra e fez assim: “Cara, o que é isso? O que nós vamos ter que mexer aqui?”. Porque a saída de outros coordenadores, as pessoas não se olhavam, não se falavam, não se acertavam, esses outros coordenadores que foram saindo.
P/2 – Dessas duas áreas?
R – Dessas duas áreas. E as pessoas dos escalões mais abaixo também não se olhava, não se falavam e não se toleravam. Eu falava: “Meu Deus, o que é isso?”. E os ranços muito grandes que foram ficando.
P/2 – O que era esse ranço? Você lembra um pouco?
R – Acho que divergência filosófica mesmo, de atuação. Tem que ser mais pedagógico e menos social, tem que ser mais social e menos pedagógico. Umas coisas, que na verdade tem que estar afinado. Mas que as pessoas: “Eu sou da turma do pedagógico” “Eu sou da turma do social”. Então era um racha lascado.
P/2 – Mas você lembra um pouco desse pensamento filosófico tão diferente das duas, o que era mais social, o que era mais…?
R – Primeiro que a gente não ficava junto. Eu ficava no prédio no fundo onde vocês atuam, ali, lado oposto, naquela sala lá perto do banheiro. E tinha feito uma super sala pro social, eu falava assim: “Gente, aqui parece uma sala de uma empresa multinacional”. Tinha geladeira, xicarazinha, umas coisas... Imagina, eu vim de ONG, cara. Eu trabalho de tênis. “Você quer um chá agora? Você quer uma bolacha?” Eu falei: “Gente, eu gosto de ir lá e pegar. Ir no banheiro sozinha, ninguém precisa fazer nada por mim”. Uma coisa de uma estrutura, uma coisa louca. E o pedagógico lá do outro lado.
P/2 – De certa forma tinha uma priorização do social, é isso?
R – É, o social acabou tendo alguns apoios maiores, da Johnson, e o pedagógico ainda não. Porque tinha cabeças diferentes também pensando. Umas coisas meio malucas. E a nossa grande tarefa, a gente participou de umas três, quatro reuniões lá: “Vocês tem que aproximar essas áreas” “As áreas tem que estar afinadas”. Eu acho que eu fiquei uma tarde inteira ouvindo isso, eu falei: “Meu Deus do céu, o que será que acontece nesse lugar?”. E aí, é claro, quando você começa a entrar, ouvir e perceber, você vai identificando, vai configurando. E eu sentei e falei: “Mônica” “Olga, fala” “Meu, vamos sentar juntos cara, porque é isso que vai fazer. Vamos quebrar mesmo, porque o negócio está ruim, vamos jogar esse modelo fora de vez. Porque se a gente ficar eu fico lá e você fica aqui, não vamos conseguir. Já que a gente é corajosa e pau pra qualquer negócio, vamos embora” “Você topa?” “Opa, acabamos de entrar, o povo não tem ainda muito medo da gente, ou não tem muito ódio da gente. Vamos ver o que acontece”. E era um pedido e tinha que acontecer. Foi quando eu desmontei a sala maravilhosa que todo mundo tinha pintado, arrumado e tinha as xicarazinhas e o frigobar, aquela coisa (risos). E botamos tudo abaixo e fomos lá pro outro lado. Nossa, nunca esqueço, a gente caminhando por aqueles corredores e levando as cadeiras, coisa do prático. E eu ali, porque eu pego na vassoura, passo pano, porque aí o cara tem que ver: “Não, ela tá com a gente”. E eu faço mesmo porque eu gosto de fazer, não só porque o cara tem que ver.
P/2 – Desde a Praia Grande...
R – Desde a Praia Grande, a cama que não existia, aí aparece e vai embora. E a gente carregando as coisas e os agentes sociais bicudos. Porque eu peguei uma turma de outra pessoa, não era a minha.
P/2 – Que não queria se misturar...
R – Que não queria se misturar, que se sentia numa condição diferente. E eu fui quebrando, quebrando essas questões. E cuidando, mas quebrando: “Ó gente, é importante, vocês viram que o Raí fez esse pedido, o Sóstenes também. Então a gente vai ter que entrar nessa nova forma”.
P/3 – Isso foi em 2002?
R – Dois mil e dois.
P/3 – E nessa época já tinha o Virando o Jogo, o Jogo Aberto, o que é o Jogo Aberto?
R – Tinha o Virando o Jogo, tinha um Cara da Vila, os jovens, mas não era o FAC, era uma coisa que estava mais ou menos...
P/2 – É o que virou o livro?
R – Isso, o livro já rolava, tinha. E tinha os jovens que estavam ali e ficaram todos comigo, porque eram do social e o social acreditava nisso. E os jovens muito legais, protagônicos, mas também com excessos. Tinha os excessos, umas coisas que eu falava: “Gente, o que é isso? Menos, né meninos?”. E a gente foi calibrando um pouco essa nova situação e fui dando um pouco a minha cara, um pouco essa coisa de menos glamour e mais real. “Vamos sair do glamour e entrar na realidade”. E nunca esqueço, as agentes sociais, imagina, tinha conseguido uma sala maravilhosa, linda de morrer, com frigobar e com xicarazinhas e essa louca não gosta disso? De conforto? Aí eu fui tentar mostrar: “Não é isso, se a gente quer fazer uma coisa que se configure pedagógica e social a gente tem que estar muito perto, porque eu preciso das informações da Mônica, assim como ela precisa das minhas, e não dá pra gente estar em dois prédios diferentes”. E fomos construindo. Mas bicudas, carregando as mesas, os negócios, assim. E a gente foi se ajeitando naquele espaço que a gente tá hoje. São aquelas duas salas, que tinha uma parede e a gente foi se ajeitando. Mas ficamos ali e aí a coisa explodiu. Porque os dados das famílias chegavam mais fácil pros educadores, porque as crianças chegam cuspindo, chutando, mandando todo mundo pra tudo quanto é lugar. “Calma, vamos ler o prontuário?” “Ai, Olga, caramba. Pô, o cara trabalha, a mãe é assim, o pai é assado” “Tem uma história por trás que a gente tem que respeitar. Então vamos trazer essa mãe pra ver se ela consegue entender que esse espaço é um espaço de proteção”. E as coisas foram aparecendo. Eu digo que a gente pegou aquilo muito sem recheio de trabalho de fato. E a gente recheou aquilo. Isso eu falo na boa, Mônica e Olga rechearam as empadas. Muito corajosas, tinha hora que: “Agora vão arrancar o nosso couro” “Ixi, agora a gente vai pro caldeirão de sal” (risos). “Ixi, saindo daqui vamos jogar umas arrudas pra dar uma...”. E foi assim, umas coisas de embates violentos.
P/3 – E você lembra de implementações práticas que vocês propuseram, além dessa junção que foi super simbólica e...
R – Só essa junção já foi maluca, né? A questão da saída das entrevistas sociais e das visitas domiciliares que eram feitas pelas agentes para as estagiárias, também foi outro parto. Porque eu falei: “Então, acredito no protagonismo, sou fiel a isso, é o caminho da transformação. Mas tem coisas que não dá para você atribuir ao cara que faz o pedicuro, que cuida da unha, em uma cirurgia de pescoço e cabeça”. Aí o pessoal fazia...
P/3 – As estagiárias de Serviço Social?
R – Isso, foi um ganho. Também tive que brigar muito pra ter essa turma do meu lado porque aí, pô, se os caras estão falando que está tudo desorganizado, que eu preciso trabalhar essa família, mas com quem? Eu preciso de alguém que tenha um diálogo técnico comigo. Porque as agentes entendem disso, mas tem coisas que não dá pra dialogar. E foi quando entraram as estagiárias. Aí eu tive uma população mais acadêmica que dava pra fazer as visitas com um protocolo, com toda uma configuração de dados para que eu pudesse trabalhar com os educadores. E tirar as visitas e as entrevistas das agentes foi outro parto, porque eram delas. Como assim? E você tem que fazer todo um trabalho: “É seu, mas vamos entender o que é visita?”. E dava aula sobre o serviço social. “Ah, é verdade, às vezes eu me sinto tão triste. Eu fico tão triste” “Então, por que? Porque você não tem estrutura profissional pra poder fazer esse trabalho. Ela vai fazer isso com mais tranquilidade”.
E tinha muito disso, as pessoas adoecendo. Porque quando eu entrei, eu comecei a entrar a fundo nas questões dos problemas, porque os educadores vinham com os cabelos em pé do menino que baixava a calça, pegava na bunda da menina ou atacava a professora, ou dava porrada. “Mas como isso acontece? Então, vamos entender que história é essa. Mas onde está a história?” “Não tem” “Então temos que ter um prontuário, cara. Como é que você começa qualquer coisa se você não tem um primeiro passo da história do menino?” Ou tem uma folhinha muito que malemá. Aí fui tirando o agente social dessa história que não é dele, tranquilo, e foi entrando a estagiária, que é dela, porque ela está se formando pra segurar esse rojão, não dá pra ser uma outra pessoa.
P/3 – E o agente ficou com o quê? (risos).
R – A gente construiu um projeto de formação para o agente social, que já existia mas nada muito organizado, eram coisas que precisavam ser passadas pra eles: Questões de saúde, cidadania, vida comunitária, de família. Mas, para ele ter um conteúdo, uma bagagem, e, na verdade, ele fazer o processo de ponte, mesmo. Porque eu vejo o agente social como uma ponte pra comunidade, é o cara que circula com facilidade, mas ele tem o olho diferente, porque eu preparo ele pra ver aquilo de uma maneira diferenciada. De repente, dar aquela primeira informação de uma maneira mais fácil, com uma chegada mais fácil para aquela família. Essa preparação começou a aparecer. E tinha que ter um começo, meio e fim do agente lá, que também não tinha. As pessoas iam ficando... Tinha que ter critérios de entrada e de saída, a gente foi configurando tudo isso, tinha que ter regras também, senão a pessoa: “Ah, estou aqui mesmo, é tão bom ficar aqui. Então vou ficar mais três anos” “Não, você tem que dar oportunidade para mais outras pessoas.
P/3 – Eles ganhavam?
R – Sim, todos sempre com bolsa. “Você não pode ficar aqui eternamente, isso não é um emprego. Isso não é um trabalho”. E a gente foi dando regras pras coisas. E o agente teve toda uma formação. E acompanhava a estagiária em uma visita. Ele não tinha o papel de entrar no espaço da pessoa e fazer as perguntas. E saber o que perguntar. Ele acompanhava. Aí, ele tem um papel especial de identificar questões muito sérias na comunidade e fazer essa chegada pra gente. Eles começaram a entrar mais nas ações de mobilização. A gente observou que tinha muitos casos de alcoolismo, de diabetes. Então, vamos chamar parceiros para fazer ações educativas. Aí o agente consegue entrar com propriedade, tranquilidade e proteção pra fazer aquilo, mas não no atendimento direto que exige, no mínimo, quatro anos de formação pra começar a fazer. Ele foi entrando em um novo papel, em uma importância maravilhosa e grande, mas com respeito, propriedade e mais seriedade. Porque antes era uma coisa meio faz tudo, não. E as pessoas também, os agentes sociais começaram a dar retorno disso, porque estavam se sentindo mais acolhidos, com mais tranquilidade pra fazer esse trabalho. E a gente acabou fazendo aquele espaço, que até hoje acaba sendo isso também, um espaço de experimentações dos papéis profissionais. E você vê um agente social despontando pra ser um assistente social, um pedagogo, entrando na faculdade pra ser isso. E isso é bacana, porque o cara constrói o caminho dele. Eu ajudo, mas ele constrói, porque ele tem o poder de fazer aquilo. Porque o poder é teu, então vai que você tem condições de fazer. Com cuidado, com proteção e com garantias, senão...
P/2 – Essa parece ser a filosofia da Gol de Letra pra todo mundo, né?
R – Todos, porque todos os programas tem essa proposta. É que eu trabalho com esse recorte dos adultos. E o Virando o Jogo tem os jovens em formação, no caso a Angela tem os monitores de esportes. Todo mundo tem um pouco esse olhar, é que cada um trabalha com uma parcela específica.
P/1 – E como se dá a seleção dos agentes sociais?
R – Isso também foi um ganho. Antes a gente tinha uma coisa assim, era uma história meio complicada. Um grupo eram “As mulheres em ação”, que meio que virava agente social depois, era uma coisa meio estranha. E a gente começou a criar um processo de seleção, a gente começou a criar o instrumental de divulgação: “Ah, se você quer ser agente social’ “O que faz agente social?”. E contava um pouquinho no papel. E ela vinha, fazia uma inscriçãozinha, porque ela achava que tinha o perfil para aquilo. E a gente marcava um dia e a hora, tudo certinho, elas participavam, faziam a seleção e tal. E identificando novas pessoas para entrar nesse processo. Um outro ganho que a área teve também, porque veio uma Assistente de Coordenação que ficou focava só com a condução desse grupo. Que foi, inicialmente a Valéria, Psicóloga, agora coordena da área de jovens. E hoje eu tenho a Roberta, é Psicóloga também, e que assume esse papel. Ela é uma educadora formadora desse grupo. Ela tem um papel de assistente, uma função, mas ela se preocupa em formar, em ter um projeto pra elas, ter um prazo. Ela controla esse prazo, ela sabe as regras de entrada e saída, como é o esquema todo. A gente configurou com uma pessoa, um ganho para a área. Porque antes tudo ficava nas mãos da agente ali, se organizando e fazendo. E o programa social tem muitas frentes de atuação. E todas frentes são externas, não é uma coisa interna. Você trabalha com a família, que é uma grande frente, que não está ali dentro. Você tem essa comunidade para atuar com espaços de formação de mobilização social, de informação, de orientação. É outra frente. Tem a rede, o trabalho de você se manter presente, atuante, troca, a solidariedade. É uma outra frente. Formar pessoas.
P/3 – Esse é o papel da área social, essas frentes?
R – Todas essas frentes são coisas intensas e dentro de uma área que é um externão mesmo, é uma coisa do fora. É difícil, você precisa ter uma equipe que não é só formada por pessoas da comunidade. Você tem que ter técnicos, profissionais pra poder desenvolver. Senão fica muito amador, acho que a intenção não era essa, era tornar profissional.
P/1 – E como a família é envolvida?
R – A questão da entrevista, da visita, já é um trabalho porque é um trabalho identificador das questões de vulnerabilidade e risco. Nesse momento você já faz uma acolhida, que já é um trabalho educativo porque você mostra o que você precisa nessa família, qual o papel de cada um, aquilo que se espera junto a essa criança ou a esse jovem. Os encontros mensais é uma outra forma de trabalhar, uma maneira mais coletiva, você traz questões que você observou na entrevista e você vê que ali também aconteceu, na outra entrevista também, então, isso é um tema que a gente tem que levar para uma reunião porque é algo que está aparecendo muito.
P/3 – Esse encontro mensal é na Gol de Letra?
R – Isso. As reuniões dos pais todo mês, toda última quarta e último sábado, a gente mantém esses encontros. Às vezes, casos que precisam ser feitos mais em pequeno grupo, o acompanhamento e encaminhamento de caso é uma outra maneira de fazer um trabalho, onde você busca a rede de serviços, encaminha e acompanha, vê se a coisa tem uma evolução ou não. Então o trabalho se configura com a família mais nessa esfera. E eu vejo que o trabalho das agentes sociais, ele também é um trabalho com a família. Porque muitas das agentes, ali, são mães dos programas. Então eu tenho um membro da família, adulto e presente, num processo sócio-educativo e é impossível falar que aquilo é só pra aquela pessoa, não dá pra ficar só na esfera do individual. Isso é levado para esse grupo familiar. Se o filho menino está sendo atendido, o jovem no outro programa, e essa mãe é uma agente social, certamente, essa família tem uma questão de apoio, proteção e de troca muito maior, e tem uma influência e uma mudança de atitude e de transformação. A gente observa muito agente social que é mãe de filhos nos programas, dando um salto qualitativo mesmo, que parou de estudar, voltou a estudar. E escolhe o papel profissional lá dentro. Pena que acabe saindo tudo só Assistente Social, Pedagoga e Psicóloga (risos). Tinha que ter outros profissionais ali, porque acaba sendo um espaço de experimentação pra elas, identificação de novos papéis. A mãe, mas a mãe que pode ser provedora também, que pode ser profissional, que pode ter toda uma transformação e mudança ali significativa. Alguns casos de violência doméstica. Já tive agentes sociais que apanhavam, os maridos muito agressivos, muito violentos, e que o processo dentro do grupo, as atividades e a formação toda teve, conseguiu romper esse processo. Então promoveu uma separação, conseguiu dar um salto e foi buscar o mercado de trabalho. Não é uma pessoa que se submete a esse tipo de agressão. É um espaço muito rico, não dá pra falar. O que é esse protagonismo? O protagonismo é tudo isso, essa mudança pessoal, familiar, na comunidade. É essa grande transformação, e que esbarra na gente também, porque é bárbaro ver aquilo acontecer. E não é você que faz aquilo acontecer, acho que é muito legal isso. Senão você começa a se empoderar da transformação da vida das pessoas. Não, você possibilita. O espaço é de todo mundo ali. A sua contribuição, a do outro. Cada um dá um pedaço, e aquela pessoa se fortalece para poder quebrar, ressignificar. Isso é bárbaro.
P/1 – Tem algum caso que te marcou?
R – Tem um caso que me marcou. Tem vários casos (risos). Tem um caso que vocês vão entrevistar que é a Elaine, e ela vai contar tudo isso.
P/1 – Ela já foi entrevistada.
R – Foi já?
P/1 – Foi.
R – Essa história é uma história que marcou pra caramba, e ela faz parte da minha monografia, não posso falar, já falei, porque é sigilo, mas enfim.
P/1 – Mas conta um pouquinho.
R – Elaine é esse caso dessa mulher de sete filhos, agente social. Novíssima.
P/2 – Ela estava no workshop?
R – Ela não estava no workshop, mas é uma das pessoas que vocês vão entrevistar.
P/2 – É que às vezes muda os entrevistadores.
P/1 – A gente entrevistou ela sábado, acho.
R – Tá. Bem magrinha, né? Uma graça. E ela entrou pra ser agente, a mãe de uns meninos lá do VJ. Uma pessoa muito tímida, acanhada, amedrontada. Uma vida muito miserável mesmo, o marido em uma situação de alcoolismo e de agressão com ela altíssima. Situações muito sérias. E ela foi construindo esse processo, individualmente ali. Ela decidiu. E ninguém precisou chegar: “Elaine, mais uma vez com olho roxo”. Porque essas coisas, também, são muito ruins. Não, ela quebrou todo esse processo, ela promoveu uma separação, ela quebrou essa relação. Ela mantém uma relação com esse ex-companheiro que cuida também das crianças, ajuda na pensão, mas não mora mais com ela. Se envolveu em um programa de habitação comunitária, é membro lá. Ajuda na construção do próprio apartamento. Está meio parado ultimamente, mas é membro de um grupo desse. E o fato dela ter ficado na Fundação favoreceu o currículo dela de tal maneira, que hoje ela é educadora social de um abrigo. Então, essa pessoa entrou na Assistência Social, entrou dentro desse círculo, dessa roda. Não ficou numa esfera de participação: “Ah, ela é uma pessoa da comunidade e você dá uma ajudinha e ela faz alguma coisa no período e depois vai trabalhar no supermercado”. Não menosprezando, porque legal trabalhar no supermercado, mas ela deu um super salto: Ela entrou no mercado de trabalho, ela foi valorizada pelo que a gente organizou e não tem uma relação de poder, de submissão: “A Olga sabe tudo e a Elaine não sabe nada, olha que bacana”. Sabe aquela coisa da solidariedade pura, ou só da benevolência. Sabe aquela coisa que as pessoas fazem. Não, foi ela quem conseguiu. Ela buscou essa vaga, ela foi atrás, conseguiu e está lá. Ela sustenta a família, tem apoio do ex-marido que cumpre o papel dele, mas não vive mais com ele. E no meu trabalho ela tem uma fala que é de tremer. A gente perguntou: “E como é que foi ter todos esses filhos?” “Parece que eu tive um período que eu fiquei dormindo. Eu não considero esse período na minha vida, parece que eu não existi”. Então, do primeiro ao último filho, a questão das gestações seguidas e próximas. “Parece que eu não existi. Foi um buraco mesmo”. E ela retoma a vida dela. Nossa, quando ela falou aquilo, nossa, paramos, sabe? “E agora eu retomo a minha vida. Eu nem sei, nem lembro como tive tantos filhos, como as coisas foram acontecendo”. A coisa do automático, do não pensar, de estar numa situação de fora da realidade. Coisa louca. E ela consegue ressignificar. Poxa, isso é bárbaro. E ninguém fez por ela, ela fez, ela soube aproveitar aquela oportunidade, ela entrou na seleção, ela permaneceu no curso, ela contribuiu, e ela deu um salto. Esse é um caso que me marca e que entrou na monografia de conclusão do trabalho de família. É um caso forte. A gente tem outros casos assim que deixam a gente extremamente abalada também. A gente tem um menino, que ainda é aluno. A mãe faleceu por uso pesado de drogas, o pai faleceu com um tiro na cabeça por uma questão de tráfico e foram morar com a avó. A avó muito velhinha e alcoolista, não cuidava o suficiente. Então tinha toda uma questão de negligência. E a gente ali, trabalhando todo esse contexto. O menino com problemas sérios de experiência de vivência de rua. E daí, traz de volta o moleque, não desliga o moleque, tenta por outros caminhos, e chama a vó e a vó vinha alcoolizada. E como é que você conversa e estabelece? E chama parentes e a coisa não vai dando. Chegou num ponto que a negligência estava tamanha que eu falei: “Não, a gente tem que ir para uma coisa maior porque os meninos estão vivendo situações que... Gente. Já foi embora de casa e voltou. E aí?”. A gente acionou o fórum, essa família foi denunciada, o conselho tutelar. Eu denunciei, e eu aviso a pessoa que eu estou denunciando, porque estou: “Fui eu”. Porque é uma questão que vai invadir a casa, mas não estou conseguindo de outra maneira. Tem que preservar. E o fórum foi acionado e eles vieram ver, fazer uma visita, acompanhar o caso e eu sei que nada foi feito. O que é uma coisa ainda muito presente no poder público que você fala: “Então? Você tem esses recursos, pedem para você acionar, mas as coisas e aí?”.
P/3 – Eles retirariam as crianças da tutela da vó, né?
R – É, era essa uma situação, alguém precisava fazer alguma coisa. A gente já estava fazendo, mas mais uma coisa precisa ser feita. Foi quando a gente pegou de novo na assistente social de lá e a mulher falou: “Ai Olga, eu sei, entendo, mas sabe, cabeça de juiz é uma coisa difícil”. Mas o cara avaliou que o menino já tem toda a cobertura: Ele tá na escola, tá com vocês, tá com a família “Então, mas se você não levantar a sua bunda da cadeira e vir aqui entender que condição é essa que ele tá na família, você não vai entender”. E eu comecei a contar as coisas que, embora ele tenha tudo isso, a precariedade de tudo isso não tá favorecendo. Aí ela se indignou e veio. Eu falo que as pessoas tem umas bundonas grandes. Ninguém sai pra ir no lugar. E ela deparou com uma situação séria e ela reprocurou esse juiz, foi lá, novamente. O cara reviu a posição dele e eles foram tirados da família. Isso, ao mesmo tempo que te alivia porque você está fazendo o seu papel, ao mesmo tempo, te arrebenta, porque você fala: “Cara, não tinha outro caminho?” “Não, não tinha um outro caminho”. E você fica com culpa, com um baita medo, mas que era algo necessário, e que nesse caso até caiu bem, porque eles ficaram um ano e pouco dentro do abrigo, o irmão e ele. A família promovia as visitas. E esse processo favoreceu uma revisão dentro da família de novos cuidadores, que foi o legal, que aí se identificaram tios e ele saiu da condição da avó e foi pra condição desses tios. E hoje o menino continua com a gente, numa condição bem melhor, ele ouve e participa bem melhor, e tá numa família mais cuidadora.
P/2 – Quando eles ficaram fora da família, eles continuaram frequentando o lugar?
R – Não, porque quando afasta da família, eles colocam em um lugar... A família também fica numa observação, então não pode ser facilitador de uma fuga ou outra situação, porque a família perde a condição de cuidado. Ela pode visitar, mas ela não pode ter uma proximidade. Ele foi pra uma outra escola, enfim, mas ele não perdeu o vínculo. A gente organizava, de alguma maneira, algumas visitas dos educadores e alguns amiguinhos ao abrigo, eles mantiveram, de alguma maneira, o contato. E eles não perderam a vaga. Eu falei: “Não, a vaga é deles. Claro, vai colocar outras pessoas, mas a vaga é deles. A hora que puder voltar, vai voltar”. E, dito e feito, quando eles saíram, já estavam novamente inseridos, numa maneira muito diferente, muito mais tranquila, numa família mais cuidadora. São histórias que não tem como.
P/3 – De uma forma geral, desde que você entrou, são histórias específicas, mas o que você sente de transformação dessa atuação de recheamento de espadas, como é isso?
R – Uma atuação mais amadora, para uma atuação mais profissional, com foco na política, e eu sou muito rígida pra isso. Se existe uma política que embasa, vamos lá. Não é só colocar no texto o que embasa o trabalho, é fazer de fato e mostrar que faz.
P/3 – Mas como é o impacto na comunidade, de uma forma geral?
R – Às vezes, como a gente tem no Brasil a questão da tutela, escravidão (risos), a gente tem esse hábito. O assistencialismo. Tudo isso pra nós nos parece mais bacana, num olhar menos rigoroso, menos técnico, menos profissional. E como a construção inicial com essa comunidade foi também pautada um pouco nessa prática. Porque na hora que você chega, você quer chegar e quer que dê certo, um pouco como os meninos que eu botei tudo pra dentro, o povo mais difícil. “Olga, puxa, você pegou os piores?”. Mas é uma estratégia, mas se você não faz um trabalho de revisão disso e vai dando um contexto diferente no processo, você só mantém uma prática pautada no assistencialismo, na tutela e na garantia de coisas que não dá pra você garantir. De início, quando a gente começou a colocar mais regras, ordem e contextos e seguir as coisas de uma maneira mais profissional e mais pautada, a comunidade ficou um pouco, alguns casos, incomodada. Porque tinha uma coisa assim, inicial: “Ah, então se eu ponho os meus filhos, os outros filhos que eu for tendo, todos têm direito a entrar”. Eu falei: “Jura? A menina não vai parar mais de ter filho, né?”. E ela: “Ah?”. Não existe isso gente, que conversa maluca é essa. Todos os filhos que ela tiver, aquele que está lá garante a vaga do outro? Não, não é isso. A gente também viu, no início, que eram só as mesmas famílias que ficavam ali. As famílias muito que ajudavam as que estavam ali. As demais não tinham oportunidade. Eu falei: “Não, é pra todos, não é pra alguns”. Essas questões de quebrar paradigma, jeito, tutela, provoca, mas eu estou embasada, eu estou abrindo o leque, possibilitando pra mais pessoas... Então são outras situações. Daí você tem argumentos junto ao poder público local pra pedir mais coisas, pra mostrar resultado. É uma outra situação.
P/2 – Com o tempo, você acha que a comunidade foi entendendo melhor?
R – Ah sim. Inicialmente sempre tem um estresse, as pessoas ficam mais nervosas, mas depois a coisa vai se organizando. Os próprios agentes sociais são também agentes de mudança. Porque são pessoas que estão com a gente e vão acreditando nesse novo jeito de fazer, e vão vendo que não, que isso que é o certo, e não o que fazia. “Imagina, isso que é legal, aquilo não é”. Então ela vai fazer todo um trabalho de sensibilização de mudança de cultura.
P/3 – E dá pra perceber essa mudança de uma forma grande, olhando pra comunidade, porque a Gol já está há dez anos lá. O que você acha?
R – Eu acho que a gente tem que sempre focar, não dá pra pensar numa coisa bem grandona porque é difícil. Mudança e transformação social não se faz só de um lado, você tem que ter todos os atores muito amarrados e envolvidos com você, e interessados por essa mudança. Não dá para falar: “Ah, a gente diminuiu o tráfico de droga local”. Não. “Aumentou? Então foi porque a Fundação veio pra cá, facilitou e aumentou?” “Não! O poder público, a polícia, se ausentaram”. Então são outras questões que precisam ser observadas. Você tem uma escola que cada vez mais se deteriora, que se perde, que não tem papel. E a gente valoriza o papel da escola, mas a escola não se valoriza. Então é difícil também, fazer o teu e fazer o do outro. Então tem questões que assim... Uma vez uma jornalista ligou lá querendo umas informações, há um bom tempo já: “Ah, mas como foi essa mudança? Me diga do que...”. Eu falei: “As mudanças, às vezes acontecem em esferas diferentes. Não dá pra falar que foi de x para dois x. Mas precisa de outras pessoas envolvidas. Você precisa da Segurança Pública presente, não omissa e não envolvida na situação (risos). Você precisa de uma escola mais participativa, mais acolhedora, o que nem sempre você tem. É excludente, é punitiva. Quantas vezes eu atendi telefone de diretora de escola pedindo a cabeça de aluno? “Se ele não é um bom aluno aqui, ele não pode ficar na Fundação Gol de Letra!” “Onde foi que aconteceu o problema, senhora?” “Na escola” “Então não posso, não é assim”. E é difícil isso, de você configurar. Se você tem uma saúde que tá cada vez mais precária, como poder promover uma mudança significativa? O que eu observo, entre os meninos, é que você amplia a possibilidade de mudança. As famílias vem às reuniões, antigamente a gente controlava quem vinha, ficava ligando, falando, até de uma maneira de trazer. As pessoas vem. As pessoas vem nas ações, se continua tendo procura pelo grupo das agentes sociais. Pra mim, isso já é um resultado de avaliação positiva. Se ela vem sem eu precisar exigir é porque é bom, né? Porque ela se sente bem. Se continua tendo candidatos pra agente social, é porque a formação é significativa. Porque alguém falou pra ela que depois que ela ficou lá dois anos, ela teve mais possibilidade de arrumar emprego. Isso é bom, é uma maneira de avaliar. Se o menino continua os sete anos ali dentro, isso é bárbaro. O cara consegue perceber que é por um longo tempo, não é pra um ano só de presença. Se tem meninos que dão certo como mediadores e depois eles conseguem ir para uma universidade, e vão para um emprego bacana, é uma resposta. Mas não dá. A gente tem que ser muito honesto, a gente faz um pedaço, mas se os outros não fizerem a sua parte... E o que a gente vê? Um poder público cada vez mais fora. E aí eu não sei o que a gente tem que fazer.
P/3 – A Gol de Letra tem uma relação com esses outros atores? Como funciona esse elo com a Saúde?
R – Então, a Rede é uma forma de formar, firmar e estabelecer esse elo. As ações do Jogo Aberto nas escolas é uma maneira de quebrar essa resistência dentro da escola, uma forma diferente de educar. São maneiras. Algumas ações que são feitas em conjunto nas escolas. Agora vai ter uma feira, uma atividade, a escola veio nos procurar, ofereceu espaço. Os meninos vão fazer uma atividade, o pessoal da sexualidade vai à escola pra dividir. São maneiras, e que dependem muito do momento econômico, do momento político, da administração pública presente. É tudo muito mais ou menos intenso, mais ou menos profissional, mais ou menos de resultados. É visível, em períodos político-partidários, de administração pública, quando as coisas acontecem com mais ou menos facilidade. Isso é fato. A Justiça é difícil, é um ambiente igual à escola pra trabalhar: Arcaico, antiquado, cheio de hierarquias. Você tem que falar lá pra pessoa: “Menina, saia daí e venha aqui ver o negócio, porque o negócio é feio!”. Porque você fala: “Tá tudo aí, o recurso tá aí, eu to acionando e o negócio não resolve”. E você passa ser a chata, você é a chata, você é a mulher que fica ligando, enfim.
P/1 – E dentro dessa trajetória, o que você tem notado de mudanças dentro da Gol de Letra?
R – Eu acho que essa questão do mais amador para o mais profissional, acho que é um fator. Significativo o momento da avaliação para a gente, porque nós, como profissionais, nós também temos vaidades, nós precisamos de devolutivas. Então: “Será que tudo o que eu estou fazendo é tudo loucura minha ou eu estou atingindo mesmo o negócio?”. E quando a pessoa chega, bate o negócio e diz: “Parabéns! Nunca vi um negócio como esse”. Você fala: “Eba, você é muito bom, você é dez”. Então pra gente fortaleceu muito e deu um aspecto de cultura de avaliação, que é algo não presente nos espaços, instituições, escola, em lugar algum. Brasileiro, de maneira geral, não avalia. Faz, faz, faz e muito por cima. Eu acho que isso agregou e foi um fator fundamental pra Fundação. A prática diária, essa coisa do refazer, fazer de novo, junto do tentar, com a avaliação, você vai ressignificando, reorganizando. Acho que isso também é um outro ponto favorável de mudança. E essa estrutura que a gente foi trazendo pra dentro da organização. Uma coisa é você falar: “Eu acredito na prática de transformação comunitária”. Mas, de fato, como isso é feito? A gente sabe por isso em prática? É aquela coisa do livro, da teoria, você compra e fala: “Ai que bacana isso, mas como é que faz? Qual é a receita?”. A gente tem a receita do bolo, com exemplos bons e não bons. Porque a gente erra pra caramba também. A gente acha que o caminho é esse e quando você vê, você fala: “Tudo errado, vamos rever”. Mas que bacana, porque a turma tá junta pra rever. Não tem aquela coisa do dedo na cara: “Tá vendo? Eu te disse!” “Opa, vamos voltar. Não deu certo, vamos lá, reorganizar”. É bacana isso, acho que é a coisa da receita. Esses dez anos aí tem uma receita boa. Sabe aquela coisa do bolo que você poe no forno e fala: “Olha, não vai abrir o forno porque murcha tudo”. Você diz: “Imagina, papo furado”, vai lá, abre o forno e o bolo faz vuuuu. “Ah, mas o cara já tinha me falado”. De fato. A coisa da teoria e da prática ali é presente. Descritinha no passo a passo. Hoje está batendo na questão da disseminação, que é esse jeito de fazer pra outras pessoas, outros atores que estão a fim, que acham bacana, e vamos fazer juntos essa história, que é difícil, mas que agora a gente tá botando num modelo, uma maneira de passar para as pessoas, eu acho que é uma fase nova e boa também.
P/3 – Isso é a multiplicação? Um dos pilares.
R – É uma maneira de multiplicar, porque a multiplicação acontece quando você tem um agente social que vai te representar lá. É a fala da política lá na ponta, na viela. E a multiplicação também acontece dessa maneira, que é o modelinho que você pode dividir com alguém pra poder fazer algo bacana, que tem recheio, entendeu?
P/3 – O que essa atividade mudou na sua vida?
R – Tudo isso mudou na minha vida, né?
P/3 – É, isso tudo. Quem era a Olga dez anos atrás, quem é a Olga hoje? Dez anos, não, sete anos. 2002.
R – Como é que mudou? Mudou pra caramba. É engraçado, parece que eu sou um objeto da história. Essa coisa de experimentar é muito legal. Vivenciei coisas numa política mais antiga, que era o jeito que dava pra fazer. E, mesmo num jeito de fazer antigo, a minha história pessoal e familiar me favoreceu a buscar coisas novas, como me favorece hoje na questão da disseminação. O fato de eu ter falado: “Opa, deixa comigo que eu quero”. É meu, essa é a minha marca, o meu jeito de encarar as coisas e de assumir novidades e mudanças. E isso foi muito legal porque eu precisava mudar, precisava sair daquele jeito porque eu já tava vendo que isso não serve mais, esse jeito distante, a comunidade indo lá. A gente tem que estar no lugar. E a Fundação concretizou isso. E eu fui observando, e é muito interessante isso, à medida que eu fui entrando e construindo coisas na Fundação, e olhando a política que já tava lá construída e ainda não tão na ponta, e tão presente: “Cara, eu sou um objeto de fazer essa história toda, alguém pensou, pessoas muito distantes de mim, mas que eu fui fazendo ali na ponta. Por que? Porque eu vi que ali a história é legal. A política vai realmente fazer a transformação, a mudança”. E eu consegui realizar. Eu me vejo um objeto dessa transformação também. Uma pessoa propulsora, transformadora, encorajadora, e corajosa ao mesmo tempo, pra assumir, e acreditar nas pessoas. Ninguém é mais que ninguém, todo mundo é muito igual, e merece coisas iguais. Senão não vai, a pessoa não encara um troço desse. Então [o que] mudou em mim é isso, experimentar o que está escrito no papel, lá na lei, e fazer com que a coisa aconteça de fato. E falar. Quando eu falo, eu falo com propriedade, eu faço isso acontecer mesmo. Eu boto esse troço pra rodar. Não sozinha, mas eu consigo fazer a leitura. E isso é muito legal, é transpor, é ir além do negócio, isso é muito bacana.
P/1 – Se você pudesse traduzir a Gol de Letra em algumas palavras, o que você falaria?
R – Um espaço de transformação e empoderamento de pessoas e coisas. Acho que a Fundação é isso.
P/1 – Pra finalizar, na sua opinião, qual é a importância da Gol de Letra fazer esse projeto de Memória?
R – Eu acho que tem a questão do marco dos dez anos, acho que isso é importante. Eu acho que esse projeto vai mostrar para as pessoas, de uma maneira formal, vai ter um produto pra mostrar pras pessoas, esse trabalho que a gente faz, esse recheio, essa receita, de alguma maneira. E eu espero muito, assim. Que nem essa coisa da avaliação marcou muito pra gente, né? Ela vai estar presente também, é uma maneira de avaliar, que isso apareça. E apareça pra ajudar mais pessoas, eu acho que ele tem que ser também um objeto de transformação, ele não é só um objeto de demonstração. Não é só isso. Ele tem que ser um objeto de transformação também, de outras e outras pessoas. Mobilizador, estimulador, fomentador de coisas, porque eu acho que é muito a cara da Fundação, ali parece um grande caldeirão. Aí derruba: “Cai uma cenoura, cai uma batata”, alguma coisa assim. E é um espaço de transformação. Que esse material seja isso, esse veículo instigador, cutucador de pessoas, que estimule pra fazer, e não só uma coisa pra mostrar, porque a gente não é só mostrar, a gente é fazer. A gente é botar o troço pra acontecer, pra transformar. Acho que é isso, eu espero isso do material.
P/1 – E o que você achou de ter dado esse depoimento?
R – A-do-rei. Amei gente. Isso é bárbaro. Vou mandar um monte de gente pra cá (risos). Porque... Não é? Ele tava me contando, tem essa coisas das pessoas virem, contarem as histórias, não sei como é que funciona, mas é bárbaro. E é bárbaro, porque você divide, você conta de novo, como a gente tava falando. Você revê de novo, você revive de novo, você aprende de novo com essa história, mais pessoas ficam mais estimuladas e sabendo, e faz parte de um contexto maior por causa da Fundação. E é extremamente acolhedor, tranquilo, respeitador, me senti respeitada, em nenhum momento me senti invadida, mal. E bacana demais, muito gostoso, nossa, dez, dez, adorei! (risos).
P/1 – É isso aí!
R – Que bom!
P/1 – Brigadão.
P/3 – Muito obrigada!
R – Obrigada vocês!
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