Projeto Memória da Convenção da Diversidade Biológica e Protocolo de Cartagena e da Convenção sobre a Mudança do Clima e Protocolo de Kyoto
Depoimento de Luiz Gylvan Meira Filha
Entrevistado por Stela Tredice e Carolina Ruy
São Paulo, 25 de maio de 2006
Realização Instituto Museu da Pessoa
Entrevista número BIO_HV025
Revisado por Leonardo Sousa
P1 – Então, a gente vai começar pela sua identificação. Qual que é o seu nome completo?
R – É Luiz Gylvan Meira Filho.
P1 – E qual que é a sua data de nascimento e local?
R – 2 de abril de 1942, em Olinda, Pernambuco.
P1 – Qual que é o nome de seus pais?
R – Meu pai, Luiz Gylvan Meira, o mesmo que eu. Minha mãe, Clélia Edler Meira.
P1 – E qual que era, ou é, a atividade profissional deles?
R – Meu pai era militar. Os dois já faleceram. Meu pai era oficial do exército e, por causa disso, transferido de vez em quando, eu me criei um pouco espalhado aí pelo Brasil.
P1 – E qual que é a origem do seu nome, esse nome Meira?
R – A família Meira – na realidade, Meira de Vasconcelos – é uma família do interior da Paraíba, de Patos, na Paraíba. A família de minha mãe, a família Edler, é do Rio Grande do Sul, de Passo Fundo, um pouco da serra. E é então por causa do trabalho de meu pai, como militar, eu morei, eu me criei em vários lugares, mas eventualmente nos radicamos no Rio Grande do Sul, São Borja, e depois principalmente em Santa Maria.
P1 – E o senhor tem irmãos?
R – Tenho.
P1 – Quantos?
R – Tenho dois, perdi dois, tenho dois: uma irmã que trabalha em São José dos Campos e um irmão que foi oficial do exército também, que mora em Porto Alegre, no Rio Grande.
P1 – Agora, vamos falar um pouco da sua infância. Como que era a rua em que você morava, o bairro... o senhor lembra?
R – O primeiro que eu ainda lembro, em Itu, no interior de São Paulo. Depois me lembro bem de Amaralina, depois Pituba, em Salvador; a casa onde eu morei...
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Depoimento de Luiz Gylvan Meira Filha
Entrevistado por Stela Tredice e Carolina Ruy
São Paulo, 25 de maio de 2006
Realização Instituto Museu da Pessoa
Entrevista número BIO_HV025
Revisado por Leonardo Sousa
P1 – Então, a gente vai começar pela sua identificação. Qual que é o seu nome completo?
R – É Luiz Gylvan Meira Filho.
P1 – E qual que é a sua data de nascimento e local?
R – 2 de abril de 1942, em Olinda, Pernambuco.
P1 – Qual que é o nome de seus pais?
R – Meu pai, Luiz Gylvan Meira, o mesmo que eu. Minha mãe, Clélia Edler Meira.
P1 – E qual que era, ou é, a atividade profissional deles?
R – Meu pai era militar. Os dois já faleceram. Meu pai era oficial do exército e, por causa disso, transferido de vez em quando, eu me criei um pouco espalhado aí pelo Brasil.
P1 – E qual que é a origem do seu nome, esse nome Meira?
R – A família Meira – na realidade, Meira de Vasconcelos – é uma família do interior da Paraíba, de Patos, na Paraíba. A família de minha mãe, a família Edler, é do Rio Grande do Sul, de Passo Fundo, um pouco da serra. E é então por causa do trabalho de meu pai, como militar, eu morei, eu me criei em vários lugares, mas eventualmente nos radicamos no Rio Grande do Sul, São Borja, e depois principalmente em Santa Maria.
P1 – E o senhor tem irmãos?
R – Tenho.
P1 – Quantos?
R – Tenho dois, perdi dois, tenho dois: uma irmã que trabalha em São José dos Campos e um irmão que foi oficial do exército também, que mora em Porto Alegre, no Rio Grande.
P1 – Agora, vamos falar um pouco da sua infância. Como que era a rua em que você morava, o bairro... o senhor lembra?
R – O primeiro que eu ainda lembro, em Itu, no interior de São Paulo. Depois me lembro bem de Amaralina, depois Pituba, em Salvador; a casa onde eu morei em Amaralina ainda existe, fica do lado do Colégio Cupertino de Lacerda. Há uns anos atrás, eu estive em Salvador, fui lá ver a casa, continua no mesmo lugar. Ah... é interessante, vida boa, morar em Salvador perto da praia, depois na Pituba, era só atravessar a rua e enfrentar o Oceano Atlântico e aprender a nadar, né? E é... que mais? São Borja, no Rio Grande do Sul, Santa Maria, sempre em cidades pequenas, exceto Salvador. Eu sempre morei no interior.
P1 – Como que eram as brincadeiras, o cotidiano da sua casa na sua infância?
R – Ah, isso mudava dependendo da cidade, né? Em Salvador, o pessoal tinha muito o costume de... brincadeira de criança, desde aquelas cantigas de roda, ciranda. Na época eu sabia todas, né, todo mundo da minha idade sabia. Depois em São Borja, no Rio Grande do Sul, já com um pouco mais de idade, as brincadeiras mais eram de mocinho, bandido, de andar atrás de cavalo, o que você esperaria na fronteira gaúcha, né? Aí, Santa Maria, não. Mas aí eu não era mais criança, aí já era mais adolescente, os interesses eram outros, né?
P1 – Agora falando um pouco da sua vida escolar. Onde que o senhor começou os seus estudos, a sua vida escolar?
R – O primeiro ano primário, Itu, estado de São Paulo, colégio Nossa Senhora do Patrocínio, que existe até hoje. É um colégio de freiras muito bom. Eu fiz um ano lá. E depois o... Eu sempre estudei em escola pública, no Cupertino de Lacerda em Salvador, no grupo escolar Getúlio Vargas em São Borja, o Colégio Olavo Bilac em Santa Maria, depois o científico, hoje em dia chama colegial, no colégio estadual Manoel Ribas de Santa Maria. Muito bom, foi reformado recentemente, é um prédio muito bonito, e é uma excelente formação; é daqueles colégios públicos estaduais de muito boa qualidade.
P1 – O senhor tem alguma lembrança desse período escolar que tenha te marcado muito?
R – Que tenha me marcado muito? Ah, eu tenho amigos até hoje... outro dia encontrei em Brasília com colegas que estudaram comigo no Colégio Olavo Bilac em Santa Maria, que comemorou 100 anos de vida há cinco ou seis anos atrás. É uma pena que eu não pude estar lá. Mas, é... eu fiquei impressionado porque um dos meus colegas, o coronel Marni, ele e a esposa dele, a Talita, ainda lembram um por um de todos os nossos colegas de classe, que é uma coisa que eu não consigo mais lembrar, né? Mas uma noite eles conseguiram repetir, sem um erro, toda a lista dos colegas que nos formamos juntos no colégio, no ginásio.
P1 – E falando um pouco mais da sua adolescência, como que era, como que o senhor se divertia, como que eram os seus amigos... como que foi essa fase?
R – A adolescência no interior do Rio Grande do Sul... tinha as brincadeiras, né, que aos poucos iam sendo substituídas por interesse em passear na cidade, quer dizer, numa cidade pequena, Santa Maria, que hoje em dia é uma cidade bem mais importante. Santa Maria, originalmente, era uma cidade de militares e ferroviários, porque... a rua, uma das ruas principais de Santa Maria chamava-se Rua do Acampamento, porque a origem dela é um lugar onde o governo colocou uma guarnição importante do exército. E até hoje é uma cidade muito importante. E a outra atividade importante era um entroncamento ferroviário da viação férrea do Rio Grande do Sul. Ela foi construída por uma empresa belga, e as grandes oficinas de manutenção ficavam lá em Santa Maria. Isso diminuiu bastante hoje porque os trens foram meio substituídos por caminhões e carros, né? E Santa Maria mudou com a criação da universidade, que o doutor Mariano da Rocha criou, a Universidade Federal de Santa Maria. E é o que você esperaria de uma cidade um pouco maior que as outras no interior e bem afastada da capital. Então o comércio é muito importante e a universidade também. Aliás, quando eu me formei, eu quase voltei pra Santa Maria pra universidade. Era muito amigo dos filhos do reitor, do doutor Mariano, e ele queria porque queria que eu voltasse pra lá, que era o natural, e eu acabei ficando aqui no estado de São Paulo. Então, Santa Maria, hoje em dia, a universidade domina muito o perfil da cidade. Mas naquela época, você entrou na adolescência, você ia ao cinema no fim de semana, chamava-se matinê, você acompanhava seriados, né? Tinha sempre um filme de mocinho, e um seriado que acabava com alguém, o mocinho ou a mocinha quase caindo num despenhadeiro; na semana seguinte, você ia lá pra ver que na última hora ele se agarrou num galho de árvore etc. Uma coisa emocionante na época, né? E é... as pessoas passeavam no centro, faziam o que aqui em São Paulo chama de footing, depois do horário do cinema, durante algum tempo as pessoas passeiam, assim, tem um quarteirão determinado pra isso, que as pessoas vão e voltam várias vezes antes de irem pra casa – que não deve ser diferente da maioria das cidades de interior. Bailes, aí bailes você só consegue entrar depois de uma certa idade, são pouco frequentes, né? É... o que que tinha lá em Santa Maria? Um clube – uma cidade de comércio – um clube caixeral, que na realidade, quer dizer, um clube de caixeiros viajantes, e o nome do clube, Clube Comercial, clube sírio-libanês. Eu acho que a maioria das cidades do interior do Brasil tem isso, com biblioteca, etc. Colégios muito bons, de excelente qualidade, né, o ensino público nessa época. E aí num certo momento você começava a fazer planos: o que que eu vou fazer? O que eu vou estudar? A universidade ainda não existia lá, ela estava em formação, só existia medicina. E aí, é uma coisa interessante, o Rio Grande do Sul hoje já mudou mais, mas, naquela época, as cidades que povoavam o imaginário das pessoas era muito mais Montevidéu e Buenos Aires do que São Paulo ou Rio, que ficam muito longe. Porto Alegre também, vista do interior, era e é, merecidamente, uma metrópole muito importante. Se andava de trem, aliás eu estava falando da... dos colégios onde eu estudei, eu não sei se eu cheguei... não, eu mencionei São Borja, o grupo escolar Getúlio Vargas. Na época se andava de trem de São Borja pra Santa Maria e, muito de vez em quando, a Porto Alegre. Uma grande novidade do transporte lá foi a época que havia umas litorinas, uns trens expressos, né, muito bonitos, extremamente confortáveis. É uma pena que tenham acabado, né?
P1 – Só pra entender... o senhor se formou onde?
R – Eu resolvi fazer... na realidade, eu, primeiro, até por influência familiar e do ambiente, eu resolvi ser oficial do exército. Mas eu sou muito míope. Aí eu resolvi insistir, depois de um ano de científico, eu fui lá e fiz o exame de novo já com um ano de científico. E eu sempre gostei muito de matemática, dessas coisas, que é muito exigente na formação militar, fui aprovado, aliás em primeiro lugar na Escola Preparatória de Porto Alegre, e... na época não existia operação de miopia com laser, né, e aí eu não fui aprovado no exame médico, mas eu resolvi fazer engenharia. O natural pra quem vinha do interior seria estudar engenharia na Universidade do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre. E um professor de desenho, o (Wilson Maita?), que adorava aviões, tinha fundado o aeroclube de Santa Maria, uma vez falou sobre o ITA, o Instituto Tecnológico da Aeronáutica, como uma excelente escola de engenharia, e aí eu resolvi, me inscrevi pra lá e resolvi fazer vestibular pro ITA também, que normalmente ele é feito antes das outras escolas de engenharia, é feito no Brasil inteiro. Aí eu fiz em Porto Alegre, e depois voltei a Porto Alegre pra fazer o exame na Universidade do Rio Grande do Sul. Enquanto eu estava lá, chegou um telegrama dizendo que eu tinha sido aprovado em São José dos Campos, aí eu nem acabei os exames da UFRGS, e vim pra cá pro estado de São Paulo.
P1 – Bom, a partir daí, a gente gostaria de passar pro foco do nosso projeto, que seria o seguinte: eu queria saber em que momento que você começou a se interessar por essa questão da mudança climática, por essa questão ambiental.
R – Bom, eu estudei engenharia eletrônica no ITA de 60 a 64. Em 63, eu estava no penúltimo ano, no quarto ano do ITA e, na época, o doutor Fernando de Mendonça estava criando o que hoje chama-se INPE – Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Na época se chamava Comissão Nacional de Atividades Espaciais. Se eu puder falar um pouquinho sobre isso, no Brasil, o Almirante Álvaro Alberto criou a Comissão Nacional de Energia Nuclear, depois criou o Conselho Nacional de Pesquisas, e na época do presidente Jânio Quadros, em 61, foi criado um grupo de organização de uma Comissão Nacional de Atividades Espaciais. Quer dizer, o modelo que o Brasil estava querendo seguir era de uma... na época eram “comissões”; hoje em dia, a moda é chamar de “agência.” Tá tudo na mesma coisa. Mas então tinha uma nuclear, depois dela veio o CNPq, de pesquisa em geral, e havia um grupo de organização da área espacial, de uma Comissão Nacional de Atividades Espaciais. E dentro do CNPq, o doutor Fernando de Mendonça, que tinha acabado de retornar de um doutorado e mais algum trabalho na Universidade de Stanford nos Estados Unidos, colega e amigo de várias pessoas que ajudaram a organizar a NASA americana na parte de pesquisa científica, ele foi encarregado pelo governo brasileiro de montar um laboratório aqui e começou a fazer isso lá em São José dos Campos. Eu comecei a trabalhar lá como estagiário já no quarto ano de engenharia, quer dizer, você vai se profissionalizando aos poucos, né, e eu fiz isso em 63 e 64. E, na época, claramente a ideia do governo e do próprio Mendonça era formar quadros nessa área espacial. Na época não existia muita pós-graduação no Brasil, então foi oferecida a possibilidade de trabalhar lá, quer dizer, a primeira coisa que precisaria ser feita seria ir estudar, fazer uma pós-graduação no exterior. Eu, na realidade, eu me envolvi, no último ano, em 64, eu já estava tão envolvido com o trabalho que eu fui junto com o pessoal da aeronáutica, embora ainda eu não estivesse formado, eu fui junto com o pessoal da aeronáutica visitar um centro de foguetes em Chamical, em La Rioja na Argentina em 64, e um pouco naturalmente, resolvi, me formando, continuar trabalhando na CNAE. Em 64 me formei, em 65 estava sendo preparado um grupo que ia ficar um ano trabalhando na NASA, no Goddard Space Flight Center, pra aprender a construir cargas úteis de foguetes de sondagem, enquanto outro grupo ficava preparando o centro de lançamento de foguetes da Barreira do Inferno, no Rio Grande do Norte, perto de Natal. E eu fui parte do grupo que foi pra NASA nos Estados Unidos, o Brigadeiro Seixas e eu, encarregados de construção, projeto e construção de carga útil para as sondagens ionosféricas, ou seja, pra medir parâmetros da atmosfera superior. Fizemos isso durante... uma curiosidade: três semanas antes da data prevista pra viagem para os Estados Unidos, chega um oferecimento da NASA pra mandar um observador a bordo do porta-aviões adaptado que estava fazendo o lançamento de foguetes no Pacífico, o USNS Croatan. E aí me foi perguntado se... não havia muita gente disponível pra fazer isso, e me foi perguntado se eu concordaria em ir, já que eu ia pra NASA aprender a mexer com foguete, se eu não queria passar algumas semanas a bordo desse porta-aviões, e aí eu seguiria direto de Santiago do Chile para os Estados Unidos. E eu concordei e fui. Aí aprendi inglês direito, da forma mais eficiente que existe, que é soltar você dentro de um porta-aviões onde ninguém fala português! Quando você se desembaraça...
P1 – E essa viagem durou quanto tempo?
R – Três semanas, só.
P1 – Três semanas, direto dentro do porta-aviões?
R – Ah, sim. O porta-aviões está dentro do Pacífico, né, então você fica lá. Aí você se desembaraça com o inglês rapidamente pra não morrer de fome. E aí eu fiquei um ano inteiro com os colegas no Goddard Space Flight Center, lançamos um foguete em Wallops Island, voltamos para o Brasil e inauguramos a Barreira do Inferno em dezembro de 65. Aí eu voltei pra São José, e já me preparando pra eventualmente estudar nos Estados Unidos. Havia uma opção natural, porque o doutor Mendonça tinha se formado em Stanford, então, estudar engenharia, Stanford é até hoje uma das melhores escolas de engenharia, de várias coisas. Mas eu tinha me interessado por assuntos de física da atmosfera, e aí eu preferi, pelo o que eu tinha conhecido de pessoas nesse ano na NASA e lido etc., eu preferi me candidatar ou pedir pra estudar na Universidade do Colorado, em Boulder, no Colorado, que tinha, na época... agora mudou o nome, na época chamava-se Departamento de Astrogeofísica, que é um departamento universitário muito interessante. Ele foi criado como o braço acadêmico do High Altitude Observatory, instalado no Colorado porque, pra fazer certas observações do sol, era preciso estar em uma montanha muito alta. E Boulder é um lugar lindo no pé das Montanhas Rochosas, e eles operavam um coronógrafo, que é um telescópio especial pra conseguir tirar fotografia da corona do sol, que é uma coisa muito difícil, fora eclipses. E esse departamento era o braço acadêmico. E foi esse grupo, o High Altitude Observatory, que depois mudou de nome, passou a se chamar NCAR, National Center for Atmospheric Research, que é um dos melhores laboratórios do mundo nessa área de ciências atmosféricas. Eu fui estudar lá. Me foram oferecidas duas possibilidades de tema para o doutorado, um na área de dinâmica de fluidos geofísicos, modelagem da dinâmica de fluidos geofísicos, ou seja, da atmosfera, dos oceanos etc.; e a outra na área de radiação atmosférica. E eu trabalhei um pouco em cada uma, acabei fazendo o meu, a minha dissertação de doutorado com foguetes de sondagem. Sem querer usar palavras muito complicadas, mas o que eu consegui fazer foi medir a densidade de óxido-nítrico na baixa mesosfera, ou seja, acima... a 50 a 100 quilômetros de altura, colocando, construindo e colocando a bordo de foguetes espectofotômetros de varredura no ultravioleta para medir a radiação devido à fluorescência do óxido-nítrico quando o sol bate de lado. A quantidade de óxido-nítrico é muito pequena e é difícil medir, mas com esse método ótico, se conseguiu. E era uma área muito forte lá do departamento, toda a teoria de transferência de radiação na atmosfera terrestre. Então eu acabei me especializando nisso e também em mecânica de fluidos geofísicos, que são as duas áreas do conhecimento que são os dois pilares aí desse problema de mudança de clima. Então essa história de efeito estufa, isso era a coisa mais natural do mundo. Quer dizer, o fato de que a temperatura média da terra seria trinta e poucos graus mais fria se não fosse o efeito estufa natural, isso aí era a coisa mais comum lá dentro do departamento entre os colegas. Vejam o nome: astrofísica e geofísica, quer dizer, você é obrigado a aprender um pouco de astrofísica, então você sabe, ou você aprende rapidamente, no primeiro dia, o que que é a temperatura de radiação de um planeta, o equilíbrio de radiação, quer dizer, a luz do sol coloca uma certa quantidade de energia na superfície, e o planeta esfria por radiação, radiação de corpos negros, se diz radiação espontânea para o espaço. E a temperatura... nós sabemos a temperatura de todos os outros planetas, inclusive do nosso, é só sair um pouco fora da atmosfera e ir até a lua, e colocar um radiômetro, sabemos a temperatura de radiação. E essa ideia de que mudando... pra quem era obrigado a estudar a teoria de transferência de radiação na atmosfera, é uma coisa muito corriqueira, normal, saber que, por exemplo, o nitrogênio, o oxigênio, que são 99% da nossa atmosfera, são transparentes para o infravermelho e que quem causa o efeito estufa é o vapor d'água, gás carbônico, etc. Coisas normais, sem nenhuma mudança. E eu voltei pra CNAE, que depois... quando é que eu voltei? Começo de 1970. Pela falta de gente, quer dizer, como eu era um dos mais velhos do grupo – os outros ainda estavam estudando no exterior – em 71, o doutor Mendonça sugeriu e eu fui nomeado diretor científico da CNAE. E fiquei nessa posição, e organizei, ou ajudei a organizar toda a parte de pesquisa espacial em São José dos Campos. Em 74, houve uma mudança de estrutura; a ideia original de criação de uma comissão nacional de atividades espaciais foi substituída pela criação efetiva em 74 da Comissão Brasileira de Atividades Espaciais como órgão do Estado Maior das Forças Armadas. Então esse era “o” órgão colegiado que ditava o programa espacial, e o INPE passou a ser designado com um nome mais correto, como Instituto de Pesquisas Espaciais, que é o que ele era e é até hoje. E esta vida dá voltas, quer dizer, fazendo um parênteses... esta vida dá voltas, e depois, em 94 houve uma decisão do governo de substituir a Comissão Brasileira de Atividades Espaciais como órgão do Estado Maior das Forças Armadas, substituir por uma Agência Espacial Brasileira. E aí eu fui chamado a Brasília, fui eu que criei a Agência, fiquei sete anos lá fazendo isso, né? Mas voltando ao trabalho no INPE, na década de 70, o INPE começou muito pelo lado científico, de estudos da ionosfera com uso de satélites, de foguetes, me envolvi muito com isso. E me interessei, até por causa da formação, pela área de meteorologia. O doutor Mendonça me pediu em setenta e... 70, já. Ele disse: “Olha, essa área espacial vai ou está revolucionando a meteorologia, porque com satélites você observa, com foguetes, tal, etc. Todo mundo está indo pra esse lado no mundo. E eu queria que você desse uma olhada nisso.” Eu disse: “Olha, eu estudei ciências atmosféricas, adoro mecânica de fluidos geofísicos etc., mas a forma de fazer isso é nós formarmos gente.” Ele disse: “Não, então vamos fazer isso.” Eu peguei um grupo de seis alunos, dei aula pra eles durante seis meses de mecânica de fluidos e ajudei a conseguir colocação pra eles em várias universidades. Eu acredito em diversidade. Então acho que foram as melhores... acho que das melhores que existiam. O Antônio Divino Moura foi pro MIT, aliás ele é o diretor hoje do Instituto Nacional de Meteorologia; o Luiz Carlos Molion foi pra Wisconsin; o (Tarcísio Lode?) foi pra Universidade da Califórnia em Los Angeles; o Marco Lemes foi pra Chicago. Então, formamos um... mandamos um grupo de pessoas pra estudar, fazer doutorado em meteorologia nas melhores escolas, e o Mendonça, que era colega e amigo do doutor Vikram Sarabhai, fundador do programa espacial indiano, combinou com ele de convidar alguns cientistas indianos nessa área pra vir ao Brasil. Vários deles se radicaram aqui, os filhos casaram no Brasil etc., só vão à Índia em visita hoje. Foram excelentes professores. Trouxemos algumas pessoas da Argentina pra dar cursos rápidos de alguns meses. E foi se formando um grupo de meteorologia como, digamos, como uma ciência exata, como uma coisa nova. E um dos objetivos, desde o início, sempre foi chegar até o ponto de fazer modelagem numérica da atmosfera, a fazer previsão numérica. Então várias pessoas foram treinadas nessa área, e isto durou até o final da década de 70. E aí foi criado um departamento de meteorologia, que eu criei, organizei, fui o primeiro chefe dele durante alguns anos. Aí me afastei um pouco dos outros aspectos de física espacial. E nessa época o INPE entrou muito pro lado de aplicações, quer dizer, começou o Grupo de Sensoriamento Remoto, e o de Meteorologia, duas grandes áreas de aplicação. Isso por convicção, acho que de todos nós, de que a área espacial teria aplicações importantes ou significativas pro Brasil, não só de pesquisa pura, mas de algo que produzisse resultados. E no final da década de 70, o então diretor do Instituto Nacional de Meteorologia, o coronel Padilha, me convenceu a... porque achava que era importante, por uma série de razões, que houvesse um brasileiro que assumisse o cargo de diretor da Organização Meteorológica Mundial, em Genebra, para a América Latina. O então secretário geral da OMM, o professor Aksel Winn-Nielsen, um dinamarquês, ele, quando eu estudava em Boulder, ele estava passando um ano lá. Aí eu fui trabalhar na Organização Meteorológica Mundial, fiquei um total de... sei lá, seis anos e pouco e, um dia, numa viagem, num almoço, ele disse: “Gylvan, você cometeu um grande erro na sua vida.” Eu disse: “Puxa vida. Agora...,” eu disse, “Qual foi, professor?” Ele disse: “Pois é, quando você estava em Boulder tendo que decidir se você ia fazer o seu doutorado na área de radiação atmosférica com foguete ou na área de mecânica de fluidos geofísicos, eu acho que você tomou a decisão errada. Você devia ter feito a sua dissertação, podia até ter sido comigo, na área de mecânica de fluidos geofísicos, porque isso é muito importante, tá, tá, tá etc. Tudo bem, mas eu disse: “Pois é, professor, mas eu continuo, eu não fiz o doutorado nisso, mas eu continuo interessado. Veja, eu ajudei a formar gente, estou estudando.” E, de novo, este mundo é curioso; quando eu resolvi sair da OMM, voltar para o Brasil, foi exatamente pra criar um laboratório desses no Brasil. Essa história é curiosa. Quando eu estava trabalhando na OMM, apareceu uma ideia de nós criarmos, como um consórcio latino-americano e caribenho, um grande centro de previsão numérica e de modelagem de clima. Eu fiz este estudo, é muita honra, junto com o professor Joseph Smagorinsky, de Princeton, que foi o criador e primeiro diretor do Laboratório de Mecânica de Fluidos Geofísicos em Princeton. Ele trabalhou com o Von Neumann em pessoa; ele era garoto na época, e quando o Von Neumann inventou esses computadores, foi criado esse laboratório pra usar os computadores que tinham sido inventados pra previsão de tempo. E o Joseph Smagorinsky foi o fundador do GFDL. Eu tive a honra de trabalhar com ele pra escrevermos uma proposta de criar um centro, que seria um consórcio, aqui na América Latina, no Caribe, como havia sido feito na Europa. Por razões políticas, na época eu me interessava menos, ou entendia menos desses problemas políticos, depois eu passo, que você ia gostar, mas a ideia foi inviabilizada por razões puramente políticas. Olhando em retrospectiva, acho que razões erradas, por razões mesquinhas, mas tudo bem, isso passou, passou. E aí, num certo momento, em Genebra, eu resolvi voltar pro Brasil. Eu disse: “Olha, se não deu para o pessoal se articular o suficiente pra criar um centro desses como um consórcio regional...” – na época o Brasil tinha criado um Ministério de Ciência e Tecnologia, Renato Archer, o ministro – e aí, houve... eu disse: “Olha, eu vou voltar pro Brasil, e se não deu pra fazer regionalmente, eu vou fazer no Brasil.” Com todo o apoio, na época do presidente Sarney e do ministro Renato Archer, eu sei que essa história de ter um centro de modelagem, que é o CPTEC, em Cachoeira Paulista, virou um dos projetos prioritários da ciência e tecnologia do Brasil. É o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, em Campinas, o CPTEC, o Laboratório Nacional de Plasma, que nunca foi feito, etc. Aí eu voltei pro Brasil e eu me dediquei exclusivamente a conseguir montar a estrutura de gente e conseguir dinheiro, quer dizer, eu precisava de 30 milhões de dólares, e esse dinheiro não existia no orçamento do INPE, nem do ministério, nem em lugar nenhum. Mas, com muita boa vontade, conseguimos, na realidade, a permissão legal do governo, do Congresso etc., a conseguirmos fazer com que esses 30 milhões de dólares fossem financiados pelo fabricante. Então foi feita uma licitação internacional. Eu, pelo meu trabalho, eu conheci e era amigo do profissional, do pessoal do centro europeu, do centro americano, do centro japonês. Todos eles ajudaram muitíssimo a especificar o que que devia ser um centro de previsão de tempo e estudos de clima. E essa área de meteorologia, a cooperação internacional é impressionante, porque no fundo, no fundo, interessa a todos que os outros façam isso bem, porque a atmosfera é uma só. Então, se melhorar a previsão feita pelo centro europeu, melhora a nossa e vice-versa etc. E isso foi feito, já... isso já está lá pro final da década de 80. Então pra mim, mudança de clima, era algo que eu sabia da literatura científica, mas as implicações disso, não. Quem chamou a atenção pra isso primeiro foi o professor José Goldemberg, que na época estava na USP, ele vem do setor de energia, e ele começou a conversar mais conosco. Ele disse: “Olha, precisa olhar isso, é importante etc.” E ele se interessou também pelo... por dar uma olhada nesse problema do desmatamento na Amazônia. E eu me lembro do professor Goldemberg argumentar, ele disse: “Puxa vida, vocês aí em São José dos Campos, vocês têm duas ferramentas importantes: vocês entendem de clima, da dinâmica do clima” – eu tinha um grupo grande nessa época – “e vocês têm esses satélites de observação da Terra, que são a forma de você ver o desmatamento na Amazônia.” E ele, meio brincalhão, ele é até hoje, né? Eu me lembro de um dia, de ele chegar lá no INPE e dizer: “Olha, eu não sou mais colega de vocês, agora eu sou o chefe de vocês. Eu virei o Ministro de Ciência e Tecnologia. Então, por favor, olhem isso direito, essa história de mudança de clima.” Daí eu resolvi olhar. Na realidade, eu entrei nisso por sugestão dele, e aí eu resolvi olhar direito. O CPTEC já estava... a parte mais difícil, conseguir o dinheiro pro super-computador, já estava feita, e leva tempo até construir o prédio, tudo, eu comecei a prestar mais atenção nisso em 1989, que é a época em que se estava começando a pensar na organização da conferência do Rio em 92. Muito do debate sobre isso, ele não era bem um debate diplomático, isso era feito mais em meios científicos, e com muito envolvimento da Organização Meteorológica Mundial, da qual eu tinha sido diretor em Genebra. Então era uma coisa muito natural, eu conhecia todo mundo etc. Era uma coisa muito natural que eu começasse a me envolver com o lado da negociação internacional. Aí os personagens no Brasil, quer dizer, o maestro de tudo isso era o embaixador Azambuja, que era o secretário geral do Itamaraty, mas o operador, na realidade, quer dizer, há vários personagens muito importantes nisso aí, mas no dia a dia das negociações do lado político, o embaixador Luiz Filipe Macedo Soares, era ministro na época. E eu comecei a trabalhar com... com o Luiz Filipe pra lá e pra cá tanto na negociação da Agenda 21 quanto na negociação do que passou a ser a Convenção. O ano de 1990 foi um ano interessante porque houve várias coisas encadeadas. Primeiro que ficou pronto o primeiro relatório de avaliação da mudança do clima do Painel Intergovernamental sobre Mudança de Clima, o IPCC, que eu conhecia como colega, muitos dos autores; eu trabalhava nisso e muito internacionalmente também. Aí foi realizada a Segunda Conferência Mundial sobre o Clima em Genebra, que teve um segmento ministerial. Então, na conferência, eu fui responsável por... eu fui relator, ou responsável por um dos grupos que fez isso, um pouco naturalmente, quer dizer, pela experiência de ONU, tendo trabalhado em Genebra e tal. E aí, o lado mais político ficou por conta da negociação da declaração ministerial. O ministro, no caso, era o professor José Goldemberg. E eu fui pra lá e virei muita noite negociando duramente o texto da declaração ministerial, que era o documento mais político. Na época havia, e eu descobri rapidamente que não era por acaso, uma pressão muito grande no sentido de atribuir a mudança do clima ao desflorestamento, ou seja, exclusivamente à questão de floresta. Eu me lembro, na negociação da declaração ministerial, houve uma tentativa muito forte, que nos manteve acordados até de manhã no dia seguinte, de retirar qualquer menção ao dióxido de carbono. “Não, tem que falar em gases do efeito estufa, não pode falar em CO2.” “Não pode, por quê?” Documentos preparados previamente, sugestões de documentos falando três páginas sobre a questão das florestas – que é um problema, especialmente aqui no Brasil, sem a menor dúvida – e uma menção muita rápida, de duas ou três linhas ao setor de energia. E eu me lembro de ter usado o argumento, eu disse: “Olha aqui, vamos fazer uma regra de três. Vamos combinar que o número de linhas que menciona cada um dos dois setores está na mesma proporção da importância do setor em causar o problema. Então você tem tantas linhas pra isso, e você tem tantas aqui pra outra.” Saíram umas discussões meio, assim, interessantes na época. Aí a outra coisa, que aliás é pouco conhecido por aí, é como é que esse assunto de mudança do clima foi parar na Assembléia Geral da ONU. Na época, muitas dessas discussões, elas aconteciam no âmbito do PNUMA, ou da Organização Meteorológica Mundial, e tinha o IPCC, que é um grupo de cientistas, etc. E uma constatação crescente dos países, inclusive do Brasil, de que essa história de mudança de clima era séria demais pra ser tratada nestes níveis puramente técnicos, e todo mundo sabe disso hoje porque isso mexe com energia, transportes, agricultura; aqui no Brasil, com a questão do desmatamento, mexe com ordenamento territorial. Quer dizer, são coisas muito importantes pra governos pra deixar na mão de qualquer um. E eu me lembro que o governo brasileiro insistiu em 1990 que fosse convocada uma reunião intergovernamental. São meias palavras, não basta dizer que é internacional, é intergovernamental, governos, governos, estados representados. E foi feito. A reunião não foi a primeira nem a última, ela foi única, só houve uma. Em 1990, uma reunião intergovernamental em Genebra pra resolver o que que fazia com essas constatações, com relatório do IPCC, com a declaração ministerial da Segunda Conferência Mundial sobre o Clima etc.
P1 – Só um detalhe. Então a gente pode considerar essa data, 1990, como um marco mesmo, como o início de uma discussão séria em relação à mudança do clima?
R – Não, uma discussão séria já existia. Não se trata de uma questão de seriedade. Foi o engajamento do lado político. Depois eu vou te contar um pouco da história... você já tinha coisas muito sérias desde de 1971, mas o engajamento do lado político foi em 90. E aí, nessa reunião, já havia um certo pré-acordo de quem iria presidir, e tal e tal etc. E eu me lembro que o governo brasileiro, junto com Índia e China, disse: “Olha, eu exijo uma posição na mesa diretora disso aqui.” Quem estava escalado pra ser o relator, uma pessoa que eu admiro muito por várias razões, Jim Bruce, canadense, que ia ser o relator, ele disse: “Olha aqui. Eu concordo, mas eu quero saber quem é.” Aí disseram: “Tá bom. Então é o Gylvan.” Porque eu era conhecido deles e tinha trabalhado lá. “Tá bom. Então pode ser o Gylvan.” Aí eu virei relator desse grupo, e o consenso da reunião é que esse assunto devia ser levado à Assembléia Geral da ONU. Havia gente que não queria, aí fizeram uma... o diretor do PNUMA, o doutor Mostafa Tolba, disse: “Não, pode deixar que os meus funcionários escrevem o relatório.” E eu disse: “Doutor Tolba, o relator sou eu. Eu agradeço a ajuda, peça pra seus funcionários pra escreverem a minuto, mas quem aprova o relatório sou eu.” Aí isso numa reunião lá da gerência, né? Aí o doutor Tolba virou pra mim e disse pra todo mundo: “Não, mas você não sabe escrever relatório de reunião.” Aí o secretário geral da OMM, professor Obasi, disse: “Não, para, para, para, para. Ele sabe. Ele foi diretor aqui por seis anos. Como que não sabe? Então ele vai escrever.” Aí eu deixei eles começarem a escrever. Um colega finlandês me chamou e disse: “Olha, Gylvan, eles estão escrevendo coisas que não foram ditas.” Eu disse: “Tá bom. Então vamos fazer o seguinte.” Como eu era colega, amigo de todo mundo da OMM, colega de trabalho, eu disse: “Olha, eu quero as fitas. Eu vou escrever sozinho isso aqui. Eu vou virar a noite e vou escrever o relatório sozinho.” Cansei de fazer isso, funcionários de secretaria fazem isso mesmo. E dispensei a ajuda do pessoal do PNUMA e sentei lá, com o gravador, escutando, é facílimo escrever relatório. Quando ele ficou pronto, já meio de manhã, eu entreguei direto lá na gráfica da OMM. Eu disse: “Imprime e distribui.” E acabou. O doutor Tolba ficou um tempo sem falar comigo depois, mas depois voltamos numa boa. Eu não me dou muito bem com ele, é claro, mas sempre tem essa história de você querer... E o ponto principal, não é um ponto trivial, é o de você, digamos, levar para a Assembleia Geral da ONU um problema dessa magnitude. E foi. O Everton, na época, servia em Nova Iorque, e ele foi, teve um papel muito importante em negociar a resolução da Assembleia Geral da ONU, que estabeleceu um mandato de negociação da Convenção. E ela foi feita, como já foi dito aqui, em tempo recorde de dois anos, né, de 90, final de 90, começo de 91 até 92. Conheci na época o presidente Bush pai, ele foi a uma das reuniões do IPCC em Washington, ele foi pessoalmente, fez um discurso etc., e a primeira reunião do Comitê Intergovernamental de Negociação da Convenção, o INC foi em Chantilly, na Virgínia, perto de Washington, aliás com muito apoio do governo americano, um hotel, facilidades lá ótimas, lindo etc., e foi ali que começou o processo de negociação da Convenção. Eu pessoalmente, em paralelo, eu comecei a me envolver mais com o IPCC; o primeiro relatório de 90, eu não participei da elaboração, mas logo depois foi feito um... não com uma correção, uma errata, mas uma complementação do relatório de 90 em 92. Aí eu me envolvi muito por causa desse problema de Amazônia, de ciclo de carbono, qual é o papel de florestas etc., eu já sou um dos autores disso aí. Aí depois o... na época, havia uma ideia que eu não concordava e o governo brasileiro não concordava, que era de, por um lado, uma tentativa de você universalizar o IPCC, levar o conhecimento de gente de todo mundo, mas a forma de fazer isso não era boa. Tinha três grupos de trabalho mais um sobre países em desenvolvimento, o que um pouco segregava os cientistas dos países em desenvolvimento. E você sabe que, em ciência, não tem essa de “de que país você é?” São colegas, são colegas, quer dizer, você respeita como pessoa, como profissional. Em qualquer país do mundo, as pessoas, nessa área científica, são tratadas de acordo com as suas ideias, só, ninguém pergunta: “De onde você veio?” Daí houve uma decisão de fazer com que... digamos, foi criado um fundo pra ajudar a pagar a passagem de cientistas de países que não tivessem condições de fazê-lo, e houve uma decisão de que a direção do painel seria feita com um equilíbrio regional, um equilíbrio regional maior. Aí, no meio disso, aí eu virei co-presidente do grupo de trabalho científico do IPCC junto com o Sir John Houghton, da Inglaterra, que eu já o conhecia, conhecia de trabalho dos meus tempos aí de modelagem. Eu sugeri o meu nome, todo mundo concordou, e aí eu tive o prazer e a honra de ficar cinco anos trabalhando com ele como dois co-presidentes do grupo de trabalho científico do IPCC, que é quem preparou o segundo relatório que ficou pronto em 95. Aí eu me envolvi cada vez mais com mudança de... com mudança de clima. O governo mudou, nessa época saiu, no final de 92, mudou o governo, e o ministro da Ciência e Tecnologia deixou de ser o professor Goldemberg e foi outro colega dele do mesmo grupo, que é o professor José Israel Vargas, que por acaso é também uma pessoa muito interessada e conhece muito esse setor de energia. Então isso foi uma coisa muito boa pro Brasil, de nós termos tido ministros que se interessam, e muito, por esse assunto. Em 92, eu me aposentei do INPE. Não que eu não gostasse do INPE, mas por certas regras do serviço público, que você é induzido a se aposentar, até por causa de uma certa ameaça, senão vão mudar a lei e você vai perder um monte de direitos. Peguei, me aposentei, e continuei trabalhando só pela gratificação, como se diz. Nesse meio tempo, na época eu era um dos diretores do INPE de toda a área de meteorologia mais observação da Terra. Aí comecei a viajar demais por causa do IPCC, e disse: “Olha, ministro, assim não está bom. Não quero aumento de salário, o mesmo cargo, mas... pô, então me dê um cargo que corresponda ao que eu estou fazendo, né?” Então assim que ele conseguiu, eu saí da direção do INPE e fiquei só como assessor do ministro pra esses assuntos. E aí me aposentei do INPE e fiquei só trabalhando pela gratificação de função fazendo isso. Voltei a trabalhar em Genebra em 93, o secretário geral me pediu pra ajudar a organizar o programa mundial do clima, e eu fui lá, fiquei lá a segunda metade de 93, e em 94, aí eu vim para o Brasil no fim do ano, e 94 voltei pra Genebra. Comecei a trabalhar às oito horas da manhã, ao meio-dia toca o telefone. Era o ministro Vargas me chamando de volta pra assumir a presidência, pra criar a Agência Espacial Brasileira. Aí eu voltei.
P1 – Voltando, então, retomando, Gylvan, eu queria que você falasse da sua participação na Rio 92. Qual foi?
R – Pois é. A minha participação foi exclusivamente do lado da negociação política em si, trabalhando na época principalmente com o hoje embaixador Luiz Filipe Macedo Soares, que é quem conduzia as delegações brasileiras, e em contato muito de perto com o professor Goldemberg, secretário, primeiro de Ciência e Tecnologia e, depois, de Meio Ambiente, na época, né? Mas ele passou por outras funções. Em certo momento, foi Ministro da Educação. E eu me lembro que ele sempre manteve a atenção nisso. Quer dizer, houve outros ministros na época, o Edson Machado e o professor Hélio Jaguaribe, mas mesmo na época deles, quer dizer, o professor Goldemberg, embora estivesse em Brasília em outro ministério, sempre ajudou muito, se interessou muito por esse tema. Então eu essencialmente não me envolvi com a organização do evento paralelo lá no Rio, a não ser um pouco acidentalmente, me dediquei mais, ou me foi pedido que me envolvesse mais na negociação política de redação da Agenda 21, da Convenção das Nações Unidas sobre Mudança de Clima, e com envolvimento muito pequeno, um pouco acidental, com a da Biodiversidade, porque eram processos negociadores paralelos que aconteciam ao mesmo tempo. Ou se prestava atenção numa coisa ou outra, né? E um pouco a declaração do Rio, tanto é que no Rio de Janeiro mesmo, eu não fiquei até o último dia. O dia que acabou o trabalho em si e começou só a parte formal de chefes de estado etc., eu estava tão cansado que eu peguei o carro e fui embora, voltei pra São José dos Campos.
P1 – E pra você, na sua opinião bastante pessoal, qual que é a importância da elaboração dessa Convenção sobre a mudança de clima pro planeta, pra todas as nações?
R – Olha, eu, outro dia, eu estava relendo um... eu tinha dito antes que essa história de efeito estufa é uma coisa normal pra quem estudou, que eu estudei na pós-graduação. Em 1971, o COSPAR, é o Comitê de Pesquisas Espaciais da União... do Conselho Internacional de Uniões Científicas – ICSU, em inglês – ele tem um comitê de pesquisas espaciais, tem a sigla COSPAR, chegou a fazer uma reunião aqui no Brasil em 72, 73, por aí. E esse COSPAR tinha um grupo de trabalho, o Grupo de Trabalho 6, que incluía meteorologia, sensoriamento remoto, que estava começando naquela época. E esse grupo de pessoas, quando eu estava envolvido, é o mesmo grupo de pessoas que se envolveu em 1971 num relatório sobre o impacto do homem sobre o clima. E a minha cópia desse relatório, que foi publicado em 71, tinha desaparecido. Eu emprestei pra alguém e esqueci de pedir de volta. E eu me dei o trabalho outro dia de comprar pela Internet, esse relatório foi re-editado pela editora do MIT, onde ele foi feito, e é interessantíssimo. O estudo chama-se em inglês SMIC – Study of Man’s Impact on Climate – Estudo do Impacto do Homem sobre o Clima. E ele é bastante abrangente. Ele inclui, na época se discutia muito um possível efeito de óxidos ímpares de nitrogênio na estratosfera sobre o clima. Eu sei disso porque a minha dissertação de doutorado foi sobre esse assunto, então eu me envolvi em algumas coisas. Do lado político, se falava: “Não, se você tiver muitos transportes de passageiros supersônicos voando na estratosfera vai afetar o clima.” Se estudou, chegou à conclusão que não. Então há várias formas do homem afetar o clima. E esse estudo, ele dedica um espaço bastante grande a este mecanismo, que é o aumento da intensidade do efeito estufa. Ele não passa nem perto do problema do buraco de ozônio causado pelos CFCs, que é uma certa coisa interessante, porque na época se falava muito de estratosfera, mesosfera, que vem logo acima etc., estava-se começando a entender isso, a olhar a química. Se sabia do ozônio, o ozônio é algo conhecido desde de 1958, o Ano Geofísico Internacional, ou seja, construíram espectrômetros, espectrofotômetros de (Tobson?), o Brasil tem alguns operando em Cachoeira Paulista, em Natal etc. Esses estudos da física da atmosfera superior vêm da década de 50, do Ano Geofísico Internacional. Então a distribuição do ozônio, que é que tem nos pólos, já era razoavelmente conhecida. E nesse estudo de 71, há vários trechos dedicados a possíveis impactos sobre o clima de mudanças na estratosfera. Mas o problema do buraco de ozônio nem era levantado. E hoje em dia se sabe a razão: é porque essencialmente se considerava a velocidade da reação do cloro dos CFCs, do cloro dos CFCs para a destruição do ozônio mas, pelas medidas de laboratório que se tinha, parecia que essa reação era muito lenta, então não causaria problema. Quando foi descoberto que a reação não é uma reação de gás com gás, que é efetivamente lenta, mas devido à baixa temperatura é uma reação com estado sólido, que é muito mais rápida. Bom, no momento que isso foi descoberto, a charada do buraco de ozônio foi resolvida imediatamente e é o que rendeu o prêmio Nobel a Mario Molina, Paul Crutzen etc. Foi essa descoberta, disse: “Epa! É a reação em estado, na fase sólida.” E essa é uma reação catalítica e, portanto, um CFC, uma molécula, consegue destruir muitas moléculas de ozônio, e aí o problema foi descoberto. Então, digamos, este relatório de 71 não passou nem perto do maior problema que foi descoberto logo depois, que é esse problema do buraco de ozônio. Mas na área de mudança de clima, é interessante que ele acertou em cima. Veja, isso foi publicado, esse estudo foi conduzido, publicado pela MIT Press, mas na realidade o estudo foi feito... internacional, pela Academia de Ciências da Suécia, pessoas de vários países: o acadêmico (Mundico?), famoso nessa área, depois foi presidente da Academia de Ciências da União Soviética; o pessoal da Royal Society Britânica; da Academia de Ciências Americana etc.; o pessoal de Princeton, no Laboratório de Dinâmica de Fluidos Geofísicos; e, em particular, o doutor (Manabi?), que foi quem primeiro simulou em computador como é que seria o clima se eu mudasse a quantidade de gás carbônico. O artigo dele, famoso, diz: “Olha, se eu dobrar a quantidade de CO2 na atmosfera, a temperatura aumenta aí cerca de três graus em média, a longo prazo.” E é interessante que nesse estudo de 1971, ele já diz: “Olha, até o final do século, a temperatura aumenta meio grau, e em mais 100 anos, aumenta mais três.” Anos depois, 35 anos depois, com três, quase quatro relatórios do IPCC, dessa grossura cada um, a conclusão é exatamente a mesma. Quer dizer, o que tem variado, o que se ganhou em conhecimento aí é sobre os detalhes da mudança do clima, efeitos sobre furacões, sobre precipitação etc. Mas, na média, a conclusão, com muito estudo depois, não mudou nem um centímetro do que já se sabia em 71. E é interessante, na introdução desse estudo há uma constatação, foi feita por cientistas das academias de ciências, que diz: “Olha, este problema da mudança do clima devido ao aumento da intensidade do efeito estufa, isso aí terá repercussões enormes nas sociedades e exigirá uma cooperação internacional sem precedentes para lidar com isso.” Conclusão seca de cientistas. Então, o que há de... Isso em 71, um ano antes da Conferência sobre o Homem e o Meio Ambiente em Estocolmo, em 72. Isto aí passou, este livro, este estudo foi publicado um ano antes, as pessoas sabiam, passou em brancas nuvens. Ninguém se preocupou com isso. O que aconteceu depois, o que há de novo, é este, digamos, a consciência do problema do lado político. Pelo lado científico, já se conhecia há um bocado de tempo. A conferência do Rio, a Agenda 21, interessantíssima como documento pra procurar, orientar um pouco o processo de planejamento em todas as esferas no mundo inteiro, extremamente útil, porque compilou informações, falou de vários problemas etc., mas claramente não é algo suficiente pra lidar com a mudança de clima. Para lidar com a mudança de clima, você precisa fundamentalmente de algo mais sério. Não que a Agenda 21 não seja séria, mas algo mais, que amarre mais o comportamento dos países, das empresas, das pessoas. E a razão fundamental pra isso é a seguinte: é que a atmosfera se mistura em poucas semanas no mundo inteiro. Então você tem um problema que, digamos, as ações de cada um provocam efeitos no mundo inteiro. Esses efeitos, em geral, eles são ruins. Em que pesem frases do tipo: “Puxa, se eu morar em um lugar, em um clima muito frio, se esquentar um pouco até que seria bom. Aqui tem muita neve ou gelo no chão, se melhorar um pouco eu posso até plantar trigo.” Isso será verdade em um lugar ou outro, mas o fato é que, em geral, a humanidade, por definição, ela se adaptou ao clima de uma certa forma. Em alguns lugares continua tentando se adaptar melhor como, por exemplo, no semi-árido do nordeste do Brasil, o clima, com a grande variabilidade de um ano para outro, é uma coisa difícil. Muito mais difícil é no Sahel, na África. Mas o fato é que, bem ou mal, a civilização, tal como nós a conhecemos, ela se distribuiu ou se adaptou por um certo clima. Se você mudar o clima, por definição, você está mal adaptado. E se você mudar o clima mais rápido do que você consegue se adaptar, você, com absoluta certeza, terá resultados ruins. Então, você tem uma situação onde a ação de cada um que causa danos pra todos. Sob o ponto de vista teórico de como fazer face a isto, você só tem três coisas que possa fazer, que são: a inação, não fazer nada; a adaptação, quando for possível se adaptar; ou se usa a palavra mitigação, embora ela esteja sendo empregada de forma errônea. Em mudança de clima, se usa a palavra mitigação para designar o que na realidade é evitar mudança de clima, pelo menos parcialmente. A palavra “mitigar” no dicionário quer dizer você atenuar os efeitos de algo. Aí não é uma questão de atenuar os efeitos, é de evitar que ocorra; mas a palavra mitigação é usada. E, se você pensar bem, nenhuma das três opções lógicas ocorrerá sozinha. A inação já foi descartada por todas as nações do mundo ao assinarem e ratificarem a Convenção das Nações Unidas sobre Mudança de Clima; então, essa opção de não fazer nada foi descartada. A opção de evitar completamente mudança de clima, ela não é possível porque diferentemente de certos poluentes que, com filtro ou mudança de tecnologia, se pode evitar completamente a emissão, no caso do gás carbônico, não se pode. Pelo menos de repente. E a adaptação, embora você possa argumentar que em alguns casos eu possa me defender de uma subida do nível do mar levantando um pouco um dique, a tragédia de Nova Orleans demonstrou que não é tão fácil assim. Acresce a isso o fato de que em alguns casos como, por exemplo, a tendência à savanização das bordas da Amazônia devido à mudança de clima, isso não há forma de irrigar ou de se adaptar a isso. Então, nenhuma das três opções é possível isoladamente. Então o que vai ser feito é uma combinação das três. Aí entra a variável econômica porque, por um lado, há que levar em conta danos de vida à mudança de clima, com a complicação de que há uma decalagem no tempo entre a ação e a mudança, entre a emissão e a mudança de clima, esta decalagem na ordem de 40, 50 anos no caso do gás carbônico, o que causa problemas, porque os sistemas políticos normalmente têm uma escala de tempo mais curta do que isso. A causa... aparecem problemas éticos do tipo da chamada “equidade intergeracional”, ou seja, qual é o valor que você dá a um benefício ou a evitar danos daqui a 40 anos, que possivelmente seja a próxima geração. Este problema não tem resposta, não é um problema científico, é um problema ético. E tem o problema da chamada... do que os economistas chamam de “aversão ao risco.” Aparentemente, diferentes sociedades têm diferentes aversões ao risco. E isso é um nome técnico, mais detalhado, mais matemático, que na área ambiental um fator de aversão ao risco excessivamente elevado ganha o nome de “princípio da precaução.” Mas esse é só um caso. Quer dizer, se você disser: “Olha, eu não sei direito, mas eu vou, em caso de dúvida...”, quem modela essas coisas é mais sutil; chama-se de “fator de aversão ao risco”, que existe, em todos nós, todas as sociedades, todos os governos, e é mensurável inclusive. É variável de uma sociedade pra outra, de uma época pra outra. Só o princípio da precaução não é suficiente para tratar desse problema, tanto é que nem a Convenção nem o Protocolo de Kyoto falam em princípio da precaução, mas a aversão ao risco tem que ser considerada. E este fato de que a ação de um causa dano aos outros é que faz com que seja absolutamente necessário, por mais difícil que seja, um regime internacional sobre isso. Por isso que é a Convenção das Nações Unidas sobre Mudança de Clima é uma necessidade. E eu demonstro isso um pouco por absurdo, ou reduzindo o problema a casos extremos: suponha que um país qualquer, o meu, resolva que, no seu julgamento, os danos para as próximas gerações, ou para a própria Floresta Amazônica e tal, tenham um peso muito grande na minha decisão, e eu decido fazer o máximo para evitar a mudança de clima. O Brasil, por acaso, tem excelentes condições de fazer isso e ainda sair ganhando, mas isso é outro problema. Então o Brasil faz isso, mas os outros não fazem. Então não adianta; ou melhor, não é que não adianta, mas não é suficiente. Suponha o caso oposto, que a sociedade brasileira diz: “Ah, não. Eu não ligo para isso, por mim pode mudar o clima, que a vida aqui está muito boa, pode mudar o quanto quiser.” E os outros resolvem que é importante, que se deve evitar a mudança de clima. Isso não vai dar certo. Quer dizer, é importante, mesmo que os países não se gostem entre si por quaisquer outras razões que não têm nada a ver com isso, podem ir desde futebol até outras razões que eu não vou mencionar em público. Mas, mesmo que realmente não se gostem, neste caso eles são obrigados pela lógica a cooperar, a conversar e fazer algo. Então, fundamentalmente o que a Convenção e os seus instrumentos subsidiários, por exemplo, o Protocolo de Kyoto, o objetivo deles – e, embora isso nunca seja dito de uma forma tão simples e curta, mas que é a correta – o objetivo desses instrumentos é muito simples: é, primeiro, pactuar o balanço entre a inação e a mitigação. A adaptação tem custo, mas se você disser que os custos de adaptação são semelhantes aos custos, digamos, dos danos a serem sofridos, no fundo, no fundo, você tem que decidir o quanto de inação ou adaptação a humanidade quer e o quanto de mitigação se quer. E essa decisão tem que ser conjunta, de todos dos países.
P/1 – Desculpa, só precisa de um minutinho para eles trocarem a fita (...) Podemos continuar então, Gylvan.
R – E a segunda razão fundamental pela qual se necessita a Convenção e seus instrumentos subsidiários é chegar a um acordo sobre o esforço que cada país deve fazer, na medida em que não adianta só alguns fazerem e outros não. Quer dizer, primeiro você precisa chegar a um acordo sobre o global, ou seja, quanto nós vamos evitar e quanto nós vamos tolerar de danos ou custos de adaptação, o que acaba dando na mesma de uma certa forma, versus o que nós vamos evitar. Uma vez decidido isso, há que chegar a um acordo entre os países sobre o tamanho do esforço de cada um para evitar que isso aconteça. A Convenção tem um princípio muito importante de que... trata-se de uma questão de uma responsabilidade comum, porém diferenciada entre os países. Comum, porque o planeta em si só, nós somos condôminos desse planeta, não há como fugir do fato de que a responsabilidade é comum de todos. Um exame, mesmo superficial, do problema mostra que essa responsabilidade, ela é diferenciada de um modo geral entre as pessoas, entre as empresas, entre os países e entre as regiões, ela é diferenciada. E, de uma certa forma, a grande discussão que existe é... bom, o problema fica um pouco complicado porque a questão de saber qual é, em que medida nós devemos evitar, ou concordamos em evitar a mudança do clima, essa discussão ocorre junto com a discussão sobre a repartição do esforço entre os países. Faz um certo sentido porque os países, evidentemente, dizem: “Bom, se a parte que me toca não for muito... a fração que me toca do esforço mundial não for tão grande, eu até que concordo em que o esforço mundial seja maior.” Porque cada país, por definição até, olha ou leva em conta o tamanho do esforço que ele precisará fazer, e o esforço total é a soma do esforço de todos os países, né? Esse processo é um caminho sem precedentes no sentido jurídico ou político porque não há exemplos a serem copiados. Houve, na própria estruturação da Convenção, com o protocolo, houve uma certa inspiração na Convenção de Viena sobre a proteção da camada de ozônio, e o seu Protocolo de Montreal sobre as substâncias que destroem a camada de ozônio. Mas a semelhança jurídica etc., ou alguma semelhança de conceito, ela não dura... ela existe, mas a aplicação na prática é bem diferente porque fundamentalmente no caso dos clorofluorcarbonos, toda a indústria de refrigeração, de outros usos dos freons, dos CFCs, eles ocupam um espaço relativamente pequeno dentro das economias no mundo inteiro se comparado com o que se está tratando no caso de mudança de clima, onde se está falando de toda a infraestrutura de energia, transporte, agricultura. São coisas bem mais difíceis. Então, em resumo, respondendo à sua pergunta, por gosto ou não, a Convenção do Clima e o seus instrumentos subsidiários são absolutamente necessários e imprescindíveis, até por exclusão, porque não há outra forma de tratar o problema.
P/1 – E o fato de os Estados Unidos não terem ratificado o Protocolo de Kyoto, qual é a sua posição a respeito?
R – Olha, eu dificilmente comento a posição do meu país e, dos outros, muito menos. Eu não gostaria de entrar nos detalhes das negociações. Já fiz muito isso e aprendi que as posições de negociação são posições de negociação. O que interessa saber é em que medida a sociedade americana acha que isso deve evitar que o clima mude tanto com o devido respeito aos governos. Mas eu parto do princípio otimista de que todos os governos fazem o que as suas sociedades querem. Os sinais são interessantes. O governador da Califórnia agora, no final do ano passado, fez um acordo com o governador de São Paulo, uma cooperação nessa área de mudança de clima. Há vários estados americanos, há muitas empresas americanas que estão trabalhando muito seriamente sobre como evitar a mudança de clima. A negociação em si é uma coisa bem mais complicada, quer dizer, os negociadores têm uma coisa que se chama de posição de negociação, que dada a própria natureza do processo de negociação, essas posições colocadas na mesa não correspondem à posição final dos países. É uma coisa interessante nas negociações internacionais, que as negociações de caráter econômico, de comércio internacional etc., elas têm uma natureza própria interessante, são negociações duras. E nenhum país cede absolutamente nada a não ser em troca de algo. Então você, se você olhar, tirar uma foto, um instantâneo, uma foto das negociações num determinado momento, especialmente as negociações de caráter econômico, de comércio internacional, elas sempre dão a impressão que não vai acontecer absolutamente nada, não haverá nenhum acordo. Depois acaba saindo. O mais importante, ao meu ver, é você olhar um pouco para trás e ver a tônica dos relatórios de avaliação do IPCC de 1990, de 95, de 2001, e o próximo no ano que vem, em 2007. Há um crescimento muito claro da certeza científica sobre o fenômeno. Em que pesem as incertezas que ainda existem, e algumas delas existirão para sempre, porque é da natureza do sistema climático, algumas incertezas sobre a magnitude das coisas, a situação onde se consegue prever a média, mas não um detalhe. Ah, mas... digamos, a validação da hipótese de que o clima está mudando e mudará devido ao aumento do efeito estufa causado pelo homem, e isso já não resta mais nenhuma dúvida. O próximo relatório do IPCC dirá isso com palavras diferentes do anterior, mas palavras, digamos, mais contundentes, para usar uma expressão da moda. O entendimento cada vez maior dos detalhes da mudança do clima, que vão além do aumento da média da temperatura, da média global da temperatura da superfície, mas o entendimento cada vez maior de aspectos detalhados da mudança do clima, ainda que de caráter estatístico – por exemplo, a constatação pelo professor Kerry Emanuel do MIT sobre... não um furacão em particular, mas sobre o total do trabalho mecânico realizado pelos furacões no Atlântico durante um ano, como é que isso evoluiu durante os últimos anos, a correlação com a temperatura da superfície do mar e com a mudança de clima – isso... esse tipo de estudo, uma vez absorvido completamente pela sociedade, fará, a meu ver, inevitavelmente com que as sociedades modifiquem o peso relativo que elas atribuem na balança entre preferir a inação ou adaptação, de um lado, ou a mitigação, ou seja, evitar a mudança do clima do outro. Isso são julgamentos de valor, portanto, julgamentos políticos, e depende um pouco, em média, o que as sociedades acham. Cabe aos cientistas esclarecer de forma não apaixonada e sem exageros o que que está acontecendo, e as sociedades terão que julgar se preferem, como eu disse, qual é o balanço entre a inação e a adaptação, de um lado, e evitar, ou seja, a mitigação, do outro, levando em conta conceitos éticos, subjetivos sobre o valor que você atribui a evitar um dano daqui 40, 50 anos, e qual é a sua aversão ao risco, porque isso é necessário, é a forma como a mente humana lida com incertezas. E são valores da sociedade. E eu não tenho dúvida de que tanto nos Estados Unidos quanto aqui no Brasil isto está mudando, e espero que rapidamente.
P/1 – E em relação à Rio 92. Como o senhor avalia a Rio+10? O senhor acha que teve alguma evolução, teve um avanço nessa área de mudança do clima da Rio 92 pra Rio+10?
R – Olha, 2002 foi um ano meio complicado na área de mudança de clima porque, fundamentalmente, a sequência depois da Convenção foi a primeira conferência das partes em Berlim, em 95, em que foi adotado o mandato de Berlim, foi o mandato negociador que resultou no Protocolo de Kyoto, com muita habilidade da senhora Angela Merkel, na época Ministra do Meio Ambiente, e agora chanceler da Alemanha. E a verdade é que em Kyoto, em 97, a negociação do protocolo foi feita muito rapidamente, em dois anos, como de resto a própria Convenção também foi feita muito rapidamente. Agora teve algumas coisas que foram... em Kyoto, foram tratadas não de maneira completa. É sempre uma opção, uma decisão política. “Olha, isso aqui é muito difícil, detalhado, não consegui fazer.” Você pode dizer: “Olha, aprova assim mesmo, adota assim mesmo, e deixa uma linguagem um pouco vaga para ser detalhada depois.” Ou, então, diz-se: “Eu só quero aprovar, adotar o protocolo quando todos os detalhes estiverem prontos.” É outra opção. No caso, foi escolhida a primeira opção. Questão política, quer dizer, a essas alturas, como você sabe, essas discussões já tinham subido muito de nível, né, não só ministros presentes, mas o próprio presidente da república, o presidente Fernando Henrique Cardoso acabou se envolvendo diretamente nas negociações de Kyoto – depois disso, porque o detalhamento de Kyoto, essas coisas que não foram vistas com suficiente detalhe, elas foram negociadas nos anos posteriores, foram negociações duras. No caso do Brasil, o ministro José Israel Vargas, durante algum tempo, o ministro Bresser Pereira ficou pouco tempo nesta área, e depois o nosso atual embaixador nas Nações Unidas, Ronaldo Sardenberg, foram pessoas que dedicaram muito esforço, inclusive pessoal nessas negociações, e que subiram de nível. Claramente essas negociações subiram ao nível presidencial. Eu me lembro do, na época, ministro Ronaldo Sardenberg, na época da visita do presidente Clinton ao Brasil, e ele me contar que na reunião dos presidentes – na época, era ministro, chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos, e eu... a Agência Espacial Brasileira estava vinculada à SAE, então eu tinha contato semanal com ele, embora ele não tivesse a responsabilidade direta por mudança de clima, isso era o ministro José Israel Vargas, mas o ministro Sardenberg sempre se envolveu muito com esse assunto, ele já tinha sido embaixador do Brasil na ONU etc. – dele me contar que uma parte razoável da conversa dos presidentes tinha sido sobre mudança de clima. Quer dizer, esse assunto claramente subiu, e bastante, de nível. Agora, depois de Kyoto, então ficaram estes pontos abertos, a questão de tratamento de florestas, a questão do comércio de emissões, e foi uma negociação tão dura que a conferência da Haia, se não me engano, a Cop-6, ela fracassou, acabou num impasse, tanto é que se fez uma conferência extraordinária depois para resolver esse impasse. E o Brasil esteve muito, muito envolvido nisso. O embaixador Sardenberg, o ministro Sardenberg, na época muito dedicado e muito atuante para resolver isto. Então, em 2002, por ocasião da Rio+10, a situação, na realidade, era uma situação de impasse. Tinha havido uma mudança na administração americana. O conceito de Kyoto, quer dizer, a ideia fundamental, central de Kyoto, que é o uso ou o estabelecimento de um regime internacional baseado em metas ou limites quantitativos para a soma das emissões de cada país industrializado, esse conceito deixou de ser favorecido pela nova administração dos Estados Unidos, e isso evidentemente teve um impacto grande. A Rússia ainda não havia ratificado, as negociações estavam indo mal. Então, na Rio+10, a situação na área de mudança de clima não estava boa, não. Depois, acabou se resolvendo com uma conferência extraordinária, depois da Haia foi feita uma conferência em Bonn, e em Marrakech saíram os chamados acordos, Acordos de Marrakesh, que só aí completaram a rodada de negociação detalhada de Kyoto, sendo que alguns detalhes, numa consideração, por exemplo, de reflorestamento e florestamento dentro do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo só ficou pronto na realidade agora em Buenos Aires há pouco mais de um ano. Não por má vontade, é que essas coisas são difíceis, é... difíceis mesmo.
P1 – E qual que foi a sua participação na elaboração do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo?
R – Pois é. O Protocolo de Kyoto foi negociado entre 96 e 97. Na época, o artigo 3 do Protocolo de Kyoto é o que estabelece as metas de redução para cada um dos países do Anexo 1, dos países industrializados. Quem estava presidindo as negociações era o embaixador Raul Estrada Oyuela, da Argentina, um advogado ambiental muito competente, e havia... essas negociações, elas são feitas por grupos, cada um cuida de um assunto etc. E o artigo 3 do protocolo, ele tinha o problema de encontrar alguém que presidisse o grupo de negociação. Embora o assunto dissesse respeito aos países do Anexo 1, não houve acordo entre os grandes blocos, os Estados Unidos, Austrália, Europa, Japão, sobre colocar alguém de um desses blocos pra presidir as negociações. Então, é algo que é comum se fazer nesse tipo de situação, foi pedido a mim pelo embaixador Raul Estrada que presidisse isso, porque eu não sou de nenhum dos grupos, conhecido, já estava lá desde o início. É uma honra para mim, quer dizer, significa que eles tinham respeito suficiente por mim, e fui encarregado de fazer isso durante dois anos. No meio desse processo, quer dizer, as coisas fáceis foram sendo acertadas até que chegamos ao âmago da questão: quanto cada país vai reduzir. No fundo, no fundo, é o problema que persiste até hoje e... tá bom, responsabilidade comum porém diferenciada. Agora, qual é a diferença, como é que você mede isso? Então, na época, havia uma corrente de pensamento que dizia: “Cada um, cada um dos países do Anexo 1, industrializados, deve reduzir a mesma porcentagem.” Soa bem, assim, se for falado rapidamente, assim, você é até capaz de concordar e achar que é uma boa ideia. Se você olhar com pouco mais de detalhe, você vai ver que não é. É uma péssima ideia, como ficou claro hoje. Então, na época, alguns círculos, inclusive mais acadêmicos, começaram a dizer: “Bom, então vamos começar a atacar o problema de frente. Critérios para a diferenciação de compromisso.” Eu sugeri ao doutor Michael Grubb, que na época era diretor do Royal Institute for International Affairs, em Londres, Chatham House, como é conhecido, é o nome do prédio lá onde eles ficam, e eu sugeri ao Michael que fizesse um workshop internacional sobre o tema central: diferenciação de compromissos. E ele fez isso. E aí foi interessante porque o problema foi colocado na mesa. Como é que você diferencia os compromissos? Apareceram várias ideias, né, inclusive de, sei lá, o que que você leva em conta, as emissões por unidade do produto nacional bruto de cada país, como você mede a eficiência da sua economia, né? Em termos de emissões, podem ser as emissões per capita... você tem várias ideias, e não há certo ou errado nisso; o único critério que vale é saber se todo mundo aceita. Aí, como parte da preparação para essa reunião, eu comecei a desenvolver a ideia de estimar ou, no fundo, no fundo, como costumo dizer hoje em dia, de resolver o problema de atribuição de causa, ou seja, saber o quanto cada país tinha causado o efeito estufa, porque isso, em direito ambiental, é uma coisa em princípio aceita, até implicitamente em muitos casos. Quer dizer, o ônus de reparação do dano tem que ser proporcional ao dano que cada um causou. O princípio do poluidor pagador, você pode chamar isso do que você quiser. E, na época, eu me lembro que eu estava havendo, sim, uma ideia na cabeça dos negociadores, uma ideia de que você mede a responsabilidade de cada país pelas suas emissões, até porque a Convenção, o que ela exige é que os países informem oficialmente quais são as suas emissões. É a maneira simples, cômoda, de medir o que que cada um faz. Mas as emissões são uma coisa, e o quanto que elas causam de mudança é outra, inclusive com essa decalagem no tempo de 40 anos, eu digo: “Pô, esse troço aqui não está bom.” Porque o Brasil há 40 atrás quase não existia em termos nem industriais e nem o processo de desflorestamento da Amazônia tinha iniciado, então as emissões do Brasil eram praticamente nulas. Aí, foi feita... eu comecei a colocar isso no papel e quase virou uma proposta oficial do governo brasileiro de 97 em que, fundamentalmente, o governo brasileiro propunha que o ônus de tratar da mudança de clima de cada país fosse feito proporcional, fosse tornado proporcional à contribuição de cada um para causar o problema. E isso, evidentemente, leva em conta as emissões históricas por causa dessa decalagem no tempo. Na época, o José Miguez, que estava tratando desse assunto em tempo integral, sugeriu que fosse, segundo ele, por uma ideia da senhora Bernardita Miller, das Filipinas, e que numa conversa com ele em Paris tinha sugerido o estabelecimento de multas no Protocolo de Kyoto como uma maneira de tratar do problema de cumprimento, ou seja, o que que você faz para quem não cumprir a sua meta. Aí o Miguez sugeriu isso. Eu liguei para o professor Goldemberg sobre que tamanho deveria ser essa multa, e com a ideia de que isso fosse algo mais ou menos do tamanho do que custaria para países em desenvolvimento fazer reduções. O professor Goldemberg estimou na época, baseado no livro dele, algo como dez dólares por tonelada de carbono – de carbono, não de gás carbônico – e eu fiz as contas, eu transformei isso em temperatura num período de cinco anos, e o que consta da proposta brasileira é um sistema de multa. Com o envolvimento do ministro José Israel Vargas e do Itamaraty, o embaixador Antonio Augusto Dayrell de Lima, que deram uma roupagem mais política para a história – o nome “Fundo de Desenvolvimento Limpo” é da lavra do embaixador Dayrell; a ideia de destinar alguns recursos à adaptação também é dele – tá, então depois dessa discussão dentro do governo, a roupagem mais política, e isso virou uma proposta do governo brasileiro. E o grupo dos 77 mais China, do qual o Brasil faz parte, até evidentemente adorou já de início a questão do Fundo de Desenvolvimento Limpo. Isso aí passou, deixou de ser uma proposta brasileira e passou a ser uma proposta do grupo inteiro de países em desenvolvimento. O Council of Economic Advisors da Casa Branca, dos Estados Unidos, que já há algum tempo vinha insistindo num conceito de implementação conjunta etc., analisando o problema, chegou à conclusão de que, sob o ponto de vista de teoria econômica, isso aí tinha efeitos semelhantes à ideia deles, quer dizer, a ideia de economistas em geral, não eram só eles, mas economistas em geral já tinham publicado artigos e livros sobre a ideia de que quanto maior a flexibilidade você tiver para reduzir as emissões e quanto mais você permitir a compensação de emissões, de redução de emissões, levando em conta que alguns casos é muito caro reduzir e em outros é mais barato, se você permitir a compensação, o custo em média diminui, e todo mundo ganha. Isso é uma questão econômica que é verdade. Quanto mais você tentar regular no detalhe e dizer: “Você tem que reduzir aqui,” e... às vezes não dá, às vezes é caríssimo reduzir ali, a peso de ouro, enquanto que ali do lado é mais barato. Por que não, né? Essa é a teoria da compensação. E aí um colega do Departamento de Estado americano, Daniel (Schneider?) me telefonou e disse rapidamente: “Bom, pode dar um pulo aqui?” Eu disse: “Não, Daniel, não posso, eu acabei de chegar de viagem, não posso, estou trabalhando, está difícil.” E ele insistiu e disse: “Então nós vamos aí.” “Puxa, que é isso, é tão urgente assim?” Ele disse: “É.” Então, ele e mais duas pessoas pegaram um avião numa sexta-feira, chegaram no Rio num sábado de manhã e voltaram à noite. Aí eu disse: “Puxa, estou pedindo muito para vocês virem até aqui. Então não precisa vir até Brasília.” Nós vamos até o Rio, fizemos o melhor possível, Hotel Glória, arrumamos uma sala de reuniões etc., o embaixador Dayrell, o Miguez e eu. E essencialmente a proposta do governo americano já tinha passado por telefone, conversado com ministro, estava todo mundo de acordo, mas a proposta era, em resumo rápido, era o seguinte: olha, vocês mudam a retórica; ao invés de dizer que isso é uma penalidade pelo não cumprimento das metas, vocês invertem a lógica e chamam de mecanismo para ajudar a cumprir as metas. Porque vamos ser realistas, essa história de penalidade fica politicamente impossível, isso ninguém vai aceitar, nem nós, nem os europeus, ninguém aceita. E a gente troca “fundo” por “mecanismo”,que “fundo” dá uma conotação de fundo fiscal, dinheiro de imposto. Ninguém gosta que aumente imposto, nem lá, nem aqui, nem em lugar nenhum. E imposto, dinheiro, passa na mão de muita gente, é ineficiente etc. Então, se o governo brasileiro topar essencialmente essas duas mudanças, a gente combina os detalhes e, se a gente chegar a um acordo, eu nos Estados Unidos me comprometo a tentar convencer os outros países industrializados, vocês se comprometem a convencer os outros em desenvolvimento e feito. E foi exatamente isso que aconteceu. Foi um sábado de trabalho muito agradável lá no Hotel Glória com um desses negócios de escrever, um free-chart etc., que foi criado, inclusive, o nome do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo. Logo depois teve uma reunião em Tóquio, uma reunião de coordenação política com ministros. No caso dos Estados Unidos era o senador Tim Wirth, que estudou na mesma universidade que eu, Universidade do Colorado, gosto muito dele, ele é o atual presidente da Fundação das Nações Unidas do Ted Turner, uma pessoa muito interessante. Ele era o negociador principal dos Estados Unidos. E aí, logo depois, teve uma reunião em Tóquio com ministros etc., e aí foi, digamos, consagrado... foi feito o acordo nesse nível, num grupo pequeno. Depois, em Kyoto mesmo, tornar isso realidade e negociar as palavras foi bem mais difícil. O embaixador Raul Estrada me pediu pra presidir o grupo que fez isso. Não foi fácil. Foi feito num laptop, trocando palavras na tela etc. Não houve realmente acordo, ao ponto que na reunião final eu fui obrigado a prestar contas em público. Eu avisei, quer dizer, não houve acordo no grupo de negociação. Eu disse: “Olha, presidente,” o Raul Estrada. “Eu... prestando conta, trabalhamos, tivemos tantas reuniões, trabalhamos duro etc., não houve acordo sobre o artigo 12. Agora, eu acho, sob a minha responsabilidade que, se tivesse havido acordo, talvez o texto fosse o seguinte.” Aí eu li, e aí o Estrada disse: “Eu proponho aceitar desse jeito. Alguém objeta?” “Não.” Ele é rápido no martelo. Aí nasceu o MDL. Eu prometi escrever um livro, um capítulo de livro com o Dan (Schneider?) sobre isso, mas até hoje temos uma discussão sobre se deveríamos ter incluído uma nota de rodapé no artigo 12 ou não. Mas a vida segue. Não foi incluída e ficou daquele jeito. Parece que foi uma boa ideia. Eu, no outro dia, estava falando aí que quando o ministro Figueiredo veio fazer uma conferência aqui no Instituto de Estudos Avançados, ele é o atual responsável por isso no Itamaraty, e ele esteve aqui, e eu estava na mesa como debatedor, e eu estava dizendo que eu fico até agradavelmente surpreso de ver o quanto que o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo tem conseguido mobilizar as empresas. Se você olhar o tamanho do esforço que elas vêm fazendo, eu acho que em muitos casos elas estão gastando mais do que vão receber de créditos de carbono. Mas é que faz parte da lógica de empresas raciocinar com essa variável, então parece que está havendo uma... quer dizer, está se atribuindo valor a evitar a mudança de clima, que é uma coisa muito fundamental. Isso saiu em uma edição do The Economist de alguns anos atrás em que ele diz que o mundo está evoluindo para um “carbon-constrained economy,” ou seja, para uma economia com limitação de carbono. Como a economia lhe diz que a escassez gera valor, no momento em que se começar a se atribuir valor a reduzir as emissões, você coloca em jogo as forças de mercado, o que é extremamente importante. Você não esqueça que quem provoca emissões não são governos, governos são burocracias, até que gastam um pouco de energia lá com luz, com computador e acabou, né? Quer dizer, as emissões estão relacionadas com atividades mais básicas dos países; então, o envolvimento de empresas é extremamente importante. Tem os seus problemas que vão aparecendo, até porque, como eu disse antes, são caminhos não trilhados, né, e está todo mundo aprendendo com isso.
P1 – Gylvan, pra gente começar a encerrar e voltando um pouquinho à sua vida pessoal... você é casado, tem filhos?
R – Tenho quatro, casado. Tenho quatro. Quatro filhos homens: um médico ortopedista aqui em São Paulo, cirurgião de joelho, o pessoal aí da Paulista de Medicina, Hospital São Luís etc.; o segundo, engenheiro em São José, trabalha hoje em dia meio na Alemanha, meio aqui, ele mexe com satélites de alta resolução em uma empresa chamada Rapid Eye, usam isso na agricultura; o terceiro se forma em Medicina daqui a dois meses, em Teresópolis; e o outro é formado em Relações Internacionais, trabalha na FIESP, faz pós-graduação na GV e vive em Genebra, aí nessas negociações da OMC.
P1 – Puxa, todos com futuros parece que brilhantes que nem o pai, né? E as lições de vida que você vem tirando da sua carreira? Ou a lição?
R – É que é difícil convencer a sociedade ou convencer as pessoas em geral de certas coisas. Essa área de mudança de clima acho que me ensina muita humildade. São coisas que, em certos setores, são bastante evidentes, mas eu evidentemente gosto desta interface entre o lado puramente de pesquisa e pura ciência, me envolvi muito internacionalmente e aqui no Brasil com políticas públicas, né? E você aprende que não é fácil você comunicar as coisas pra sociedade. Eu sempre parto do princípio de que todo mundo é sempre bem intencionado. Se não estão fazendo do jeito que eu acho, na minha opinião, do jeito que deveria ser, é porque eles não foram suficientemente informados. Esse assunto é difícil, a tradução disso pra termos que as pessoas entendam não é fácil. A gente tem tentado fazer o possível aqui, a universidade é muito boa pra isso, e continuo prestando atenção na área espacial, sempre trabalhei nisso, acabei mexendo com mudança de clima como um problema em particular. Vejo com muita alegria, por exemplo, o CPTEC já está no terceiro supercomputador, trabalho do Carlos Nobre, que foi diretor de lá durante oito, nove anos. É uma satisfação ver as coisas funcionarem bem. Às vezes fico frustrado; acho que a sociedade brasileira e o governo, em particular, deviam dar mais atenção ao programa espacial brasileiro em que pese o excelente trabalho que o atual presidente Sérgio de Almeida está fazendo, o próprio ministro, o Sérgio Rezende. Isso não é uma crítica a eles, eu sei o quanto eles se empenham. Mas o fato é que nessa área o que precisa é a sociedade insistir que sejam alocados recursos; no caso do programa espacial, mais do que o dobro do que vem sendo alocado hoje em dia. Eu acho uma pena pro Brasil que isso não seja feito. Eu acho que só o Brasil ganha nessas áreas de alta tecnologia. Não é uma questão nem de preferir ou de gostar. Como dizia o Guimarães Rosa: “Sapo pula não por boniteza, mas por precisão.” Pula porque precisa. Você investir, por exemplo, no programa espacial e em outras áreas de alta tecnologia é uma questão absolutamente de necessidade pro bem nosso, senão não teremos emprego, e muito rapidamente. Quer dizer, o Brasil não pode andar pra trás, virar exportador de matéria prima, de produto primário e importador de coisas mais sofisticadas. Então eu sinto claramente uma frustração, sei lá, no meu tempo, por não ter conseguido explicar isso o suficiente pra sociedade. De vez em quando eu ainda tento, mesmo na área espacial eu ainda escrevo alguma coisa. Mas então eu tenho algumas satisfações e algumas frustrações.
P1 – E, por último, o que que o senhor acha de ter participado desse projeto de memória?
R – Ah, puxa, eu acho importantíssimo. Quer dizer, importantíssimo porque o problema muito mais difícil do que o estudo científico da mudança de clima é o problema de comunicação com a sociedade. Eu espero que o programa de vocês tenha uma audiência grande, porque isso faz parte de um processo de aprendizado de todos nós.
P1 – Com certeza. Muito obrigada, Gylvan, foi um prazer.
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