Projeto: Vestindo Memórias - Legado e Identidade
Entrevista de Doraci Pereira Cordeiro
Entrevistada por Luiza Gallo e Grazielle Pellicel
São Paulo, 26 de junho de 2023
Código da entrevista: VES_HV006
Transcrita por Selma Paiva
Revisada por Grazielle Pellicel
(01:29) P1 – Doraci, primeiro eu quero te agradecer demais por você ceder aqui esse espaço tão importante pra você, ‘topar’ dividir um pouquinho da sua história. E, pra começar, eu queria que você se apresentasse, dizendo seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R1 – (risos) Eu que agradeço por vocês estarem aqui. O meu boa tarde a todos, eu me chamo Doraci Pereira Cordeiro, minha data de nascimento: nasci no dia 16 de outubro de 1957, no estado do Paraná, Japurá.
(02:07) P1 – E te contaram como foi a escolha do seu nome?
R1 – Não, não falaram porquê Doraci. Inclusive as pessoas me chamam de Dora, de Dorinha, Mãe Dora, Mãe Dorinha. Então, Doraci é muito difícil as pessoas me chamarem, sempre com os apelidos.
(02:27) P1 – E te contaram como foi o dia do seu nascimento, ou não?
R1 – Bem, eu nasci em um sítio, a gente morava em um sítio em Japurá, que se chamava Sítio do Cascavel, com muito cafezal, girassol, (risos) muitas frutas e ali eu fiquei até os doze anos. Aí foi quando meu pai faleceu, aos quarenta anos, aí já é uma outra história.
(03:00) P1 – E nesse sítio, com quem você morava?
R1 – Com meus familiares: meus irmãos, minha mãe, meu pai e tinha mais pessoas também que moravam nesse sítio. Então, era um sítio bem grande, nove alqueires e tinha três famílias morando nesse sítio, pra cuidar desse cafezal todo. (risos)
(03:23) P1 – E quantos irmãos você tem?
R1 – Onze irmãos. (risos)
(03:29) P1 – Você está onde? Mais velha, mais nova, no meio?
R1 – Estou no meio da turma. (risos)
(03:35) P1 – Que lembranças você tem dos seus irmãos?
R1 – Ah, tudo de bom, né, você crescer em um sítio, você tem...
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Entrevista de Doraci Pereira Cordeiro
Entrevistada por Luiza Gallo e Grazielle Pellicel
São Paulo, 26 de junho de 2023
Código da entrevista: VES_HV006
Transcrita por Selma Paiva
Revisada por Grazielle Pellicel
(01:29) P1 – Doraci, primeiro eu quero te agradecer demais por você ceder aqui esse espaço tão importante pra você, ‘topar’ dividir um pouquinho da sua história. E, pra começar, eu queria que você se apresentasse, dizendo seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R1 – (risos) Eu que agradeço por vocês estarem aqui. O meu boa tarde a todos, eu me chamo Doraci Pereira Cordeiro, minha data de nascimento: nasci no dia 16 de outubro de 1957, no estado do Paraná, Japurá.
(02:07) P1 – E te contaram como foi a escolha do seu nome?
R1 – Não, não falaram porquê Doraci. Inclusive as pessoas me chamam de Dora, de Dorinha, Mãe Dora, Mãe Dorinha. Então, Doraci é muito difícil as pessoas me chamarem, sempre com os apelidos.
(02:27) P1 – E te contaram como foi o dia do seu nascimento, ou não?
R1 – Bem, eu nasci em um sítio, a gente morava em um sítio em Japurá, que se chamava Sítio do Cascavel, com muito cafezal, girassol, (risos) muitas frutas e ali eu fiquei até os doze anos. Aí foi quando meu pai faleceu, aos quarenta anos, aí já é uma outra história.
(03:00) P1 – E nesse sítio, com quem você morava?
R1 – Com meus familiares: meus irmãos, minha mãe, meu pai e tinha mais pessoas também que moravam nesse sítio. Então, era um sítio bem grande, nove alqueires e tinha três famílias morando nesse sítio, pra cuidar desse cafezal todo. (risos)
(03:23) P1 – E quantos irmãos você tem?
R1 – Onze irmãos. (risos)
(03:29) P1 – Você está onde? Mais velha, mais nova, no meio?
R1 – Estou no meio da turma. (risos)
(03:35) P1 – Que lembranças você tem dos seus irmãos?
R1 – Ah, tudo de bom, né, você crescer em um sítio, você tem tudo no sítio. Você quer uma fruta, você vai colher. Você vai no rio comendo pitanga, chupando melancia colhida na hora, é tudo gostoso, tudo maravilhoso morar no sítio.
(03:57) P1 – E sua família toda ajudava no cafezal?
R1 – Sim, todos.
(04:03) P1 – Quais eram as atividades de vocês?
R1 - Todas as atividades no sítio: colher café, ruar café… não sei se vocês sabem o que é isso. Ruar, pra fazer a colheita. Plantar feijão, colher feijão. Plantar milho, colher milho. Tudo isso. Plantar girassol, colher girassol. (risos) Tudo isso aí eu fiz. Fora a parte do sítio, do pasto, que tem a parte do pasto, que a gente tinha as vacas pra tirar leite, tinha os porcos pra dar comida. Então, assim, a gente não comprava nada na cidade, era tudo do sítio. As hortas eram enormes. Plantio de milho, pra fazer bolo de milho, curau, pamonha, tudo no sítio.
(04:51) P1 – Tinha alguma atividade que você gostava mais de fazer?
R1 – O que eu mais gostava era [ir] no rio tomar banho e pegar pitanga. Tinha um pé de pitanga enorme, eu subia no pé pra colher. E ali eu ficava sábado, domingo, a maior parte do tempo nesse rio. (risos)
(05:10) P1 – O que você fazia nesse rio?
R1 - Gostava de tomar banho, pescar com a peneira, pegar lambari, cascudo. (risos)
(05:18) P1 – Novinha?
R1 – Nova, fazia tudo isso. Eu comecei, mesmo, [a] ter responsabilidade, que meus pais me deram, aos nove anos de idade, porque assim: aos nove anos de idade eu ainda não ia pra roça, mas eu tinha aquela responsabilidade de ir na nova roça colher o milho, cascar o milho, limpar. Aí eu tinha que fazer um bolo de milho ou um curau e levar pra eles, que eles ficavam só trabalhando. Eles começavam a trabalhar de manhã, só terminavam à tarde. Então, a gente tem que levar o café da manhã tipo dez, onze horas, era o segundo café deles, aí já levava o almoço, mas na parte da tarde, aí quando era lá pras três e meia, quatro horas, a gente levava uma outra refeição, daí podia ser um chá, ou alguma coisa, mas tinha que ter alguma coisa pra comer, porque trabalhar no sítio gastava muita energia e gasta, até hoje, né? Então, tem que estar muito bem alimentado.
(06:24) P1 – E era você que cozinhava?
R1 – Não, era um dia de cada, porque a gente era em cinco irmãs, então cada irmã tinha uma tarefa. No dia da minha tarefa de fazer o bolo, eu que tinha que ter responsabilidade por tudo: fazer o bolo, o almoço e depois era outra e assim ia revezando, entende? Aí, no meu dia de lavar roupa, eu tinha que lavar toda a roupa, aí minha irmã lavar toda a roupa e era assim, todo serviço dividido. Mas foi assim, dando essas responsabilidades pra mim, que eu cresci e tive maturidade cedo. Então, a minha maturidade veio antes da minha adolescência, praticamente, porque era muita responsabilidade e tinha que dar conta.
(07:09) P1 – Você era próxima de alguma irmã, algum irmão?
R1 – Eu era próxima de todos. A gente brincava muito. Tem meu irmão que mora em Campinas, que a gente brincava muito, ia pra escola junto, voltava. Eu não posso reclamar que não tive infância, eu tive [uma] infância maravilhosa, porque aproveitei bastante, porque no sítio só não aproveita quem não quer a infância, porque é tudo ao natural e é uma coisa bem sadia, principalmente naquela época, em 1968, 1960 e alguma coisa, as coisas eram bem saudáveis no sítio. Era uma educação mais rígida, mas é isso que me fez melhor como pessoa: a educação que meu pai me deu, que eu trago até hoje comigo.
(08:00) P1 – Ao mesmo tempo, [com] muita responsabilidade, tinha tempo pra brincar?
R1 – Tinha tempo pra brincar, porque eu ia pra escola, eu brincava na escola, depois brincava com meus irmãos. Gostava muito do sítio, mas sempre sobrava um pouquinho. Gostava de andar a cavalo, de bicicleta, carrinho de rolimã, que eu tenho um corte no pé até hoje, (risos) um sinal do carrinho de rolimã que eu andava (risos) e é isso. (risos)
(08:25) P1 – Que história foi essa, desse corte?
R1 – É aqui, está até hoje no meu pé, aqui, que eu andava no carrinho de rolimã.
(08:33) P2 – Posso ver?
R1 – (risos) Olha, está vendo aqui?
(08:37) P1 – Uau!
(08:38) P2 – Deixa eu chegar mais perto de você.
(08:41) P1 – Nossa!
R1 – Esse corte. Até hoje, [do] carrinho de rolimã, gente, mas é gostoso, era gostoso, mesmo que a gente se machucava, mas era gostoso, a gente não chorava; saía sangue, a gente já corria, cuidava; os irmãos, um cuidava do outro. Mas era gostoso, era uma coisa bem saudável. Mas uma coisa eu tenho que dizer pra vocês, que eu tenho ótimas recordações dessa época.
(09:05) P1 – E nesse dia que você se machucou, você lembra como foi?
R1 – Ah, eu era arteira, minha filha. Eu era menina, mas tinha espírito de menino. Então, eu estava com os dois pés no carrinho de rolimã, que eu subia na frente, só que eu quis fazer a curva, pra me exibir e isso aqui pegou na roda da rolimã, que tem uma roda de aço que vai em cima. Isso aqui pegou na roda da rolimã. Ela só passou, assim, aí o sangue desceu, já acabou a brincadeira ali mesmo. (risos)
(09:37) P1 – Doeu muito?
R1 – Doeu, claro. Nossa, e como! E aquele tempo não era igual agora, que a gente corre pra um hospital e tal. Não, não tinha nada disso. Então, foi curativo ali, meu pai, o benzimento dele, nas ervas dele, fazendo emplastro, pondo em cima, mas (risos) foi muito bom.
(09:58) P1 – Não levou ponto?
R1 – Não levei nenhum ponto e você vê a cicatriz - apesar que faz muitos anos – cicatrizou bem. Pela idade também, né? Eu era muito arteira, era terrível. (risos) Hoje meu filho dá risada, porque, nossa, eu sou uma ‘pimenta’, que eu não sossego. Aí ele fala: “Mãe, pelo amor de Deus, sossega um pouco”. Eu não sossego. Eu acho que é o espírito. E foi assim. Eu sou feliz do jeito que eu sou, graças a Deus.
(10:33) P1 – E Doraci, qual o nome do seu pai?
R1 - Otávio Pereira.
(10:37) P1 – E da sua mãe?
R1 – Júlia Maria Pereira.
(10:41) P1 – Que recordações você tem deles? O jeitinho de cada um.
R1 – Maravilhosos. Principalmente o meu pai, que eu era muito apegada a ele e eu estudava na parte da manhã e todos os dias ele me acordava pra ir pra escola. Aí, enquanto eu acordava, me preparava, ele ia lá, preparava o café. Agora você imagina: morar no Paraná, no Japurá, lá caía uma geada que era de verdade, o cafezal queimava todo e meu pai me levava e me buscava na escola, que era tudo no sítio, a escola toda, não tinha nada na cidade, era tudo sítio. Então, ele me levava de bicicleta na escola e me trazia de bicicleta de volta. Só que a hora que a gente voltava, o sol já estava bem aquecido, mas era muita geada naquela época e ficava tudo branco, você não via nada, só via... é igual Santa Catarina, o sul é tudo daquele jeito. No Paraná também, quando ‘gia’, ‘gia’ pra valer.
(11:42) P1 – Mesmo assim ele levava?
R1 – Levava. Não deixava eu faltar. Tinha dia que eu não queria ir: “Não, tem que ir pra escola”.
(11:49) P1 – Seus irmãos iam juntos?
R1 – Não, só eu que estudava de manhã, os outros estudavam na parte da tarde. Então, era só eu que ia de manhã, mas eu tinha que ir. Os dedos ficavam duros (risos) pra escrever, mas eu tinha que ir.
(12:04) P1 – O que você gostava de fazer com ele? O que você mais gostava?
R1 – Meu pai?
(12:08) P1 – Uhum.
R1 – Eu gostava quando ele ia trabalhar, eu queria ficar sempre junto com ele. Aí ele falava pra mim: “Volta, volta”. Aí ele foi trabalhar em outro sítio, uma vez, que tinha muito arrozal, que lá eles plantavam muito arroz. Então, era... você não enxergava o final e aí eu queria segui-lo. Ele falava: “Não, volta pra trás, que você vai se perder no meio desse arroz e ninguém vai te achar mais”. Aí começava a falar pra mim que tinha sapo, tinha sapo, tinha sapo, eu pegava e voltava pra trás, (risos) mas eu gostava muito de estar junto com meu pai, embora minha mãe fosse [uma] excelente mãe, sempre carinhosa, amorosa com os filhos, mas a minha ligação mais forte era com meu pai. (risos)
(12:55) P1 – O que você consegue dizer, assim: uma coisa que você aprendeu, que foi muito importante, com ele?
R1 – Com meu pai?
(13:03) P1 – É.
R1 – Ele sempre conversava comigo: “Minha filha, você sempre respeita” – não só pra mim, no geral, com meus irmãos, família – “os mais velhos, seja uma pessoa educada, respeitando sempre os mais velhos, o ser humano em geral e alembre que aquela pessoa que está ali na frente é seu irmão também”. E ele sempre cresceu muito na religião, sabe? Sempre levando isso pra nós, que o respeito, a fé elevada acima de tudo. Ter caráter, dignidade. Nunca mexer no que é dos outros, porque não pertence a você. E isso aí ele me ensinou muito, a todos os meus irmãos, apesar de ser uma família numerosa, a gente nunca teve esses tipos de problemas, sabe, familiares, irmãos pegarem caminhos errados, porque a educação que ele nos deu, eu guardo até hoje comigo, e faz muita falta, viu? Eu sempre falo: “Quem tem pai, agradeça que tem, quem tem mãe, agradeça, porque a gente é muito apegado". Quando desencarna, a gente se sente muito sozinho, entende? Mas é tudo de bom, aproveita bem essa época com os pais, essa convivência, porque depois faz muita falta e não volta e é isso.
(14:34) P1 – E você conheceu seus avós?
R1 – Não.
(14:38) P1 – Nenhum?
R1 – Não conheci nem os tataravós, nem meus bisavós, nem meus avós. Por que essa história? (risos) Minha mãe casou muito nova com meu pai, todos da Bahia, tribo Tapajós, aí meu pai começou a migrar pro Paraná, aí nasceu uma parte lá no Paraná, depois ele ia pra Bahia, minha mãe engravidava, ele ficava por lá até nascer o bebê, e assim ficou. Mas eu não conheci meus avós, porque quando chegou a minha vez, ele não voltou mais pra Bahia, (risos) continuou no Paraná e eu não conheci meus avós, meus tataravós. Não conheci. Só sei que meus tataravós eram escravos, tanto por parte de pai, quanto por parte de mãe, meus avós índios por parte de mãe, só, da tribo Tapajós, também não conheci. Só sei que eu trago o sangue dos Tapajós (risos) na veia. Não sei se é por isso que eu sou tão agitada! (risos)
(15:48) P1 – E que histórias mais você sabe dos seus avós?
R1 – Eu não tive contato com eles, mas o pouco que eu sei é que eles trabalhavam muito, uns em Ilhéus, outros em Itabuna, a família do meu [pai] já é de Vitória da Conquista. Agora, conhecer a fundo eu não conheci. Os meus irmãos mais velhos conheceram, mas eu já não tive mais contato com eles, não sei te falar como são, como era, como seria agora, porque não tive contato.
(16:27) P1 – Uhum. Mas e essas histórias, até dos seus irmãos, ou dos seus pais, dessa sua família que o pessoal foi escravizado, indígenas, tem alguma história deles que você queira compartilhar?
R1 – Não. Eu não lembro. A única coisa que eu sei é que a minha avó por parte de mãe era índia. Olha que judiação! (risos) Meu pai... meu avô pegou, casou com ela, eu não sei se ela queria casar com ele, mas casou com ela e aí começou a nascer os filhos. A única coisa que eu sei é isso, porque naquele tempo eles pegava até a laço, né? Eu sei dessa história, que ela foi pega a laço, pra casar. Então, quer dizer, foi um casamento bem forçado. Então, por aí já começou a judiar dos índios. Um casamento bem forçado e a ‘bichinha’ foi pega igual um bicho, a laço, então por isso que eu defendo a minha origem, sabe? Se falar de índio perto de mim, começar a falar mal de índio perto de mim, eu fico ‘louca’, (risos) fico brava mesmo.
(17:43) P1 – E tinha alguma comida na sua família...
R1 – Biju. Minha mãe fazia divinamente biju, só que eu não aprendi. Ela fazia os bijus naqueles tachos de índio mesmo. Isso aí eu participei. Ralar aquela mandioca, tem que apurar tudo ali, ficar um tempo ‘descansando’, pra depois fazer o biju. Ralá-la, deixar desmanchar, fica tipo de uma... conhece tapioca? É mais fininha que farinha de tapioca. Aí faz aqueles bijus. Ela fazia aquela bijus enormes, do fundo do tacho todinho. Farinha de mandioca também. E ela fazia aqueles bijus enrolados também, só que eu não sei fazer. É uma coisa muito especial, já vem assim... acho que foi a avó que passou pra filha, foi passando pra mãe, a mãe foi passando pra filha, só que eu não sei fazer. Se pedir pra mim: “Faz um biju” eu não sei, entende?
(18:44) P1 – Mas você gostava de comer? (risos)
R1 – Opa! É bom demais! (risos)
(18:50) P1 – E como que era a casa de vocês? Como vocês dormiam? Eram todos os irmãos juntos?
R1 – Vou falar da primeira casa.
(18:56) P1 – Tá.
R1 - A primeira casa, eu me lembro da minha idade, quando eu tinha quatro anos. Aí eu me lembro muito bem, até a cor do meu vestido, que era um vestidinho cor de rosa, cheio de florzinha. Então, a primeira casa nossa, mesmo, nesse Sítio do Cascavel, era no meio de um pasto. Sabe, tipo aquelas feitas de barro? Era daquele jeito, com aquelas madeiras, feitas de barro e umas telhas que são iguais telha de coqueiro, só que quando chovia, não vazava água. São umas folhas de coqueiros, que eles entrelaçavam. Não sei te falar. Coisa de índio, mesmo. E eu morei nesse sítio um bom tempo. Depois fizeram a outra casa, mais pra cima, aí já foi uma casa de madeira, assoalho de madeira, já foi cobertura de telha normal, tinha um porão, aí foi melhor. A gente começou a morar melhor nessa casa. Não passava mais tanto frio, mas aí foi melhorando, melhorando, o tempo foi passando, passando, passando, aí eu me acostumei naquela casa. Mas era muito bom. Era muito grande o quintal. Aquele tempo a gente chamava, não era quintal, era terreiro, bem grande mesmo. Eu varri mil e uma vezes aquele terreiro, com a vassoura de piaçava. Não é piaçava, não, é ‘guaxumba’, tá, gente? Piaçava é a nossa agora. Aquele tempo era uma vassoura de ‘guaxumba’. Vocês conhecem ‘guaxumba’? Ninguém conhece. (risos) Nem ele conhece. Aquele tempo era ‘guaxumba’. Onde colhia essa ‘guaxumba’? No pasto tinha bastante ‘guaxumba’, a gente fazia aquela vassoura de ‘guaxumba’, onde varri aquele terreiro bem grande, de terra. Naquele terreiro tinha um pé de abacate enorme, abacate-roxo. Aí era tudo de bom. Eu gostava. Quando chovia, adorava andar no barro, ficar com os pés, com os dedos tudo abertos, de tanto barro nos pés. (risos) Eu era bem traquinas. (risos)
(20:59) P1 – E que lembranças você tem da escola?
R1 – Da escola, tudo de bom, entende? Eu era uma ótima aluna na escola, mas… os professores gostavam de mim e eu gostava dos professores. Responsabilidade também, na escola. Cada dia da semana o professor pegava um pra fazer a merenda dos outros alunos e era um leite que não sei te dizer que leite que era aquele, vinha nuns sacos bem grandes, aí tinha a medida certinha de fazer o leite e a gente fazia aqueles caldeirões de leite. Aí, no meu dia, era eu e mais uma, aí no horário certinho, contado no relógio, tinha que estar pronto aquele leite e não podia ficar pelota, tinha que bater aquele leite pra ficar bem grosso, aí você ‘ponhava’ água e ficava ali, até esse leite ferver e ficava era tempos. Mas eu tenho recordações muito boas da escola: as minhas amizades eram boas, meus professores sempre foram bons professores, que amavam o que faziam. Recordações, eu tenho muitas, boas. Na hora do recreio era uma festa, a gente brincava também, muito. Era uma turma de menino de um lado e menina do outro e tinha uma divisória no meio, os meninos não podiam passar pro lado das meninas, então ali o melhor vencia, entende? Seria como se fosse agora o vôlei, naquela época. Então, nossa, eu era ‘doida’ naquela época, (risos) eu ‘aprontava’, mas era muito bom, tinha muita atividade. Muito bom, muito bom. Muita saudade daquela época.
(22:42) P1 – Você lembra de algum apronto?
R1 – Ai, sempre tinha, né? Copiar, nas provas. (risos) Eu era terrível. Eu não estou te falando? Às vezes eu não estudava, aí o papai chegava perto de mim: “Dorinha, estudou?”, “Estudei”. E a gente tinha um cabeçario completo pra gente... se a gente não respondesse aquele cabeçario, o professor não deixava sair pro recreio. “Dorinha, você estudou hoje?”, “Não”, “Então fica sentada lá”. Mas eu não era besta, eu copiava da minha colega e naquele pouquinho de tempo eu aprendia tudo. Quando o professor vinha tomar a minha lição, pra eu sair pro recreio, eu já estava com a lição na ‘ponta da língua’. Então, eu era muito ativa, a mente muito ativa. Então, eu não dei trabalho pros professores, não. Depois que eu comecei a dar trabalho, (risos) mas essa época que eu estava no sítio. Nossa, tudo de bom, só tenho boas recordações: escola, professores, vizinhos, o sítio gostoso, maravilhoso, as festas na cidade, que eu ia. (risos) As missas. Naquele tempo, eu ia na missa. Tinha que ir na missa. Se eu não fosse na missa, meu pai brigava. Então: “Vai na missa, vai rezar, pedir pra Deus te dar saúde e não sei o que, não sei o quê”. Vamos pra missa. (risos)
(24:02) P1 – E foi com doze anos que vocês mudaram?
R1 – Não. Meu pai morreu, ele tinha quarenta anos de idade e aí, quando ele morreu, infartado, eu não sentia vontade, mais, de estudar, aí eu parei, não quis mais. Aí eu vim pra São Paulo com uma família, daí eu fugi da minha mãe. Coitada, hoje em dia eu peço perdão, já pedi. E eu saí fugida, aí vim com uma família pra São Paulo, aí meu primeiro emprego foi de babá, com doze anos. Aí cheguei em São Paulo, comecei a trabalhar de babá, aí comecei a estudar também, de novo, fui estudando, fui fazendo curso de cabeleireira, de corte e costura, porque onde eu estava, ela exigia que eu trabalhasse e estudasse e se preparasse, e aí eu fui fazendo tudo isso. Hoje em dia, eu sei fazer algumas coisas. Quando eu não tenho preguiça, eu costuro, bordo. (risos)
(25:05) P1 - E onde você encontrou essa família?
R1 – Era de lá, do Japurá. Tinha uma família que morava em São Paulo, era família Vasquez. Aí tinha uma família que os parentes moravam em São Paulo, aí avisou pra essa família que estava precisando de uma pessoa, mas queria de lá, pra cuidar de criança, da casa, que ela costurava em casa, aí eu falei: “Eu vou”, “Não, mas você é muito criança”, “Mas eu vou, a mamãe deixou eu ir”, “Deixou mesmo? Vou lá perguntar pra ela”, “Não precisa perguntar, ela deixou eu ir”. Aí eu vim pra São Paulo. Porque quando meu pai morreu, a gente tinha uma vida financeira muito boa, mas depois que ele morreu, tinha um irmão na família que... está entendendo? Não soube lidar com o dinheiro. Aí eu falei: “Eu não vou ficar mais aqui”. Aí pedi pra essa família me trazer, que eu ia trabalhar direitinho, não ia dar trabalho e assim eu fiz, e eu fiquei com essa família até eu me casar. Me casei aos 21 anos, tive meus filhos, tenho meus netos. É isso.
(26:15) P1 – E sua mãe descobriu como?
R1 – Quando eu já estava aqui, porque eu falei pra família avisar que eu tinha vindo pra São Paulo. Aí não tinha como ela vir me buscar mais, porque eu não queria ficar dando trabalho pra minha mãe, entende? Meu pai já tinha falecido, as coisas não estavam mais iguais, então eu não quis ficar dando trabalho pra ela, porque ela já tinha mais filhos, pequenos. Meu pai, quando faleceu, minha mãe estava grávida. Depois de um mês que ele faleceu, nasceu meu irmão caçula. Então, eu via a preocupação da minha mãe. Eu senti que eu não deveria dar trabalho pra ela, mais, pra ela tirar a preocupação sobre mim, entende? Aí [poderia] se dedicar aos outros irmãos.
(27:04) P1 – Você foi a única filha que saiu?
R1 - Que veio pra São Paulo? Eu vim, depois vim trazendo os outros. (risos) “Fala pra minha irmãzinha que eu estou arrumando emprego pra ela vir trabalhar numa casa de família. Fala pra outra vir”. E assim foi, tirando a responsabilidade da minha mãe, entende? Aí, o que a gente fazia? A gente pegava o dinheiro e mandava pra ela, de vez em quando alguém ia passear, a gente mandava o que a gente podia, pra ajudar, porque ela ficou com muitos filhos pra cuidar e meu irmão ‘de maior’ tinha dezoito anos quando meu pai faleceu. Agora, você imagina: de dezoito anos pra baixo, quantos tinha? Então, foi quando eu falei: “Não, eu vou e o que eu puder ajudar, eu vou ajudar” e assim eu fiz.
(27:50) P1 – Você lembra como foi chegar em São Paulo?
R1 – Horrível. (risos) Um ônibus que não chegava nunca. Aí, no meio do caminho, me arrependi, mas não pude voltar mais. O ônibus não chegava nunca, falei: “Meu Deus do céu!”. Pensa: 1974, que ônibus que vinha pra São Paulo? Aquela rodoviária, quando eu cheguei lá, falei: “Meu Deus, que lugar é esse?”. Aí já fiquei com vontade de voltar. “Agora não pode voltar mais” - a pessoa falou pra mim – “você já veio, quem vai te levar de volta?”. Aí eu falei: “Está bom, então, eu vou ficar”, mas foi horrível a viagem. Não é igual hoje, né? Naquele tempo, era muito... eu cheguei aqui quando aquele Edifício Joelma pegou fogo. Foi o Andraus primeiro, depois o Joelma. Não foi isso? Foi. Cheguei naquela época. Quando o Joelma pegou fogo, eu já estava em São Paulo, mas a gente não saía da frente da televisão, vendo aquilo. Então, a minha viagem foi muito horrível. Aí não queria mais viajar de ônibus, não queria voltar pro Paraná, pra passear (risos) de volta, nas férias, porque eu imaginava na viagem que era horrível, cansativo, mas tudo bem, com o tempo eu me acostumei.
(29:10) P1 – E lá você tinha TV? Ou só foi ter aqui?
R1 – Não, no Paraná, não. Só aqui em São Paulo. (risos) No Paraná, nem sonhava. Quando falava em televisão, o que é televisão? No ano de 1968, 1969, o que é televisão? É uma caixa com um vidro na frente. (risos) Aí eu falei: “Mas eu quero ver essa caixa com esse vidro na frente”. Aí um dia nós fomos na cidade, aí tinha uma pessoa que tinha essa televisão, aí eu ficava olhando, não entendia nada. Aquelas imagens lá dentro, não entendia nada. Aí não dei importância pra televisão, porque não entendia. Aí, quando chegou em São Paulo, mesmo assim, eu nunca liguei a televisão. Até hoje, gente, eu não sou ‘ligada’ à televisão. Gosto, assim, de notícias, jornais, mas parar, assim, muitas horas na frente da televisão, não me chama, porque eu não vou. Pra ver jogo, essas coisas de novela, não gosto, não. Eu não sou... eu fico muito ocupada, sabe? Eu gosto, aproveito meu dia pra fazer atividade. Quando eu não estou fazendo atividade fora daqui, eu estou aqui dentro, entende? Estou mexendo aqui dentro, arrumando algumas coisas aqui dentro, estou vendo se a camarinha está em ordem, o terreirinho, sabe? Os vestiários, a cozinha. E é isso. A gente... eu não perco tempo em televisão, não.
(30:34) P1 – Que outras coisas você foi descobrir só aqui em São Paulo?
R1 – Foi essa família que me acolheu, me incentivou a estudar, fazer corte e costura, bordar. Depois eu comecei na minha religião, aos quinze anos. Eu vou voltar um pouquinho lá atrás: o meu pai era benzedor. Um dia eu quebrei, destronquei o braço e meu pai - como eu te disse, não tinha médico - me curou, trouxe meu braço pro lugar, através de benzimento e ervas. Então, meu pai era benzedor e curador. Tinha uma missão, não conseguiu cumprir a missão por não entender que ele tinha as incorporações. A gente tinha medo, eu corria muito daquelas incorporações. (risos) Ele incorporava o Ogum dele e ele vinha cantando e aí eu corria, entende? Não entendia. Mas quando ele benzia, fazia garrafada, ele era muito procurado. Fazia aquelas garrafadas maravilhosas pra ajudar as pessoas nas gripes, tantas coisas, né? E ele usava muito as ervas, galho de café pra benzer, copo de água com água e pegava um pedaço de terra. Sabe um torrão? Vocês conhecem torrão? Ele pegava um torrão de terra e benzia com aquilo. Então, eu cresci o vendo fazer isso, de pequenininha. Então, depois que ele desencarnou eu fiquei bem perdida. Aí tá, vim pra São Paulo, aos doze anos, mas aos meus quinze anos eu fui em um terreiro e gostei. Depois fui na praia, ver os trabalhos da praia, gostei também e eu senti, já, as vibrações, aquelas coisas, querendo incorporar e eu não queria, porque eu tinha medo, vendo meu pai fazer tudo aquilo, (risos) mas com o tempo eu fui me adaptando, me adaptando, me adaptando, só que teve muito empecilho. Como eu te disse, eu casei aos 21 anos. Quando eu era solteira, eu ia no terreiro que eu queria e depois que casei tive muito problema: empecilho de marido, empecilho da família de marido. A minha não, que a minha já era do saravá, então, da minha família nunca tive empecilho, mas da família dele, uma família de mineiro, mas, mesmo assim, eu ia escondido. Ele ia trabalhar, falei: “Vou tirar carta”. Ia fazer 21 anos, falei: “Vou tirar carta”. Ele ia trabalhar, eu pegava no carro. Aí me matriculei na autoescola, praticava na autoescola e em casa. Aí falei assim pro instrutor: “O senhor pode marcar meu exame final da autoescola”, “Não, você está doida, você fez só seis aulas”, “Não, pode marcar, que eu vou passar”, “Mas se você não passar, você vai pagar uma multa”, “Não, não vou pagar multa, não, que eu vou passar”. Aí fiz e passei mesmo. Aí, o que eu fazia? Eu ia pros terreiros à noite, entende? Ele ia trabalhar, trabalhava das duas às dez, eu ia pro terreiro escondida. Mas é muito difícil quando tem empecilho da família, não é fácil. Eu passei por muitos problemas por causa de empecilho e começou a vir os problemas de saúde, as pessoas achavam que eu era louca, né, que os guias queriam me pegar, onde eu estivesse: na rua, no banheiro, tomando banho, qualquer lugar. Aí eu me ajoelhava no chão, abraçava um cachorro, um galho de pau, (risos) pra não ter incorporação. Abraçava meus filhos: “Mãe, me larga”, “Não, a mãe está brincando com você”. Então, eu comecei a me cuidar, porque eu estava sofrendo na pele, entende? E ninguém estava no meu lugar. Então, eu comecei a falar: “Não” - eu determinei pra mim – “eu vou seguir um terreiro, a minha religião é a minha umbanda, que sempre foi”. E meu pai sempre falava pra mim: “Faça isso, faça aquilo, faça aquilo outro e assim com essa erva, e assim com essa garrafada, faça isso, faça isso”, meu pai me ensinou. Minha religião é essa e assim eu segui. Aí, um dia, fiz reunião na família… isso aí depois de ter passado várias vezes por hospitais, viu, gente? Porque a gente chega lá com crise de incorporação, espiritual, os médicos não detectam. Eles vão já dar injeção na sua veia, achando que você está com problema de estresse, nervoso, alguma coisa, menos que é espiritual. Então, isso aí é normal acontecer. Isso aí aconteceu várias vezes, as crises que eu ia pro hospital foram inúmeras, aí eu fiz uma reunião familiar, falei: “Quem está sentindo na pele sou eu, então eu vou seguir a minha religião, porque eu não quero morrer, tenho meus filhos e você vai ficando doente, o médico não descobre o que é, então eu vou pra minha religião e quanto a você, meu marido, se você não quiser me seguir, a gente se separa aqui, porque eu não vou deixar de seguir a minha religião por causa de quem quer que seja, nem por sua causa, nem por causa de filho, nem por causa de parente. Eu vou seguir a minha religião. De hoje em diante ninguém vai me incomodar mais sobre isso”. E assim eu segui. Comecei a trabalhar em casa...
(36:22) P1 – Quantos anos você tinha?
R1 – Eu tinha quinze anos quando eu fui pra umbanda.
(36:25) P1 – Mas quando você comunicou isso pra ele?
R1 – Vinte e dois anos. Aí eu ia pro hospital com a pressão vinte, vinte e pouco. Os médicos não sabiam por que minha pressão estava daquele jeito, eu [era] nova. Então eu fui, fiz esse comunicado e assim foi.
(36:46) P1 – Mas como você descobriu que não tinha nada a ver com hospital, mesmo?
R1 – Porque você sente, eles falam aqui, no ouvido: “Eu quero trabalhar, eu preciso trabalhar”, está entendendo? E a gente traz muita entidade que trabalha na linha da cura. Como meu pai trabalhava com benzimento, essa hierarquia veio toda pra mim, então eu tive que obedecer a eles e não às conversas. E assim eu fiz. E, olha, só tenho a agradecer. Aí comecei a trabalhar na minha casa, depois mudei trabalhando na minha casa, aí já comecei a fazer festa de Erê na minha casa, (risos) festa de Ogum na minha casa, tudo na minha casa. Aí um dia lá eu comecei a ficar ruim de novo. Aí eu falei: “Meu Deus, e agora?”. Aí eu fui abrir os búzios e, no abrir os búzios, revelou: “Ogum está querendo a casa dele” e eu, no meu consciente, era Osvaldo, meu ex-marido, aí eu falava assim: “Não, mas ele quer a casa, é você que vai ser o pai da casa”. Aí ele falava: “Não, sou eu”. Eu falei: “Então, vamos abrir os búzios” e lá confirmou que era Ogum. E aí, o que acontece? Ogum quis a casa dele. Eu tive que vender tudo onde eu morava, pra comprar aqui, entende? E aqui a batalha foi difícil, porque assim: “Senhor Ogum, vós ‘quer’ sua casa? Está bom, mas onde?”, aí ele pôs a entidade da esquerda pra vir atrás, ‘seu’ Tranca Rua, Timbaré. Aí lá de São Mateus vinha pra cá, falei: “Mas por que eu estou indo pra Guaianazes? Eu não quero abrir terreiro em Guaianazes, eu não quero ir pra Guaianazes”. Sempre trazia pra cá. Aí um dia, nós, passando aqui, nessa avenida, olhei pra ‘cara’ desse terreno aqui e falei pra ele: “Na volta você passa em frente daquele... entra naquela rua, que tem, eu vi um terreno lá que está aberto, a calçada está toda suja, cheia de mato. Você entra naquele terreno, naquela rua”. Aí entramos naquela rua, nessa rua aqui, aí paramos aqui na frente, tinha uma placa enorme escrito vende-se, o telefone, aí entramos em contato com o dono do terreno, eu fui lá pra Higienópolis. Aí uma semana eu vendi lá onde eu estava e estava saindo a documentação daqui e o homem queria o dinheiro, em cash, em mãos. Eu falei: “Mas como eu vou no banco sacar todo esse dinheiro?”. Ele falou: “Dona, é pra não pagar imposto de renda, eu quero esse dinheiro em mãos”. Aí fui lá, conversei com o gerente, o gerente no meu ouvido, eu falei: “Por favor, preciso”, até que o gerente liberou. Aí, o que eu fiz? Eu estava dentro do banco, falei: “Vocês vão me dar licença”. Ele falou assim: “Dona, eu já vi muita gente sair daqui com dinheiro e perder tudo lá fora”. Eu falei: “Mas isso não vai acontecer comigo, não. Tem uma pessoa me esperando pra eu assinar os papéis”. Aí ele falou assim: “Dona, a senhora tem certeza?”, “Tenho”. Aí eu peguei, entrei pra um lugar reservado lá, com aquele pacote de dinheiro, falei: “Vocês vão me dar licença?”. Arranquei minha roupa, pus outra blusa. Aí rasguei o fundo da bolsa, pus aquele pacote de dinheiro no fundo da bolsa e pus a minha blusa e os documentos tudo em cima, eu falei: “Olha, ‘seu’ Tranca Rua, ‘vós quer’ sua casa, então ‘vós vai’ cobrir a gente daqui até lá no bairro de Higienópolis. Você não quer sua casa? Se eu for roubada, cadê sua casa, vai pra onde? Aí eu não vou ter onde morar, vou morar debaixo da ponte”. Aí foi tudo certo. A gente foi lá, assinamos todos os documentos e tudo certo, aí começou a batalha pra construir aqui. Aqui foi a parte muito difícil, porque tirou 65 caminhões de terra daqui. Aqueles caminhões trucados, quatro pneus atrás. Quatro, não. Oito, parece. Eu sei (risos) que foi 65 caminhões só de terra nesse lugar, nesse espaço, daqui até lá. E pra construir? Falei: “Não, vamos fazer empréstimo”. Fizemos empréstimo, construímos. Demoramos quase três anos, faltando um mês e pouco pra três anos pra construir aqui. E detalhe: tinha que ser a minha mão. Eu tenho um calo interno aqui, até hoje, da construção. Isso aí foi em 2009 pra 2010, a gente batalhando pra construir aqui. Aí eu tinha que carregar carriola de areia, carriola de pedra, tudo que vocês imaginarem de construção eu tinha que carregar, entende? Porque, além de tudo, é um teste pra fé da gente, pra ver se a nossa fé é realmente de verdade. Se a gente vai seguir em frente com a nossa missão, ou não. Então, são provações que você tem que provar pro Criador que Ele pode confiar na missão que a gente está trazendo, entende? E isso foi o que eu respondi, eu falei: “Eu vou. Aconteça o que acontecer, eu não quero nem saber, eu vou”. Tomei muita chuva, caí muito no barro, aqui, os vizinhos davam risada de mim, me chamavam daquela mulher daquela novela lá.
R2 – Pereirão.
R1 – Pereirão. (risos) O meu nome aqui era Pereirão. Eu falei: “Eu não quero nem saber, eu estou construindo o que é meu”. Eu sei que, olha, foi uma luta, mas quando eu vi essas paredes de pé, que a gente foi pôr essa laje, uma coisa eu te digo: “Deus é bom e maravilhoso”. Eu recebi ajuda de vários lugares, até do Paraná. Essa laje ficou em 10500 reais, pra encher todinha e recebi ajuda de vários e vários lugares e consegui encher essa laje. Aí, enquanto a laje secava, a gente foi rebocando dentro, entende? E assim foi. Esse piso aqui foi todo doado. Uma pessoa que alcançou uma graça pegou, chegou um dia em mim e falou assim: “Mãe Dora, eu conversei com ‘seu’ Boiadeiro”, que eu trabalhava aqui em cima, viu, gente? Eu estava construindo aqui, mas estava trabalhando aqui em cima, num quartinho quatro por quatro. Aí uma pessoa chegou e falou pra mim: “Mãe Dora, eu conversei com o ‘seu’ João Boiadeiro, eu pedi pra ele me ajudar a vender um terreno que eu estou precisando, de seis mil metros quadrados, que estava em sociedade, estava dando muita confusão” e ele não queria mais a sociedade. Falei: “O senhor conversou com o ‘seu’ João Boiadeiro?”, “Conversei”, “Ele falou o quê?”, “Que ele vai me ajudar. Mãe Dora, se o ‘seu’ João Boiadeiro me ajudar, não é barganha, é uma promessa que eu fiz pra mim mesmo: eu vou ajudar o terreiro da senhora”. Eu falei: “Está bom, então. Se o senhor conversou isso aí com ele”, “Só que eu não falei pra ele de nada disso, estou falando pra senhora, porque as entidades não aceitam, eles ficam bravos. Então, eu estou conversando com a senhora, mas com o ‘seu’ João Boiadeiro eu falei que ia ajudar a senhora aqui no terreiro, no que eu pudesse”. Falei: “Então está ótimo. Se foi assim que ficou”. Aí, minha filha, ele vendeu esse terreno, aí chegou esse homem: “Mãe Dora, vem cá, que eu vou conversar com a senhora. Eu vou oferecer aqui as coisas, um agrado pra senhora terminar esse terreiro”. Falei: “É? E é pra eu fazer o quê?”, “A senhora compra o que a senhora quiser”. Falei: “Então está bom”. Ele veio e me deu um cheque de trinta mil reais. Aí falei: “Mas ‘seu’ Geraldo, por que isso?”. Eu falei o nome da pessoa, mas não tem problema. “Porque a senhora é uma pessoa muito trabalhadora, honesta e, olha, se o ‘seu’ João Boiadeiro ficar bravo porque eu estou dando isso aqui pra senhora, ele vai entender que não é uma barganha. Foi que eu prometi, no meu consciente, que eu ia dar essa quantia pra senhora fazer o que precisasse no terreiro”. Aí já foi trazendo os pisos, já arrumou pedreiro pra pôr os pisos e nisso foi. Aí lá fora ficou tudo nas pedras. Aí já, lá, a parte de fora a gente foi os médiuns da casa. A gente pôs o piso, tal, arrumou mais ou menos, mas assim, eu não posso reclamar, entende, porque tudo que eu pedi Deus enviou no meu caminho: filhos bons, pessoas boas - hoje em dia, eu tenho ótimos filhos -, então eu sou uma pessoa que não posso reclamar de nada, eu só tenho a agradecer a Deus pela minha vida, pela minha saúde, pela casa, pela minha missão, que está me ajudando eu ir em frente, firme e forte, sabe? Pelos meus filhos que eu tenho, que são maravilhosos, filhos carnais, filhos espirituais. Então, assim: a minha gratidão é eterna por tudo isso, entende? E eu estou aqui. (risos)
(46:05) P3 – Eu queria entender: seu pai não era da umbanda, né?
R1 – A missão de abrir uma casa era do meu pai, só que aquele tempo, você imagina, no ano de 1960 e alguma coisa, morando num sítio, então ele tinha as incorporações dele, só que ele não entendia que ele tinha que abrir um espaço pra trabalhar, né, e essa missão veio pra mim. De todos os meus irmãos, vários frequentaram terreiro e vários foram pra outras religiões, mas eu continuei na minha. Então, de todos os meus irmãos, a missão veio pra mim. Agora já estou passando pro meu filho. Então, são hierarquias que tem que continuar. Agora eu não sei se o filho dele vai continuar, (risos) mas a gente sempre tem que preparar uma pessoa pra continuar. E essa casa aqui, perante Deus, o Criador do universo, todos os orixás, jamais poderá fechar, porque é uma casa de caridade. Aqui é uma casa, no plano espiritual, pra Deus, de caridade. Então, jamais poderá fechar. Aconteça o que acontecer, não pode fechar. Enquanto eu estiver viva, eu estou aqui. Aí meu filho está aí e a gente vai preparando pessoas pra dar continuidade, porque jamais poderá fechar. Entendeu agora? (risos)
(47:32) P3 – Entendi. Eu queria saber: com quinze anos, foi aí que você descobriu o que era, mesmo?
R1 – Não. Com quinze anos eu comecei a ir para os terreiros. Aí começou a vir as vibrações fortes de incorporação, entende? E aí eu tive que me dedicar. Depois veio o casamento, que o casamento eu tive o quê? Um afastamento, por causa das intervenções, que não pode interferir na vida de ninguém, mas tem pessoas que não entendem. Aí houve essas interferências, mas se eu não ‘batesse o pé’, fosse firme e forte, eu não estaria aqui hoje, não. Já tinha desencarnado, porque missão é missão. É igual você é uma médica, tem que cumprir com a missão. Você já veio com essa missão de ser uma médica pra salvar vidas e professores, enfermeiros etc. e tal. Então, assim: a gente tem que descobrir a nossa missão, porque, no caso, vocês, além de ser o profissional, mas você tem que ser uma vocação pra aquilo e pra mim veio essa parte, eu ‘abracei’ e não me arrependi nenhum pouco. Estou feliz, muito, com a minha religião, com tudo.
(48:42) P1 – E seu marido entendeu, passou a entender?
R1 – Ele não queria separar de mim, só que assim: quem segue a religião hoje em dia somos nós, que a família dele é muito católica, a mãe dele também é muito católica, só que chega um certo tempo, a pessoa vai envelhecendo e começa... então, ele não participa da casa, quem participa sou eu. Aí você vai perguntar: “Mas vocês se separaram?”. Estamos separados, sim, de corpos, porque meu pai ensinou pra mim a ser honesta, ter caráter e dignidade acima de tudo. E, assim: traição, pra mim, é uma ingratidão muito grande. Eu não aceito isso. Então, eu fiquei mais de quarenta anos casada, pra você ver, e traição eu não aceito. Enquanto você não vê tudo bem, mas quando você vê com os seus próprios olhos, aí a coisa é diferente. Eu fiquei doente, mas superei. O médico falou pra mim: “Vai dançar, vai fazer academia, você não pode ficar doente”. Falei: “Não posso”. Inclusive quando eu fiquei ruim, chamei meu filho. (risos) Aí ele foi, fiz tudo isso, me recuperei. Aí agora eu estou firme e forte, (risos) estou igual uma rocha, ninguém me derruba, só Deus”. (risos)
(50:14) P1 – Posso voltar um pouquinho?
R1 – Pode voltar.
(50:19) P1 – Queria saber como foi viver com essa família de São Paulo, quais foram os desafios, os aprendizados, se você gostou, se você se deu bem com eles...
R1 - Nossa! Foram eles que me levaram pro terreiro. (risos) Você vê, eu vim no lugar certo. Então, como Deus traça tudo certinho, né? Aí, se eu ficasse na ‘barra da saia da mamãe’: “Não vou deixar mamãe”. Então, eu, hoje em dia, não sei como seria, mas a sorte é que a mulher, além de ter me acolhido como uma filha, ela ia pra terreiro, eu comecei junto, entende? Então, assim que eu cheguei, eu já comecei a ir pra terreiro com ela. Antes de ir pro terreiro eu fui na festa na praia, mas aí eu tinha medo ainda, mas depois, aos quinze anos, veio aquele chamado forte, que eu ia no terreiro, passava mal, passava mal, passava mal e achava que eu ia morrer, claro. Então, aí comecei a entender, começou [a] moldar minha mente que não era nada daquilo, não era pra eu ter medo, que ele só queria trabalhar, ele falava: “Eu só quero trabalhar, dona. Nós só queremos trabalhar. A gente quer fazer caridade, quer ajudar as pessoas, dona” e assim eu fui ouvindo, ouvindo, ouvindo e fui obedecendo. Foi [o] que trabalhou na minha mente pra mim. Mas hoje em dia eu só agradeço e uma coisa eu digo pra você: o meu enredo àquela época não me abandonou, até hoje estão comigo, que é meu pai Ogum, minha Oxum, é o ‘seu’ Tranca Rua, é a Dama da Noite, Dona Maria Padilha. Ninguém me abandonou. Então, assim: é uma coisa que vem desde criança. Então: “Dona, eu estou no seu caminho faz muitas luas, entenda isso, dona”. Falava isso pra mim, sabe? Mas hoje eu só tenho... eu vou lá – não sei se vocês entendem – tronqueira, ‘bato cabeça’, eu agradeço, agradeço, agradeço, agradeço. Venho aqui e agradeço a cada dia que amanhece, que eu vejo o sol brilhar. Eu agradeço. Gratidão, meu Pai, a vossa bênção. Gratidão pela minha vida, pela minha saúde, pela casa, pelos filhos. Gratidão, meu Pai. Todos os dias eu agradeço. Todos os dias. Quando estou lá em cima, que eu acordo pra ir pra academia, a primeira coisa que eu faço: abrir a porta e a janela e agradecer pelo sol brilhando, pela chuva, só tenho a agradecer. Então, minha vida é gratidão. Eternamente gratidão.
(52:53) P1 – Como foi se tornar mãe?
R1 – Pra mim foi um pouco difícil, porque a partir do momento que você abre um terreiro a responsabilidade triplica e foi difícil porque, pra eu ser uma mãe eu tinha que ter um pai pra cuidar de mim e os meus pais Ogum e Oxum dificilmente aceitaram, eles escolhem quem é a pessoa pra pôr a mão na coroa do filho. Isso foi muito difícil, (risos) muito difícil, entende? Mas depois que eu fiz minha primeira obrigação foi que... eu só posso fazer obrigação pra um filho meu se eu já passei por uma obrigação. Então, como eu vou cuidar de filhos se eu não estou cuidando de mim mesma? Então, esse foi o primeiro ato. Construí tudo aqui, só que eu falei: “Só vou fazer minha obrigação quando a casa estiver pronta”. Construí, fundamentei, que ele estava junto, que ele me acompanha em tudo, depois que eu fundamentei tudo aqui, aí eu falei: “Agora eu vou fazer a minha obrigação, na camarinha da casa do meu Pai” e não fui pra terreiro de ninguém ‘deitar’. Foi aqui minha primeira obrigação e aqui também a obrigação dos meus filhos, a primeira dele também foi aqui e é isso. Agora, até você... porque assim: eles te dão bagagem, te dão ensinamento. Tudo que está aqui fundado, fundamentado foram eles que passaram pra mim: “Vem, meu filho, é a mão de nós dois que tem que estar aqui”. Veio, mas ensinou tudo, tudo, tudo: ervas, elementos, ferramentas, tudo ele que passa pra gente, está entendendo? Mas até você cuidar dos seus filhos, abrir uma gira, fechar a gira, meu Deus! O dia da inauguração do terreiro eu estava com o script na mão, aqui, (risos) está entendendo? Mas tinha mais de oitenta pessoas aqui dentro, porque eu andei muito, ‘bati muita perna’ por aí, pra adquirir conhecimento, fiz sacerdócio e tudo isso aí a gente adquire amizade. Mas é maravilhoso.
(55:18) P2 – Dona Dora, o que é obrigação?
R1 – É quando a gente recolhe o filho na camarinha. O filho ‘deita’ pro Pai. Vamos supor: meu Pai Ogum, mês de abril é mês de Ogum, eu vou ‘deitar’ pro meu Pai Ogum, minha mãe Oxum e pros demais, que são caboclos, erês, pretos velhos, boiadeiro, tudo aqui, na camarinha. Então, cada entidade a gente arria um prato de caroço: feijão branco, milho, lentilha, todas essas comidas brancas, entende? Aí a gente arria tudo ali dentro: baiano, boiadeiro, pretos velhos, Nanã, Obaluaiê, são todos orixás que a gente arria ali. Aí, quem fica na nossa coroa? Meu pai aqui e minha mãe aqui e aqui na frente, primeiro a parte da frente, Oxalá e Iemanjá, que Oxalá é o orixá maior na umbanda e Iemanjá é mãe de ori. Então, primeiro são eles, entende? Aí vem os demais, que a gente é formado um triângulo na nossa cabeça. Então, a gente ‘deita’, faz tudo isso, mas precisa de pessoas pra ficar cuidando da gente aqui, porque a gente não pode ficar numa camarinha a esmo, ali. Então, tem que ficar [os] filhos que a gente confia e muito, pra ficar dando sustentação aqui, nessa parte. E lá dentro fica o médium, recolhido. No meu caso eu fiquei ali, ele também ficou ali. É assim. Aí vem as incorporações. Às vezes, quando vai pra camarinha, já vem o primeiro, que é o pai, depois vem a mãe e os demais, tudo ali, na camarinha, sabe? E a gente já vai doutrinando, tem uns que já vêm doutrinados, que não precisa você ficar falando muito. Geralmente já vem muito pra agradecer por aquela camarinha, por estar ali, a gente permitir eles virem, entende? Aí eles vêm, dão pontos riscados, cantam ponto deles. É assim na camarinha. É maravilhoso. É uma energia que a gente não tem como explicar, que são muitas ervas lá dentro, sabe? Ervas aromáticas. Muitas ervas. Então, você imagina: uma camarinha forrada de ervas, muitos pratos, flores, vela de sete dias firmadas e a camarinha com esteira forrada de ervas, a parte interna, externa, tudo forrada com ervas, então é uma energia imensa lá dentro e essa energia se expande, vai até o portão, lá fora. Aí, se você chega no portão, você já sente o cheiro das ervas e o tempo que a gente está recolhido, as ervas estão emanando a energia e é assim, tudo maravilhoso. Só quem passa é quem sabe. (risos)
(59:00) P1 – Eu queria te perguntar justamente isso: como você se sente após receber?
R1 – Eu me sinto maravilhosa, regenerada, agradecida por tudo, pelo meu filho, que desde pequeno ele me acompanha. Ele ‘ponhava’ um banquinho, pra tocar atabaque. Ele queria jogar bola, eu falei: “Não, você hoje vai tocar atabaque, que eu vou trabalhar”. (risos) E saía das brincadeiras. Você está entendendo? Aí ele entendeu isso. Eu falei: “Meu filho, depois que terminar a gira, a mãe deixa você brincar”, porque sempre foi ele ao meu lado, então desde criança que ele está comigo. Então, o que mais eu tenho que pedir pra Deus? Ter uma pessoa tão maravilhosa, como esse filho meu, do meu lado. Então, a gratidão é eterna e ser mãe, ser uma babá é muita responsabilidade, por quê? Você está mexendo com a ori das pessoas, com a vida das pessoas. Porque você não pode fazer nada errado na obrigação, porque você pode atrapalhar a vida da pessoa, pode trazer inúmeras coisas ruins pra vida da pessoa, a pessoa não prospera, então você está aqui o quê? Pra dar prosperidade. Então, é muita responsabilidade, mas é muita gratidão, por tudo isso, entende? A gente vê as entidades virem trabalhar e a pessoa vir, depois, agradecer pra você. Você não está incorporada, mas a pessoa chegar e falar pra você: “Mãe Dora, eu estou aqui pra agradecer pra senhora, que eu passei com a tal entidade e falou isso, isso e isso. Mãe, já aconteceu”. Então, pra nós é muito gratificante isso daí, entende? Então, assim: o que mais pedir, se as pessoas vêm até a nós, agradecer a gente? Aí eu falo: “Meu amor, agradeça a Deus, porque sem Deus a gente não é nada. Agradeça a Deus, Oxalá, todos os orixás e ao seu merecimento, porque aqui a gente trabalha de acordo com a necessidade e o merecimento de cada um. Então, agradeça ao seu merecimento, você foi merecedora de alcançar isso, você é merecedora”. Então, é isso que a gente tem que passar pras pessoas, porque tem pessoas que vêm aqui e pedem coisa impossível pra nós e o impossível a gente não consegue. Então, a gente explica muito: é de acordo com a necessidade e o merecimento de cada um. E tem pessoas que entendem, tem uns que não. Aqui a gente explica como é a casa, que a gente não faz trabalho de feitiçaria, amarração. Aqui é uma casa de caridade, voltada pra caridade. Tanto que a gente vai na rua, fazer as nossas entregas de rua, levar um pouco de amor pra essas pessoas da rua. Então, é uma casa de caridade. Aqui não pode fazer maldade. Pessoas que vêm com a cabeça voltada pra fazer maldade aqui, não ficam nessa casa. Já tirei muitos. O que eu falei? A gente ‘passa na peneira’. Então, aqui é proibido de todas as formas pensar em fazer maldade, porque Deus não pôs a gente ao mundo pra fazer essas coisas. E você lidar com a espiritualidade, com espaço espiritual pra fazer o mal, jamais. Então, essa é a doutrina da casa. Quem pensa em fazer maldade não fica aqui dentro, porque os guias-chefes da casa são muito rigorosos nesse sentido, porque a gente também não quer denegrir nossa religião, a nossa casa. Então, a lei maior aqui é que rege. A lei maior é a justiça divina, que são os orixás. Então, o que rege essa casa é isso aí. Então, através dessas determinações é que a gente trabalha aqui dentro. Não é, Pai William? (risos)
(01:02:53) P1 – E como foi se tornar mãe, não espiritual, do casamento, do fruto do casamento?
R1 – Ai, eu amo meus filhos. Eu sou ‘mãe coruja’. Eu queria ter mais filhas mulheres do que homens, aí Deus me deu três homens e uma mulher. Aí a minha filha primeira eu sabia que era uma menina, aí eu falei: “Não vou nem atrás de...”, porque foi no ano 1979 que ela nasceu. Eu falei: “É uma menina, ________ com uma menina”. Foi. Mas aí veio o segundo, eu falei: “Mas meu Pai, eu queria outra menina. Quero engravidar de novo, que eu quero que venha menina”. Terceiro filho: “Mas meu Pai, eu quero tanto uma menina, meu Pai, (risos) meu Deus”. Aí o médico falou assim, chegou e falou pra mim: “Você não pode ter mais filho”. Eu falei: “Não?”. Ele falou: “Não”. Porque eu tinha aquele negócio de eclampsia no parto, eu quase morri do meu terceiro filho. Aí ele falou: “Você não pode ter mais filho, de jeito nenhum, vem fazer laqueadura”. Eu falei: “Ai, doutor, se eu quase morri, eu vou voltar pro hospital, pra fazer laqueadura?”, aí meu marido fez vasectomia. Tudo bem, então. Depois de oito anos, fiquei grávida. Aí eu só descobri... eu estava de quatro meses e meio que eu vim descobrir que eu estava grávida. Por quê? Porque eu fui escovar os dentes e o primeiro sintoma era esse: escovar o dente, enjoo do creme dental. Aí eu falei: “Nós precisamos ir ao médico, porque eu estou com enjoo de creme dental”. Quando eu cheguei lá, o médico fez o exame: “Você está de quatro meses e meio” – o ultrassom tenho até hoje, dele – “você está grávida de quatro meses e meio, sexo em formação”. Eu falei: “Não acredito. Meu marido fez vasectomia”, “Então, vamos fazer exame no seu marido de novo, porque abriu algum canal”. Aí foi lá, abriu um canal mesmo, abriu outro canal, eu engravidei do William. Aí falei: “Meu Deus, e agora?”. Aí não podia ser parto normal, aí optou pela cesariana, fez cesariana, aí o William nasceu, mas assim: os guias explicaram pra mim que ele tinha que vir, porque ele tem uma missão. Entendi. Ele falou assim: “Dona, não briga com ninguém, não xinga o Pai Maior, criador de todos nós, porque ele tem uma missão”. Aí eu fui entendendo, aí não processei o médico, porque as pessoas ‘ponhavam’ na cabeça pra processar o médico. Eu falei: “Não, não, não”. Eu ouvi primeiro a minha cabeça, falei: “Não, o médico não tem culpa. Se abriu outro canal o médico não tem culpa”. Aí o William veio, mas pensa num filho que fica do meu lado o tempo todo! De vez em quando tenho vontade de puxar a orelha dele, mas ele é uma pessoa que está ao meu lado o tempo todo e eu posso contar com ele e confio plenamente nele. Posso sair, entregar a casa pra ele, os filhos. Na camarinha, as feituras. Mas umbanda faz feitura? Faz. A gente é da umbanda, mas a gente tem também nossos orixás em iorubá, tem orixás que são de candomblés e vêm na umbanda. Eu mesma trago, ele também traz. Então, se vier uma entidade de candomblé na nossa umbanda, por que não fazer a feitura do filho? Deixar esse filho ficar vagando por terreiro, por aí, não pode. Então, você não é mãe? Vem nas suas mãos, você tem que cuidar. Isso que eu falo pra ele: “Você é pai, vem nas suas mãos, tem que cuidar”. Entrou um filho aqui que veio diretamente pra ele cuidar, entende? É isso: a gente assumir a nossa missão com amor, que não adianta tratar os filhos mal e fazer tudo de qualquer jeito. Não pode. Então, tem que assumir com amor. É o amor incondicional. Então, é o amor aqui dentro, é o amor lá fora. Nós, umbandistas... eu, estou falando por mim, sou isso, o amor incondicional. É aqui dentro e lá fora. Eu não trato ninguém mal. Sou um pouco brava, de vez em quando, mas tratar as pessoas mal, jamais, entende? Jamais. Porque primeiro que você é uma dirigente espiritual, você tem uma casa e a educação que você recebeu lá atrás tem que pairar pra sempre. Então, é essa a missão: seguir com amor, fé e fazer tudo que é permitido por Deus e nada além disso.
(01:07:20) P1 – E como é, pra você, seu filho estar aqui, trabalhando com você? O que representa?
R1 – Maravilhoso. (risos) Os filhos da casa não sabem se querem mais o Pai William, ou a Mãe Dora. (risos) Um dia, se vocês vierem aqui, vocês vão perceber. (risos) Aí, assim: aquele xodó com Pai William. Eu falo: “Caramba, já estou esquecida”, aí vem todo mundo, me abraça. Mas é assim: a gente emana amor, porque a gente recebe muito amor aqui dentro, entende? Então, as coisas têm que ser recíprocas, né? Então, nós somos muito amados nessa casa por todos, pela assistência, entende? Então, assim: a gente tem que retribuir. Por que ficar só pra gente? E eu, minha filha, saio ali fora, converso com um, converso com outro, abraço um, abraço outro e o William já está aqui, tocando sininho pra começar a gira, eu estou lá fora, conversando ainda. (risos) É assim, tudo de bom, viu? Tudo de maravilhoso, tá? (risos)
(01:08:22) P1 – E me conta das roupas: que roupas são importantes pra vocês? Tem alguma que você passou pra ele?
R1 – Ai, eu já passei tanta coisa pra ele, é que não está mais aqui, mas a roupa que eu mais... aquela roupa, né, Pai William? Mas antes da roupa foi essa capa, que foi uma coisa maravilhosa que eu fiz pro ‘seu’ Marabô e quando eu entreguei pra ele eu chorei muito, de emoção, porque eu consegui fazer a capa, que não é fácil fazer uma capa de chuva, principalmente pro ‘seu’ Marabô, que ele é enorme e traz vários elementos e eu tive que responder na capa, só que ele me ajudou. Se ele não me ajudasse, não saía.
(01:09:19) P2 – Posso dar a capa pra ela?
(01:09:20) P1 – Uhum.
(01:09:25) P2 – Só pra senhora mostrar um pouquinho o que a senhora está falando.
R1 – (risos) Ai, fica de pé, ou não precisa?
(01:09:33) P2 – Não, como a senhora quiser, só pra gente entender.
R1 – Então, gente, essa aqui é a capa do Exu Marabô. Já tem uma tabicada desse charuto aqui, que ele põe as mãos pra trás. Então, essa capa aqui eu fiz com tanto amor, com tanta gratidão e no dia que eu entreguei pra ele eu chorei muito de emoção, por ter conseguido fazer. Ele me abraçava, eu o beijava tanto, que foi uma coisa emocionante. E de vez em quando eu faço surpresa pros filhos da casa, só que (risos) eu faço umas capas de Exu. Fazia, agora nem tanto, mas eu faço mais é capa de Exu, né, Pai William? Mas agora já deu uma paradinha.
(01:10:23) P2 – Do outro lado também tem detalhe, Dona Dora?
R1 – Agora falta ele bordar o ponto, é que ele é relaxado. Ele tem que bordar o ponto. E o Exu Marabô aqui manifestou nele, que ele é o Exu de herança, né, Pai William? Só que agora ele está trazendo uma falange enorme de Marabô pra essa casa. (risos) E eu estou muito feliz, estou toda arrepiada, gente. Nossa, tanta energia que tem nessa capa. Eu estou toda arrepiada. Mas é maravilhosa. E eu sou uma pessoa muito feliz por ter feito essa capa. Muito feliz dele ter aceito. Que Exu Marabô, não sei se vocês sabem, trabalha muito na linha da cura, desmanchando feitiço, libertando as pessoas das prisões da feitiçaria, cortando demanda. Então, ‘seu’ Marabô é maravilhoso. Vou deixar o Pai William falar dele, eu estou atravessando. Então tome, William!
(01:11:25) P2 – Ela falou também de uma outra peça.
R1 – Essa daqui. Eu sou filha da Mamãe Oxum, que amo muito e sou grata a essa Mãe, por muita coisa, pela minha saúde também e essa aqui é a primeira coroa da Mamãe Oxum que eu fiz. E ela gosta tanto dessa coroa, mas por ter tantos anos eu deixo nos assentamentos, lá dentro. Quando ela vem geralmente ela quer que ponha a coroa. (risos) Eu não gosto de pôr, porque eu gosto da energia dela lá nos assentamentos, mas ela gostou dessa coroa. Minha Oxum é Oxum Opará e tem aquela outra ali. Então, são todos paramentos da Mamãe Oxum. Acho que não precisa pegar mais, não. Precisa pegar mais?
(01:12:34) P2 – O William pode, depois, escolher mais algumas?
(01:12:41) P1 – Tem alguma específica que pra você seria legal ela contar?
R2 – Sim. Sem dúvida o capacete, ali, a primeira roupa que eu ganhei, foi a minha primeira obrigação de orixá, aqui dentro da casa. Minha mãe de santo é minha mãe espiritual, minha mãe encarnada também, então eu sou privilegiado duas vezes.
(01:13:08) P2 – Essa seria legal ele mostrar.
(01:13:10) P1 – Sim, é que primeiro seria pensar como ela passou.
R1 – Então, esse capacete aqui eu recolhi pro Pai William e ele não pode saber de nada quando está na camarinha. Nada que está acontecendo aqui fora ele pode saber. Se está chovendo, ou não; se está sol, ou não; não sabe as horas, não sabe tudo, fica bem isolado e esse capacete aqui nós fomos encomendar pra ele, ele não sabia de nada. Aí, no dia da saída dele, (risos) a gente pediu, chamou Ogum em terra, aí fomos trocar a roupa, sem ele saber. Aí ele só ficou sabendo, vendo depois que o Ogum voltou pra camarinha, que aí nós fomos desmontando todos os paramentos, tirando e pusemos tudo abertinho, pra ele ver. Aí só foi choro, (risos) porque é emocionante eu, como mãe, vê-lo como meu filho numa saída de santo, né, gente? Geralmente muitas pessoas não querem: “Ah, eu prefiro ir passear no final de semana, quero me divertir, ir pra praia, pro sítio, pra uma chácara” e ele fica aqui, comigo. Então, foi emocionante pra todos nós. E todas as vezes que ele sai na saída de santo a gente chora. Ele saiu há poucos dias, 29 de abril, foi a saída do Ogum dele, nós choramos também e fizemos outra surpresa pra ele. Ele já começou a chorar lá dentro, (risos) na camarinha, aí a gente fez outra surpresa pra ele, que ele não sabia de nada. Mas a gente vai guardando, eu tenho muita roupa de Oxum também, guardada e a gente vai guardando. A gente vai montando um museu. Com o tempo a gente acha um espaço pra pôr todas, porque a gente não pode dispensar, que roupa de orixá não pode dispensar jamais. A energia continua, da primeira saída dele, continua aqui. Então, essa é referência pra nós. Independente de qualquer saída, essa é a referência, né, Pai? (risos)
(01:15:37) P1 – Você consegue colocar em palavras qual é a importância dessas roupas, dessas peças pra você?
R1 – Pra mim é muito importante, porque é de Ogum pra Ogum, entende? Porque eu trabalho com Ogum que é diferente. Então, essa pra mim é especial, porque começou pelas minhas mãos e como a gente fala na umbanda, a gente doa o nosso axé pro filho, né? Então, o nosso axé, o meu axé foi tudo nessa roupa. Então, ele jamais pode dispensar essa roupa, essa roupa tem que ficar. Ele vai ficar velhinho, o dia que Deus chamá-lo pro ‘outro lado’ essa roupa tem que continuar, como as minhas também, que é referência pros demais, mas essa roupa é muito especial, é emoção, foi trabalho, foi emoção, foi choro ao mesmo tempo, mas de emoção, foi felicidade, foi exaltação por ver o Ogum dele dançando, respondendo tão lindamente e é muito bom quando você faz algo e o orixá aceita, ele responde na dança, entende? A gratidão dele é na dança. Então, é muito gratificante pra gente.
(01:17:03) P1 – Estou emocionada. (risos) Você tem alguma pergunta? Se você quiser contar uma mancha, ou alguma marca de uso.
R1 – Está vendo essa mancha de cigarro, esse negócio de charuto? É do ‘seu’ Marabô. É ele que põe as mãos pra trás e ele carimbou isso daí logo no início, né? (risos)
(01:17:36) P3 – Já deixou a marca.
R1 – Deixou a marca dele.
(01:17:39) P1 – Ajuda a contar a história da peça, né?
R1 – É. Mas ele não quer outra capa. Já está na hora de fazer outra capa pra ele, mas ele não quer, ele quer essa, né, Pai William?
R2 – Sim, nunca pediu outra.
R1 – É, nunca pediu outra capa e faz anos, viu? Muitos anos.
(01:17:56) P1 – Quando? De que ano que é?
R2 – Faz dez anos que a gente está aqui embaixo.
R1 – Foi antes.
R2 – Uns oito anos essa capa.
R1 – Não, faz mais.
(01:18:08) P3 – Então, a casa abriu em que ano?
R1 – Aqui? 2008, quando eu mudei. Eu mudei em julho. Eu comecei lá em cima. Então, eu mudei em julho de 2008, nós começamos no mês de setembro, com a festa de erê, lá em cima. Então, da inauguração pra cá, quando foi pra inaugurar aqui, a gente já inaugurou com Ogum. Essa capa, não, William, tem essa capa aqui acho que uns dez anos, ou mais.
R2 – 2010, 2011, pelo menos.
R1 – Faz muito tempo. Acho que foi em 2010, mesmo. É 2010, 2011, por aí. Mas tenho capa mais velha, tenho capa de 22 anos, 25 anos. (risos)
(01:18:57) P3 – E tem que guardar tudo, né?
R1 – Tudo guardada. Eu tenho a primeira capa do ‘seu’ Tranca Rua, que eu fiz. Está guardada.
(01:19:05) P3 – Quando que você fez, você lembra?
R1 – Nossa, era o tempo que eu costurava. (risos) Tem a roupa da Maria Padilha, que eu fiz em 1993, uma saia dela. Eu fui fazer uma saia com sete pontas, eu fiz. A capa do ‘seu’ Tranca Rua é dessa época também, 1993, 1994, por aí. Ele era bebezinho, criança.
R2 – Quatro anos.
(01:19:30) P1 – Como você faz? Te contam como deve ser feito?
R1 – Ai, eles têm que ensinar, senão eu não consigo, não. Eu tenho que comprar quantidade X... geralmente eu compro sete metros, aí eles têm que falar como eles querem a capa, porque tem capa que vai costura atrás, tem capa que não vai. Então, em todas que eu faço nenhuma vai costura atrás, porque eu tenho que fazer com sete metros, mas aí eu compro até um pouco a mais, pra não faltar, entende? Eu prefiro que sobre, pra não faltar, mas essas daqui foram todas com sete metros, a maioria. Do ‘seu’ Tranca Rua também, tudo sete metros.
(01:20:11) P1 – E eles pedem certinho como tem que ser feito?
R1 – Não. É deles, sabe? Só que a gente já tem essa noção: são sete metros, porque é sempre número ímpar. Você pode fazer com cinco metros; se quiser fazer com nove metros, faz, entende? Com três metros tem capa, mas eu gosto de fazer com o número sete, que é um número cabalístico. Eu trabalho muito com número cabalístico, lua cheia, lua crescente e lua nova. (risos)
(01:20:41) P3 – Queria perguntar também se tem alguma comemoração específica - você falou esse de abril - que vocês comemoram.
(01:20:50) P1 – Com uma data muito importante.
R1 – Mês de...
(01:20:53) P3 – Você falou mês de abril.
R1 – Senhor Ogum. Dia 23. A saída dele foi dia 29. Janeiro, senhor Oxóssi, que a gente vai pras matas. Começando em dezembro, a gente vai pra praia, saudar Iemanjá e agradecer pelo ano. Aí vem a festa do Senhor Oxóssi, que é nas matas. Aí vem os pretos velhos, né, William? Os pretos velhos no mês de maio. Vem primeiro o mês de abril, que é de Ogum. Aí vem mês de maio, aí vem mês de junho, que agora é época das fogueiras. Mas no mês de maio a gente comemora também os pretos velhos, festa de cigano, que a gente faz aqui, faz até fogueira. Esse ano a gente não fez fogueira. Depois abril, maio, aí vem junho, que é agora que o menino vai se recolher, né? Ele é filho de Xangô, aí no mês de junho é Santo Antônio, São João e São Pedro. Ele é Xangozão, que representa a igreja, que é a pedra, (risos) que é o teimosão e a gente recolhe dia 30 agora, que é dia de São Jerônimo. A gente vai recolhê-lo. E na nossa religião, da umbanda, é esse mês de junho, mas tem outras religiões que comemoram dias diferentes, mas na nossa umbanda é mês de junho. E é isso. Aí vem junho, julho comemora Nanã Buruquê. Aí vem agosto, Obaluaiê. Setembro, as crianças. Outubro mês de Oxum, as filhas de Oxum choram. (risos) Mês de outubro é mês de Oxum, inclusive, da minha Mãe e meu aniversário também. A gente faz umas festas aqui, bem gostosas. Aí vem novembro, que a gente saúda os guardiões da rua, faz a festa dos guardiões da rua, que é de Exu, Pomba Gira e Exu Mirim. Aí a gente encerra na praia. Então, é o tempo todo, a gente trabalha e se a gente não puder fazer uma festa pra servir comida, a gente faz uma saudação e uma louvação, porque a gente não pode deixar de saudar nas épocas certas, mas é muito bom, eles respondem muito bem e agradecem muito.
(01:23:13) P1 – Dora, como foi o período de pandemia aqui?
R1 – Aqui nós ficamos um tempo sem, né, Pai William?
R2 – Um ano.
R1 – É. Depois vieram as máscaras e como Deus é bom e maravilhoso, eu não cheguei a pegar, porque: “Mãe, pelo amor de Deus, não pode e nem as pessoas aqui, assistentes, não pode. Vamos cessar” e a gente cessou. Depois começaram as vacinas, tal, a gente voltou, aos poucos, com máscara e até hoje, quem não tomou a quarta dose da vacina, vai tomar, pra depois voltar pra casa. E sempre que pode, está gripada, resfriada, usa máscara. Ou aqui, ou na assistência use máscara. No quintal, lá fora, usa máscara, porque a gente não pode facilitar, porque eu perdi uma colega de mais de trinta anos de amizade. Nossa, como é triste! A família ficou arrasada: “Mãe Dora, eu não vi minha mãe, puseram minha mãe num saco preto, a gente não conseguiu ver minha mãe, não conseguiu ver o rosto, caixão lacrado”. Nossa, como foi muito difícil, viu, gente? Mas graças a Deus a gente superou tudo isso e uma coisa eu digo pra vocês: se não fossem essas vacinas... eu tomei todas. Dá reação, viu? Não sei se vocês tomaram todas. Dá reação, mas eu prefiro ter reação do que... mas graças a Deus eu vou falar pra você: “Está 100%? Não está, porque cada hora está vindo uma coisa. Não está 100%. A gente está livre das pandemias? Não está, não”. Quem falou pra você, foi ‘seu’ Sete Flechas, né? ‘Seu’ Sete Flechas falou que ia desencarnar muita gente. O William falou pra mim: “Ai, mãe, pelo amor de Deus, ‘seu’ Sete Flechas falou que vai desencarnar muita gente, mãe. Meu Deus do céu!”. Então, é triste, mas o que podemos fazer? A gente fez a nossa parte: orientou o máximo. Estamos aqui, até hoje a gente ainda fica assim, ‘pegando no pé’. Igual a gira passada, né, Pai William? Veio muita gente, aquela assistência, não tinha lugar pra sentar e eu já comecei a ficar preocupada, entende? Vêm umas pessoas com cadeira de rodas, outras com muleta, com bengala, a gente começa: “Por favor, põe a máscara”. Eles são bonitinhos, entram todos com máscara, entende? “Tira a máscara só pra tomar um chazinho, mas vá tomar o chazinho lá fora. Depois põe a máscara lá fora”. Mas é assim, eles são superlegais. A assistência aqui é super gente boa. Eles entendem muito e têm essa preocupação, sim.
(01:26:02) P1 – E quais são as coisas mais importantes pra você hoje?
R1 – Ai, pra mim? É a minha vida, minha saúde e meu terreiro, meus filhos, (risos) a minha felicidade, (risos) a minha dança, que me faz feliz, porque eu me superei através da dança. Eu sou uma pessoa alegre hoje, que a dança me trouxe essa alegria, que eu já estava perdendo minha alegria, não estava conseguindo sorrir mais. Agora eu sou espoleta, eu voltei a ser espoleta de novo. (risos)
(01:26:33) P1 – Quais são as danças?
R1 – Eu faço dança do ventre e dança cigana. Agora eu estou fazendo ginástica, por causa da idade e eu quero fazer forró e mix dance, dizem que é bom, né, (risos) pro corpo e pra mente. Eu sou espoleta. Eu estava hoje na aula, o professor estava fazendo aula junto comigo. Ele falava: “Dona, a senhora é velhinha, mas é danada, hein?”. Eu falei: “Vou envelhecer assim, danada”. Não quero dar trabalho pros meus filhos. O dia que eu sentir que eu estou dando trabalho pros meus filhos, eu pego a minha bolsinha e vou morar no asilo de velhos, mas trabalho pros meus filhos e pras minhas noras não quero, porque eu não pus meus filhos pra cuidar de mim, mas eu sim cuidar deles. Agora eu sou livre, eu posso sair a hora que eu quiser, eu viajo. Quando eu estou viajando, eu quero viajar, não gosto que fica ligando pra mim, que o pessoal do terreiro, nossa Senhora! “Mãe, como está aí?”, “Está ótimo, o sol está quente, está ótimo”. Mas cada um tem a sua vida e cada um que toque sua vida da melhor forma possível, mas eu não quero dar trabalho pros meus filhos, não e eu acredito que eu não vou dar, né? Eu tenho muita fé em Deus, sou uma pessoa movida pela fé. Eu não quero dar trabalho pros meus filhos de jeito nenhum, nem pra minhas noras. Não é, ‘seu’ William? (risos)
R2 - A gente está aí pra cuidar.
R1 – Eu sei que cuida, mas eu não quero. Então, por isso que eu faço aula de dança. Eu fazia aula (siberiana?). Eu gosto de fazer aula. Eu não gosto de me apresentar. Eu só gosto de fazer aula, pra minha saúde, pra minha mente.
(01:28:20) P1 – E como foi se tornar avó?
R1 - Ai, maravilhoso! Nossa! O dia que nasceu minha primeira neta, eu chorei; eu gritava tanto naquele hospital. Gritava de felicidade, que o hospital é silencioso. Meu Deus do céu! E quando nasceu o filho dele, que apareceu lá, na tela, nossa, todo mundo levantou correndo e foi pra tela. (risos) Pelos meus filhos, pelos meus netos, pelas noras que eu tenho. Agora, morar junto é diferente, mas sou feliz por tudo, por essa família que eu construí, entende? Embora a gente tenha essa separação, mas eu sou feliz mesmo assim e não ‘peso isso na balança’, entende? Porque a gente não pode ‘empurrar’ essas coisas pra filhos, nem pra netos. Não deu, não deu e vamos entender que não deu mais, pra seguir em diante.
(01:29:13) P1 – Dora, a gente está caminhando pro fim, eu queria te perguntar quais são seus sonhos.
R1 – Sim. Meu sonhos? Eu vou falar e vocês vão dar risada, hein! (risos) Sabe o que é meu sonho? Pegar avião e ir pra Paris, comprar perfume. (risos) Não, eu estou brincando, gente. Meu sonho é cada vez mais me dedicar ao próximo, em qualquer situação. A gente já se dedica, mas a gente tem condições de se dedicar mais ainda. Esse é o meu sonho. Quando a gente for fazer os nossos trabalhos na rua, levar um pouco de amor pros nossos irmãos da rua, eu quero ser cada vez mais carinhosa. Eles adoram conversar com o Pai William, está entendendo? A gente adora conversar com eles. E meu sonho, um dia, posso falar, Pai William? É a gente trabalhar com crianças aqui dentro, dar aula pra crianças. É capoeira?
R2 – Sim.
R1 – É capoeira. Meu sonho é esse. Mas as nossas atividades de rua, nossas caridades que a gente faz na rua, jamais podem parar. Agora é a hora do socorro, né, Pai William? Mas o meu sonho é ver as criancinhas fazendo capoeira aqui, entende? Porque aqui tem umas crianças que vêm aqui, que a gente tem uma vontade de apertar, mas isso aí é pro futuro. Eu sei que é de Deus me chamar, eu vou concluir essa parte, Pai William vai concluir e a gente vai ver muitas crianças felizes aqui. Se a gente não puder fazer lá fora, a gente faz aqui dentro, a gente arruma um jeito de fazer, mas é que tem um menino que é médium da casa, que ele é mestre em capoeira. Então, já tem uma parte andando. Aí é uma coisa que tem que conversar muito com os pais, os pais têm que assinar autorização, pra não ter problema, também, nem pra nós e nem pro professor. Mas é um sonho nosso, né, Pai William?
R2 – Sim.
R1 – Ver as crianças fazendo capoeira, que eu também adoro capoeira. (risos)
(01:31:28) P1 – Você gostaria de acrescentar algo mais, contar alguma história, alguma passagem que a gente não tenha te perguntado?
R1 – Eu voltei muito lá atrás na minha vida, sabe? Isso aí me levou a caminhos longos, voltando ao passado, mas não, não gostaria de acrescentar, não. Eu acho que do jeito que está, está bom e Deus sabe o que a gente necessita, a gente entrega tudo nas mãos Dele e é isso, né, Pai William?
R2 – Sim, está ótimo. (01:32:14).
(01:32:18) P1 – Opa!
R1 – E eu agradeço a cada um de vocês por estar aqui hoje, a boa vontade de vocês, a dedicação. E se eu falei alguma coisa errada, se eu falei demais, vocês me desculpem. (risos)
(01:32:27) P1 – Não.
(01:32:30) P2 – Vou perguntar.
(01:32:31) P1 – Uhum.
(01:32:32) P2 – Dona Dora, uma coisa que eu queria que a senhora comentasse foi algo que a senhora trouxe logo que a gente chegou: como é enfrentar essa onda de preconceito? O que está acontecendo, que tem gente querendo tirar os terreiros, tem gente querendo ameaçar os terreiros? Como é isso?
R1 – Não, é uma violência, né? Então, assim: cabe muito às autoridades ir a fundo nisso daí porque, como eu te disse, passou na televisão outro dia que uma pessoa estava falando... isso aí é muito no Rio de Janeiro, mas em São Paulo também tem: fazer a própria... de gente quebrar as imagens, destruir tudo, entende? Quer dizer, é um grau de intolerância muito forte. Eu não quero ficar falando de onde está vindo, que a gente sabe de onde vem, então cabe às autoridades irem atrás, fazer valer a lei, porque a gente tem direitos e a lei nos protege. Agora, aqui, como eu disse pra você, a gente não fecha as portas, os portões não são fechados, as pessoas que frequentam aqui é só chegar e abrir o portão, mas aqui uma coisa eu digo pra você: se alguém vier aqui com más intenções, pensando em quebrar imagem, aqui não. Aqui sai algemado. Primeiro que frequenta polícia aqui dentro, então tem uns policiais que vêm aí que não custa nada ir chamar, mas é uma coisa inaceitável isso daí: a pessoa entrar no terreiro, a pessoa quebrar tudo, falar que é em nome de Deus. Não, Deus está fora disso. Deus não quer isso. Agora, que religião que é essa pessoa? Não é religião. Porque religião que tem amor a Deus, que teme a Deus não faz isso. Então, não é uma religião, são pessoas perversas mesmo e que é bom... a gente tem nossos direitos, mas e um dia que tiver sessão, se alguém se atrever a entrar aqui, como é que vai ser? Vai ter a reação. Então, isso não é bom pra ninguém. Então, a gente pede a Deus que pare, que acalme essas pessoas, o coração dessas pessoas, a mente, que são mentes doentes. Que acalme isso, porque não pode ser. Em qualquer religião não pode existir isso. Muito grave, gravíssimo. Então, cabe às autoridades fazer parte, procurar ir a fundo. Mas parece que não sei, não. Eu espero que aqui pro nosso lado não venha essas coisas, porque no Rio de Janeiro está ‘pegando feio’ essas coisas.
(01:35:21) P1 – Dora, o que você quer deixar como legado pras próximas gerações?
R1 – Ai, minha filha, minha dedicação, o meu amor, trabalhar com vontade, ser uma pessoa caridosa, fazer bem ao próximo. Quando vier uma pessoa aí no portão pedir ajuda nunca negar, nem que for com uma palavra amiga, atender as pessoas, porque quando as pessoas vêm aí tem Testemunha de Jeová, eu atendo; vem evangélicos, eu atendo; então a religião não importa, o que importa é a pessoa. De repente você pode ouvir algo daquela pessoa que vai fazer bem pra você. Então, nunca renegar a ninguém, entende? Esse é o legado que eu deixo, porque eu estou deixando exemplo pra todos os meus filhos aqui, carnais, espirituais: nunca renegar ninguém. Seja bom, faça sempre caridade. Se você atravessar uma pessoa na rua, você já está fazendo caridade. Se você pegar na mão de uma senhorinha está fazendo caridade, está entendendo? Então, assim: caridade sempre, ajudar o próximo sempre. Não é verdade? Estou errada? (risos)
(01:36:32) P1 – Como foi contar um pouquinho da sua história pra gente, lembrar da infância?
R1 – Ai, eu gostei. Lembrar o tempo que eu andava de carrinho de rolimã. Eu era pequena, andava naquela bicicleta, de lado, assim. (risos) Não alcançava o pedal da bicicleta, aí andava de ladinho. Você alembra dessas partes, ou não alembram? Ela alembra. Nossa, gente, eu era terrível, mas aprendi a andar de bicicleta, ninguém me ensinou, eu aprendi sozinha. Eu era pequena, a bicicleta era alta, então enfiava o pé, alcançava o pedal da bicicleta e ia pedalando. Caía tombo, levantava, fazia tudo de novo, mas eu aprendi. Então, da minha infância eu só tenho boas recordações, muitas recordações boas. Vim pra São Paulo também, fui muito bem acolhida. Trabalhei, não tinha experiência... como se diz? Hoje em dia o que eles querem? Pessoas profissionais. Aquele tempo não era tanto, então fui trabalhar, era criança, de babá, está entendendo? Aí fui ser dona de casa, casei. Mas você está arrependida? Não, não estou arrependida. Estou com a minha missão, as pessoas aqui me ajudam muito, então eu estou feliz.
(01:37:51) P1 – Obrigada!
R1 – Eu que agradeço. (risos)
(01:37:53) P1 – Obrigada, obrigada, obrigada por dividir tudo isso com a gente.
R1 – Eu que agradeço, gente. Se eu falei demais, como eu disse, me desculpem. (risos)
(01:37:59) P1 – De jeito maneira! Foi um presente, de coração.
R1 – Às vezes eu falo demais e eu não sinto que eu estou falando demais, mas é isso.
(01:38:09) P1 – Obaaaaaaaaaa.
R1 – Obrigada. Gratidão.
(01:38:13) P1 – Muito bom. Que delícia!
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