Projeto: Indígenas Pela Terra e Pela Vida
Entrevista de Kamutaja Silva Ãwa
Entrevistada por Tiago Nhandewa
Entrevista concedida via Zoom (Curitiba/Palmas), 17/11/2022
Entrevista n.º: ARMIND_HV024
Realizado por Museu da Pessoa
Revisado por Luiza Gallo
Revisado 2 por Bruna Oliveira
P/1 - Bom dia, parente! Quero já agradecer pela tua disponibilidade de participar dessa entrevista do Projeto Indígenas Pela Terra e Pela Vida, do Museu da Pessoa, onde o nosso objetivo aqui junto com as demais entrevistas, trinta entrevistas no total, é trazer a história de vida, de luta, desses indígenas de todo Brasil, valorizando a sua história de vida e que possam servir para um trabalho que vai estar disponível no acervo do Museu da Pessoa, para ser assistido aqui nacionalmente, também internacionalmente. E já começando a pergunta, sobre as suas origens, o nome principalmente, que me chamou muita atenção. Então, gostaria que você pudesse falar um pouco seu nome em português, se você tem, e o nome indígena também, o significado deles?
R - Bom dia! __________ , que significa bom dia. Eu que agradeço por essa oportunidade, porque a luta indígena ela só é visível através de mídias, um espaço que os povos indígenas têm se apropriado, então eu me sinto fortalecida em poder dar uma entrevista num espaço tão importante como esse. Eu sou Kamutaja Silva Ãwa, eu pertenço ao povo Ãwa, conhecido na literatura como povo Avá-Canoeiro, regionalmente como Cara Preta. O meu nome tem um significado espiritual, que foi a minha bisavó Kamutaja, mãe do meu avô Tutawa, ela faleceu e como forma de mantê-la viva no povo, eu recebi o nome dela, de Kamutaja. Eu tinha um nome em português, porque quando eu nasci, uma enfermeira do hospital me deu o nome de Brena. E Kamutaja eu recebi o nome quando eu cheguei na aldeia. Mas como na sociedade não indígena existe o registro geral de nomes, acabou que o nome Kamutaja não foi registrado, apenas Brena. E o meu povo...
Continuar leituraProjeto: Indígenas Pela Terra e Pela Vida
Entrevista de Kamutaja Silva Ãwa
Entrevistada por Tiago Nhandewa
Entrevista concedida via Zoom (Curitiba/Palmas), 17/11/2022
Entrevista n.º: ARMIND_HV024
Realizado por Museu da Pessoa
Revisado por Luiza Gallo
Revisado 2 por Bruna Oliveira
P/1 - Bom dia, parente! Quero já agradecer pela tua disponibilidade de participar dessa entrevista do Projeto Indígenas Pela Terra e Pela Vida, do Museu da Pessoa, onde o nosso objetivo aqui junto com as demais entrevistas, trinta entrevistas no total, é trazer a história de vida, de luta, desses indígenas de todo Brasil, valorizando a sua história de vida e que possam servir para um trabalho que vai estar disponível no acervo do Museu da Pessoa, para ser assistido aqui nacionalmente, também internacionalmente. E já começando a pergunta, sobre as suas origens, o nome principalmente, que me chamou muita atenção. Então, gostaria que você pudesse falar um pouco seu nome em português, se você tem, e o nome indígena também, o significado deles?
R - Bom dia! __________ , que significa bom dia. Eu que agradeço por essa oportunidade, porque a luta indígena ela só é visível através de mídias, um espaço que os povos indígenas têm se apropriado, então eu me sinto fortalecida em poder dar uma entrevista num espaço tão importante como esse. Eu sou Kamutaja Silva Ãwa, eu pertenço ao povo Ãwa, conhecido na literatura como povo Avá-Canoeiro, regionalmente como Cara Preta. O meu nome tem um significado espiritual, que foi a minha bisavó Kamutaja, mãe do meu avô Tutawa, ela faleceu e como forma de mantê-la viva no povo, eu recebi o nome dela, de Kamutaja. Eu tinha um nome em português, porque quando eu nasci, uma enfermeira do hospital me deu o nome de Brena. E Kamutaja eu recebi o nome quando eu cheguei na aldeia. Mas como na sociedade não indígena existe o registro geral de nomes, acabou que o nome Kamutaja não foi registrado, apenas Brena. E o meu povo passou por um processo de retificação de nome, onde a gente teve a oportunidade de ter a nossa identidade em um documento tão importante que é o RG, e aí eu fiz a troca do meu nome no RG, porque Kamutaja já existia, só não de forma formal em um documento, que é o RG. Então é isso.
P/1 - Bom, satisfeito aqui com a explicação do nome. E eu gostaria também de te perguntar onde foi o seu nascimento, quando foi? E se você pudesse também contar, como foi esse dia do seu nascimento, se a tua mãe contou para você? Como o nascimento é um dia muito especial, como foi esse dia, ela relatou para você?
R - Então, a minha mãe é sobrevivente de um contato forçado que o meu povo passou em 1973. Após o contato, alguns anos, ela teve seis filhos e eu sou a filha mais nova, a caçula e, também, a única que nasceu na cidade de Gurupi, os demais nasceram na aldeia. Mas por ser preciso colocar uma cidade no registro de nascimento, na certidão, os meus irmãos têm o município de Formoso do Araguaia, na certidão de nascimento e eu tenho da cidade de Gurupi, porque foi onde eu nasci. A minha mãe não entra assim em detalhes, mas o que eu sei é que quando eu nasci, por não ter um nome para mim, porque quem dá o nome no meu povo são os mais velhos, a minha tia mais velha, a minha tia avó ou o meu avô. Então quando eu nasci eu não tinha um nome, porque todos os outros que nasceram na aldeia receberam os nomes, menos eu, então foi quando a enfermeira colocou o meu nome de Brena, e quando eu voltei para a aldeia minha tia me deu o nome de Kamutaja, que é minha tia avó, irmã do meu avô Tutawa, mas eles não são irmãos de pai e mãe, possivelmente são irmãos somente por parte de pai.
P/1 - Eu gostaria que você falasse um pouco mais da sua mãe, qual o nome dela? Como você a descreveria? E falasse um pouco da origem da família da tua mãe?
R - Certo! Então, eu pertenço a um povo que ficou conhecido na literatura no século XVIII como o povo que mais resistiu ao processo de colonização, quando o ouro ficou escasso, na exploração dos portugueses, eles resolveram investir em agropastoril, foi quando eles encontraram o meu povo, que era um povo agricultor. E foi um povo que resistiu e declarou guerra contra os invasores e com isso meu povo foi bastante reduzido. E não só o meu povo… na verdade meu povo não declarou guerra, o meu povo declarou resistência, quem declarou guerra foram os invasores. E existem vários documentos que Dom Pedro declarou guerra contra o povo Avá-Canoeiro, “porque nós éramos hostis”. E o meu povo destruía aquelas bases militares que eles construíam, que isso teve muito na época da exploração em que estavam invadindo as terras indígenas, matando. Minha mãe tinha uns onze, doze anos quando passou pelo contato forçado, quando sertanista Apoena Meireles entrou na nossa aldeia, que na verdade não era uma aldeia, era um acampamento, porque o meu povo já não tinha mais paz e nem espaço para ter aldeia, então viviam de acampamento em acampamento, com casas de tapiris, que são os barracos provisórios que eles faziam. Então, Apoena Meireles entrou nesse acampamento atirando, soltando foguetes e capturou a esposa do meu avô, que é Watumy, Watumy não é a mãe da minha mãe, a minha avó que é a Taego, ela faleceu num processo de perambulação do grupo, simplesmente morreu, ninguém sabe o motivo. E com a captura da Watumy e do meu tio Juagá, que eram os mais vulneráveis do grupo, o meu avô Tutawa se entregou, pedindo para que não matassem o pessoal. E aí como o meu avô tinha colocado as flechas no chão, se entregando, a minha mãe que tinha se escondido num toco, saiu desse toco e foi para perto do meu avô, Tutawa e da Watumy, aí a minha mãe, com uns doze anos, foi junto com o pessoal que foi capturado, amarrado e levado para Fazenda Canuanã, ficou numa espécie de exibição, era uma casa cercada e as pessoas da região vinham conhecer os “temidos Cara Preta”, que era assim que eram conhecidos na região. Então, minha mãe, devido a isso, ela tinha um, não era dela o animal, que era um macaco, mas era da Watumy, que era esposa do meu avô, mas quem ficava com o animal era minha mãe, então por causa disso, a minha mãe, ela se chama Kawkamy, mas recebeu o apelido de Macaquira, por causa do macaquinho. Então desde muito tempo, desde o contato forçado até os dias de hoje, tem muitas pessoas que ainda [a] reconhecem como Macaquira. Minha mãe foi uma pessoa que apesar de ter passado por esse processo de violência tão grande, foi uma pessoa que se dedicou bastante na educação dos filhos, foram seis filhos que ela teve, nós somos quatro mulheres e dois homens e dos seis filhos, três são de pais diferentes, três são de um casamento, porque o meu povo, por ser um povo de recente contato, por andar nu, por ter uma alimentação diferente, não industrial, acabava sofrendo essa questão do preconceito. E minha mãe nunca conseguiu consolidar um casamento por causa da forma como a gente foi tirado do nosso território indígena Tupi e colocado em uma terra de povos Jê, um povo totalmente diferente, uma violência bem irreparável que o Estado fez com meu povo. E a minha mãe teve seis filhos e, graças a ela, que hoje nós somos 38 Ãwa. Então, a minha mãe, eu a descreveria como uma pessoa que é a salvadora da existência do povo, porque ela permitiu com que nós nascêssemos. Depois do contato forçado, quando eu nasci, só existiam meu avô Tutawa, minha mãe e o meu tio Agaék e o tio Juaga, então das quatro pessoas, desde quando eu nasci, que eu conhecia, somente a minha mãe permitiu que o grupo continuasse existindo, no sentido de existência. Eu Kamutaja aqui, nasci, ela cuidou de mim até eu me tornar independente. E é claro que as outras pessoas também contribuíram com a nossa existência, não de nascimento, porque isso é uma coisa muito única da mulher, mas garantiram… o meu avô, os meus tios, garantiram que a gente continuasse existindo enquanto povo Avá-Canoeiro, mesmo vivendo num território de um povo distinto do nosso. Então, assim, minha mãe é uma pessoa que na verdade não existe uma palavra para dizer o que é, descrever ela, sabe? Mas assim, o povo é grato a ela por ter permitido, porque graças a ela, hoje nós somos 38. Porque mesmo diante de toda diversidade cultural, territorial, ela permitiu que a gente nascesse.
P/1 - Com certeza uma guerreira e será lembrada por você. E, também, ainda nessa linha das origens e família, eu gostaria também de perguntar sobre o seu pai, quem é ele? Se você pudesse falar um pouco sobre ele, da origem dessa parte da família?
R - O meu pai é indígena Tuxá, ele se chama Gildo. Meu pai morava em Rodelas, aí devido o processo da usina hidrelétrica que foi construída, o território foi alagado, então ele passou a morar numa aldeia chamada Morrinhos, que tem como município a cidade de Ibotirama, Bahia. E aqui na Ilha do Bananal, estava tendo um projeto de irrigação, então a FUNAI trouxe alguns Tuxá, de Rodelas, Buritirama, para poder trabalhar nesse projeto de irrigação. E o meu avô paterno, ele veio fazer parte desse projeto. E o meu pai cresceu longe do pai dele, do meu avô, mas a maior vontade que ele tinha era de rever o pai, então quando ele se tornou uma pessoa, não adulta, que ele ainda não era adulto, mas com uns dezesseis, dezessete anos, ele decidiu que queria ir atrás do pai dele, foi quando ele foi para a Ilha do Bananal. Aí lá ele conheceu a minha mãe e assumiu a paternidade de dois filhos da minha mãe, minha mãe já tinha três filhos e ele reconheceu a paternidade de dois, porque a mais velha já tinha uma referência de pai que era o meu avô, o meu avô Tutawa, então meu pai construiu a família junto com a minha mãe e eu cresci junto com a minha família materna. Então, assim, eu sinto e me vejo como uma indígena do povo Ãwa/Avá-Canoeiro, apesar de ter um pai Tuxá. E eu sou muito grata também ao meu pai, porque ele foi uma pessoa que, junto da minha mãe, sempre deixou claro que a gente tinha que ser forte, porque primeiro porque a gente não estava no nosso território, e segundo porque nós éramos poucos, então existia essa consciência de que nós tínhamos que estudar. Então ele, o meu pai, por um bom tempo, se dedicaram bastante na educação dos filhos.
P/1 - Bom, pegando essa linha, você falou de estudo, tem a ver com formação, você fez muito bem essa tarefa de levantar todas essas informações da família, acho muito interessante isso, acho que dá sentido para vida e, também, de quem nós somos. E além dessas histórias que você deve ter ouvido bastante sobre sua família. E nesse processo de formação, da construção da identidade indígena, a gente participa muito da oralidade, das narrativas. E que outras histórias você costumava ouvir quando criança, ou agora mesmo, enquanto adulta, do seu povo, ou enfim, se você pudesse falar um pouco? Além dessas histórias da família, alguma específica.
R - Sim! Quando eu completei sete anos de idade, eu fui estudar em um internato, eu entrei com sete e saí com dezoito, mas quando eu ia para a aldeia, eu ficava com meu avô e ele contava para nós como foi que surgiu o Boto, que assim como outros povos, sempre tem contado como surgiu o universo. Então, meu avô contava para nós a história de como surgiu o Boto, que foi uma traição da Anta com o marido, e quando o marido descobriu, ele se jogou no fogo, depois na água e aí surgiu o Boto, estou falando bem breve. E, também, uma outra coisa é sobre o Banhanga. Banhanga é o nosso Deus. E aí ele contava como foi a passagem de Banhanga até o destino que ele queria chegar e que ele era amigo de todos, mas tinha uma coruja que tinha inveja dele, então quando o Banhanga estava tentando arrancar coco, aí a coruja chegou e fez um diálogo com ele e se propôs ajudar, e aí quando ele arrancou o coco, o coco sem querer caiu na coruja, e aí por isso que ela faz um som, quando mexe com ela, ela faz assim, sabe? Ela faz um barulho, que eu não me lembro, eu não consigo imitar a coruja. Mas a minha irmã também, que é a minha irmã mais velha, ela vive contando essa história, e ela ama, porque o meu avô gostava de falar bastante. Aí quando eu falo do meu avô, é porque em 2015 ele faleceu, e ele é uma grande referência para nós, de resistência, porque ele foi uma pessoa que cuidou do nosso povo, ele era o nosso líder, sabe? E mesmo na ausência física dele, a gente continua a luta dos nossos ancestrais. E quando esse coco caiu na coruja, a coruja ficou com raiva e deu um trajeto totalmente diferente para Banhanga, porque ele ia para um trajeto de chão, e aí a coruja ficou com raiva e falou que ele tinha que ir por outro caminho, quando ele chegou no caminho ele tinha que atravessar um rio, e aí foi quando ele se encontrou com um jacaré. O jacaré falou que ia atravessá-lo e ele subiu em cima do jacaré, foram atravessando o rio, mas antes de chegar no destino ele tentou comer o Bainhanga, então o Banhanga foi e conseguiu se salvar e por causa do jacaré, ele perdeu a amizade com os outros bichos, porque foi uma forma que o Bainhaga tinha de: “vou te castigar por isso!” E aí, mais para frente, ele tinha que continuar a trajetória do rio, então um Jaburu, aquele Jaburu que fica no rio, das pernas longas, que fica comendo os peixes, levou o Bainhanga no bico para poder terminar a trajetória. E a história vai seguindo, contando a experiência de Banhanga com cada bicho, para a gente poder compreender o porquê cada bicho está no seu lugar, porque que ele faz esse barulho, porque ele tem essa característica, porque foi uma relação de um Deus, que é Bainhanga com os animais, aqueles que foram bons, aqueles que foram ruins, na trajetória onde Bainhanga queria chegar. Assim, tem outras... tem a parte também que o meu avô sempre alertava a gente sobre um espírito chamado Diabo Pogaba, que é um espírito, que quando ele toca na gente, nos transmite doenças, e aí ele sempre falava que a gente não podia, após a chuva, ficar andando, principalmente à noite, porque era um momento que esse espírito saía da terra. Inclusive, a minha tia Tuakire, que faleceu em 2006, era muito doente, desde o contato forçado. E o meu avô, como ela sempre nos falou que ela tinha visto uma anta morta, e ela foi até essa anta, e aí quando ela chegou lá o Diabo Pogaba estava lá, então ele pegou na perna dela. E desde então, ela sempre foi uma pessoa doente. E aí são essas coisas que, às vezes, para o não indígena é uma história, mas para nós, é uma realidade.
P/1 - É verdade! Você falou das histórias agora, que você ouviu, ouvia, ainda ouve. Ainda no tempo de criança, além de ouvir histórias, tinha alguma brincadeira, você, teus amigos, teus irmãos. Como era esse tempo de criança, da infância?
R - Eu quero falar uma coisa antes de responder essa pergunta. O meu povo nunca teve, depois que teve esse processo de invasão dos portugueses com os povos indígenas, meu povo nunca mais teve a liberdade, por exemplo, de fazer um processo ritual de menina para moça, de menino para rapaz. À noite, o povo andava e durante o dia todos ficavam quietos e as crianças não podiam chorar, não podiam ser crianças. E assim, tiveram muitas coisas que o meu povo foi impossibilitado de realizar por causa das perseguições constantes, tanto é que hoje, atualmente, nós estamos num projeto de construções de livros, inclusive para a escola que a gente está aguardando o Estado liberar para a gente poder ter acesso à educação escolar indígena, uma educação diferenciada. A gente está construindo material didático, inclusive com essas histórias que estou te falando, que eu falei anteriormente, porque é uma forma também da gente registrar, para além, da memória.
E quando eu era criança, voltando para a pergunta, as nossas brincadeiras eram mais voltadas para com a relação com a natureza mesmo, a gente tomava banho no rio, fazia competições de atravessar o rio nadando, a gente brincava de canoa no rio, a gente fazia muitas coletas, por exemplo, dos frutos que davam em determinada época, que é o ingá, o pequi, a macaúba, o coco babaçu e também, às vezes, quando nós queríamos participar das brincadeiras que aconteciam no povo Javaé, que era Aldeia onde a gente vivia, o meu pai não deixava a gente participar. Então, acabou que as nossas brincadeiras eram desse jeito mesmo, quando a gente ia tomar banho a gente brincava no rio, a gente, eu e os meus irmãos, a gente brincava muito também em cima do pé de manga, do pé de goiaba, a gente brincava com os cachorros que tinha na nossa casa e era assim. E aí, depois que a gente foi para o internato, que é um internato da Fundação Bradesco, Instituição Fundação Bradesco, escola de Canuanã, a gente passou a brincar de bola, que é o futebol, queimada, começamos a ter outras brincadeiras, que a gente aprendeu com a sociedade não indígena, nesse processo.
P/1 - O não indígena tem uma ideia de divisão temporal de idade, criança, adolescência e a fase adulta, e aí vai até a terceira idade. Você falou do internato, eu gostaria que você contasse um pouco dessa sua escolarização, como foi você na escola? Contasse um pouco da escola, dos professores?
R - Então, a Instituição Fundação Bradesco, a escola de Canuanã, onde eu estudei, só foi possível ter a sua existência, porque a FUNAI, na época da ditadura militar, fez o contato forçado com o meu povo, nos tirou da Fazenda Canuanã, que na época não era Fundação Bradesco, não era escola, era apenas uma fazenda. E a fazenda foi instalada lá e a gente começou a compartilhar no mesmo território, Fazenda Canuanã e o meu povo. E como a fazenda queria fechar um acordo institucional com o banco Bradesco, a FUNAI teve que nos tirar do nosso território de forma violenta, emitir um documento alegando que não existia indígena no território. Então, a partir daí, foi possível a Fazenda Canuanã firmar essa parceria institucional, institucional no caso, com o Bradesco. E quando eu fui estudar no internato, os meus irmãos mais velhos já estudavam lá, então para mim a escola era uma referência por causa dos irmãos mais velhos. Mas quando eu fui para o internato, o meu primeiro dia eu não consigo esquecer, porque assim, eu estava muito empolgada para estudar lá, e o meu pai me levava de canoa, de bicicleta, para fazer prova, entrevista, porque tinha um processo seletivo, então eu consegui passar neste processo seletivo. Então, eu estava muito empolgada, a minha mãe me levou, arrumou o meu armário, que é um armário para cada aluno, eu brinquei o dia todo, não lembrei da minha mãe, porque lá na aldeia eu fazia isso, eu só acordava, tomava café e aí brincava, minha mãe chamava para almoçar, e aí eu vazava de casa, brincava, brincava e aí, no final do dia, minha mãe gritava e a gente voltava, tomava banho e ficava em casa, mas era assim, o dia brincando. Então, quando eu cheguei no internato, meu primeiro dia, eu brinquei o dia inteiro. E quando chegou o horário que a minha mãe me gritava, eu não vi a minha mãe, então eu chorei demais da conta, a minha professora foi lá, se apresentou, falou que ela ia ser a minha professora e tudo e os meus irmãos também foram lá, conversaram comigo. Então depois disso, até eu me adaptar, minha mãe e o meu pai me visitavam todos os dias e todos os dias, eles levavam as coisas que eu gostava, que era batata doce, macaúba, essas coisas lá da aldeia. E com o tempo, eu acho que pelo fato de eu já ser assim mesmo, tinha também outros indígenas no internato. E a gente sofria preconceito por ser indígena, só que eu percebi que os outros parentes indígenas ficavam calados quando sofriam preconceitos, ignorava, mas eu já não era assim, eu já partia para briga, no sentido, assim, de me defender verbalmente. Tanto é que, a maioria das vezes, quando eu me sentia bastante ofendida, eu falava para um orientador, que lá tem vários orientadores, o orientador educacional, que é da sala de aula e orientador que eu acho que é orientador de disciplinar, eu não sei ao certo, mas era o… Porque como lá era o internato, tinha o orientadora que ficava responsável por aquele espaço da escola, sala de aula e o outro que era sobre o nosso comportamento no ambiente geral mesmo, então eu sempre falava para ele. E eu percebia que existiam vários funcionários sim, que tinha preconceitos com indígenas, outros já tinham uma compreensão do quão era importante valorizar também a cultura indígena, ainda mais que era assim, o que dividia a escola do território indígena, era o rio, internato estava aqui a aldeia já era do outro lado. Então meu avô, Tutawa, ele ia todos os dias para o internato, porque ele pegava o que sobrava do café da manhã para nós, lá na aldeia, para a minha família, no caso. Ele pegava pão, leite, às vezes, também ele pegava os restos do gado, que a escola não utilizava, que era, por exemplo, a cabeça, o bofe, o fígado, os pés, a parte também da barriga, que o povo faz buchada, essa parte também meu avô pegava. Porque o meu avô era… ele compreendia que aquele território era nosso, então ele matava as vacas da fazenda, da escola. Então eles falaram assim: “Olha, a gente vai te dar a carne, vem buscar a carne aqui, aí você não precisa mais matar as vacas”. E aí, no começo, realmente, o meu avô ganhava carne, mas depois eles passaram a dar o que a escola não utilizava, que era a cabeça, as vísceras, as partes que iam para o lixo. E o meu avô todo dia ia na escola e ele ia de sala em sala me procurar, porque ele não conseguia memorizar em qual sala eu estava. E na época que eu estudava no internato, meu nome era Brena, no documento. E o meu avô também me chamava de Brena, a minha tia avó que me batizou de Kamutaja, que não me chamava de Brena, era Kamutaja, sempre Kamutaja. Então meu avô, quando ele ia me procurar, ele ia em cada sala, aí ele abria a porta, enfiava o rosto assim e falava: “Brena!”. Assim, ele não tinha aquele hábito de chegar em alguém e falar, assim: “Você pode me informar onde a Brena tá?” Ou, “chama ela para mim!” Então ele ia em sala e sala. E, às vezes, eu ficava com ele no internato. O que mais me entristece, é porque eu ouvia que tinha alguns alunos que eram bastante desrespeitosos com meu avô. Faziam piadas, eles ficavam fazendo gracinhas com o meu avô, ele mesmo falando assim, demonstrando que não gostou, as pessoas continuavam, e aí isso me machucava bastante, porque o fato do meu avô ir todos os dias para a Fundação, é porque existia um vínculo da terra com ele, com a gente. E ele ia lá todos os dias. E quando eu era criança, eu não sabia da relação, do contato forçado, da perca do nosso território com o internato onde eu estudava, eu sabia que a gente tinha sido tirado do nosso território e que a Mata Azul, o Capão de Areia, era do nosso povo, só que eu não sabia esse contexto histórico. Eu sabia que os brancos mataram a gente, os não indígenas matavam a gente, o nosso povo, eu sabia que teve essa perseguição, que amarraram o meu povo, tiraram de lá, mas eu não sabia o outro lado da história, que é o momento que houve, aquele tipo, por que tirou nós de lá? Quem estava envolvido? Por que aconteceu isso? Isso eu não sabia! A única coisa que a gente sabia é que o não indígena queria o nosso território, mas cada um que participou desse momento de violência com o nosso povo, eu não sabia. Então foi quando a gente iniciou o processo de demarcação do nosso território, em 2009, que eu soube da relação do internato com meu povo, de como ela veio a surgir, o que precisou ser feito para ela vim a existir. Então, quando eu soube, eu fiquei muito revoltada, eu não conseguia diferenciar a presença dos funcionários ali no internato, tanto é que eu comecei a desrespeitar as pessoas, e eu não estava conseguindo compreender que eles eram apenas funcionários, eles não foram os responsáveis por tirar o meu povo. Foram os proprietários, do banco, da fazenda. E, depois disso, eu só não conseguia sair do internato para estudar em uma outra escola, porque os meus pais não tinham condições financeiras de me manter em outro lugar, porque a instituição segue um projeto social de que ela existe para ajudar as pessoas carentes. Mas eu compreendo que essa parte social que eles tanto pregam, deveriam reavaliar o processo histórico que fizeram com meu povo, uma marca de violência que eles deixaram. Eu falo isso, porque no processo de demarcação, no período em que a outra parte tem que contestar, eles contestaram, afirmando que o território que nós estávamos em estudo não era do povo Avá-Canoeiro. Então, assim, isso me marcou bastante, tanto é que eu evito visitar a escola, eu fui lá, se não me engano, acho que uma vez, porque eu tinha que pegar o meu diploma depois que eu me formei. Assim, é claro que por eu ter estudado lá algumas coisas ficaram mais compreensíveis para mim, porque lá é uma escola de não indígena, mas pelo fato dele ter estudado lá, algumas coisas também me deixaram com alguns conflitos internos. Por exemplo, quando eu fui fazer o vestibular, eu fiquei muito confusa com que curso escolher, porque eu fiquei pensando assim: “Ah, eu posso escolher tal curso, porque ele é bom financeiramente e vai ser bom para mim, quanto Kamutaja sozinha”. Mas depois eu fiquei pensando em um curso que fosse bom, não só para Kamutaja, mas para o coletivo do meu povo, que viesse fortalecendo no processo de demarcação, na reestruturação linguística do meu povo, cultural também. Então isso fez com que eu me dedicasse bastante no curso de Pedagogia. Eu sou formada em Pedagogia, eu consegui aqui na Universidade Federal do Estado de Tocantins, Campus de Palmas. Inclusive eu entrei por cotas, que a cota eu vejo que é um direito que os povos indígenas conquistaram, e que ela deve continuar existindo, porque ela é uma forma do Estado reconhecer que os povos indígenas merecem sim uma educação diferenciada, porque é muito difícil indígena competir com um não indígena quando o modo de avaliar é totalmente diferente. Como é que o indígena que fala a língua materna dele vai competir com alguém que o vestibular é totalmente na língua portuguesa? E é justamente por isso que eu sempre afirmo que a cota é essencial para os povos indígenas, e ela não nos diminui, pelo contrário, ela diz que nós, povos indígenas, só temos direito a ela, porque nós lutamos. E foi assim que a gente também conseguiu ter dois artigos na Constituição, que são o 231 e 232, porque os nossos ancestrais lutaram, e graças a eles, hoje eu… (choro).
P/1 - Quer tomar uma água?
R - Não, tá tudo bem! E é graças a eles que hoje eu consigo ter certeza de que a minha luta e tudo que eu faço é para o bem não somente do meu povo, mas também para os povos indígenas do Brasil. Porque tudo que nós, minorias, temos conquistado como direito, foi através de luta, e jamais um indígena deve se colocar contra esses direitos, porque existem vários preconceitos em relação aos direitos que a gente tem conquistado e esses preconceitos são usados pelos não indígenas como privilégio, “os indígenas têm muitos privilégios”. E eu aprendo que não, eu poderia ter sido privilegiada sim, se o meu povo tivesse o nosso território, se o meu avô não tivesse morto por um vaqueiro, se a minha prima não tivesse morta no contato forçado, se o corpo do meu tio Tuxi tivesse voltado para o meu povo quando levaram para Goiânia para fazer um tratamento e a única coisa que meu povo recebeu foi a notícia de que ele morreu, e ninguém sabe como se deu essa morte, para onde o corpo foi (choro). E é por isso que a minha trajetória escolar, ela carrega um… ela foi tipo assim, eu vejo que eu fui capacitada para isso. A minha formação escolar foi para isso, eu estudei numa escola que ela só pode vir a existir porque tiveram que fazer essa violência com o meu povo. E hoje eu sou uma das lideranças que atua no processo de demarcação, junto com o meu Cacique, Wapoxire, e o meu vice Cacique, Kupere, na retomada. E tudo que eu aprendi quando estava na educação básica, no ensino médio e no ensino superior, eu uso contra essa violência que o Estado junto com o Banco Bradesco e a Fazenda Canuanã fez com meu povo.
P/1 - Com certeza é uma luta fundamental, o território é tudo para a gente. Eu fiquei pensando aqui na sua trajetória, escolarização até o ensino superior. Eu também sou pedagogo, professor e sei muito bem do que você está dizendo. E assim, a comunidade nos escolhe, os nossos ancestrais, isso já está decidido na nossa vida. E eu atuei durante algum tempo, enquanto professor em sala de aula. E uma pergunta que eu gostaria de te fazer, você disse que vocês estão reivindicando uma escola lá para o território. Você já leciona, já atua como professora, como pedagoga? Como que tá isso? Se você pudesse contar um pouquinho dessa luta também pela escola.
R - Meu povo, desde o contato forçado, as gerações que nasceram após o contato, que foram nós, os seis irmãos, quando nós nos tornamos adultos, por não ter uma referência territorial e aldeia, a gente acabou se espalhando, morando de favor na aldeia do povo Iny. E quando a gente iniciou o processo de demarcação, a gente compreendeu que nós precisávamos nos unir, porque separado a gente não ia se fortalecer mais, a gente precisava se unir enquanto povo em algum local para se fortalecer mais ainda para o processo de demarcação, a reestruturação cultural e tudo que envolve a questão do povo Ãwa/Avá-Canoeiro. Foi quando, no ano passado, o meu cunhado, que é Javaé, ele cedeu um espaço que ele conquistou, porque ele foi uma das pessoas que atuou em nome do Povo Javaé, do Povo Iny, no processo de demarcação da terra indígena Inãwébohona, então ele tem um espaço, que na região é conhecido por Itiro, é como se fosse uma chácara pequena, mas ao invés de usar o nome chácara, esses nomes que são mais comuns, lá é usado como Itiro. Ele cedeu esse espaço para o meu povo, para a gente poder se unir e esperar o processo de demarcação ser finalizado. Isso foi feito ano passado, no mês de outubro. E aí esse ano fez um ano, que nós estamos juntos como povo, desde quando a gente nasceu, se tornou adulto, tem muitos anos que a gente vivia separado, então assim, a gente sempre nos viu como o povo, só que nunca tinha vivido em comunidade, no sentido, assim: essa é a comunidade do Povo Ãwa/Avá-Canoeiro. Então, essa é a primeira vez que a gente está vivendo em comunidade. E todo mundo estava muito feliz, assim: “Ah a gente vai ficar junto, vamos poder traçar planos para a retomada, processo de demarcação”. As crianças, como era na pandemia, elas tinham acesso à educação através de atividades impressas, e aí quando a aula voltou presencial, elas voltaram esse ano, mas antes das aulas voltarem, a gente fez uma solicitação para a Seduc [Secretaria Estadual de Educação], para gerência indígena aqui do estado de Tocantins. Nós fomos orientados que uma escola tem uma durabilidade muito grande para vir a funcionar, por causa da questão de construção, eles explicaram. E que o ideal seria, por enquanto, uma extensão, porque o atendimento ia ser mais rápido e, posteriormente, a gente poderia pedir uma escola, porque aí ninguém ia ser prejudicado, enquanto eles fizessem a parte burocrática da existência de uma escola própria para nós, a gente estaria tendo acesso à educação. E a gente pediu a extensão da escola indígena Inãwébohona, que é uma aldeia chamada Boto Velho, que fica uns vinte quilômetros da nossa aldeia, uns vinte quilômetros da nossa aldeia lá. E a gente fez o pedido no dia 17 de fevereiro de 2022. A gerência indígena nos atendeu e nos garantiu de que o nosso povo ia ser atendido. E foi passando o tempo. Ninguém mais falava sobre assunto, eles fizeram um relatório e, às vezes, o relatório dava, parecia favorável, às vezes, não dava favorável, eles tinham que recorrer. Aí foi nessa coisa toda e no dia 06 de junho eu defendi o meu TCC, e aí foi quando eu finalizei o curso de Pedagogia, aí quando foi no dia 07 eu voltei na gerência indígena, na Seduc, perguntei: “E aí, como é que tá a nossa escola? Porque a gente pediu extensão porque não ia demorar, e nós não fomos atendidos ainda.” E aí a mulher que era responsável pela parte da secretaria, lá na Gerência Indígena, virou para nós e disse que a previsão agora não era mais contratar, abrir escola, nem contratar professores, porque estava na época de eleição, no período eleitoral, que não podia mais gastar dinheiro e tudo, ia gerar déficit de professores, e foi falando essas coisas. E nisso, as crianças já estavam sem acesso desde quando iniciou o ano letivo. E aí foi quando eu fiz uma denuncia em nome da associação, na Defensoria do Estado de Tocantins. E aí teve a reunião na defensoria e de lá a reunião foi perfeita, A Seduc garantiu que dentro de um mês a escola ia estar funcionando, ia ter professor contratado e eles iriam fazer um calendário específico para o nosso povo, porque tinha que repor as aulas letivas. E a gente já está em novembro, dia 18, e o meu povo não tem acesso à educação escolar indígena, que é a educação específica. E essa é a primeira vez que o meu povo iria ter acesso à educação escolar do povo Avá-Canoeiro, do Povo Ãwa. Então, assim, eu ainda não sou atuante da área, eu preferi me dedicar a atuar na escola do meu povo, porque eu vejo que a escola não é uma escola neutra, e se a educação escolar indígena é uma educação específica de cada povo, é necessário que tenham profissionais que atuem nessa educação simultânea, que é a educação do conhecimento científico e a educação cultural do próprio povo. E é por isso que ela é diferenciada, ela é específica e eu vejo que tem muitas escolas indígenas que elas dão mais valor ao conhecimento científico do que a parte cultural, o conhecimento cultural do seu povo. E a gente está nessa luta, para o que o meu povo tenha essa educação, que até o momento a Seduc não disse que não vai nos dar educação, mas o comportamento dela, de não nos ter atendido ainda, ela está dizendo que “não, nós não vamos atender vocês”, é essa leitura que eu faço desde fevereiro até os dias de hoje. E o meu povo precisa muito ter acesso a essa educação diferenciada e específica, porque eu vejo que através da escola o meu povo vai se fortalecer bastante. Primeiro porque eu estudei numa escola não indígena e que para mim, em relação ao conhecimento científico foi muito bom, mas, no momento que foi para eu fazer uma escolha profissional que pudesse contribuir para uma vida coletiva, para uma vida individual, foi uma coisa que fez bastante com que eu entrasse em conflito, sobre mim mesma, sobre a minha pessoa, a minha decisão. Então, com isso eu quero muito poder lecionar na escola do meu povo e contribuir para formação enquanto ser humano também, das crianças, dos alunos do meu povo.
P/1 - Olha, eu fico muito tentado quando a gente começa a falar sobre educação escolar indígena. Eu estive em sala de aula quinze anos, quatorze anos, depois eu assumi coordenação pedagógica durante três anos. E por enquanto estou um pouco ausente, por estar realizando outros projetos. E gostaria de abrir aqui um parênteses para te informar, acho que você já deve estar informada, que vai acontecer o Fórum de Educação Escolar Indígena, agora, em Brasília. E assim, da importância desse espaço, dessa instância hoje para estar levando essas reivindicações, ainda mais porque nós estamos passando por um processo de transição de governo, então nós temos muitas expectativas que contentem as nossas necessidades, esse novo governo. Então assim, só para dentro desse espaço também colocar isso para vocês acompanharem. Bom, partindo para outra questão, a gente veio falando aqui da sua trajetória de vida, seus familiares, sua formação, território também você falou, que é a luta pela terra que não deixa de ser a luta pela vida. E quando você falou de educação você também trouxe a questão da pandemia, dos alunos que foram atingidos de alguma forma, estarem realizando atividades remotas. Eu gostaria de perguntar como foi esse período de pandemia, como que vocês fizeram para se proteger, se alguém chegou a falecer? Se você pudesse contar um pouco desse momento da pandemia?
R - Então, quando começou essa crise pandêmica, o meu povo, antes de sair a vacina, eles começaram a fazer o uso medicinal dos medicamentos que tinham na floresta mesmo. E teve algumas pessoas que pegaram Covid, apenas uma pessoa do meu povo, que é membro do povo, que inclusive esse cunhado, Kuriawa, que no início eu falei que ele cedeu espaço para nós. Ele foi a única pessoa que pegou, assim, teve outras pessoas que pegaram, só que ele foi a única pessoa que pegou e ficou muito mal, mas não a ponto, por exemplo, de ir para o hospital e ficar entubado, o pessoal não chegou nesse ponto de ir para o hospital, mas pegaram, todos os dias fazendo uso da medicina do povo mesmo. E uma das coisas que a gente estava bastante preocupado, porque foi um momento que, no processo de demarcação, nós precisávamos passar pela perícia antropológica, que é um momento que a outra parte pede uma perícia para poder tentar contestar a identificação, o primeiro laudo que a antropóloga faz reconhecendo o território indígena. Então, inicialmente, estava sendo adiado por causa da perícia, e mesmo a gente sabendo do risco dessa doença, desse vírus, a gente estava insistindo que acontecesse, porque já tem dez anos que a gente está no processo de demarcação. E aí quando a perícia foi liberada, o juiz soube que o meu povo não tinha sido vacinado. E não foi vacinado porque eles estavam com medo da vacina. Mesmo a gente falando que a vacina ajudava, que não era para acreditar nessas coisas, nesses fake news que estavam aparecendo, que tinha que vacinar. Aí, nesse momento, eu percebi que o território falou mais alto, a nossa ancestralidade, que a decisão de tomar vacina não foi, tipo assim, beleza a gente acredita na ciência, a gente acredita que a vacina vai nos proteger ou vai diminuir o impacto, caso sejamos contaminados. O pessoal só tomou a vacina porque a gente foi informado de que a perícia não ia acontecer porque ninguém tinha tomado a vacina, porque era uma forma de nos proteger. Todo mundo falou: “Não, mas a gente tem que dar procedimento, então vamos tomar, vamos tomar por Taego”, que é o nome da terra. Taego é o nome da minha avó, mãe da minha mamãe. O meu avô deu o nome da nossa terra em homenagem a ela, e ele nunca nos falou o porquê da homenagem, mas na minha interpretação é porque o povo só existe por ela, porque a Taego, ela é mãe da minha mãe. A Taego gerou a Kawkamy, que a Kawkamy gerou seis filhos, dos seus filhos chegou a 38. Essa é a minha interpretação, então o meu avô estava agradecendo a ela e deu o nome da nossa terra de Taego. Essa é a minha interpretação. E assim, a gente nunca especulou para ele, “Por que?” Só sei que ele, quando perguntaram para ele qual o nome que nós íamos dar para a nossa terra, ele pediu dois dias para responder, aí quando ele voltou, ele voltou com esse nome, Taego, que era o nome de uma das esposas, que ele tinha duas esposas. E o pessoal tomou vacina porque queriam dar procedimento a perícia. Então, assim, nesse momento de pandemia foi uma coisa assim, muito de mentiras, a mentira querendo dizer que a ciência não presta, que essas vacinas não são válidas. E aí acabou que durante a pandemia, a gente conseguiu fazer a perícia, todos tomaram a vacina. Mas o nosso maior medo era da minha mãe pegar esse vírus, porque a minha mãe, ela é a única pessoa que a gente tem, para além de ser a nossa mãe, porque o meu povo Ãwa/Avá-Canoeiro aqui do Estado de Tocantins, é uma família, porque você pode analisar outros povos indígenas, é um povo, só que cada povo tem o seu núcleo de família. Como meu povo reduziu, e nessas perseguições de invasão dos territórios dos povos indígenas, como estratégia de sobrevivência o povo se dividiu, e esse grupo do povo Ãwa/Avá-Canoeiro a qual eu pertenço, é a minha família, ela é formada de mãe, sobrinhos, tios primos, então a gente estava com muito medo da minha mãe pegar esse vírus e vir a óbito, porque além dela ser a nossa matriarca, ela é a anciã do nosso povo, é a nossa biblioteca. E é uma biblioteca viva, que tipo, a gente tem que cuidar.
P/1 Eu fiquei muito empolgado com algumas falas suas, eu acabei não completando essa parte da família, mas eu gostaria de perguntar… Hoje, eu escutei uma criança aí, você falou do teu esposo. Você é casada? Tem filhos? Como está isso?
R - Então, eu sou casada, já tem nove anos e eu não tenho filhos. Eu cuido dos meus sobrinhos. O meu esposo, quando eu me casei com ele, ele era viúvo, e aí ele tinha dois filhos, então acabou que eu o ajudei a terminar de criar os filhos, que hoje são grandes. E eu cuido dos meus sobrinhos. E esse bebezinho que você escutou chorando é uma sobrinha minha.
P/1 - Bom, então nós estamos caminhando aqui para a reta final. Gostaria de te perguntar, quais são as coisas hoje… eu sei que você falou muitas coisas que são importantes para você, mas o que você considera muito importante para você hoje? Também, quais seus sonhos? E qual legado você gostaria de deixar?
R - Quais são os meus sonhos? As minhas perspectivas? E o legado? Tá! Um dos meus sonhos é eu poder conseguir fazer com que a escola do meu povo seja uma referência de educação diferenciada. E que a escola é capaz sim de trabalhar o conhecimento científico e o conhecimento tradicional simultaneamente e, a partir disso, as pessoas verem que nós não somos inferiores, nessa questão do conhecimento. Na verdade, eu tenho muitos sonhos, eu quero muito que o processo de demarcação seja concluído, porque o juiz, ele deu a sentença favorável ao nosso povo semana passada, mas ele mexeu na limitação do nosso território, ele tirou oito mil hectares do nosso território, ficou só 21, e tirou totalmente o acesso ao rio. E um dos meus sonhos é que meu povo possa crescer como antes. Minha mãe falava assim: “Não, nosso povo antes era muito, muito, muito mesmo, uma aldeia gigante, muitas casas”. E hoje o meu povo é pequeno. Então, um dos meus sonhos é que o meu povo cresça, mas cresça sem se perder. Porque hoje, não só nós indígenas, mas outros povos também, de outros países, hoje nós vivemos culturas simultâneas, e cabe a nós nessa integração valorizar nossa cultura, valorizar quem nós somos, para que a gente continue sendo quem nós somos. Porque é a nossa identidade! Então a nossa identidade nunca pode morrer, nunca pode deixar de existir! E é por isso que a escola não deve ser neutra, ela tem que ter uma bandeira, e ela tem que defender essa bandeira. E Paulo Freire fala sobre isso. E é esse meu sonho, na verdade eu tenho vários sonhos, eu tenho sonhos relacionados a área da educação, da segurança, da cultura, são muitos sonhos. Mas o que engloba mesmo o geral, é isso. Que o meu povo cresça e que continue sendo o povo Ãwa/Avá-Canoeiro, sem perder a nossa identidade, sem perder quem nós somos. E um dos meus objetivos, é fazer com que a sociedade não indígena compreenda, que hoje os processos de demarcações que acontecem para os povos indígenas, acontecem de forma judicial. Porque lá no passado, os portugueses entraram no nosso território, mataram os nossos avós, os nossos tios, nossos primos, mataram os nossos ancestrais e roubaram o nosso território. Hoje, nós indígenas, nós não fazemos isso. O que que nós fazemos? Nós fazemos um estudo, nós comprovamos e entramos na justiça, é uma briga judicial. Então o meu objetivo é fazer com que as pessoas tenham uma consciência de que essa guerra de matança acabou, agora existe uma coisa que é chamada de justiça, que é um juiz, que inclusive é um não indígena, que assina e reconhece os nossos direitos sobre o território. E eu falo isso porque nós estamos num processo de demarcação. E o nosso território, quando em 1973, nos tiraram de lá, a área que nós fazíamos o uso, o nosso território, a fazenda Canuanã não faz usufruto dela, que hoje a instituição Fundação Bradesco vendeu para o Estado, o Estado comprou terra indígena e fez uma assentamento lá. E nessa briga judicial a gente tem recebido várias ameaças de morte, dos atuais ocupantes, não de todos, mas de alguns, que querem matar o meu irmão, que é o meu Cacique, o Wapoxire. Então, assim, o meu objetivo é esse, é fazer as pessoas compreenderem. Eu sei que é uma coisa muito delicada, é um assunto... Mas elas tem que entender, que o meu povo e nem outros povos, não estão matando como os portugueses fizeram com a gente. A gente faz uma briga judicial e o juiz assina e reconhece, é esse o processo que nós, povos indígenas, estamos fazendo. Eu quero que as pessoas compreendam que nós, indígenas, somos gente igual a eles. E que a nossa luta é legítima e é constitucional, e é por isso que ela é judicial. E é necessário que as pessoas compreendam isso, que o Brasil era um território somente de indígenas, e hoje a gente compartilha, hoje tem indígenas, tem não indígenas, têm descendente de alemão, francês. Então, assim, essa múltipla, esse múltiplo cultural, são vários povos, mas a nossa briga é judicial. Quantos povos foram retirados dos seus territórios. E o legado que eu quero deixar, é um legado de que… principalmente para as mulheres, que nós mulheres, nós temos voz e capacidade de brigar pelos nossos povos. E que eu seja uma referência de luta, e que no dia que eu não existir mais fisicamente na terra, as pessoas do meu povo olhem para mim da mesma forma que eu olho para o meu avô Tutawa, e diga assim: “A nossa luta é uma luta ancestral”. O nosso bisavô Tutawa lutava por isso, a nossa tia Kamutaja lutava por isso e agora eu vou lutar por isso. E ela vai seguindo, porque hoje em dia os povos indígenas que têm o seu território demarcado têm que lutar para que continue demarcada, primeiro você luta para que seja demarcada e depois você tem que lutar para continuar demarcada. Porque as pessoas olham para o nosso território e dizem assim, “é muita terra para pouco índio”. E pelo fato de não plantar soja, não fazer monocultura, ela é improdutiva. Ela pode ser improdutiva financeiramente, mas ela é muito produtiva em vida. Que inclusive, hoje as pessoas estão debatendo muito sobre essa questão da mudança climática, e a área que têm mais áreas preservadas, onde tem mais áreas em pé, são as áreas onde tem povos indígenas. E hoje, através também de planos, planejamentos para poder manter a árvore em pé, eles estão trazendo para o Brasil essa questão do comércio de carbono. Então hoje em dia as pessoas podem até dizer que o indígena não produz financeiramente, porque não produz soja, arroz, melancia, mas gera oxigênio, que é uma coisa que as fazendas não têm, que os produtores de monocultura não fazem. E é importante que as pessoas compreendam que nós, povos indígenas, a gente contribui, não só para o nosso território, mas para humanidade.
P/1 - Concordo plenamente, assino em baixo. Bom, eu segui aqui um roteirinho base de perguntas, talvez eu não tenha feito uma pergunta que você gostaria de responder, então deixo esse espaço, se você queira acrescentar mais alguma história, se você gostaria de complementar alguma coisa, alguma pergunta que eu não fiz. Fique à vontade!
R - Certo! O que eu quero deixar e, também, ao mesmo tempo pedir, é que a luta indígena, a luta das minorias, foi uma coisa que eu aprendi e eu pude, também, sentir essa reafirmação desse aprendizado através de um defensor do Estado de Tocantins, o Doutor Arthur, ele fala que a luta das minorias, dos povos indígenas, quilombolas, só se fortalecem, só é possível através de rede de apoio, e esse apoio não é designado apenas um apoio financeiro, não. Eu quero falar para vocês, que essa rede de apoio acontece nesse sentido, se você é jornalista e pode contribuir com a nossa causa dando visibilidade, faça uma reportagem defendendo os povos indígenas. Se você é linguista e quer ajudar, mas não sabe como, então venha, apresente projeto para as populações indígenas, para uma forma de fazer um registro, criação de escrita da própria língua, desenvolver projetos na parte linguística. E se você é antropólogo também, e assim vai indo. E se você não tem nenhuma formação, você também pode contribuir, porque o apoio não vem apenas de forma financeira, também vem do conhecimento, se você tem conhecimento sobre a área jurídica ou sobre qualquer outra coisa e queira contribuir. A rede de apoio tem que ser costurada. E é isso que eu quero que vocês saibam, que nós, povos indígenas, nos fortalecemos ainda mais com apoio da sociedade civil, então venham contribuir com a luta dos povos indígenas com processo de demarcação, pelos nossos direitos constitucionais, pelo nosso direito de ser gente. E é isso.
P/1 - Olha, com certeza, depois dessa história eu acredito que o apoio virá. Eu acho que é muito justo tudo que você me contou. E nós precisamos que todos os danos que nos foi causado seja de alguma forma compensado. Bom, parente, a última pergunta é: como foi contar a sua história hoje?
R - Pra mim, é sempre um desafio falar da história do meu povo, da minha história de vida, porque quando eu entrei no movimento indígena, que eu ia falar sobre o meu povo, sobre a violência, era muito doloroso, eu não conseguia controlar as minhas emoções, então eu chorava mais do que falava. E hoje eu consigo falar, eu consigo ser mais forte, porque quando você passa por um processo de violência, que o meu povo passou e que isso se acarreta diretamente a minha pessoa, é muito doloroso você ficar mexendo na ferida. Mas você vai compreendendo que é necessário falar desta ferida, da violência que passou, porque quando você deixa de falar as pessoas normalizam e não faz mais sentido você ter direito, entende? É como se não houvesse uma reparação, e é necessário haver essas reparações. Então eu sinto que eu não estou aqui sozinha, mesmo que o relato seja da minha vida. Tanto é que quando você me faz uma pergunta sobre a minha pessoa, eu falava de mim, mas eu já trazia o povo, porque a minha trajetória de vida não é só a minha trajetória de vida, a minha trajetória de vida é uma luta coletiva, a luta coletiva do meu povo Ãwa/Avá-Canoeiro. E onde eu for, onde eu falar, as pessoas vão ouvir não só a história da Kamutaja, porque eu não consigo trabalhar a minha vida separada do meu povo.
[Fim da Entrevista]
Recolher