Ponto de Cultura
Depoimento de Arcelina Ribeiro de Araújo
Entrevistada por Cláudia Leonor e Isabela Arruda
São Paulo, 10/11/2009
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº PC_MA_HV218
Revisado por Genivaldo Cavalcanti Filho
P/1 - Dona Arcelina, boa tarde, obrigada por estar aqui.
R - Eu que agradeço por essa oportunidade.
P/1 - Quero começar a nossa entrevista e pedir pra senhora falar de novo o seu nome completo, o local e a data de nascimento.
R - Arcelina Ribeiro de Araújo. Nasci em São Paulo, dia 21 de setembro de 1928.
P/1 - Dona Arcelina, qual o nome dos seus pais? O que eles faziam?
R - Meus pais eram portugueses. Meu pai [se chamava] Antônio Ribeiro e minha mãe, Maria da Costa Ribeiro. Eles se conheceram aqui no Brasil - ela veio com 10 anos e ele veio com 19 -, mas só se conheceram quando ela tinha lá os seus 18 e ele [era] 11 anos mais velho do que ela. Ele veio por conta própria, com dois irmãos, pra trabalhar aqui no Brasil. Tinha uma profissão: canteiro, são trabalhos de cantaria, trabalhos feitos em pedra e mármore. Ele chegou aqui e foi procurar emprego primeiro; trabalhou no Teatro Municipal. Tem alguns pilares lá [em] que ele trabalhou diretamente e a cripta da Catedral da Sé, [foi] ele que fez a pedra fundamental. Ele começou como operário, mas tinha fibra e desejo de realmente vencer; logo se estabeleceu, com uma oficina de pedras de cantaria. Começou a trabalhar com pedras para moinho; são chamadas pedras ituanas, porque era lá em Itu que ele ia comprar essas pedras. Vinham pra São Paulo e ele, então, trabalhava essas pedras com a maceta e uns ponteiros. Ele fazia as pedras, então fez pedras pra moinhos; pros Matarazzo ele tinha muito trabalho, chegou a ser... Mas eu acho que ele tinha só um ou dois empregados. Trabalhou nisso a vida inteira. Com isso, ele ganhou uma doença pulmonar. Aquele pó que entra, hoje em dia... Antigamente, não tinha nada de pensar em máscara; hoje em dia já são mais...
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Depoimento de Arcelina Ribeiro de Araújo
Entrevistada por Cláudia Leonor e Isabela Arruda
São Paulo, 10/11/2009
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº PC_MA_HV218
Revisado por Genivaldo Cavalcanti Filho
P/1 - Dona Arcelina, boa tarde, obrigada por estar aqui.
R - Eu que agradeço por essa oportunidade.
P/1 - Quero começar a nossa entrevista e pedir pra senhora falar de novo o seu nome completo, o local e a data de nascimento.
R - Arcelina Ribeiro de Araújo. Nasci em São Paulo, dia 21 de setembro de 1928.
P/1 - Dona Arcelina, qual o nome dos seus pais? O que eles faziam?
R - Meus pais eram portugueses. Meu pai [se chamava] Antônio Ribeiro e minha mãe, Maria da Costa Ribeiro. Eles se conheceram aqui no Brasil - ela veio com 10 anos e ele veio com 19 -, mas só se conheceram quando ela tinha lá os seus 18 e ele [era] 11 anos mais velho do que ela. Ele veio por conta própria, com dois irmãos, pra trabalhar aqui no Brasil. Tinha uma profissão: canteiro, são trabalhos de cantaria, trabalhos feitos em pedra e mármore. Ele chegou aqui e foi procurar emprego primeiro; trabalhou no Teatro Municipal. Tem alguns pilares lá [em] que ele trabalhou diretamente e a cripta da Catedral da Sé, [foi] ele que fez a pedra fundamental. Ele começou como operário, mas tinha fibra e desejo de realmente vencer; logo se estabeleceu, com uma oficina de pedras de cantaria. Começou a trabalhar com pedras para moinho; são chamadas pedras ituanas, porque era lá em Itu que ele ia comprar essas pedras. Vinham pra São Paulo e ele, então, trabalhava essas pedras com a maceta e uns ponteiros. Ele fazia as pedras, então fez pedras pra moinhos; pros Matarazzo ele tinha muito trabalho, chegou a ser... Mas eu acho que ele tinha só um ou dois empregados. Trabalhou nisso a vida inteira. Com isso, ele ganhou uma doença pulmonar. Aquele pó que entra, hoje em dia... Antigamente, não tinha nada de pensar em máscara; hoje em dia já são mais protegidos. A fortaleza que era o corpo dele, realmente dos europeus... Uma infância, uma adolescência mais saudável. Assim mesmo, ele morreu com 80 anos; os médicos ficavam bobos de ver como ele conseguia isso, mas trabalhou até quase com 70 anos. Aposentou-se, ainda continuou fazendo alguns negócios, mas ele fazia isso e a minha mãe nunca trabalhou fora. Teve sete filhos, eu sou a mais nova de sete: dois rapazes e cinco mulheres. A minha mãe se dedicava a cuidar dos filhos. Sempre tinha uma empregadinha pra ajudar, mas comida, tinha que ser a minha mãe; não gostaria nada que alguém fosse cuidar de alimentação, então a minha mãe cuidava de alimentação e da gente, o que não era pouco.
P/1 - Dona Arcelina, a senhora sabe por que vieram de Portugal? Qual era a condição histórica? O que estava acontecendo em Portugal para que famílias diferentes resolvam vir para o Brasil?
R - Não só eles, muitos, porque a vida era muito difícil em Portugal. Eram diversos irmãos também, tinham uma terra, então viviam do que plantavam. Ele, como rapaz, começou, como todos os rapazes ali... Migravam muito pra Espanha e pra França, tanto que eu tenho primos lá. Eles queriam sair porque estava muito difícil a vida em Portugal, talvez a ditadura… Era muito difícil, então o sonho era vir para o Brasil e por isso ele veio, pra trabalhar e fazer a vida dele aqui. [Da parte da] Minha mãe eram ela, os pais dela, uma irmã e um irmão; meu avô era ferreiro. É questão do destino, eles tinham que se encontrar. Veja: meu avô também quis se aventurar aqui no Brasil; muitos portugueses vinham, ficavam muito bem e voltavam lá pra visitar, tanto que meus pais foram duas vezes pra visitar a família. Vinham porque aqui era uma terra promissora mesmo, estimulava os outros a virem. Então, o meu avô, pai da minha mãe, quis isso. Vieram os três filhos e meus avós. Graças à profissão do meu avô, que era ferreiro, meu pai foi conhecê-lo, porque ele levava as ferramentas dele pro meu avô tratar. Ele falava: “Aponta.” Tinha o ponteiro, ia lá no fogo. Foi meu avô que cuidava da ferramenta dele até que um dia - eles tem 11 anos de diferença - até que um dia ele conheceu a minha mãe, se apaixonaram e assim casaram. A razão de eles estarem aqui foi essa, de procurar melhores oportunidades de vida.
P/1 - O estabelecimento do pai da senhora ficava em que bairro aqui em São Paulo?
R - No Brás. Eu fui a última a nascer no Brás - todos nós nascemos no Brás, mas o meu pai tinha bem o espírito europeu: primeiro vamos ter a casa pra morar. Quando casou, já foi pra uma casinha própria, uma casa pequena lá no Brás, [na Rua] Uruguaiana. Depois começaram a vir os filhos, ele comprou uma outra casa maior e depois fomos para... Eu estava com os meus dez anos, fomos morar no Tatuapé, uma casa belíssima que ele comprou pronta, mas a do Brás continuou e era uma casa grande. Era um terreno muito grande que ele transformou numa vila, então ele deixou alugado: a casa da frente, duas casinhas menores, no fundo tinha diversos armazéns, que ele alugou. Teve uma pequena tecelagem, fábrica de chapéus, então ele foi melhorando, mas trabalhando, suado; [às] sete horas da manhã, já estava lá trabalhando. Depois resolvemos ir para a Aclimação. [Ele] comprou o terreno e todos os filhos deram palpite na planta da casa, então foi feita ao bel-prazer de todos nós, que demos palpite. Só que ele sempre dizia “Foi a infelicidade da gente”. Depois que construiu essa casa, a minha mãe teve um câncer e morreu lá. A vida dele foi assim, que a gente... Sete filhos. Conseguiu encaminhar todos. Não gostaria que os filhos seguissem a profissão dele, apesar de ter sido muito promissora, mas ele queria faculdade pra todos. Ele tinha estudado em Portugal, mas provavelmente até ginásio, essas coisas. Minha mãe também tinha pouca instrução. Ele era de uma cultura e sabedoria... Tudo que a gente precisava, a gente perguntava pra ele. [Em] Matemática, ele era ótimo; ajudava nos exercícios.
P/1 - O que a senhora se recorda dessa influência portuguesa, tanto de pai quanto de mãe, na casa da sua infância?
R - Em primeiro lugar, o que eu tenho de lembranças são das histórias que o meu pai contava. Era um grande contador de histórias, contava as histórias da vida dele, a gente nunca se esquecia. Contava que no mês de agosto tem festas folclóricas e religiosas, principalmente de Nossa Senhora da Agonia. Ele nasceu na região do Minho. Em Viana do Castelo, que é considerado o jardim de Portugal, numa aldeia, chamada Susã [Portela Susã]. Ele contava pra gente: “Vocês não imaginam que festas maravilhosas. Tínhamos o rio...” – que no momento eu não me lembro o nome – “Tinha o rio e uma grande ponte; faziam as festas e vocês não imaginam o que eram os fogos. Eles punham na ponte inteira e soltavam os fogos. Nunca vi aqui no Brasil.” Provavelmente é o que a gente via depois de adulto, porque os nossos fogos são maravilhosos. Ele dizia que era já, eu imagino, do tipo dos nossos fogos também, mas naquela ocasião, 60 anos atrás, não tinha isso. Ele contava as histórias, falava também das dificuldades de todos, trabalhando na lavoura em Portugal. A influência também que foi a música portuguesa - apesar de que meu pai gostava demais de música sertaneja, gostava muito, então em casa ouvia o rádio, música sertaneja e as músicas... E os programas que tinham de fado; às vezes tinha um programa de Portugal. A gente foi influenciado por essa cultura, tanto religiosa como folclórica, de Portugal. A nossa infância toda teve isso, mas não era aquele fanatismo que vejo, por exemplo, nos italianos; os filhos de italianos, quando se fala em Itália, enchem a boca, aquela coisa. Nós tínhamos amigas… A gente achava estranho: quando o Brasil jogava com a Itália, elas torciam pra Itália. Nós não. Meu pai dizia: “A minha vida foi mais aqui no Brasil, então eu tenho que torcer pelo Brasil.” Quando jogava com outros países, éramos Portugal, todos nós; segundo lugar era Portugal, então a gente teve essa influência.
P/1 - E na alimentação, nas comidas, tem as características?
R - Tem as características portuguesas, apesar de que minha mãe tinha um tipo aloirado e meio corada. Ela tinha muito tipo de italiana e falava com as mãos; o pessoal achava que ela era descendente de italianos. A gente também gostava muito de comida italiana, mas predominava em casa o hábito português. Tinha o almoço, frutas não podiam faltar e docinho depois. Primeiro a comida. À noite, não faltava uma sopa, então [tinha] o caldo verde, a sopa, a papa, que é uma sopa muito gostosa lá de Portugal. Tínhamos a sopa, depois tínhamos um prato variado.
P/1 - A sopa, independente de ser inverno ou verão, fazia parte da alimentação?
R - Sempre, todos os dias tinha sopa. Depois tínhamos um outro prato: muita salada, muitos legumes, bem o costume europeu. Meu marido, que era nordestino, gostava porque a minha sogra gostava, mas é difícil nordestino gostar de salada. Eu vejo as minhas cunhadas, ninguém gosta muito de verde. Então a alimentação era... E bacalhau, a gente tinha muitas receitas de bacalhau - na minha família, nossos irmãos todos, gostamos de tudo quanto é tipo, mas o que a mamãe fazia é o melhor, é o bacalhau realmente português que ela fazia; é o hábito deles.
P/1 - Como era essa receita?
R - A coisa mais simples que se possa imaginar. Ainda na semana passada, almocei na casa de um português, casado com uma amiga minha. Ele estava falando: “O melhor bacalhau é esse.” Eu falei: “Nossa, mas é o bacalhau que minha mãe também ensinou pra gente.” Simplesmente é cozinhar o bacalhau, depois que tirou o sal. Cozinhar as postas de bacalhau e naquela água a gente cozinha batata. Ele falava: “Batata cortada ao meio, só”, esse português. Batata, couve tronchuda, brócolis, cebolas inteiras. Quando cozinhou, você tira tudo com uma escumadeira, põe numa travessa, cozinha ovos - a gente cortava o ovo cozido, pegava a gema e amassava com bastante azeite. Aquele era o molhinho que vai no bacalhau e nas batatas, é uma coisa simplíssima. Quando falamos “vamos fazer bacalhoada”, é esse.
P/1 - É essa a receita?
R - Desse senhor também. A bacalhoada é essa receita. Meu genro gosta muito de bacalhau, então eu faço outros tipos e ele gosta também.
P/1 - E Dona Arcelina, como era tanto no Brás, como depois, no Tatuapé, essa infância da senhora, como era a convivência dos sete irmãos?
R - A convivência dos sete irmãos foi maravilhosa. Meu pai era muito rigoroso. Todos nós falávamos: era o verdadeiro pai, era muito enérgico, mas era amigo da gente. Ele tinha uma coisa que a gente fala que é de português... Eu tenho uma sobrinha que falava assim: “Português é mais triste, é mais severo; italiano que é alegre”, porque o pai dela é italiano. Meu pai achava o seguinte... No fundo era insegurança, ele tinha tanto medo dos filhos, de desviarem, problemas, que ele tinha uma certa energia. Quando nós éramos adultos, ele falava pra gente: “Para as crianças, não se pode mostrar muito os dentes.” O que quer dizer isso? Não pode estar rindo pras crianças, porque vão “subir em cima”. Então não se pode mostrar muito os dentes, tem que ser sempre mais severo. A gente tinha uma loucura pelo meu pai, porque embora ele fosse muito enérgico, a gente sentia que ele amava muito a gente. Bastava a gente estar com gripe, alguma coisa, ele ficava do lado; era ele que punha o termômetro, ele que ia chamar o médico... “Comeu isso?” “Não.” “Vai comer isso.” Pegava os sucos, frutas, a gente via aquele cuidado que ele tinha com a gente, que era uma coisa impressionante. Na escola, o boletim - porque tinha nota de comportamento, né? Nota de comportamento não pode ser menor do que 100. As outras matérias, tudo bem, pode ser. “Tem dificuldade? Vamos ver”, “Não estudou, vai estudar mais” ou se tem alguma dificuldade. Então era assim, essa energia. Foi uma pessoa [com] que a gente sempre pôde contar, com todas as dificuldades. Os irmãos - claro que a gente brigava. Eu menos, porque sou a caçula e a psicologia diz que o caçula é o político da casa. O caçula é massacrado também, porque eu me lembro, quando me libertei um pouco: “Arcelina, vai pegar não sei o que...” “Arcelina, vai buscar não sei o que...” Estava todo mundo sentado. Era eu que ia, até que um dia falei: “Não vou não, vai você”. Mas custou. Acho que eu tinha uns nove, dez anos, quando me atrevi. Por outro lado, sinto que era muito querida. Meus dois irmãos tinham aquela coisa mesmo de adulto. Ambos já faleceram. Um deles, quando estava no hospital, me queria na hora de comer. Minha sobrinha telefonava: “Você não quer vir, papai não está querendo comer.” Então senti que fui muito amada por eles; caçulinha, né? Fui muito amada, mas não brigávamos, quer dizer, de vez em quando brigava por alguma coisa, mas o meu pai não podia saber. Com irmão não tem esse negócio de brigar. Bater-se na frente dos meus pais, não podia. Na frente da minha mãe ainda podia ser um xingamento, alguma coisa... Como eu era a mais nova, eles tinham as lições pra fazer, os sete. Do primeiro pro segundo era um ano e dois meses de diferença, depois dois, dois, dois... Tinham lição pra fazer e eu devia ficar atazanando eles, querendo também escrever. Com cinco anos, eu fui alfabetizada, completamente alfabetizada. Com sete anos, quando fui pra escola, a minha mãe falou: “Ela já sabe matemática, aritmética. Tudo ela sabe e está alfabetizada, lê sem dificuldade, escreve.” O diretor fez uma prova comigo e me pôs no segundo ano. Com nove anos eu terminei o primário, sem ser nada de especial; é porque eu estava alfabetizada. Dizer que eu era uma aluna exemplar? Não era.
P/1 - Mas a senhora perguntava pros seus irmãos, que letra é essa? O que a senhora fazia?
R - Veja, eu não tinha cinco anos ainda, eu comecei a atazaná-los. O que eu me lembro é de estar na mesa com eles - tinha sala de estudos - e eu pedindo papel, queria escrever. Foi uma das minhas irmãs que se dedicou mais a essa tarefa. Eu, com cinco anos, já estava alfabetizada.
P/1 - Dona Arcelina, e as brincadeiras entre os irmãos?
R - Muitas brincadeiras, inclusive uma delas é que deu origem àquela história que foi lá pro Estação Memória. É bem curta, posso contar?
P/1 - Claro.
R - Meus pais gostavam de teatro. Tinha o teatro Nino Nelo - vocês nem devem saber isso -, ali no Largo da Concórdia, no Brás. Tinha um teatro e vinham as companhias do Procópio Ferreira - esse já era mais conhecido - e opereta. O meu pai gostava muito de opereta. Então, de vez em quando, eles iam e ficávamos em casa. Uma noite, meu pai e minha mãe foram pro teatro. Já tinham irmãos mais velhos e ficamos em casa. Os quatro menores: eu com os meus seis pra sete anos, a outra nove, o meu irmão 11 e a minha irmã 12, por aí. Ficamos em casa. Meu irmão, muito estudioso, ficava no quarto dele estudando e nós três irmãs ficávamos fazendo joguinho na sala.
A minha irmã, logo acima de mim, a vida inteira, sempre foi muito moleca. Um determinado momento ela saiu da sala e dali a pouco voltou. Voltou e começou a contar história de medo: “Ah, porque quando a gente morre, o espírito vem depois puxar o pé da gente.” Ela foi contando: “Tinha um menino que era muito corajoso e falou ‘você tem coragem de ir ao cemitério à meia-noite?’ ‘Eu tenho.’ Então combinaram e foram. ‘Vocês ficam do outro lado da rua, vocês vão ver.’ Ele pulou o portão do cemitério. Estava ventando, luar, tudo isso e ele começou a ficar com medo lá dentro. Ele se arrependeu e correu; quando foi ultrapassar o portão, a camiseta dele enganchou e não conseguiu sair de lá, então ele começou a gritar ‘Socorro! Socorro! A alma de outro mundo está me puxando.’ E os outros meninos deram no pé.” A história era assim: os outros meninos deram no pé, ficaram com medo e o menino foi encontrado desmaiado. Quando estava contando isso... “É, será que é?” E ela fazia: “Ah, eu acho que é.” O menino estava pensando mesmo que era alma de outro mundo. Nisso, a porta da cozinha “nheeeeeemmm”, e aparece um fantasma. Lençol, né? Era o meu irmão, que estava embaixo do lençol. Fiquei estatelada. Minhas irmãs levantaram – a que sabia, fingindo – e correram pra sair da sala. Eu não consegui sair do lugar, minha irmã mais velha voltou pra me pegar. Enquanto isso, o meu irmão estava assim: “Sou eu! Sou eu! Sou eu!” Mas eu não queria saber, chorando de me acabar. Moral da história: esse meu irmão era maravilhoso, sabe? Dessas pessoas de não querer fazer mal pra ninguém. Foi influenciado pela minha irmã, que disse assim: “Vamos fazer uma brincadeira.” E ele foi nessa. Resolvemos não contar pros meus pais, porque ele ia receber um castigo e a gente não queria que ele fosse castigado. O problema é que fiquei gaga por causa do susto. Dizem que quem é gago precisa tomar um susto pra sarar; eu fiquei gaga e minha mãe falava assim: “O que deu nessa menina de uma hora pra outra e agora deu pra gaguejar? O que está acontecendo com ela?” Nós todos com boca de siri. Ninguém queria contar nada, fazia exercício e a minha mãe, sabendo o que fazer pra uma menina gaga... Ensinaram que devia cantar muito, então eu vivia cantando na vida, pra ver se me curava da gagueira. Foi coisa de uns meses, acho que também não foi assim... Foi um trauma ali na hora, não é uma gagueira, mas eu sei que com isso, quando nós contamos pros meus pais, a gente já era grande... Meu irmão não sabia o que fazer pra mim, coitado. Ficou com uma pena terrível, mas foi tudo a minha irmã sapeca. Aí fiz essa historinha, ilustrei a sala com a gente lá assim e depois o fantasma embaixo do lençol.
Jogávamos tômbola, que hoje é bingo; no domingo, depois do almoço, vinham almoçar em casa... Ficou muito característico. Eu acho que em Portugal eles jogavam; talvez fosse só jogo daqui. A gente brincava muito na rua, era muito gostoso. Eu tinha as minhas amiguinhas e, como era uma vila perto da casa, a gente tinha as amiguinhas. Brincava até de casinha na rua, brincava de roda, de esconde-esconde, de piques, que tinha um lugar pra se salvar. No fim do ano saía o cordão, a gente lá cantando [a marcha] do parafuso que vai rodando e meia-noite... Tinha muito, com a vizinhança também. Meu pai não gostava muito que a gente brincasse na rua, era só de vez em quando que deixava. Minha mãe deixava mais quando o meu pai estava trabalhando, mas...
P/1 - Como era esse dia-a-dia em que a sua mãe está mais presente? Descreva um pouco. Qual o nome dela?
R - É Maria. Maria da Costa Ribeiro. Ela era sempre muito presente, porque não trabalhava fora. Nem dava, não tinha condição, então fazia... A lembrança que a gente tem da minha mãe, eu não sei como, é que eu gostava muito de tudo. Não tem uma comida, não tenho nenhuma revolta com nada: eu gosto de bife sangrando, se vier mais torrado, tudo bem; ovo cru, tudo o meu estômago aceita. Hoje em dia as crianças não gostam disso, não gostam daquilo e eu falo assim: “eu devia ser meio nojentinha”. Minha mãe fazia todas as vontades. Chegava a hora do almoço, era o bife: “Mãe, eu quero à milanesa.” “Eu quero acebolado” “Eu quero não sei o que, eu quero bem passado.” “Eu quero quase cru e o ovo também; a gema tem que ser dura.” Tudo era feito de acordo com o que a gente queria, não sei como é que eu cresci gostando de tudo. Os meus irmãos também são muito enjoados e mamãe era sempre presente. Mamãe costurava pra nós, então não tinha custo de costura, mas quando comprava o vestidinho, o shortinho, ela cortava por cima, desmanchava, tirava os moldes. Ela costurava pra nós. A gente estava sempre ao redor; ela fazia muito tricô e crochê. Eu fiquei atazanando tanto a minha mãe que com cinco anos consegui fazer um cachecol, com malha perdida. Eu queria aprender, estava sempre atrás. Minha mãe era muito presente.
P/1 - Dona Arcelina, quem é essa turminha do bairro? Da rua?
R - Nós tínhamos na esquina uma venda, uma mercearia - a gente falava venda. A venda do seu Alcino: “Vai lá na venda do seu Alcino.” Eram também portugueses, ele e a mulher; tinham oito filhos. Muitos deles eram amigos da gente. Na minha vila, na casa do meu pai, tinha duas casas. Ele alugava, então tinha sempre uma criança nessa casa, dessa casa vizinha e especialmente do dono dessa venda.
P/1 - Tinha alguém especial, que era mais amiguinho da senhora?
R - Não. Eram, mais ou menos, as idades equivalentes. Só não tinha pra mim, mas brincava com os outros também. Eu era mais nova, mas tinha um grupinho bom.
P/1 - Dona Arcelina, como é o seu ingresso na escola formal? Você lembra desse episódio?
R - Foi nesse episódio que eu fiz um teste e fui pro segundo ano. Eu morava numa travessa da Rua do Hipódromo - Rua Nova São José, que até mudou de nome depois. Numa paralela, [Rua] Vinte e Um de Abril, tinha o grupo escolar - Terceiro Grupo Escolar - e a gente ia a pé. Tinha uma vilazinha que a gente atravessava, não era pelas ruas; no meio do quarteirão tinha a vila. Eu, no começo, ia acompanhada por algum irmão, mas sempre tinha alguém estudando lá. Depois me lembro muito de ir sozinha e era uma beleza quando chovia.
P/1 - Por que?
R - Porque as ruas enchiam de água; a gente tirava o sapatinho e vinha naquela água, era uma delícia. Fico pensando: as crianças de hoje em dia não têm isso. Vejo meus netos, não sabem o que é andar a pé. Outra coisa também: as ruas eram bem arborizadas e tinha os momentos de poda. Vocês devem ver de vez em quando uma árvore ou outra quando são podadas, aqueles galhos enormes... A gente brincava com aquilo, fazia cabana, um monte de coisas. Da infância, a gente lembra muito disso também. Gostava muito de ir à escola, do uniformezinho… Amei fazer o grupo escolar lá.
P/1 - Como era o uniforme?
R - Sainha pregueada e camisetinha com o emblema da escola.
P/1 - E a senhora estudou nessa escola até quando?
R - Eu fiz o primário e terminei com nove anos, aí era aquele drama. Meu pai queria que as mulheres fossem estudar na escola profissional Carlos de Campos, que é lá no Brás, na [Rua] Monsenhor de Andrade. Ele dizia assim: “As meninas vão pra profissional porque eu quero que elas sejam boas mães, boas esposas.” Não tinha muita escolha. A escola profissional tinha dois períodos: de manhã, a gente tinha o equivalente ao ginásio, mas que não era bem equivalente; a gente ficou prejudicada, mas era um diploma que te dava o direito do ginásio. Depois, à tarde, eram as oficinas. A gente estudava de manhã tudo que era teoria e à tarde tinham as oficinas: bordados, flores, chapéus, costura, desenhos, cerâmica, todas as oficinas. A gente fez o primeiro ano, que era o vocacional, pra ver qual queria seguir; eu me interessei em seguir a parte de Desenho e Artes. Entrava cerâmica, desenho e pintura. Eu fiz o grupo escolar, [depois] fui pro profissional, as minhas irmãs já estavam lá. Foram quatro anos, depois mais três. Eu me formei professora, que dava direito a lecionar Desenho em ginásio, mas era mais geometria, essas coisas, pra ginásio. A minha irmã, logo acima de mim, fez a parte de bordados. Depois tinha curso de Dietética e ela foi fazer. Eu me identificava muito com a minha irmã; a gente era grudada. Até hoje, ela era meu ídolo, tinha dois anos...
P/1 - Qual é o nome dela?
R - Maria de Lourdes. Ela tem dois anos a mais do que eu, mas tudo o que ela fazia eu ia atrás. Acho que até nas profissões fui atrás dela. Fiz Desenho, me formei, mas ela tinha acabado de fazer Dietética e eu achava lindo o curso que ela fez, porque tinha centro de policultura. De manhã, as mães levavam as crianças, pesavam... A gente acompanhava a consulta, achei maravilhoso. Falei pro meu pai: “Quero fazer Dietética, não vou trabalhar.” Fiz Dietética. A minha irmã foi pra USP fazer Nutrição e eu fui atrás. Depois que eu fiz Dietética - porque é curso técnico, Nutrição já era nível universitário - fui fazer Nutrição e minha irmã foi trabalhar no SESI e no Laboratório Fontoura, como nutricionista. O senhor Fontoura mandava todos os casos com problemas sociais pra ela e ela dizia: “Isso tem uma profissão, Serviço Social. O senhor tem que contratar uma assistente social.” “Não, a senhora é assistente social nata.” Tanto ele fez que ela... Eu fui com ela na escola de Serviço Social pra saber que cursos tinha. Tinha curso de Auxiliar de Assistente Social, que era de seis meses, mas não tinha mais porque estava dando muito problema; assinavam como assistente social, tudo. Naquela ocasião, eram três anos, depois fazia a monografia, que chamavam de tese, mas era ainda no curso graduado. Ela fez e eu fui atrás.
P/1 - A senhora também fez Serviço Social?
R - Também fiz Serviço Social. Só que eu fiquei [trabalhando] no serviço social. Me convidaram pra lecionar na PUC e eu fiquei lecionando. Ela trabalhava no Fontoura e no SESI. Quando terminei Nutrição, fui trabalhar no SESI também. Tinha um curso de Arte Culinária por correspondência; eu fiquei com isso, mas depois tive a oportunidade de trabalhar numa escola profissional masculina em regime de internato, do Governo do Estado, na Rua Piratininga. Eu achei maravilhoso. Eram meninos internos. A gente cuidava da alimentação e de toda a progressão física. Trabalhei dois anos, mas daí fui fazer... Depois que fiz Nutrição, resolvi fazer Serviço Social.
P/1 - Descreva pra gente como era esse curso profissional à distância, como funcionava.
R - Eu não sei se ainda existe, mas era curso de Arte Culinária por correspondência. A gente tinha as apostilinhas, do tamanho de caderno: primeira aula, segunda aula... Tinha a parte teórica, depois tinham as receitinhas que a gente mandava e perguntas. A pessoa estudava, respondia às perguntas e a gente mantinha essa correspondência.
P/1 - Era do Instituto Universal?
R - Não, do SESI.
P/1 - Do SESI mesmo. Em qual unidade do SESI funcionava?
R - Como é?
P/1 - Qual unidade do SESI?
R - Era na sede central do SESI, que hoje está na Paulista. Quando eu trabalhei [lá], era no Viaduto da Dona Paulina. (PAUSA)
P/1 - O pessoal fala tanto de curso à distância hoje em dia...
R - Esse não tinha grandes pretensões. Era mesmo pra divulgar a arte culinária, os seus princípios profissionais, mas o problema é quando é à distância e a gente vê que no fim fica avacalhado, a pessoa não leva a sério. Você tem que responder às perguntas e não é nem ele que responde. Ali não; a preocupação do SESI era instruir mesmo, pra donas de casa. A gente tinha muitas donas de casa, mocinhas, era muito interessante.
P/1 - A senhora era adolescente?
R - Aham.
P/1 - A senhora tinha ideia de que profissão queria seguir? O sonho?
R - Bom, pela vocacional... A gente sabia. A gente queria fazer faculdade, o meu pai dizia: “Quem quiser fazer faculdade pode fazer, mas primeiro tem que fazer profissional.”
P/1 - As meninas?
R - As meninas. Dos meus irmãos, um fez Engenharia na Poli e o outro fez primeiro um curso de contador. Ficou trabalhando nisso e logo depois fez Economia na [Faculdade] Álvares Penteado, então os dois fizeram faculdade. Das meninas, eu e a Lourdes fizemos... Tinha a Délia, a terceira; ela fez Serviço Social também, não fez Nutrição. Na escola profissional fez o curso de professora de flores e chapéus, podia trabalhar em ateliês e coisas assim, mas não… Ela fez serviço social. Nós três trabalhamos como assistente social. Ela foi pro Mandaqui e ficou sendo diretora do Serviço Social do Mandaqui. A Lourdes ficou no SESI e no laboratório Fontoura, chegou até a superintendência do SESI. Não superintendente, na superintendência: ela era adjuvante, não sei como é que chamavam... Adjunta. Eu fiquei naquele ambiente de escola profissional e dietética. A gente tinha aula de culinária... Não só pela Lourdes fazer, mas eu estava também naquele ambiente, então eu via as aulas. Interessou-me o centro de policultura, que cuidava das crianças. As mães vinham pra pegar o leite, a gente preparava o leitelho, que seria o leite mais fácil de digerir, o leite azedo. Aquilo me empolgava também. Não é dizer que desde criança eu queria ser isso ou aquilo. Não posso dizer, porque já fui meio influenciada pelo convívio com esses cursos. Serviço Social eu fui [estudar] porque quando fui [trabalhar] no SESI e fiquei com o curso de correspondência, eles me mandavam também dar aulas pra operários, de Arte Culinária, de Nutrição. Eu ficava muito frustrada porque tudo que eu tinha aprendido em Nutrição... E vem assim: “Vamos trabalhar com sobras porque são pobres, não podem comprar.” Começou a me dar um pouco de irritação. Eu comecei a ficar um pouco política, entrando mais pra linha de começar a contestar e ver assim: “Porque nem todos podem comer carne, ovos, leite todos os dias?” Eu fui pro serviço social com essa intenção, de ajudar a fazer uma transformação no mundo. Infelizmente não conseguimos, mas trabalhei depois com isso tudo, com grupos. Era tudo na linha da gente conseguir mudança. [A gente] queria saber de mudança, começando pela mudança do indivíduo, propiciando condições pro indivíduo se capacitar e aumentar o nível de aspiração. O que a gente ficava meio desanimada [é que] a mãe vinha: “Ah, é como Deus quer. A gente tem muitos filhos, Deus manda. Quando dá pra comer dá; quando não, não.” Então isso ficava… A gente tinha que ver assim, [dar] uma injeção de ânimo pra elevar o nível de aspiração. Enquanto você não consegue elevar o nível de aspiração de uma pessoa, ela não deslancha, se está nesse estágio de desânimo. Foi por isso que fui fazer Serviço Social, acho que me realizei com isso.
P/1 - De qual época, mais ou menos, a gente está falando?
R - [Quando] eu tinha 12 anos, fiz o curso de Dietética... De Nutrição, em 50, então em 49 eu devo ter terminado [o curso] de professora. Em 50, 51 eu fiz Dietética... Em 54 entrei no Serviço Social - me formei em 57, eram três anos -, depois a monografia e me formei. A escola me convidou pra ficar trabalhando e aí eu fiquei em período integral na PUC.
P/1 - Já como professora?
R - Como professora. Comecei como monitora. A gente, naquela ocasião, era Escola de Serviço Social; funcionava na Rua Sabará, uma rua na Consolação, e era agregada à Pontífice Universidade Católica. Depois de uns anos, ela foi incorporada; a gente passou pro prédio da PUC. Quando eu lecionava, já era no prédio da [Rua] Monte Alegre.
P/1 - Como era essa parte adolescente da senhora, começo de carreira… Como era ser adolescente? Você saía? As diversões, mais à noite?
R - A gente... O meu pai era muito rígido. Eu tive um namorado aos 14 anos, mas era porque a minha mãe ajudava. Marcava encontro com o rapazinho na Avenida Celso Garcia e a minha mãe deixava sair. O meu pai não sabia se eu ia na casa de alguma amiguinha. A gente saía pra ir ao cinema, matinê, eu e as minhas irmãs. Qualquer festa, se não fosse um dos irmãos, o meu pai não deixava [ir]. Meu irmão mais velho entrou de sócio no Clube Português, na Avenida São João, bem lá em cima, perto da [Rua] São Bento. Um clube muito bom, que fazia dois chás dançantes por mês, duas quintas-feiras por mês. Meu irmão nos levava e meu irmão também… Antigamente, tinha muito... Durante o ano, a gente fazia matinês dançantes pra angariar dinheiro. Cobrava as entradas dos convites pra poder fazer a festa da formatura, então tinha muito, mas só indo com os meus irmãos. Ao cinema, podiam ir as irmãs. [Pra] Matinê iam as três; íamos ao cinema e assim também a piqueniques. A gente tinha piqueniques em Tremembé e Vila Galvão; ia de trem e era aquela festa, gente que levava violão e todo mundo despreocupado. Fazer os petiscos... No piquenique tinha as gincanas, coisas assim, isso a gente fazia. Na Vila Galvão, Tremembé fazíamos muito.
P/1 - Eram lugares mais afastados?
R - É, mais afastados. A minha madrinha morava em Tremembé, tinha uma chácara e os meus pais… Às vezes a gente ia passar os domingos lá na chácara. Muito gostosa. Os meu padrinhos também eram portugueses, a gente saía... Saía assim: visitar, ser visitado, então às vezes no domingo à tarde ia visitar não sei quem. A família ia. Os mais velhos já não iam muito, porque tinha... A minha irmã mais velha casou com 16 anos. Foi um problemão, porque ela começou a namorar um rapaz italiano, a tia dele morava em frente à nossa casa e ele morava duas casas assim [de distância]. Minha irmã até contava que eles se comunicavam da janela pelo terraço. Foi terrível, porque começou o namoro e o meu pai segurava. Eu tinha os meus quatro, cinco anos e minha mãe deixava eu ir com ela até a casa da tia. Ele me dava balinha, eu lembro bem disso. Até que chegou uma ocasião [em que] meu pai começou a prender o negócio. Ela estava com 16, 15 anos, falava em casar e o meu pai: “Não, não tem nada disso. Você vai estudar.” Mas ela insistiu e ele também. Ele tinha um padrasto e um dia, a minha irmã estava com ele no portão. Meu pai passou na sala, não sei como é que foi... Só sei que meu pai ouviu o padrasto dele falar: “Se o seu pai não deixar, você foge de casa. A gente arranja um enxoval e você foge de casa.” Meu pai ficou louco, né? Aí um amigo do meu pai falou: “É melhor você dar consentimento porque essa menina vai sair, vai fugir”. Meu pai deu consentimento e ela casou só no civil. Só o meu irmão mais velho e a minha irmã mais velha foram ao casamento; meu pai, ninguém apareceu.
P/1 - Ele não deixou?
R - Não.
P/1 - Ele estava bravo?
R - Ele estava bravo, ficou contra. O meu cunhado não entrava em casa. Depois ela ficou doente; ficou um tempo em casa, meu pai abriu as portas pra ele e deu tudo certo, mas ela demorou pra ter filho. Foi a primeira neta, deu toda a alegria. Ela teve a primeira filha com 19 anos. Era muito rigor, meu pai era muito rigoroso. Mas também, com 16 anos começar a falar em casar… Ele tinha razão.
P/1 - Você saía à noite ou era sempre de tarde?
R - Matinê, cinema, era assim. À noite, só acompanhada dos irmãos. Eu me lembro muito bem, era muito gostoso: até a nossa adolescência, nós tínhamos vizinhas da nossa idade que vinham à tarde. A gente combinava de vir à tarde e fazia muito bordado, ponto cruz e a minha irmã... Elas vinham e eu ouvindo rádio, tanto que na Estação Memória fizemos um trabalho sobre o rádio. O aparecimento do rádio, a era do rádio, então cada uma de nós pôs as suas lembranças, os programas que tinham...
P/1 - Programas da rádio local?
R - Na Rádio São Paulo tinha novela e tinha a peça de Manuel Durans, no sábado. Era uma peça inteira; a gente se reunia na sala e ficava. E também música: a gente tinha vitrola, os discos, então tinha muitas reuniões com as amigas, pra ouvir música bordando, algum joguinho.
P/1 - E como eram as roupas dessa época, como era a moda?
R - A moda... Não se usava muito calça comprida. Hoje começou a pegar, mas era aquela moda como agora, vai e volta. Tinham saias pregueadas, saias godê. “Godê guarda-chuva” que chamavam, hoje é só bailarina que usa. Saia tubinho também, vestido tubinho, mas daí veio a minissaia... Era tudo assim, no joelho, um pouquinho abaixo do joelho. Depois veio a moda do longo, também o Chanel - no meio da perna, mas pouco decote. Não tinha os decotes que começaram a ter [depois], era mais sóbria a roupa.
P/1 - Não sei se as pessoas nessa época tinham... Tinha roupa de trabalho, roupa pra ficar em casa e roupa pra sair?
R - Tinha... Roupa de missa, roupa pra passear e roupa de casa. Coisa mais simples, mas tinha.
P/1 - Onde vocês compravam essas coisas?
R -A gente tinha muita costureira. Eu saía com a minha mãe, comprava os tecidos, escolhia os tecidos estampados, os lisos: “Eu quero o cor de rosa, eu quero não sei o que.” Tinha a costureira, então faziam tudo: os vestidos, as blusinhas. Os tailleurs já tinha até alfaiate que fazia, depois começou a vir mais roupa feita. A costureira foi ficando pra trás, é muito mais prático. Quando veio a avalanche de roupa feita era prático: “Experimenta. Serviu? Gostou?” Às vezes fazia na costureira e não gostava, encostava. “Não é possível você estar com um guarda-roupa com tanta roupa encostada.” Mas a gente não queria usar, não gostava. Disfarçava, mas não usava. Saía pra comprar sapato, íamos à Avenida Celso Garcia, era festa, né? Como era uma família, nunca faltou nada. Meu pai sempre teve muita preocupação com a alimentação. Minha mãe fazia feira duas vezes por semana, porque não dava vazão. Ia com o carrinho, que vinha cheio de frutas, verduras. E mercearia, ia uma vez numa mercearia, fazia as compras - porque eles entregavam em casa, vinha o caminhãozão com as compras pro mês inteiro. Depois tinha o açougue, comprava as coisas, então era uma festa. Eu gostava de ir com a minha mãe na mercearia e no fim eles sempre davam um brinde. Meu pai falava assim: “Prefiro gastar com alimentação do que com remédio”, então a parte de comida, graças a Deus, estava sempre bem farta. Roupa era coisa medida. A gente ganhava roupa nova na Páscoa; Semana Santa, Páscoa tem que ter roupa nova. No aniversário e no Natal, eram três vezes por ano. Claro, se precisasse de uma roupinha… Mas comprar roupa era isso. Vestido novo [tinha que] mandar fazer. Depois também ia passando dos filhos mais velhos [quando] não servia mais e eu era depositária de tudo, mas minha mãe se preocupava também de dar um vestidinho novo, porque era a mais nova.
P/1 - E como a senhora conheceu o seu marido?
R - O meu marido? É uma história um pouco longa: eu devo falar que eu tive uns quatro namorados, mas coisas mais ligeiras. O primeiro que eu conheci, nessas festinhas pra formatura, pra angariar dinheiro, namorei um ano e ele queria... Era quatro anos mais velho do que eu, tinha 14 e ele 18, mas ele resolveu ir pra Minas; queria fazer um pouco de garimpo. Voltou depois de um ano, mas ele era comunista e eu começava a ouvir coisas bem erradas: “Comunismo é assim, assim e assim.” Comecei a ficar um pouco apavorada. Só vim a entender melhor depois e aderir ao socialismo - não comunismo - bem mais tarde. Quando ele voltou, depois de um ano, eu não quis mais, já tinha passado a paixão.
Depois eu namorei um que conheci no bonde - de ir no bonde todo dia, no mesmo horário, pra ir a escola. Tive três namorados com o mesmo nome. A gente saía... Tinha uma pracinha, a gente passeava ali, mas um negócio bem diferente de hoje, pegar na mão custava aquela coisa e depois um dia eu cheguei... Ele descia do bonde, descia de casa e quando eu chego ele estava com um sapato branco. Naquele tempo, só cafajeste usava sapato branco. Hoje é tão bonito, no esporte. Menina, quando eu vi o rapaz com o sapato branco: “Que coisa! Ele não tem jeito de ser cafajeste, mas é falta de gosto”. Eu falei assim: “Eu não posso dar um passo com ele. Imagina se alguma amiga me vê com um cara de sapato branco!” Daí eu cheguei perto dele e falei: “Eu vim só pra dizer que a gente não pode mais continuar, porque o meu pai desconfiou que estou saindo pra namorar. Diz que eu não vou sair mais.” Acabei na hora com o namoro. Olha o que era... Hoje eu analiso sobrinhos meus, com o esporte...Tão bonito, né? Mas ele estava de terno com um sapato branco. Acho que nem hoje dá pra usar.
P/1 - Na época era coisa de malandro?
R - Coisa de malandro.
P/1 - Malandro boêmio?
R - No entanto, ele era um rapaz bom. Mas esse namoro não chegou... Acho que foram meses de namoro. Depois eu namorei um rapazinho em Sorocaba. Minha irmã morava em Sorocaba, eu ia muito pra lá. Foi um namorinho passageiro. Depois, em 57 - você vê, foram namorinhos -, eu já tinha 29 anos. A faculdade de Serviço Social me deu bolsa pra fazer um curso de recursos audiovisuais em Minas; era um curso da UEA, do qual participavam 13 países sul-americanos e nós ficamos quatro meses. Era um grupo bem grande, 19 moças e 50 e tantos rapazes. Era na fazenda, tinha o pavilhão das moças e dos rapazes. Quatro meses que a gente tinha café da manhã, almoço, jantar, aulas teóricas juntos. Eles se preocupavam de ficar quatro meses assim, reclusos, e toda noite tinha uma apresentação. A gente tinha que preparar essas coisas e aí me apaixonei por um equatoriano. Foram quatro meses intensivos; nós namoramos, nos apaixonamos os dois. Quando foi pra ir embora, ele falou: “Você que tem que ir.” Eu já estava com 29 anos, tinha que saber o que queria. Falei assim: “Acontece que eu não sou de ter essa bravura. Você vai, a gente se corresponde.” Eu ficava pensando: era muito apegada aos meus pais, já tinha sobrinhos, eu era super tia, realizada com a minha carreira também, tinha o meu carrinho… Como vai ser? Falei: “Vamos nos corresponder.” Nós nos correspondemos por um ano e meio e ele sempre cobrando. No fim, eu fui deixando de escrever, até que ele me manda uma fotografia se apresentando - naturalmente, eu não sabia mais quem era. Eu falei que eu não tinha coragem, eu pensava assim: “Imagina se estou lá e meu pai fica doente, a minha mãe fica doente, eu não posso vir? [Se eu] Estou grávida, tenho criança pequena…” Aí me deu um negócio e a paixão acabou. Gostava muito dele, mas acabou. Não pensava em mais nada. Aí eu falei: “Não vou casar, tô realizada.” Eu falava pras minhas amigas: “No fim de semana eu preciso ver verde, pra armazenar paz durante a semana.” Então eu lecionava, ajudava no (Ciara?), o contato com todo o pessoal de lá... Tínhamos muitos amigos, fazíamos muitos programas e no fim de semana, a gente saía, só as amigas. Não tinha isso de grupo de homem e mulher, não. Então saíamos, eu estava realizada e eu falava: “Eu não vou casar. Pra que casar?” Em 66, a PUC... A CAPES [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior] ofereceu uma bolsa de estudos para... Eles chamaram de aperfeiçoamento de docentes e eu fui indicada pela escola. Era uma escola de Serviço Social do Brasil inteiro, no Rio de Janeiro, fazer um ano lá. O meu pai já era viúvo. Eu tinha o meu pai e só uma irmã solteira. Falei lá na escola: “Não vai dar pra eu ir porque eu tenho o meu pai. Não vou deixar só com a minha irmã.” A diretora: “Não, você vai ter uma bolsa boa, Você aluga um apartamento bom lá, leva o seu pai.” Eu falei: “Não, não dá.” Meu pai tinha 78 anos. “Então indique.” Indiquei duas alunas, mandaram currículo pra ir. Isso no começo do ano. Quando chegou pra ir... No ano seguinte - o curso é que era em 66 -, meu pai faleceu, em agosto. A diretora falou: “Você pode ir porque agora não tem mais esse...” Eu fico achando que é tudo entremeado, parece que é destino. O negócio com o meu marido estava meio amarradinho, precisou haver uma porção de coisas pra dar certo. Eu falei: “Bom, então eu...” Fiquei com pena dessas meninas e falei: “Mas eu já ofereci, as meninas estão tão entusiasmadas.” E ela falou: “Ora, mas é só uma que vai, ela sabe que a vaga era você. Você indicou duas, só uma delas poderia ir. É você que a escola está indicando.” Lá fui eu. Cheguei ao Rio. Conheci logo uma de Recife, uma da Bahia, uma de Piracicaba e uma de Minas e combinamos assim: “Vamos alugar um apartamento? A gente mora junto, pra não morar em pensão, nada disso.” Tinha uma moça de Campina Grande, uma assistente social. Nós já éramos quatro pensando em alugar o apartamento; começamos a ver tudo, alugamos um apartamento, mas essa moça falou: “Ah, Arcelina, gostaria tanto de morar com vocês, mas agora já são quatro. A gente já tem estudado junto, me afinei tanto com você...” “Bom, vou falar com as meninas e se der jeito...” Toparam, pois essa moça morava em Campina Grande, na terra do meu marido. Ele era padre lá, ela era assistente social e eles tinham um projeto juntos. A faculdade de Serviço Social, mais a paróquia dele e mais professoras fizeram um projeto de recuperação de prostitutas, então eles trabalhavam juntos. Quando ela veio pro Rio, eles se comunicavam. Ela escrevia pra ele, ele escrevia pra ela, só que as cartas que ele mandava… Ela não entendia a letra dele, quem decifrava era eu. Isso em 66, aquela coisa de ditadura, muita perseguição. Eu estava aqui fazendo o projeto Paulo Freire de alfabetização e a gente foi tolhido em tudo; não podia ter reunião pra nada, tivemos que parar o projeto. No Nordeste foi muito “pega pra capar”, mesmo. Meu marido era assistente eclesiástico de JOC - Juventude Operária Católica - e foi muito visado também. Foram perseguidos, não podia fazer reunião, não podia nada. Ele começou a ficar meio desesperado de ver que estava tolhido em tudo. Ele tinha fundado uma faculdade lá, a primeira faculdade de pedagogia em Campina Grande e ele falou: “Sabe de uma coisa? Eu vou me mandar pra São Paulo, vou pedir uma licença aqui e vou ver lá na USP se eu não consigo um curso de Sociologia Rural, alguma coisa.” Tinha as Ligas Camponesas, também, que eram muito perseguidas, mas ele falou: “Um curso de Sociologia Rural e volto pra cá [pra] pelo menos fazer alguma coisa, lecionar” Quando foi no fim do ano, acabou o curso de 66, ele estava pretendendo vir pra São Paulo; eu, com uma amiga, resolvemos passar o Natal e Réveillon na Europa. Então eu saí um pouco antes... Quer dizer, acabou o ano, mas ainda tinha que acertar umas coisas. Eu deixei dinheiro com essa minha amiga, falei pra ela: “Você acerta negócio de apartamento, [por]que eu vou embora.” Quando eu cheguei, em janeiro, tinha uma carta dela: “Arcelina, tem um troco e tem um livro...” Umas coisas que eu tinha esquecido... “Quem vai levar é o padre Bonifácio, José Bonifácio. Lembra? Aquele que você lia as cartas.” Tá bom. Aí ela põe assim: “Já foram 11 padres que deixaram o sacerdócio. Eu acho que ele vai pra São Paulo e não volta mais, porque aqui está terrível.” Ele me falou depois que ficou restrito a celebrar a missa e benzer santinho na sacristia: “Padre beija o santinho. Padre, me dá um santinho.” Ele estava desesperado com isso, com tanta atividade que tinha e no fim da carta ela falou assim: “Pelo que eu conheço dele e de você, vocês fazem um ótimo casal.” Eu pensei: “Ela tá louca.” Eu era da Ação Católica, padre pra mim estava lá, a quilômetros de distância, no altar, bem em cima. Enfim, mandou por ele... O dia que ele chegou, me telefonou: “Estou com uma encomenda sua. Meu carro é um Fusca da minha mãe, que está no Rio. Minha mãe está mandando pra mim, mas me fala onde você mora.” Eu falei: “Não, eu vou buscar.” E eu fui. Ele estava no Retiro dos Padres.
P/1 - Isso aqui em São Paulo?
R - Aqui em São Paulo, perto da PUC. Fui buscar as minhas encomendas. Cheguei lá e a gente conversou mais de uma hora. Ele falou: “Olha, meus planos são esses: eu vou ficar este ano, pedir licença pro bispo, de um ano. Vou ficar aqui pra estudar. Eu gosto muito de teatro, gosto muito de cinema, você também gosta?” “Gosto.” Nós conversamos, tudo era afinidade, até música clássica. A minha música preferida era a dele também, uma coisa impressionante. “E Roberto Carlos?” Roberto Carlos, imagina se eu não era de gostar de Roberto Carlos. “É romântico” Eu sei que batia tudo. Em termos políticos, também; a gente era mais de esquerda, mas sem ser comunista. Nós tínhamos uma posição religiosa, mas de esquerda. Ele falou pra mim assim: “Na semana que vem eu vou pra USP, vou ver o que consigo lá. Na outra semana, você me telefona e a gente combina de ir ao teatro, ao cinema.” Eu falei: “Tá bom.” Eu saí, falei: “Ele tá pensando que eu vou andar...” Mas ele sem batina, já não usavam batina, nada disso. Eu pensei: “Que loucura, né?” Ainda comentei com o diretor do meu serviço que era muito amigo nosso - o casal, ele e a mulher -, ele falou pra mim: “É, Dona Arcelina, precisa tomar cuidado, que não se repita o seu caso com o equatoriano, porque [se] está longe, a senhora vai se envolver. Será que ele tem consciência que pode se envolver? E, afinal, o que ele pretende? Será que ele pretende assumir as coisas?” Eu falei: “O senhor tem razão. Sabe de uma coisa? Eu não vou telefonar pra ele, nada. Vai ficar assim, vou esquecer.” Aí ele me perguntou: “O que a senhora achou dele?” “Ah, muito simpático, comunicativo, muita coisa batendo, papo bom, mas não quero.” Isso foi em janeiro, começo de fevereiro. Eu não telefonei pra ele. Sabe quando nós fomos nos falar? Em dezembro. Ele me ligou e eu morrendo de vergonha, porque a minha amiga me telefonava, me escrevia e falava: “Você já está... Porque ele me falou que quer conhecer os trabalhos de comunidade que você faz com o seu diretor no Embu e não sei mais onde.” Eu e ele também conversamos isso: “Ah, a gente vai...” E eu também não tinha mais cara de escrever pra ela. Acontece também que quando eu cheguei em São Paulo, o SESI me contratou pra fazer reciclagem de pessoal pelo interior, porque eu me especializei em grupo. Então, pra fazer reciclagem de pessoal em creche, de cozinhas do SESI, todo fim de semana eu ia pra uma cidade. Foram seis meses seguidos, depois mais três, e eu falava pra ela: “É que eu estou muito ocupada”. No fim, acho que ela desistiu de escrever; só sei que morreu o assunto. Quando ele telefona, em dezembro, ele me fala: “Já escolheu o filme?” Daí eu falei assim: “Ah, padre Bonifácio...” Chamava de padre Bonifácio e daí eu falei: “Ah, o senhor já está de volta?” Ele falou: “Não, resolvi ficar. Vou prestar vestibular pra Letras. Resolvi ficar por aqui e já estou lecionando numa escola de um ex-padre que na Lapa, não sei o quê.” Eu não tinha... “Ah, eu quero conhecer os trabalhos de comunidade.” “Tudo bem.” Nós começamos a marcar… Marcamos pra ir ao cinema, fomos; saímos do cinema, fomos na PUC, no TUCA. Era uma peça, naquela ocasião, que tinha a ditadura... Era uma peça que só tinha só “O” e “A”. Então, porque quando tinha a hora da censura “A”, “O”, não podia falar. Quando saímos de lá ele falou: “Vamos jantar?” “Vamos...”
P/1 - Virou uma comédia, a peça.
R - É. Fomos jantar. Depois ele me levou em casa, eu apresentei a minha irmã. Estávamos só eu e a minha irmã e começamos a combinar os programas de conhecer o trabalho de comunidade. Isso em 67, trabalho de comunidade... E ele trazia o meu chefe, o meu diretor, que morava perto dele, ele o trazia de carro. O meu diretor, no dia seguinte, falava no serviço “Aquele padre está interessado na senhora. Como sabe que eu conheço a senhora há muitos anos, fica pegando a sua ficha.” Até que um dia ele chegou pra mim e nós combinamos... A gente só saía em grupo, só fomos aquele dia jantar, até que um dia ele me convidou. Fomos ao cinema, fomos tomar um lanche e ele falou: “Você...” Porque havia muitas mesas redondas discutindo o celibato dos padres: “Eu já sei que você é contrária ao celibato dos padres.” “Eu acho que deve ser uma opção de cada um: quem quer ser celibatário pode ser; se não, não deveria ser uma coisa obrigatória.” Ele falou: “Mas você se casaria com um padre?” Eu falei: “Pra casar, eu tenho duas coisas importantes: a certeza de que é um sentimento maduro, afinal já estou com 39 anos pra 40, não é mais pra eu pensar.” Eu tinha 38 anos quando eu o conheci, então eu falei assim: “Eu precisaria ter certeza disso. E casar na igreja, que pra mim é muito importante poder casar na igreja.” “Mas isso eu posso oferecer.” Eu dei risada, ele falou: “Faça um diagnóstico, o meu diagnóstico. Você agora está saindo como um adolescente, pode namorar e tudo...” Ele tinha um gosto apurado, um negócio de moda. Sabia dizer “essa roupa está bonita”; “olha a mocinha não sei o que”... Tinha um amigo dele, dez anos mais velho do que ele, e me pediu: “Arcelina, você que trabalha no Judiciário, tem essas escriturárias...” Esse padre foi ser taxista, comprou um táxi. Falou assim: “Pode ser uma escriturária, só que eu não quero muito velha.” Que idade você quer? “Entre 25 e 30.” Eu já tinha 38 e ele tinha 10 mais do que o meu marido, tinha já 50. Aí eu falei: “Bom, ele está na dele, ele quer uma jovem.” Eu falei pra ele: “Pois é, você, naturalmente, vai querer uma jovem. Ele falou: “Você não sabe. Com a experiência que eu tenho de padre, eu jamais queria uma jovem. Vai arranjar problema. Eu não. Eu quero uma pessoa madura pra conviver comigo.” Daí a gente começou a ver que batia e eu falei: “Vamos fazer o seguinte: vamos começar a sair só nós dois, pra nos conhecermos nessa perspectiva”, porque até então não era. Era profissional. “Vamos começar nessa perspectiva e não vamos falar pra ninguém, vamos dar um prazo de três meses. Três meses, sem constrangimento, nem nada; se eu achar que eu não quero, eu falo que não e você também, já é um acordo que a gente está fazendo.” Combinamos isso, começamos em maio… Dia 22 de junho, que veio a ser o dia da morte da mãe dele, e começamos o namoro. No fim de julho, a gente já achava que dava certo, a gente comunicou e ele começou a fazer o pedido de laicização pra Roma, pra poder casar na igreja.
P/1 - Tem um processo?
R - Todo um processo que ele tinha que escrever, desde as primeiras evocações, primeiro sinal de evocação e todo o curso dele. Ele ganhou uma bolsa... Entrou pro seminário com 19 anos, quer dizer, já tinha tido namorada. Ganhou uma bolsa, foi pra Itália e se ordenou em Roma. Os últimos quatro anos... Ele fez, se ordenou, veio pra cá e depois também os trabalhos que ele fazia. Ele teve uma nomeação do Papa e passou a ser monsenhor; era vigário geral da catedral de Campina Grande, uma nomeação que só o Papa podia tirar. Ele que fez... Bom, eu sei que ele começou a fazer muitos trabalhos maravilhosos lá, esses com prostitutas, grupo de coroinhas, que são chamados acólitos - chegou a ter 50 meninos e faziam um trabalho muito bom... Criou uma escola pra ele, depois da faculdade... Começou a fazer o processo - ele Fazia as coisas e eu que batia à máquina. Mandamos. Ele falou assim: “Coisa de três, quatro meses, a resposta está aí. A gente pode casar nas férias de janeiro...” - ele já estava lecionando, começou a fazer Letras. Mas nada de vir a resposta, daí um cunhado meu... (PAUSA)
P/1 - Tomar uma decisão dessas...
R - Valeu a pena porque ele era realmente uma pessoa muito especial.
P/1 - E a amiga da senhora que “cantou a bola”.
R - Até hoje eu brinco com ela, falo que ela me mandou ele embrulhadinho, pra presente.
P/1 - Mas que percepção também ela teve de...
R - Ela gostava muito de mim, a gente ficou muito amiga...
P/1 - De perceber os interesses em comum.
R - Isso que ela via, politicamente. Ela também era da mesma linha, religiosos também. Em religião e política a gente está bem e esse negócio de gostar de arte,e teatro e cinema...Ela começou a ver. Engraçado mesmo. Ela viu e falou: “Pelo que eu conheço de você e dele, vocês formam um ótimo casal.” Coisa engraçada, né?
P/1 - Ela teve feeling mesmo. E de ele levar pra senhora as coisas do apartamento do Rio.
R - Eu fico pensando: “que engraçado, como é que…” Acho que casamento é uma coisa que está marcada, porque não é possível. Cada coisa que a gente vê, que nem esse: ele lá, eu aqui. Tanto namorado que eu tive... Tive uns três, quatro namorados, as oportunidades. Depois achei “não vou casar, estou feliz”, me sentia... Eu falava: “Sou uma solteirona feliz. Vou ficar solteira, cuidar da minha carreira, dos meus sobrinhos, da minha família maravilhosa.” Estava lá, reservado pra gente. Eu falo assim: “Estava nos planos de Deus.” A minha filha só podia sair de mim e dele, né? Eu acho isso... Sabe o que eu tinha no meu serviço, no Poder Judiciário? Tinha uma secretária espírita, então ela não se conformava; como o meu diretor, também dizia assim: “O que que esses homens aqui em São Paulo fazem?” Porque éramos quatro solteiras e ele falava: “Umas senhoras tão boas quanto vocês e nada.” Eu passava perto dela e ela dizia: “Eu fico arrepiada quando você passa. Alguma coisa...” Eu sei que quando fiz o curso no Rio, passei uns dias na Bahia. Uma das meninas que estudava conosco morava na Bahia e nós fomos num grupinho de quatro pra casa dela. Quando eu voltei, eu falei pra ela: “Estive na Bahia.” “Que pena que você não me falou! Eu ia te dar o endereço do Candomblé que você ia ver lá, porque eu acho que tem alguma coisa amarrada na sua vida.” Olha que engraçado. Estava amarrado, ele era padre. (PAUSA)
P/1 - A senhora estava falando que para o processo de laicização, a senhora que fazia...
R - Eu datilografava o relatório e daí veio a notícia de que... Não vinha a notícia de aprovação do pedido dele. [Quando] Chegou dezembro, eu falei: “Não vamos casar, vamos aguardar.” Eu tinha um cunhado bem beato, ele foi à Cúria e eles falaram: “Ih, isso daí vai demorar, porque ele já era monsenhor e a Igreja é muito ciosa. Vai vir o processo pra cá, ele vai ser entrevistado, vai ver se é bem isso que ele quer.” Apesar de bem beato, esse meu cunhado falou: “Por que vocês não casam no civil e quando vier a autorização, vocês casam na igreja?” Eu falei pra ele: “Por mim, eu até toparia, porque não é culpa da gente, mas pensa um pouco na sua mãe.” A mãe dele… Esse meu marido, eram 15 irmãos no Nordeste. Ele contava sempre que um dia, na refeição, a mãe falou - ela era bem religiosa, de comunhão diária: “Eu quero um filho padre.” Ele e outro levantaram a mão, mas só ele seguiu depois. Ela tinha um orgulho muito grande, porque era uma realização pra ela. Ele era chamado secular, diocesano, quer dizer, ele morava na própria paróquia, tinha casa paroquial, mas se quisesse podia morar com a mãe até o fim da vida. Ele comia muito na casa da mãe… no fim de semana, ele ia com amigos pra casa da mãe. Então eu falei assim: “Veja, a sua mãe vai sofrer com isso. Você vai sair e ainda não vai casar na igreja.” Acontece que eu fui fazer... Antes de namorá-lo, quando eu voltei do curso do Rio, fui solicitada pra dar um curso em Maceió e outro em Aracaju. Eu falei pra ele - éramos só amigos, só conhecidos – eu falei: “Vou pra lá e como eu estou perto, vou levar a minha irmã, que quer ficar em Recife. O senhor quer alguma coisa? Quer alguma coisa pra sua mãe?” Ele disse: “Não, não precisa porque já foi Dia das Mães. Eu já mandei umas cartas, mandei umas mantilhas de presente ”.
P/1 - Até então você o tratava por senhor?
R - Tratava por senhor. Até namorar, eu tratava de senhor. Aí ele falou assim: “Não, não precisa. Mas você vai visitar, pede pra Lindaura levar você pra conhecer a minha mãe.” “Então o senhor me dá o endereço.” “Não precisa. Você fala pra Lindaura levar você pra conhecer a mãe mais santa.” “Ela vai me dar o endereço da mãe dela”, brinquei. “Não, experimenta.” Realmente, cheguei em Campina Grande e falei: “A mãe do Padre Boni.” Ela telefonou e falou: “Tem aqui uma assistente social que é de São Paulo, que conhece o seu filho. Vou fazer uma visitinha com ela.” “Que bom.” Por coincidência, eu cheguei lá [no] dia 27 de maio, que é o aniversário dele. Ela falou: “Ah, que presente bom de aniversário”. Passei uma tarde com ela, porque ela queria as notícias dele: “Ele está gordo? Está magro? Sinto que ele está muito feliz lá”, ela disse, “porque me escreve bem alegre, brincando, fala que as meninas falam que ele é um pão.” No meio da conversa, ela me pergunta: “E você, por que não casou?” Eu estava com 38 anos, falei assim: “Acho que a metade da laranja caiu no mar porque até hoje eu não encontrei.” Ela falou - era casamenteira: “Precisa casar, toda mulher precisa se realizar como mãe. Você quer saber de uma coisa? Eu gostaria que o meu filho se casasse, que ficasse lá em São Paulo, acho que ele está tão feliz lá. Aqui estava tanta infelicidade com esses últimos tempos, com tanta restrição, não podia nem fazer o trabalho dele direito. Ele já deu 15 anos pra Igreja e agora eu acho que seria um ótimo pai, um ótimo marido.” Fiquei na minha. Na hora de ir embora, ela me deu umas coisas pra trazer: carne de sol, umas frutas. Ela falou: “Faz um dia e convida ele pra jantar na sua casa. Eu gostaria que fosse a primeira pessoa que você falasse em São Paulo.” Já parando pra... Como quem diz: “Ela já nem bem chegou e já telefonou pra mim”. Pra ele ver. Ela falou: “E eu gostaria que você contasse tudo que a gente conversou.”
P/1 - Ela deu a dica.
R - Deu a dica. Quando eu cheguei, do mesmo jeito, ele me falou: “Eu quero que você me conte desde o toque na campainha da minha casa, tudo que você conversou com a minha mãe.” Não estávamos namorando ainda. Foi depois disso que a gente saiu. Aí eu falei: “Olha, foi assim”, contei tudo. “Do seu aniversário, tomamos um brinde em sua honra...” Aí eu falei: “E a sua mãe falou que gostaria que você casasse. Que era pra eu contar pra você.” Ele falou: “Minha mãe falou isso?” “É.” Ele falou: “Você vê como a minha mãe é santa. Porque veja bem, eu sou um filho dos 15 que ela podia ter até a hora de morrer do lado dela. Ela sempre teve muita satisfação de eu ter conseguido aquilo que ela queria, então é normal que ela quisesse que eu ficasse como padre até o fim. No entanto, ela está mostrando o verdadeiro amor, porque ama aquele que quer o bem do outro. Ela vê que eu estou feliz aqui. Ela quer o meu bem, independente de ela perder alguma coisa com isso.” Nós saímos e ele me pediu em namoro. Telefonou pra ela ou escreveu, não me lembro, e falou: “Está assim, assim.” Ela falou: “Ah, eu faço o maior gosto...” Ela mandou uma carta pra ele, que eu trouxe, assim: “Hoje conheci uma pessoa maravilhosa, comunicativa...” Como quem diz: “Está aprovado.” Não vinha a autorização, tinha esse negócio de não poder casar na igreja logo, mas ele teve uma pneumonia e estava lá onde morava, voltou com um febrão. Eu fui lá, ele estava com 40 de febre. Chamei o pronto-socorro, veio um médico e falou: “Está com pneumonia, não pode ficar aí.” Ele estava morando na escola de um ex-padre que tinha uma casinha lá no fim, estavam ele e outro que era taxista, mas o outro saía o dia inteiro pra trabalhar. “Ele precisa de cuidados.” “Mas está tão frio! Como vou levá-lo? Posso levar pra minha casa, mas como vou levar?” “Enrole num cobertor e leve, ele precisa de cuidados.” Morávamos eu e a minha irmã; eu o levei e instalei no quarto do meu pai. Ele escreveu pra mãe: “Você vê como faz falta uma mulher.” A mãe, imediatamente, falou: “Casa no civil, depois vem casar na igreja aqui.”
P/1 - Em Campina Grande?
R - Em Campina Grande. Isso foi em abril, maio - nós casamos em julho. Só veio no outro ano, a autorização. Já estávamos casados há um ano e dois meses. Em setembro, veio a autorização pro casamento religioso; em dezembro, nos casamos lá. O bispo dele fez o nosso casamento. Ele falou: “Você quer casar na catedral que foi a sua igreja, só que tem que ser outro padre”... Porque ainda fica meio esquisito pra algumas pessoas de idade. “Se for na minha residência...” Nós falamos: “Queremos na capela da sua residência.” E nos casamos lá. Só a família mesmo, pouca gente; é tão engraçado, porque tem mesmo esse espírito. Minha sogra dizia assim: “Você não imagina, Arcelina. Chegavam as minhas amigas, ‘a gente veio aqui pra dar um conforto pra senhora.’ Eu falei, ‘conforto por que?’ ‘Porque a senhora deve estar muito...’ Não, eu estou muito feliz.”
P/1 - E quando a amiga da senhora soube do casamento? Quando a senhora foi pra Campina Grande pela primeira vez, ela não sabia...
R - Não, não.
P/1 - Não sabia de nada. Quando ela soube?
R - Eu estava na minha, não queria nem saber. Deixa o padre lá longe. Eu sou de ação católica, tenho o meu grupo, deixa ele lá. Então, nada. Nem ela perguntou nada. Foi muito pacífico, já fazia mais de um ano. Quando a gente contou pra ela... “Você vai apadrinhar o nosso casamento quando a gente for pra aí”. Ela esteve no nosso casamento e foi assim.
P/1 - Como ela se chama?
R - Lindaura. Depois ela gostou de um rapaz, teve um certo interesse, que estava em... Era de lá, mas estava aqui em São Paulo. Ela veio também enquanto ele estava aqui. A gente fez um jantar, fez de tudo pra ver se conseguia, mas não deu certo. Falei pra ela: “Sinto muito. Você fez o pacotinho bem feito, mas eu não consegui fazer pra você.”
P/1 - Veio o casamento, vocês voltaram pra São Paulo. Como seguiu o trabalho dele, o trabalho da senhora?
R - Compramos um apartamento na [Rua] Cardeal Arcoverde, na travessa da Cardeal. Ele lecionando e fazendo faculdade. Depois ele fez... Ele tinha feito Letras; fez Pedagogia, Administração, supervisão, orientação escolar, ele ficou... Estudava à noite e lecionava. Eu, com o meu trabalho. Eu ganhava muito mais do que ele, mas tudo isso a gente pôs na conversa: “Você vai se sentir mal? De você ganhando mais do que eu?” Disse que me sentiria se eu estivesse casada com um vagabundo: “Ou com um cara da sua idade que ainda está na faculdade. Acontece que você foi pra faculdade aos 40 e tantos anos, então tenho que achar que realmente é uma coisa normal.” Ele se esforçou muito. Depois fez concurso pro Estado - lecionava no Estado. Foi orientador educacional, porque de manhã o [ensino do] Estado é mais curso primário; ele dava aula à tarde e à noite. Ele pegou um emprego de manhã pra orientador institucional no Instituto Ana Rosa, que fechou depois de uns anos, lá na [Avenida] Francisco Morato. Então [era] assim a vida da gente: saíamos, íamos trabalhar, procurávamos sempre que possível almoçar juntos, mas sempre fora, porque trabalhava de manhã e de tarde e ele de manhã e à noite. Eu casei em julho; em setembro, fiz 40 anos. Queríamos muito ter filhos - e nada. Com um ano e meio de casados… Eu tinha o meu médico ginecologista... Tinha já tirado um ovário, porque tive um problema congênito. Esse médico era muito meu amigo. Quando fui namorar, falei pra ele: “Olha, tenho chance?” “Tem. Um ovário dá pra duas mulheres.” Mas eu tinha tido toxoplasmose também. Eu falei: “E a toxoplasmose? Tenho que saber as minhas chances, porque tenho que falar pro meu namorado.” Ele, o namorado, falou: “Não tem importância. Se não tivermos filhos, nós vamos cuidar um do outro, mas se tiver filho, melhor.” Foi muito interessante, porque um ano e meio depois eu fui ao médico e ele falou: “Se fosse um casal jovem, eu ia esperar mais um tempo. Como vocês precisam resolver isso mais rápido, vou lhe dar uma injeção, que você vai tomar tal dia.” Eu estava organizando uma Semana do Menor no Poder Judiciário, fiquei muito envolvida nos trabalhos de dinâmica de grupo. Quando ele chegou em casa, falei: “Era ontem que eu tinha que ter tomado a injeção.” Meu médico tinha falado: “Não tem problema, porque o seu índice de toxoplasmose é o normal. Não tem tendência, não tem problema nenhum.” Fui a outro médico e ele falou a mesma coisa: “A senhora pode engravidar, não tem problema nenhum. Se engravidar, me comunique, porque tenho o meu trabalho de tese de doutorado.” O médico Veronezi, que tinha feito uma tese sobre toxoplasmose. Falei pra ele: “Eu vou esperar o mês que vem, pra ver tal dia.” Quando chegou o mês seguinte, não tinha menstruação.
P/1 - Já estava grávida.
R - Eu falei: “Será que eu estou grávida?” Não tinha a menor idéia. Fui fazer o teste, deu gravidez. Foi bem interessante, porque meu médico passou a gostar do meu marido. Fomos lá e falei: “Doutor, deu positivo. O mês passado, eu não fiz... Deu positivo.” Meu marido falou assim: “E não tomou a injeção.” Ele disse assim: “Muito bem. Melhor para provar a competência do seu vigário.” Bem espirituoso! Não precisou de injeção.
P/1 - De qual época a gente está falando?
R - Foi 70... Eu me casei em 69. Fiz aniversário e fiquei grávida em 70, depois que veio o negócio [a autorização do Vaticano]. A Luciana nasceu em 71, em junho.
P/1 - Como foi acompanhar essa gravidez, já com 40 anos?
R - 42.
P/1 - 42? Nessa época.
R - Minha filha Luciana nasceu em junho de 71. Em setembro, eu fiz 43 anos. Eu estava grávida com 42, quase 43, então era considerado... As minhas amigas depois me disseram: “Como você teve coragem, com tanto problema de Síndrome de Down.” Nós não tínhamos... Pedíamos a Deus que nos desse uma criança normal. Eu me lembro que rezava, falava assim: “Não precisa ser muito bonita, não precisa ser muito inteligente. Médio, tudo mediano.” Eu brinco com a minha filha, falo: “E Deus me deu tudo diferente, me deu tudo muito...” Sei que foi uma gravidez ótima, eu trabalhei... A PUC abriu pra doutorado. Queriam aproveitar os professores que já eram professores; não precisava fazer o mestrado, porque tinham urgência em ter um quadro de doutores, então me inscrevi. Cheguei a fazer todos os créditos teóricos. Quando fui pra maternidade, fui com data marcada, porque o médico falava: “[Será] Cesárea. Não pode arriscar, tanto pra você quanto pra criança. É um parto mais difícil, vai ser um nascimento...” Então marcamos. Fui pro hospital à noite; de manhã entreguei o último trabalho em grupo que a gente fez pro doutorado, olha só! Nove meses, eu fiz o curso todo... Tive a Luciana, foi tudo normal. Ele quis assistir; o médico falou: “Pode assistir.” Ele assistiu e o médico falou: “Agora você pode sair, eu só vou costurar.” Quando eu saí, ainda estava anestesiada. Ele chegou pra mim assim: “É uma menina.” A gente não sabia, naquele tempo não tinha… Olha a minha pergunta: “É perfeita?” Que coisa, o subconsciente: “É perfeita e linda.” Ficou um pai coruja e logo veio pra mim, depois de uns dias: “Sabe que a Luciana é a ‘miss berçário’?” “Só podia ser. Pai coruja...” Ele disse: “Não, não fui eu. Estavam umas senhoras ali, estavam falando ‘a mais bonitinha é aquela de manta amarelinha’.” A manta amarelinha era da Luciana. Foi um paizão. Tudo o que podia fazer, ele fazia. Eu não consegui amamentar, não tive leite, então era mamadeira de três em três horas. Ela fazia: “Ah...” Ele levantava e ia esquentar a mamadeira; vinha e eu dava a mamadeira. E ele, como não trabalhava de manhã - porque esse [emprego] de orientador educacional foi só depois que a Luciana estava maiorzinha -, tinha as manhãs livres. Era ele que saía pra rua com ela. Pegava o carrinho e ia; ela era agarradíssima a ele. É engraçado, porque ele já tinha muito cabelo branco. Ele a teve com 48 anos, ia aos parquinhos e só tinha babá. Todo mundo achava que era avô. Um dia, uma empregada, uma babá chegou pra ele e falou: “O senhor é pai ou é avô dela?” Ele falou: “Pergunte pra ela.” Ela tinha os seus três anos, dois anos, aquele tempo que a última palavra [é a] que você fala. A empregada falou: “É papai ou vovô?” Ela falou “vovô”, então a empregada falou: “Ah, bem que eu achava que era.” E na mesma hora: “Papai, me dá o baldinho.” A babá ficou com uma cara assim... Eles se divertiam demais. Um dia, um fotógrafo [disse]: “Quer tirar foto do vovô com a netinha?” Ria muito. Foi paizão demais. Nossa vida foi realmente uma coisa especial. Não havia dia que eu chegasse em casa... Se ele chegasse primeiro, tinha um suco pra mim. Luciana, geralmente, ele levava na escola e eu buscava, dependendo dos horários. Realmente considero que tive uma vida muito feliz, que consegui uma pessoa muito especial.
P/1 - E essa experiência de ser mãe?
R - Foi maravilhosa. Realmente é tudo que a gente pode completar na vida, porque já não esperava casar, [era] uma solteirona feliz. Uma experiência que eu acho que nenhuma mulher deve se privar, dessa experiência de ser mãe.
P/1 - E a senhora não quis ter outro filho?
P/1 - Não. Meu médico… Falamos assim: “Pena, né? Dá tempo de ter outro?”, brincamos. Ele falou: “Dá. Daqui a três meses a senhora engravida de novo.” Mas não consegui, não engravidei mais. Logo depois - a Luciana tinha um ano e pouco - tive um problema no útero e tive que tirar. Aí acabou. Eu já tinha um ovário só; depois disso, acabou a esperança de ter outro. Ainda bem que foi uma menina, [por]que a gente queria. Foi mais companheira da gente, então foi muito boa a experiência.
Não terminei o doutorado. Tinha que fazer a tese, então uns dois anos você vai ter que se dedicar pra tese e pesquisa. Tinha pensado a pesquisa que ia fazer, mas comecei a ponderar. Meu marido, pra ajudar, falou assim: “Não, faz.” “Mas vou ter que usar todos os fins de semana.” Eu trabalhava no Poder Judiciário e dava aula na PUC três vezes por semana, então falei: “Não, não vai dar. Eu vou perder todo o desenvolvimento da Luciana, porque é só sábado e domingo que a gente tem.” A gente ia muito pro sítio da minha irmã, passava o sábado e o domingo lá. Fui falar com a reitora: “Acho que não vale a pena. Vou desistir, porque acho que tenho que fazer... O que pretendo com a tese?” - porque o meu emprego melhor era o do Poder Judiciário. “Eu não vou deixar...” Se dissesse que era só professora, [era] a minha carreira... Falei: “Não. O que que eu quero com um título? Não, não tenho interesse.” Ele falou: “Pode ir, porque eu fico com a Luciana no sábado e no domingo. Eu [me] dedico, fico só com ela.” Não, pode...
P/1 - “Eu também quero”.
R - “Eu também quero.” E assim continuei a minha carreira no Poder Judiciário. Estou aposentada. Eu me aposentei na PUC em 80 e no Poder Judiciário, em 85. Trabalhei por nove anos comissionada na prefeitura, quando uma secretária geral, a Leopoldina Saraiva… Foi quando eu estava fazendo cursos, reciclagem e ela falou: “Quero que você vá trabalhar comigo, pra fazer reciclagem de pessoal.” Ela saiu, vieram outros secretários, mas pedi pra voltar, porque no Poder Judiciário eu só tinha meio período e falei: “Pra eu me aposentar, eu preciso trabalhar cinco anos.” Então em 80 eu saí, voltei pro Poder Judiciário pra poder obter a aposentadoria com o período integral.
P/1 - Sabe o que a gente se esqueceu de perguntar? Como se deu o ingresso da senhora no Poder Judiciário?
R - O que?
P/1 - O ingresso da senhora, a gente não conversou sobre isso.
R - Ah, sim. Eu estava no serviço social, falei que eu fui convidada. Fui como monitora, isso na Escola de Serviço Social. Hoje o pessoal até dá risada - tinha uma cadeira de formação, formação moral, ética. A gente acompanhava a classe com seminários de formação, discutia tudo quanto era problema de ética, moral. Discutia até namoro, casamento, divórcio, limitação de natalidade, tudo isso a gente discutia. Fui contratada pra monitorar essa cadeira. Fiquei um ano nisso, aí falei pra diretora da faculdade: “Olha, estou com vontade de ir pra prática. Tenho necessidade de atuar como assistente social.” Ela falou: “Não, então vou lhe passar pro setor do estágio. No estágio você vai estar com toda a prática.” Lá fui eu pro setor de estágio, colocar as meninas nos estágios e acompanhar, supervisionar. Fiquei encarregada de ser supervisora dos estagiários que estavam na [Vara de] Família e Menores, então comecei a ter um contato maior com o pessoal do Poder Judiciário; os assistentes sociais que estavam lá falavam pra mim: “Vem trabalhar com a gente. Você faz supervisão direta aqui, não só supervisão do campo de Família e Menores. O quadro está pra ser organizado. Você vem e faz o concurso”.
Trabalhei na escola por dois anos, mas fiquei só como professora. Trabalhava período integral na PUC. Falei: “Eu quero me desvencilhar do período integral. Se vocês quiserem que eu continue como professora, eu venho...” Eu dava [aula] duas manhãs e duas noites. “O resto, eu vou trabalhar no Poder Judiciário.”
P/1 - Ah, foi nesse contexto.
R - Comecei como supervisora das meninas. Tinha 20 estagiárias que eu supervisionava, mas depois peguei a parte de Vara de Família. Eu assumia o plantão e os casos que o juiz mandava - de adoção, de separação. Fiquei praticamente cinco anos trabalhando nisso.
P/1 - Agora voltando pra vida atual: a senhora estava contando as experiências com os netos.
R - Isso. Meu marido faleceu há 15 anos; faleceu no ano em que fez 70 anos. Fizemos uma festa surpresa, fizemos 25 anos de casados, fomos comemorar. A gente queria ir pra Jerusalém, tínhamos programado, mas estava com muito problema de guerra lá. Meu sobrinho, que tem uma agência, falou: “Não é o momento certo pra vocês irem.” Então fomos pro Amazonas e fomos viajando pelo Brasil. Na verdade, foi ele praticamente se despedindo da família. A gente passou em Fortaleza, onde ele tinha sobrinhas; em Recife, Olinda, onde ele tem irmãs; em Natal, Campina Grande, João Pessoa... Fizemos essa viagem em 94.
Quando veio pra São Paulo, ele já tinha feito uma cirurgia cardíaca. Tinha problema de válvula mitral, deve ter sido um problema de febre reumática. Minha sogra disse: “Eu, com 15 filhos… Ele teve problema de dor de garganta, mas passava assim.” E também nem iam detectar uma febre reumática por causa de uma dor de garganta. Hoje em dia, sim. Tenho um sobrinho que detectaram na hora. Ele ficou tomando Benzetacil durante uns três, quatro anos e não teve nenhuma consequência. Ele então ficou com a válvula mitral… Disse que, mesmo quando era padre em Campina Grande, quando subia uma ladeira, se cansava demais. Fizeram a chamada colostomia mitral, que era só limpar, mas mesmo assim tinha uma cicatriz… Tiveram que abrir, arrancar uma costela pra cuidar da... Hoje está muito mais simplificado.
Ele já veio com uma cirurgia cardíaca, mas que não o limitou em nada. Jogava futebol e não tomava remédio nenhum. Tinha feito a limpeza da calcificação, que é o que impede a válvula de funcionar. Veio pra cá em 67, mas começou a ter problemas quando a Luciana estava pequenininha. Nenhum plano de saúde o aceitava. Eu tinha plano de saúde, mas ele não tinha. Então ele se inscreveu no Dante Pazzanese, ficou com uma médica [por] 20 e poucos anos. Ele teve que passar, sabia que poderia voltar… fez uma cirurgia pra fazer a troca da válvula e depois de uns anos teve problema na outra válvula. Chegou a ter duas válvulas artificiais, mas também não limitava... Não jogava futebol, mas também o médico falava assim: “Com 60 anos não tem mais que estar jogando futebol, mesmo.” Ele falava: “Não posso mais jogar futebol, né?” Ele teve essas duas outras cirurgias e quando nós voltarmos da viagem... [Com] o negócio de operar muito, o pulmão se ressente demais. Ficou um pulmão mais fragilizado e quando nós voltamos, em outubro de 94, ele sentiu-se mal; eu o levei ao Dante Pazzanese e a médica falou: “Vamos interná-lo pra fazer os exames.” Minha filha estava na Europa e falei: “E agora? Mas vamos deixar, vamos fazer os exames.” Enquanto fui em casa fazer umas coisas, minha irmã me telefonou: “Ele teve uma parada respiratória, está na UTI.” “Bom, agora eu tenho que avisar a minha filha.” Falei com o sogro dela: “Vamos ver, porque imagina você estar em Portugal, começando a viagem.” Também pensei: “A minha filha vai ficar louca se não for avisada.” Era louquíssima por ele. Liguei pra lá, falei com o meu genro: “Ele está na UTI, mas vai fazer exames.” O pai dele foi ao hospital e falou: “Vamos fazer uma ligação daqui.” Nisso, o médico ia saindo. “O senhor conversa com a minha filha?” “Converso.” Ele falou pra minha filha: “Luciana, você está a passeio ou a negócio?” Ela falou: “Estou a passeio.” “Então não interrompa. O seu pai está bem, ele teve que fazer...” Como é que a gente fala?
P/1 - Traqueostomia?
R - Traqueostomia. Então ele falou: “Pode ficar.” Ela ficou desesperada. Saiu pro aeroporto pra conseguir passagem, pra conseguir voltar. É tão terrível isso. Aí chega lá, não tem, mas comprando uma de primeira classe [ela] conseguiu. Veio imediatamente, achando que ele já tinha morrido. Imagina se já tivesse morrido…
Ele ficou três meses na UTI, ficou de 11 de outubro… Veio a morrer no dia 11 de janeiro. Ficou na UTI, com a traqueostomia. No Dante, a médica falou: “O problema mais é pulmão, é melhor transferi-lo.” Ele tinha um médico de pulmão; a filha estava fazendo uma reforma da UTI pulmonar no Hospital das Clínicas. Ela veio vê-lo: “Pode ir pra lá. Eu garanto, ele vai sair dessa.” Eu falei: “Aqui a gente entra três vezes por dia: de manhã, à tarde e à noite.” “Lá, eu consigo também.” [Ele] Foi. O negócio foi agravando, mas ele tinha tanta fé que achava mesmo que ia poder sair.
Quando percebeu que estava mesmo ruim, não podia falar porque estava com... Ele escrevia com a Luciana. Ela estava fazendo Economia, então eles discutiam - ela falava com ele, ele respondia escrevendo. Um dia antes de morrer, ele escreveu: “Cé...” - ele me chamava de “Cé” - “Cé, prepare a Lu...” Lu é a minha filha. “Prepare a Lu. A vontade de Deus é superior, eu estou indo para o convívio com ele e Nossa Senhora.” Escreveu isso. Ele teve um problema, o pulmão estava muito desgastado. Tinha que fazer uma punção; nenhum médico queria fazer: “Eu não faço, eu não faço.” Tiveram que chamar o professor e ele veio. Errou, coitado. Não é que ele errou… Ele saiu arrasado, era o nosso médico de muitos anos. Meu marido já estava magro demais, com a mão assim... Acho que, conforme [se] fura meio errado, o pulmão, na mesma hora, murcha e foi o que aconteceu. Ele saiu arrasado e a gente soube que ele duraria só mais aquela noite. A Luciana viu tudo e a gente falava que, mesmo indo pra casa, nunca ia ser vida normal, ia ter que ter aparelhos em casa. A gente começou a analisar muito, eu com ela, e ela me falou: “Mãe, a gente está sofrendo muito, especialmente por ver o papai sofrer também.” Mas ele estava sempre feliz de ver a gente. [Quando] Eu chegava lá, a enfermeira falava: “A senhora não pode entrar ainda. Seu marido já escreveu ‘por favor, vê se a minha mulher já chegou’.” Ficava esperando. À noite, [quando] a gente se despedia dele, ele pedia pra cantar o Pai Nosso, que a gente cantava com um grupo de jovens que a gente coordenava. Foi uma vida maravilhosa. Mas a Luciana falou: “Mãe, a gente está sofrendo muito. Acho que a gente vai sofrer muito com a ausência dele, mas não vai ser igual a isso que a gente está vendo ele sofrer.”
A Luciana já estava casada há dois anos, ela só sente [por]que ele já falava: “Eu quero um neto.” E ela ficava: “Não tem nada disso. Vocês que tinham que programar a vida de vocês.” Eu ainda falava pra ele: “Não fale ‘eu quero um neto’. Deixe eles programarem.” Ele falou: “É só brincadeira.” A Luciana já estava casada, formou-se em economia na PUC e depois de um ano - ele faleceu em janeiro de 95 - a minha neta nasceu, em 96. Teve a minha neta, a Carolina, e depois de três anos e três meses nasceu o Pedro. A Carolina tem uma coisa interessante: a cunhada da Luciana estava esperando nenê. A Carolina tinha dois anos e pouco e falou: “Mamãe, você também está grávida.” “Não, não estou.” E estava. Foi fazer o exame, mas dava um exame muito tênue, muito fraquinho. Estava na trompa, tanto que o médico falou: “Se você sentir dor, a gente já abre; vamos aguardar mais um pouco”, porque fazia ultrassom e não dava nada. Sei que ele operou; disse que só puxou na trompa um liquidozinho. Depois de um tempo, engravidou e ela falou: “A mamãe está grávida, quero que se chame Pedro.” Não estava no programa, o Pedro, ninguém tinha pensado. A Luciana falou pra mim: “Vamos esperar o ultrassom [por]que de repente é uma menina e a gente dá os nomes pra ela escolher. [E se] ela escolhe um nome que a gente não quer? Se for homem, a gente põe Pedro. É um nome forte.” Quando ela fez o ultrassom, disse: “Carolina, vai ser um menino mesmo.” “Que bom. Meu irmão Pedro vem aí.” Ela já estava quase com três anos. Agora, o melhor da história, quem explica? Esse meu neto nasceu no dia de São Pedro, de parto normal.
P/1 - 29 de Julho?
R - Junho.
P/1 - Junho.
R - De manhã, oito e meia, estourou a bolsa. A médica tinha falado: “Espera até segunda-feira, senão a gente faz indução.” Às oito e meia estourou a bolsa e eu perguntava pra minha netinha: “Por que você escolheu Pedro?” “Ah, porque eu gosto.” Não tinha nenhum amiguinho Pedro; foi uma intuição, uma premonição, não sei.
Eu participo muito da vida deles, quer dizer… Quis morar sozinha. Quando eu fiquei viúva, meu genro falou: “A senhora não quer ir morar com a gente?” Eu falei: “Não.” “Por quê? A senhora não gosta de mim?” Eu falei: “Por gostar de você é que eu quero ficar sozinha.” Eles ainda não tinham filhos. “Eu quero deixar vocês dois...” Brinquei, falei assim: “Pra vocês se amarem, quebrarem o pau sozinhos.” “Não, pode deixar. A gente quebra o pau mesmo com a senhora lá”, brincou. Não quis; fiquei sempre morando sozinha. (PAUSA)
P/1 - Dona Arcelina, agora está faltando a gente abordar a carreira da senhora como escritora. Como começou?
R - Com os netos. Eu sempre fui muito ligada [a eles]; apesar de não morar junto, sempre participando da vida deles. Ajudava também a levar na escola, nas atividades e muitas vezes punha a Carolina pra dormir, então [ela] queria história. Eu contei as histórias que a gente tinha, histórias verdadeiras da Estação Memória. Houve uma época que ela falava: “Vó, conta a história, mas eu quero história verdadeira.” Ou então assim: “Conta história inventada.” Então comecei a inventar a história da Julinha com os bichinhos no sítio da avó. Eu contava, ela dormia; parava outra vez, continuava, aí chegou um dia, eu falei: “Acabou. A vovó já deu comidinha pros bichinhos e acabou a história da Julinha.” “Por que não contar a história da Julinha 2? Porque tem Pequena Sereia 1 e Pequena Sereia 2; Rei Leão 1 e Rei Leão 2.” “Só se você inventar.” “Eu invento.” Com os mesmos personagens, os mesmos cenários, ela inventou uma situação, que achei bem criativa. Fizemos “As travessuras de Julinha e seu amor pelos animais”. Quando ela estava já na escola, veio com a preocupação: professora de Artes falando da madeira, as árvores em extinção, que é preocupação e ela tinha... Ela gostava muito de plantas. [Quando] a gente ia à feira, tinha sempre que comprar um vaso de plantinha. Tanto que no livrinho, eu começo a contar a história que ela ficou decepcionada que a plantinha morreu. Eu expliquei que realmente essas plantinhas não duravam: “Ah, mas eu quero uma que dure.” Então vi o interesse e perguntei se ela não queria conhecer mais o mundo vegetal. “Podemos escrever uma história.” Começamos uma história que teve muita participação dela, de invenções durante a história. Aproveitei para dar umas aulinhas de Ecologia. Muita coisa de Ecologia fui eu que fui dando, mas sempre no diálogo com ela. Depois disso, ficou muito feliz de ter o livrinho com a fotografia dela comigo...
P/1 - Vocês fizeram a edição mesmo?
R - Fizemos. Fiz mil livrinhos, distribuí muito pros colegas e pus até na banca de jornal da minha rua. Era difícil pensar em vender os livros nas livrarias. Você precisa ter uma parte administrativa que te propicie isso, como dar nota, como não sei o que… Não tem nada disso, ficou na base da distribuição. Ainda tenho muitos livros.
No ano passado - no começo do ano -, eu pensava no meu neto, mas pensava: “O que vou escrever com ele? [É] Menino, vou escrever coisa de carrinho? O que vai ser?” Passou, mas a professora dele falou pra minha filha: “O Pedro exalta muito a Carolina, [por]que já escreveu livro com a avó.” Eu falei: “A auto-estima dele deve estar lá embaixo. Só a irmã que vale.” Então cheguei pra ele: “Você gostaria de escrever um livro?” “Mas eu?” “É. Eu vou te ajudar.” “Mas o meu nome vai na capa?” “Vai na capa, o seu nome.” A preocupação dele... “E atrás vai a minha fotografia com você?” “Vai.” “Escuta, você que gosta tanto de bola...” Ele joga futebol, é goleiro no time do clube dele; já tem troféus, é louco por bola. Na casa dele ‘vive’ bola no chão e ele chutando. Eu falei: “Vamos conversar um pouco com as bolas. Vamos ver o que pode sair daí.” Comecei a conversar com ele. Tivemos a ideia de fazer “Aventuras de uma Bola que foi indicada pra ser a bola da Copa da África”, então foi o percurso... Como nós estávamos pra fazer uma viagem de navio, como é que essa bola vai? De navio? De avião? Ele falou: “Vai de navio.” Eu falei: “Vamos perguntar pra bola?” A bola responde: “Eu não quero ir nem de navio nem de avião, eu quero ir quicando pelo mar.” Aí ele ficou assim: “Interessante, porque vai ter muita aventura no mar.” Então, a viagem da bola no mar. [Ela] encontra muitas coisas no mar, até o Amyr Klink; tubarão, as baleias, as gaivotas, tudo fomos contando. Ele mesmo pegava os desenhos no computador, eu ilustrei tudo; textos que a gente queria, ele e a minha neta pegaram no computador e fizemos. A bola chega lá na África e o Brasil vai ser campeão, né? Só pode! Vamos aguardar e o palpite dele é que o último jogo vai ser com a Itália.
P/1 - Brasil e Itália?
R - Brasil e Itália; vai empatar e vai pros pênaltis. O Brasil vai ganhar nos pênaltis.
P/1 - Bem sofrido!
R - Bem sofrido. Então a gente fez isso.
Como o meu marido... A gente tinha muitos amigos. As pessoas que conheciam meu marido chegavam aos meus netos e diziam: “Seu avô foi uma pessoa muito especial.” E ele dizia: “Vó, conta do vovô.” Resolvi escrever a história do meu marido e pus o título “Vovô, quem foi você?” Fiz uma tiragem pequena, dei pra família, pros amigos… Fiz um rascunho, mandei pra Campina Grande pros meus cunhados lerem e verem se estava certo, porque ele me contava muita coisa da infância dele, se tinha alguma coisa a acrescentar. Consegui depoimentos dos meninos que foram coroinhas dele - ele tinha um grupo de acólitos que, duas vezes por ano, levava em férias. Ele conseguia o seminário de João Pessoa e levava pro seminário, iam pra praia. Em julho, ele conseguia uma fazenda e passavam férias lá e, com isso, nós temos... Desse grupo saiu um prefeito de Campina, diversos médicos, tem um que já está aqui em São Paulo com o título de cidadão paulistano, temos jornalistas, todos eles foram muito bem encaminhados e eram meninos - muitos deles, não todos - carentes. Eu tive o depoimento desses acólitos também e contei sobre o projeto de prostitutas, a faculdade que ele criou em Campina Grande. Fiz a vida dele nesse livro, atendendo a esse pedido dos meus netos. Em junho, fui a Campina Grande. Prestaram uma homenagem pra ele, puseram a fotografia dele no prédio que era a faculdade - atualmente nem é mais, porque a faculdade foi pro campus e depois criaram outras faculdades, mas é um prédio que é usado pra algumas repartições, então fizeram. Eu fui, minha filha e os meus netos também foram. Tem uma igreja que ele fundou; no ano passado fizeram uma missa, mas não pude ir. Também puseram uma fotografia na sacristia - Igreja de São Sebastião, que ele criou para as prostitutas. Quando eles foram fazer o trabalho na zona [de prostituição], ele criou, construiu uma igreja, que deram o nome de Santa Madalena. Era na igreja que elas faziam atividades de costura, bordado. Essa igreja também… Existe hoje a igreja, não tem mais a zona, então acho que foi uma coisa boa. Depois, tinha vontade de escrever alguma coisa sobre a minha família, meus pais e aí eu pedi... Dois irmãos já estavam falecidos e uma irmã com 90 e poucos anos, a outra quase 90. Aliás, faleceram esse ano; em três meses, essas duas faleceram. Somos só três irmãs agora. Então essas duas escreveram as partes delas, eu também. Depois entrevistei essa de 90 e poucos anos, a outra de 90, fiz a entrevista da vida delas e coloquei no livro. Eu sou mais organizadora do livro. Sobrinhos também escreveram, deram depoimento sobre os meus pais, então ficou assim, mas também encerrei a carreira. Foi na parte recreativa, com os meus netos, porque também não tem mais o que escrever com eles - aliás, ficou faltando um: queria ter escrito um livro com os dois. “As aventuras de Julinha”, só que agora não ia ter mais isso, mas a descoberta do amor. Desde amor filial, paternal, de irmãos, fraternal, amizade, namoro, tudo isso eu queria ver; que chegasse a mostrar diversas formas de amor e chegar até o amor a Deus. Acho que fechava uma trilogia: animais, natureza e o ser humano como amor, mas acho que não tenho mais muita condição de fazer. De vez em quando, ainda falam: “Ah, vamos fazer, vó?” Quem sabe? Mas acho que não, acho que está encerrada essa parte, que foi ocasional. Não que eu tivesse perspectiva de ser escritora, nunca me ocorreu isso. Foi ocasional - as historinhas deles e a necessidade de deixar alguma coisa sobre meu marido.
P/1 - Ficou faltando a gente perguntar alguma coisa que a gente não tenha abordado? Acho que deu pra dar uma caminhada geral. E o que a senhora, que já trabalhou junto com o pessoal da Estação Memória, já fez esse trabalho de revigoração… O que a senhora achou de passar a tarde com a gente dando essa entrevista, falando sobre toda a sua trajetória de vida?
R - Pra gente sempre é bom. Eu gosto, sou muito comunicativa. Quantas vezes já contei essa história? Sabe por que, principalmente? Conto porque falam assim: “Ah, o seu marido, o que fazia?” “Meu marido foi padre.” “Ah, virou a cabeça do padre?” Como se eu fosse uma paroquiana que foi lá na igreja assediar o padre. Então eu falo: “Não, espera lá, vou te contar a história...”
P/1 - Conta tudo de novo?
R - Conto e todo mundo quer saber: “Como foi? Você se casou com um padre?” Já contei muitas vezes e foi um prazer. Vocês são muito gentis e simpáticas, então foi uma tarde boa.
P/1 - Deixa eu perguntar mais uma coisa pra senhora, que eu acho importante deixar registrado. O que a senhora falou lá fora da importância do idoso, depois que para de trabalhar. De ter conhecimento, que tem sabedoria... Queria que a senhora passasse alguma coisa sobre isso.
R - Eu, que lecionei, trabalhei com jovens, sei que hoje, se for conversar com assistentes sociais, alunos, não sei se vão dar valor; em parte têm razão, porque muita coisa mudou do tempo em que lecionava e que estudei, mas acho que o idoso ainda é visto na nossa sociedade como alguém ultrapassado: “Acabou, você deu o que tinha que dar, dá o lugar pra outro.” A experiência no Estação Memória provou que as mentes das crianças, os jovens que estão ávidos pra conhecer muita coisa… Ainda é um campo bem fértil para o idoso trabalhar, porque eles aproveitam, valorizam e dão também, gratificam o próprio idoso por sentir que tem... A gente tem que saber o lugar da gente também. Não é porque eu tive isso ou soube aquilo. Eu dou muito valor a tudo que é novo. Resisti muito tempo a ter computador, por que? Eu tinha muitas atividades: segunda-feira eu era voluntária, dedicava o meu tempo pra isso; terça-feira, eu ia no Estação Memória; quarta-feira, eu estudava uma língua; quinta-feira, - faço dois dias por semana -, hidroginástica. Dois dias por semana faço musculação, três dias por semana faço caminhada ou esteira; sou cinemeira, faço parte de um grupo de debate de cinema. A cada 15 dias nos reunimos, tendo assistido um filme escolhido e fazemos o debate. Acho que a gente cresce muito, não entendo nada de cinema, também nem me preocupo muito pra entender a técnica, por que a câmera fez isso, fez aquilo. Mas acho interessante ver os aspectos todos que um grupo discute. Você pega um texto, examina, tiro isso, isso, isso: [chego a uma] conclusão. Se você vai ver outra pessoa num grupo - eu, que sempre trabalhei com grupo - [é] tanta coisa que a gente fala: “Nossa, isso eu não tinha percebido.” Até no filme, no debate, a gente fala: “Nossa, eu nem percebi isso, foi mesmo?” Adoro grupo, porque acho que grupo é o que ajuda a gente a crescer e a interdependência... Então eu resisti... O meu genro falava: “Não acredito que a senhora não quer computador. Vou mandar um pra senhora.” Ele tem escritório e está sempre mudando. “Eu dou um pra senhora, pra senhora querer depois mudar pra um mais novo.” Disse: “Não, não quero, porque vou passar a noite no computador.” A minha filha: “Você é organizada, mãe. Você se organiza, vê que horário pode dispensar.” Resolvi este ano; comecei com o computador, mas resisti. Uma coisa nova, mas falei: “Eu não quero ter resistência ao que é novo.” Tinha essa justificativa, que eu tinha medo de... Vejo os meus netos, são capazes de ficar três, quatro horas seguidas no computador, mas estão no papo com os amigos.
P/1 - A senhora usa como? Usa texto, internet?
R - Não. Uso a internet pra e-mails, pra mandar e receber, e também pra pesquisar. No ano passado, a Caixa Econômica Federal fez duas semanas de contadores de histórias. Veio um grupo de contadores de história do Rio de Janeiro, ficou uma coisa bem original, eles se chamam “Tapetes contadores de história” e o cenário eles fazem no chão - o trabalhão que dá, eles fazem de tecido. Tem montanha, tem castelo, aí põem as crianças em volta e começam a contar. É maravilhoso. Foram duas semanas e fui pra lá. Fiz oficina de terça a sábado à noite, [na] Praça da Sé, sozinha. O pessoal falou: “Você é louca? [Às] nove e meia, andando pela Praça da Sé pra tomar o metrô.” Fiz esse curso, aí me interessei muito pra pesquisar… Procurei lá no Google “Contadores de história” e peguei esse grupo contando histórias. Eles têm um vídeo, até falei com o meu professor: “Olha, eu vi no seu...” “Tá bom, o vídeo?” Então falei: “É uma coisa maravilhosa...” “Da entrevista do Jô, vai lá e pega”. Quero pra essas coisas, não tanto pra digitar. Se fosse no tempo em que estava escrevendo, seria bom.
P/1 - Dona Arcelina, a gente agradece demais.
R - Gostei muito da oportunidade. Gostei muito de vocês todos aqui, também. Foi muito boa a experiência, mas foi muito longa, né?
P/1 - Não, passa rápido, é uma vida. Obrigada.
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