Ponto de Cultura Museu Aberto
Depoimento de Raquel Trindade de Souza
Entrevistado por Tiago Majolo e Fernanda Marangon
São Paulo, 02/09/2008
Realização Instituto Museu da Pessoa
Entrevista número: PCMAHV_146
Transcrito por Guilherme Pereira de Carvalho
Revisão: Augusto de Salvo Russo
P - Então Raquel, para começar queria que você falasse o nome completo, onde nasceu e quando.
R - Eu me chamo Raquel Trindade de Souza, que é o nome do primeiro casamento e, antes, solteira, era Raquel Solano Trindade. Nasci no Recife, Pernambuco, em dez de agosto de 1936, tenho 72 anos.
P - A senhora conheceu seus avós?
R - Conheci Maravilhosos Tanto o meu avô, Manuel Abílio Pompilho da Trindade, que era sapateiro, quanto a minha avó, que era Maria Emerenciana de Jesus Trindade e minha avó materna Damázia Maria do Nascimento. Meus avós...meu avô, a gente ficava ansioso para que ele chegasse do trabalho, que ele tocava violão – como meu filho Vitor – e contava Histórias Sem Fim. Era a nossa novela (risos). Nós ficávamos todos os primos, né, na sala, esperando ele chegar, tomar banho e jantar, pra contar Histórias Sem Fim pra gente. E era muito engraçado. E ele tocava violão. E minha avó fazia lapinha – você sabe o que é lapinha? Aquela casinha que ficava no Natal, o presépio, né, e o meu avô era velho de pastoril. E minha avó, Damázia Maria do Nascimento, era cozinheira e dançava nos maracatus do Recife.
P - E essas histórias que o seu avô contava, eram sobre o quê? Você lembra?
R - Eram bichos que falavam, né? E tinha uma história muito sem pé nem cabeça, que um homem que tinha muitos filhos, e era caçador, aí ele chegava e o filho mais novinho falava: “papai, que bicho é esse?” “É tamanduá.” “Com o que matou?” “Com a espingarda”. Mas isso ia do mais novinho até o de 50 anos, então levava a noite toda com a mesma pergunta. E tinha histórias de Trancoso, né? E no fim ele falava: “Entrou na perna do...
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Depoimento de Raquel Trindade de Souza
Entrevistado por Tiago Majolo e Fernanda Marangon
São Paulo, 02/09/2008
Realização Instituto Museu da Pessoa
Entrevista número: PCMAHV_146
Transcrito por Guilherme Pereira de Carvalho
Revisão: Augusto de Salvo Russo
P - Então Raquel, para começar queria que você falasse o nome completo, onde nasceu e quando.
R - Eu me chamo Raquel Trindade de Souza, que é o nome do primeiro casamento e, antes, solteira, era Raquel Solano Trindade. Nasci no Recife, Pernambuco, em dez de agosto de 1936, tenho 72 anos.
P - A senhora conheceu seus avós?
R - Conheci Maravilhosos Tanto o meu avô, Manuel Abílio Pompilho da Trindade, que era sapateiro, quanto a minha avó, que era Maria Emerenciana de Jesus Trindade e minha avó materna Damázia Maria do Nascimento. Meus avós...meu avô, a gente ficava ansioso para que ele chegasse do trabalho, que ele tocava violão – como meu filho Vitor – e contava Histórias Sem Fim. Era a nossa novela (risos). Nós ficávamos todos os primos, né, na sala, esperando ele chegar, tomar banho e jantar, pra contar Histórias Sem Fim pra gente. E era muito engraçado. E ele tocava violão. E minha avó fazia lapinha – você sabe o que é lapinha? Aquela casinha que ficava no Natal, o presépio, né, e o meu avô era velho de pastoril. E minha avó, Damázia Maria do Nascimento, era cozinheira e dançava nos maracatus do Recife.
P - E essas histórias que o seu avô contava, eram sobre o quê? Você lembra?
R - Eram bichos que falavam, né? E tinha uma história muito sem pé nem cabeça, que um homem que tinha muitos filhos, e era caçador, aí ele chegava e o filho mais novinho falava: “papai, que bicho é esse?” “É tamanduá.” “Com o que matou?” “Com a espingarda”. Mas isso ia do mais novinho até o de 50 anos, então levava a noite toda com a mesma pergunta. E tinha histórias de Trancoso, né? E no fim ele falava: “Entrou na perna do pato, saiu na perna do pinto, o senhor rei me mandou que vos contasse mais cinco”. Aí a gente queria que ele contasse as cinco (risos). Era uma brincadeira só, né? Era muito boa a vivência com meus avós.
P - Antes de contar um pouco de seus pais, que o seu pai é uma pessoa muito importante na sua vida...
R - É sim.
P - Quero que a senhora conte um pouquinho da sua casa. Como que era a sua casa?
R - A casa aqui?
P - Não, quando você era pequeninha, quando você nasceu, lá em Pernambuco.
R - Ah Eu nasci na maternidade do Derby, no Recife, que não existe mais. E morei com meu pai e minha mãe em Casa Amarela, em vários lugares do Recife. Mas quando meu pai quis vir pro sul, nós fomos morar com meus avós, no Pina. Era uma casa grande, que eu nunca mais esqueço. De vez em quando eu pinto essa casa. E tinha cadeiras de palhinha – sabe o que é cadeiras de palhinha, né?
P - Conta pra gente.
R - Aquelas cadeiras que são todas de palhinha. Feitas de palha, né? Tem a madeira e tem a palhinha. Era uma sala grande, com essas cadeiras de palhinha. E tem a sala de jantar, que eram uns bancos compridos, que sentava a família inteira; um que era uma coisa a gente chamava Epajé? – não sei se vocês sabem o que é, que vocês são muito novos. Era um guarda-louças, né, guarda-louças; depois tinham os quartos ao lado, e a cozinha. Isso era a casa dos meus avós paternos. A Minha avó materna, infelizmente, ela ficava de casa em casa, que ela trabalhava em casa de família, né, e ficava de casa em casa. E era muito engraçado, porque minha avó não saía de casa, mas sabia a vida de todo mundo, né? (risos) Aí, meu avô falava assim: “é engraçado, ô Merência, tu não sai de casa, e sabe da vida de todo mundo...”. É que ela ficava olhando pelas frestas da janela (risos). E ela gostava de jogar no bicho. E eu fui ficar na rua – que minha mãe saiu e ela ficou tomando conta. Eu lembro que eu fiquei pela rua, aí, quando eu voltei, ela estava muito brava e eu falei: “como é que eu vou acalmá-la?”. O jeito foi dizer a ela que eu tinha sonhado no bicho. “Vó, eu tive um sonho” Pronto, aí ela acalmou, né? Falei: “Com jacaré.”. Aí ela disse assim:“Ah, então me conta.”. Aí eu contei, né, inventei um sonho do jacaré. Ela foi correndo e mandou jogar, porque mulher direita não ia na rua, né, mandava os moleques. Aí mandou jogar e deu certo, ela ganhou, me deu um vestido bonito. Então era uma infância gostosa, né?
P - Com que idade teu pai veio pro Sul?
R - Então, eu tinha sete anos. Antes ele não tinha uma religião, aí casou-se com minha mãe que era presbiteriana. Só que casou-se porque queria casar com uma negra bonita. Aí foi pra Igreja por causa dela, né? Aí foi – mas ele era muito inteligente – chegou a diácono da Igreja Presbiteriana. E eu ia pra escola dominical, por isso eu conheço a Bíblia do Gênesis ao Apocalipse. Ia pra escola dominical e... mas depois ele viu que a Igreja na época não se preocupava nem com o problema do negro, nem com os problemas sociais. Aí ele, baseado no versículo da Bíblia, que disse: “Tu não amas a teu irmão, a quem vês, como podes amar a Deus a quem não vês?” Aí saiu da Igreja e veio pro Rio de Janeiro e entrou no Partido Comunista. E mamãe continuou lá, presbiteriana, né? Aí ele veio na frente, esperando ter dinheiro para mandar para ela vir, né? Mas antes disso ele foi para Belo Horizonte, pro Congresso Afro-Brasileiro; Lá no Recife, junto com Vicente Lima e Barros Mulato, ele criou a Frente Negra Pernambucana e o Centro de Cultura Afro-Brasileiro, né, com Vicente Lima – José Vicente Lima e Barros Mulato. Aí ele veio pro Sul, entra pro Partido Comunista, e se reúne todos os dias no Vermelhinho, em frente à Associação Brasileira de Imprensa, né, porque ele era poeta, e participou de muitos filmes. E lá, se reunia o Aldemir Martins, Eneida, o Barão de Itararé, a pintora Djanira, né, todo esse pessoal da intelectualidade da época; estudantes da UNE e também o pessoal do Plínio Salgado – como é, ai, como era a o nome daquele partido do Plínio Salgado? Aí, eram discussões, né, ali eram os debates no Bar Araújo Porto Alegre, que era na Rua Araújo Porto Alegre, mas tinha o apelido de Vermelhinho. E o pessoal mais de direita – ou às vezes os integralistas ¬–, iam pro Amarelinho, né? E o pessoal de teatro, Abdias Nascimento, com o Teatro Experimental do Negro, se reunia tudo ali. Ruth de Souza, a Léia Garcia, uma negra muito bonita, que foi rainha – como é que era? Miss Ébano, que era Maria Tereza, era muito bonita, né? E o pai da Maria Clara Machado, né, Aníbal Machado, todo mundo se reunia ali. E a gente no Recife. Aí mamãe esperou, esperou que ele pudesse mandar dinheiro, né? Enquanto isso ela ia costurando – essa época ela ainda não era terapeuta ocupacional, ela costurava para fora, morando na casa dos meus avós, para juntar dinheiro para vir atrás dele. Ela já tinha eu e a minha irmã, Godiva. Ela teve dois filhos antes: Vítor Israel – que depois eu pus o nome do meu filho assim ¬–, e Hélio, mas morreram cedo, né? Então, tinha eu e a Godiva. Godiva em homenagem a Lady Godiva. Não sei se vocês sabem a história da Lady Godiva, que era uma mulher da Inglaterra, que era dona de um feudo lá da Inglaterra, e o marido era muito ruim pro povo, né, e ela quis provar pro marido que o povo era respeitoso e era bom, e mandou anunciar que ia sair nua a cavalo e que todos fechassem as janelas, quando ela passasse, para provar pro marido que o povo era bom, né? Aí, conforme ela tinha o cabelo muito comprido se cobriu com o cabelo e, nua a cavalo, o povo ia fechando as janelas. Aí é Godiva, Lady Godiva. Mas aí ele pôs o nome da minha irmã de Godiva. E eu Raquel, que era filha de Labão, né, mulher de Jacó, que Jacó trabalhou 14 anos para ganhar Raquel ¬– primeiro deram a Léia (risos). Então, tudo isso. Aí mamãe tava ansiosa para vir. Passava um homem todo dia e perguntava: “Dona Maria ¬– que era Maria Margarida –, o seu Francisco mandou carta com dinheiro dentro?”. Aí ela para ele não perturbar, falava: “mandou”, né, aí no fim ela: “mandou nada (risos), mandou só a carta, o dinheiro não veio.” Porque ele vivia da poesia e dos quadros, né, e mal dava para se segurar. Aí os navios estavam indo a pique, quase no final da Guerra. Os alemães estavam pondo os navios a pique, né, porque Getúlio Vargas ficou do lado deles e depois virou, né? E aí a gente escutava a história de Luis Carlos Prestes, de Olga Prestes, né, da menina deles que nasceu num campo de concentração, tudo. E aí mamãe quis vir com a gente, e o meu avô dizia: “Mas os navios tão indo pique”. E era tudo Ita, né? Itajubá... Eram vários nomes que começavam com Ita. Tem até aquela música Peguei um Ita no Norte. E o meu pai tem um poema também do Adeus Recife, que ele fala também nesses navios do Ita, né? Aí nós viemos. A Godiva veio com uma amiga chamada Aline. Aí, quando nós chegamos no Rio, ela deixou nós duas no navio com a Aline e foi procurar papai. Ela só sabia do Vermelhinho. Aí foi lá e Grande Otelo tava lá. Aí ela falou: “Ô Grande Otelo, eu tô procurando Solano Trindade...”. “Ah, ele vem aqui todo dia, uma hora, duas horas da tarde ele está aqui com os livros e os quadros”. Aí mamãe falou: “Você avisa que nós estamos no navio?”. Aí o Grande Otelo falou: “Aviso”. Aí Grande Otelo, quando ele chegou, avisou e ele foi todo feliz, parecia que tinha mandado buscar. Aí os amigos já tinham se cotizado, para ele alugar um barraco na Gamboa. Tinha uma casa de cômodo na Rua do Livramento, e no final tinha um barraco. Aí nós fomos para lá, né? Mamãe, muito caprichosa, o barraco ficou bonito logo que ela pintou. Ele e ela pintaram o barraco, mamãe pôs cortina no barraco, e não tinha panela, então ela cozinhava numas latas de gordura de coco, né? E aí ele começou a levar visitas lá pra casa, gente que ia comprar quadros e livros. Mas embaixadores, né, o pessoal rico da Zona Sul, aí ela ficava muito nervosa porque a casa era muito simples, né? Aí primeiro, na época tinha o Abigail Moura com a orquestra Afro-Brasileira, que ele não queria que entrasse branco. Eram só negros que podiam tocar. E tinha a Maria, que era uma mulata que – eu não gosto dessa palavra mulata, mas é uma maneira de falar. Que mulata é cor de mula, que as sinhás chamavam as crianças que eram mestiças de negro e branco, de cor de mula, né, aí ficou mulata, então eu não gosto desse nome. Mas ela era clara, e cantava na orquestra, a Maria. Na orquestra do Abigail Moura. O Abdias Nascimento estava no auge, né, com o Teatro Experimental do Negro; o Haroldo Costa criou o Teatro Folclórico; a Mercedes Batista tinha o seu Balé Afro, né, que já era mais dança afro, ela estilizava a dança dos orixás. E o Haroldo chamou mamãe e papai para ensinar as danças folclóricas. Aí eles foram, criaram o Grupo do Haroldo, né? Mas apareceu um polonês, que com dinheiro – que tinha uma livraria –, queria estilizar as danças. Aí papai e mamãe se afastaram e o Grupo do Haroldo virou Brasiliana, né? Quando foi em 1950 ele criou o Teatro Popular Brasileiro. Papai, o sociólogo Édson Carneiro e mamãe. Ai tinha a sede na Rua da Constituição, bem no centro do Rio. E eram operários, empregada doméstica, era o povo dançando. Ele tinha uma frase: “pesquisar na fonte de origem e devolver ao povo em forma de arte”. E eu acompanhando. Aonde ele ia, eu ia atrás. Ele até conseguiu um emprego no IBGE, que ele ficou muito contente porque dava a oportunidade dele estudar mais sobre o negro, né, sobre toda a cultura negra, no IBGE. Aí nós mudamos para Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, a terra do – já ouviu falar no Tenório Cavalcante, “O Homem da Capa Preta?” Foi da mesma época, tinha o Tenório e papai. E papai fazia festas lá em Caxias, que duravam três dias. Ia todo mundo para lá. O pessoal fazia aquela comida, e tinha muita dança: Maracatu, Coco, Lundu, que mamãe ensinava. E lá eu estudei numa escola regional... Peraí Eu estou falando direto...
P - Pode continuar...
R - Tá. Eu estudei na Escola Regional de Miriti. Era uma escola muito avançada pra época. Naquele tempo não tinha escola pública, né, e dona Armanda Álvaro Alberto, que era uma mulher da alta sociedade da Zona Sul do Rio, era quem mantinha essa escola em Duque de Caxias. Tinha biblioteca, tinha pomar, tinha apicultura, tinha horta, tinha museu. E nós estudávamos do lado de fora, debaixo dos pés de ipês. Só no inverno, que a gente ia para dentro da casa – era um casarão, né? E à tarde, nós mesmas fazíamos nosso mate com angu. Tinha almoço, mas depois à tarde o lanche era isso. Aí a escola das meninas ricas, que era o Colégio Santo Antônio, botou o apelido na gente de “Mate com Angu”. E o uniforme delas era muito chique. O nosso era saia de um brim grosso, avental, blusa branca, chapéu de palha e sandália. Era nosso uniforme. De geral, né? A Dona Armanda, as grã-finas mandavam lá – e tamanco, né? – pra gente estudar. Mas era uma escola muito alegre. As professoras maravilhosas. Eu fico vendo as crianças de hoje que estão no ginásio, não sabem o que a gente aprendeu no primário.
P - Falando em escola, eu lembrei: vamos segurar um pouquinho essa história do primário. Só para voltar um pouquinho, recuperar umas coisinhas e depois a gente volta para essa história do primário. Vamos voltar lá para Pernambuco. Você não falou ainda o nome do seu pai nem da sua mãe.
R - Não falei? O nome dele é Francisco Solano Trindade. Ele era pra ser José Francisco, porque as crianças que nascem enlaçadas no cordão umbilical são oferecidas para São José, pros católicos. Mas depois ele mesmo tirou o José. Ficou Francisco Solano Trindade. E a minha mãe era Maria Margarida do Nascimento, e quando casou-se com ele, ficou Maria Margarida da Trindade.
P - Como que era lá em Recife, antes ou depois do seu pai vir pro Sul, as brincadeiras da sua infância?
R - Nossa Olha, eu brinquei muito no Recife, mas brinquei muito no Rio. Porque no Rio cheguei com sete, né, brinquei muito. Ah, era muita brincadeira de roda e também tinha Pique-bandeira, tinha... Eu não era muito de brincar com boneca, né, eu era mais de subir em árvore, porque no Recife tem árvore frutífera a beça. Então, mais de subir em árvore, mais de brincar de Pique-bandeira, que brincava com os meninos. Os meninos me batiam e eu batia neles. (risos). E pular corda. Os meninos brincavam muito de peão. Não tinha TV, não tinha nem rádio – tinha rádio, mas nós não tínhamos, né? Então brincava-se muito mesmo. E a gente ia assistir pastoril, maracatu, o coco na praia, tudo isso.
P - E o mar? Como que era a relação com o mar?
R - Nossa, eu adoro o mar Olha, no Embu sabe o que é que falta? O mar. Tem tudo, mas falta o mar. Eu adoro o mar. Se tivesse condições de viver só de arte, como eu vivo em São Paulo – não sei o que eu vou comer amanhã, mas vivo – no Recife ou no Rio, eu estaria numa dessas duas cidades por causa do mar. Eu tenho uma paixão pelo mar.
P - Mas como que era naquela época? Ia brincar sozinha?
R - Não, a gente sempre tinha um adulto por perto. Sempre tinha um adulto. E também nós íamos ver os adultos pescar caranguejo no mangue. Eu talvez fosse a mais fresca, não entrava muito no mangue, mas eu via as outras crianças entrar no mangue para pescar caranguejo.
P - E como que é essa pesca de caranguejo, conta pra gente.
R - É na mão, entra na lama mesmo. Porque tinha muito. Agora até os mangues estão acabando. Infelizmente estão acabando com toda a natureza.
P - E conta um pouquinho como é que eram as comidas da sua infância?
R - Ah, a comida, olha, começar, de manhã: não era pão, era fruta-pão. Você sabe o que é fruta-pão?
P - Conta para mim.
R - É uma fruta grande que se cozinha e tem gosto de pão. Até quando eu cheguei no Recife, no ano retrasado, eu procurei, mas disse que só tinha nas feiras bem longe. Minha avó fazia fruta-pão, mungunzá, sabe o que é mungunzá? Canjica de milho branco. Fazia mungunzá, fazia... isso é o café da manhã, né, porque eram coisas mais baratas do que o pão mesmo. E era muito mais nutritivo. Tinha o mungunzá, inclusive o mungunzá é bom para mulher que está amamentando, porque dá bastante leite. Então, o café da gente era esse. E feijão de corda, carne de sol, a comida do Nordeste. Comida do Nordeste. Mudou um pouco quando a gente foi pro Rio e para São Paulo mudou mais ainda. Porque em São Paulo é mais verdura. Aprendi a comer verdura, que minha avó dizia: “e eu sou coelho para comer folhagem?” (risos). A minha avó Damázia falava: “e eu sou coelho pra comer folhagem?”. Então era bem diferente a comida do Recife, do Rio e daqui. E muito camarão, que eu adoro. Caranguejo e siri eu não posso comer por causa da minha religião. Porque siri come defunto e caranguejo anda para trás (risos). Então não pode.
P - E conta uma coisa: como eram os seus amigos naquela época de criança, tinha muito amigo?
R - Eu sempre tive muitos amigos. Eu digo que eu sou uma mulher muito feliz, porque eu nunca tive... o meu dinheiro é sempre suficiente para sobreviver, mas tenho os filhos, a arte e muitos amigos. Isso desde criança. No Rio então... Meus amigos no Recife, era porque eu tinha muitos primos, né, então ficava muito ligados nos primos, né, que tenho contato até hoje. E no Rio eram amigos mesmo. Em Caxias a gente sentava na beira do valão e ficávamos contando histórias de assombração, e depois ficava com medo de ir para casa, o último que ia para casa ia apavorado com as histórias de assombração, que é os filmes de terror de hoje, eram as histórias de assombração, né? Aí, o Almirante tinha um programa no rádio, que era de assombração também, aí a gente assistia e depois ficava com medo de brincar. (risos).
P - ¬¬E quais eram as festa populares?
R - Nossa Bom, lá no Recife é terreiro de brinquedos. Você já deve ter ouvido falar de todas as festas populares. E no Rio, em Caxias, tinha muita... agora tem muito evangélico, diminuiu a coisa. Mas os tambores, sexta para sábado, você via os tambores tocarem na cidade toda. Era candomblé, umbanda, catimbó, né? Tinha Folia de Reis... minha mãe era muito brava, mandava eu lavar louça ¬– meu pai não aceitava que batesse na gente, né? Ele já falava no direito da criança naquela época – mas ela era muito brava E eu nunca fui boa de serviço de casa. E ela precisava que ajudasse ela, né? Aí, ela mandava eu lavar louça – e às vezes ela tava costurando –, eu ouvia o barulho da Folia de Reis e ia atrás dos palhaços dançando, né: (canta) “tan-tan-tan-tan”. E eu atrás. Aí ia de casa em casa e eu sei que eu saía depois do almoço e voltava tarde da noite, porque a Folia parava nas casas, aí tinha macarronada. Então tinha muita festa em Caxias. Fora as festas – que na casa do meu pai, lá em casa, em Caxias, era a célula Tiradentes do Partido Comunista: tinha as festas de aniversário de Luis Carlos Prestes, três de janeiro, aí tinha festa e barraca, para arrecadar dinheiro pro partido e eu tava lá no meio, né? Então é assim...
P - E conta como foi a viagem de Recife pro Rio de Janeiro
R - Nossa, para mim foi uma curtição. P/1 ¬– Vieram como?
R - Viemos de terceira, quer dizer, os grãs-finos a gente nem via, né? A classe média e grã-fino a gente nem via.
P - Era trem?
R - Não Navio É navio, vim de terceira. De terceira na Ita, né, no Ita. Aí meu pai no poema disse: “vim de terceira no Ita, como um saco de açúcar, como um fardo de algodão”. Mas para mim foi uma curtição. Os primeiros dias enjoei, porque enjoa mesmo, mas depois para mim foi festa. Para mamãe não devia ser, né, mas para mim foi.
P - E quanto tempo demorou?
R - Ai, eu não lembro. Foi na década de 40, mas deve ter sido dois dias ou três, sei lá. Igual o ônibus agora deve ser. Porque pra Europa, quando eu fui no Louis Lumière e voltei no Provence, foi quinze dias, né, até porque depois nós fomos para Marselha e de Marselha fomos atravessar a Alemanha de trem... não De Marselha fomos para Paris, atravessamos a Alemanha de trem para chegar na Polônia e na Tchecoslováquia. Na antiga Tchecoslováquia.
P - Mas conta como foi sua chegada no Rio. O dia que chegou, como foi?
R - Ah, eu lembro Eu achei engraçado mamãe... sabe por quê? Agora eu fico pensando: uma cidade grande como o Rio, você procurar um bar chamado Vermelhinho, na Rua Araújo Porto Alegre. Mas para mim tudo era festa, né, porque a moça que nos acompanhou – não sei se ela ainda é viva, mora no Rio – a Aline, ela ficou tomando conta da gente. Ela brincava muito com a gente, correndo no navio, os marinheiros, aquela gritaria dos oficiais, dos marinheiros. Aquilo tudo para mim era uma festa, né, festa mesmo.
P - E como que era sua relação mais pessoal, assim, com o seu pai, com a sua mãe?
R - Olha, com meu pai era maravilhosa. Minha mãe era muito boa, mas ela era muito exigente, paraibana brava. E ela apesar de presbiteriana, ela parece mulher de Oxum, que gosta de tudo arrumadinho. Na gaveta: calcinha de um lado, sutiã do outro, tudo arrumadinho. Eu tenho uma filha assim, a Regina. E eu não sou assim. Eu queria ler, ficar só lendo... Meu pai mandava eu comprar jornal e eu não voltava em tempo de ajudá-la. Aí ela ficava muito brava (risos). Eu conto sempre uma história que tá até na internet também, de que a mulher foi fazer queixa de mim porque eu bati no filho dela, e ele falou assim: “olha, pode deixar, eu vou dar uma surra na Raquel ¬– porque as crianças naquela época apanhavam, mas apanhavam mesmo. A mãe batia, ainda falava: “quando o seu pai chegar você vai ver”A criança ficava apavorada. Quando o pai chegava, metia a cinta na criança. Então apanhavam muito mesmo. Aí eu até estranhava, né, que meu pai não batia na gente. Aí ele conversava muito. E ela dava uns tapas porque chegava uma hora que a gente devia irritá-la pra caramba. Ele falava: “Ainda vai ter o direito da criança. Quem bater numa criança vai ser preso”, ele falava. E aí a mulher veio fazer queixa de mim. E essa história até já contei. E aí a mulher dizia: “Seu Francisco, essa sua filha é terrível Bateu no meu filho, machucou o meu filho” Aí papai dizia: “Ó, pode deixar que eu vou bater nela.” E eu fiquei espantada, né? A mulher saiu e ele falou: “Você não quer ser artista?” falei: “Quero”. “Ó, quero ver agora ser uma boa atriz Eu vou bater na parede e você tem que fingir que está apanhando.” Eu fiz o maior escândalo, e ele pá na parede. Pá E eu gritava, fazia um escândalo A mulher ficou com um remorso Aí foi encontrar a mamãe, né, a mamãe vinha da rua. Ela, “Dona Margarida, o seu Francisco deu uma surra na Raquel” “Mas não é possível Francisco?” “É” Aí chegou em casa falou: “Francisco, você bateu na Raquel?” “Bati nada, Margarida. Essa menina vai ser uma atriz Eu batia na parede, ela gritava...” Aí a mulher, de tarde, trouxe um bolo para mim, de tanto remorso, coitada (risos). Então, ele ia comigo. Ele perdeu quase o emprego do IBGE por causa de mim. Porque ele ia comigo pro... ele queria que eu ouvisse música popular, música negra e música erudita, e ele me levava no Municipal para ouvir ópera, porque sempre tinha à tarde, na hora do almoço, né? Me levava pra Biblioteca Nacional, me levava pra Pinacoteca, tudo ali pertinho, no centro do Rio, e esquecia de assinar o ponto de volta. Aí, quando via, já passava da hora. Ninguém agüentou ele no emprego. Mas ele ficou ainda bastante tempo. E ela me ensinou a não beber, não fumar, respeitar os mais velhos. Por mais que eu não goste de serviço de casa, saber que tem que fazer, que não pode deixar a sujeira tomar conta. Por mais que eu não goste de organização, me auto-controlar, para não ficar desorganizada demais. E ela era uma boa mãe, entendeu, uma boa mãe. Era severa, mas era boa. Ela vivia na Terra e ele vivia no espaço, né? (risos). Mas dava uma mistura boa.
P - No primário, conta um pouquinho das suas amizades na escola.
R - Nossa Muito boa. Olha, eu digo que as coisas ruins da minha vida, queimadura, câncer, separações de marido, não conseguem apagar as coisas boas. Porque a época da Escola Regional de Miriti foi fantástica. Tinha muita brincadeira, tinham muitos cantos infantis. Ah, o Villa-Lobos fez aquela música Anhangá, que ele cantou no Maracanã com as crianças. As professoras ensinaram pra gente a música, né? (canta) “Oh, manhã de sol, a anhangá fugiu, a anhangá eh, eh...” Então aquilo era lindo. Do jeito que o Villa-Lobos fez no Maracanã, elas, as professoras de Canto Orfeônico faziam pra gente, e era uma amizade Eu tenho amigos até hoje daquela época da escola. Pena que ela faleceu, porque era muito bom mesmo. E as professoras, elas davam aula com amor, né? Porque também não era aquele monte de alunos. As crianças naquela época tinham... os pais tinham mais tempo de ficar em casa cuidando das crianças. A criança era mais educada, né, então era... os professores eram fantásticos.
P - A senhora sempre gostou de ler?
R - Sempre. Ah, esqueci de trazer Na revista Quilombo, do Abdias Nascimento, que tem na USP para vender, ele conta do meu prêmio, com 12 anos. Ganhei o primeiro prêmio de literatura juvenil em todo o Brasil. Eu escrevi sobre gibis da época. A violência dos gibis da época (risos). E ganhei. Foi o Prêmio Euclides da Cunha. E a biblioteca chamava Monteiro Lobato. A biblioteca da escola. Mas eu, mocinha, eu gostava de ler Kafka, Dostoievski, Graciliano Ramos. Eu leio muito, muito, muito... hoje eu to ficando cega – só esse olho que está funcionando –, então está mais difícil, né? Mas eu adoro ler e escrever.
P - E o que a senhora lia quando era menor, antes de ler Kafka, Dostoievski?
R - Monteiro Lobato, é. Porque tinha a Biblioteca Monteiro Lobato e tinha os gibis, que eram O Saci, tinha o gibi Mutt & Jeff, que não eram violentos. Tinha os violentos, que eu lia também para depois falar, e tinha uns que eu achava muito frescos, que era a história de moças de Paris, né, que eu esqueci o nome. Isso quando era menina. Aí quando eu fui fazendo 15, 16 anos, aí já fui lendo coisas mais fortes, porque eu ainda acreditava na esquerda, né? Não era essa bagunça que é hoje, tudo misturado, não tem mais aquela ideologia política. Mas naquele tempo as pessoas levavam muito a sério. Então eu lia tudo. Papai recebia a revista A Classe Operária. Tudo eu lia. Eu ficava na varanda e minha mãe queria morrer, porque ela gostava de ler também, mas aí eu tinha que ajudar ela, pras duas sentar para ler, mas eu devorava tudo que aparecia.
P - A senhora estava falando do colégio, dos livros...
R - Então, porque quando eu saí da Escola Regional de Miriti, terminou o primário, eu queria fazer o ginásio, e meu pai tinha a maior dificuldade de pagar. Eu fui pro Ginásio Duque de Caxias, que hoje é o Colégio Duque de Caxias. E papai falou: “Não. Vai que eu me viro pra arrumar o dinheiro”, né? Só que daí atrasava. Eu passava – a irmã da Dolores Duran estudou lá, né? A irmã não, a sobrinha ¬– e negra só tinha eu e Dagmar. Dagmar, os irmãos eram operários e pagavam estudos pro irmão que queria estudar. Então, como o dinheiro do operário vinha no dia certo, ela pagava no dia certinho. E meu pai sempre atrasava, porque chegava na hora, não tinha vendido quadro, nem livro, nem nada. Aí eu passava abaixadinha na secretaria. Mas o doutor Ely me via, fazia que não via, depois ele ia lá na sala de aula e falava: “quem não pagou a mensalidade não faz prova” Mas ele não olhava pra ninguém. Quer dizer que ninguém... as meninas sabiam porque eu falava, né, que não tinha pago. Mas a maioria era menina classe média alta e só sabia que era comigo. Aí eu chegava em casa “Pai, se eu não pagar eu não faço prova”. Aí ele falou: “Pode ficar sossegada, filha.” Aí ele saía e daqui a pouco ele voltava com o dinheiro da escola. Mas foram três anos assim. Aí tinha que fazer o que hoje é o colegial, tinha o clássico e o cientifico. Como eu não gosto de Matemática, eu queria o clássico. E só tinha na cidade. Tinha que pegar o trem para estudar – que é o trem¬ da Leopoldina, né, para estudar lá nas Laranjeiras. Um professor falou: “Raquel, você vai fazer o clássico?” Falei: “Meu pai não pode pagar, ele não tem condições.” Aí ele falou: “Eu pago” Um professor. Professor Mira. Era um negro, que era muito raro um professor negro naquela época, mas ele era um negro muito inteligente. Professor de História. E ele pagou para que eu fosse fazer o clássico. Aí eu fiz até o segundo ano nas Laranjeiras, né, Colégio Rui Barbosa. Só que aí meu pai arruma uma viagem pra Europa, e quando eu tava indo pro clássico, eu tava namorando um rapaz chamado Carlos. E o namoro tava... Aí um outro rapaz, que é o pai do Vítor, Jorge – Jorge de Souza –, falou: “Raquel, eu vou pra Europa com o seu pai.” Eu falei, “você não é do grupo Como você vai pra Europa?” “Eu vou lá, já tirei passaporte.” Aí foi na Rua da Constituição e falou: “Seu Francisco, eu sei dançar, sei tocar, sei fazer tudo.” Mas ele falou para mim: “Eu vou por sua causa, você vai me namorar...”, né? Aí papai falou: “Quero ver.” Ele dançou... – ele era Ogam de Candomblé, que a mãe dele tinha um Candomblé – tocou, cantou – que ele cantava na noite, né, cantava igual o Nelson Gonçalves. Aí foi pra Europa com a gente. Chegou no meio do caminho, luar, a piscina no navio, aquele calor, pronto Aí como é que eu falo? Transei com ele Aí quando chegou na Polônia, meu pai... eu pensei que o meu pai era adiantado, porque ele parecia um homem tão avançado, mas ele ficou tão bravo, tão bravo, que ficou de mal. Trancava a porta do hotel (risos) e não falava com a gente. As meninas arrumaram um casamento lá no Consulado Brasileiro em Varsóvia: uma festa linda, porque os comunistas tinham tomado todos aqueles palácios, né, era uma espécie de um palácio. E aí o cônsul deu os salgados, tudo, depois veio o Padre Dom Manuel, com o papel. Aí eu já voltei casada, né, para Caxias. Aí já é outra história (risos).
P - Vou voltar mais um pouquinho de novo, perguntar uma curiosidade minha: como era sua relação com o comunismo? O seu pai era muito ativo, né?
R - O meu pai era. Ele era muito ativo. Pacífico: através da poesia, através dos discursos, nos comícios, e eu ficava entusiasmada também, a gente pegava assinatura pro “Petróleo é Nosso”, depois contra a bomba atômica. E eu, com essa história de pegar assinatura, eu tomei muita corrida de ganso. Lá em Caxias usavam mais ganso do que cachorro, e ganso é bravo a beça. (risos) Eu tomei muita corrida de ganso, né? Mas ele conversava, porque ele tinha o sonho de uma vida melhor pro nosso povo. Ele tinha o sonho de não haver mais discriminação racial. E ele achava... depois ele mesmo se afastou do partido ¬– isso já no final – porque viu que o partido achava que o problema do negro não era racial, era econômico. E não é só econômico, é racial também. Por isso que ele também se afastou. Morreu socialista, mas sem partido. Igual eu, também tô sem partido. Sou socialista, sem partido.
P - A senhora, quando pequena, via isso como uma brincadeira? Como era?
R - Era como se fosse uma aula. Hoje, quando os evangélicos, às vezes, conversam comigo: “Ah, porque vocês de Candomblé fazem oferenda?”. Como eu aprendi muito com minha mãe sobre a Bíblia, eu digo: “se vocês abrirem a Bíblia em Leviticus e Números, você vai ver que era só oferenda a Deus, igualzinho: farofa, sabe, ver se o animal tá perfeito para oferecer para Deus...” mesma coisa, né? E isso do lado de religião. E do lado político, é que eu acompanhava tudo. O Vargas, eu sabia que Getúlio Vargas prendia os comunistas e pegava as idéias comunistas e punha como trabalhistas. Então eu menina já prestava atenção nisso tudo. Prestava atenção no que acontecia nos Estados Unidos com os negros, né? Aí falavam assim: “Ah, mas o preconceito no Brasil é diferente.” Só que lá era aberto e aqui é dissimulado, é sutil, é um pouco... mas é o mesmo. É o mesmo que dizer assim: “Ah, o português fez uma escravidão mais – como é que se diz? – menos dolorosa.” Escravidão é escravidão. Não tem essa coisa de menos dolorosa. Se você é escravo, tá ferrado, né? Então é isso.
P - E a senhora tinha algum sonho de infância? Toda criança tem um sonho de ser alguma coisa...
R - Ser artista. E é o que eu sou. Eu desde pequena queria ser artista. Eu gosto de pintura. Meu pai me mostrava pinturas de Van Gogh, de Rembrandt; as pinturas dos brasileiros, de Portinari... eu menina ele conversava comigo. Eu via as pinturas do Aldemir Martins quando ele ia no Vermelhinho, né, Santa Rosa... primeiro eu queria ser advogada, porque eu via muita injustiça. Mas depois eu vi que já tinha bastante negro advogado, né, porque são duas coisas que o negro às vezes escolhe muito: é Educação Física e Direito. E eu: “Não, eu quero é ser artista” Eu vivi muito no meio de artista. A gente ia em Santa Teresa ver a pintora Djanira. Ela me tratava muito bem, né? A gente ia assistir as peças da Maria Clara Machado. Então peguei amor pela arte mesmo.
P - A senhora tinha algum apelido de infância?
R - Ah, eu tenho o rosto comprido, então os meninos quando estavam com raiva de mim me chamavam de Cara de Cavalo; eu sempre fui magra, bem magra e alta, eles falavam que era Espanador da Lua, Macarrão Equilibrado, né, mas de brincadeira, assim. Mas apelido mesmo, não. Eu pus um pseudônimo, porque quando era premiada com os quadros, diziam: “Ah, é porque você é filha de Solano Trindade”, né? Aí, eu falei: “Pai, eu vou tirar o Trindade e por Raquel Cambinda.” Ele ficou chateado, né? Ali no acervo do Museu do Folclore tem uns oito quadros meus, que é Raquel Cambinda. Museu do Folclore do Rio, do Catete. Aí eu fiquei Raquel Cambinda, que é uma região de Angola que é Cabinda, né, que os negros velhos falavam Cambinda. É uma negra velha de Umbanda, mas eu sou de Candomblé. E é um tipo de negro que veio pro Brasil, de negro bantu, e eu não sou negro bantu, sou negro nagô. E no Candomblé a Dijina do santo é Bossu Idá.
P - Volta pra história que a senhora contou que foi pra Europa, casou, e aí volta pra Caixas...
R - É, volto pra Caxias.
P - Aí conta o que é que acontece a partir daí.
R - Então, aí o casamento durou só três anos. Foi a conta de eu ter o Vitor, que hoje é músico, é violonista e, se Deus quiser, tá segurando a barra lá do Teatro Popular Solano Trindade, quando eu não agüentar mais, né? Ele ficou cinco anos na Alemanha, tudo. E o meu marido, ele era muito boêmio. Mas foi um casamento muito rápido. Eu não queria nem casar, foi mais porque papai estava chateado. Eu gostava dele como amigo, mas não como marido. Aí me separei dele e levei o Vitor. Aí fui viver com outro rapaz, que hoje é bem casado no Rio de Janeiro, que dos oito maridos meus é o que está vivo. Aí eu tive a Regininha. Mas eu me separei dele porque a mãe dele não gostava de mim. E ele cuidou da mãe desde que ele tinha dez anos. E eu para não criar problema saí da casa dele, mas eu já estava grávida da Regininha. Aí depois disso, eu vim para São Paulo, vim com um capoeira chamado Paulo Gomes, e ficamos pouco tempo juntos. E ele formou, depois arrumou uma moça branca rica, que ajudou ele montar uma capoeira, uma academia de capoeira, e infelizmente ele foi assassinado. Não sei o porquê, que a gente já tava separado há muito tempo. Depois eu fui viver com Délcio Silva, que é um grande pintor acadêmico. Mas, também, depois de bastante tempo ele faleceu. Esse eu não tive filhos. Depois o Frederico – tudo negão – violonista e que compunha, né, artista. E durou uns cinco anos o casamento, depois separei. Aí veio o Paulo Martins, né, era metalúrgico. Depois o Vicente. Vicente de Paula, um grande artista, escultor. Teve uma época que ele me ajudou muito porque foi a época que meu pai adoeceu no Embu. Ele adoeceu em Brasília, veio pro Embu e a mulher dele, que tava com ele na época, faleceu, a Alicia. E o Vicente tava doente do pulmão, mas fez uma escultura de três metros em peroba, porque foi assim: Ai, meu Deus, tem um rapaz que é da TV, é um senhor já, agora, que foi lá em casa e viu que a gente tava numa situação difícil. Falou com a Elis ¬Regina, o Vinicius, Milton, Roberto Carlos, fizeram um show para nós comprarmos uma casa para pôr papai doente. Mas a gente já tinha feito Embu tão famoso, que nós não tínhamos condições de morar mais no Embu, porque os aluguéis subiram muito e as vendas também. Aí só conseguimos a casa em Itapecerica. A Elis falou: “Raquel, eu vou deixar o dinheiro com o Marcos Lázaro e você pega o dinheiro com o Marcos Lázaro.” Aí depois eu peguei o dinheiro com o Marcos Lázaro, mas já não dava pra compra da casa. Aí o Vicente fez um Cristo de três metros em peroba, para me dar o dinheiro que faltava pra casa em Itapecerica. Aí teve uma hemoptise¬¬ e foi pro hospital. Eu fui com o papai para essa casa. Ele já tava... ele teve arteriosclerose. Ele tem um poema que ele que diz que “eu vou sorrir sem saber do que sorrio”, né? Foi o último poema dele. E aí eu também fiquei doente. Pedi a minha mãe para vir buscá-lo e ela o levou pra casa dela em Jacarepaguá, que ela aí já era funcionária federal, tinha uma aposentadoria muito boa. E ele ficou com pneumonia. Ela levou para uma clínica em Santa Teresa e lá ele ficou... morreu e tá enterrado no Cemitério da Pechincha, em Jacarepaguá.
P - Em que momento da sua vida que a senhora veio para São Paulo?
R - Eu vim em 60. Vim em 54 para fazer um espetáculo. Que até a Ruth de Souza que acolheu a gente. Ela morava aqui em São Paulo, só depois que ela voltou pro Rio. E nós fizemos esse espetáculo. Depois, no Embu já tinha o escultor Sakai, o pintor Cássio M’Boy, a pintora Azteca e o escultor Assis de Embu, o Mineiro. Aí o Sakai disse: “Assis, você faz uma escultura muito boa, mas não tem características negras. Você precisa fazer uma escultura voltada pro negro. Procure Solano Trindade, que tá chegando em São Paulo, para ele te falar do negro, da sua raça...”. O Sakai falou, o japonês. Aí Assis foi encontrar papai em São Paulo, em 1961, e levou a gente para conhecer o Embu. Aí papai ficou apaixonado, porque naquele tempo as cachoeiras eram limpas, os rios eram limpos. Hoje onde é o Pirajussara era tudo mata, era uma coisa linda mesmo. Tinha a lagoa – que depois o prefeito Quinzinho aterrou – que tem as lendas que os jesuítas, quando foram expulsos pelo Marquês de Pombal, né, esconderam as caixas de tesouro dentro do lago. Aí agora, coitado, ele desce a ladeira mas só tem cimento. E papai fazia Festa de Iemanjá ao redor da lagoa, né? Então papai e Assis começaram a fazer festas que duravam três dias. E o Assis fazia, pegava cachaça, botava um monte de ervas e chamava de uísque Embu, e começou a atrair gente do mundo inteiro, né, aí o Embu virou Embu das Artes.
P - Mas o seu pai estava em São Paulo fazendo o quê?
R - Espetáculos do grupo, é, espetáculo de folclore. A mesma coisa que eu faço hoje. Maracatu, lundu, jongo, candomblé, coco, né, tudo folclore nacional. Que mamãe que ensinou essas danças, apesar de presbiteriana, né? Ela só não ensinou a dança dos orixás. Todas as outras ela ensinou.
P - Mas quando você veio para cá, a senhora estava casada com alguém?
R - A primeira vez que eu vim, eu vim sozinha. Aqui que eu conheci o Délcio, depois o Vicente, depois o Aurino Bonfim, que foi o último marido, que é pai da Dadá. O Jorge de Souza é pai do Vitor; o que eu não quero falar o nome, porque tá com a família, a mulher dele é muito ciumenta, é o pai da Regina, que inclusive até hoje dá – como é? – tem carinho com a Regina; e o pai da Dada, que é o Aurino, que eu já tive com 42 anos, que eu conheci no Samba do Candeia, no Quilombo, que eu fiz vários carnavais: fui vice-campeã na Vai-Vai duas vezes, com Solano Trindade, o Moleque do Recife, em 76, em 77, José Maurício, Músico do Brasil Colonial. Fiz figurino, carro alegórico, enredo, né, só a música que foi o Geraldo Filme e depois o Osvaldinho da Cuíca, não... E depois eu fui convidada pelo Candeia para fazer Ao Povo em Forma de Arte, o negro desde a pré-história até aqueles dias. E o Wilson Moreira e Nilo Lopes ganharam o samba.
P - Quando começa a sua relação, a aproximação com o Candomblé?
R - Ah, eu tive uma época lá no Rio, que dava tudo errado para mim. Eu fui trabalhar em Caxias, num Sindicato da Petrobrás, e dava uma confusão Primeiro eu arrumei um emprego no dentista – toda vez que eu tento um emprego... – no dentista, aí me deu uma dor de dente tão grande que não passava, eu tive que largar o emprego. Aí depois fui trabalhar no Sindicato da Petrobrás. Parecia que todo mundo tava implicando comigo ali. Aí uma amiga minha falou: “Raquel, tá passando da época de você raspar pro santo” Aí ela falou: “Você quer que eu te leve num Babalorixá?” Eu falei: “Me leva” Aí eu fui num Babalorixá em Caxias. Até um rapaz novo. Aí ele disse: “Olha, você é de Obaluaie, que é o Orixá da Saúde, que cuida da doença de pele, que é ligado às doenças, à varíola. E você é de Iansã, que é Oiá, e tá passando da época de você raspar pro santo. Mas você tem que fazer ao menos um agrado pro Orixá”. Aí eu falei: “Mas eu não tenho dinheiro. Tem que gastar e eu não tenho dinheiro” Ele falou: “Faz um agrado simples”, né? Aí eu falei: “Tá bom.” Para ele parar de falar, falei: “Tá bom” e fui para casa. Só que antes eu morava com a Cléa Simões. Eu tinha separado do marido, os filhos tava cada um numa casa de amigo, enquanto eu trabalhava, e a Cléa Simões me convidou para morar na casa dela, a atriz da TV. Ela foi ótima para mim, mas eu, para ficar mais perto dos filhos, fui pra casa da minha mãe. E de repente saiu uma discussão Meu pai já não tava lá. Uma discussão na casa da minha mãe, entre meus irmãos, ela, e tudo, porque tinha desaparecido a carne do feijão. Aí o vizinho, que era espírita kardecista, falou: “Dona Margarida, nem Raquel é mentirosa, nem a senhora é mesquinha. Porque vocês tão brigando por causa de carne de feijão?” Aí ela falou: “É isso mesmo” Aí saiu, de um a um. Aí de repente eu sentei no sofá, eu vi uma pessoa sair de dentro de mim, pegar o álcool, tocar fogo... aí eu falei: “Vai lá para fora porque vai queimar a poltrona da minha mãe.” Num era eu. Eu tava boazinha. Aí aquilo foi lá para fora pegando fogo. Os vizinhos... eu não sentia nada. Os vizinhos sentiram cheiro de carne queimada, aí correram pensando que mamãe tinha deixado a panela no fogo. Aí viram eu pegando fogo. E eu num gritava nem nada, não era eu Aí os vizinhos: “Por que é que você fez isso?” Eu dizia: “Gente, não sou eu, eu tô aqui” Mas eles viam aquela pessoa queimando. Eu via uma pessoa transparente, saindo labareda, não via eu. Então hoje eu sei que tem espírito, perispírito, matéria, aí mistura um pouco com Kardecismo Científico. Eles começaram a gritar, e meu irmão – esse que depois os militares mataram – voltou porque tinha esquecido um documento. Ele ficou desesperado, pensou que era por causa da briga. “Perdão, minha irmãzinha...” E eu passava a mão nele assim e nada, né? Aí chamaram a ambulância pra mim, botaram aquela coisa na ambulância e eu corria atrás da ambulância. “Mas que loucura – o tempo todo eu pensando – como é que eu to correndo atrás da ambulância?”Aí chegou no Hospital do Méier, puseram aquilo em cima do mármore e eu levitei. Aí que eu vi que era eu. Aí foram dois meses gritando de dor sem parar, tomando morfina. O médico abriu aqui, aqui, abriu tudo o braço. Grudou com o corpo. As mãos queimaram tudo, o rosto ficou cinco meses sem lavar para ir pro lugar. Se fosse agora nos hospitais do Rio, eu tava ferrada, né, do jeito que tá bagunçado. E aí lá tinha um médico... aí me levaram pro Hospital de Queimados, no Rio, e tinha um médico lá, Doutor Pierre Marcel Lion. Ele que cuidou de mim. Aí meu irmão Liberto – eu tenho um irmão chamado Liberto, porque acabou a guerra deram o nome dele de Liberto – ele vai me visitar. Quando ele abre o véu – porque tem um véu por causa das moscas – ele começa a gritar e sai correndo. E essa minha amiga Cléa, quando eu melhorei, ela e um outro – Procópio, também ator de TV – levavam as coisas para mim: pudim, coisa que eu podia mastigar, porque aqui ficou aberto – aqui, depois eles tiraram da perna para fazer os enxertos. Aí quando eu saí do hospital, papai me chamou para morar com ele aqui. Aí eu fui morar. Ele já tinha se aborrecido no Embu, tinha ido morar na Vila Sônia. Aí saiu na Revista Cláudia, da Editora Abril: “Cláudia realiza seu sonho”. E eu usava um véu, né, eu disse que meu sonho era fazer uma exposição de arte e não tinha dinheiro para material. Aí o professor Mário – já ouviu falar nele? Matemático, colecionador de arte, um homem maravilhoso... ele faleceu. Aí ele foi lá em casa, na casa de papai, gostou muito dos meus quadros, fez uma apresentação. Aí a Editora Abril me deu uma perua, uma van cheia de material. Eu fiquei tão contente que eu tive uma febre. Eu tô contando isso para chegar... Aí eu fui morar no Butantã, que quem mantinha a casa para mim, quem pagava o aluguel, era a Betty Mindlin, que é muito preocupada com índio, né, a filha do Doutor José Mindlin. Que foi muito legal para mim. E eu fui morar no Butantã, e mesmo queimada, comecei a ensinar danças e tudo. E apareceu... aí eu sabia que um dia tava todo o pessoal assim conversando comigo e deu um relâmpago, do nada, eu parei de falar e de andar. Aí as meninas falaram, as meninas do grupo – uma até já morreu, a Délia – “Raquel, você precisa fazer o santo.” Aí a Betty chegou, me pôs no carro e me levou em tudo quanto é médico: cardiologista, neurologista...“Ah, não tem nada”. Mas eu não andava nem falava. Aí ela falou: “Quer saber de uma coisa, Raquel, eu sou judia, mas já tô de saco cheio com isso. Eu vou... você vê onde tem um Babalorixá, que eu pago o seu santo” Aí as meninas falaram: “Não, ela gosta do Pai Jerônimo de Xangô, lá no Embu” – ¬que hoje é onde é o Jardim Mimás. Ele nem tá mais aí. A Betty ligou pra ele e ele falou: “Eu vou já pra aí.” Foi de carro. Quando ele chegou, eu virei no seu Obaluaie. Eu entrei em transe. Aí seu Obaluaie – ele era muito velho, né – me levou pro carro dele. Quando chegou na casa dele, eu bolei no santo de novo. Quer dizer, eu tava bolada no santo, porque quando a gente bola no santo, a gente ouve tudo, mas não se mexe nem fala. Aí quando cheguei lá no Candomblé, eu bolei no sofá. Aí a esposa dele não foi com minha cara. É uma moça loira. Ele é mulato amulatado, branco, que chama lá na Bahia de branco baiano, né? E ela loira. E ela vê que eu luto contra a discriminação racial, ela achou que eu sou contra os brancos, e ela começou a implicar. Mas aí ele fez tudo direitinho. Ele raspou o Orixá... ah, com o dinheiro que a Betty deu. Fez tudo Porque a gente fica recolhida e naquele tempo eram mais de três meses, né, que ficava recolhida. E quem tomava conta de mim, era um – porque a gente fica ou com Orixá ou com Erê, né, Erê é o espírito infantil – era uma negra, a Dona Maria e ela. Quando tava a dona Maria tudo bem, quando tava ela, aquele horror. Um dia ela falou assim: “Eu não gosto de Obaluaie porque se veste de palha. E eu gosto de Oxossi, ou Oxum porque tem brilho e tal”. Aí ele começou a discutir com ela: “Obaluie traz saúde, aquela coisa toda, e ela tem Iansã também”. Aí eu falei: “Oh, quer saber de uma coisa, pai, quando tirar o kelê, eu vou sair da sua casa.” Aí ela falou: “Ah, você vai morrer” Eu: “Ih, se eu tenho um Orixá e tem Deus, só eles dois que sabem, você não sabe.” Aí ela queria que eu deitasse nos pés dela, porque pro Babalorixá, quando é festa, a gente tem que fazer isso, né? E ela queria que eu fizesse o mesmo com ela. Eu disse: “Não, você é mulher como eu. Se você tiver com Orixá eu deito no seu pé, mas você é normal.” Aí pronto: aí a coisa ficou feia. Quando eu tirei o kelê, eu saí da casa dele e fui pra casa do Pai Quilombo. Outra casa, mas na mesma nação que ele. Aí agora já tem 40, quase 40 anos de santo. Trinta e poucos anos. Então já... eu jogo búzios, mas não faço outras coisas porque pinto, escrevo, danço, faço um monte de coisas, dou palestra... Num dá tempo de cuidar de filhos de santo. Mas gosto muito de Candomblé.
P - Aí, a senhora passou a freqüentar muito, como é que foi?
R - Não. Agora eu vou nas festas de vez em quando eu faço um Ebó, uma limpeza. Eu to precisando agora fazer um Ebó porque quando a coisa fica muito feia, começa a aparecer muita intriga, muita coisa, a gente precisa de uma limpeza. Aí eu vou na casa do Pai Quilombo ou na casa do Adaílson, porque eu mesma fazer pra mim não dá, né? É assim.
P - Então a senhora começa a fazer parte do Candomblé. E essa espiritualidade, tudo isso começa a fazer parte da sua vida artística também?
R - Não. O Candomblé é à parte. Porque é a parte espiritual. Agora, a gente dá aula de Cultura Negra, que entra o Candomblé e a dança dos orixás, que agora as meninas é que tão fazendo. Que eu faço quando eu vou no Candomblé, né, a dança dos orixás. E agora se fala muito em dança afro. Mas dança afro é a dança dos orixás estilizada, que o certo seria fazer uma oferenda pros orixás, qualquer pessoa que tiver fazendo dança afro. E é isso aí.
P - Conta um pouquinho da carreira artística: a senhora começa pintando?
R - Pintando... dançando, desde os 17, 18 anos. Aí vem a pintura. Aí eu fico vendo que o que eu aprendi na vivência com meus avós, com meus pais, com a própria vivência com o povo, com as danças, né, participar mesmo das danças de rua, tudo, que dá pra dar palestras, né? Aí eu comecei a dar palestra e tudo. Quando foi em 80 e... quando meu pai morreu em 74, em 75 eu criei o Teatro Popular Solano Trindade. Então o grupo está até hoje. Entra uma turma, sai outra, aprende, vai já fazer outra coisa, né? Agora tinha os dois netos, um que é hip-hop, o MC Trindade, e o Manuel Trindade, só que agora eles já estão com carreira própria. O Vítor tem a carreira dele – que é o pai deles dois – que é violonista, é compositor, compõe... bota música nos poemas de papai. Tem sua própria música e faz parte do duo Airá Otá, com o Caçapava, e faz parte da Revista do Samba, fica na Alemanha, viajando toda a Europa esses cinco anos. O Manuel já foi pra Taiwan, pra Alemanha, então já tá mais difícil de segurar eles. Então já tô passando para outras pessoas, que vai chegar uma hora que eu não vou ter mais condição, né, porque já estou com 72 anos. Aí quando chega em 87, o Toninho Nóbrega – que você conhece, né? – essa pessoa maravilhosa, do Brincante, começa a freqüentar e ir lá em casa aos domingos. Ele e o filho, que hoje já é adulto, né? Aí tudo bem, eu fico toda contente, mas o primeiro domingo, segundo domingo, terceiro e não fala nada? Falei: “Toninho, eu tô adorando as suas visitas, mas pra que, por que você tá vindo aqui direto?” Aí ele falou: “Ah, Raquel, é que eu queria te conhecer melhor, porque eu quero te convidar para dar aula na Unicamp.” Aí eu falei: “Mas eu não tenho nível universitário...” Ele falou: “Mas você tem notório saber, tem sabedoria popular e eu quero porque eu dou aula na dança de todo o folclore, mas eu não sei a dança dos orixás e eu quero te levar pra lá.” Aí eu fui. Foi uma beleza. Primeiro eu fui pra Dança. Aí o Celso Nunes, nas Artes Cênicas me convida para dar aula na Artes Cênicas. Os alunos – tem um até que trabalhou nessa novela da Record – adoraram, né, porque eu dei Maracatu, Coco, Lundu, Jongo, Candomblé, Guerreiros de Alagoas, todas as danças. Aí o Celso falou: “Raquel, tem uma extensão do curso que é Problemas Brasileiros, mas dentro desse Problemas Brasileiros, queria que você desse Cultura Negra e Teatro Negro no Brasil, né? Aí eu dei aula falando desde Benjamin de Oliveira, que fazia teatro no circo, né, até... eu falei de Abdias, de todos esses artistas negros. E os alunos me adoravam. Mas enquanto a Unicamp me pôs de técnico didático, os professores não ligaram. Quando a Unicamp me passou a professor, foi uma guerra tão fria, tão sutil, mas que me abalou muito. Os alunos não. Os alunos foram perfeitos. E o Adílson, que era um dos diretores, e o Celso. Mas os outros professores começaram a fazer uma guerra, ao ponto de, como eu tenho uma mediunidade muito grande, eu chegava na Unicamp, parecia que tinha uma porta de vidro que não deixava eu passar. Aí, ao mesmo tempo eu tive câncer no intestino, e ao mesmo tempo eu me separava do meu último marido, o oitavo. Então, juntou tudo, eu falei: “Eu não vou ficar na Unicamp” Aí eu sentei numa reunião – tinha uns 13 professores mais ou menos – e falei: “Olha, eu pensei que na Artes Cênicas era tudo voltado pra arte, que vocês não fossem elitistas, preconceituosos, mas vocês são e eu quero me livrar de vocês. Eu tô pedindo demissão.” Aí escrevi uma carta de demissão pra direção da Unicamp, mas eles... a Sara me deu uma carta de apresentação muito bonita. Aí eu voltei pro Embu, falei: “Eu prefiro voltar pro Embu, que eu não sei o que eu vou comer no dia seguinte – mas sempre aparece – do que agüentar vocês.” E fui embora.
P - A senhora disse que voltou pro Embu. Conta como começa essa volta.
R - Aí eu volto da Unicamp pro Embu. Mas antes eu tinha criado... o Celso Nunes, eu pedi a ele pra fazer um curso de extensão, porque na graduação só tinha um negro e eu queria que o negro participasse das danças, tudo. E aí eu chamei o pessoal, os funcionários e pessoas das outras graduações. Então veio japonês, veio judeu, veio gente de todas as nações, inclusive os negros. Aí nós começamos a ensaiar e lá dentro da Unicamp eu criei um grupo que chama Urucungos, Puítas e Quijengues, que tá até hoje. Agora eles tão independente, já tem Ponto de Cultura, e o pessoal que começou, Joãozinho, Ana, a Sinhá, o Alceu, o Jaça, pessoal que começou tá segurando as coisas até hoje, né? Principalmente a Rosária, que é a Sinhá, o Alceu, a Ana, a Edna... então o grupo já vai fazer 20 anos, parece. E já tem Ponto de Cultura, tem sede, já tá indo bem. E esse mesmo nome eu pus no meu livro Urucungos, Puítas e Quijengues, porque são três instrumentos bantus que vieram para São Paulo, e nesse livro eu escrevo todas as danças de origem bantu, né, que falta editar. E o outro é Embu, Aldeia de M’Boy, que foi editado aqui nas Perdizes, pela Editora Nova América, né?
P - Quer mostrar pra gente?
R - É, quero sim ó: Embu, Aldeia de M’Boy, que eu conto toda a história do Embu, desde os jesuítas; desde 1554, até os dias de hoje; os artistas todos que passaram no Embu, quem eram os jesuítas, quais os índios que foram pro Embu – porque os jesuítas tinham medo dos índios de São Paulo, que eram os tupiniquins, que eram muito bravos, aí foram buscar os índios do Sul, né? Então, aqui tem o meu pai, Assis, Sakai, todos os artistas, né? E também, eu sempre tive na luta pra editar os poemas de meu pai. Esse é da Nova Alexandria, que saiu agora, com ilustrações minhas, né? Na nova Alexandria são três livros que saíram agora: esse Solano Trindade, Poemas Antológicos, o Tem Gente com Fome, para criança, com ilustração da Cintia e do Murilo, que tá muito bonito e o Canto Negro, esse da Nova Alexandria. E a Ediouro pegou um livro que foi editado por seu Lourival, da Cantos e Prantos e reeditou ele – porque o do seu Lourival tá esgotado –, para fazer Solano Trindade, o Poeta do Povo, que tem muitas fotos da família, tem uma biografia escrita por mim, né, de papai, tem os poemas todos dele. E a minha filha, Dadá – porque eu tenho as duas filhas: uma é Regina Célia, que é evangélica e faz artesanato, é dona de casa, tem dois filhos que é o Queniata, em homenagem ao libertador do Quênia e Davi, que é bíblico, né, e ela é batista. E tem a Dadá, que é a Adalgisa Trindade Bonfim, que casou com um americano, agora é Adalgisa Preston, e mora em Atlanta e tem dois livros pra editar. Um é muito... ela é muito, assim, sensual e o livro é erótico, chamado Romance do Pirajussara e o outro é um livro infantil, falando de uma criança que é criada dentro de um Candomblé. Esses dois livros eu gostaria muito que ela conseguisse editar, né?
P - Quando a senhora volta pro Embu, quais eram os seus planos?
R - Era de construir um teatro; de ensinar o máximo que eu pudesse pras pessoas, pra comunidade do Embu e de quem quisesse. E eu sempre vivi em coletividade, mas agora tá mais difícil isso. As pessoas tão ficando mais egoístas, as pessoas tão mudando muito. E nós temos 45 pessoas no grupo. Antes a gente sempre deu aula de graça e agora tá ficando difícil a coisa, porque a gente às vezes manda projeto pro governo, vem um dinheiro, a gente precisa comprar computadores, comprar... aí as pessoas pensam que a gente tá gastando com a gente. Eu vivo é dos livros, das palestras, vivo muito simplesmente. Se você for na minha casa, tem duas casas: uma era de barro, que um amigo meu fez pra mim, de barro – o Gileno Bahia construiu pra mim – e ela tá caindo. Aí eu fiz dois cômodos do lado, mas consegui que fosse feito o teatro. O teatro é a maior polêmica, porque o Assis, que é o escultor, era de um governo mais à direita, que era do Oscar Iazbek, e ele queria fazer o teatro pra conseguir... ele era da Secretaria de Turismo. Queria fazer o teatro pra mim. Pro grupo, né, porque o grupo é registrado, é pessoa jurídica – eu só criei, né? E o Assis então pediu ao Oscar Iazbek pra... pediu ao Governo Estadual um dinheiro pra que a gente pudesse fazer o teatro. Aí ele não queria, o Oscar, porque eu não votei nele – porque eu não votava na direita (risos). O engraçado é que quem cedeu o dinheiro foi o Joaquim Matias de Morais, que era o prefeito mesmo de direita naquela época, tudo. E o Assis falou pra mim: “Raquel, o Quinzinho tá cedendo terrenos...” Aí eu falei: “Mas ele não vai dar pra gente” Ele falou: “Vamos lá” Aí eu fui, ele falou: “Você vai votar em mim, Raquel?” Eu falei: “Não” Aí ele: “Então não te dou” Aí fui saindo e ele falou: “Vem cá, Raquel Você faz um trabalho sério de cultura popular, eu cedo o terreno sim.” Aí cedeu, no centro do Embu, 1720m do terreno, e ainda deu material para que eu fizesse um barraco, para começar tudo. Aí eu voltei no outro, que era o Nivaldo, que se dizia de esquerda. Aí o Nivaldo não quis me apoiar e ainda sumiu material do barraco. Aí o Gileno Bahia, artista que trabalhava junto com o Nivaldo, falou: “Poxa, Nivaldo, então me dá um caminhão e cinco trabalhadores, que eu vou no mato, pego barro, pego eucaliptos e faço uma casa pra Raquel começar.” Aí ele falou: “Ah, então pega o caminhão.” Aí ele pegou caminhão, foi no mato e aí a gente ensinava pra gente como fazer pra amassar o barro, barrear. Naquela época eu tava com o Aurino Bonfim, que era pintor, e que era o meu marido e pai da Dadá. Aí um batia de um lado outro batia do outro, levantamos a casa. Isso faz 25 anos. E o Quinzinho cedeu o terreno – cessão em comodato por 50 anos, né? Aí o Nivaldo fez um barracão grande para ensaiar o grupo. Aí começamos a ensaiar, tudo. Quando foi no governo Iazbek, o Assis foi de novo da Secretaria de Turismo, aí pediu o dinheiro, Iazbek não queria dar. O Assis insistiu muito, aí veio: 450 pro Memorial Sakai, 350 pro Parque Riso, 200 pros banheiros, e 100 pro nosso, né? Aí quando entrou o Alckmim, o Alckmim soltou pro perfeito do Embu, que é o Geraldo Cruz, construir, né? O Geraldo Cruz construiu, e aí fala que o dinheiro é a volta dos impostos. Então, pra não magoar nenhum, nem outro, eu falo: “É parceria”, né? Aí construiu o teatro, mas no terreno do teatro, no terreno em comodato. Então por enquanto o teatro tá na nossa mão, mas agora, no centenário de papai, o prefeito ajudou muito, pagou os grupos que foram dançar, alimentação, condução, tudo. Ajudou muito. Ele é do PT.
P - Conta como é o seu cotidiano hoje.
R - Hoje eu levanto... bom, sábado e domingo é diferente. Segunda-feira é dia de eu jogar búzios, as pessoas que tão marcadas eu jogo búzios. Tem uma moça, a Rosângela, que tem um nenenzinho, e uma outra, e os outros filhos, ela vai lá pra casa pra fazer comida, lavar roupa, essas coisas que eu não gosto (risos). E aí eu e o meu filho e a Carla, que é secretária, a gente vê o quê que a gente pode fazer em relação ao teatro. De mandar projetos, de ver o que precisa, aquela coisa toda. Que eles dois é que entendem de computação, né, que eu não entendo nada. E eu gosto de pintar de manhã... eu gosto de pintar de manhã, pinto até a hora do almoço, almoço, deito um pouquinho para tirar a sesta e aí depois começa a chegar gente. Chega gente de todo o tipo: chega universitário para fazer pesquisa; chega gente para contar os seus problemas – parece o Muro da Lamentação – chegam professores, alunos, né, gente de todo o tipo. Vou às vezes dormir tarde. Ah, e aí tem as aulas que os meninos dão, né? O Manuel dá aula às seis e meia, de percussão. Aí é um entra e sai, porque eles misturam tudo. Minha casa, com o teatro, parece que é uma coisa só. E tem a aula da Débora, de dança afro, de tarde. Tem a aula de frevo, da Carla, tem a aula da Paula e do Eustáquio. O Eustáquio é de Capoeira de Angola, que é lá do mestre Marrom, mas vai dar aula lá. E às quartas, um rapaz do meu grupo que eu gosto como um filho, falou que eu não sabia dirigir um grupo e que ia criar um grupo. Aí eu falei: “Cria e vem...” Aí ele falou: “Posso ensaiar aqui?” Eu falei: “Pode.” Aí ele tá ensaiando o grupo. Tá muito bonito o grupo dele. Às quartas-feiras. Às quartas à noite, depois do grupo do Caçapava, são as crianças que fazem hip-hop, que o meu neto, MC Trindade, que é Zinho Trindade, e o Igor, que é o filho do TC, que tem um grupo de Maracatu em Campinas – mas ele fica aqui e dá aula de hip-hop: a história do hip-hop, as danças break, né? E às sextas-feiras... às quintas, ensaia o grupo que o Vitor montou, é Solano Trindade, Meu Avô, que eles musicaram os poemas de papai. E tem depois o naipe de percussão, que é uma moçinha japonesa, o Sandro, o Rafael, o Zinho, o Manuel, e a Cida, que fazem o naipe de percussão. Eles criam música, misturam música e fica muito bonito. E aos domingos, às três horas, eu ensaio. Eu, Vítor, a Carla, todo o folclore nacional. Então é uma vida bem agitada. Bastante agitada. Fora filho, neto... as crianças do grupo tudo me chamam de avó também, que o trabalho da gente também é tirar as crianças da rua, né? Tudo isso.
P - Tem alguma coisa específica que você queria falar que eu não perguntei?
R - Peraí, to pensando. Ah, então, eu vou, por exemplo. Agora eu fui no centenário do meu pai, foi muito bonito. E eu to sendo chamada pra criar um grupo em Duque de Caxias no ano que vem. E o Recife... a Bahia quer que eu vá pra lá no dia sete de novembro. Tá dependendo da Fundação Palmares. Dias 26, 27, 28, é no Recife, né? E tá assim, entendeu? É muita coisa. Teria que vocês perguntar mais alguma coisa... P2 – Em relação ao teatro mesmo. Então, desde que aquilo ali era só terra, que vocês fizeram sozinhos?
R - Sozinhos, sempre. Agora que a gente recebeu do departamento do Sérgio Mambert, um dinheiro que compramos instrumentos e aparelhagem de som. O Governo Estadual tá apoiando também, com cursos também. Porque até agora os professores não receberam nada. Agora é que vão receber. E também a gente tá esperando da Fundação Palmares, um apoio também para esses cursos. Mas eu mesmo não tenho. O dinheiro meu é – como é que se diz – das palestras, livros, pintura, né, porque do teatro é o próprio teatro que faz. Do teatro mesmo eu tiro a... do teatro, do espaço do teatro, a prefeitura paga a luz e água. Da minha casa, que é um extensão do teatro, aí já é outro... vem 700, 1000 por mês de telefone. Tudo do trabalho. A escultura foi feita pelo Jofe, a do Embu, que a do Recife foi o Demétrio quem fez. Tá no Pátio de São Pedro, no Recife, porque papai nasceu ali perto, no bairro de São José, né?
P - Uma última pergunta que a gente faz sempre aqui no Museu: o que a senhora achou de contar a história pra gente?
R - Ah, eu adorei. Adorei. Vocês são muito simpáticos e o espaço é bem gostoso. Gostei muito. O meu problema é vir para São Paulo, porque o ar do Embu ainda é puro pra caramba. Aí quando chega em São Paulo eu vou me sentindo ardendo o nariz, ardendo o olho... Aí eu gosto muito quando vão pra lá me entrevistar, né? Mas aqui é muito gostoso, muito gostoso. Valeu. E vocês são muito inteligentes, eu gosto de conversar com gente inteligente.
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