P1 - Boa tarde, Tai! Tudo bem?
R - Boa tarde, tudo bem.P1 - Então, vamos começar com uma pergunta bem básica: gostaria que você nos informasse seu nome completo, a sua data de nascimento e onde você nasceu.
R - Meu nome é Tai Hsuan An, significa “Propagar a paz”. Nasci na China, numa vila que não chegava a ser uma cidade. Uma vila no sul da China, na região litorânea, porém, montanhosa. Nasci no dia 3 de agosto de 1950.
P1 - E você comentou que a sua data de nascimento não tinha sido exatamente essa. Conta pra gente o que aconteceu.
R - Provavelmente meus pais foram registrar meu dia de nascimento atrasado, (risos) um mês atrasado, devido a alguns motivos, porque era uma vila, talvez fosse mais difícil. Mas nasci em julho, um mês antes, na verdade, dessa data registrada. Julho, 3 de julho de 1950.
P1 - E qual o nome dos seus pais, Tai?
R - O nome do meu pai, Tai Wen Lu. O nome da minha mãe, Tai Kuan Ten Mei. Na realidade, era Kuan Ten Mei, mas, na época, tinha costume de colocar o sobrenome do marido. Então, ficou Tai Wen Ten Mei, porque “Tai”, na realidade, é sobrenome. E na China a gente não fala que é sobrenome, na realidade, é nome do clã, sabe? Eu sou do clã Tai.
P1 - Certo. Você tem irmãos?
R - Eu tenho três irmãos. Um irmão que mora em São Paulo (SP), hoje. Uma irmã que mora em São Paulo e outra mais nova, que mora nos Estados Unidos.
P1 - Certo. E quais lembranças você tem da sua infância, Tai? Sobre essa vila, a casa onde você morou?
R - Olha, tem muitas histórias longas pra contar. Aí eu não sei qual que é mais interessante. Eu nasci, como eu já falei, numa vila que… uma vila completa, tinha até cara de cidade. Tinha uma estação ferroviária, tinha duas escolas primárias, tinha igreja, templo, tinha mercado, tinha de tudo, uma estrutura completa de uma cidade. Mas era pequenininha. Vamos dizer, essa vila ou cidade, que tinha uma rua principal, apenas uma rua...
Continuar leituraP1 - Boa tarde, Tai! Tudo bem?
R - Boa tarde, tudo bem.P1 - Então, vamos começar com uma pergunta bem básica: gostaria que você nos informasse seu nome completo, a sua data de nascimento e onde você nasceu.
R - Meu nome é Tai Hsuan An, significa “Propagar a paz”. Nasci na China, numa vila que não chegava a ser uma cidade. Uma vila no sul da China, na região litorânea, porém, montanhosa. Nasci no dia 3 de agosto de 1950.
P1 - E você comentou que a sua data de nascimento não tinha sido exatamente essa. Conta pra gente o que aconteceu.
R - Provavelmente meus pais foram registrar meu dia de nascimento atrasado, (risos) um mês atrasado, devido a alguns motivos, porque era uma vila, talvez fosse mais difícil. Mas nasci em julho, um mês antes, na verdade, dessa data registrada. Julho, 3 de julho de 1950.
P1 - E qual o nome dos seus pais, Tai?
R - O nome do meu pai, Tai Wen Lu. O nome da minha mãe, Tai Kuan Ten Mei. Na realidade, era Kuan Ten Mei, mas, na época, tinha costume de colocar o sobrenome do marido. Então, ficou Tai Wen Ten Mei, porque “Tai”, na realidade, é sobrenome. E na China a gente não fala que é sobrenome, na realidade, é nome do clã, sabe? Eu sou do clã Tai.
P1 - Certo. Você tem irmãos?
R - Eu tenho três irmãos. Um irmão que mora em São Paulo (SP), hoje. Uma irmã que mora em São Paulo e outra mais nova, que mora nos Estados Unidos.
P1 - Certo. E quais lembranças você tem da sua infância, Tai? Sobre essa vila, a casa onde você morou?
R - Olha, tem muitas histórias longas pra contar. Aí eu não sei qual que é mais interessante. Eu nasci, como eu já falei, numa vila que… uma vila completa, tinha até cara de cidade. Tinha uma estação ferroviária, tinha duas escolas primárias, tinha igreja, templo, tinha mercado, tinha de tudo, uma estrutura completa de uma cidade. Mas era pequenininha. Vamos dizer, essa vila ou cidade, que tinha uma rua principal, apenas uma rua principal, com cinco quadras e pronto, acabou, e outras ruas espalhadas. E é muito, assim, totalmente próxima à zona rural. Então, minha vida da infância passava, praticamente, dentro dessa vila e na zona rural, no campo. E tinha também a natureza exuberante, em torno da vila. Morros, não digo montanha, mas morros. Monte. E eu, como uma criança que gostava muito de brincar, explorava de tudo. Mas tem uma coisa interessante, que eu gostaria de contar: eu nasci, enquanto conseguia engatinhar, já gostava de ficar riscando no chão, desenhando. Desenhar era minha preferência, era o meu "hobby". (risos) Então, fui descoberto primeiramente por meus pais, que eu era, na realidade, um pequeno pintor. Isso aconteceu na escola também e depois gostaria de contar essa experiência na escola, tá? Eu gostava tanto de pintar, desenhar, e até moldar, com argila, formas, sabe? Então, na escola primária, tem uma experiência muito interessante na minha escola, não sei se outras escolas faziam a mesma coisa. No primeiro dia que eu entrei na escola, fui colocado, junto com outros meninos, pra fazer uma atividade, pra poder descobrir a vocação de cada um. E fui selecionado para integrar num grupinho de pintores, pequenos pintores. Então, minha infância era assim, eu vivia brincando. Adorava brincar, na natureza, principalmente. E desenhar, pintar. E uma infância muito feliz, sem [se] preocupar com a situação daquela época, situação política, situação de… Sabe, quando nasci, o governo socialista, comunista, acabou de ser fundado. Então, como era criança, eu não sabia de nada disso. Mas eu tenho lembranças, né, de coisas, assim, que depois fiquei sabendo, né, que na realidade eu estava vivendo numa situação de guerra civil. Depois compreendi qual a razão da nossa vinda ao Brasil, né, por causa da guerra civil. Mas, enquanto era criança, aí, como eu falei, gostava muito de brincar, explorar e fazer aventuras. E a natureza, conheci muito bem. Conhecia, sabe, de bichinhos. Dos girinos, até pássaros e outros animais. Então, não gostava muito de estudar, pra mim era brincar e pintar. Mas, mesmo assim, eu consegui me formar como um aluno mediano, né, porque não, quase não estudava. Então tinha, como falei, que passava trem. Tinha estação ferroviária, passava trem na frente do estúdio fotográfico do meu pai. Meu pai era fotógrafo. Então, eu sempre brincava nos trilhos, também, de trem. Pra mim, era muito interessante, era cheio de aventura. Mesmo que a cidade era, a vila, né, era pequenininha, mas tinha tanta coisa pra criança como eu explorar. Então, esse contato com a natureza permanece, hoje, na minha memória, muito forte. Então, nas obras que eu crio, obras artísticas, sempre coloco, né, assim, essas cenas que eu vivi, a experiência, a vivência, expressando nas minhas obras de pintura, de escultura.
P1 - Certo. E você tinha comentado que seu pai era fotógrafo. Conta um pouco do seu pai, da sua mãe, pra gente. O que sua mãe fazia, como era o cotidiano de vocês?
R - Ah, acho muito interessante. Graças aos meus pais... normalmente, os pais... assim, eu digo “normalmente”, né, querem que os filhos sejam engenheiros, comerciantes, pra ganhar dinheiro e tal. Meus pais, não. Quando eu falei: “Eu queria ser um grande pintor, um artista”, meus pais me deram o maior apoio. Não só meus pais me deram apoio, a escola, aliás, todo mundo me deu apoio. Meu pai era fotógrafo, mas era um tipo de artista polivalente. Como fotógrafo, ele tinha estúdio, mas era músico. Ele compunha música, ele cantava ópera chinesa, ópera de Pequim. Cantava bem. Uma das músicas virou, assim, uma música popular que, hoje, você ainda escuta. É regional, música popular regional, só que não aparece o nome dele como autor. Ele foi um autor, mas não era compositor. E ele era "designer", arquiteto. Ele chegou a projetar a igreja da vila, da nossa pequena cidade. Igreja protestante presbiteriana. Aí tem história pra contar, por que que meu pai se converteu, né, em cristão? Porque na China é uma raridade, principalmente naquela cidade pequena. Aí é outra história. Mas, de qualquer modo, meu pai era um artista. Músico, pintor, projetista, fotógrafo. Ele estudou fotografia com quinze anos, no Japão. Ficou três anos, até quinze anos, no Japão. E ele amava músicas chinesas, músicas ocidentais. Conhecia música de Beethoven, Vivaldi e de todos os clássicos. E ele assinava revistas, livros sobre arte. Isso tudo me influenciou demais. Ele era [uma] pessoa desse tipo, muito rara, dentro daquela cidade pequena. Minha mãe também. Minha mãe era amante de artes, de modo geral. Gostava de poema, poesia, né, escrever, [a] caligrafia dela era ótima. A cidade inteira, as moças pegavam minha mãe... como fala? Exemplo, né, de… pra poder imitar, copiar. Então, quando eles descobriram que eu gostava muito de artes, pra eles era tudo muito lógico. Eles conseguiam, na época, até animar a cidade. Pois, na cidade, pouca gente fazia eventos musicais. Lá no estúdio do meu pai, acho que uma vez por mês, abria para virar, assim, como é que… uma… não tinha palco, nada. Mas juntava amigos pra fazer sarau, né, musical. E o povo se juntava lá pra escutar música. E o meu pai cantava, tocava todos os instrumentos musicais e era professor também de acordeão, né, violino, violão. Minha mãe tocava violino e violão. Então, era isso, meus pais eram desse jeito. Ah, e outra coisa, só pra puxar um pouquinho: isso foi um dos motivos da imigração. Meus pais ficaram sabendo que Brasil era uma terra maravilhosa, com um povo que adorava música, adorava dança. Meus pais, então, acharam que Brasil era o lugar mais apropriado pra eles e pra nós.
P1 - E quais lembranças você tem dos seus primeiros anos de escola?
R - Ah, fantástico. Olha aqui, ó: com seis anos, minha mãe me levou pra escola. Não sei se vocês sabem, qualquer escola, seja dentro do regime nacionalista ou comunista, na época, né, em duas regiões, como eu falei, tinha guerra civil. Depois os comunistas venceram, tal. Escola era muito, assim, prezava muito a disciplina. Às vezes, assim, nos olhos dos ocidentais, podem achar que é muito militar, mas não é, porque a escola tem essa tradição nos países asiáticos. No Japão, a mesma coisa, na Coreia, na China, preza muito pela disciplina. E, também, a escola procurava saber da vocação de cada um, pra poder desenvolver atividades de acordo com a vocação. Achei muito interessante isso, eu não sabia… claro que, na época, tudo isso, depois que eu pensei: “Puxa, que coisa mais correta”. Então, minha escola tinha, assim, escola primária. Olha, quando a gente fala da disciplina: sabe como que eu saía de casa, até chegar na escola? Era assim: eu saía de casa bem cedinho, não era… não podia atrasar. Aula, sete horas tinha que chegar na escola, sete horas mesmo, tinha que estar dentro da escola. Então, quando eu saía de casa, eu, no meio do caminho, podia encontrar colegas e tinha que fazer fila, uma atrás da outra e indo até a escola. Isso em termos de disciplina. Chegando na escola, ninguém achava muito, ninguém achava ruim não, era normal. Na escola, cada um entra na sala de aula, esperando o professor chegar, né, todo mundo sentado. Quando o professor chegava, entrava na sala de aula, todo mundo se levantava automaticamente, é uma disciplina, pra cumprimentar, né: “Bom dia, professor”. Se levantava e [o] professor respondia, depois todo mundo sentava. Aí professor fala: “Olha, nós vamos fazer filas, vamos fazer hasteamento de bandeira e fazer ginástica”. Era diário. Fora disso, era uma alegria. Só que o estudo era muito pesado, porque escola primária tinha que estudar muito, pra enfrentar a admissão ao ginásio. Na época, tinha curso ginasial e colegial. E não é qualquer um automaticamente já vai pra ginásio. Hoje, já [é] diferente, né, tem nove anos também, ensino obrigatório. É diferente, tudo mudou também. Mas, na época, olha, aprendia de tudo. É por isso que eu sempre falo que um chinês que estudou na China tem uma bagagem muito boa de conhecimento, de informações. Olha, estudava história da China, história mundial, do ocidente, sabia de tudo, da Revolução Francesa, do Descobrimento do Brasil. Tinha que estudar tudo, da China e do mundo. Geografia também. Música chinesa e música ocidental. Tinha que saber cantar diversas músicas ocidentais, das mais tradicionais [e] clássicas. E tinha, na escola primária, né, experimentos químicos, tinha laboratório pra fazer experimentos. Tinha jardinagem. Meninos tinham que ir na beirada do rio pra carregar pedras de volta para a escola, pra fazer jardim. Trabalhos manuais. É porque a gente ficava o dia inteiro na escola. Dia inteiro, de manhã cedinho até final da tarde. Levava comida, levava marmita. Olha, maior alegria dos alunos de se ter, era a chegada da marmita esquentada, que a gente levava marmita e entregava pro pessoal lá, funcionário, levava para aquecer. E, depois de almoçar, era obrigatório tirar soneca. De colocar a cabeça no braço, em frente da cadeira, né, em frente da mesinha. Então, era isso, era disciplinado, tinha muita brincadeira, aprendia muita coisa. E, principalmente, a descoberta de cada um, de vocação, de interesse. Eu acho muito interessante isso. E, no final do dia, tinha turnos em revezamento para limpar a sala de aula. De levar lixo para um lugar, pra ser incinerado. Então, era assim. Mas era pesado o estudo.
P1 - E, além das artes, existia alguma matéria, algum tema que você gostasse mais? Alguma aula que você se interessasse mais?
R - Bom, como sou muito mais da área humana, né, eu gostava bastante da Língua Chinesa, da Literatura, né, de História, Geografia. E a matéria que eu não gostava era ligada à Matemática, Física e Química. Tudo que precisava de cálculo, eu não estava interessado. E disciplinas que precisava, que exigia da gente o uso das mãos, trabalhos manuais, é claro que eu adorava. Mas pintura, especialmente. Caligrafia. Porque, na China, caligrafia, aulas de caligrafia são tão respeitadas, tem uma importância tão grande, como qualquer outra forma de arte. Música, pintura, caligrafia. Caligrafia com pincel. Então, gosto dessas matérias, principalmente trabalhos manuais. A montagem. Por exemplo: tinha xilogravura. Tinha origami. Todo mundo sabe, né, origami: você recebia um pacote de papel colorido e fazia origami. A coisa que eu mais gostava. Então, a gente recebia, tem uma coisa muito boa: na escola chinesa, pelo menos, na época, recebia tudo de graça. A gente ganhava de presente, embora a China, na época, era muito pobre. Mas educação era muito importante, a gente percebia isso.
P1 - E você conseguiu passar para o ginásio? Como foi essa mudança pra você, Tai? Você continuou na mesma escola, ou mudou pra outra?
R - A escola primária, onde eu estudava, não tinha curso intermediário, secundário. Mas, na cidade... Quer dizer, fora da cidade, né, fora da vila, tinha um colégio, concurso ginasial, sem o curso colegial, porque eram separados ginasial e colegial. Era, pra mim, mais perto e mais fácil de entrar porque, com a prova de admissão, a média que eu tirei, conseguia entrar nesse colégio. Muita gente estava querendo ir pra outra cidade, maior, que tinha ginásio, escolas melhores, porque, através de pontos, você pode ou não entrar em determinada escola secundária. Eu entrei na escola secundária mais perto da minha casa, né, assim, a pé, andando, caminhando, meia hora. De bicicleta é mais rápido, mas, na minha casa, não tinha condições de andar de bicicleta ainda. Então, ia a pé. Mas uma escola muito bem montada. A escola secundária que eu frequentei [por] três anos, me formei nessa escola, tinha marcenaria, por exemplo. Hoje, eu trabalho com madeira, porque aprendi já muita coisa lá. E [a] biblioteca [era] muito boa. Só que a busca de livros, aí vou contar a história, né, que livros que eu buscava, que eu pegava pra ler. Olha, todos os livros ocidentais traduzidos. Sherlock Holmes, Tarzan. Não [tinha] literatura mais séria, né, do ocidente, mas tinha de tudo do ocidente, de literatura. E romances que eu adorava. Eu não falei que hoje sou artista plástico, adoro escrever. Então, já gostava muito de ler. Eu gosto de ler e de escrever. Tô escrevendo diversos livros, o tempo que não me permite a não desenvolver mais rápido. Inclusive, essas histórias que tô contando, eu vou estar... na realidade, já tem escrito no meu livro. Então, a biblioteca era o lugar que eu mais gostava, muito mais do que ficar na sala de aula, escutando o professor falando. É claro que, na época, tinha como… Mesmo que eu gostasse muito da literatura, da língua chinesa, mas o que o professor, os professores passavam, pra mim, não era tão interessante. Tinha um método que hoje também é condenado na escola, né, de ficar decorando. Tinha que decorar muito. Mas tem gente que defende esse método: “É bom decorar tudo, mesmo que você não está entendendo, porque isso aí vai te ajudar, depois você vai entender”. A criança, desde o início, é incentivada a decorar e eu não gostava de decorar nada. E precisava decorar no curso ginasial, secundário, duzentos... é claro, não todos, duzentos, entre duzentos poemas da dinastia Tang. Você tinha que decorar alguns poemas. Ah, eu não dava conta de decorar. Uma vez, eu vou contar, né, história tem que ser verdadeira. (risos) O professor me pegou… Como é que fala? Escondido, assim, colando, né, o poema. “Declama o poema”, aí eu olhava pra baixo com cola. Ah, não conseguia. Mas [a] escola [era] muito boa, não dá pra negar: desde aquela época, escola primária [e] secundária [eram] muito boas. Outra coisa que quero destacar também, embora morava na cidade pequena, no sul, hoje eu falo mandarim, todo chinês acham que eu sou do norte, de Pequim, da região de Pequim. Que o mandarim que eu falo é mais, vamos dizer, não digo “autêntico”, mais do padrão oficial, né, do norte, baseado em mandarim, na língua de Pequim. Porque, nas escolas, quem ensinava língua tinha que ser do norte, tinha que ser a pessoa que falava muito bem, sem sotaque, o mandarim. Então, eu consegui estudar e andava brincando, junto com outros meninos, dos filhos desses professores, né, do norte. Então, isso também, desde criança, vai, tudo ia me influenciando para minha formação. Até hoje, assim, aqui já, em Goiânia, fiquei praticamente quinze anos dando aula de mandarim também. Inclusive, na PUC. Aqui tem curso de línguas, já dei dois anos de mandarim.
P1 - E você chegou a fazer o colegial também na China, ou foi esse período que você e sua família vieram pro Brasil?
R - Exatamente. Assim que eu me formei no curso ginasial, faltavam três anos pra terminar o secundário, pra ingressar na faculdade. Mas não dava tempo, tinha acabado de me formar e meus pais falavam pra mim, falando pra todo mundo da família: “Nós vamos emigrar para [o] Brasil”. Bom, aí meu pai veio um ano antes pro Brasil, aí é outra história. E não consegui mais, claro, frequentar, não dava tempo. Tinha mais um ano pra eu continuar estudo, mas eu não quis, eu queria… porque não dava tempo nem pra terminar um semestre. Então, queria entender o Brasil, queria pesquisar, saber mais do Brasil. Inclusive, meu pai deixou até vários discos da língua portuguesa, pra gente estudar a língua portuguesa, só que de Portugal, (risos) língua portuguesa de Portugal. Meu pai já tinha estudado e deixou discos pra gente aprender. E queria aproveitar o tempo pra explorar mais, né, a minha cidade, minha região, minha região lá, na zona rural. Conhecer mais, antes de partir pro Brasil. Chegando ao Brasil, aí eu tinha que ficar dois anos na escola primária, aqui no Brasil, para estudar a língua portuguesa, pra poder entender e falar, escrever. Mas, antes disso, como meu pai veio um ano antes pra constatar se realmente era bom pra a família vir. Constatou e vendeu tudo. Tudo. Minha mãe, né, vendeu tudo pra poder trazer a família pra cá. Então, durante a viagem de navio, quarenta dias no navio, eu cheguei a falar pra minha mãe: “Mãe, chegando ao Brasil, não vou continuar [a] estudar, porque a gente vai pra fazenda mesmo”. Porque, na época, era assim: imigrante chegando ao Brasil, ia pra fazenda. É por isso que no registro, nos nossos registros, entrando ao Brasil, pra ganhar uma identidade, né, cada um. Eu tenho uma identidade. Primeira identidade, documento, né, era filho de agricultor. Meu pai era agricultor, está escrito, registrado: agricultor. Meu pai nunca foi agricultor, mas como imigrante, era pra trabalhar na zona rural, em fazendas. Prestando serviço, tal. Não sei detalhes disso, se era um tipo de contrato ou não, é outra coisa. Então, falei pra minha mãe: “Eu queria trabalhar na fazenda, como caubói. Gostava muito de brincar, de explorar. Como seria bom montar em cavalo e galopando, junto com a natureza, né, como a gente via nos filmes. Então, falei pra minha mãe. Aí, no navio, tinha imigrantes coreanos, japoneses [e] chineses. Olha aqui, ó, três povos de imigração ao Brasil, em 1965. Minha mãe viveu durante muito tempo, na China, na região de domínio japonês, desde de criança. Japão invadiu a China, se estabeleceu lá. Tinha uma região de domínio japonês, então toda criança precisava receber educação japonesa. Minha mãe falava muito bem [o] japonês, né, como qualquer japonês. Então, no navio, ela conversava com um japonês que morava no Brasil. Uma pessoa mais idosa. Sobre educação dos filhos. Aí, o japonês falou pra minha mãe: “De jeito nenhum, não deixa seu filho sem estudar. É muito importante. Pra que seus filhos tenham futuro, tem que estudar”. Aí minha [mãe] falou pra mim, né, que tinha que estudar. Ficou na cabeça que tinha que estudar. Chegando ao Brasil, quando entrei na escola, escola primária, depois escola secundária, pelo processo todo, eu fiquei apaixonado pela língua portuguesa. Achei [a] língua portuguesa, assim, fantástica e tão bonita. Aí, logo me incentivou a estudar. E outra coisa: depois de dois anos na escola primária, precisava de ingressar na escola secundária. Isso, lá em Londrina (PR). Aliás, uma cidade pequena, perto da Londrina, Rolândia, porque tinha fazenda lá. Então, morava na fazenda. E, para ingressar, tinha que fazer admissão, prova de admissão. Então peguei um livro chamado exatamente de “Admissão ao Ginásio”. É um livro grosso, estudei do início ao fim, cada palavra, usando dois dicionários. Olha como era, assim, dura, né, a vida do imigrante. Eu era imigrante, não conhecia a língua, tinha que estudar, tinha que aprender, tinha que estudar “Admissão ao Ginásio”, então pegava um dicionário português-inglês e outro dicionário inglês-chinês, pra entender tudo. Bom, estudei tudo que tinha no livro e entrei em primeiro lugar na admissão lá, do ginásio. Realmente, eu fiquei tão empolgado com o estudo e daí em diante nunca parei, cada vez fui mais estudioso. Até hoje, não paro de estudar. Eu tenho uma biblioteca aqui em casa, enorme. Não cabe mais, né? Gosto muito de estudar. Eu ainda sou professor, embora me aposentei oficialmente, com aposentadoria, ainda continuo dando aula na escola, porque gosto do ambiente de estudo. Estudando junto, pesquisando junto com [os] alunos. Eu oriento, hoje, TCC. Cada TCC é uma temática, é um tema, exige pesquisa e eu adoro pesquisar.
P1 - E como foi essa sua adaptação no Brasil. Você disse que vocês foram para o Paraná, numa cidade próxima à Londrina, né, pra essa fazenda. O que você achou de parecido, o que você achou de diferente, em relação a tudo: natureza, comida. Como foram esses seus primeiros momentos de contato com o Brasil?
R - Eu estava com quinze anos, chegando ao Brasil com quinze para dezesseis. Um adolescente. Já tinha [uma] formação cultural muito forte, enraizada, da China. E, como eu gostava e gosto de aventuras, de exploração, de brincadeira, de tudo, então, pra mim, tudo que era novo era muito bom. Então, assim que chegamos ao Brasil, primeira cidade que a gente foi conhecer, durante duas semanas, morando em São Paulo. Pra conhecer a cidade, São Paulo, tal e fiquei fascinado, porque eu não conheci uma cidade grande na minha vida até quinze anos. Vivi naquela vila, naquela cidade pequena. Já conheci uma cidade um pouco maior, devido ao concurso de arte, lá na China. Pegava trem, conheci aquela cidade mais próxima e maior, mas cidade grande como São Paulo, não conhecia. Pra mim, era novidade, assim, tipo: hoje a gente vê Nova Iorque, Xangai, Pequim. Então, era muito empolgante. Mas depois fomos pra fazenda, aí o mundo, sabe, selvagem. A fazenda não era [uma] fazenda já trabalhada pra plantação. Essa fazenda ficava no Rio Ribeira, em Iguape (SP), conhece? Rio Ribeira, da região de Iguape. E o rio é grande, era grande. Bem ao lado da fazenda tinha floresta, né, tinha árvore que a gente juntava dez pessoas e não conseguia abraçar uma árvore, [porque o] tronco de árvore era tão grande. Era selva. Agora, lembrando do trabalho do meu pai, hoje, já penso assim: “Nossa, meu pai participou de um crime, de devastação da natureza. Era pra fazer limpeza, pra tirar aquela floresta, pra virar campo de arroz, pra plantar arroz”. Na época, chamava isso de… Como que é? Debravamento? Não, desbravamento. Um nome bonito, desbravamento. Hoje não, é uma devastação da natureza. Com a queimada, com corte de árvores enormes. Bom, eu gostava muito daquela vida também, na fazenda. Pegava, colocava junto na cintura, facão, coisa assim. Podia até botar armas, arma pra atirar, atirar contra, talvez, [em] animal, coisa assim. Então, gostava muito. Depois mudamos pra outra fazenda, no Paraná. Como eu já falei, perto da Rolândia, cinco quilômetros da Rolândia, uma fazenda de plantação de café. Então, pra mim, a vida era diferente da China e eu gostava muito disso. Só que, na época, eu não desvinculei da cultura chinesa. Mesmo dentro da fazenda, escutava, pelo rádio, todo dia, transmissão da rádio de Pequim. Rádio de Pequim, escutava tudo da China. Livros que eu tinha. Eu trouxe livros chineses, estudava meus livros em chinês. Mas, depois de dois anos na fazenda, minha mãe, meu pai, como eram intelectuais, falavam assim: “Nós não podemos ficar mais na fazenda. Vamos sair da fazenda, vamos pra cidade”. Aí começou a vida dura da família, porque a família inteira vai pra cidade, os pais não falavam português, meus pais não falavam português. Eu precisava de estudar.... irmãos, eu sou o mais velho dos irmãos. Os mais novos, ninguém trabalhava, todo mundo precisava estudar. Então, vida dura começou aí. Durou vários anos. Mas, quando saímos para a cidade, a primeira cidade era Londrina. Começou, aí sim, já, um choque cultural. Senti que tinha muita coisa diferente. Eu, sabe, escutava música brasileira, que, pra mim, era muito diferente. Eu era muito curioso, mas não era a mesma coisa, não era música que eu vivi escutando a vida inteira. De repente, aquilo veio, né, a música, a dança, o cinema e tudo vem, sabe, foi, pra mim, um impacto muito grande. Realmente, foi um impacto. Acho que, pra certas pessoas, não acontecia isso. Pra mim foi, assim, bastante violento este impacto, principalmente em São Paulo. Porque, depois de um ano em Londrina, fomos pra São Paulo. Em termos de comida, sem problema nenhum. Você perguntou sobre comida. É claro que adorava comida chinesa e, na família, em casa, [a] comida chinesa continuou. Mas, fora, comia arroz, feijão e bife. Pra mim, era maravilhoso. E eu, até hoje, adoro comida chinesa... Quer dizer, comida brasileira. Eu adoro feijoada. Se eu for pra China hoje, eu vou sentir saudade da feijoada. Então, eu me adaptei, em termos de comida, nenhum problema, me adaptei muito bem. Mas, pra ser sincero, foi, até hoje, ainda é muito difícil pra me adaptar totalmente. Olha, estou no Brasil faz praticamente quantos anos? De 65, de 66 até agora. Décadas e décadas. Eu prefiro escutar música chinesa, assistir espetáculos, “shows” chineses. Eu não [me] desvinculo de tudo que é cultural da China. Aliás, não só não me desvinculo, eu tô entrando mais ainda na cultura chinesa. Mas eu não rejeito nada da cultura brasileira. Eu gosto muito, inclusive, [da] música brasileira, mas eu sou da velha geração. Pra mim, música brasileira é a música popular brasileira, que a gente chama de MPB. Meus alunos acham assim: “O professor é muito antiquado”. Sim, eu gosto daquelas músicas. É assim: tem parte que eu adoro, outra parte não entra na minha cabeça. Mas uma coisa que eu tenho certeza, a língua: embora a língua chinesa e a língua portuguesa sejam muito diferentes, eu adoro a língua portuguesa. Mas, em termos de leitura, eu prefiro ler em chinês. Por exemplo: tenho Bíblia em português [e outra] em chinês, eu prefiro ler em chinês. Eu tenho livro que tem no ocidente, que o livro ocidental é o mesmo livro traduzido para chinês, eu prefiro ler em chinês, porque, sei lá, nosso cérebro funciona assim, né, uma coisa que é da língua mãe. A outra é a segunda língua. Embora hoje eu tô conversando com você em português, com certa fluência, mas eu, na minha cabeça, processo melhor o chinês. Deu pra entender? Então, mas, em termos de impacto, muito mais forte é na expressão artística. Comigo, tenho muita coisa tradicional. Eu sou uma pessoa tradicionalista, meio que eu sou saudosista também. Então, pra mim, eu acho que mexe muito mais o meu coração, a minha mente, minha emoção, coisas da China. Quando eu faço obras de arte, vem muito, muita coisa, muitos elementos da arte chinesa, como também desde, acho que [os] dezenove anos, eu fui, segui um mestre da pintura clássica chinesa. E [o] meu mestre foi o discípulo do grande mestre Chang Dai-Chien, que morava em Mogi das Cruzes (SP). Era considerado como Picasso do Oriente. Se você quiser saber da história dele, basta digitar no Google: “Picasso do Oriente”, que morou no Brasil, ele. Então, aprendi, assim, profundamente, a arte chinesa. E isso enraizou na minha cabeça. Tudo que eu faço tem rastro, deixa o rastro da pintura chinesa, arte chinesa. Aí, quando vejo a arte ocidental, quando eu vou apreciar a arte ocidental, aí tem aquele impacto, tá? Tinha, né, esse impacto muito grande. Isso até quando eu cheguei em Goiânia, em 1977. Cheguei aqui como artista plástico: fazia arte chinesa, pintura chinesa. Fiz maior sucesso aqui na cidade, porque ninguém conhecia [a] arte chinesa. De repente, apareceu [e] foi um sucesso. Vendi todos os quadros, mas cheguei em casa, falei assim: “Está errado, está tudo errado! O que eu tô fazendo aqui, arte chinesa pra goianos? Estou numa região completamente diferente, ensolarado, quente, [o] povo aqui [é] caloroso. Eu tô mostrando minha arte, expressando através da minha arte, que é chinesa. Não tem sentido!". Aí vem o choque muito forte: “O que eu vou fazer?". Não é o que eu não gostava da arte ocidental, é que eu não me encaixava, sabe, no contexto. Esse foi um grande choque. Mas ainda bem que eu frequentei a faculdade de arquitetura, FAU, da USP. Tive contato com a história da arte ocidental, o mesmo que eu estudei na China, só que era diferente, [porque na China] era só nos livros. Na FAU, não: contato direto com arte moderna. Fazer pintura, fazer exposições junto com o pessoal modernista. Então, consegui, aqui, em Goiânia, conciliar a minha arte, que tinha influência chinesa, com a arte ocidental e consegui fazer essa conexão, essa fusão aqui. Por isso que a última exposição que eu fiz, era pra mostrar isso. O nome do livro da minha exposição é exatamente, né... daqui a pouco, eu mostro pra você como é o título. Eu falo desse encontro de duas artes. Então, era isso, sabe? Em termos de… Eu me adaptei muito bem. Hoje, eu tô no meio, muito mais, dos brasileiros. Eu me naturalizei também em Goiânia. E, no início, foi bastante difícil. Depois fui me adaptando, né, consegui me integrar com a ajuda de grandes amigos daqui, artista daqui. Consegui, né, assim, conviver perfeitamente como um brasileiro também, como um brasileiro.
P1 - E, voltando um pouquinho, Tai, dessa parte, de você em São Paulo: você terminou o seu colegial, né, e você foi fazer arquitetura na FAU, na USP. Me conta desse período, então. Pra onde vocês foram em São Paulo, morar? Por que você decidiu fazer arquitetura? Conta um pouco como foi esse período.
R – Sim, está certo. Então, em São Paulo, a minha obrigação era estudar. Pra meus pais: “Olha que você não precisa trabalhar, porque a gente já está trabalhando”. Meus pais faziam confecção, meu pai fazia moldura, fazia várias coisas, conseguia sustentar os filhos. Mas, mesmo assim, eu continuei trabalhando. Aí é outro assunto, continuei trabalhando, trabalhando duro. Mas precisava de estudar, fazer faculdade. E eu, como artista plástico, buscava curso que tinha desenho, né, no mínimo desenho. Porque, pra fazer faculdade, ou escola de artes, não queria, porque já nasci fazendo escola de arte. Sempre foi e tinha já um mestre, né, um pintor mestre. Eu era discípulo, não precisava fazer faculdade de arte. E fui sondando o pessoal. Me falavam que o melhor curso é Arquitetura, porque tem lá, né, falou assim: “Lá tem desenho”. Aí resolvi fazer Arquitetura. Só que eu estava atrasado de tudo, né, porque demorei dois anos pra fazer escola primária e fui fazer curso ginasial mais uma vez, porque já fiz tudo isso na China, estava atrasado. Ainda bem que, na época, tinha o chamado “curso de madureza”. Depois passou a ter o nome de “supletivo”. Pra quem já estava atrasado, pra alcançar a tempo, tal. Aí fui fazer um ano de curso de Madureza, fui fazer provas e fui aprovado, praticamente pulando três anos do curso colegial. Não fiz colegial. Fiz um curso rápido, pra poder fazer o vestibular. Mas, mesmo assim, fiz um ano de curso do vestibular para Arquitetura e entrei na FAU da USP. Então, foi, sabe, tudo certinho. E eu me formei em 1976. Quer dizer: não demorei tanto, deu tempo. Aí, na vida da gente, não tem esse negócio de “está tarde demais”, “está cedo demais”, não tem isso, não. Tudo é assim mesmo, a gente vai caminhando. Então, eu trabalhava numa floricultura. Eu era, como eu era artista, eu fui fazer um curso de arranjos de flores, pra trabalhar na floricultura, fazendo cestas, coroas, todo tipo de arranjo de flores. Eu era responsável por isso. E todo o processo, desde a compra, até a preservação de flores aí colocadas à venda, eu era responsável. Mas recebia pouco, recebia um salário. Minha irmã trabalhava também, minha irmã sempre trabalhou junto comigo, pra ganhar o suficiente pra pagar aluguel da nossa família. Então, eu trabalhava. Aí, na floricultura, trabalhava de segunda-feira a segunda-feira, ou de domingo a domingo. Não tinha feriado. Feriado, aliás, trabalhava mais ainda. Era desumano, na verdade. (risos) Uma exploração. E eu precisava de estudar. Eu estudava à noite. Então, de dia, na floricultura; à noite, ginásio, secundário. Fazia curso de Madureza também à noite. E, depois da aula, voltava pra floricultura, pra fechar a loja. Olha, imagina, a vida, como era dura. Mas tudo bem, tudo bem. Imigrantes era pra enfrentar isso, sabe? A gente sabia disso. A gente é imigrante, a gente tem que enfrentar essa vida dura, tá? Então, vamos trabalhar numa boa, sem reclamação. Aí, um dia, a escola exigia uma pesquisa, tá, nas bibliotecas. Então, eu pedi licença para, num domingo de manhã, ir lá na biblioteca municipal de São Paulo, pra fazer pesquisa. E eu fui, ao lado da Praça da República. Quando cheguei lá, eu vi a Praça da República, alguns artistas vendendo quadro lá. Não era feira hippie ainda, não era ainda, tá? Eu pensei assim: “Nossa, pode vender pintura aqui na praça!". Eu fiquei observando lá. Chegando em casa, terminei a pesquisa, chegando em casa, falei pra minha mãe: “Mãe, descobri uma coisa: eu posso vender meus quadros!". “Como?". Aí eu falei. A minha mãe falou assim: “Uai, um dia você pode tentar fazer isso.” Tá. Eu comecei a produzir. Eu nunca parei de pintar, mesmo trabalhando na fazenda, eu pintava aquarela, pintava, pintava. Nunca parei, na minha vida. Então, eu falei pra minha mãe: “Eu vou juntar minhas pinturas, vou levar lá pra vender”. Levei domingo. Pedi a licença: “Eu preciso ir lá”. Pedi a licença. Levei todas as minhas produções numa pasta, coloquei lá, pendurado no varal, com prendedor - era em papel. - de roupa. Sabe que vendi tudo. Que era pintura chinesa, principalmente de cavalos, pintura de cavalos, que eu tinha um certo domínio. Vendia tanto (risos) que levei um susto. Acabou, acabou. E, como não tinha experiência, eu vendia minhas pinturas enrolado em jornal, em jornal. Hoje, pensando isso, nossa Senhora, (risos) não devia ter feito isso, devia ter uma embalagem, né, muito mais, assim, pelo menos respeitando a obra de arte. Mas vendi tudo. Cheguei em casa, levando a pasta pra casa. Minha mãe falou: “E aí, como que foi?". Eu falei: “Olha, difícil. Nossa, não é fácil, não. Não sei se eu volto lá, não”. Minha mãe me consolou: “Não, filho, é assim mesmo, a primeira vez, depois pode tentar, pessoal vai conhecer e tal”. Aí tirei o dinheiro do bolso, né, um maço de dinheiro, que eu lembro. Tirei um maço. “Mãe, vendi tudo! Dinheiro está aqui”. Entreguei o dinheiro pra ela. Olha, o dia mais feliz, assim, em termos de... sabe, um encontro de uma oportunidade. Depois de várias vezes, no domingo, tirando licença da floricultura. Como a floricultura precisava de mim, então me dava essa licença. Eu constatei que podia vender e o retorno era muito mais alto do que o dinheiro que eu ganhava, salário que eu ganhava. Aí minha mãe me levou pra despedir, né, da floricultura. Aí foi uma luta, porque a floricultura não conseguia me dispensar: “Aí, agora, onde é que eu vou arranjar um outro pra te substituir?". O acordo foi que eu ficava mais um mês trabalhando e eles iam arranjar alguém. Então, encontrei um meio de ganhar a vida com obras de arte. E muito interessante ainda porque, sempre quando eu falo de uma história da época, puxa a história que aconteceu aqui também. E aqui eu conheci vários colegas professores, que falavam assim: “Puxa, então o quadro que eu comprei, o cavalo que eu comprei era seu! Eu comprei lá na Praça da República, naquela época, eu tenho aqui em casa!". Era minha obra, interessante, né? Então, foi desse jeito. E também, trabalhando, vendendo lá na Praça da República, como eram poucos artistas lá, depois, pouco a pouco, começou a juntar mais artistas. Aí que nasceu, na verdade, a feira hippie. Não tinha nenhum controle, mas depois a prefeitura começou a criar um esquema de controlar. Cada um tinha que ter o seu lugar. Seu espaço, pra não ter que ter brigas, porque tinha briga. Olha, vou contar uma experiência minha, da vida dura do imigrante. Pra expor lá, como tinha disputa de espaço no início, eu ia cada vez mais cedo pra expor. Cheguei a ocupar espaço na véspera. Eu e meu irmão íamos lá na véspera, à noite, para colocar o varal lá e dormir no banco frio, de concreto, na praça. Passando madrugadas dormindo na praça. Chegava o policial, guarda e dizia: “O que vocês estão fazendo aqui?", “Nós estamos aqui, esperando, guardando o nosso lugar”, “Ah, tomem cuidado, tomem não sei o que, tal”. Olha, isso durou bastante tempo, até a prefeitura começar a organizar. Mas aí eu, durante anos, né, vendendo nessa feira hippie, que tornou-se uma feira hippie. E era ponto turístico, o país inteiro, até internacional. Turistas iam pra São Paulo, era parada obrigatória, a feira hippie. Então, como eu vendia muito cavalos, pinturas de cavalos, de pincelada rápida em nanquim, né, espalhou no Brasil todo, porque turistas de todos os lugares iam lá na praça hippie e muitos compravam as minhas obras. Aí, um jornalista de São Paulo, da época, chamado Gazeta, “Jornal Gazeta”, um repórter fez uma reportagem falando sobre minha história (risos) daquela época. Depois que vim pra Goiânia, ele colocou na “Gazeta de novo”: “O pintor de cavalos mudou-se pra Goiânia, (risos) né? Então, eu era conhecido não como “Tai”, não o nome, era “pintor de cavalos”. Eu era pintor de cavalos.
P1 - Eu queria que você comentasse um pouquinho também, Tai, sobre o seu estudo de pintura, aqui, no Brasil. Você disse que, em São Paulo, você teve um mestre. Queria que você contasse um pouco pra gente.
R – Isso. Então, aí, voltando pra Praça da República: um dia, eu recolhi minha pasta e todo o material pra ir pra casa. Aí, bem naquela avenida, acho que Avenida Ipiranga, não, em frente à Praça da República, Ipiranga. Avenida Ipiranga. Tinha um prédio, assim, na entrada, é um espaço enorme, estava tendo uma exposição de arte. Ah, eu fiquei, nossa, louco: “Nossa, exposição e de graça, pra gente ver!". Cheguei lá, pra ver a exposição, era uma exposição de arte beneficente. Aí tinha três quadros de pintura chinesa, muito linda. Eu olhei: “Mas de quem? Eu não conheço!". Aliás, não conhecia ninguém, além de mim, (risos) que fazia pintura chinesa. Aliás, a pintura chinesa que eu fazia, era praticamente autodidata, não tinha nada de... né, não… tudo que eu aprendi de arte era aquarela na China, aquarela. Não era pintura, assim, chinesa, com pincel chinês, não era isso. Mas lá eu vi três quadros. Aí anotei nome, quem era o pintor. Na verdade, exatamente era o futuro meu mestre. Fiquei tão empolgado, cheguei em casa, falei pros meus pais: “Encontrei um artista que faz [uma] pintura chinesa maravilhosa!". Aí entreguei nome pros meus pais. Eu falei pros meus pais: “Eu quero fazer a pintura chinesa”. Porque é outra questão, se tiver oportunidade, eu queria falar sobre isso: porque escolhi a pintura chinesa, pra me aprofundar o estudo. Era emocional também, porque minha cabeça ainda, né, cheia de informações da cultura chinesa. Então, era muito forte. Bom, meu pai também não conhecia ninguém. Mas, como meu pai era músico, de vez em quando, meu pai, meus pais, né e os filhos, menos eu, formavam um conjunto musical, tocavam músicas nos eventos da comunidade chinesa. Ano Novo, coisa assim. Tocava e o conjunto era conhecido como “Conjunto Família Tai”. Menos eu, não estava no meio. Eu não tenho “gens” pra isso, pra tocar instrumentos musicais. Então, esse conjunto de família era conhecido na comunidade e tinha um jornal chinês da comunidade, “Jornal Chinês do Brasil”. Bom, meu pai foi procurar por jornal, pra saber quem ensinava pintura chinesa. Aí descobrimos duas coisas: uma, que o grande mestre, o Picasso do Oriente, morava no Brasil, em Mogi das Cruzes e [o] discípulo dele morava em São Paulo, em Mogi das Cruzes. Revezando, porque ele tinha que, né, morar lá de vez em quando, morar em São Paulo, pra dar aula de pintura chinesa pela sobrevivência. Aí descobrimos e meus pais, através do diretor do jornal e mais um amigo conhecido, né, que socialmente tinha mais nome, né, para me levar pra conhecer, não o grande mestre, mas o discípulo, o pintor desses três quadros. Mas não era fácil, era vários encontros para acertar tudo, para ser o discípulo dele. Aí, outra questão, porque muita gente acha que eu fui aluno dele, ele foi meu professor. Não, na China, tradicionalmente, essa relação, discípulo, né, mestre e discípulo, é uma relação de pai e filho. E tinha regras e regras. Não é uma coisa assim: “Eu pago pra você, você me dá aula”, não tem nada disso. Então, através de negociação, fui aceito por ele como discípulo. Essa história tem outros detalhes, até pra ele falar assim: “Você vai ser meu discípulo”, levou algum tempo. Aí houve cerimônia de aceitação, de reverência, que, pra mim, era uma cerimônia de reverência máxima ao mestre. Para ele, era uma cerimônia de aceitação do discípulo. Então, assim, foi lá na Praça da Sé... Praça da Sé, não. Praça da República. Tive essa oportunidade de chegar até o meu mestre. Aí comecei a estudar, a frequentar o ateliê dele, como filho na casa do pai. Ajudando a fazer limpeza e tudo mais, como pai e filho. E, durante todo esse tempo, até eu mudar pra Goiânia, até 1977 fiquei com ele. Estudando a pintura chinesa. E tive oportunidade de conhecer o mestre que eu chamo “mestre avô”, mestre do meu mestre, é mestre-avô. Eu fui discípulo-neto dele. Então lá, conheci o grande mestre, o Picasso do Oriente, o mestre Chang Dai-chien. Aí é outra história fantástica. Então, foi desse jeito o contato com o meu mestre, claro, mesmo depois de mudar pra Goiânia, mantendo, nós mantivemos contato. Ele já tinha voltado pra China, especificamente pra Taiwan, dando aula de pintura, numa universidade. E ele, de vez em quando, vinha ao Brasil. E, na última visita dele, ele parecia, sabe, uma… como é que fala… presádio? Presságio, né, que chama. Praticamente pra despedir de mim. Claro, ninguém tinha isso na cabeça, mas deu pra sentir. Ele ligou pra mim, pra Goiânia: “Filho, vem aqui”. Que ele ainda tinha casa, ateliê, em São Paulo, manteve. “Vem aqui, quero conversar com você”. E fui com a minha esposa lá. Aí ele entregou cem folhas de papel, enormes, um rolo de papel, de algodão. Não falou muita coisa, mas deu pra entender que ele queria que eu retomasse a pintura chinesa, sabe? Esse recado. Depois eles voltaram pra China, eu fiquei com esse papel guardado. Depois de alguns anos, recebi a notícia da morte dele. Consequência, na realidade, ele já tinha parado de fumar por muito, muito tempo, mas como ele, vida toda, fumou muito, muito, né, então já tinha estragado alguma coisa, pulmão, sei lá o que. Ele morreu, de repente, no palco, onde ele dava uma palestra. Durante a palestra ele sentou e foi levado pro hospital e morreu. Agora, retomei a pintura chinesa. Peguei folha de papel, comecei a trabalhar, retomar, sabe? Atender esse recado que ele não falou claramente pra mim, mas eu entendi. Então, de vez em quando, eu volto para a origem da minha cultura. Tentando ser cada vez mais brasileiro e não deixar as minhas raízes culturais. Quer dizer: eu sou... tem um crítico de arte que fala que “Tai” é um híbrido: “Ele é chinês, brasileiro, de vez em quando ele é brasileiro, de vez em quando ele é chinês, de vez em quando ele é os dois juntos”. (risos)
P1 - E você tinha comentado sobre essa questão do jornal chinês, da comunidade chinesa, né, da sua família que se apresentava, tocando música em eventos. Como era essa comunidade chinesa, na época em que você esteve em São Paulo, Tai?
R - Olha, na época, década de sessenta até setenta, a comunidade chinesa não era grande, como hoje. Hoje é outra coisa. Naquela época, a comunidade chinesa era menor, né, era menor. E, na verdade, tinha muito mais, vamos chamar de “elite”, sabe? Pessoas que tinham muito estudo e conhecimento, intelectuais, além de grandes industriais e empresários, que, normalmente, tinham estudo. É diferente, muito diferente da comunidade atual. E a comunidade chinesa daquela época era do pessoal muito mais ligado ao governo nacionalista. E não como do governo da China, da República Popular. Era da China, quer dizer, era da República da China, que se instalou em Taiwan. Porque, na verdade, Taiwan, Hong Kong, né e Macau também, muito mais Taiwan e Hong Kong, era um trampolim para imigrantes chineses do continente. Tinha que passar por Taiwan e Hong Kong, pra chegar em outros países. Então, quem chegou ao Brasil, foi através de Taiwan e Hong Kong, né, ou dos Estados Unidos. Para os Estados Unidos, também, tinha que passar por Taiwan, pra lá e chegar ao Brasil. Porque, no Brasil, a embaixada da China, era da República da China. E depois mudou, na década de setenta... não sei exatamente, acho que noventa, década de noventa, que o Brasil reconheceu a República Popular da China. Aí já mudou o cenário. Então, na época, meus pais eram intelectuais, artistas. Tinha escritores, tinha pintores, tinha empresários, grandes empresários, que fugiam antes dos comunistas chegarem, já foram embora, né, pra Taiwan e vieram parar aqui no Brasil. Então, na verdade, eles não conheciam, chegaram a conhecer os comunistas também. Mas tinha medo, então, pararam aqui. Então, a comunidade chinesa da época, né, tinha imigrante de duas origens, ou três, vamos dizer, duas origens principais. Uma, da China Continental e outra da própria ilha de Taiwan, né, que fala, que falava língua, o dialeto de Taiwan. Então, eu falei “elite” entre aspas, elite porque eram pessoas estudadas, quer dizer, estudavam, que eram mais intelectuais. Então, tinha conjuntos musicais, tinha associação de artistas, tinha jornal chinês, tinha escritores chineses. E esse jornal, único, da época, era chamado, originalmente, de “Jornal dos chineses radicados no Brasil”. Mas, em português, simplificava: “Jornal Chinês do Brasil”. E usava os ideogramas tradicionais porque, em Taiwan, Hong Kong, Macau, usava, até hoje usa, ideogramas tradicionais, só na China Continental todos os ideogramas são simplificados. Então, tinha exposição de arte, exposições, tinha comemoração do Ano Novo. Tinha comemoração das associações, porque os chineses, de diversas regiões, têm diversas associações regionais. Associação dos cantoneses, associação dos taiwaneses, associação de xangaineses, era assim. E todas essas associações promoviam eventos. E o problema é que, na época, a diferença era porque os chineses, na época, eram muito, vamos dizer, regionalistas. Não tinha uma união de verdade, uma unidade muito forte. Mas o jornal chinês fez esse papel de unir a comunidade. Então, depois a situação foi piorando, com novos imigrantes. Aí, de todas as regiões, ideologias muito diferentes, (risos) politicamente diferentes. Então, aí, hoje é complicado. Assim, tinha muitos talentos na comunidade chinesa, em São Paulo, principalmente em São Paulo, Rio, né, muito mais em São Paulo. Tinha cantores muito bons, dançarinos muito bons, pessoas que sabem música, que tocavam instrumentos chineses, ocidentais, muito bons. De pintores, sabe, houve uma exposição de arte que juntava, olha, dezenas e dezenas de artistas. Hoje, não sei onde que eles foram, não sei como é a situação atual, mas, na época, era bem, assim, a comunidade tinha uma vida comunitária muito ativa.
P2 - Tai, depois da faculdade, o que o levou a ir pra Goiânia?
R - (risos) Pois é, muito interessante, né, por que vim pra Goiânia? Estava muito bem em São Paulo, estava trabalhando. Eu me formei, em 1976 já estava trabalhando no escritório de arquitetura. Mas eu tinha uma namorada, se formou na Física, em Física. Então, ela estava fazendo mestrado no Rio. Aí recebeu um convite do orientador dela, que era de Goiânia, da Universidade Federal de Goiânia, para poder trabalhar na Federal de Goiânia, no laboratório. E, a minha namorada, nome dela é Lee Chen Chen. Então, ela falava pra mim: “Recebi um convite para trabalhar em Goiânia, que você acha?". “Uai, nós, se você for, eu vou. Vamos ver se é bom lá”. Mas, na época, não tinha muita noção de Goiânia, como que era, achava que era longe, muito longe. E tinha, assim, na época, né, não era preconceito, mas faltava informações, achava que Goiânia era muito atrasada, tinha muitos índios (risos) e tudo mais. Mas resolvi vir com ela pra conhecer, pelo menos, Goiânia. Então, sob duas condições, eu podia topar em ficar. Uma, se eu gostar de Goiânia. Segunda, se eu arranjar um trabalho. No fim, eu adorei Goiânia, Goiânia era uma cidade arborizada, uma cidade praticamente nova, né, muito nova. Então, era muito atraente. E não grande e não muito pequena. E também fui procurar emprego e rapidamente, em uma semana, achei emprego. Achei, tinha certeza, né, até hoje, na época, pelo menos, né, como era a força do diploma, né, da USP. Quando meu chefe viu meu diploma: “Você é da FAU, da USP, praticamente já está contratado! (risos) Então, fiquei. Aí tive muita sorte de encontrar pessoas, assim, rapidamente, dentro do escritório, onde arrumei o emprego, né, encontrei pessoas que me, praticamente, acolheram de uma maneira impressionante e fui encaminhado, assim, praticamente, pra tudo. Pra fazer minha exposição, pra dar aula na PUC. Naquela época, era chamada Universidade Católica de Goiás. Tinha um curso de Arquitetura. Então, aí ficamos e adoramos a cidade, adoramos de tudo daqui, principalmente as pessoas. O povo goianiense aqui, acolheu muito bem nós dois. E nós dois, chineses, era praticamente uma raridade na cidade. Na cidade não via praticamente, assim, pouca gente de cara oriental. (risos) Na escola, na PUC, né, eu era único chinês professor. E, lá na Federal, a minha esposa era única professora chinesa. E nós dois éramos chineses, estrangeiros, resolvemos naturalizar goianos aqui.
P2 - E como é que você a conheceu?
R - Ah, bom, (risos) também é um detalhe tão interessante. Parece que a gente tem destino, mesmo, né, na vida. Eu fui fazer curso de Madureza - já falei sobre isso - e ela também, foi fazer curso de Madureza. Aí, a conheci no curso, fui, por minha iniciativa, conversar com ela: “Você é chinesa, então nós precisamos conhecer”. (risos) E aí, foi a história, aí começou, até chegar o namoro.
P2 - E ela é da mesma região que você, da China?
R - Não, não, aí que está o problema. Eu faço parte de uma etnia majoritária, Han, só que é um ramo diferente, porque An, etnia An é majoritária. Ela também, da etnia An, só que a minha etnia é um ramo da etnia majoritária, que fala uma língua muito antiga. E o meu povo é chamado de Hakka, h, a, k, k, a. H, a, k, k, a. E, se você for pesquisar na internet, você vai achar o que que é esse povo. Muito tradicionalista, porque esse povo é mais ou menos como a história dos judeus, que sofreu uma… várias migrações, do norte pro sul, por causa das invasões dos bárbaros. Invasões, não só invasões, mas repressões e todo tipo, políticos e tudo mais. Cinco migrações grandes pro sul, espalhando pra China, em várias regiões da China, do sul. Então, falam uma língua preservada, de mais ou menos mil e tantos anos. Muito tradicionalista, conservador. E eu a conheci justamente de Xangai, de uma grande cidade, uma cidade totalmente, sabe, livre de certas tradições e amarrações, muito mais aberto, né, xangaineses são muito mais abertos e tudo, mais ocidentalizados também. Então, houve certo conflito, não entre eu e ela, mas, quando eu a levava pra minha família, aí, tinha algum problema, porque falava dialetos diferentes. A gente se comunicava em mandarim, mas em termos de costumes, tradições, não tinha muita coisa, assim... como que fala? Harmoniosa. Então, meus pais não eram muito a favor. Mas, mesmo assim, mesmo assim, né, no final, todo mundo ficou feliz, as famílias também. E, como nós dois éramos muito jovens, conhecemos com 19 anos, vinte anos, por aí. Então, não tem nenhum problema. Só que eu, né, depois de mudar pra Goiânia, né, passei a não praticar o dialeto que eu falo porque, enquanto morava em São Paulo, falava dentro de casa e com o pessoal da comunidade, ainda em dialetos. Agora só mandarim e ela também não fala mais o dialeto de Xangai, fala mandarim e nós comunicamos, em casa, tudo em mandarim. Nossas filhas, né, entendem mandarim, porém não falam.
P2 - Você costuma ir bastante pra China?
R - Ah, isso é fundamental. Quando posso, sob duas condições. Eu queria ir o tempo todo. Porque a ligação é muito profunda, né, culturalmente, emocionalmente, a China, pra mim, é o lugar que eu preciso ir o tempo todo. Mas, uma condição: dinheiro, tem que ter dinheiro, né, pra poder viajar pra tão longe e ficar um tempo suficiente lá, pagando hotéis. Segunda condição: o tempo. Como que eu posso ficar mais de um mês? Não dá, porque sou professor, só tenho tempo nas férias. Tem um problema: China, no inverno, muito frio. E, pra mim, aqui, enquanto tô nas férias de verão, lá é inverno. Então, o clima também dificulta bastante. Mas é cada dois anos, ou três, no máximo, eu preciso ir lá. Agora, com pandemia, já fiquei… última vez que eu fui, foi 2018. Depois, 2019 não fui, esperando 2020, daí veio a pandemia. Mas essa ligação é muito forte. É por isso que, aqui em casa, eu assisto muito a televisão chinesa. Eu leio, todos os dias, três jornais chineses. Eu escuto música chinesa todo dia. Então, a ligação é, assim, eu não sei se alguém possa entender, sabe? Eu, pessoalmente, especificamente, muito mais do que meus irmãos. Meus irmãos são mais novos, né, então, não têm isso. E eu sou muito emotivo, sentimental, saudosista, então, mais forte ainda, essa necessidade de encontrar, reencontrar a cultura, principalmente. Não só o país, fisicamente.
P2 - Sobre sua arte, como você descreveria seu estilo de pintura?
R - Olha, estilo é muito difícil de definir. Eu, normalmente, não coloco um nome pra meu estilo. E por isso que tem gente que, por exemplo: crítico de arte, jornalista, costumam pegar uma palavra que eu falo e coloca no jornal. Eu, uma vez, falei que eu buscava a beleza, sabe, a pintura, pictoricamente, tinha que ser bonita, agradável, com formas, cores e tudo. E com certo lirismo. Lírico. Aí, pronto, o jornal já saiu, durante a minha exposição: “Lirismo tropical”. Lirismo tropical, porque eu exploro também cores, contrastes, muita coisa que é resultado da influência da luz muito forte, solar, daqui da região. E pinceladas que eu aprendi na pintura chinesa. Então, quem vê, não vê claramente se é pintura chinesa ou pintura ocidental, ou uma mistura de tudo. Quando vê algo que é, por exemplo, uma... com temas aqui da região, mas vê algo que é de fora, que ninguém sabe explicar. A mesma situação é lá na China, porque 2018 fiz minha mesma exposição, em menor escala, lá na China. 2018. Os chineses achavam, também: “É muito interessante sua pintura, que a gente vê muita coisa que é nossa, mas não é, tem muita coisa de lá”. Então, é difícil de definir o estilo. O estilo próprio, meu, em termos de expressão, mas temáticas sempre é natureza, é muita natureza. Isso é influência muito forte da minha infância também, porque a minha infância, o contato direto com a natureza. E, pessoalmente, sempre gostei da natureza, por isso que eu adorei muito o Brasil, também em função da natureza que tem no Brasil. Eu conheci, por exemplo, Pantanal. Eu fiquei uma semana no Pantanal, fiquei encantado com, sabe, a natureza. É tão enorme, tão grandiosa e rica, né!? Isso influenciou muito na minha pintura, pelo menos uma fase da minha pintura é praticamente resultado da influência do Pantanal. A natureza é uma marca muito forte. Aí, durante uma época, eu fazia minha pintura com muitos detalhes, hoje não. Então, com tanto detalhe, o pessoal a chamar de “realismo”, “realismo tropical”. Eles sempre colocam a palavra tropical, porque os animais, a natureza que eu normalmente coloco nas minhas obras, tem, sabe, reflete isso, né, muito contraste de luz, porque aqui nós temos esse contraste, né, luz e sombra. E temas bem brasileiros.
P1 - E, Tai, retomando um pouco essa questão das suas viagens pra China, pra onde você gosta de ir? O que você gosta de fazer, quando você viaja pra lá?
R - Olha, pra mim, qualquer lugar, qualquer canto da China, é muito bom. É muito bom. Então, eu vou, sabe, pra mim, seria bom sem rumo. Eu, todas cidades grandes já conheci, não quero voltar mais lá sem conhecer outros lugares menores, principalmente no interior. Porque, no interior, eu sinto muito mais, sabe, aquilo que é autenticamente chinês. Como já falei, sou tradicionalista, saudosista. Eu gosto de ver coisas da minha infância. E ainda consigo achar no interior. Em Xangai é tudo novo, tudo moderno. Pequim também. No centro, é claro, sempre tem algo tradicional. Mas, o que me encanta muito são coisas, tipicamente, tradicionalmente, da terra. Inclusive, aqui do Brasil, sabe? Porque, por exemplo, eu sou encantado com músicas lá do nordeste, sabe, os dois cantores que eu amo, né e que já… como chama o nome deles? Não lembro. Bom, de qualquer modo, eu gosto de coisas da terra, sabe, essa é minha tendência. Não, assim, o modernismo, coisa contemporânea, tecnológica. É claro, tem o seu encanto. Mas, quando eu vou à China, quero ver a cultura autenticamente chinesa. Eu vou, sabe, eu não vou nos pontos turísticos. Só uma vez eu vou, depois eu quero caminhar, conversar. Adoro conversar com as pessoas mais diversas. Já conversei com mendigo. Se bem que, hoje em dia, você não acha mendigo tão fácil. Quando você acha, são mendigos falsos. Que queriam seu dinheiro com facilidade. Sabe, conversava com qualquer um. Que é tão interessante ouvir a história de cada um. É por isso que eu tô amando aqui, conversar com vocês aqui. Na última viagem, junto com a minha esposa, conversamos, num lugar, com uma senhora, né, que estava lá passeando junto, né, com uma filha. Aí conversamos, ela falou que estava levando a filha pra passear, porque a filha passou no vestibular. Então, era um prêmio pra ela. Aí começou a falar da importância do estudo, como que isso é importante, tal e como que a vida, sabe? Ah, eu, a viagem não é só pra, não é turístico, pra mim. É pra, realmente, entrar na cultura, mesmo. É a cultura que me chama, sabe? É por isso que, hoje em dia, eu pesquiso e estudo e investigo muito a cultura chinesa. Por isso que fiz o livro, né, os ideogramas. Pra mim, ideogramas são fascinantes e lá, dentro da história, da origem, tudo, dos ideogramas, olha, é como se fosse arqueologia, a gente descobre tanto, tanta coisa da história da China, do povo, da cultura, de tudo, dentro dos ideogramas. Ah, eu pesquiso, eu estudo. Sou estudioso da cultura chinesa.
P1 - E o que você acha que mudou, né, da China, de quando você veio pra cá, pra o que você vê nessas viagens. Você chegou a passar um pouco em volta, próximo de onde você viveu, quando você era jovem lá?
R - Olha, a China, cada dois, três anos, é verdade: cada dois, três anos, depois que você vai, muito do país você não reconhece mais. A mudança é tão grande, tão grande, tão grande, que você fica, assim, com dificuldade de entender como isso pode acontecer. É, realmente, só vendo mesmo você vai sentir que a mudança é tão rápida e para melhor, pra melhor, não é pra pior, pra melhor. Isso, em termos, sabe, do nível de vida das pessoas. Por isso que minha mãe, antes de morrer, perguntou pra mim: “Filho, eu não sei, queria saber de vocês: se eu e seu pai estávamos certos, de ter trazido você pra o Brasil, porque a China ficou tão, tão legal, hoje, pra gente se viver lá, então, será que erramos?". Eu falei: “Não, olha, Brasil é maravilhoso e nós temos, nós chegamos aonde chegamos, foi uma maravilha, tudo correto, tudo muito bom”. É claro que a China, mesmo que se transformou tanto e hoje está tão bem, né, não é minha terra mais, pra se viver. Minha terra pra viver é aqui. Lá é pra eu buscar o que tem na minha cabeça aqui. Então, por isso que eu falei: Xangai, eu já vi, é muito interessante, muito bom, mas zona rural, no interior, que é mais interessante. Mesmo assim, zona rural, que tinha pobreza, mesmo cidades que tinham pobreza, hoje não se encontra mais, a pobreza sumiu, mesmo no interior. Você fica impressionado com ruas, estradas. Até na zona rural, de tão perfeita, tão bem cuidada. Até as pessoas mudaram. Então, isso é impressionante. Eu voltei pra a vila, a cidade onde nasci, não teve grandes progressos, porque lá não tem empresas, indústrias. Então, lugar que não tem empresa e indústria, não consegue desenvolver, fica rural. Então, não houve muita mudança. Mas eu, naquela pequena cidade, voltei, eu me senti estrangeiro: “Eu sou estrangeiro, ninguém me conhece, eu sou forasteiro”. Então, tudo que eu guardei na minha memória, já não tinha mais, mudou. Mas também, assim, não expandiu, como outras grandes cidades. Mas costume das pessoas mudaram também. Assim, cada vez que eu vou, eu vejo a mudança de hábito. Isso, claro, tem influência muito grande do ocidente e da globalização. Em 1997, voltei à China pra fazer uma exposição no interior, numa grande cidade do interior, junto com uma brasileira, minha amiga. Ela [é] pintora também. A minha amiga gostava de um pintor, queria, sabe, dar um abraço pra ele. Falei: “Você pode até dar abraço, mas pergunta pra ele primeiro”. Antes de eu falar, ela foi lá e abraçou o chinês. Ele ficou azul, ficou, né, duro, não sabia como reagir, porque era uma atitude totalmente fora do contexto. Eu expliquei pra ela, ela não conseguia entender: “Ah, mas é carinho, é só isso”. Falei: “Ó, pra chineses, é outra coisa”. Agora não, agora os chineses pedem abraço. Na última viagem, eu despedindo da prima da minha esposa, a prima dela falou assim: “Cadê o abraço?". (risos) Então, a mudança de hábito também. Então, tem pontos positivos e negativos. Mas, de qualquer modo, a vida do povo lá, dos chineses, melhorou tanto, tanto, tanto. Por isso que minha mãe falava assim: “Filho, se você estivesse na China, não tivesse vindo pra cá, hoje você teria isso, aquilo, tal e muito dinheiro”. Não é isso que eu quero. Pra mim, mais importante o calor humano que tem aqui, aqui em Goiânia, principalmente.
(01:48:11) P1 - Mas voltando, Tai, eu gostaria que você comentasse um pouquinho sobre a sua vida de professor. Você disse que dá aula também em curso de design. Então, conta um pouco pra gente sobre essa sua experiência como professor de ensino universitário.
R - Sim. Nunca pensei, na minha vida, até 1977, que poderia ser um professor. A última coisa que eu podia pensar é ser professor. Mas o destino parece que é, eu acredito no destino. Parece que tudo, tudo, que o pessoal foi arrumando pra mim, né, era pra ser professor. Hoje, a minha profissão principal é professor, tá? Então, em 1977, assim que cheguei, primeira coisa que eu fui fazer é trabalhar num escritório de arquitetura e pintar, fazer minhas artes, pra poder, depois, fazer uma exposição em Goiânia. Então, lá no escritório de arquitetura, o meu chefe, né, o dono do escritório, falou assim: “Tai, hoje você vai receber uma cliente muito importante. Você vai reunir com ela, conversar com ela, porque ela quer fazer uma reforma da casa dela toda, tudo, toda, toda e você vai ser responsável, conversa com ela”. Aí chegou essa pessoa, uma grande amiga, essa amiga que foi comigo na China. Ela entrou na sala de reunião, não parou de falar. Não, praticamente não me deixou falar. E eu era muito tímido também. Mas eu escutei muito a fala dela. E ela soube, na conversa, que eu era artista plástico. Mas ela falava assim: “Eu também sou artista plástica”. E não falou mais nada: “Ai, que bom, que legal!". Bom, aí, no próprio escritório, veja a coincidência. No próprio escritório, tinha um rapaz desenhista, não era arquiteto. Eu conversava com ele. Eu perguntei, né: “Quem são artistas mais importantes, pintores daqui de Goiás?". Ele falou alguns nomes e, por acaso, um irmão meu é um grande artista daqui. Bom, me levou pra conhecer esse pintor, que aí já era muito conhecido daqui, né, o Cleber Gouvêa. Bom, aí fui lá, conheci esse pintor. Aí conheceu meus trabalhos, levei meus trabalhos. Ele conheceu, admirou, adorou. E, no fim, falou uma coisa: “Você quer fazer uma exposição em Goiânia?". Eu falei: “Ah, é meu sonho, justamente, eu tô preparando pra isso”, “Então vou arrumar um lugar pra você expor”. E ele arrumou um lugar pra eu expor, né, a primeira exposição em Goiânia. Tá, um dia eu fui conhecer a melhor, aliás, era a única galeria de arte de Goiânia. A dona da galeria era dona, também, do único jornal, até hoje é o maior jornal de Goiânia, “O Popular”. Uma empresa grande hoje. E eu falei da minha vontade de poder expor também na galeria de arte e ela falou assim: “Você já ganhou algum prêmio?". Eu falei: “Sim, prêmio ganhei, né, lá na China”, “E aqui?". “Não, não participei de nada”, “Tem bom currículo?". Eu falei: “Não, aqui no Brasil, tenho muito pouco, currículo é pouco.” Aí ela nem chegou a ver minhas obras e já falou: “Ai, nossa galeria só recebe artista que tem bom currículo, bons prêmios e tudo mais”. Olha, por acaso, esse Cleber Gouvêa, né, o artista, estava no fundo da galeria de arte, lá. Ouviu a minha conversa com ela, saiu, falou assim: “Tai, vou te ajudar, né, não só na exposição, vou te ajudar em tudo, patrocínio, tudo mais”. Ele gostava muito dos meus trabalhos. Bom, então fiz a minha exposição e um dia ele falou pra mim: “Tai, você gostaria de ser professor?". Eu levei um susto: “Professor?!". “É, professor de artes, de desenho”. Falei: “Uai, tudo bem”. Eu não estava acreditando. Ele falou: “Acabou de falecer um grande professor, grande artista italiano, que dava aula na Universidade Católica de Goiás, acabou de falecer, surgiu uma vaga. Eu fiquei encarregado de arrumar alguém, você gostaria?". Eu: “Sim, sim”. Ele falou: “Então, você vai conversar com uma pessoa, foi ela que me pediu”. E falou o nome dessa cliente, que eu atendi no escritório. Falei: “Não é possível, que coincidência!". Aí fui conversar com essa cliente. O nome dela é Sáida Cunha. Viajou duas vezes comigo na China. Ela me amou, vendo obras de arte, aí conheceu minhas obras de arte. Ela não conhecia. E falou assim: “Você vai ser professor, te levo agora pra falar, pra conversar com o diretor da faculdade de arquitetura”. Me levou, com pasta e tudo. Chegou lá, ela, uma pessoa “poderosa”, entre aspas, chegou lá, falando pro diretor: “O senhor vai contratar ele agora!". (risos) E fui contratado, 1977, fui contratado. Só que eu, como me formei pela FAU da USP, de tradição da Bauhaus, né, da Bauhaus. Todo o ensino, tudo muito influenciado pela Bauhaus. E eu levei essa experiência, vários métodos, para a Universidade Católica, curso de arquitetura, artes e arquitetura. Lá dentro mudei estilo... estilo não, método de ensino. Porque desenho de observação, o pessoal estava copiando modelos como tijolo, vaso, telha francesa, objetos assim, flores. E eu introduzi um método mais avançado. E foi assim minha experiência como professor, foi, tinha um progresso, eu estava desenvolvendo algo, não apenas passando informações pra alunos. Eu estava realmente tentando inovar, mudar métodos e colocar na prática. E eu comecei a amar o trabalho de professor. Escrevia, como eu gosto de escrever, tudo eu colocava no papel. E todos, todas anotações que eu coloquei no papel e aulas também, né, na época tudo escrito à mão, no papel, juntei tudo e publiquei o meu primeiro livro, que até hoje é muito usado nas faculdades, no país inteiro. De arquitetura, de design, de arte. O livro que mais vendeu, né, durante todo esse tempo. Assim, da área de desenho, de criação, de formas, de composição, tal. E até hoje, né, essa convivência com alunos, mesmo com os problemas atuais, que alunos de hoje não são como os de antes. Hoje são mais dispersos. Mesmo assim, eu gosto muito dessa minha carreira como professor. Porque eu sou uma pessoa que produz, não só dou aula, eu escrevo, eu tenho três livros escritos, voltados para design e arquitetura. Então, continuo fazendo esse trabalho. Ensinar, uma coisa que eu nunca pensei antes e hoje é meu trabalho principal. Fora disso, fora da universidade, eu dava cursos, também, num espaço cultural, chamado “Milagre dos Peixes”. Fiz, dei curso de aquarela, curso de desenho, de ilustração científica, dei ilustração científica. De estudo morfológico tridimensional. Quer dizer: criação de formas tridimensionais. Já dei curso da biônica, fora da faculdade. Além do curso de mandarim, que eu dava também. Então, ser professor, eu acho muito prazeroso. Porque a gente vê, a gente colhe resultado, colhe frutos. Então, pra onde que eu… hoje eu estava, assim, conversando com uns alunos do design, alguns alunos falaram assim: “Olha, meu pai foi seu aluno, a minha mãe foi sua aluna”. Aí, assim, sabe, até agora tô com aluno da segunda geração.
P1 - E, caminhando já pras perguntas finais, Tai, eu gostaria, primeiramente, que você comentasse como foi a experiência de ser pai pra você.
R - Ser pai, experiência de ser pai. Olha, (risos) é claro, eu sempre esperava que os filhos… eu tenho duas filhas… podiam ficar sempre com a gente. Eu não imaginava, antes, que minhas filhas podiam ir embora. Só que as duas foram embora. Uma foi morar no Rio, trabalhar no Rio. A outra foi nos Estados Unidos, está lá em San Francisco, longe da gente. É claro que tenho, também, certas, além de alegrias e felicidades, mas algumas decepções. Porque não consegui fazer minhas filhas falarem mandarim. Não consegui colocar na cabeça delas, a cultura tão fascinante, chinesa, sabe? Agora elas estão aproximando da cultura chinesa. Principalmente a minha filha que mora no Rio, que ela é escritora e trabalha no cinema, é modelo e gosta, principalmente, de falar. Então, ela tem muitas “lives” por aí, ela é ativista em prol das indígenas, de tudo que ela... sei lá, é muito amplo, assuntos muito amplos. É comunicadora. Então, ela está percebendo da importância da língua chinesa e do conhecimento da cultura de origem do pai, sabe? Porque o pai dela, o tempo todo, fala da China. Mas é como que fala, né, dentro da família: (risos) “Santo de casa não faz milagre”. Mas ela, hoje, escuta dos outros como é importante a busca, né, de informações, de conhecimento da China, sabe? Sobre a China. Mas elas estão longe, né, de mim. Mas o que mais me emocionou é que eu ganhei uma neta. Que é a filha dessa filha que mora no Rio. Aí me transformou tanto. Então, muitos colegas meus, até alunos, falam: “Nossa, professor Tai mudou tanto, depois que ganhou a neta, virou um Papai Noel, virou uma pessoa tão amável, tão…”, sabe, até aluno me chama de “professor fofo”. (risos) É muita coisa, devido a essa neta que eu ganhei. O nome da minha neta é “Paz”. Quando minha filha falou pra mim: “O nome dela vai ser Paz”, levei um susto: “Paz? Paz é uma palavra, não é um nome.” (risos) Mas ela quis e hoje me acostumei com esse nome, Paz. Minha neta, Paz.
P1 - E qual o nome das suas filhas, a idade delas, Tai?
R - A minha filha que mora no Rio tem, acho que 37, por aí. A outra, que mora nos Estados Unidos, 39, por aí. Exatamente, como eu sou ruim de lembrar de data e nomes. Então, elas estão aproximando os quarenta, né, as duas casadas. Só tenho essa neta, que é lá no Rio. O que você estava perguntando?
P1 - Os nomes delas.
R - Ah, os nomes delas. A que mora no Rio, chama-se Lian Tai, L, i, a, n. Que tem sentido, em chinês. Li, é bela, An é tranquila. Bela e tranquila. E ela não é nada tranquila, ela é agitada. A outra, nome bem ocidental, é Marina. Tem um nome chinês, mas ninguém está usando, nem ela não está usando. Ela prefere “Marina Tai”. É isso.
P1 - E quais são as coisas mais importantes pra você, hoje em dia, Tai?
R - Hoje em dia, olha, eu queria tanto, tanto, ver um mundo pacífico, sabe? Eu sou pacifista, eu não gosto nada de armas, não gosto nada de conflito, com arma ou sem arma. Conflito, pra mim, se puder evitar, melhor, sabe? Eu tenho conflito cultural, deixa que a cultura, né, criar faísca, mas não pode deixar chegar a ser uma violência. Então, eu queria ver o mundo melhor. Que todo mundo tenha muito mais tranquilidade. É isso que eu sinto, que me... sabe, a realidade mundial ou até brasileira, me fere bastante. Como sou pessoa muito emotiva, né, então, quando vejo algo ruim acontecendo, nossa, eu fico ruim, fico ruim. Por menor que seja, uma atitude ruim, né, na vida cotidiana, quando vejo alguém jogando lata de cerveja do carro pra rua, assim, eu passo mal o dia, fico pensando naquilo que, né, uma coisa que, puxa, não dá pra entender. Queria ver algo no mundo, dentro da família, dentro da sociedade, no mundo, que tenha mais harmonia. Eu falo realmente com muita seriedade, muita emoção: harmonia. Por isso que eu acho que a política atual, do governo chinês, está muito correta, porque busca a harmonia, sabe? A China hoje quer harmonia, sabe? É diferente. A gente está entrando, não sei se é bom falar disso, né, no campo da política. Estados Unidos estão falando assim: “A China está equiparando com os Estados Unidos. É muito perigoso. Nós temos que conter isso”. Então, a gente precisa competir, mesmo, sabe, armando muito mais. Por exemplo: eles estão buscando aliados, Estados Unidos com Inglaterra, com Austrália, com Japão, pra cercar a China. A China já deixou bem claro: “Não, a nossa política é convivência harmoniosa, mesmo que tenha concorrência, vamos concorrer, assim, economicamente. Ninguém está impondo algo a ninguém, a gente não quer impor o nosso regime, nosso sistema, nosso pensamento em algum lugar, cada um no seu lugar e trabalha, assim, com harmonia, dentro da diversidade. Eu penso assim. Eu quero, se é pra gente terminar a conversa, né, essa política de harmonia, busca da harmonia. Não sei se você lembra da abertura das Olímpiadas de 2018... não, 2008, na China. Quando abriu a cerimônia, apareceu um ideograma bem grande: “Harmonia”. Essa harmonia, que eu falo que é a política atual, na realidade, é [a] essência do pensamento confucionista. Confúcio, dois mil e quinhentos anos, esse pensamento com essa essência, harmonia, hoje, passou a ser valorizada. Então, eu, sabe, sou muito pela harmonia, pela paz. O ser humano, a humanidade, não merece esse sofrimento de guerras, de conflitos. Tanta gente morrendo, sofrendo, de fome e tudo isso. Olha, normalmente eu não falo isso, sabe, mas quando vem a emoção, sabe, você perguntou do que eu queria, sabe, o que é meu desejo. Não é, eu não quero ganhar dinheiro, não quero um sucesso, não quero isso, eu quero ver harmonia, paz no mundo. Família também, é difícil, o ser humano é muito difícil. Então, a gente busca essa harmonia e paz. E, se tiver outra oportunidade, nossa, queria falar muito sobre a importância do pensamento chinês tradicional, que é fundamental, que está no sangue dos chineses, sabe? Confucionista, taoísta, é budista. É muito mais confucionista, sabe? O que fez a China de hoje, mesmo a união da comunidade chinesa, aqui no Brasil, com divergências ideológicas, o pensamento chinês tradicional confucionista consegue unir, unir, sabe? (risos) É muito interessante.
P1 - E tem algum plano, algum sonho seu, pessoal, que você ainda tem pra realizar?
R - Tem, muito, muito. Muita gente fala pra mim, né: “Tai, o que você queria fazer?". Eu queria fazer tanta coisa, principalmente a produção em livros e em obras de arte também. Certos projetos, eu acho que não vai dar tempo. Nem dou conta, pela... por exemplo: tenho 71 anos, minha vista já não é como antes. Eu fazia ilustração científica, eu estava retratando todas as espécies de araras, papagaios e periquitos do Brasil. Não dou conta de terminar. Comecei uma parte muito legal, queria terminar, não consigo. Queria fazer uma história em quadrinho, fantasioso, baseado nas lendas e mitologias chinesas. Eu acho que não vou conseguir, mas eu quero terminar o meu livro, que eu tô escrevendo. E tenho muita coisa pra escrever, vários livros. Inclusive, pro ensino do design também. Sabe, a biônica, que é uma área que eu adoro, biomimética. Eu tenho um livro publicado, mas estudo em cima do mundo vegetal, agora quero fazer um do mundo animal. Mas o que eu mais preciso é tempo. Enquanto dou aula, enquanto tô produzindo obra de arte, sabe? Tempo é muito escasso. Então, sempre falo pro pessoal assim: “Sabe, eu queria viver, se puder, até trezentos e cinquenta anos. Claro, impossível. Mas eu luto pra viver até 99 anos, cem anos, se puder, (risos) né? Pra dar tempo de realizar esses sonhos meus. Não são sonhos, assim... como que fala? Impossíveis. São possíveis, mas preciso de tempo, né e saúde, pra fazer isso, né, sabe? E, claro, um grande sonho é poder continuar viajando, cada dois, três anos, à China. É claro, viajar pelo Brasil. Eu não conheço o Brasil tão grande. Tem tantos lugares que eu queria ir. Mas é isso: meus sonhos são, (risos) assim, na realidade, têm muito a ver com a minha personalidade. Pessoa emotiva. E por isso que tenho alegrias muito grandes e, às vezes, fico melancólico, triste, pela realidade que a gente vê, sabe? Porque esse mundo, realmente, eu não sei como vocês pensam, mas eu sinto bastante, eu sou, eu, se puder contribuir... no curso de design, eu falo pros alunos: cada um contribui com sua força, sabe, de melhorar esse mundo. Não é possível que está piorando. Tem países cada vez mais fortes devido ao poderio militar e não cultural. E, claro que a cultura americana ajuda bastante, né, a chamada... como que é? “Soft power”, que ajuda bastante no cinema, arte, música, ajuda bastante. Mas tem que parar com conflitos que deixam muita gente sofrer.
P1 - E vamos então, Tai, pra última pergunta: o que você achou de contar a sua história pra gente, hoje?
R - Olha, vou falar a verdade pra você: eu gostaria de contar muitas histórias. Se tiver mais oportunidade, eu conto história. Eu acho maravilhoso isso, sabe? Eu acho bom que a gente compartilhe experiências de cada um. Eu acho que a gente aprende muito com experiências, sabe? A gente que sofreu, gente que teve muita alegria, felicidade, que passou por experiências durante essa mudança. A minha vida passou por mudanças. Politicamente, economicamente, socialmente, culturalmente. (risos) É muita coisa, sabe? Eu acho que isso, essa experiência, sabe, é muito válida pra ser compartilhada. Eu gosto muito de ouvir [as] experiências dos outros. Eu acho que é muito importante, pra não deixar sem registro. Certas experiências… eu escutei muitas experiências, de muita gente da minha família e dos amigos, amigos dos meus pais. Eu fico lamentando que todas as histórias foram contadas e não foram registradas. Você perde por aí, acabou. Eu já conversei com muita gente, que tem tantas experiências tão interessantes, que não deveriam ser esquecidas. Mas como eu tenho essa preocupação, por isso que eu comecei a escrever o livro que eu já, durante cinco anos, eu não sei, não tem data pra terminar. Eu quero passar para o livro essas experiências, história que eu contei, que tem tantas outras histórias. Por isso que eu falo pra você: se tiver outras oportunidades, eu conto. Por que meus pais se converteram cristãos? Outra história. Qual razão? Porque na China todo mundo criticava: “É uma religião estrangeira, por que você faz isso, você é traidor”, tal. Meu pai foi, virou crente, virou cristão da igreja presbiteriana. Tinha uma causa, que causa? Várias causas, na verdade. É outra história. (risos) Então, é isso. Acho muito bom isso.
P1 - Então, como última história, conta essa história, então, da conversão dos seus pais.
R – É. (risos)
P1 - Pode contar.
R - Posso contar.
P1 - Claro.
R - Não é muita coisa, não? Tudo bem.
P1 - Essa fica como a última história, o restante a gente vê no seu livro.
R - Tá bom. Quando eu tinha acho que quatro anos, quatro anos, minha irmã mais nova tinha dois anos, então dois anos mais nova que eu. A gente brincava na rua, muito, aí tinha um irmão com um ano de idade, nenê. Então, certo dia, chegamos em casa, vi [uma] movimentação muito grande em casa. “Ué, mas tanta gente, o que será.” Aí chegamos em casa, meus pais abraçaram nós dois e, com lágrimas, né, tristes e eu não entendia nada, não entendia. Vi tanta gente andando pra lá, pra cá, conversando e vi meu irmãozinho nenê deitado no chão, numa esteira, que era verão, pra ficar mais fresquinho, o colocou na esteira, no chão de cimento. Aí, a parteira, né, da família, falou assim: “É bom deixá-lo no chão”. E eu, com quatro anos de idade, não entendia muito bem, que na verdade morreu o meu irmão, nenê. Eu vi um caixãozinho lá. Aí meu pai - ainda lembro tudo isso nitidamente, com detalhes - chamou meu tio, o irmão mais novo do meu pai, falou assim: “Olha, você vai comprar vários brinquedos. Traz um carrinho, um chocalho e uma bola, uma bolinha. E você coloca dentro do caixão”. Eu só sabia que era muito triste, mais nada. Depois de algum tempo, eu percebi que minha mãe não podia escutar uma palavra que tinha no nome do meu irmão, porque essa palavra lembrava o nome do meu irmão. Ela não conseguia escutar, escutava isso, já chorava. Tinha foto desse meu irmão. Meu pai escondeu tudo. Hoje sobrou uma foto dela, só que não sei distinguir, se era minha foto, quando era nenê, ou foto dele. (risos) Não sei distinguir, tô com essa dificuldade. Se meus pais, meu pai fosse vivo, podia falar: “Olha, essa aqui é foto dele”. Eu não sei distinguir. Mas eu descobri porque meu pai se converteu só poucos anos atrás, aqui no Brasil, quando fui pesquisar na internet. Olha como é poderosa a internet! Digitei o nome do meu pai, em chinês. Apareceu o recorte de um jornal, de uma igreja presbiteriana. Alguém fez recorte desse jornal, falando da construção da igreja presbiteriana na cidade, minha cidade, onde eu nasci. Aí contou a história, porque meus pais, quando eram jovens, tinha três filhos e nenê de um ano morreu e o casal era inconsolável. Aí apareceu um pastor. Apareceu um pastor e pastor ficou sabendo e conversou com meus pais e conseguiu consolar meus pais: “Olha, seu filho, na verdade, está com Deus” e coisas assim, tá? E meus pais foram convertidos. Mas até aí, não era, assim, era a primeira causa, primeiro motivo. Mas meus pais ficaram cada vez mais fervorosos, aí vem outra história. Eu vou contar, pra terminar. Meu pai era chamado de louco, né, porque se converteu cristão, porque ninguém... era assim, ó, uma pequenininha, pequeniníssima porcentagem da população. E mais louco ainda: meu pai fechava o estúdio de fotografia no domingo, pra ir à igreja. E domingo é o dia mais movimentado. E ele deixou de comércio e ia pra igreja. Mas aconteceu, um dia, uma pessoa, ainda lembro, correu dentro da igreja, chamou meu pai, meu pai saiu correndo. Um caminhão militar entrou na nossa casa, que ficava na esquina, entrou, derrubou duas colunas e a casa não caiu, a casa ficou, assim, com quatro colunas, ficou assim. E, de modo geral, num domingo, eu e irmãos brincávamos no corredor lá fora, né, de casa. Se tivesse lá, já tinha morrido, todos. Mas a criançada estava na igreja, então ninguém morreu. Meus pais, né, falavam: “Era Deus, era Deus”. E tinha outro caso: aconteceu que a mesma casa, numa madrugada, ruiu, telhado caiu inteirinho, inteirinho, em cima, assim, acabou a casa, virou uma ruína. E a família dormia no mesmo espaço. Ninguém se feriu. O povo, na rua, de madrugada, quando amanheceu na rua, gritando pelo nome do meu pai, ninguém respondia. Aí todo mundo falava: “Morreu todo mundo, morreu”. No fim, ninguém se machucou, ninguém se feriu, porque a ruína, tudo, né, caiu em cima de uma viga suportada por dois armários e a gente dormia embaixo. Ninguém se feriu. Então, meus pais ficaram muito mais fervorosos. Era Deus, obra de Deus. E, como falei, meu pai era artista polivalente, meu pai fez o projeto da igreja, tá? Fez maquete, fez o projeto e não era arquiteto e podia, na época, fazer. E a igreja daquela época foi meu pai que projetou, né e ele virou (risos) um cristão fervoroso. Então, essa é a história. Isso eu vi num recorte de jornal, que eu pesquisei, que eu consegui.
P1 - Bom, que história incrível essa. Porque você e sua família foram salvos várias vezes, digamos assim.
R - Várias vezes. Mas tinha consequência do meu pai, a conversão do meu pai. Uma consequência… na última viagem à China, meu tio, irmão da minha mãe, falou pra mim: “Foi muito injusto que o clã” - porque lá na China fala “clã Tai”, clã - “expulsou seu pai do clã”, “Como assim? Não sabia, não”. Ah, mas depois, assim, permitiram retornar, porque meu pai era considerado como traidor do clã, porque se converteu cristão. Porque não podia fazer culto aos antepassados, que era tradição, é uma tradição até hoje. Todo ano, quem é do clã, tradicionalmente tem que fazer reverência, culto aos antepassados. Cristãos não podem. Então, (risos) meu pai já foi considerado... como fala? Traidor. Ah, sei lá, como que chama isso. Não foi bem-visto. Mas é a vida da gente. Por isso que eu fui… quando Grazielle perguntou da minha religião, eu não sou religioso, mas fui batizado nessa igreja, quando era pequeno.
P1 - Então, a gente encerra por aqui, eu tenho certeza que existem mais muitas histórias incríveis, que você poderia contar, né, mas a gente, uma hora, né, a gente não consegue contar todas elas numa entrevista só.
R - Sim.
P1 - Mas, de qualquer forma, Tai, as histórias foram muito boas, a gente agradece muito o seu depoimento. Eu agradeço, em nome do Museu da Pessoa também e, pessoalmente, pela experiência.
R - Olha, muito obrigado. Me deu essa oportunidade pra contar histórias. No início, eu sempre pensei assim: “Ah, nossa, é muita...”. Eu sou, assim, né, meio tímido. Mas pra contar história, eu adoro. Então, como vocês falaram que era pra contar história, inclusive da infância, ah, então tudo bem, está bom. Eu agora tô viciado (risos) em contar história. Então, agradeço muito pela oportunidade. E vocês são muito simpáticos e outra coisa: eu fiquei sabendo, conhecendo esse Museu da Pessoa. Hoje, quando falei pra uma colega minha: “Eu vou dar uma entrevista lá, pro pessoal do Museu da Pessoa”, “Nossa, que legal, nossa, mas, nossa! Olha, vou te mostrar”. E me contou o que era Museu da Pessoa, essa minha colega. Aí me mostrou coisa, assim, impressionante, que ela ficou, assim, maravilhada. Eu falei: “Ai, que bom!".
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