Projeto Memória dos Pacientes
Depoimento de Eduardo Cômodo Valarelli
Entrevistado por Rosana Miziara, Morgana Masetti e José Santos
São Paulo, 28/09/1999
Realização: Museu da Pessoa
Revisado por Natália Ártico Tozo
P/1 – Boa noite, Eduardo! Eu queria começar nossa entrevista pedindo par...Continuar leitura
Projeto Memória dos Pacientes
Depoimento de Eduardo Cômodo Valarelli
Entrevistado por Rosana Miziara, Morgana Masetti e José Santos
São Paulo, 28/09/1999
Realização: Museu da Pessoa
Revisado por Natália Ártico Tozo
P/1 – Boa noite, Eduardo! Eu queria começar nossa entrevista pedindo para você falar o seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Bom, o meu nome é Eduardo Cômodo Valarelli, data de nascimento 23 de março de 1962 e cidade Sorocaba, interior de São Paulo.
P/1 – E seus avós? Você lembra o nome dos seus avós, a origem deles?
R – Mais ou menos. Por parte paterna: meu avô Rafael Rosa Valarelli, minha avó Laura Rosa Valarelli. Meus avós maternos: Bruno, italiano, Bruno Cômodo e minha avó, Albina (Ciampi) Cômodo.
P/1 – Você os conheceu?
R – Minha avó, não. Por parte de mãe, não. Meu avô, sim. Meu avô por parte de pai conheci e ainda tenho a minha avó por parte de pai, que tem 102 anos.
P/2 – Cento e dois?
R – Cento e dois anos. Uma guerreira.
P/1 – E ela mora em Sorocaba?
R – Mora em Sorocaba, com os meus pais.
P/1 – Qual era a atividade dos seus avós?
R – Meus avós eram simples. Meu avô, por parte de pai, era barbeiro; a minha avó uma dona de casa. Minha avó também, por parte de mãe, uma dona de casa, uma bela cozinheira – conforme diz minha mãe –, e meu avô um “italianão” de típica vida de interior, dos bate-papos nas pracinhas de interior, jogava truco com os amigos. Basicamente era essa a rotina deles, a ocupação deles. Aposentados da Ferroviária Sorocabana... Uma vida tranquila de interior.
P/2 – Você sabe por que eles vieram para o Brasil?
R – Não, na verdade eu não sei muito a origem, assim... Da vinda deles ao Brasil. Nunca pensei nisso, de perguntar e tudo o mais.
P/2 – Seu pai e sua mãe se conheceram em Sorocaba?
R – Meu pai e minha mãe se conheceram em Sorocaba... Em bailes, em clube... (risos)
P/2 – Como foi?
R – Um baile, acho que no dia 15 de novembro. Não, desculpe. No dia 7 de setembro. Baile da Independência. No interior tinha muito essas coisas, agora não tem mais. Enfim, se conheceram, aquela coisa toda galã do meu pai, conquistador, aquela coisa de “italianão”. E daí rolou, casaram, foi rápido, vapt vupt, seis meses. Se conheceram, casaram... E procriaram. (risos)
P/1 – Qual o nome dos seus pais?
R – Meu pai chama Hélio Rosa Valarelli, minha mãe chama Maria José Cômodo Valarelli. Os dois estão vivos, moram em Sorocaba atualmente.
P/2 – Você é o primeiro filho?
R – Não, eu sou o segundo filho. Tenho uma irmã de 41 anos e eu sou o caçula com 37. Só nós dois, a família é pequena.
P/1 – O seu pai agora é aposentado?
R – Meu pai é aposentado, minha mãe é aposentada. Minha mãe trabalhava como professora na Rede Municipal de Ensino, aposentou há uns dois, três anos. Meu pai também há uns dois, três anos, funcionário público.
P/1 – De que área?
R – Do Estado. Funcionário Público Estadual, trabalhava na Secretaria da Fazenda. Os meus pais são pessoas hiper simples. Nossa origem é simples, uma família sem hábitos sofisticados, sempre com muita batalha. Eles têm uma vida completamente pacata, aquela coisa de interior, apesar de Sorocaba não ser uma cidade tão província, mas eles conservam, isso é interessante. Aquela coisa de almoçar às 11 e 30, entendeu? Quando eu vou lá eu estranho, eu almoço duas horas, uma e meia da tarde. (risos) Caldinho de feijão, sabe? Têm aqueles hábitos. Eles são jovens, mas eles têm os hábitos do interior, são conservadores nos hábitos, mas têm uma cabeça hiper boa, os dois.
P/2 – E essa casa onde eles moram é a mesma desde quando você nasceu?
R – Ah, essa casa é legal, tem história essa casa. Nessa casa morava minha avó... Meus avós paternos. Depois morou o irmão do meu pai, meu tio, por uns bons anos. A minha irmã nasceu nessa casa, enfim... E, atualmente, os meus pais moram nessa casa. Então essa casa é uma coisa assim... Quando eu vou lá é um barato. Eu não tive a minha infância na minha casa, a minha irmã teve mais. Quando eu vou lá, eu fico meio que resgatando aquela coisa de interior, do quintal... Um quintal com pé de limão, pé de laranja, de mexerica, tinha galinha, galinheiro, cachorro... Meu pai é um cara hiper... Meu pai morou muito tempo no sítio e meu avô Rafael é italiano, mas a minha avó é brasileirona mesmo. Até eu me enganei, acho, se eu falei isso... Ela é brasileirona, ela é cabocla mesmo. Então ela nasceu em sítio, foi criada em sítio... Meu pai teve essa formação dentro do sítio, de esperar a galinha acabar de botar o ovo, pegar o ovo quentinho da galinha, quebrar e... (estala os dedos). Então ele é um cara rústico, caipira mesmo, que eu acho muito legal. Ele conserva isso, faz questão, e eu admiro muito isso nele.
P/1 – Você podia descrever como é a casa?
R – A casa fica num bairro que se chama Mangal, em Sorocaba... O próprio nome já diz: era uma região cheia de pés de mangas e esse bairro ficou denominado como Mangal. Essa casa é aquele tipo casa de interior, não é um casarão antigo e tudo o mais, mas é uma casa arejada, com jardim grande na frente, com roseiras... Sala enorme, uma copa que parece uma sala, uma cozinha grande, três quartos, assoalho grande, um quintal grande... E essa casa é muito interessante porque ela é muito simples, porque como passaram os meus tios, os meus primos, então cada um ia meio que mexendo na casa. Essa casa acaba tendo resquícios de outras vidas, de outras pessoas que moraram. Então tem metade de uma parede no quintal, que era onde meu tio trabalhava, ele montou um negócio dele. É interessante, tem uma coisa meio de ruína o quintal, até acho o quintal muito interessante por causa disso. E o meu pai conservou, porque eles não curtem muito essa coisa de estética, de... Então é uma casa muito gostosa. Cheia de cantinhos, tem um porão.
P/2 – Tem um porão?
R – Tem. Eu adoro o porão, porque o porão é um lugar cheio de... Meu pai é tipo assim: ele gosta muito de coisas. Então minha mãe vive enchendo o saco dele, que ele está com mania de velho, que ele vai juntando coisas. E eu acho muito legal isso, porque eu tenho essa mania.
P/1 – Então não é de velho, não é?
R – Não é de velho. Eu falo: “Mãe, não é de velho. A senhora tá me chamando de velho porque, na verdade, é uma coisa de se gostar de um objeto que se pega na rua e levar para a sua casa”. Eu faço muito isso. Se eu pego um tronco na rua e gosto, eu trago pra cá. Então ele vai juntando coisas no porão que eu acho extremamente interessante. Quando eu vou lá, o porão, na verdade, parece um acervo de coisas, que muitas eu trago pra cá. Tem uma mesinha aqui que eu trouxe do porão domingo passado. Então o porão é um mundo que eu gosto de entrar e ficar vendo o que ele tem ali. E fuço mesmo e ele gosta.
P/2 – Mas você falou que não passou uma parte da infância lá, que foi mais sua irmã, por quê? Nessa época vocês moravam em outra casa?
R – Nessa época eles mudaram de lá e em 1962 eu nasci... Daí eles moravam em outro bairro, que não era o Mangal e eu morei... A minha mãe morava com meu avô, porque até então ela havia perdido a minha avó, a mãe dela, e eu convivi mais em outra casa, mas por pouco tempo. Eu não tenho muita lembrança dessa casa, tenho lembrança mais do bairro, mas não da casa em si, porque o bairro era além-linha. Sabe o que quer dizer além-linha? Além da linha do trem. Então você passa, tem o viaduto, tem a linha do trem, então o bairro, do viaduto pra cá, é além-linha. Então esse bairro é além-linha. Até hoje. Isso eu achava engraçado quando era criança e acho até hoje. Então eu tenho a visão mais do bairro, da pracinha onde meu avô ia, ficava com os amigos, tudo mais, mas a casa não tenho a imagem.
P/1 – E você quando criança? O que você fazia em termos de brincadeira, sua descoberta do mundo?
R – Nossa, eu tive uma infância muito legal. Eu tive uma infância não muito fácil por parte de relação pai e mãe, porque meu pai era um cara muito galinha, então a gente sempre convivia com isso e tudo o mais, tinha aquelas coisas de briga de pai e mãe e isso foi muito triste, muito pesado pra mim. Mas, por outro lado, tinha o lado lúdico, como qualquer criança e o interior possibilita muito isso, principalmente naquela época. Então a minha infância era muito de brincar no quintal, mesmo. Não era muito de rua, era muito caseiro. Era quintal, caminhãozinho e sempre meio que transformando as coisas, isso eu lembro bem. De repente pegava tampinha de refrigerante, inventava de fazer um caminhãozinho; pegava uma bacia, que minha mãe lavava roupa e enchia de água e pegava um barquinho de papel, que você faz com a folha do caderno, e ficava ali em devaneio, entendeu? Isso, mais molequinho, com nove, dez anos. Na pipa, futebol nunca fui chegado, não sou chegado até hoje... A infância foi muito gostosa. Brincava com primo, com prima... Mas era muito mais eu, eu brincava mais sozinho, não curtia muito brincar com turma, era muito na minha. E pintava, desenhava, isso é uma coisa... Eu tinha os carimbinhos, não eram nem da Mônica... Uns carimbinhos com uma temática de zoológico, de bichinhos, então era isso. Carimbava, minha mãe sacava que eu gostava... Carimbava, pintava, colava milho, ia lá, pegava os milhos da galinha, fazia uma colagem.
P/2 – Com milho?
P/1 – Uma colagem? Mas isso foi incentivado pela escola ou era uma coisa sua?
R – Não, era uma coisa minha, porque até então eu também... Eu entrei na escola não sei se tardiamente. Naquela época não era como hoje. Nossa, falar “naquela época” é grave, mas é sério, não é? (risos) Voltando, naquela época não tinha essa coisa de você entrar na escola com dois, três anos de idade, não tinha isso. Então, o correto, entre aspas, era a criança entrar no jardim de infância com seis anos de idade e, depois, com sete anos você entrava na primeira série. Eu não fui para o jardim de infância, eu fui direto para a primeira série. Quando eu entrei na escola o que eu mais gostava era enfeitar caderno, esses caderninhos de brochura, a margem eu sempre fazia cheio de rococó. Mas não tinha atividade de arte, eu sempre estudei em escola pública, na infância mesmo e no ginásio também. Colégio, também, metade. Era uma coisa muito simples, quando a gente fazia alguma coisa era mais voltado para o artesanato. Sabe aquela coisa de fazer fruteira com palito de sorvete? Nossa, muito criativo. (risos) Todo mundo fazia a mesma fruteira. Quarenta alunos, todas as fruteiras iguais. (risos) Então não tinha aquela coisa que tem hoje nas escolas da arte em si, de estimular, era uma coisa mais minha, de fazer, pintar... Desenhava na cozinha... É legal falar da infância. A minha mãe fazia comida e eu ficava na mesa da cozinha, ela cozinhando e eu lá, pintando.
P/1 – Você pintava o quê? Aquarela?
R – Não, lápis de cor. Nem guache, era lápis de cor só. Caderno de desenho, tamanho assim, aqueles pequenininhos, nem A4, nem tamanho de um sulfite, menor, e ali era o meu mundo. E televisão, adorava televisão, Perdidos no Espaço, Terra de Gigantes, nossa! Com sete anos, quando eu fui para a escola, eu não gostei muito não, foi uma barra pra mim na escola, foi uma barra, foi muito chato, eu sofri muito na primeira série. Sabe aquelas crianças que querem voltar? Depois eu engrenei, vi o lado positivo da escola.
P/1 – E como é que era o rito escolar? Como é que era a aula, a sala de aula?
R – Nessa fase do primário? Era muito legal por um lado, porque até hoje quando eu vou ao interior – vou muito pouco –, quando a gente passa na rua minha esposa fala: “Já sei, não precisa falar ‘foi aqui que eu estudei’” (risos). Porque é um prédio que está lá até hoje, entendeu? E é uma escola antiga, a arquitetura dela é antiga. Lógico, na época, pra mim, era um prédio normal, mas era uma escola muito grande, aquelas escolas públicas tradicionais, com muita árvore, então a gente tinha muito espaço, terra mesmo, não tinha essa coisa do concreto, era terra e árvore, pé de manga na escola e as salas eram grandes com muita luz, que é uma coisa que eu curto até hoje, luz, não gosto de lugar escuro. Aqueles janelões enormes, aquelas cortinonas também grandes, aquelas carteiras que a gente vê hoje nas lojas de antiguidades aqui em São Paulo, que sentavam duas pessoas, tinha um buraco pra você colocar caneta tinteiro, já não foi da minha época. (risos) Mas essa carteira já era de outras vidas. Tinha um encaixe redondinho que era pra você por o lápis, pra não descer, porque era inclinada a carteira e as turmas eram grandes, tipo quarenta alunos numa sala. Aquela professora com aquele semblante assim, sabe? Saia, óculos, cabelinho todo com laquê, aquela coisa. A escola foi isso... E brincar no recreio, mas eu não era muito de turma não, era muito na minha, porque não gostava dessas brincadeiras, entendeu? Pra mim, ficar correndo atrás de uma bola era uma coisa meio idiota – nossa, se algum jogador de futebol me escutar – e até hoje eu acho, não gosto de futebol, não acho graça, não acho mesmo... Mas desde aquela época. Eu não gostava, você vê como que é, tentava gostar, porque você acaba ficando meio deslocado, então você não brinca de futebol, “pô, viadinho”, tem aquelas coisas. Na cidade do interior isso era muito mais forte. O que eu fazia? Colecionava figurinha. Isso eu gostava... Bafo, não é?
P/1 – Que álbum você fazia?
R – Agora você me pegou, eu não lembro muito, mas... Gozado, eu não lembro muito de um tema específico de álbum. Eu sei que tinha assim... Era um álbum, um álbum que me deu dor de cabeça, o que era o meu xodó era um álbum acho que de ciências, não sei o nome. Eram bichos, então apareciam dinossauros, o esqueleto de um dinossauro, tinha figurinhas maiores que você abria e eu me lembro que um menino, num jogo de bafo, ele me trapaceou, entendeu? Porque uma figurinha que eu tinha era rara e ele trapaceou e foi a minha primeira briga na escola. Eu não consegui a figurinha e fiquei com crises de insônia porque aquela figurinha era muito valiosa pra mim. E daí, era isso na escola. Não tinha muito de... A gente tomava lanche na escola... Não era nem lanche, era merenda, a gente comia na escola. A gente tomava groselha... Groselha... Sopa... Três horas da tarde tomando sopa. Mas era legal aquela coisa, aquelas mesas grandes, todo mundo dividindo a sopa na hora do lanche. Daí tinha as festinhas juninas, que eu também não participava muito. Era muito na minha. Só depois na adolescência que eu comecei a me soltar mais, mas mesmo assim a minha adolescência foi meio tardia. Com catorze anos eu era muito bocó, com treze, doze anos eu brincava de carrinho. Mas foi bom.
P/2 – Você teve alguma educação religiosa?
R – A minha mãe é hiper “carola”, até hoje. Eu tive uma educação religiosa, mas eu não tive uma formação... Porque interior... Aqui também tem muito disso, mas interior sempre tem colégio de freira, que é o mais badalado da cidade e que é muito legal você colocar o filho ou a filha pra estudar nesse colégio e, geralmente, são as filhas que vão para os colégios de freira. A minha irmã estudou num colégio de freira badalado e tudo mais. Ela teve aquela coisa de ter aula de religião e tudo o mais, totalmente assim... A formação religiosa que eu tive foi mais de minha mãe passar, porque minha mãe estudou no mesmo colégio que a minha irmã estudou, que era o Colégio Santa Escolástica, tradicional pra burro. Então a minha mãe é “carolona” e ela passava essas coisas de religião. No colégio estadual a gente tinha aula de religião, mas muito por cima. Eu convivi com uma formação religiosa mais por parte da minha mãe, dos meus avós, mas aquela coisa de ir à missa foi muito... Nossa, pra lá da adolescência.
P/1 – Eduardo, você passou mais recolhido, mais concentrado esse período, e você lia muito?
R – Ler não. Sabe o que eu gostava de fazer? Eu adorava. Até encontrei há quinze dias no porão lá de casa, sabe aquela coleção Conhecer? Então, foi a primeira coleção que meus pais compraram pra gente e nem sei se existe essa coleção hoje, mas os livros eram enormes, bonitos, capa vermelha... Ali era o máximo pra mim. Eu pegava aqueles livros e ficava vendo, folheando em cima da cama. Parte de ciências, é gozado, eu me ligava muito na parte de ciências.
P/1 – Não na de arte?
R – Eu gostava muito das ilustrações dos livros, então, vamos supor, aquela ilustração dos homens da pré-história, aquela coisa da caverna, eu achava legal a ilustração, aquilo me fascinava, não que eu fosse um leitor, gostava de folhear e viajar nas imagens.
P/1 – A Conhecer não tinha foto, era tudo desenhado, não é?
R – Era tudo desenhado. Até tinha uma coisa interessante, no corpo, que me veio agora, que era... Na parte de ciências tinha o corpo e pra explicar o corpo tinha uns desenhinhos dentro, como é que funcionava a hora que a comida descia aqui, tinha umas ruelas assim... A indústria, a fábrica do corpo, o intestino, isso eu achava o máximo. Então eu não tinha muito saco de ler, era mais ver imagem, que eu curtia mais.
P/3 – E nessa época você já pensava o que ia ser quando crescer? Tinha planos?
R – Eu viajava muito, na verdade. Eu sempre fui assim... Sonhador, eu acho. Na verdade, quando eu viajava nesses livros, nessas imagens... Quando eu falo viajar é viajar literalmente mesmo. Então se eu via lá o esquema do corpo humano e aquelas ruelas, eu me imaginava dentro daquele corpo humano, as ruelas, era uma coisa muito louca e muito gostoso. Se eu via um desenho, uma ilustração de um homem da pré-história, eu me transportava para aquela época. Era assim o tempo inteiro. Mas não era assim: “Ah, vou ser artista” ou: “Que legal arte!”. Na verdade eu era muito ingênuo, eu tinha uma atração por imagem, por cor, pelo visual. Fazia, desenhava muito, às vezes eu via um desenho lá, punha o livro do lado: “Vou tentar copiar”. Tinha uma coisa até legal... Nossa, isso nem existe mais, chamava Desenho Copy. (risos)
P/2 – Desenho Copy...
R – Até eu gostaria que vocês falassem que vocês conhecem. Vocês conhecem isso?
P/2 – Eu conheço. (risos)
R – Obrigado pela força, porque se não vai ficar muito...
P/2 – O álbum, Conhecer...
R – Isso... Aí tinha o mapa do Brasil, você contornava em cima, que era um papel vegetal e saía na folha de baixo. Tinha bicho, isso eu adorava. Mas não pensava muito em arte, não. Eu comecei a perceber mais em arte mais tardiamente, quando eu já estava quase com uns dezoito. Eu gostava, mas eu não assumia muito esse lado artístico, porque meu pai era um cara extremamente machista, até hoje é. Ele tem aquela coisa, tinha muito aquilo, de repente: "Pô, o cara gosta de arte, de pintar, é viadinho". O menino tinha que jogar bola.
P/2 – Não joga bola... (risos)
R – Não joga bola... É, mas é bem assim: "O meu filho é viado". Mas eu sacava isso mais tardiamente, porque quando ele me via muito com desenho, falava: "Ô! Jogar bola!". E eu não ia, eu não fazia o que eu não queria. E daí isso foi me dando um peso. Mas a coisa de criar, eu não falo da arte em si, a coisa de criar era muito forte em mim, coisa de mexer... Vira e mexe na adolescência eu mudava, eu fazia móvel; eu entrei numa época numa fase de decoração, então dava uma de desmontar a casa inteira. Minha mãe chegava da escola e falava: "O que você fez aqui?". Eu mudava tudo, sofá de posição... Então tinha esse lado o tempo inteiro, essa inquietação de ficar mexendo, transformando. Mas essa coisa do meu pai observar ficou muito marcado pra mim, isso mais com dezessete, dezoito anos. E também era a idade da turma, meus amigos eram muito legais e eu era o mais sensível da turma, mas eles... Jogava bola com eles... Mais tarde eu comecei a jogar bola por vontade, mas não forçado, porque era a idade da turma, então era legal. "Vamos jogar bola junto na pracinha?"; “Vamos!”. Então aquilo lá era curtição. Jogar bola pra mim era mais pretexto, porque eu não fazia coisa nenhuma; dava chute fora, não fazia gol e era muito legal porque a coisa rolava sem cobrança, sem aquele jogo de futebol: "Ah, você é frouxo, pá, pá, pá!", porque a gente era uma turma. Quando eu falo turma, é uma coisa muito assim... Eu fico até emocionado, porque eram seis pessoas que realmente eram amigos, aquela coisa que hoje é raro. Era turma mesmo, de almoçar, jantar na casa dos amigos, um na casa do outro.
P/1 – E eram vizinhos ou colegas de escola?
R – Colegas de escola. E colegas de escola – isso é legal – desde o primário. Então você pegava dois, três carinhas que estavam na sua classe, na terceira série primária, daí ele ia. Quinta série, sexta série, sétima série, daí foi. No colégio a gente se separou de escola, porque cada um começou a ir para os caminhos; um foi para o colegial profissionalizante na área de jornalismo, outro pra parte mais pedagógica, as meninas, eu fui parar num colegial profissionalizante de curso de Mecânica. É. Então teve muita reviravolta. O contato com a arte foi muito tardio, eu diria, porque eu me boicotei, eu pensava muito na opinião do meu pai, dos outros.
P/2 – Por isso você foi parar no de Mecânica?
R – Não sei. Não foi muito assim por isso. Talvez um pouco, mas era também porque na época tinha uma escola lá que se chamava Colégio Técnico Estadual, era como se fosse o Santa Escolástica das patricinhas da cidade, só que o Colégio Técnico Estadual era para aquele adolescente que queria entrar numa escola legal, estadual, que realmente era uma escola muito boa, que tinha um processo de seleção rigoroso, também você tinha exame, vestibulinho e você fazia um colegial profissionalizante: Eletrotécnica, Mecânica, Nutrição e mais um que eu não me lembro direito. Quando saía daquele colégio ou no terceiro ano colegial, você já tinha um emprego garantido, então isso também me pesava muito, porque como eu falei, a gente era de origem muito humilde. Nessa época, meu pai e minha mãe se separaram, quando eu tinha treze anos de idade, então era um momento que minha mãe sustentava eu e minha irmã. A minha irmã trabalhava e eu, até então, tinha dezesseis, dezessete anos... Eu também... Pesou pra mim a coisa da figura masculina. Então eu ia muito pela dos outros, eu não pensava muito em mim, eu pensava assim: “Pô, eu tenho que dar uma força pra elas, vou ver se eu consigo...”. E entrei, não sei como, mas eu entrei. Bom, fiquei... Eram quatro anos, na verdade, era um colegial puxado, porque era técnico. Fiquei dois anos e meio, quase chegando no terceiro ano eu pulei fora. Não aguentei, porque era pesadão. A gente ia lá no meio de um torno, pegava um ferro e tinha que tornear, fazer uma peça de mecânica, razão pura, tinha que fazer um desenho técnico.
P/3 – E aí você foi fazer o quê?
R – Daí foi um caos, porque eu saí de lá e meu tio tinha... Daí eu vi que não tinha nada a ver, falei: “Bom...” – uma crise total – “não tem nada a ver eu ficar aqui, o que eu faço agora com esses dois anos e meio?”. Eu tinha que trabalhar e não estava pintando nada pra mim em termos da área de Mecânica, o máximo que eu ia conseguir... Já que eu não gostava, não rolava nada, tipo um SENAC [Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial], porque a gente tinha a oportunidade de fazer um estágio remunerado no SENAC. E eu precisava trabalhar, eu comecei... O colégio foi uma época muito chata, o colégio foi a pior época em termos de estudo, porque eu não me adaptava em nada. Mecânica não tinha nada a ver comigo. Daí eu saí, precisava trabalhar, a grana pesando muito alto, o irmão da minha mãe tinha um escritório de Contabilidade, eu fui trabalhar no escritório de Contabilidade. Fazia... Não tinha computador, a gente fazia escrita fiscal, pegava números da nota fiscal, punha no livro. Uma coisa extremamente, assim, escrever. Mas fui trabalhar como office-boy no começo.
P/1 – Isso você tinha quantos anos?
R – Dezesseis anos. Aí eu comecei a me entusiasmar, meu tio era o modelo da família, tem aquela coisa toda, ganhava grana, hiper rico, hiper bem de vida financeiramente, eu me empolguei, falei: “Bom, eu vou me espelhar no meu tio. Vou ficar rico que nem ele”. Daí o que eu fiz? Cancelei Mecânica, porque eu já não estava gostando e fiz... Foi a primeira vez que eu fui numa escola particular. Trabalhava de dia como office-boy, daí fui fazer um curso de colegial em Contabilidade, técnico em Contabilidade. Eu tenho um diploma de técnico em Contabilidade, só que eu não sei fazer um balanço hoje em dia. E fiz também, mas eu gostei, porque eu trabalhava, então complementava o meu trabalho; eu já não era mais boy, já tinha sido promovido. Então me acrescentou, na época me acrescentou.
P/2 – Que empresa era essa?
R – Era um escritório de contabilidade. Um escritório pequeno. Só que eu sempre fui muito inquieto, chegou uma hora que isso aí também me encheu o saco e resolvi seguir carreira militar. (risos)
P/3 – Essa eu nem imaginava.
R – Vocês não acreditam. Daí o que eu fiz?
P/1 – Tiro de Guerra?
R – Boa! Exatamente. Eu me alistei, não consegui ser dispensado e também nem queria ser dispensado, porque todo mundo falava: “Pô, Tiro de Guerra é isso, pá, pá, pá, pá, pá". E eu não tinha nenhum peixe pra me dispensar, porque você é dispensado muito assim: por um cara político – pelo menos cidade do interior é assim – ou porque você teve alguma doença grave. Enfim, eu passei por todos os processos de seleção, fazer sangue, ver se o sangue era bom, fiz exame, fiz prova, daí eu fui aprovado para o serviço militar, só que o Tiro de Guerra era uma coisa extremamente light, porque você não morava no quartel; você ia lá, ficava duas horas todo dia de manhã, das seis às oito da manhã e sábado ficava três horas, quatro horas, das seis às dez, um negócio assim. E daí o que aconteceu? Eu gostei muito, porque foi onde eu conheci... Eu saí daquela coisa da turma. Todo mundo, a gente já tinha dezoito anos, a gente começou meio que a dispersar. Novas amizades... E pra mim foi muito legal porque ia ser um desafio em vários aspectos, eu ia conhecer gente nova, eu sabia que o Tiro de Guerra ia ter um grupo hiper heterogêneo de pessoas, desde um cara drogado, desde um cara galinha, e eu queria ter essa vivência, porque eu me sentia muito na minha ainda, apesar de já ter minha turminha e tudo o mais. Era um desafio também de você adquirir novas experiências, conhecer outra vida. Até eu recomendo, acho que quem tem filho, eu se tivesse um filho, eu não ia boicotar ele não, se pintasse de ele fazer, eu acho uma experiência muito legal, porque você tem um contato com pessoas de diversas índoles e eu acho que isso faz parte da vida, que até então eu não tive. E, por coincidência, na conclusão da nossa fase, no período de prestar serviço militar, eu fui contemplado com uma medalha de honra ao mérito. Ah, vou seguir carreira militar. Automaticamente. Porque eu me surpreendi, eu me dei muito bem, entendeu? Eu não pisava na bola, não é que eu era CDF não, eu só seguia as regras, não fazia babaquice, porque quem fazia babaquice dançava mesmo: carpia, ficava preso, tinha uns lances assim. Então eu fazia o que tinha que fazer. Então eu falei: “Bom, eu gostei, fui contemplado, eu acho que levo jeito para o negócio, por que não? Vou fazer um cursinho”. E eu tinha um primo que fazia Escola de Cadetes em Campinas e a gente era muito amigo, então teve uma influência muito grande... Falei: “Por que não?”. Olha a volta que eu dei, vocês estão sacando. Por que não seguir carreira militar? Daí que eu vim pra São Paulo fazer um cursinho específico, que foi
a melhor coisa que aconteceu.
P/1 – Então você veio pra São Paulo em que ano?
R – São Paulo... Eu acho que vim...
P/1 – Quantos anos você tinha?
R – Eu acho que 21, por aí... É, 21 pra 22. Daí vim fazer um cursinho específico, que era o mesmo cursinho que o meu primo tinha feito, o melhor aqui de São Paulo, porque preparava você para as escolas militares, só que até então eu não ia tentar Escola de Cadetes, porque eu já tinha ultrapassado o limite de idade. Daí eu vim, e era o melhor cursinho, não era cursinho pega-trouxa não, como tem por aí. Era lá no centro da cidade, então pra mim era também tudo muita novidade. Morava com as minhas duas primas e estudava à noite nesse cursinho. Estudava o dia inteiro. Eu não trabalhava aqui em São Paulo, só estudava pra tentar entrar na AMAN, Academia Militar das Agulhas Negras, que era um negócio assim...
P/1 – Era o top a AMAN, não é?
R – Era o top. Era. O ano que eu tentei, para vocês terem uma ideia, tinham 23 mil candidatos para cem vagas. A prova era no ginásio do Ibirapuera. E eu lá, com uma experiência ótima de exatas, não é? O curso de Mecânica abandonei no colégio, depois fui pra Contabilidade. Contabilidade não tinha nada de Química, nada de Física, fui pegar uma... Tive que aprender Física e Química em um ano. Dancei. Ariano, teimoso, insistente... Vou fazer de novo. Daí fui para o Anglo. O Anglo tinha uma turma especial na época pra preparar para o ITA [Instituto Tecnológico de Aeronáutica] e para as escolas militares. Lá vai Eduardo Valarelli se meter numa classe de cem pessoas, aqueles japoneses, chineses, com aqueles óculos caco de vidro, tudo com cara de intelectual... Eu não acredito. Recém-chegado do interior, os caras falavam grego, aqueles exerciciozinhos de Química básicos pra eles, pra mim era grego. Não aguentei. Fiquei seis meses, quatro meses, cinco, nessa turma, daí passei para uma turma de exatas. Daí eu tentei... Estou fazendo um pouco de confusão... Não. Voltando um pouquinho. Depois, quando eu consegui passar na AMAN, que era o top da época, eu tentei... Fiz de novo o cursinho, o mesmo cursinho no centro da cidade, me sujeitei a fazer tudo de novo, pra reforçar, e prestei Academia de Polícia Militar do Barro Branco, pra ser oficial da Polícia Militar daqui. Quase entrei, mas não entrei. Daí eu desisti. Ih, daí fiquei numa crise; eu fui ao Anglo e falei: “Agora eu vou tentar uma faculdade”. Estava com a minha cabeça totalmente pirada. Foi a pior época, também, da minha vida aqui em São Paulo, porque no cursinho não tive amigos praticamente, era um ou dois, e daí eu fiquei pirado. E estava há dois anos morando com essas minhas primas, já estava com o saco cheio de morar em casa de parente, daí eu resolvi trabalhar. Eu falei: “Chega, eu não vou estudar”. Sabe aquelas crises? “Eu vou parar de estudar e vou ter uma grana pra eu ficar mais independente”. Aí eu fui trabalhar no Banco Safra, me colocaram numa área, eu não sei como chamam hoje em dia, mas na época era onde rolava grana. Na época era over. Câmbio, aquela coisa de investimento...
P/1 – Era overnight, não é?
R – Isso! Era aquela coisa assim: o computador sendo implantado no banco, então você tinha umas planilhas cheias de quadradinho, tinha os títulos lá, você punha dez, onze números nas planilhas e tinha um computador que o cara ficava digitando e a gente ficava numa mesa com dez pessoas colocando números. Números, números, números... Fiquei seis meses. Três meses depois... Nos três primeiros meses eu levei. Três meses depois eu comecei a ter piripaque. Toda vez que eu ia ao banco começava a turvar a vista, por que será? Ia ao médico...
P/1 – Turvava a vista?
R – Turvava a vista. Cabeça, não é? Fui ao médico, o médico falou: “Olha, você tem que pular fora do banco. Isso aí é tudo emocional”. Era a coisa que eu mais queria ouvir, entendeu? Daí eu pedi demissão do banco... Na época fui parar num psiquiatra, porque a minha prima fazia terapia... Não sei, na época, não sei que ano era, acho que 1980 e pouco, as pessoas faziam, não é Morgana? Faziam terapia com psiquiatra? Análise, não sei. E a minha prima fazia, ela falou: "Du, acho melhor você fazer, você está muito confuso". Daí eu fui e foi uma coisa muito legal. Fui assim, por ir. O cara fez um teste lá, um teste vocacional, não sei como se fala... Enfim, deu que ele falou: "Olha, você tem que tomar uma diretriz na sua vida". E eu já era meio... Não era tão novinho, tinha uns 23 anos, por aí, e estava perdidinho, completamente sem referencial do que fazer da vida. Ele falou assim: "Você tem que tomar uma diretriz e, pelo que a gente conversou aqui, você vai pra área de turismo ou vai para a área de criação. Pensa nisso, pensa com carinho, pá, pá, pá...". Parece uma coisa de louco, mas foi uma luz, porque eu saí daquele consultório, era tipo outubro, eu nunca me esqueço, o primeiro lugar que eu fui foi para o Anglo, porque no Anglo tinha a listagem dos vestibulares. Daí eu vi as faculdades de turismo, Anhembi Morumbi, e faculdades de artes, artes plásticas. E a coisa das artes plásticas, paralela a isso, sempre presente, só que eu nunca assumi, porque eu tinha um ranço daquela coisa do meu pai...
P/1 – Mas sempre presente de que maneira?
R – Porque... São Paulo, vamos supor, eu ficava muito na minha. Eu não tinha amigo no cursinho e a moçada daqui era muito diferente pra minha cabeça. No interior tinha turma, o dia inteiro com turma, saía final de semana, tomar cerveja em turma, turma, turma... Aqui não, as pessoas eram muito na sua. Os passeios eram muito diferentes, que pra mim era uma coisa de babaca, entendeu? Pelo que eu via no cursinho, o pessoal ficava na Avenida Ibirapuera, ali, todo mundo encostado em frente ao carro, paquerando... Eu achava isso muito babaca pra mim, eu não queria isso. Ir por ir, eu não ia. Então eu ficava no apartamento, minhas primas viajavam e daí eu ficava meio que rabiscando, fazia poesia. Tinha umas crises de depressão fortíssimas, chorava, tinha uma melancolia muito pesada, muito pesada. Eu me sentia sozinho, não namorava, então era uma coisa muito eu. Eu, Eduardo, Eduardo... Então era poesia ou era rabisco ou ficava vendo a noite na sacada, uma fase muito forte. Teve um lado legal que eu agitava com minhas primas, com meus primos, a gente saía muito, mas eu ia mais no embalo, não é que eu ia assim: "Pô, vamos sair, vamos em tal baile...". Mais no embalo. E daí eu fiz então as inscrições em três faculdades, fiz na São Judas Tadeu e tinha a faculdade Santa Marcelina, que era uma faculdade que minha prima tinha feito, que eu já conhecia, que eu ouvia falar que era uma faculdade muito específica para artes plásticas; apesar de ser faculdade de freira, era uma faculdade que tinha uma estrutura legal pra realizar um curso de artes plásticas, em termos de espaço físico, os ateliês e tudo o mais. E eu passei na São Judas Tadeu em Educação Artística à noite, fiz o vestibular da FASM [Faculdade Santa Marcelina] e passei. Nem cheguei a fazer da Anhembi Morumbi. Daí passei e comecei a fazer o curso de bacharelado em Artes Plásticas, foi a melhor época da minha vida, porque sabe aquela sensação que você entrou num lugar que você fala: “O meu mundo é aqui”? E me senti ridículo por um monte de coisa, falei: “Maior volta que eu dei e é isso aqui”. Tanto que o curso de bacharelado era só de manhã e eu ficava o dia inteiro na faculdade. A gente começava a aula às sete horas da manhã, acabava uma hora e daí... Nessa época eu já morava sozinho, morava numa kitnet, mas não trabalhava, então tinha ajuda da minha irmã, que estava numa situação financeira legal, meu cunhado me deu uma força...
P/1 – Foi sua irmã que te ajudou?
P/2 – Custeou...
R – É. Ela me deu uma força, um ano. Ela com meu cunhado. Porque a faculdade era cara, uma faculdade particular. Então eu tinha aquela vida ideal. Bom, o cara que sempre gostou de arte, mas camuflava, entra num meio artístico, porque era uma faculdade de artes plásticas, de música, de teatro, era um universo pra mim. Tinha tudo pago... Então eu estava vivendo de arte, praticamente. Estudava de manhã, hiper CDF, todas as aulas, almoçava na faculdade com os colegas e à tarde a gente trabalhava no ateliê, que é onde a gente produzia, porque a faculdade dava essa infraestrutura. Ia embora tipo sete, oito horas da noite, aí comecei a curtir morar sozinho; saía da faculdade, ia tomar choppinho com o pessoal da faculdade. Então assim, os cinco anos de faculdade foram os melhores anos da minha vida, porque foi a descoberta: “É isso que eu vou fazer, é isso que eu tenho que fazer”.
(PAUSA)
P/2 – Eu queria saber um pouco como foi a sua chegada em São Paulo. Você costumava vir a São Paulo, foi o primeiro contato, como é que foi?
R – Essa chegada em São Paulo foi assim... Eu não vou dizer que costumava vir a São Paulo... No interior, na época da adolescência, você sempre tem um sonho de chegar na capital. "Pô, que legal! São Paulo! Nossa, quando a gente vai a São Paulo?". Isso assim, aquela coisa, turma. Então com quinze – voltando um pouquinho – com quinze, dezesseis anos, algumas vezes eu pegava o ônibus Cometa, eu e um amigo meu, não vinha a turma toda não... Eu e um amigo meu e a gente vinha pra São Paulo, num sábado, assim... E vinha pra dizer que veio, nem sabia muito por que vinha, vinha pra dizer... Chegava lá em Sorocaba: “Ah, fui pra São Paulo...” (risos).
Sabe aquela coisa babaca: "Pô, a gente vai pra São Paulo hoje!". Sem um puto, não tinha dinheiro, só tinha dinheiro contado da passagem do Cometa, um cachorro quente, no máximo uma coca cola e voltava. Quando a gente trabalhava no escritório, daí a gente vinha pra comprar roupa, porque as roupas daqui eram mais legais, a coisa do interior, e a roupa era diferente, então você (saía?) no clube: "Olha, aquela camisa é diferente e não tem aqui". Mas isso foi pouco. Pouco tempo. Foi mais fogo de palha. Quando eu vim realmente pra fazer o cursinho, tudo mais, pra me preparar para os exames das carreiras militares da vida, tudo isso pesou muito mais, porque aquela coisa que você tinha de São Paulo pra mim começou a ficar mais sofrida, entendeu? Porque aí não era mais o lado de São Paulo, badalar, São Paulo bonito, dizer que era chique ir pra São Paulo comprar roupa, era o lado do São Paulo solidão, porque eu não tinha ninguém aqui. As minhas primas eram... Nossa, uma fazia Medicina, estudava "paca", a outra dava aula, namorava, a vida completamente independente, cada um tinha o seu horário... E eu ficava muito na minha e a solidão muito forte, não conseguia me enturmar no cursinho, as pessoas eram muito mais ousadas. Não sei, não conseguia sintonizar. Então eu sofri muito nessa época. Tinha muito medo da cidade, ao mesmo tempo que ela me fascinava ela me dava medo. A imensidão, a coisa da metrópole me fascinava, muito mais à noite, porque a noite era uma coisa que eu sentia muita solidão. Então tinha uma sacada no prédio, eu ia pra sacada e era a hora que a cidade estava mais silenciosa e eu ficava curtindo a noite mesmo, apesar de não ver as estrelas como era no interior, mas era uma coisa que me fascinava. De dia eu tinha um pouco de medo, sabe a coisa da violência? Vivia assim. Depois, com o passar do tempo, você vai ficando tão neurótico quanto. A cidade vai te sugando, você começa a acelerar teu passo, porque eu andava assim... Sabe aquela coisa, eu andava na Paulista pra pegar o ônibus para o cursinho, eu andava assim... Depois de um ano eu comecei a perceber que eu estava andando assim, entendeu? Eu falei: “Puta...”. E achava o máximo porque estava andando assim, até hoje estou andando cada vez mais assim e hoje eu acho triste, porque fiquei neurótico assumido. Daí essa coisa de São Paulo não foi muito legal não. Só no finalzinho do cursinho que eu comecei a agitar um pouquinho; no sábado a gente ia galinhar um pouquinho, mas mesmo assim a cidade me assustava, eu não me sentia à vontade em São Paulo, tinha muito medo de São Paulo. Era assim: eu saía com vontade, mas não me sentia à vontade quando saía. Chegava uma hora eu falava: “Nossa!”, sabe? Não tinha carro, os meus amigos também não tinham carro... A gente era “durango”, então não tinha ônibus certa hora, tinha que voltar a pé...
P/1 – Que bairro que era?
R – Eu morava no Jardins, eu morava com minha primas até então. Agora, depois que eu fui morar sozinho, que era a época que eu estava na faculdade, daí a coisa foi legal, era outra São Paulo pra mim, eu estava mais acostumado.
P/2 – Algum momento você disse assim: “Vou voltar pra Sorocaba”? Você teve esse...
R – Tive. Quando eu vim pra fazer o cursinho eu tive vários momentos de recuar, porque eu sentia muito a falta dos meus amigos. Eu não tinha grana pra... Por mais próximo que fosse Sorocaba de São Paulo e por mais barato que fosse a passagem, eu não tinha grana pra ficar todo final de semana indo pra Sorocaba. Não tinha. A grana era pra sobreviver na rotina do cursinho, lanche, aquelas coisas, tanto que no cursinho eu levava marmita, porque não dava pra comer na lanchonete todo dia. Eu acho tudo isso válido, na época eu ficava meio pra baixo, via as pessoas comendo nas lanchonetes... Eu não, com a marmitinha mesmo, aquela marmitinha quadrada, porque no cursinho tinha umas coisas assim, porque o pessoal ficava direto estudando, acabava a aula de manhã, ficava na sala de estudos, aquele bando de japoneses e eu lá no meio. E tinha um banho maria grande que as pessoas deixavam com nome. Essa época foi muito sofrida pra mim, porque eu falava: “Putz, eu aqui no sábado...”. Então quando eu ficava aqui, não ia para o interior, eu ficava deprimido, falava: “Putz, fulano está lá, eles estão lá naquele barzinho, estão no clube” – era uma vida completamente diferente daqui. Quer dizer, três horas da manhã, quatro, a gente ficava na praça da cidade comendo cachorro quente, que era um cachorro quente ______, nunca encontrei aqui e esse cara existe lá, que era aquele cachorro quente desse tamanho, que não era essa batatinha frita, chips, entendeu? O cara punha purê de batata, fazia com capricho. A gente ficava em volta do carrinho de cachorro quente... E não era só nós não, várias pessoas. A gente ficava batendo papo ali e eram todos mais ou menos com a mesma cabeça, não tinha nenhum galinha excessivo... A gente, na verdade, era muito ingênuo, mesmo com dezesseis, dezessete anos a gente era muito ingênuo, a gente se identificava muito. Depois que foi dispersando, alguns foram namorando, outros casando cedo e daí eu percebi que tinha que lidar com isso. Quando entrei na faculdade eu comecei a esquecer Sorocaba; daí eu esqueci Sorocaba.
P/1 – Foi intensa a faculdade?
R – Foi forte demais a faculdade... Foi um universo, tudo era novidade. Os contatos... Quer dizer, você entrava em sala, você falava: “Pô, não acredito que estou aqui”. Trabalhando naqueles ateliês, entendeu? Que você podia sujar a parede. Tinha um prensa pra você fazer gravura; eu mal tinha ouvido falar o que é gravura, xilogravura. Então era tudo muito novo pra mim, porque artes plásticas até então, pra um cara que vinha do interior, o que era? Escultura, pintura ou desenho, aquela visão bitolada, acadêmica. Quando você entra numa faculdade de artes plásticas então, a coisa era mais contemporânea, tinham várias técnicas, a escultura não era aquela escultura que eu sempre via nos livros, era escultura em pedra, era escultura em ferro, solda, tinha um universo de materiais; era um mundo de criar, pra criar, pra transformar, que daí casou muito com a minha infância quando eu me deparava nas tardes do ateliê da faculdade com aquela riqueza de material. Eu lembrava muito da minha infância quando mexia com barro, fazia barro na terra, no quintal. Então era uma coisa que eu tinha de resgatar a infância. Automaticamente me vinha cenas da infância. E o contato era legal, todos o professores eram fantásticos, todos artistas, então...
P/1 – Quem te marcou dos professores?
R – Uma professora fantástica. Até eu chamava ela de professora, porque... Sabe aqueles professores assim... Ela tinha um lado muito mãezona, entendeu? E não era comigo não, era com a turma e ela era uma... Porque é muito difícil: quando você entra numa faculdade de artes você tem um cara que passa a técnica pra você, que é uma coisa, ele pode até ser um artista, mas ou ele fica só na parte técnica, que é aquela coisa mais fria, mais mecânica... Ou ele tem o conhecimento técnico, mais a parte sensível. Além do mais ele sabe comunicar, passar esses dois lados. E essa professora – ela se chamava Maria Helena – era exatamente isso. Ela passava a técnica, mas ela tinha toda a coisa do feeling, da sensibilidade de cada aluno, então era uma coisa extremamente apaixonante. Ela dava aula pra gente de xilogravura, que é aquela gravura que você desenha na madeira e com (goivas) você vai cortando a madeira e, depois, você entinta com rolinho, com uma tinta tipográfica e põe o papel arroz, japonês, e faz sair uma impressão daquilo. Então, ela era uma pessoa que sabia passar a parte técnica e sabia trabalhar a sensibilidade da gente, pra gente não cair na coisa mecânica do fazer por fazer, que é a grande tendência, você acaba fazendo, fazendo e fazendo e daí? E essa produção que você tem aqui? O que você faz com isso? Você tem que refletir o seu trabalho – esse era um aspecto extremamente apaixonante que os alunos tinham com ela. E outro aspecto, eu com ela, era a questão que a gente tinha uma coisa de afinidade muito próxima, era uma coisa de pele, a gente vivia abraçado e é uma pessoa que me entendia, ela sacava que eu era muito na minha, que eu tinha o meu processo de criação, muito num cantinho, eu ficava num cantinho da sala fazendo meus trabalhos; enquanto a turma ficava toda espalhada eu ia num cantinho, puxava uma mesa e ficava ali, porque eu acho que o processo de criação é muito intimista. Então ela sacava tudo isso e o lado pessoal mesmo. Às vezes a gente ficava conversando na cantina e eu, como gosto de falar, vocês estão percebendo, começava a contar a minha vida pra ela, a trajetória da vida, e ela me entendia...
(PAUSA)
(...) Foi uma fase muito difícil, ela foi uma pessoa fundamental na minha vida para, enfim, abrir um leque do que a gente estava pensando em fazer, que a gente chegou a fazer e falou: "Conte comigo pra aquilo que você decidir". Então isso foi uma coisa que eu nunca esqueci. Depois ela foi pra Natal, largou as artes plásticas, foi morar em Natal e foi montar uma pousada, nunca mais tive notícias dela – no começo eu tive, depois nunca mais eu tive. O marido dela era extremamente ciumento, possessivo. Foi uma pessoa que passou na minha vida, na faculdade, no momento certo e que marcou minha vida como artista, como ser humano, como pessoa. Então foi uma pessoa que eu até hoje eu tenho... Ela me deu uma gravura dela uma vez, que ela deixou uma mensagem que era exatamente isso: ela falava que não bastava só criar, que o papel do artista era criar, lançar seu trabalho ao mundo, mas refletir sobre os conteúdos do seu trabalho, que esse era o papel do artista. Eu tenho essa gravurinha guardada dentro de um livro aí, que está até amarelada, o papel criou fungo e foi uma coisa que me marcou muito, isso. Como uma coisa de filosofia de artista, porque a tendência é do cara só ficar fazendo, fazendo, fazendo e não refletir, você começa a virar um cara mais pra parte técnica do que artista. Então essa foi a pessoa que mais me marcou na faculdade. Ah, teve a turma da faculdade também, que era aquela panelinha nossa de se reunir, a gente fazia camiseta, a gente se virava, fazia feira pra arrecadar fundos pra alguma exposição do final do ano dos alunos, fazia parte de comissão de organização de Semana de Arte. Eu abraçava as coisas da faculdade, assumia organização do salão, então eu atuei muito, não só como estudante, como... Enfim, participando mesmo da vida universitária.
P/1 – Como é que foi a sensação da primeira exposição na faculdade?
R – A primeira exposição foi a coisa da debutante, aquela coisa de você chamar a família inteira, todos que você lembrava, que passava pela cabeça, eu falava: “Tenho que convidar esse cara – nem que ele morasse no Sul do interior –, tenho que convidar pra ele ver o meu trabalho pendurado aqui”. Era uma coisa assim, aquela coisa de artista, de ego. Aí foi uma frustração, porque vida de artista é difícil, desde aquela época. (risos) A primeira exposição da gente era só os familiares, era pai e mãe de um, pai e irmã de outro, de vez em quando vinha a avó. (risos) Esse era o público. E todos com aquela pose, com aquele copinho de vinho do lado da tela. (risos) Então foi muito frustrante, uma coisa assim: “Nossa, é isso?”.
P/1 – Não foi nenhum crítico?
R – Não.
P/1 – Nenhum marchand?
R – Não, não. Os professores também... Aí era um papel importante da Maria Helena, porque ela era uma das poucas professoras que abraçavam os alunos, ela sabia que a presença do corpo docente era importante para os alunos que estavam ali. E, na verdade, era ela e mais uma que abraçavam a causa. Então existia uma distância dos outros professores. Na verdade eu não tive professores, eu não posso dizer que tive professores além dela que me marcaram como professor; quer dizer, teve a relação afetiva, tudo, que foi outra história, mas como professor eram poucos. A gente tinha mais, assim, castradores, não artistas, porque é complicado, você trabalha muito com a vaidade, tem aquela coisa do artista, então quando o professor sacava... Parece uma coisa muito ridícula de falar, mas quando o cara sacava ______ no último ano de faculdade, quando ele percebia que você estava deslanchando, o cara sempre dava um jeitinho de (ruído), entendeu? Porque mais cedo ou mais tarde você ia competir com esse cara no mercado de arte, principalmente se o professor era, assim, pouca diferença de idade. Então era uma área meio competitiva e castradora dentro da própria faculdade, nos últimos anos principalmente. E era uma batalha! Você tinha aquela coisa de mandar em Salão pra ganhar prêmio, então ia para o interior, Salão de Araras, Salão de Araraquara, tudo quanto era lugar pra tentar ter um prêmio, que é a batalha até hoje, só que num outro patamar.
P/1 – O seu trabalho na época era o que? Óleo?
R – Meu trabalho na época era... Aliás, não sei se vocês estão sacando, era tudo muito confuso, porque mesmo na faculdade era difícil de sacar qual era o meio de expressão, com que me identificava, porque tudo era muito gostoso, e a gente tinha que escolher... Como eu fiz Bacharelado em Artes Plásticas... No primeiro ano eu passei em Educação Artística, aí eu fiz um ano de Educação Artística. Não gostei. Porque Educação Artística dá uma visão geral de tudo, então eu tinha teatro, tinha música, e eu era péssimo em música. Meu forte mesmo era nas aulas de Artes Plásticas, aí eu tive que fazer vestibular de novo e optei por fazer Bacharelado em Artes Plásticas, que era um curso que você se aprofundava em todos os meios de expressão, era um leque muito grande. Na época eu não era muito ligado em pintura não, aliás, eu tinha uma dificuldade muito grande de pintar, de entender o processo de pintura, porque o meu professor era um castrador, eu diria. Era um cara que era técnico e não artista e não conseguia comunicar, não conseguia passar arte, então eu fiquei meio bloqueado com pintura. Depois eu comecei a ir mais para o lado do desenho, na época, na faculdade, para o lado mais gráfico. Então eu fui para o lado de desenho e de gravura; fazia gravura em metal, fazia gravura na madeira, que é xilo, fazia litogravura, que era gravura na pedra. Era sempre a coisa do desenho em algum suporte, fora o papel; basicamente era isso meu forte na faculdade. E no último ano você tinha que fazer um projeto e escolher uma dessas áreas, daí eu me especializei em gravura. Fiz minha exposição, só de gravura, desenho... Era um projeto meio... Um projetinho para os caras também se prepararem para um futuro mestrado, alguma coisa mais assim.
P/3 – Depois da faculdade você resolveu fazer o quê?
R – Daí, depois da faculdade... Quando você sai da faculdade... Foi um momento difícil (risos), porque você tinha aquela coisa meio paternalista, materna da faculdade, que é uma faculdade pequena até hoje, quer dizer, ela cresceu muito em termos de espaço físico, outros cursos, mas é uma faculdade pequena. Quando acabei eu falei: “E agora? O que faz Eduardo com tudo isso?”. Não tinha ateliê... Na época, no terceiro ano de faculdade, eu comecei a dar aula nas escolas da região da faculdade pra ganhar grana, porque até então eu já não tinha mais apoio da minha irmã, do meu cunhado, tive apoio no primeiro ano. E, à medida que a gente vai adquirindo bagagem na faculdade, eu achava que eu já estava aprendendo e tinha condições de dar aula pra criançada, foi então que eu comecei a dar aula numa escolinha pequeninha e comecei a ter a minha grana, a ganhar a minha primeira grana dando aula de artes plásticas pra criançada do maternal até quatro anos de idade – peguei logo de cara sem ter experiência nenhuma. Depois, no terceiro, quarto ano, peguei outra escola já maior, da primeira à quarta série, perto da faculdade, então trabalhava em duas escolas e era assim o dia inteiro. Eu estudava de manhã no último ano de faculdade, aí eu já não tinha mais o privilégio de ficar as tardes na faculdade trabalhando no ateliê e dava aula o dia todo. Acaba a faculdade eu continuei dando aula nas escolinhas, saí de uma, fiquei na maior e peguei uma outra escola também, as duas escolas particulares, porque rolou, não era porque também ganhava bem, rolou, era do lado da faculdade e fiquei lá. E daí comecei a dar aula o tempo inteiro, praticamente... Já morava com a Cidinha... A Cidinha, bailarina, então, ela também artista, tem aquela coisa da sobrevivência o tempo inteiro... Dos dois lados. “Pô, temos que ter isso fixo pra pagar aluguel, água, luz, pá, pá, pá...”. Então a única coisa que você tinha garantia, mesmo tendo formação em artes plásticas, era dar aula, porque você tinha férias duas vezes ao ano, tinha décimo terceiro e era registrado. E eu gostava, gostava pra caramba... Tanto que eu fiquei, trabalhei, quatro anos em cada uma dessas escolas. Tive uma bagagem de oito, nove anos, trabalhando com Arte-Educação nas escolas e assim, com experiência desde o maternal até o ginásio, peguei um pouco do ginásio. E foi que eu comecei a me sobrecarregar de aula, porque ganhava pouco, entendeu? Ganhava pouco, tinha aluguel pra pagar... E aquela coisa também de você ter um padrão de vida melhor, quer dizer, o que a gente ganhava, a gente pagava as despesas, mas não dava pra viajar, não dava pra fazer nada. Daí eu comecei a me dedicar muito pra escola, pra Arte-Educação, para as artes plásticas dentro da escola, mas chegou uma hora também que começou a pesar, porque eu pegava muita aula pra entrar mais grana, só que eu não tinha tempo pra fazer o meu trabalho como artista, e morava numa kitnet, não dava pra você fazer pintura, enfim, trabalhar na kitnet e não tinha grana pra dividir um ateliê. Então foi um ano que o meu trabalho ficou comprometido e começou a pesar de novo, porque eu tinha o curso, estava efervescendo a coisa das artes plásticas dentro de mim, mas não tinha como expressar isso, era uma coisa que me deixava extremamente amargurado. Daí pintou uma graninha e eu comecei a alugar uma sala na faculdade, porque pintou esse espaço na faculdade, de eles alugarem uma sala por algumas horas pra ex-aluno. Mas, como era uma faculdade de freira, a gente também não tinha muita liberdade, porque se respingava uma tinta a hora que você dava uma pincelada, a freirinha ia lá e passava um paninho. (risos) A coisa começou a ficar complicada e eu falei: “Putz...”. O meu trabalho era muito na experimentação, então eu gostava de experimentar materiais diferentes, fazia uns desenhos enormes de cinco metros em papel canson, me jogava no chão, tinha uma coisa muito corporal. O meu trabalho sempre teve uma ligação muito com o corpo, com o gesto... Daí pintou essa oportunidade e eu comecei a trabalhar nesse ateliê na própria faculdade. Até que então, em 1991, eu estava naquela, enfim... De arrecadar fundos pra gente ter um padrão de vida melhor e eu comecei a trabalhar muito, entrei num pique violento que eu dava aula de manhã e de tarde nas duas escolas a semana inteira e, como eu tinha a experiência de já ter tido aquelas vivências de promover... Fazer camiseta na faculdade, fazia cartão de natal e tinha uma bagagem muito legal de como ganhar dinheiro fazendo produtos, com artes plásticas. Então chegava a época de Natal, a época de Dia dos Professores, chegava pra diretora da escola e falava: “Olha, você não quer fazer cartão de Natal? Eu sei fazer uns cartões de natal hiper diferentes, pá, pá, pá”; “Vamos fazer camisetas pra Feira de Ciências?”. Lógico, pagando, não é? E começou a dar certo: tinha um evento na escola eu fazia camiseta; época de Natal a escola comprava cartão de Natal que eu fazia artesanalmente um a um, criava com o logo da escola, ia fazendo um a um, duzentos, trezentos, quatrocentos; Dia dos Professores, uma vez a escola teve o luxo de comprar cem gravuras minhas pra dar de presente aos professores. Foi o (must?). Aquele ano a gente foi viajar, eu e a Cidinha... Daí você começa a ganhar grana com a arte – que seria o ideal pra todo artista – e você começa a ficar cada vez mais ligado nisso. E até que eu estava muito... Trabalhei pra caramba em 1991 e daí eu me deparei com uma pneumonia. Foi a primeira doença grave que eu tive, porque até então nunca tinha tido problema, o máximo que eu tinha tido de hospital era uma apendicite, uma cirurgia. Peguei uma pneumonia, que mal percebia, já estava bastante avançada; fui num médico em agosto, num pneumologista, fiz um tratamento, curei a pneumonia com ritmo acelerado. Quando foi em outubro tive outra pneumonia, uma recaída; voltei no médico, me atendeu e tudo mais... Quando foi uma semana antes do dia quinze – e o ritmo da vida acelerando, dando aula, normal – eu comecei a sentir umas dores fortes aqui nessa região, que eles falam região do sacro, do osso sacro, mas pra mim era uma coisa assim... Eu sabia que eu estava cansado, eu sentia isso, mas não podia parar. Até que no dia quinze essa dor começou a aumentar. Eu comecei a me automedicar, eu tomei Cataflam... Nem Cataflam, eu tomei Voltaren. É. Fui direto no Voltaren... E a dor não passava, pelo contrário. Fui dar aula assim e aumentando. Uma dor horrível, uma agulhada forte pra caramba, uma dor aguda. Tomar Voltaren era a mesma coisa que água com açúcar. Daí na noite do dia catorze de novembro para o dia quinze eu levantei gritando à noite, eu não podia me mexer na cama. A Cidinha ficou em pânico. Até então a gente estava morando num apartamento um pouquinho melhor... E a gente não tinha nada praticamente. A gente não tinha telefone, a gente não tinha vídeo, não tinha nada. Só tinha mudado de casa, de uma kitnet pra um apartamento. Sempre tivemos um padrão de vida muito na batalha. Quando a gente comprava um vídeo a gente comemorava, porque sempre foi com muito sacrifício. Aliás, a minha vida inteira tudo o que eu consegui foi com muito sacrifício, nada foi muito fácil. Nada, nada, nada. Enfim, era aquela coisa de madrugada, ela acabou descendo, não tinha telefone, foi ligar num orelhão e – eu não tinha plano de saúde, nada –, ela ligou para os meus pais no interior, em Sorocaba. Aí lá vêm meus pais, naquela correria... E eu gemendo, gritando de dor e ela ali do meu lado sem saber o que fazer. Enfim, resumindo um pouco, fui parar em Sorocaba, de novo. Um barato, não é? Fui parar em Sorocaba.
P/1 – Você não teve nenhum atendimento aqui?
R – Não, porque ela ficou em pânico e... Até então a gente também tinha... Os amigos da faculdade todos dispersos, contato com os meus primos que moravam aqui, a gente ficou muito afastado depois que eu saí da casa deles, distanciou. Sabe aquela coisa assim, naturalmente... Eles ficaram na deles e nós ficamos na nossa.
P/2 – A família dela não era daqui...
R – A família dela é do Guarujá, então não tinha a quem recorrer aqui. E ela, no pânico, não teve a iniciativa de chamar um táxi, ficou em pânico mesmo. Daí fui parar em Sorocaba, meus pais me levaram, fui ao Pronto-Socorro, ______ no Pronto-Socorro e aquela dor e o médico achou que eu estava com cólica de rim. Começou meu drama, na área... Da coisa da dor, da hospitalização. Eu me lembro, aí fui parar na Santa Casa de Sorocaba, o cara falou: “Não, ele está numa crise de cólica renal, vamos dar Buscopan”. Injetou Buscopan, esperei ele um pouquinho, diminuiu um pouquinho, muito pouco. Fui embora pra casa. Não passava a dor... Não passava. Daí minha mãe começou a ficar nervosa, meu pai, a família inteira começou a ficar nervosa, e eu também, porque eu falei: “Pô, já tomei remédio, com Voltaren uma semana, alguma coisa há de errado”. Então fui ao médico, fui num nefrologista, um médico do Pronto-Socorro falou que poderia ser uma crise renal e como a região era aqui...
P/3 – Isso tudo em Sorocaba?
R – Isso tudo em Sorocaba. Como a região era aqui e eu nunca tinha tido cólica renal, eu não sabia direito. A minha mãe sempre teve cólica de rim, eu sei que ela assustava a gente, até porque é horrível mesmo. Fui num nefrologista, num hospital particular, tudo, o médico me examinou e falou: “Olha, vou dar esses medicamentos pra você. Se não passar, você volta, provavelmente eu vou internar você pra gente fazer uns exames. Mas tudo indica, realmente, que pode ser uma cólica renal”. O cara foi lá, aplicou as injeções; meia hora, uma hora depois... Minimizava, mas não diminuía que você dizia: “Agora vai parar, vai passando gradativamente”. Passou uma hora, duas horas, eu estava tendo cada vez mais dor, mais dor, mais dor. Entraram em contato com o médico, o médico falou: “A gente vai ter que internar você”. Então, dia 15 de novembro eu tive a minha primeira experiência de hospitalização. E era um hospital assim, eu não tinha plano de saúde, mas meus pais tinham, eles fizeram um rolo lá que me colocaram como dependente, mas era um hospital... Era um plano muito simples e eles optaram por me colocar num hospital que era a um quarteirão e meio da casa deles, no Mangal. Um hospital também antigo pra caramba, tétrico, feio, muito simples, mas era um simples não pela simplicidade, era uma coisa assim... Hospital baixo-astral.
P/1 – Pouco aparelhado...
R – Pouco aparelhado, escuro, uma coisa pesada mesmo. Como eu falei pra vocês, eu era ligado muito em luz... Daí eu fui no dia 15 e o que aconteceu? O hospital estava lotado e o quarto que eu tinha direito, pelo plano deles, era um quarto melhor, que tinha direito a visita, só que eu ia dividir com uma pessoa, não era um particular. Só que estava lotado o hospital e todos os quartos estavam lotados, eram todos pacientes meio que graves, doença crônica e não tinha muita previsão de liberar um quarto. Bom, daí eu tive que ficar hospitalizado, não tinha muito o que fazer. Acabei ficando hospitalizado numa enfermaria, que tinha eu e mais duas pessoas, então eu já acabei dividindo meu quarto com mais duas pessoas. A visita desse quarto era... As visitas das enfermarias eram duas vezes por semana, uma hora. Eram terça e quinta, uma hora, fora isso eu ficava na minha.
P/3 – Ficava sozinho.
R – E foi uma coisa muito forte, era a minha primeira hospitalização. O hospital era um hospital que eu já tinha ido visitar a uns anos atrás, uma amiga minha do curso de Contabilidade, do colégio de Contabilidade, que estava com leucemia e, quando entrei no hospital, já me lembrei dela... Quando fui visitar ela já não gostei do hospital, então eu já tinha uma história, uma antipatia pelo espaço do hospital, pelo espaço arquitetônico. Daí me colocaram ali e começou meu drama da hospitalização, que foi uma coisa marcante na minha vida, que é quando você entra com uma grande dor e os caras chegam, a enfermeira com aquela cara pesada: “E aí? Tudo bem? Vamos fazer exame?”. E aquela coisa assim, que você já estava... Por eu ser uma pessoa mais esclarecida, eu já entrei com ranço, que eu sabia, eu falei assim: “Eu vou sofrer aqui”. Quando eu vi a enfermagem eu já falei assim: “Eu vou sofrer aqui”. Sabe, pelo comportamento, pela abordagem, a maneira de me receber no quarto.
P/3 – Qual é a maneira?
R – A maneira era como se você fosse um objeto – eu sempre uso isso quando eu falo em palestra. Um objeto. Quer dizer: “Fulana! Chegou mais um. Tira a roupa. Enquanto a tua família não traz a roupa, põe. Ó!”. Joga o avental na cama, entendeu? E eu com a dor, gritando. Eu chorava muito porque era dor mesmo, era dor, eu não conseguia... Elas ficavam ali na minha frente, eu não conseguia parar em pé e queriam que eu me vestisse e eu percebia que elas achavam que era manha, como até hoje eu vejo isso nos hospitais: “É manha. É fricote”. Eu não conseguia, porque eu punha a ponta do pé no chão, eu gritava, porque me doía aqui. Uma dor aguda. E eu gritava mesmo, não era escândalo, era dor mesmo, dor física e a hora que elas... Elas queriam que eu me trocasse e, lógico, elas não estavam com paciência de esperar eu apoiar o pé no chão e ter condições de me trocar. Elas se comunicavam com o olhar, então... Lógico, eu sacava tudo isso porque eu era esclarecido. Até então as duas pessoas que iam ser os meus parceiros de quarto eram dois senhores e extremamente simples e passivos, então eu era ali o diferenciado e elas percebiam isso também, óbvio. Então elas se comunicavam, tipo assim: “Manha desse cara, entendeu? Filhinho de papai...”. Era uma coisa assim que passava mesmo. Até que então eu comecei a rodar a baiana... Eu ia ficar o paciente rebelde. Eu falei: “Olha, espera lá, vocês não estão entendendo...”, e eu chorava muito e daí eu comecei a sentir o que era a hospitalização, porque eu não tinha ninguém do meu lado pra me defender e não adiantava chorar, porque o choro, na verdade, era mais um elemento que irritava elas e que pra elas era mais um argumento, que um paciente estava tendo como estratégia para tentar resolver alguma coisa ali. Isso era extremamente agressivo. Extremamente agressivo. Então eu comecei a me sentir extremamente objeto, porque eu falei assim: “Estou com dor, elas não estão percebendo que estou com dor e estou sozinho aqui, como que eu vou me virar agora?”. E daí começou a minha maratona no hospital. “Vamos fazer um exame... Uma chapa de rim, uma chapa de raio-x”. Aí me deram umas drogas, só que eles queriam que eu fosse andando até a sala fazer o exame. Eu gritava, chorava e aquele escândalo porque todo mundo via, entendeu? Eu ficava entre a vergonha, porque... Eu ficava numa situação muito confusa, pra mim mesmo, de como lidar com aquilo e completamente desamparado.
P/3 – Até então não tinha aparecido nenhum médico?
R – Até então era eu e a enfermagem. Eu fui fazer o exame de raio-x e daí que elas começaram a se tocar que não era manha, porque elas me colocaram naquela chapa gelada... “Deita aí”, e quando sentei, quando me colocaram “delicadamente” naquela chapa, eu dei um grito horroroso, daí elas se comunicaram e eu percebi que elas se assustaram. Eu virei e falei chorando: “Vocês estão achando que é manha isso aqui? Vamos trocar de lugar?”. Elas ficaram assim... Até uma falava assim: “Calma, filho. Calma, calma, você está muito nervoso”; “Eu não estou nervoso. Estou com dor... E estou nervoso porque estou com dor e vocês não estão percebendo que eu estou com dor, vocês estão achando que é manha”. E alterado. Daí fizeram a chapa, me levaram para o quarto e eu com dor. Até que então veio o médico e começou a sessão ping-pong, porque à medida que eles iam pedindo exame, a cada dia que passava os exames davam resultados diferentes e eu me lembro que o primeiro exame foi a chapa de raio-x, pra ver se eu tinha algum problema no rim, exame de sangue, urina e além da dor, pra mim era muito constrangedor ter que dividir o espaço com mais duas pessoas que eu não conhecia e eram dois senhores: um com diabetes com a perna recém-amputada, o outro com uma pneumonia. Então eu ficava impressionado, porque eu com dor... Eu num leito, assim, desse lado, outro paciente assim... um “U” de leitos, eu ficava de frente pra eles, olhava pra ele e olhava para o outro... E eles olhavam pra mim. Um com pneumonia, que era um senhor muito sensível, já era a segunda internação dele ou terceira, um negócio assim, era um problema meio crônico dele e, como eu chorava muito, ele falava assim pra mim: “Calma, filho. Fica calmo. Tenta ficar calmo, não fique nervoso, vai passar, eu vou chamar...”. Ele estava aflito de ver o meu pânico ali, a minha dor, porque já era uma dor física e uma dor... Sabe? De solidão, de abandono. E eu pensava muito na Cidinha, pensava nos meus pais e sabia que eles estavam sofrendo porque eles não tinham acesso até mim, não podiam ter acesso, o que era outro problema. Então eu me preocupava pela minha dor, pela minha experiência e me preocupava com eles, o que eles estavam... Como era a experiência deles? Daí esse médico chegou pra mim, me examinou e falou: “Olha, não deu nada na chapa de rim, não tem nada a ver com cálculo renal...”, e foi quando comecei a passar por outros médicos, quer dizer, um médico começava a passar para o outro, porque nenhum deles... Até eu cheguei nessa conclusão: ou todos eram muito vagabundos, muito fajutos, ou realmente foi uma experiência que eu tinha que passar. (risos)
P/2 – Nessa mesma internação você ficou passando de médico em médico?
R – Nessa mesma internação. E nesse primeiro dia foi um dia muito terrível, porque à medida que... O dia passou rápido, porque até então, a hora que eu fui hospitalizado era quase duas horas da tarde, até fazer esses exames, quando me deparei, já era final da tarde e eu sempre tive uma relação muito melancólica com o final da tarde, desde a minha adolescência, pôr-do-sol... Até hoje. Hoje diminuiu muito, mas... Eu curto final da tarde, às vezes me dá um alto astral, às vezes me dá um baixo astral. Quando eu imaginava que ia chegando a hora do final da tarde, eu ia estar no final da tarde dentro daquele hospital e a noite ia entrar, eu não conseguia imaginar. Para mim era um pesadelo. Literalmente falando, pra mim era um pesadelo. Daí foi a pior noite da minha vida, porque o atendimento no hospital, à noite, trocava de turno, chegavam os enfermeiros mais mal humorados, mais frustrados, mais revoltados, mais insatisfeitos, tipo sete horas da noite, e era a hora que a válvula de escape deles eram os pacientes. Então tudo era muito pior à noite. A dor aumentava mais, a solidão aumentava mais, o atendimento era péssimo, se você queria água, se você queria... “Olha, dá um remédio pra eu dormir...”, porque eu já estava pensando na noite. “Você não vai tomar remédio pra dormir, nada. A gente não tem nada no seu prontuário, fica calmo, tenta comer legal e ponto final”. Era uma coisa muito seca. Daí eu começava a chorar, chorava o tempo inteiro, porque eu sou hipersensível, chorava o tempo inteiro, e aquele senhorzinho na minha frente, ele sempre me acompanhava, ele ficava só me observando e tentava me acalmar... Eu percebia que eu acabava meio que sensibilizando, ele estava se preocupando comigo a cada momento que eu ficava ali do lado dele. O outro não, o outro ficava assim, olhando assustado. Ele ficava só assim, observando, e daí começou meu drama, porque a noite foi assim, uma noite que eu escutava gritos de dor, aquela luz de penumbra naquele corredor, aquela lâmpada meio 220 e medicamento e dor, porque eu também tinha dor, porque a dor... Eles começaram... A droga, eu comecei a ficar... O que eles injetavam de droga em mim, pra minimizar a dor. E daí a coisa foi indo. No dia seguinte já veio o médico... Daí já veio meu pneumologista, que eu fui em agosto e outubro daquele mesmo semestre, que era do hospital também, ele também foi ver se de repente podia ser um vírus, uma sequela de uma pneumonia... Daí eu comecei a virar um objeto de pesquisa mesmo, que eu acho que é isso o que você vira. Você vira objeto no hospital. Para mim, hospital... Se você ficar hospitalizado, você é um objeto que as pessoas vão lá, cutucam, falam o que querem pra você, fazem o que querem e decidem por você também, porque é isso o que acontece, na verdade. É isso o que acontece: “Não quero tomar banho”; “Você vai tomar banho!”. Eu não queria tomar banho, pra vocês terem uma ideia. Por quê? O que acontecia? Eles me punham na cama... Eu voltava de um exame, eles me colocavam na cama, eu ficava assim, na cama... Porque eu sabia que se eu fizesse assim, eu ia gritar de dor. A própria dor, a própria... Tudo eu evitava pra ser menosprezado. Então eu não queria sentir dor, eu não queria que eles tocassem a mão em mim, que eles não eram nem um pouco delicados, então era tudo assim, tudo muito angustiante. Eu tinha que criar estratégias de como não dar pretexto pra eles tocarem em mim. Só que eu comecei a perceber que é isso a parte da hospitalização que eu acho muito pesada, é que você começa a ficar passivo, porque você cria uma estratégia pra não depender muito deles, só que o teu corpo vai te dando, o teu quadro clínico vai deixando você passivo, a própria doença vai deixando você passivo. Chega um ponto que você fala assim: “Se eu piscar vai doer”. Isso está implicando que você não vai ter condições de tomar banho sozinho, que você não vai ter condições de sentar pra comer e que você vai depender cada vez mais da enfermagem e da boa vontade da enfermagem e daí você começa a falar assim: “Eu não estou conseguindo fazer mais nada. Estou dependendo desses incompetentes”, entendeu? É a hora que complica tudo, porque é a hora que você fala: “Eu sou um objeto totalmente inanimado, porque eles é que vão decidir minha vida aqui”. Então eles iam dar banho, fazer barba... E daí era mais oneroso ainda, eu não queria comer, tinha que comer... Exame pra cá, exame pra lá... Cada dia que ia passando essa rotina ia se intensificando. Quando chegava o horário de visita eu não sabia se eu chorava de alegria ou chorava de emoção por ver meus familiares, porque a minha mãe é uma pessoa extremamente ligada comigo, até hoje, ela é assim: ela não se controla emocionalmente, então ela entrava no hospital já chorando. (risos) Isso pra mim era um drama, porque eu sabia que... No dia da primeira visita eu falei assim: “Já sei qual vai ser a cena. A minha mãe entrando aqui com as lágrimas... Eu sei que ela não vai conseguir disfarçar, porque ela não consegue disfarçar, eu vou ver ela sofrendo, eu vou ver meu pai tentando camuflar...”, meu pai é mais... Ele camufla a emoção dele, mas é mais perceptível. E pensava na Cidinha, eu falei: “Quero ver a cara desses três entrando aqui, juntando com a visita dos outros dois... Familiares”. Num quartinho assim, que era isso aqui: uma cama ali, eu aqui e o outro aqui. Era um “U” e uma janela no alto, a gente não tinha visão de nada, a gente só via parede. A primeira visita foi uma hora muito angustiante, porque minha mãe chorava e eu chorava, minha esposa chorava e meu pai com o olho brilhando, mas o italianão lá punha dois palitinhos de fósforo e não... Ele ficava assim, mas não chorava. Daí era aquela coisa de uma hora... Aquele cruzamento de fala no quarto e você tinha que... E eu, na verdade, não tinha nem vontade de vê-los, eu queria que eles ficassem lá, mas eu não queria também vê-los daquela maneira, porque me deprimia mais ainda. Era aquela coisa o tempo inteiro e daí começa você... O que aconteceu? Meus pais começaram a criar estratégias de começar a entrar com cash. Chegava para o enfermeiro: “Olha...”. Minha mãe dava caixinha de bombom, dava gorjeta para o enfermeiro pra melhorar o atendimento. Daí a coisa começou a funcionar melhor. Então a coisa mudava assim, entendeu?
P/3 – Isso a gente está falando de quanto tempo? Quantos dias você já...
R – Eu fiquei hospitalizado 25 dias. Na primeira semana foi um carma. É, porque estava tudo muito confuso pra família inteira, para mim, para os meus pais... Então eles também não tinham cabeça pra falar: “Será que se a gente entrar com grana vai melhorar isso?”. A primeira semana foi muito sofrida, foi pele a pele o sofrimento, eu com a enfermagem. Lógico que também nessa uma semana a seco com a enfermagem, sem que meus pais criassem essa estratégia de entrar com caixinha, com gorjeta, começaram a surgir alguns enfermeiros, um ou dois, mais sensíveis. Até – nunca me esqueço – um deles era gay, ele falava comigo... Ele que dava o banho em mim, então ele era totalmente aberto. Ele me olhava muito, aquelas coisas, eu ficava hiper constrangido, mas era a pessoa mais doce que tinha no hospital, a pessoa mais carinhosa. O meu banho era no leito e ele tratava você com carinho mesmo, sabe? Fazia a barba com carinho e tinha mais outro rapaz que era mais carinhoso. As enfermeiras eram mais abrutalhadas, extremamente abrutalhadas. Daí era aquela coisa que você percebia uma coisa mais light no terceiro, quarto dia, mas ainda tem aquela coisa pesada. Para mim era tudo muito agressivo, entendeu? Nunca me esqueço de um dia... Aí começa a entrar o senhorzinho, que ficava...
P/3 – Isso sem diagnóstico...
R – Tudo isso sem diagnóstico. Tudo isso, assim...
P/3 – Fazendo exame...
R – Exame pra lá, exame pra cá...
P/2 – A dor...
R – A dor era dor assim... Sei lá que remédio eles me davam, passava o efeito do medicamento era dor de novo. De repente, no dia seguinte, apareceram dois ortopedistas lá: “Oi, nós somos fulano de tal. Dá pra você levantar um pouquinho?”. Aí eu falei: “Não vou levantar”; “Não, mas você tem que levantar, porque a gente quer examinar”. Eu falei: “Não tenho condições de levantar”; “Mas a gente te ajuda”. Me puseram no chão, eu quase desabei nos braços dos dois. Daí os dois assim: “Não, porque a gente está pensando em fazer uma pulsão, pá, pá, pá...”. Aí minha família e principalmente mais minha esposa, porque meus pais são hiper simples, eles estavam transtornados, a única pessoa que estava transtornada mas tinha mais razão era a minha esposa, era a Cidinha, então ela falou: “De jeito nenhum que vocês vão começar a fazer pulsão nele”. Porque eles queriam... Eles estavam achando que era alguma coisa no osso, só que eles não estavam levando muito em consideração a história de pneumonia, e o pneumologista estava considerando que poderia ser alguma virose, algum vírus, sei lá, que ficou incubado no corpo, nessa região. Daí a coisa foi intensificando, era ultrassom pra lá e tinha os exames que eram particulares, então eu sabia que meus pais não tinham grana, meu pai emprestava dinheiro da minha tia, eu sabia de toda essa história. Era dor pra tudo quanto é lado, era dor de bolso... Eu falei: “Puts! Eles vão batalhar isso...”. Olha, era um transtorno. E eles, lógico, começaram a ver o melhor pra mim; se o ultrassom do SUS demorava 15 dias pra me levarem fazer num outro hospital, porque lá acho que não tinha se não me engano, então eles pagavam cem reais, sei lá, pra um médico particular que ia com o aparelhinho à noite, via e não tinha nada.
P/3 – O que você achava que você tinha? O que você pensava sobre...
R – Morgana, para mim era um pesadelo ainda. Eu, sinceramente, não imaginava nada, o que eu tinha. Eu só tinha uma interrogação na minha cabeça, eu não entendia o que eu estava fazendo ali, porque, como eu falei pra vocês, foi da noite para o dia, praticamente. A dor forte, que eu gritei de dor, foi do dia 14 para o dia 15 de novembro. Então foi uma coisa assim, que... Eu não sabia, eu só sabia que eu queria sair dali o mais rápido possível e isso ia me agonizando cada vez mais, porque paralelo a isso eu comecei a ter um monte de complicações. Então, além da dor, da dor aguda, eu tinha uma dor... Eu tinha diarréia, eu vomitava, era tudo, eu tinha um monte de coisa ao mesmo tempo. E o que acontecia? Como eu não podia me locomover, eu vomitava e não conseguia apertar a campainha, então eu ficava com aquele vômito e eu sempre fui um cara encucado com vômito. Quando eu bebia, achava que ia passar mal, já tinha pânico só de saber que eu ia vomitar. Eu não lido bem com vômito. Então eu vomitava e ficava com aquilo, assim, meia hora, aquele cheiro azedo aqui e ninguém vinha me trocar. Então você tinha que lidar com isso. Até que eu tinha as minhas crises de diarréia e ninguém vinha me limpar e daí eu nunca me esqueço disso, porque eu chamava, chamava, chamava... Isso foi a coisa mais marcante para mim da hospitalização... E o Seu Jorge, que era esse senhor que me observava muito, ele começou a ficar meu amigo, entendeu? Eu nem tinha muito saco, eu não queria nem ouvir ele falar. Ele tão doce e eu ali, eu estava tão amargo e ele conversava comigo, ele tentava minimizar o meu sofrimento e eu mal conseguia, porque eu estava muito mal mesmo, emocionalmente, preocupado, com a dor e tudo mais. Eu nunca vou esquecer desse gesto, é uma coisa que eu falo poucas vezes: eu, com diarréia à noite, turma da noite da enfermagem, imagina que eles onze horas da noite iam vir me limpar e dar um banho. Então eu nunca vi um gesto mais humano, de solidariedade, na vida. Esse homem levantou, foi ao banheiro – que a gente não tinha banheiro no quarto –, pegou um monte de papel higiênico e ele me limpou. Eu ficava entre o constrangimento... Eu vou ser bem franco, mas era um constrangimento assim, tão pequeno, que pra mim... Era assim... Eu não sabia se beijava aquele homem pelo gesto dele, porque eu não sei se eu ia ter coragem. Ele, literalmente, me limpou. Depois que ele tirou o grosso, ele foi, com muita dificuldade, chamar a enfermagem pra me dar um banho, porque até então o que ele fez? Ele me limpou, tirou o excesso, literalmente falando, depois pegou um papelzinho molhado e tirou o excesso da pele, então isso pra mim foi uma experiência que... Sabe? Eu falei assim: “Puta merda!”. Eu contei isso para os meus pais, meus pais ficaram assim... Nossa, foi uma coisa muito emocionante e ele era um cara assim... Ele tinha uma luz especial, ele era um cara... Ele era espírita, entendeu? Então ele era uma pessoa de luz, realmente. Era uma pessoa especial que eu acho que era um anjo da guarda. Era não, ele foi um anjo da guarda meu no hospital, porque se não fosse, o outro... O outro, ele não tinha perna, como que ele ia me... Então era um caos. Até então, no quarto ao lado tinha um paciente com AIDS, daí começou a história com a AIDS. Eu falei: “Puts!”. Era o único quarto do hospital que tinha um leito pra AIDS. A gente ouvia o tititi da enfermagem, porque a nossa enfermaria era grudada. Então o enfermeiro que ia fazer a barba, ele tomava todas as precauções comigo, punha luva, pa, pa, pa... E lógico, eles acabam um dando banho, outro fazendo a barba, eles acabavam comentando sutilmente do paciente do lado, que estava numa fase terminal e tudo mais. A gente escutava só o barulhinho daquele aparelhinho... Ti... Ti... Dia e noite. Aquilo era angustiante, porque você sabia que o cara estava morrendo, mais o tititi da enfermagem, eu falei: “Puxa, que coisa!”. Então misturava tudo na minha cabeça. Até que esse cara morre e eu já estava há uns quinze dias no hospital, exame de sangue um dia dava “x”, no outro dia fazia e dava “y”, então os médicos estavam completamente empepinados com o meu diagnóstico, com meu possível diagnóstico. Já tinha passado por um nefro, por dois ortopedistas, por um pneumologista, por um clínico geral... Daí acho que os espertos tiveram uma luz de chamar um infectologista. Mas, até então, voltando um pouco no paciente do quarto do lado, esse paciente morreu e um dia depois eu já estava um pouco melhor com as minhas dores e tudo mais, estava me alimentando bem... Comia pra caramba, porque eles davam o soro e aquilo lá me dava uma fome! Eu repetia a bandeja pra vocês terem uma ideia. Eu até comecei a engordar depois da fase crítica, do começo da internação. Daí, um dia, no final de tarde, uma tarde bonita, isso eu acho que era início de dezembro, verão, chega um enfermeiro e fala: “Eduardo, a gente vai mudar você de quarto”. Até então eu já estava tomando banho em cadeira de rodas, pra vocês terem uma ideia. “A gente vai mudar você de quarto e você vai para um quarto melhor”. Lá tudo bem... Eles me pesavam todos os dias e eu nunca me esqueço que um dia eu fui tomar banho... Porque pra você tomar banho, como não tinha banheiro no quarto, você tinha que andar o corredor inteiro do hospital de cadeira de rodas, o enfermeiro me levava, daí você entrava numa enfermaria maior que a minha, que tinha oito ou dez leitos... Era uma coisa também muito constrangedora... Tudo é muito constrangedor, na verdade, porque o enfermeiro que ia dar banho em mim era o cara que era gay, então era uma enfermaria masculina e os caras maliciavam pra caramba, porque eu entrava no banheiro com ele e ele dava banho mesmo em mim, mas nunca me faltou com respeito, nada. Então você via aquela coisa meio assim do deboche com o cara da enfermagem: “O que os dois estavam fazendo?”. Era uma coisa... Tudo muito pesado. Nesse dia, no final de tarde, eu fui para o quarto e quando vi que era aquele quarto... Eu não acreditava. Eu falei assim: “Realmente estou vivendo um pesadelo. Eu acho que eu não dormi naquela noite do dia 14 para o dia 15, estou tendo pesadelo até agora e eu não acordei ainda. Não é possível”. E isso sem preparação alguma; não veio um médico falar comigo: “Olha, nós vamos mudar você de um quarto, não fique preocupado, porque pa, pa, pa...”. E nem a enfermagem me passou isso: “A gente só vai mudar você de quarto”. Lógico, eu sabia que eu estava entrando no quarto do cara... Que era o único leito de AIDS do hospital. Isso foi uma coisa que... Daí pirou tudo na minha cabeça. A coisa pesou, pesou pra caramba, porque esse enfermeiro me deixou no quarto e falou: "Aqui você vai ficar melhor, é um quarto... Assim, tem um banheiro pra você, você vai ficar sozinho, você vai ficar mais confortável". Eu falei: "Mas, escuta! Aqui não era o quarto daquele paciente com AIDS?". Ele falou: "Não, era outro quarto". Eu falei: "Puts, esse cara está me subestimando...". Ele saiu, eu já estava assim... Eu não acreditava. Não deu nem tempo de pensar no que eu poderia estar fazendo ali, entrou uma enfermeira, com roupão, luvas... Um roupão até aqui, máscara, touca, uma caixinha amarela que até hoje eu vejo no Emílio Ribas, que é a mesma pra objetos contaminados... Eu olhei assim pra ela... Ela entrou... Ela chegou perto de mim e falou assim: "Fique calmo, tá? Eu só vou tirar sangue de você". Ela chegava perto de mim, parecia que eu ia, realmente, contaminar ela. Ela fazia assim... Ela punha a seringa na veia, ela... Eu falei: "O que está acontecendo, fulana?". Nem lembro o nome dela. E era uma enfermeira extremamente CDF. Ela falou: "Nada, eu vou colher sangue de você de novo, a gente vai fazer um exame com você...". Eu falei: "Mas por que estou aqui?". Daí eu comecei a ficar histérico, eu comecei a ficar agressivo: "Mas o que está acontecendo? Não vem um médico aqui falar comigo? Por que estou aqui?". E comecei a questionar e ela: "Fica calmo, Eduardo. Está tudo bem...", e fechou a porta, foi embora... Mais um final de tarde, outro final de tarde... Minha família, eu não tinha tido contato até então e não sabia de nada. Foi a pior noite da minha vida além da primeira noite da hospitalização. Daí eu já estava num outro degrau. Eu falei assim: "Estou sozinho num quarto que é o único de AIDS no hospital... Estou com AIDS! Simplesmente é isso! Estou com AIDS! Ninguém me falou nada! E eu estou com AIDS!", entendeu? E chorava, chorava, chorava, chorava... Não acreditava. Mas eu falei: "Espera lá! Mas por que estou com AIDS? Eu não fiz nada de errado, eu transei e usava camisinha, nunca experimentei droga, mas estou com AIDS! Estou aqui, só pode ser isso!". E aquela noite foi a pior noite da minha vida, de ______, porque eu não dormia. Eu não dormia e chorava a noite inteira... Eu falei: "Eu acho que é castigo", porque eu olhava para o teto, as janelas lá eram altas, então você via só um pedaço do céu, você não via horizonte, você via o céu e... Como era o Mangal, ali também via um pé de manga. E aquela luz assim, quarenta watts, pra economizar energia... Tudo escuro, sem televisão, sem nada, nada, nada, nada. E aí eu falei assim: "Estou com AIDS, só pode ser isso". E chorei a noite inteira, não dormi a noite inteira, perguntava pelo enfermeiro da noite, pedia remédio, eu falei: "Eu quero dormir, quero Lexotan"; "Não, porque eu não posso dar...", aí eu comecei a bater boca com o enfermeiro da noite, ficou aquela coisa de você ser o rebelde. O paciente sempre é o rebelde, a enfermagem nunca é. Eles achavam que eu tinha de estar tranquilo, não tinha que questionar nada, tinha que estar tranquilo. Até que chega o dia seguinte, pra completar – o hospital se chamava Hospital Evangélico, acho que chama até hoje Hospital Evangélico –, chega um pastor no meu quarto: "Tudo bem, como vai? Pa, pa, pa...”. Eu olhei assim pra ele... Ele falou assim: "Vamos fazer uma prece?". Eu falei: "Eu não acredito... O senhor pode parar por aí, eu não quero prece". Daí eu já estava rebelde. "Eu não quero prece". Até que só pro meio dia que chegou um médico pra mim, que já era o médico infectologista, até ele era... Provavelmente ele devia ser um R3 [Residente de terceiro ano] do Emílio Ribas, porque ele se apresentou como um médico que atuava no Emílio Ribas, ele chegou pra mim e falou: "Tudo bem, Eduardo? Meu nome é...”. Engraçado, nem lembro o nome do médico. "Meu nome é fulano de tal. É o seguinte: eu gostaria que você fosse meu amigo e que nós tivéssemos um papo bem aberto. Você é homossexual?". Eu fiquei assim, né? Eu falei: "Eu não entendi o que você falou". Ele falou: "Você é homossexual?". Eu falei: "Não, eu não sou"; "Você já teve alguma relação homossexual? Já teve contato com droga? Uma vida promíscua?". E começou a fuçar minha vida e eu fazia assim: "Não, não, não...". Daí eu fiquei histérico e falei assim: "Onde você está querendo chegar?"; "Não, porque existe uma possibilidade que você esteja com o vírus da AIDS. Até então, nesses tantos dias, a gente tem feito exame de sangue, coletando seus exames e não está batendo... Quer dizer, o único exame que resta eu pedir é um exame anti-HIV. Então você vai ter que ter paciência, vai ter que ficar calmo...". Provavelmente, na época, era 1991, os exames demoravam um pouco. "Você vai esperar uns vinte dias pra saber a resposta do exame, mas fique tranquilo...". Vinte dias. "Fique tranquilo. Fique calmo. A gente está aqui do teu lado pra dar uma força..." e tudo mais. E me examinou, viu se eu tinha gânglio, enfim, e daí começou. Daí vinha outro médico ______, você começa a virar objeto de pesquisa, literalmente você começa a virar... Cada dia passava um médico. Só naquele dia à tarde que eu vi minha família, minha esposa, daí os meus pais chegaram pra mim, a Cidinha, falaram assim: "Fica tranquilo, eles colocaram você aqui porque eles estão desconfiados que você esteja com hepatite". Eu falei: “Hepatite?”, porque realmente eu estava ficando amarelado, mas... "Hepatite? Mas 25 dias para ter um sintoma de hepatite?"; "Não, fique tranquilo...". Eu estava amarelado mesmo, mas era... Daí que eles descobriram... Existia uma possibilidade de eu estar com hepatite medicamentosa por excesso de medicamento. Mas até então, eles tinham... Eu fiquei numa situação extremamente constrangedora com toda a minha família, porque eu sabia que o médico já tinha falado dessa possibilidade e foi uma coisa que muda teus valores, entendeu? Porque, o que acontece? Por mais que você esteja com a sua consciência tranquila, naquela noite que eu fiquei sozinho naquele quarto, eu voltei minha vida acho que uns dez anos atrás. Eu era um cara que tinha uma ligação muito distante com AIDS, o pouco que eu ouvia de AIDS era na época do carnaval, como se ouve até hoje, as campanhas de AIDS são sempre na época do carnaval e só. Então, era uma coisa impalpável pra mim ______. “Será que com fulana... Mas será que o vírus existia nessa época?". Eu comecei a pensar que época que surgiu o vírus da AIDS... Quer dizer, eu não estava com AIDS, mas eu estava assim... Tudo à minha volta estava sugerindo que eu estava com AIDS. Daí você começa a pensar nos seus valores em todos os seus sentidos, porque mexe com tudo, mexe com tudo, valor moral... Moral, muito, muito, muito. Eu nunca me esqueço, depois dessa experiência, o primeiro dia da visita nesse quarto, quando entrou a Cidinha e os meus pais, por mais que eu estava com a minha consciência tranquila, eu juro pra vocês, eu fiquei com vergonha de encarar eles, pra vocês verem o peso do negócio. Eu olhava assim, entendeu? Um negócio... Sabe aquela coisa assim, o olhar meio pra baixo? E foi a coisa mais bonita que eu tive porque eu sempre admirei meus pais, com toda a simplicidade deles, mas o olhar deles era de total serenidade, entendeu? Eu percebia no fundo deles, do olho de cada um deles, mesmo da Cidinha, que eles tinham certeza que eu estava tranquilo. Se eu adquiri algum vírus, era por alguma injeção mal aplicada em algum lugar, em alguma farmácia, injeção de gripe, porque eu também ia muito assim... Lógico que eu ficava de olho se era descartável, não era tão leigo assim, mas em nenhum momento eu senti um olhar crítico, um olhar... Sabe? "Você nos traiu, você pisou na bola", pelo contrário, era cada vez mais carinho, carinho, carinho. E nesses 25 dias minha rotina era exatamente essa, eles davam caixinha para os enfermeiros para melhorar o atendimento; como eles sabiam que a minha queixa à noite era muito forte, a minha mãe... Eles compravam pizza, davam pra enfermagem, daí tudo começou a rolar maravilhosamente, entendeu? Até quando eu estava com insônia, eu falei: "Quero um Lexotan", vinha o Lexotan. Só faltava pedir suco de laranja, vinha suco de laranja. Daí é foda, não é? Eu acho.
P/3 – O que te deu força nesses dias que você estava internado, com tudo isso acontecendo? O que te dava força pra poder passar por tudo isso?
R – Sinceramente, eu não sei se tinha força. Eu não sei se tinha força. Eu acho que simplesmente passei. Eu não me vi com força. Os pacientes que eu atendo no Emílio Ribas eu vejo com força. Eu não tive força, de maneira alguma. Eu passei por aquilo, mas eu não tive força.
(PAUSA)
P/3 – Então, a gente estava conversando um pouco ______ que te deu força pra passar por isso. Você tinha uma atitude de procurar brigar, de falar dos seus direitos, tinha uma energia aí, isso que estou chamando de força.
R – Eu acho que tinha, mas era uma questão meio de sobrevivência básica ali, eu não sei se eu tive força. Eu não vejo força só por esse lado, eu acho que força é você estar ali... Deixar a coisa do hospital acontecendo e você criar uma estratégia de saber lidar com isso, enquanto você está sendo objeto ali de “n” interrogações. Então eu sinto força assim nos pacientes do Emílio Ribas. Eu acho que eles têm força, aliás, eu acho que eles são geradores de força, porque você chega lá, você vê um cara carente em todos os aspectos, está há dez ou doze anos com AIDS, muitas vezes não tem pra onde ir, quer dizer, às vezes o hospital é um lar pra ele, porque ele tem a oportunidade de comer... Às vezes ele está totalmente desgraçado, vulgarmente falando, e o cara está lá pintando, com o radinho de pilha, com o evangelho do lado... Eu acho isso força. Eu tiro o chapéu pra essas pessoas. Eu tiro o chapéu porque às vezes eu estou lá trabalhando, esses pacientes... “Eu não acredito que eles estão pintando! Com tudo isso que está ao redor deles e tudo isso que acompanha eles há dez, oito anos...", entendeu? E mais uma história de vida anterior, de miséria, de pobreza, de família abandonar. Eu não, eu tive “tudo” do lado, a minha família com o olhar me apoiou... Se eu estivesse com AIDS... Na iminência de estar com AIDS. Eu tive uma pessoa que me limpou, agora eles não têm isso. E vivem, pintam, desenham, então... Acho isso lindo.
P/3 – O que você aprendeu nessa experiência que você viveu?
R – Eu aprendi como que a gente é frágil e como às vezes não vale a pena ser... Sabe? Arrogância, essa coisa de poder que as pessoas adoram, puts... Eu não sei, eu senti tão de perto a fragilidade! A gente é muito frágil. Eu acho que a gente é muito frágil, a gente não tem consciência disso ou tem medo de ter consciência que a gente é frágil. É uma fragilidade que é um alerta, pra mim foi uma alerta. É isso. O que eu aprendi disso é que foi um alerta... O quanto que a gente é frágil e a qualquer instante, da noite para o dia, literalmente falando, você se depara no leito de um hospital, vira objeto, as pessoas ficam te cutucando e questionando e daí, dependendo daquilo que você possa ter, em termos de doença, você passa por avaliações das pessoas, de comportamento, de tudo, então a gente é frágil, a gente tem uma fragilidade que é valiosa; ao mesmo tempo que é valiosa, acho que tem que ser muito bem... Ter consciência dessa fragilidade, não é? E às vezes a gente não tem, a maior parte das pessoas não tem. Pelo contrário, hoje em dia eu sinto as pessoas muito onipotentes, cada vez mais.
P/3 – Quando você fala que foi um alerta, foi um alerta pra você rever alguma coisa?
R – Nesse sentido é um alerta pra você rever os valores, um alerta também que da dor... A dor pode ser um alerta, o sofrimento pode ser um alerta pra te chamar pra alguma coisa, pra você criar alguma coisa. Aí entra mais no caso do Projeto que, com certeza, se eu não tivesse essa experiência, o Projeto Carmim não existiria. Então eu acho que a dor é um alerta pra gente perceber a vida, porque às vezes a gente está vivo, mas a gente não percebe que estamos vivos. E está aí, mecanicamente vivo, mas a gente não percebe o que é a vida. Daí quando você fica frágil, diante de um estado de dor: "Alerta! Pensa nisso!", eu sinto assim, entendeu? Uma vozinha no ouvido. E daí é delicado você pensar nisso, porque você está no mundo rodeado de pessoas e... É uma questão de postura mesmo, porque você percebe que as pessoas não estão ligadas nisso e você teve uma vivência... Então, quando você trabalha no hospital a coisa fica também delicada, porque você vê muita coisa errada o tempo inteiro e coisa que você viveu na pele e que você tem que ter um joguinho de cintura pra não entrar na área do outro, mas... Sabe? "Pô, atende melhor esse cara, que hoje você está aqui trabalhando, amanhã pode ser você". Acho que não tem coisa mais simples do que isso. Isso todos nós temos consciência, só que muitos não querem ter essa consciência, eu acho que é até uma defesa, uma resistência. Às vezes eu fico olhando uma enfermeira atender mal um paciente, eu tenho vontade de ficar aqui e falar: "Escuta, você sabe que amanhã, de repente, pode ser você?". E pode, não é romântico isso. Pode ser. Mas, tem aquela coisa: "Eu, não. Comigo nunca vai acontecer". E mesmo com médico, com médico é pior ainda.
P/1 – Eduardo, eu queria voltar um pouquinho. Você estava contando a história, mas ela ainda estava no meio, que foi o momento que você encontra com a sua família, não é isso?
R – No quarto?
P/1 – No quarto, que eles falam que é um diagnóstico de hepatite, não é?
R – Isso. Nesse momento foi muito importante pra mim, foi muito forte, porque, como eu falei, eu senti neles, nos três, na minha esposa, nos meus pais, que era um momento de... Que eles estavam ali do meu lado, mesmo. Eu sabia que eles estavam... Eu estava um pouco amarelado, mas eu percebi que eles estavam querendo minimizar um pouco a minha angústia, minha ansiedade de saber que estava na mão de um infectologista. Daí eu realmente estava com uma hepatite, nem o tipo de hepatite conseguiram descobrir, provavelmente tenha sido uma hepatite medicamentosa, mas o período de incubação do vírus da hepatite... Quando eles foram colher o exame de sangue num outro momento, eles não conseguiram constatar, já tinha passado o período que o vírus incubou. Então eu não sei que tipo de hepatite que eu tive, só sei que eu não posso doar sangue. Não sei se foi hepatite B, a mais forte, a mais fraca... Até nisso a coisa foi muito devagar, em termos de atendimento. Daí eu tive alta; assim como fui parar no hospital repentinamente, tive alta repentinamente.
P/3 – ______ A hepatite foi consequência do próprio tratamento que você recebeu dentro do hospital?
R – Provavelmente sim.
P/3 – Uma história paralela à dor que você teve?
P/2 – Não se tem certeza, não é?
R – É. O médico infectologista – que foi o último que me atendeu – acha que a hepatite... Eu estava com sintomas assim: amarelo, o olho amarelado, mas provavelmente pelo excesso de medicamento nesses vinte e poucos dias, porque era droga o dia inteiro, o dia inteiro, noite e tudo mais. Depois que ele foi ver, colheu exame pra saber que tipo de hepatite, já não deu mais pra saber...
P/2 – Porque já tinha passado...
R – Porque já tinha passado, entendeu?
P/3 – Mas não tinha nada a ver com a dor que você teve...
R – Não, não. Com certeza, era uma coisa que foi consequência da minha permanência no hospital.
P/3 – E essa dor é que não teve diagnóstico...
R – É. O mais triste de tudo isso... Eu acho que tem um lado tristeza, hoje eu nem lembro nisso, mas no começo era muito difícil porque, como eu estava falando, você entra no hospital repentinamente, sair repentinamente, que foi como aconteceu, também implica uma série de desconfortos pós-hospitalização, porque você... Primeiro que eu tive que ficar esperando vinte dias o resultado do exame anti-HIV, então eram vinte dias que eu fiquei acamado ainda, só que em casa e perto do Natal, quer dizer, eu estava acabado, sinceramente, eu me via... Minha família estava pra cima, ou pelo menos disfarçando. Mas eu estava acabado. Estava perto do Natal, eu não gosto do Natal, não gosto do final de ano, nunca gostei desde criança, mesmo com presente e tudo, eu não gosto. Eu acho que tem uma coisa triste, o Natal e o final do ano. Pós-hospitalizado, ainda de repouso, em casa, pertinho do Natal... Meus pais querendo levantar a moral, a Cidinha também, criar um astral de Natal, de ceia... Eu lá na cama, esperando o resultado de um exame... Então teve um processo de dor também. Parece que é só dor, dor, dor, mas é verdade, é realidade. Tem um processo de dor pós-hospitalização. É impressionante que parece que a dor fez questão de me acompanhar mais uns seis, sete meses, porque depois dos vinte dias eu tive o exame negativo, não estava com AIDS e fiz até aquele exame mais sofisticado que não tem como errar, me esqueci o nome agora... Só que a minha dor, a dor que me levou ao hospital, ela continuava como se fosse uma dorzinha de dente: todo dia, noite, eu ficava com aquela coisa pulsando nessa região. Isso foram meses, seis, sete meses... Eu me sentia pisando em cascas de ovos o tempo inteiro, então eu espirrava, olhava para minha esposa assim: "Será que eu vou ficar doente, será que eu vou pegar gripe?".
P/2 – Mas isso você não pensou de procurar um médico em São Paulo, vir no HC [Hospital das Clínicas]?
R – Daí eu fui num médico especialista, amigo do meu cunhado, que atende no Guarujá e, enfim, é um expert do HC... Na época, nem sei agora se ele está aí. Eu contei toda a história pra ele e realmente ele teve a mesma coisa de não ter diagnóstico, sugeriu de fazer um exame hiper sofisticado, que eu não lembro muito bem qual que era, que é utilizado alguma coisa de carneiro, eu não sei, era um exame muito sofisticado, daí eu não quis fazer nada mais, eu falei: "Vou fazer coisa nenhuma. Chega, acabou, estou bem, não estou com AIDS, foi um pesadelo, vou conviver com essa dorzinha...". Depois eu fui procurando meios alternativos, sei lá, trabalhar essa região e foi hiper positivo, comecei a fazer massagem Do-in, foi hiper legal. Daí a coisa foi fluindo; quando eu não tive mais nenhum sintoma dessa dor que me lembrasse a hospitalização, eu comecei a viver de novo. Eu estava com a minha vida normal, mas enquanto eu tinha essa dor eu me lembrava do hospital.
P/1 – Quanto tempo ela ainda persistiu?
R – Ela ficou uns sete meses. Sete meses, eu falei... (risos) E ficando.
P/3 – Sete meses sem diagnóstico.
R – Sete meses sem diagnóstico.
P/2 – ______ mandou o pastor embora... ______ algum momento te despertou alguma relação com algo espiritual?
R – Olha, sinceramente a gente pensa, sim. Pensa, porque eu, quando estava no hospital, era o tempo todo isso. Essa pergunta é muito legal, porque era o tempo inteiro isso. Apesar de eu não ter pique pra rezar, pra conversar com Deus, naquela situação toda eu pensava em Deus o tempo inteiro e questionava, porque eu acredito em Deus, mas era uma coisa assim, que também... De novo, eu não tinha forças. Eu não tinha forças. Nem pra conversar com ele lá em cima, entendeu? Eu só pensava, eu não tinha força e pra mim ainda tudo era um pesadelo. Apesar de estar sentindo na pele, 25 dias, depois mais sete meses, pra mim era um pesadelo. O que eu falei: a minha história encerrou, esse capítulo da minha vida encerrou quando eu deixei de sentir a dor que me acompanhou sete meses.
P/2 – Mas então ela parou, você fez esse raciocínio de...
R – Quando ela parou, eu não fiz esse raciocínio. Eu não queria mais pensar em... Eu não queria pensar, na verdade. Não queria pensar. Eu queria... Nossa, eu queria apagar isso da minha vida.
P/3 - ______, durante a nossa conversa, se transformou... O Projeto Carmim... A transformação.
R – Então. Mas você vê que barato isso. É exatamente isso que você falou. Essa coisa de apagar... Eu queria apagar, mas é uma coisa que teve um processo de sedimentação muito forte, que aí nasce o Projeto Carmim. Depois que passaram esses sete meses, que eu não tive um foco de dor que me fizesse lembrar daquela maldita internação, eu falei: "Agora eu vou viver". Ar, entendeu? Só que a coisa da hospitalização, ela fica, na verdade; o que acontece é que você tenta camuflar. A minha vida foi tocando, foi indo pra frente, mas eu percebia que eu passava... Daí começa a questão. Você “apaga”, na verdade não apaga, eu acho que você reacende e daí começa a transformação, só que pra eu chegar nesse... Reacender isso e transformar teve um período de sedimentação dessas ideias, esses novos valores, que o Projeto Carmim nasceu em 1996. De 1991 pra 1996, cinco anos, eu fiquei cinco anos sedimentando isso, somando, porque o que acontecia? A vida paralela à experiência da hospitalização continuava, só que eu comecei a vida um pouco mais amarga, porque eu já estava insatisfeito de atuar nas escolas, eu já estava cansado de aguentar diretor achando que artes plásticas era só fazer decoração de festa junina, eu queria sempre enfocar o lado do potencial das crianças, da Arte-Educação mesmo, então eu comecei a cansar, fiquei insatisfeito. Até que eu comecei a descobrir – foi o primeiro alerta que eu tive, não sei se a palavra é essa, o primeiro sinal que eu tive – que na pobreza ou na dor, não só dor hospitalar, mas dor de miséria e tudo o mais, você pode descobrir o vigor, a vida, porque eu tive uma oportunidade que eu queria há muito tempo, que era sair do público mais elitizado e atuar com crianças em favela. Daí pintou uma oportunidade de eu ir trabalhar. Apresentei o trabalho em uma favela no Guarujá, porque a gente tinha uns contatos lá e fizemos um trabalho de ateliê com a criançada. E, quando eu tive uma experiência... Enfim, teve um rolo todo, a Prefeitura contratou, depois demitiu, fiquei seis, sete meses lá; eu não morava lá, ia toda quinta-feira e sexta e voltava. Quando eu percebi que do lado da favela, ou melhor, dentro da favela, embaixo de uma árvore linda e maravilhosa, seca, era possível dar aula de artes para as crianças, que nunca tinham tido a oportunidade de pegar num pincel, num guache e que tinham sempre que improvisar, porque tem aquela coisa, a gente ouve muito disso: “É carente, é pobre, tem que usar só sucata, tem que criar em cima de sucata”. Ótimo, mas por que só ficar com sucata? Será que eles não têm chance de conhecer os materiais que as outras crianças têm? Guache, lápis de cera, uma folha bonitinha pra desenhar... E quando você faz isso e você sente que... Eu vi que aquelas crianças estavam no meio de toda aquela pobreza, aquela miséria e elas tinham um vigor pra trabalhar, daí eu acho que começou, ainda devagar, a coisa de sair de um público elitizado e querer trabalhar... Eu já sabia que queria trabalhar com outro público. À medida que o tempo foi passando, foi nascendo o Projeto Carmim. Foi somando a experiência da favela, a experiência da minha hospitalização, daí foi entrando o Projeto.
P/1 – Você era professor, você retomou isso, continuou dando suas aulas e, de uma maneira ou de outra, teve essa mudança de público, mas o Projeto mesmo foi só em 1996.
R – O Projeto vingou em 1996. Ele ______ iniciou em 1996.
P/3 – Mas como ideia na tua cabeça...?
R – Como ideia na minha cabeça eu diria que começou em 1994. Eu diria que começou em 1994. Mas era assim, por quê? Porque daí foi somando a experiência da favela, a experiência da hospitalização... Até então eu já tinha um ateliê, já estava pintando, legal, só que o ateliê pra mim também não bastava. Comecei a perceber que o ateliê, na verdade, era um grande sonho e é o grande sonho de muitos artistas de terem seu próprio ateliê. Produzi muito no ateliê, trabalhei muito, cresci muito como profissional, mas eu percebi que não bastava. Alguma coisa me dizia que eu tinha que romper as paredes do ateliê e levar todas essas vivências que eu tive pra outro público, pra outro espaço físico e começar tudo de novo. Só que eu também tinha certa resistência, não foi fácil você chegar num hospital e bater na porta... E é lógico que paralelo a isso... Eu morava em Pinheiros, então o que acontecia? Toda vez que eu passava na Doutor Arnaldo – até hoje isso – eu via aquelas janelinhas, todas com aquelas grades, que têm aquelas venezianas do Emílio Ribas. Vocês percebem que eu sempre falo no Emílio Ribas, não é? O tempo inteiro. E aquela luz escura, difusa de hospital, à noite, que era exatamente a luz que tinha no meu quarto. Então eu passava com a Cidinha e falava: “O que será que esses coitados estão fazendo?”. Voltava pra lá, ia pra cá... À noite era tudo pior... Eu olhava o Emílio Ribas de dia, mas à noite, quando eu passava na Doutor Arnaldo e via aquela coisa assim, toda listrada, aquela luz escura, imaginava aqueles caras... Eu me via no hospital. Então o tempo inteiro eu resgatava, entendeu? Eu resgatava. Isso, na verdade, foi muito positivo, porque transformou, foi um processo de transformação o tempo inteiro, aliás, é uma palavra que o tempo inteiro eu uso no Projeto. A experiência de vida como transformação, a arte como transformação da vida das pessoas.
P/3 – E uma situação de doença também como transformação, o desafio de quem passou por isso...
P/2 – Mas então é a criação de um projeto seu e nesse momento você dividia isso com alguém, com outras pessoas?
R – Dividia como? Em termos assim... Dividir...
P/2 – Ter esse projeto de começar um trabalho...
R – Eu tinha isso muito claro pra mim. Eu tinha um projeto esboçado, procurei o Wellington. O Wellington foi uma das últimas pessoas que eu fui conversar. Eu estava com o projeto pronto há muito tempo, só que eu tinha uma resistência muito grande de chegar no Emílio Ribas, primeiro porque era muito louco um artista plástico bater na porta do hospital naquela época, hoje já não é mais tanto; segundo que eu também falei: “Pô, o que eu vou fazer, será que estou tendo pesadelo? O que eu, Eduardo, artista plástico, vou fazer num hospital? Eu saí de um hospital, tive uma experiência horrível no hospital, o que eu vou me meter de novo no hospital?”. À medida que eu ia fugindo disso, justificando – até eu acho que essas justificativas têm fundamento –, mas era uma coisa muito louca, porque a coisa ia ficando mais instigante pra mim. Eu passava em frente ao Emílio Ribas e falava: “Tenho que ir aí”, e o projetinho pronto lá, “tenho que ir aí, mas o que eu vou fazer no hospital se eu saí do hospital?”. Então eu ficava o tempo inteiro bordando isso na minha cabeça, tecendo isso na minha cabeça, até que eu entrei em contato com o Wellington e a gente foi almoçar, daí ele falou assim: “Faz um piloto”, que eu não tinha visão nenhuma de empreendedor, nem nada. Era uma coisa completamente... Era um projeto, mas era muito forte, era forte demais, entendeu? Eu procurava fazer outras coisas, fazia outros projetos de ateliê, de dar aula, de não sei o que lá... Nada dava certo. Também tem isso, viu? Eu acho que tem um lado assim, pode ser um lado meio místico, esotérico, mas eu acho que não é gratuito. Tudo o que eu fazia, nada dava certo; tudo o que eu queria, apresentava currículo... Pra completar, nessa época, olha que loucura, por isso que eu acho que nada é gratuito: quando eu voltei do Guarujá, na verdade nós fomos demitidos do Guarujá, a Cidinha também dava uma atividade de balé com as crianças, o cara contratou gente demais, estourou a verba da Prefeitura. Rua, todo mundo. Eu já estava com uma escola aqui em São Paulo ganhando uma meleca. Quando nós ficamos sem a Prefeitura do Guarujá, nós nos deparamos, os dois, com o desemprego, porque a Cidinha estava desempregada, só tinha o Guarujá, eu estava com uma escola, tive que fazer um acordo com ela pra eu ganhar um fundo, porque não valia nem a pena mais ir na escola, porque era na Granja Viana e era uma época de crise econômica, caiu a clientela, a escola reduziu minha carga horária, eu fiquei com uma meleca de salário. Olha que louco, gente! Eu acho muito louco isso... E daí eu tive que pedir demissão sabendo que eu precisava daquele emprego, mas realmente não valia a pena ir à escola. Daí nós ficamos um ano e meio, os dois, desempregados; o aluguel pra pagar, luz, comer, tudo. Meu pai ajudando ali, minha sogra ajudando ali, todo mundo ajudando e todo mundo acompanhando o processo... E nós dois batalhando, “n” currículos, “n” projetinhos, “n” maneiras... Levei currículo na Tok&Stok, tudo o que estava no meu universo – também não queria ficar frustrado, totalmente. Então, curto decoração? Mandar currículo. Curto isso? Fazer isso. Vai ter Bienal? Já tinha sido monitor da Bienal na época da faculdade... Não tem problema, faço de novo a monitoria, fico lá com a molecada agitando. E no meio desse caos de desemprego, de interrogação, eu implanto o Projeto Carmim, entendeu? Quer dizer, era uma coisa assim... Nem eu entendia. Sei que implantei o Projeto Carmim, desempregado mesmo. E daí as pessoas piravam, mas quem não pirava era meu pai e minha mãe, eles nunca me cobraram nada: “O que é isso? Você vai se meter num hospital? Você está desempregado, você vai trabalhar voluntário?”. Nunca ouvi isso. Então a coisa rolou assim.
P/1 – Eduardo, nós vamos encerrar esse primeiro tempo e retomar, então a gente vai marcar outro dia pra debruçar mesmo na história do Projeto Carmim.
R – Legal.
P/3 – Obrigada.
(risos)
R – O maior prazer.
[CONTINUAÇÃO]
Projeto Memória dos Pacientes
Depoimento de Eduardo Cômodo Valarelli
Entrevistado por Rosana Miziara, Morgana Masetti, José Santos e Ana Junqueira
São Paulo, 29/10/1999
Realização: Museu da Pessoa
Transcrito por Stella Maris Scatena Franco
Revisado por Natália Ártico Tozo
P/1 – Projeto Memória dos Pacientes, continuação da entrevista de Eduardo Cômodo Valarelli, entrevistado por Rosana Miziara, Morgana Masetti, José Santos e Ana Junqueira. São Paulo, 29 de outubro de 1999. Eduardo, então continuando a entrevista eu queria que você contasse um pouquinho como é que surgiu essa ideia do Projeto Carmim.
R – O Projeto, como eu tinha falado, é resultado de uma soma de vários fatores da minha história pessoal, da minha vida e ele começou exatamente de uma necessidade muito forte que se baseou desde a minha experiência da hospitalização, da minha experiência como arte-educador e como artista plástico. Então eu resolvi juntar esses três fatores aí e criar o Projeto, mas o que aconteceu e que eu acho que é uma coisa interessante é que o Projeto nasceu no meio de um caos, na verdade. A época que ele começou a ser viabilizado foi um momento muito difícil da minha vida em termos de estabilidade financeira, econômica e tudo mais; eu me encontrava desempregado nessa época, eu e minha esposa, e tinha uma coisa muito forte que me atraia para o Projeto, quer dizer, eu tinha ele já meio esboçado, meio que totalmente visualizado na minha cabeça, mas, enfim, eu acho que ele ficou mais ou menos um ano guardado. E nessa batalha, eu fiquei procurando emprego, desesperado, preocupado com as questões de sobrevivência e tudo mais, mas o Projeto sempre me chamava, era mais forte. Era uma vontade que eu tinha – apesar de ter um receio muito grande de implantar o Projeto – de saber como eu ia responder à questão de lidar com dor, com morte no hospital, como lidar com a questão financeira, que eu sabia que não iria ser fácil, que eu não ia ter apoio no início e tudo mais... Enfim, eu ficava nessa ponte: enfrento, apresento o Projeto, implanto ele ou recuo e tento me preocupar mais com a questão de sobrevivência, com a questão de ganhar grana, enfim, ir para outro caminho. E foi muito complicado, porque ao mesmo tempo que eu tinha que sobreviver, que ter um emprego, enfim, que ter uma estrutura mínima, o Projeto me chamava sempre mais. É como eu falei, cada vez que eu passava ali no Emílio Ribas, na Doutor Arnaldo à noite, eu olhava aquelas janelinhas com as luzes acesas, aquelas grades... E aquilo lá me sufocava, quer dizer, eu não estava naquele hospital, mas eu me colocava lá dentro e ficava pensando: "O que será que esses pacientes estão fazendo aí?". Passava de dia: "O que será que esses pacientes estão fazendo aí?".
P/2 – O seu contato com o Emílio Ribas era só de passagem? De olhar e ter essa sensação?
R – Isso, só de paquera, passava lá... E era no Emílio Ribas.
P/2 – Era no Emílio Ribas?
R – Era no Emílio Ribas. Eu passava no HC [Hospital das Clínicas] porque era caminho de casa...
P/2 – É isso que eu ia falar.
R – Eu passava no HC, Instituto da Criança, mas eu passava no Emílio Ribas e falava assim: "É aqui, o primeiro tem que ser aqui".
P/3 – Por que isso?
R – Ah, tem motivo sim. Só voltando um pouquinho. Eu acho muito assim: quando tem que ser, é. Entendeu? Não adianta você falar: "Ah, eu vou implantar isso no hospital "x" em Sorocaba, de Guarujá...”. Porque eu tive quase uma oportunidade de implantar o Projeto Carmim não aqui em São Paulo, mas iniciar o Projeto Carmim no Guarujá, porque até então tinha um colega da gente que era Diretor da Saúde e tudo mais do município do Guarujá, e implantar no hospital da cidade, mas não deu certo. Aí eu fiquei muito chateado porque não deu certo, assim, por falta das pessoas se interessarem realmente. E fiquei um pouco chateado, mas depois que eu cheguei e eu voltei a São Paulo e fiquei paquerando o Emílio Ribas, eu falei: "Não, na verdade não ia rolar lá". Não era isso que eu queria, mesmo que rolasse lá eu não ia ficar legal lá, porque eu queria que o Projeto nascesse aqui no Emílio e é lógico que o fato de eu querer e insistir no Emílio era exatamente por causa da minha experiência, sem dúvida alguma. A experiência da minha hospitalização, a experiência de estar com a possibilidade de estar com o vírus da AIDS, então eu assumi essa causa assim e era muito louco, porque eu nunca tive o contato com pacientes de AIDS, mas me atraia muito. Era uma causa que eu abracei mesmo sem estar com AIDS. Olhava lá: "É aqui que tem que ser". E daí fiquei nesse processo de paquera eu com o Instituto Emílio Ribas, mas não tinha também coragem de bater na porta e chegar: "E agora? Sou eu, fulano de tal, quero fazer um Projeto aqui e tudo mais". Então o que eu comecei... Eu falei assim: "Vamos com calma". Antes da implantação eu comecei a visitar, entrar em contato com alguns profissionais da área da saúde, primeiro para saber como eles sentiam essa possibilidade de um artista entrar no hospital e segundo porque também eu queria ter um pouco mais de contato, me aproximar mais um pouco da doença, do público... Então eu comecei a entrar em contato com alguns profissionais da saúde e depois eu comecei a entrar em contato com algumas casas de apoio para eu me aproximar mais do paciente com AIDS, que era uma coisa também que eu tinha certo receio mesmo, certo preconceito, medo mais na parte assim, de adquirir o vírus. Eu acho que tem muita gente desinformada, eu era bastante desinformado. Eu tinha uma ideia de AIDS muito ingênua e preconceituosa, porque depois que eu comecei a ter acesso a esses pacientes eu comecei a ver que não era um bicho de sete cabeças em termos de contágio, de contaminação; na verdade existia muito folclore, muita coisa mal esclarecida, que daí foi diminuindo um pouco essa ansiedade, esse medo de se contaminar pelas doenças, pelas infecções oportunistas. Bom, daí eu comecei a entrar em contato com alguns profissionais de saúde, todos achavam lindo e maravilhoso o Projeto – até então o Projeto não tinha nome, não se chamava Projeto Carmim, existia um título provisório que era Arte no Hospital, que era um nome que eu não gostava muito. Paralelo a esses contatos com os profissionais eu comecei a visitar algumas casas de apoio. Então eu entrava em contato, enfim, ia por todos os canais, todas as pessoas que tinham algum contato com alguma instituição da saúde, eu tentava chegar por indicação, quando não conseguia ser indicado eu mesmo ligava, pegava na lista telefônica e sempre assim, com muita dificuldade, porque eu não tinha telefone na época, então ligava de orelhão, era uma coisa louca! Caia a ficha, eu ia lá e pegava outra ficha, um negócio assim, muito engraçado até. Daí eu tive contato com essas casas de apoio e a primeira casa de apoio que eu fui foi a ALIVI [Associação Aliança Pela Vida], que são três casas de apoio, depois fui acho que no GAPA [Grupo de Apoio à Prevenção da AIDS] também, de São Paulo, mas a casa de apoio que eu tive um envolvimento maior e o impacto foi maior, eu diria, foi a ALIVI, porque a ALIVI eu tive a oportunidade de conhecer as três casas de apoio. E é muito assim, estranho... E imagine assim, você que não tem contato com esse público. Eu fui visitar mesmo e ficava uma manhã, às vezes ficava... Na última casa de apoio da ALIVI eu fiquei quase um dia todo... E daí você acaba se aproximando da realidade, você vê qual o perfil do paciente que está com AIDS, qual a história dele... Para quem não é da área tem um impacto muito forte, primeiro porque eu não conhecia a doença, como eu falei, segundo porque eu não conhecia o perfil, eu imaginava, mas eu não conhecia o perfil dessas pessoas que moravam nessas casas de apoio. E eu fui. A ALIVI são três casas. A estrutura na época... Eu não sei como é hoje, mas basicamente é assim: existe uma casa para pacientes que ainda são sintomáticos, enfim, que estão no início da doença, estão adquirindo as primeiras infecções oportunistas, então esses pacientes que estão nessa fase ficam nessa casa, que fica num bairro em Santana. Depois existe outra... Dez casas que ficam num lugar lindo, acho que é na Serra da Cantareira... É, Serra da Cantareira, são dez casas, chama Aldeia; dez casas que têm o apoio de uma fundação alemã e nessas dez casas já são pacientes... Me enganei, desculpa. Na primeira casa são pacientes assintomáticos, são pacientes que não têm ainda as infecções oportunistas. Nessas dez casas que ficam na Aldeia, na Serra da Cantareira, são pacientes sintomáticos, que são pacientes que já têm as infecções, entendeu? Tuberculose, pneumonia etc., mas têm condições de trabalhar, ajudar na casa de apoio e tudo mais. Em cada casa moram geralmente dez pessoas. E é muito assim, tem um impacto muito forte, primeiro que como eu falei, eu não era da área, segundo que são dez pessoas que moram nessa casa de diferentes índoles, então é drogado, é prostituta, é homossexual, é mendigo... Imaginem dez pessoas de diferentes índoles, de diferentes histórias dividindo o mesmo espaço. Então eu acabei meio que tendo contato com eles e eu sentia esses pacientes muito assustados com as visitas – isso depois a pessoa me falou que eles eram assim mesmo. Então eu não me sentia à vontade indo ali porque eu achava que invadia um pouco e ao mesmo tempo eu percebia que eles também não se sentiam à vontade; foi uma tarde que eu passei ali meio desambientado, mas que era importante para mim, que foi importante para mim.
P/1 – Isso foi o seu primeiro dia?
R – Esse foi o meu primeiro dia de contato com paciente de AIDS.
P/3 – Para conhecer?
R – Pra conhecer. Eu não tinha a ideia de implantar na casa de apoio, nada.
P/1 – Você não fez trabalho nenhum?
R – Não, eu fui como visitante. Por quê? Porque primeiro que ia ser muito difícil eu chegar direto no hospital e entrar no hospital e fazer uma atividade ou até fazer uma visita, eu acho que ia ser muito burocrático, então eu decidi ir para casa de apoio que era uma coisa mais informal. Aí você começa... Os poucos que conversam com você ou querem conversar, eu comecei a perceber como era a história... São histórias assim, hiper também de impacto, histórias hiper tristes e tudo mais, aí ao mesmo tempo eu queria ficar ali, mas eu não via a hora de ir embora porque estava me fazendo mal em ver tanta desgraça, entendeu? De tanta história assim, de gente... Sabe, desde a infância... Uma trajetória só de desgraça, de coisa pesada. No entanto, foi uma coisa muito curiosa. Foram três dias de visita nas três casas. Na segunda visita que foi na Serra da Cantareira eu fui assim, mal... Era janeiro. Eu fui mal e voltei pior ainda, porque eu fui de ônibus, peguei três ônibus para chegar até lá, pois eu não me atrevi a ir de carro... E sabe aquelas chuvas de janeiro? Aqueles temporais que fica tudo preto. Eu indo lá... Eu falei: "Eu não acredito!" (risos). Entrei numa mata virgem, falei: "Putz, será que é aqui mesmo?". Desci, vi as casinhas lá, um lugar lindo. O tempo, aquelas nuvens pretas assim, só chegando, sabe? Tipo na hora do almoço. Eu já comecei a pensar... Eu nem tinha chegado e já queria ir embora. (risos) Eu falei: "Putz, e agora? Já pensou se vai cair um temporal aqui?". Eu comecei a imaginar a coisa atolada, o ônibus atolado ali e ficar preso ali. Eu comecei a ficar meio em pânico. É verdade! Enfim, passei a tarde lá, dito e feito. Quando foi umas cinco e meia da tarde caiu o mundo de água e daí uma das Irmãs que toma conta da casa ia para Santana, ela me deu uma carona. E foi muito legal porque eu curto muito esse pessoal que é da Igreja, mas que realmente arregaça as mangas. Eu acho que também... Você fica só na coisa de orar, da oração, é uma coisa meio cômoda. Eu acho que arregaçar a manguinha e fazer alguma coisa pelo social... E essas Irmãs realmente eram assim. Elas praticamente é que assumiam e administravam as casas, cada Irmã numa casa, então elas eram aquelas mulheres assim meio... Sabe mulher meio macho? Pau pra toda obra. Pegou o fusquinha dela, eu lá dentro e ela: “Vamos lá!”, o maior pique, o fusquinha dançando, aquela chuva assim... Eu falei: "Meu Deus do céu!", escuro, já era quase noite. Aí ela falou: "Ah, Eduardo, então tá bom, eu vou te deixar aqui". Eu falei: "Ah, tá". Aquela chuva, eu desci do carro, eu nem entendi, porque ela me explicou que ônibus pegar... Me deparei no fim do mundo e falei: "E agora pra chegar em casa?". Eu sei que eu cheguei em casa acho que eram umas dez horas da noite daquele dia, a Cidinha estava em pânico já e a gente não tinha telefone. E me mexeu muito essa visita. Aí eu fiquei assim: "Mas será que é isso?". Comecei a imaginar o perfil, entendeu? Numa outra casa de apoio eu fiquei sabendo que tem muita briga entre eles, briga de faca, porque são dez pessoas diferentes morando. Pô, em família já é complicado, você imagina dez pessoas diferentes com trajetórias diferentes. Então eu comecei a ficar... E eles eram muito assim... Eles não faziam muita questão de receber visitas... E olha que eu ia com a maior cautela, com muita ética, com muito respeito, não ficava especulando, eu ficava mais como observador, mas como eu gosto de falar eu não conseguia ficar quietinho num lugar, então às vezes eu puxava um papo com um paciente ou outro, era um ou outro que respondia legal, a maior parte deles ficava ali. Mas durante essas visitas eu comecei a ver outro lado, que eu achava que era constatação daquilo que eu tinha sentido no hospital, que era parte da depressão, da ociosidade, porque esses pacientes ficavam o quê? Não eram todos que arregaçavam as mangas e dividiam tarefas na casa, por isso até que surgiam as brigas, porque tinha uns que trabalhavam mesmo e dividiam tarefas com as Irmãs, mas outros ficavam na boa vida e na ociosidade: radinho ligado, um deitado, o outro olhando a natureza, outro assim, olhando bravo, uns assim emburrados, deprimidos... Então era muito pesado o ambiente e eu comecei a ver um lado positivo nisso, eu comecei a imaginar esse indivíduo no hospital, eu falei: "Bom, se aqui que ele tem televisão...", e as casas eram muito simples, mas eles recebem muitos apoios, então tem televisão, tinha vídeo, uns aparelhos de som hiper legais... Eu fiz até o rastreamento lá, porque eu falei assim: “Se eu não conseguir entrar no hospital, de repente...”, porque eu tinha uma coisa muito clara pra mim, eu tinha que fazer aquele Projeto, eu tinha que fazer o Carmim acontecer, nem que eu começasse via casa de apoio para depois chegar ao hospital. Como eu não estava criando muita coragem de bater na porta do hospital eu comecei até a pensar, eu falei: "Por que não de repente eu não começo na casa de apoio pra sentir essa coisa mais de perto de maneira mais informal, porque depois entrar no hospital tem uma série de outros fatores e tudo mais?”. E daí eu fiquei com isso na cabeça e fiz uma pesquisinha lá com a enfermeira responsável, se eles tinham alguma atividade nessas casas de apoio. Ela falou: "Olha, é até gozado isso. Você sabe que muita gente vem aqui oferecer atividades de artesanato, de costura, de tapeçaria, mas eu não sei o que acontece. As pessoas vêm aqui uma, duas vezes e depois não voltam mais". (risos) Eu fiquei olhando assim e falei: "Ah, tá. E o que eles fazem aqui?"; "Ah, meu filho, aqui eles não fazem nada". Aí ela começou a falar: "Ou eles brigam, a gente tem que ficar cutucando eles a ajudar...". Eles elaboravam as próprias fraldas para os pacientes doentes e era um negócio muito barra, porque enquanto tinham os pacientes que não estavam tão graves, morriam outros no quarto e tudo acontecia na casa. Aí eu comecei a sacar um pouco a estrutura, eles não tinham muita infra-estrutura. Eu imaginava que a casa de apoio tinha um médico ou meio período ou 24 horas, tinha uma equipe multiprofissional. Eu acho que primeiro mundo sou eu aqui, não é? Cheguei lá e falei: "Mas Irmã, e o médico? E a assistente social? Não tem psicólogo aqui?"; "Não, vem a cada vinte dias, uma vez por mês...". Eu falei: "Mas e se eles têm um algum treco aqui à noite?". Ela falou: "Ah, a gente se vira aqui". Daí eu comecei a ficar mais assustado e mais preocupado, falei: “Não, então...”. Porque eu comecei a imaginar assim: "Pô, e quando eles brigam?". E ela contando para mim, eu acho que ela pensou que ela estava me conformando e eu estava ficando cada vez mais assustado. Aí ela falava assim: "Sabe que outro dia o fulano estava na cozinha, aí o beltrano foi lá e começou a provocar ele e de repente ele estava descascando a batata e ameaçou a faca pra ele...". Eu comecei a imaginar a cena na cozinha e a ficar preocupado nessa coisa de contaminação, de tudo, de morte e tudo mais. Eu saí de lá assim... Daí eu fui na terceira casa que era uma casa mais pesada, que eu acho uma coisa meio assim... Eu não concordo muito com isso. A terceira casa é a casa que vai para o céu; então a terceira casa é dos pacientes que estão em fase terminal, é uma casa que fica ali também em Santana, tudo assim na redondeza e tem um velório na casa. Essa casa é triste, que daí o dia que eu fui lá também eram só pacientes assim, beirando vida e morte, pacientes hiper assim... Estado pele e osso, bastante fragilizados. Aí a Irmã me levando na casa, conheci os pacientes, daí que eu comecei a tirar o chapéu, eu falei: "Puxa, como tem gente que é pau pra toda obra". Ela falou: "Ah, Eduardo, vem cá, eu quero te mostrar um negócio". A gente desceu, eu falei: "Aqui é a garagem, tem alguma coisa que precisa fazer?". Ela falou: "Não, aqui é o nosso velório, nosso necrotério". Eu falei assim: "Meu Deus do céu". Era a garagem da casa, uma casa grande. "Mas Irmã, eles ficam aqui?"; "É, quando eles morrem a gente prepara eles e tudo mais. A família, quando vem, a gente faz um velório simples aqui mesmo". Então tudo isso eu ficava assim lá, eu comecei a me assustar. Voltava assim... Voltei meio pra baixo. Falei: "Acho que não tem nada a ver comigo e tudo mais". Não bati na porta do hospital, guardei o Projeto Carmim na gaveta de novo. E daí batalhando emprego, aquelas coisas todas... Passava no Emílio Ribas, as janelinhas, pá pá pá... Eu falei: "Não, eu tenho que começar, eu tenho que bater nesse hospital". Até que então eu criei coragem e falei: "Eu só vou saber experimentando, o máximo que eu vou ouvir é um não". Daí eu cheguei ao hospital...
P/2 – Mas espera só um pouquinho, antes disso você tinha falado que você tinha iniciado também um contato com alguns médicos.
R – Isso. Desculpa.
P/2 – Esses médicos eram do Emílio Ribas?
R – Não, não.
P/2 – De onde eram esses médicos?
R – É muito curioso, é verdade, porque na verdade eu não tinha nenhuma ponte no Emílio Ribas, eu não tinha nenhum contato no Emílio Ribas, o primeiro médico que eu liguei no consultório dele pegando lista telefônica, foi um médico que eu via muito o nome dele associado com AIDS, tá? Não é bem o caso falar o nome dele aqui, mas era um médico assim, um bam bam bam do HIV na época, hoje eu não ouço muito falar nele. Um cara muito de mídia e tudo mais e eu cheguei nesse médico, marquei um horário, fui ao HC, falei com a secretária dele, me apresentei e tudo mais e enfim, eu não sei o que aconteceu que o cara resolveu me receber. Marcou uma entrevista no consultório... Isso pra quem não tinha aonde bater na porta, me estimulou um pouquinho. Eu falei: "Bom... Pô, o cara nem me conhece, eu não deixei Projeto, não deixei nada. Só me apresentei. Fala pra ele que eu sou artista plástico, eu gostaria de marcar um horário com ele sobre um Projeto com pacientes de AIDS". A única coisa que eu falei. Bom, consegui falar com esse médico, ele me atendeu hiper bem e tudo mais e foi o primeiro médico que abraçou o Projeto Carmim. E o Projeto estava muito no esboço, aí eu levei o Projeto pra ele...
P/3 – Já tinha esse nome, Carmim?
R – Não, era "Arte no Hospital". E assim, um Projeto muito em esboço mesmo, não era um Projeto nos moldes mais acadêmicos, era objetivo, não tinha justificativa, não tinha nada. Tinha um esboço de Projeto. Daí eu cheguei pra ele, ele me recebeu muito bem e eu falei: "Olha, eu gostaria... Eu não sei se você pode me dar uma força...". Abri o jogo com ele. Eu falei: "Você não me conhece e tudo mais... Eu estou tentando tocar este Projeto e tudo mais...". E na época ele era responsável por uma casa... Casa da AIDS chamava, até hoje chama, tem na Frei Caneca agora... Que era pertinho de casa, eu morava em Pinheiros, era na Cardeal Arcoverde. Então também era meu caminho, passava pelo Emílio Ribas, vinha a Cardeal e via a Casa da AIDS, e eu sabia que essa Casa era patrocinada pela Fundação Zerbini. Então eu também via esse lado, eu falei: "De repente por ser uma Fundação pode surgir uma parceria". Enfim, ele se interessou muito pelo Projeto, marcou um contato comigo, com o pessoal da Casa da AIDS, fui à Casa da AIDS, ele estava pra ver patrocínio e tudo mais... Eu tive uns três contatos pessoais com ele, depois eu comecei a ver que ele começou a não me receber mais, sabe quando você liga e percebe que a pessoa está... Daí também eu não discuti, porque eu sou assim, eu sou insistente, mas na hora que eu saco que está pintando alguma coisa errada eu também deixo de ser insistente e eu acho que daí é uma questão de amor próprio também. Eu não desestimulei não. Eu sou assim, quando não dá certo eu fico mais teimoso e daí eu embirro mais. Daí foi bom porque eu falei: "Bom, agora eu tenho que arregaçar as mangas pra valer porque vai depender de mim”, eu percebi que eu tinha que dar o pontapé inicial. E talvez fosse uma atitude até meio cômoda minha de não querer bater... Eu estava com certa resistência de bater no hospital, na verdade eu estava com medo também.
P/2 – Você não conhecia outras pessoas para dividir esse trabalho?
R – Não. Foi aí então que nessa época eu entrei... Eu ouvia já falar dos Doutores da Alegria e foi uma coisa muito louca, porque na época que eu estava fazendo o Projeto eu até então não conhecia os Doutores da Alegria, eu nunca tinha ouvido falar nada. Eu estava fazendo o Projeto e de repente vi um depoimento do Wellington, uma entrevista, uma matéria dos Doutores. Eu falei: "Ai que legal, já tem alguém fazendo isso", aí eu pensei: "De repente esse cara pode me ajudar". Mas também naquele caos de batalhar emprego e tudo mais, estava muito devagar de bater no hospital, eu falei: "Eu não sei se é o momento de entrar em contato com eles". Daí eu cheguei e um dia... Eu nunca me esqueço, eu estava na USP, na época eu estava fazendo um curso de especialização, porque como eu não conseguia nada, eu não conseguia viabilizar o Projeto, eu não conseguia arrumar emprego, eu falei: "Eu vou estudar, eu não vou ficar ocioso. Eu vou estudar". Daí eu consegui uma bolsa no Museu de Arte Contemporânea e fiz um curso de especialização em Museologia; foi uma época muito legal porque foi aonde eu aprimorei até o Projeto. E eu saí da aula e me deu uma luz. Eu falei: "Hoje eu vou ligar para o Wellington". E nesse meio tempo eu já tinha entrado em contato com o Hospital Emílio Ribas. Entrei em contato, fui lá um dia, me apresentei e me indicaram para falar com a assessora de imprensa do hospital que era a pessoa “encarregada”.
P/2 – Você se apresentou lá na recepção?
R – Me apresentei, tudo mais, me recebeu hiper bem. Aí eu falei: "Eu queria saber se existe essa possibilidade e tudo mais...". Aí ela falou: "Olha, existe. Os nossos pacientes são hiper ociosos, são pacientes que ficam muito tempo internados, mas eu teria que falar isso com a direção do hospital e enfim, precisa de um aval deles". Aí tudo bem, ela ficou de entrar em contato com o diretor do hospital e me dar um retorno. E foi um contato assim, muito rapidinho, eu não deixei o Projeto, nada. Aí ela falou: "Olha, você conhece os Doutores da Alegria?". Daí ela me indicou e passou o telefone do Wellington. Saindo um dia da USP eu falei: "Eu vou ligar para o Wellington, vamos ver". Eu também não sabia como era o Wellington, eu falei assim: "De repente esse cara é uma estrela, é nojento, vai me dar... Sei lá" (risos). Bom, liguei para o Wellington e foi uma figura! Ele me atendeu e tudo mais... E ele estava hiper ocupado, enfim, eu sabia que ele era um cara já famoso e tudo mais... Aí ele falou: "Não dá, eu estou um pouco com pressa". Eu não sei o que deu no Wellington, a gente estava pra desligar. Eu falei: "Então tudo bem, não tem problema. Tá bom, então obrigado". Daí ficou um silêncio e ele falou assim: "Escuta, você já almoçou?". Acho que deu uma luz nele. Eu falei assim: "Não"; "Bom, eu estou pra almoçar agora. Você poderia agora? Vamos conversar então, vai?". Ele mudou a ideia em segundos. Eu falei: "Vamos". Eu estava na USP. Ele estava com um problema de infecção no estômago e ele falou assim: "Olha, o restaurante tal e tal, comida vegetariana". Eu fiz assim: "Ah, tá bom. Vamos lá". (risos) Bom, aí eu lá almoçando com o Wellington, aquela comidinha vegetariana... Aí eu comecei a conversar com o Wellington assim: falei se ele poderia me ajudar, se ele poderia me orientar... E foi então que me deu uma luz. Por isso que eu também acho muito legal... Isso eu aprendi com o Wellington: eu acho muito legal quando a gente está com um projeto numa fase de estruturação ou já meio que estruturado assim, na parte de implantação, quando as pessoas ligam pra você é legal, eu sempre atendo as pessoas porque é muito importante, porque às vezes se você descarta logo de cara eu acho que você está podando, boicotando ou desestimulando uma pessoa. É lógico que tem pessoas que você percebe, dá para perceber na hora quando a pessoa quer pegar carona, quando ela é oportunista, quando ela está, de repente, querendo misturar as coisas, entendeu? Porque o papo que eu tive com o Wellington foi muito fundamental, até então eu não tinha vivência nenhuma de como fazer a coisa de maneira mais profissional... Uma coisa eu sabia, eu queria fazer da maneira mais profissional possível, desde o momento da entrada do hospital até daí para a frente então. E o Wellington me deu essa luz, ele falou: "Olha, eu sugeriria para você de fazer um piloto para ver se é isso mesmo que você quer...". Eu nem tinha pensado num piloto. "Faz uns dois meses, três no Emílio Ribas. Você já entrou em contato?". Eu falei: "Eu já entrei em contato e tudo mais...". Ele falou: "Faz uns dois meses, vê se é isso que você quer, pá pá pá...". Ele foi começando a lapidar a coisa que eu já tinha escrito, mas entre a teoria e a prática as coisas são completamente diferentes. Bom, eu saí daquele almoço revitalizado, hiper animado e tudo mais. E daí demorou eu acho que uns vinte dias para sair esse aval do diretor do Hospital Emílio Ribas – até hoje é o mesmo. Só que eu percebi assim, tive o aval... Eu acho que foi depois... É, o carnaval foi em março, foi depois do carnaval que eu tive o aval. É, eu comecei no dia 5 de abril o Projeto, o primeiro dia foi dia 5 de abril. E daí eu comecei no dia 5 de abril, fiz um mês no Hospital Dia, tá? Porque é impressionante, por mais que a gente queira e idealize um trabalho, como a gente tem os medos da gente e as resistências que ficam lá escondidinhas. O Projeto eu sabia, eu tinha certeza que eu queria o Projeto, que ele atuasse com os pacientes em regime de internação, porque eram os pacientes mais ociosos, que ficavam mais tempo hospitalizados e era a vivência que eu já tinha tido, mas eu também tinha ainda uma resistência de conviver com esses pacientes, porque até então o Emílio Ribas para mim... Eu tinha uma visão muito negativa do Emílio Ribas. Ele é ainda um hospital que tem um estigma, não é? Hoje eu acho que mudou muito, mas o Emílio Ribas sempre me passava uma coisa de total deterioração em todos os sentidos.
P/1 – Para quem for ler a entrevista, você podia contextualizar o que é o Hospital Emílio Ribas?
R – Hoje?
P/1 – É. O que ele é, o que ele atende...
R – Ah, tá. Dar um perfil do hospital?
P/1 – É.
R – O Hospital Emílio Ribas é um Instituto de Infectologia. É legal isso também, porque as pessoas, sempre que você fala em Emílio Ribas, só associam com AIDS e, na verdade, o Emílio Ribas não é um hospital só de AIDS, ele é um hospital de AIDS e moléstias infecciosas.
(PAUSA)
R – Então, ele é um hospital de isolamento, na verdade é isso. É que eles não usam esse termo mais, mas no início da fundação do Instituto ele era chamado Hospital de Isolamento de São Paulo e ele é até hoje isolamento, só que esse nome “isolamento” é muito pesado, então ele virou um Instituto e o público basicamente são pessoas hiper carentes em todos os aspectos e, além de AIDS, eles atendem pneumonia, leptospirose, tuberculose, varicela... Tudo que for de contaminação tem no Emílio Ribas. A meu ver é um hospital centro de referência da AIDS na América Latina, isso é uma coisa importante. É um hospital que pelas carências que tem, por ser um hospital público, é um hospital que eu acho que dá um tratamento de primeira em termos de medicamento, principalmente para os pacientes de AIDS, quer dizer, por ser um centro de referência, não falta medicamentos, coquetéis não faltam... Quando está para faltar sempre eu sei que chega uma remessa. Então eu tinha uma imagem muito negativa do hospital, porque quando via as matérias na televisão eu imaginava deterioração total, sabe? Tudo: arquitetura, parede caindo, parede suja... Eu imaginava um caos. Quando eu entrei no hospital, o primeiro dia, eu vi a preocupação que o hospital tem com toda essa questão de higiene, de contaminação, de resguardo de quem trabalha por causa das doenças e tudo mais. E eu cheguei nesse dia no hospital... Aí no primeiro dia eu implantei no Hospital Dia, fiquei um mês no Hospital Dia fazendo um piloto, mas não era o local que eu queria atuar com o Projeto, mesmo porque também era uma maneira de eu me aproximar mais dos pacientes e os pacientes do Hospital Dia, eu não sei se vocês têm conhecimento, mas são pacientes que vão de manhã no hospital ou ficam no mínimo meio período ou ficam o dia todo, porque eles são medicados na parte da manhã, depois eles têm que ficar um tempo lá para ver se eles não têm uma reação dos medicamentos, ou então ele fica o dia inteiro lá sendo medicado, mas esse paciente tem a oportunidade de ir pra casa, por mais que ele fique lá o dia inteiro ele vai pra casa... Enfim, não está vivendo no hospital o dia-a-dia. Esses pacientes eu percebi que não tinham uma receptividade legal, então também foi um momento difícil para mim, porque eu percebia que esses pacientes estavam mais ali para bater papo, porque era uma sala que eles tomavam os medicamentos e o máximo que tinha era uma TV, mas eles não eram muito a fim de trabalhar, não. Então o Projeto ali não teve muita receptividade e eu comecei a ficar preocupado; foram poucos pacientes que estavam aceitando participar. Eles falavam: "Ah, obrigado, eu estou mais a fim de ouvir uma música". Eles ficavam batendo papo.
P/2 – Mas como você oferecia para eles? Falar com eles?
R – Depois que eu apresentei o Projeto para o diretor do hospital, eu apresentei o Projeto para a equipe multiprofissional do Hospital Dia e para o médico responsável, daí eu já tinha uma estratégia de como abordar esses pacientes, então é como eu abordo até hoje, eu chego e me apresento, falo um pouquinho do Projeto, deixo eles bem à vontade para aceitar ou recusar, convido eles a fazerem alguma atividade e deixo bem à vontade para eles escolherem o material, se eles querem pintar, desenhar. E muito à vontade. Porque é difícil você se expressar, enfim... Ainda mais num papel, tem autocrítica, tem o bloqueio... Então você tem que criar uma atmosfera para esse indivíduo aceitar. Mas é lógico, no começo eu também tinha essas dificuldades da abordagem, eu era hiper tímido, eu não sabia muito bem como chegar e tudo mais. Bom, eu fiquei um mês lá. Eu cheguei para o coordenador do hospital Dia e falei: "Olha, eu acho que não é bem o caso, eu gostaria de implantar com os pacientes internados”. E daí eu também fiquei numa situação meio delicada comigo mesmo porque eu já estava preocupado. Falei: “E agora? Os pacientes que estão hospitalizados, será que eles vão querer ou será que eles não vão ter esse interesse como os do Hospital Dia não tiveram?”. Aí eu comecei a implantar no sexto andar, foi o primeiro andar que eu comecei.
P/2 – E você que levava o material?
R – É, até então esse material... Surgiu uma coisa paralela. Nessa mesma época eu participei, enviei alguns trabalhos num Salão, num concurso que teve no Salão de Artes Plásticas e as coisas amarraram, porque eu tinha uma preocupação muito grande, eu falei: "Bom, venci o primeiro desafio, que era criar coragem de bater no hospital e conseguir o apoio de uma maneira transparente. E agora? Onde eu vou arrumar recursos para esses pacientes trabalharem?". Mas eu percebi uma coisa, tem que meter as caras, não adianta achar lindo, maravilhoso o Projeto no papel, você tem que meter as caras, porque as coisas vão amarrando, é um negócio impressionante! E daí eu apresentei esses trabalhos nesse Salão e foi uma coisa muito interessante... Eu sou muito ligado nessas coisas, porque eu acho que nada acontece por coincidência também. Um mês depois que eu tinha implantado no Emílio Ribas eu ganhei esse prêmio com o meu trabalho, eu peguei o segundo lugar e era um prêmio em grana, uma grana boa, na época era boa e hoje ainda é, para mim pelo menos, era seis mil reais o segundo prêmio e eu ganhei esse prêmio. Foi o primeiro prêmio como artista. Bom, quando eu ganhei esse prêmio eu falei: "Ah! Resolvi os meus problemas com o Projeto". Daí o que eu fiz? Peguei uma parte desse dinheiro, fui numa papelaria deliciosamente – eu já gosto de papelaria pela minha natureza – e falei: "Olha, eu quero isso, isso, isso, isso, isso..." (risos). Fiz uma bela de uma compra, entendeu? Enchi o porta-malas do carro de compra de tinta, pincel e falei: "Bom, eu acho que tenho um estoque por alguns meses, depois eu não sei como vai ser". E foi o que aconteceu. Daí eu levei esse material no Emílio Ribas, porque eu sabia e não queria contar em depender do hospital em termos de recurso, de material. Por quê? Primeiro porque apesar de nunca eu ter sido funcionário público, o meu pai era funcionário público, então eu já tinha um perfil do que é... E tinha tido a experiência da Prefeitura do Guarujá, o que era você depender de um órgão público, quer dizer, no primeiro mês você consegue a doação, no segundo você tem e no terceiro você já não tem mais. Então eu falei: "Não quero depender do hospital para isso, mesmo porque eu acho que eles não vão manifestar interesse em agilizar isso". Aí eu falei: "Vou bancar esse material". Daí eu cheguei no hospital, num andar e comecei a aprimorar, a ver o que realmente eu precisava. E era a primeira vez... Isso é uma coisa muito legal, tudo tem a sua beleza. Era a primeira vez que eu também tinha tido a oportunidade de fazer um projeto e daí eu ver o que era um projeto no papel e o que ele passava a ser na prática. E era muito gostoso... Até eu comecei a ter um orgulho de mim mesmo de ver que aquilo que eu tinha colocado no papel era a maneira mais correta que eu tinha chegado, porque uma vez escrito no papel, na hora da metodologia, na parte prática, as coisas fluíram naturalmente, que era uma coisa que me preocupava muito na abordagem do paciente, de como levar o material para esses pacientes, de como chegar nesses pacientes, quem iria indicar esses pacientes para mim... E tudo foi feito de uma maneira tão preocupada e lapidada antes da implantação, que nos quinze primeiros dias do Projeto, ele fluiu assim... Deslanchou, sabe? Até as pessoas do hospital que eu comecei a ter mais proximidade, eles falavam: "Você nunca trabalhou em hospital mesmo?". Eu falei: "Não"; "Nossa, parece que você trabalha em hospital faz tempo, porque você tem uma...". Eu não sei, as pessoas têm um medo de chegar em hospital... E eu comecei a me assustar com isso também, assustar positivamente.
P/2 – Com a sua desenvoltura?
R – É, eu falei: "Nossa, que coisa estranha!", porque daí aquele medo não existia mais. E houve o primeiro dia... É um barato! Esse medo deixou de existir depois que eu implantei o Projeto nas enfermarias. No Hospital Dia existia o medo ainda. Na enfermaria eu acho que eu me senti tão na pele daqueles pacientes que cada quarto que eu entrava eu lembrava da minha experiência e eu ia ali, limpando a alma com aquilo. E até hoje isso, mas no começo muito mais forte.
P/2 – E aí quem indicava?
R – Ah, no começo foi assim: eu tive uma ponte com uma psicóloga do andar e ela me apresentou para equipe e depois... Eu tinha certa timidez de chegar na equipe, porque você se sente deslocado, você é um artista, de repente você está no hospital e aquele pique de enfermagem, de médico... E eu comecei a entrar em contato com as enfermeiras encarregadas e elas indicavam, mas eu também comecei a perceber que elas não tinham muita boa vontade. No começo tudo é muito difícil, principalmente em relação às pessoas. O que for depender de você a coisa vai, agiliza; agora, quando você depende das pessoas, a pessoa não te conhece, ela não sabe muito bem o que você está fazendo ali, ela não está a fim, ela não simpatizou com você, tem a coisa do dia-a-dia, daquele pique massificante do hospital. Então você chegava, eu todo educado, pá pá pá: "Oi, tudo bem? Dá para você indicar os pacientes?". Ela falou: "Olha, você dá uma olhada aí no censo, tá?". Eu falei: "Ah, tá bom". Tentei duas, três, quatro, dez vezes com a enfermeira e depois eu vi que ela realmente não estava a fim. Aí eu falei: "Bom, arregaçar a manguinha e eu vou começar a fazer isso". Aí eu comecei a ficar mais solto. Chegava lá – como até hoje –, olho no censo, tive que dar umas estudadas nas doenças, conhecer o perfil de cada doença, essa questão da contaminação... Eu tinha medo, disso eu tinha medo porque me assustava, isso me assustava um pouco, a coisa da máscara, qual paciente que eu tinha que pôr máscara, qual paciente que eu tinha que entrar com roupão, com luva e máscara, porque você tem todos os acessórios e cada paciente é um caso e isso era um pouco meio confuso no Emílio Ribas, porque nas portas você percebia que existia uma preocupação de colocar uns símbolos – você ia entrar no quarto do paciente você sabia que tinha o desenho da máscara, então você sabia que você tinha que pôr uma máscara porque aquele paciente estava com problema respiratório, você podia adquirir uma tuberculose e tudo mais –, só que isso não funcionava muito bem porque a enfermagem às vezes não colocava, enfim, que era responsável às vezes não colocava. Então em todos os quartos, para me resguardar, eu entrava com máscara, com luva... E depois eu comecei a perder esse medo. Uma coisa que eu tinha muita necessidade, que era uma coisa interessante, era trocar os pacientes, que era uma coisa que as pessoas não gostam e não faziam. E daí um dia essa psicóloga percebeu e falou assim: "Você está com vontade de trocar, troque. Não tem perigo, só que depois é lavar a mão por questões de higiene". E a coisa começou a me transformar e começou a transformar também os pacientes, a relação artista-paciente, porque eu comecei a perceber que não bastava só eu ir lá e oferecer o material para esse paciente, era muito mais do que isso, eu tinha que ir lá e tocar esse paciente de alguma maneira, pele a pele ou bater papo furado e aí que acontecia o trabalho, porque se fosse aquela coisa mecânica, como médico ou enfermagem faz, a coisa rápida e tudo mais, não rola. Aí eu vi que o Projeto não era só levar arte no hospital, era levar arte no hospital, o lado humano no hospital, o amor no hospital, o toque no hospital, era tudo assim, como até hoje.
P/1 – Agora, ilustra pra mim, como é a sua abordagem? O que é esse papo furado pra levar a pessoa a fazer o negócio?
R – O papo furado é muito gostoso, é muito bom o papo furado! E é papo furado mesmo, porque é assim, você chega lá... Depois que eu vejo o censo dos quartos, então tem lá: "Leito tal, fulano de tal, pneumonia. Leito tal, AIDS mais TB [tuberculose], mais não sei o que lá, mais não sei o que lá". Pela doença você já tem o perfil de como esse paciente pode estar, hoje eu já tenho mais esse feeling aí. Então quando eu abordo o paciente, de repente se o paciente tem CMV, CMV é citomegalovírus, então ele pode afetar os órgãos internos ou pode afetar a visão, alguns pacientes até começam a ficar cegos. Numa abordagem dessas a enfermeira fala: "O fulano está cego ou ele está enxergando muito assim, desfocado". Então eu não vou oferecer uma atividade pra ele, uma proposta que vai frustar ele; eu chego, me apresento, falo basicamente assim: "Tudo bem? Como você está? Bom dia". É bem assim, informal mesmo. Aí eles olham assim... Aí eu falo: "E aí, João? Como você está? Tá melhor?"; "Ah, tô". Daí eles acham que eu sou médico, eu falo: "Olha, eu não sou médico, tá? Eu sou artista, eu faço um trabalho aqui no Emílio Ribas". Quando eu falo que eu sou artista eles fazem assim (expressão); (risos). Eles fazem assim ou alguns franzem a testa. Ele fala: "Ah! É artista?". Eu falo: "É, artista". Daí eles começam a dar uma risadinha. Eu falo: "Então, eu faço um Projeto aqui no Hospital que se chama Projeto Carmim e o Projeto Carmim é um Projeto que eu tenho como objetivo trazer a arte pra vocês fazerem, tá?". Eu deixo eles bem à vontade. "Isso depende de você, você fica à vontade para aceitar ou para recusar, é mais com o objetivo de você se ocupar". Eu até às vezes me coloco, eu falo: "Eu sei que é chato ficar aqui, não é? O que a gente fica fazendo no hospital? A gente olha para o teto, olha para as paredes, não é isso?". Quando eu falo isso... Isso é uma coisa que eu volto a fita... Há quatro anos eu falo a mesma frase. Quando eu falo isso, isso toca o paciente que você não acredita. Quando eu falo que você fica olhando no teto e falo que eu fiquei hospitalizado, sabe, dá um charme no negócio, na abordagem. Então eu uso muito isso, até hoje. "Ah, você ficou hospitalizado?". Eu falei: "Fiquei. Eu sei que é chato ficar aqui, porque ou a gente fica olhando para o teto ou a gente fica sentado que nem você olhando para o horizonte, não é isso?". Ele falou: "É". Daí começa o papo furado. Eu paro, interrompo um pouco a abordagem e começo a ______. Daí eles começam: "Pois é, eu vim aqui, larguei o meu trabalho, pá pá pá, eu moro lá, estou preocupado com as minhas crianças que estão lá com a minha vizinha olhando e eu tenho que pagar umas contas e não sei que lá...". Eu falo: "Você trabalha com quê?"; "Ah, eu faço faxina". Ou quando vem gente do Nordeste... Porque o Emílio Ribas recebe gente do Brasil inteiro. Então baseado nessa história, nesse “papo furado”, nessa história de cada um, eu começo a perceber o que eu posso até apresentar para esse paciente. Um exemplo para ficar mais claro: um dia eu me apresentei para um rapaz, Roberto, e ele – eles são muito assim, simples, as pessoas – falou assim: "Ah, eu teria interesse, sim". Todos falam isso: "Ah, mas eu nunca pintei, eu não sei fazer isso não, pá pá pá". Eu falei: "Mas conta pra mim um pouquinho, você trabalha com quê?". Ele falou assim: "Ah, eu sou pintor". Eu falei: "Pintor?". Ele falou: "É, eu pinto parede, eu até tenho uma casinha pra terminar, mas eu estou aqui hoje, estou preocupado...". Quando ele me dá esse toque então eu falo: "Bom, eu vou oferecer pintura pra ele porque com certeza ele deve ter um olhar mais apurado, uma facilidade melhor pra mexer com cor". É lógico que eu não falo isso pra ele, mas aí eu falo: "O que você gostaria de fazer?", porque eu dou essa abertura para o paciente, eu nunca falo: "Olha, então você vai fazer pintura". Ele fala: "Mas o que você tem para oferecer?". Eu falo: "Olha, eu tenho aquarela, eu tenho guache, eu tenho nanquim...". E é um trabalho, assim... Por isso que a minha preocupação é selecionar as pessoas que vão trabalhar comigo, pra trabalhar direto com o paciente, porque você tem que ter um paciente e uma sensibilidade muito apurada e muita paciência! Porque você está falando nanquim, o cara faz assim e você percebe que ele não sabe o que é nanquim, não sabe o que é guache. Por quê? Pra gente isso é o material básico, mas para eles, eu diria que 80%, eles nunca tiveram contato com esse material. Então você explica: "Olha, nanquim é uma tinta preta...". E tem que descrever mesmo o material. Daí, o que esse paciente faz? Ele falou: "Ah, eu vou fazer pintura, então". O fato dele ter relatado que ele era pintor, pintor de parede... Quando ele responde, quando ele faz os primeiros trabalhos eu já fico de olho nessa resposta, nessa produção dele e é muito assim, é batata, é 100%, assim... Você olha para o trabalho do rapaz e você vê que com as cores primárias, com o branco e com o preto – que são as cores que eu levo para eles – a infinidade de cores que ele faz; você vê a sensibilidade do rapaz pra cor, a coisa da paciência de ficar fazendo vários tons de laranja, vários tons de verde, de brincar e de descobrir a cor. E daí eu vou o quê? Partindo dessa produção eu vou orientando ele pra ampliar o leque dele, que é esse o meu objetivo lá, enfocar as artes plásticas. Não sei se eu falei, mas basicamente a abordagem é assim.
P/3 – Em que momento virou o Projeto Carmim?
R – Pra definir o nome do Projeto foi um parto, passou um pouquinho de nove meses. De 1996 a 1997 eu fiquei sem nome no Projeto, primeiro porque eu queria bolar um nome bem legal, que eu me identificasse e que não fosse muito explícito, entendeu? Eu queria ter um nome que instigasse as pessoas a perguntar. Em 1997, depois de um ano o Projeto começou a ter uma repercussão na mídia e daí eu comecei a ficar preocupado, eu falei: "Agora o Projeto tem que ter um nome", porque o pessoal ia me entrevistar e era muito Eduardo Valarelli. Ainda é hoje, porque...
P/2 – Até então você não estava recebendo nada pra fazer?
R – Não, voluntário. Voluntário.
P/3 – Você trabalhava sozinho?
R – Não, eu trabalhava sozinho. (risos)
P/3 – Até hoje?
R – É, mais ou menos. Nos hospitais eu estou sozinho. Agora aqui eu estou montando um grupo de voluntários, mas pra ajudar nos bastidores do Projeto, porque no hospital é muito delicado você colocar alguém. Só voltando à coisa do nome: daí eu sentia que o Projeto tinha que ter um nome. Eu resolvi pôr um nome que instigasse as pessoas, que fosse um nome que tivesse alguma relação com as artes plásticas e que fosse um nome poético, então eu não queria Arte no Hospital porque eu já tinha ouvido falar Arte no Metrô, Arte na Rua, Arte não sei que lá... Eu falei: "Não, muito mastigado. Vou pôr Projeto Carmim. Carmim". E ficou. Eu tinha que pôr o nome naquela época mesmo, porque se eu adiasse um pouco eu acho que ia ficar uma coisa desagradável, porque as pessoas quando vinham me entrevistar perguntavam, entendeu? Antes de gravar a entrevista: "E aí, como eu falo? Tem um nome o Projeto?". Eu ficava assim: "Ah, não tem ainda". E daí foi a época que nasceu o nome do Projeto.
P/3 – Carmim é uma cor?
R – É, Carmim é o tom do teu vestido, só que é um tom mais rosáceo. É um tom de carne. E por quê? Na época também eu estava com uma produção minha como artista muito voltada para essa cor, carmim. Os meus trabalhos posteriores a esse aqui têm muito carmim, que é exatamente a coisa da fragilidade do corpo que eu discuto nos meus trabalhos. E daí eu falei: "Bom, Carmim? Carmim é vigor, está associado com sangue, com vida". Então é isso mesmo, entendeu? Apesar de terem algumas pessoas que no começo achavam que tinha a ver com morte, eu falei: "Não, é o contrário gente, o sangue nem sempre... Não deve ser associado só com morte. Sangue é vida também". E daí ficou Carmim por ser o nome de uma cor também, ter toda essa associação.
P/3 – Então, Eduardo, seria interessante a gente ter uma descrição tua de algum caso pra gente entender um pouco que processo é esse que acontece a partir do momento que você propõe um trabalho como esse para uma pessoa que está dentro de um hospital.
R – O trabalho é assim, como eu falei, depois da abordagem mais baseada no quadro clínico do paciente, o paciente que está numa condição favorável para ser abordado também, porque às vezes o paciente que não está em condição clínica favorável não adianta nem você entrar no quarto, um paciente terminal é difícil, mas também não é impossível, posso até também depois relatar uma experiência que eu tive com paciente mais terminal. Nesse segundo momento da minha apresentação e tudo mais, como eu trabalho? Como eu falei, o primeiro momento é muito importante, a abordagem, o papo furado, esse contato completamente descompromissado com o paciente. Num segundo momento, esse paciente, depois que ele diz o “sim” para o Projeto Carmim, eu começo a fazer um trabalho de sensibilização com ele. O que seria esse trabalho de sensibilização, que eu acho a palavra mais correta? Bom, primeiro ele escolhe o meio de expressão que ele quer, se ele quer pintar, se ele quer desenhar, se ele quer aquarela, se ele quer fazer colagem e tudo mais. Isso é importante por quê? Não adianta eu oferecer um meio de expressão, um material que ele não se identifique. Depois que ele escolhe esse material eu faço esse trabalho de sensibilização, que seria mais nesse momento fazer com que ele brinque um pouco com esse material. Raramente eu dou uma proposta no primeiro dia, no primeiro ou no segundo dia... No segundo encontro, eu diria, no primeiro ou no segundo encontro. Por quê? Porque pra todos nós eu acho difícil você expressar uma forma num pedaço de papel em branco, a gente sempre tem um bloqueio atrapalhando a gente, uma autocrítica, que é diferente da criança. A criança, quando você dá uma folha em branco ela vai para o lado lúdico, de fazer linha, de riscar, de fazer as garatujas e tudo mais; para o adulto não, existe uma barreira, então eu acho um momento muito delicado. Em segundo lugar porque é um paciente que está num ambiente não comum na rotina dele, então você tem que ir meio se apropriando das necessidades desse paciente, do espaço físico, do quarto, do ambiente hospitalar. Então ele escolhe o material e eu começo a sensibilizar ele para o quê? Vamos supor que esse paciente escolhe pintura, então eu levo um kit de material que foi desenvolvido para esse paciente, para levar esse material até o quarto, tá? Porque é importante também você oferecer uma condição mínima e básica para esse paciente ter um conforto no processo de criação. Daí ele escolhendo o material, vamos supor, pintura, eu levo esse kit, monto na hora e daí eu começo a sensibilizar esse paciente para o quê? Para explorar, conhecer o pincel, explorar as pinceladas, misturar as cores, fazer, construir cores. O que eu comecei a perceber é: no início do Projeto, logo nos primeiros meses... Como eu falei, não basta só você deixar o material e nem essa é a proposta do Projeto Carmim, a proposta é fazer com que esse paciente cresça através da arte durante a hospitalização e para ele crescer através da arte ele tem que entender o que é o processo de criação, porque se não vira o quê? Simplesmente um trabalho de ocupação, que não é a minha proposta. Então esse paciente... Geralmente eu levo nesse kit de pintura as cores primárias – o branco e o preto –, dois tipos de pincéis, um papelzinho, um papel que a gente improvisa como palheta e papéis, bastante papéis. E daí eu começo a trabalhar com ele, porque como eu falei, a maior parte desses pacientes nunca teve contato com esse material, então você tem que começar do zero mesmo, você tem que levar o copinho com água, pôr a água, falar: "Olha, toda vez que você for trocar uma cor você lava o pincel...". E sensibilizar: "Olha, não usa só as cores como ela vem da papelaria. Branco aqui, vermelho aqui embaixo... Mistura as cores". Mistura por quê? Daí eu dou o exemplo da assinatura, da letra: "Cada um tem uma letra diferente, então a cor é a mesma coisa, é legal que você misture as cores porque a cor está muito ligada com a emoção, pra você conhecer a tua cor. A cor do João. Como é a cor do João? A cor do João vai ser diferente da cor do Eduardo". E isso que é bonito, porque daí ele começa a ter essa vivência, essa experiência plástica eu diria, de misturar cor, trabalhar com o pincel, batendo, tinta aguada, tinta pastosa... Então esse primeiro momento é muito lúdico, eu diria. Dificilmente eu dou uma proposta: "Hoje nós vamos fazer um exercício de observação de paisagem", porque eu acho que isso assusta o paciente num primeiro momento. Então é legal que ele tenha uma intimidade com esse material, seja qual for que ele escolha e depois que ele tiver essa intimidade, essa brincadeira com esse material, eu mando ele fazer um trabalho também livre, um trabalho da imaginação. E já dou uma entrada na questão de explicar pra ele de maneira muito simples pra ele não ficar preso que a ideia de arte é a ideia de fazer paisagens, de fazer coisas figurativas, porque eu tenho que também preparar esse paciente e preparar a resposta dele, que geralmente se você não sensibiliza, a tendência é o paciente fazer, mesmo sendo adulto, a casinha, os patinhos e a palmeirinha, que é aquele desenho estereotipado que ensinam a gente erradamente aí nas escolas, porque não existe essa de ensinar, não é? Todo mundo faz a bendita casinha e o patinho, é o desenho estereotipado. Então levemente eu falo: "Olha, João, se solta, faz o que você quiser, se você quiser passear com o pincel pela folha você passeia, se você quiser misturar cor... A única coisa que eu gostaria que você fizesse é que você ocupasse bastante o espaço dessa folha, desse papel, pra você trabalhar e conhecer o material que você está trabalhando e não se preocupe em fazer paisagem, em fazer casinha, em fazer árvores. Faz manchas, faz uma coisa totalmente da tua cabeça". E isso eu comecei a perceber que os resultados eram muito positivos, porque existia... Quando você fala isso você deixa o paciente com um certo descompromisso nesse primeiro momento, o que eu acho extremamente importante, porque a tendência o que é? "Puxa, será que ele vai gostar?", porque na verdade as pessoas têm o que? A gente se preocupa com o resultado final e eu tento sempre passar pra eles que o mais importante é o processo de criação, ele tem que estar atento a perceber o que acontece. O que acontece quando ele mistura branco e vermelho e uma pitadinha de preto? Ele tem que estar atento a isso. E o meu papel ali é esse, é sensibilizar ele, ampliar o referencial dele para essas descobertas, que às vezes eu percebo que ele não percebe porque a coisa fica mecânica no fazer, por isso a importância que à medida que ele vai produzindo eu vou pendurando os trabalhos na parede, que é exatamente por dois objetivos, primeiro é para ele perceber que existe uma evolução plástica, que do primeiro trabalho para o quinto ele já dá um passo, do quinto para o décimo ele já tem outra evolução. E também para humanizar o quarto dele, então é legal que daí a arte vai apropriando aquele espaço frio, cheio de equipamento, aquela coisa tudo limpinha... Ela vai transformando aquele espaço e eu diria que vai até personalizando o quarto dele.
(PAUSA)
P/3 – E como você trabalha conteúdos? Devem surgir, não é? Quer dizer, você está trabalhando com uma pessoa numa situação crítica, especial. Como você vai trabalhando artisticamente esses conteúdos que surgem desse processo que ele está vivendo?
R – Legal você ter perguntado, porque algumas vezes, quando o paciente é um pouquinho mais esclarecido, ele chega pra mim – eu estou no meio da abordagem – e fala assim: "Ah, mas você vai fazer leitura psicológica do meu desenho?", quando ele é um pouquinho mais esclarecido. Eu falo: "Não, não!". Totalmente transparente. Eu falo: "Não, João, veja bem, eu sou artista plástico, o meu papel aqui é outro, é trazer os materiais pra você e fazer com que você inicie um processo de trabalho e você aprenda alguma coisa durante a sua permanência no hospital, tá?". Agora, isso quem vai dar as diretrizes pra mim é o paciente, é ele que vai dar, porque eu vou respondendo e vou apresentado as propostas de acordo com as necessidades dele e com aquilo que ele vai respondendo pra mim, então... Porque eu comecei a perceber que era importante ser transparente pra ele no enfoque real do Projeto Carmim, que é uma coisa que eu faço questão de falar aqui agora, porque é uma coisa que as pessoas têm uma visão meio preestabelecida; você entra no hospital com tinta e pincel, ou você vai fazer terapia ocupacional ou você vai fazer arte-terapia e não é isso na verdade.
P/2 – E qual é a diferença?
R – Eu acho que são objetivos específicos nos três canais aí de se expressar. Eu acho que o arte-terapeuta vai lá com objetivos específicos da arte-terapia.
P/3 – Onde a arte é um recurso?
R – Exatamente, onde a arte é um recurso pra ele ter um material pra ele trabalhar o lado terapêutico do paciente. O terapeuta ocupacional não foge muito disso, ele vai usar a arte como um recurso para trabalhar ou a parte motora ou a parte que ele tem algum problema de defasagem. E o que o artista vai fazer no hospital? Eu vou ali trabalhar a arte em sua essência, entendeu? Eu estou preocupado com o quê? Com os elementos formais, com linha, com cor, com luz, sombra, com a poética do trabalho: "O que esse paciente está construindo durante dois meses de hospitalização? O que ele fez? Quarenta trabalhos, o que tem nisso? O que resultou esse processo de quarenta trabalhos?". Então é isso o que me preocupa. E principalmente, como eu falo, ampliar o leque desse paciente, ampliar o referencial, dar uma oportunidade pra ele dentro do hospital que eu acho que é uma coisa que é importante, eu acho que o hospital é um espaço, um terreno fértil que pode promover o desenvolvimento desse indivíduo como ser humano, mesmo diante muitas vezes de um estágio frágil na vida dele. E isso é importante, entendeu? Eu acho que a arte tem esse papel fantástico. Então, um exemplo que eu ia falar, amarrando com isso: uma vez, no começo, quando falavam "Ah, leito tal, paciente tal. Ah, esse paciente está em fase terminal". Então eu comecei a ter uma visão preestabelecida do que era um paciente em fase terminal. No decorrer do trabalho eu comecei a perceber que esse paciente terminal tinha que ter a mesma oportunidade que os outros pacientes que não estavam em fase terminal, com o Projeto. Se esse paciente estiver em fase terminal e quiser pegar um lápis e fazer uma linha? É um direito dele. Daí eu comecei a questionar a minha postura e foi uma experiência fantástica e que também tem tido resultado. Quando o paciente está em fase terminal, mas ele não está confuso mentalmente, ele só está extremamente... Vulgarmente falando, esperando a morte, eu aprendi que existe... Que é uma coisa que me emociona muito... Mesmo numa situação assim, de limite, de passagem entre vida e morte, é impressionante como enquanto há vida a pessoa tem a vontade de fazer alguma coisa. Essa paciente ficou oito meses hospitalizada, no Emílio Ribas também, oito meses! Ela oscilava entre vida e morte. Eu ia numa semana: "Ah, fulana está mal, ela não passa desse dia". A equipe médica, a equipe de enfermagem... Frágil de tudo, frágil! Ela só ficava na horizontal mesmo, não conseguia nem sentar e nem podia subir a cama, porque ela tinha umas escaras terríveis, então ela só ficava assim, mas frágil assim. Ela sumia na cama. Eu cheguei e falei: "Eu vou conversar com ela". Bom, eu fui totalmente... Como a gente... Vivendo e aprendendo. Eu fui completamente assim, falei: "Ela vai falar um não". Quando eu apresentei pra ela, ela não estava confusa, muito lúcida, eu falei: "Ah, eu sou fulano do Projeto Carmim. Você gostaria de fazer alguma atividade, pá pá pá...". Eu pensei que ela ia ficar: "Ai, eu não estou boa, estou sem condições...". Ela falou assim, a primeira coisa: "Eu quero sim", com a voz bem fraca. Eu falei: "Você quer?". Ela falou: "Quero". Aí eu falei: "O que você quer fazer?"; "Pintar". Ela fazia assim: "Pintar". Eu falei: "Então tá bom". Fui pra sala, peguei o kit de material e falei: "É agora!". Daí tive que montar um esquema todinho pra ela porque ela não podia sentar, abaixei a mesinha, peguei um papelão de chapa de raio x, coisa de improvisação lá do hospital e pus assim, com um calço e ela fez oito trabalhos, entendeu? Totalmente assim, fragilizado, uma linha hiper... Uma pincelada fraca, mas ela fez oito trabalhos, eu pendurei os oito trabalhos, os filhos dela iam visitá-la... Quando eles estão em fase terminal o hospital libera visita, família, os mais próximos... E ela começou a mudar o comportamento dela e daí a equipe médica começou a ficar de olho que tinha mudado alguma coisa, quer dizer, eu aprendi e a equipe aprendeu também. Então hoje, quando tem paciente terminal que não está confuso, eu passo e ofereço também. E voltando um pouquinho na questão do conteúdo que a Morgana perguntou, pra ficar mais claro isso: depois que esse paciente começa a pesquisar os materiais, a ter uma intimidade com esse material, ele tanto pode continuar com esse mesmo material, como ele pode de repente falar: "Ah, eu não gostei disso não", porque acontece, então eu levo outro material pra ele. Às vezes ele não se dá com o material e acha que ia gostar. Quando ele se define com o material, com o meio de expressão, daí eu começo a observar a produção dele e daí que é rico, daí que entra a questão da arte, do enfoque das artes plásticas, da história da arte, da arte-educação, que não é simplesmente oferecer o material, como eu falei, porque à medida que ele vai apresentando os trabalhos pra mim, à medida que o tempo vai passando, da internação, eu vou começando a perceber... Às vezes vai surgindo automaticamente uma temática no trabalho desses pacientes, uma discussão, que a gente tem que ficar muito atento pra isso. Então, um exemplo, tinha um paciente que começou a trabalhar, participar do Projeto e eu comecei a perceber que no quarto, os trabalhos... Toda semana que eu chegava predominava muito a figura feminina, sempre figura feminina e umas figuras muito fortes, mas ao mesmo tempo que essas figuras eram femininas elas também tinham uma característica meio masculinizada. E cenas muito peculiares: a figura feminina se maquiando, a figura feminina num cavalo, a figura feminina dando a luz... Tem esse trabalho aí, eu não sei onde que está. Então eram cenas assim, muito específicas da mulher. Nessas horas eu acho importante fazer ponte com a Psicologia, porque eu acho que o Projeto pode ser um suporte para a Psicologia, mas ele não necessita obrigatoriamente do trabalho, da parceria com a Psicologia, porque eu acho que essa coisa descompromissada com outras áreas facilita o meu trabalho, porque o paciente evita... Eu acho que o paciente não gosta de ser interpretado, ele não gosta, ele não quer que o trabalho dele tenha avaliação interpretada da psicóloga, ele quer simplesmente participar do Projeto pela arte em si. E, nesse caso desse paciente, eu fiquei muito curioso e falei com a psicóloga: "Olha, eu acho interessante os trabalhos do paciente, está aparecendo muita figura feminina...". Ela falou: "Olha, se isso te acrescenta, é o seguinte, ele tem uma história hiper triste, ele é homossexual e ele se travestia, até saber que estava com o vírus da AIDS". Quando ela falou isso, eu falei: "Bom, já basta então". E isso me fascinou muito, porque eu falei assim: "Que bom, porque agora isso serve como material", quer dizer, eu já tinha a coisa visualmente, pela produção dele, e ela reforçou isso, porque os trabalhos eram muito fortes, específicos. Então de repente eu entrava no quarto e tinha o desenho de uma criança... E ele desenhava muito bem, muito bem! Tinha uma criança, um bebezinho, que você olhava e você não sabia se era a menina ou o menino, porque esse bebezinho tinha uns seios; olhando no rosto parecia menino, mas o corpo era feminino, então era muito forte e eu tinha que questionar mais isso. E bom, não veio ao caso, eu não comentei nada disso com ele, isso só confirmou o que eu estava desconfiado. Daí eu falei assim: “Por que então não usar esse conteúdo que ele está me dando, esse material que é valioso e não ampliar o leque dele?”. Nessas horas que eu entro com a história da arte, que eu acho que é uma coisa que eu curto muito e desde o início que eu concebi o Projeto eu acreditei nisso, da história da arte sendo um meio de fundamentar o processo de criação. Eu acho que a história da arte fundamenta tudo o que você tem de dúvida sobre a pincelada, sobre a construção da cor, sobre a forma, sobre a poética, porque você tem ali o fato concreto, você tem o artista, o Van Gogh que tem uma história trágica, que cortou a orelha, que não conseguia vender os seus trabalhos, quer dizer, porque a pincelada dele é toda espiralada, aquelas tintas pastosas com relevo... Tudo isso tem uma carga muito grande. Então eu comecei a ver que esses trabalhos do universo feminino desse paciente mereciam, assim... Eu falei: "Eu vou apresentar um artista, que eu acho que ele vai se apaixonar por esse artista", que foi o Di Cavalcanti. Então eu fui, eu não tinha nada do Di Cavalcanti, mas na hora me veio o Di Cavalcanti, porque eu falei: "As Mulheres do Di Cavalcanti, As Negras do Di Cavalcanti...". E daí é uma loucura, porque você mergulha de vez. Eu fui ao MAC [Museu de Arte Contemporânea], na biblioteca, pesquisei, peguei um livro... Nem falei que ia levar ao hospital, com paciente de AIDS ainda, já se viu que a pessoa ia me emprestar. Peguei o livro e falei: "Olha, está aqui. Jesus, toma cuidado com esse livro. Olha isso aqui, vê se você gosta". Eu ali do lado vendo aquele paciente folhear... Era um livro assim! Folhear folha por folha, ver todo o processo do Di Cavalcanti, as aquarelas, os estudos, os esboços... Ele foi se apaixonando pelas mulheres. E daí entra o meu papel de novo como artista, na minha visão como artista. Qual era o meu objetivo ali? Não era fazer com que ele pegasse o trabalho do Di e copiasse. Então entrei num outro momento de sensibilização. Expliquei pra ele que... Eu falei: "Você gostou?"; "Gostei! Que coisa linda! Adorei! Essa, essa...". E ele escolhia as mulheres mais exuberantes do Di, as mulheres dos prostíbulos, as mulheres na solidão... Uma temática muito entre a solidão e vida boêmia. Eu falei: "Você gostou?". Ele: "Adorei. Poxa, eu não conhecia esse cara, já tinha ouvido falar...". Eu falei: “Então tá bom, vamos fazer o seguinte: eu vou te dar uma proposta e eu gostaria que você escolhesse os trabalhos que você mais se identificou, que mais mexeu com você quando você folheou e viu e deu aquele friozinho no coração". Daí ele escolheu quatro trabalhos. Eu falei: "Então eu vou dar a proposta pra você". O objetivo de você entrar com a história da arte é esse, é de você sensibilizar esse indivíduo para a forma, para a cor, para a composição do trabalho do artista, para o tipo de pincelada, para a construção de cores, pra luz, sombra, os ritmos... Quer dizer, se aqui está entrando uma luz, aqui está escuro... "Olha que aqui é mais aguado o tratamento dele, a roupa dela está caída, com a linha ele conseguiu dar um peso no vestido...". Então eu vou fazendo com que ele vá trabalhando a percepção dele e enxergando todo esse universo que está ali na poética do artista. E falo pra ele: "Eu não quero que você copie, para mim a cópia não tem valor aqui. Eu quero que você faça uma interpretação do trabalho do Di Cavalcanti. É você com os seus olhos vendo o trabalho do Di Cavalcanti. Então você tem liberdade de fazer predominar aquilo que você gostou no trabalho dele, você tem liberdade de tirar coisas, alterar cores, colocar elementos, mudar a composição, fazer o que você quiser... Colocar outros objetos... Se você de repente quiser colocar um orelhão dentro da sala você coloca, porque você vai reler o trabalho dele e reler não é cópia, você vai interpretar". E é muito legal, porque aí você vê resultados fantásticos, você vê que o processo foi fechado, quer dizer, teve um início que era tímido, depois teve um meio que ele estava amadurecendo e depois teve um terceiro momento que você entra com história da arte, que também não são todos os casos que você fundamenta com história da arte... E ele consegue ver e fechar o processo de criação, ele consegue sacar tudo do processo.
P/3 – Eduardo, você falou muito da questão do processo criativo. Você acredita que essa situação de uma hospitalização, de uma doença, tem alguma influência no processo criativo ou não é uma relação que se estabeleça a priori? Porque eu fiquei pensando, por ser uma situação de crise...
R – Ah, Morgana, nesses quase quatro anos de Projeto Carmim eu acho que a hospitalização favorece o processo de criação, eu vejo pela minha experiência de hospitalização. Eu não sei se eu falei no primeiro momento, mas quando eu fiquei hospitalizado... Eu acho que eu até falei, eu senti necessidade de ter um bloquinho, um caderno... E olha que eu não tive grandes ideias de levar guache, aquarela... Era um lápis e um bloquinho de desenho. O hospital com certeza é um terreno fértil para essas iniciativas, entendeu? Eu acho, porque você está trabalhando... Eu acho que a gente tem um hábito de ver a dor, a hospitalização como um aspecto só negativo e, como eu falei, a hospitalização pode promover esse indivíduo que está no hospital, ela pode ser um meio através da arte pra promover. Quer dizer, durante a hospitalização as pessoas com certeza ficam muito fragilizadas, os valores vão de extremos o tempo inteiro, você vive em altos e baixos, você faz um balanço da tua vida... Eu tenho percebido isso, que a dor pode ser um alerta sim para você perceber a vida, que até então... Parece ironia, quantos pacientes eu não percebo que às vezes você chega e às vezes é difícil. Às vezes na abordagem o paciente fala assim: "Ai, mas eu não levo jeito para essas coisas. Ai, eu nunca pintei, eu não sei, imagina! Eu não levo jeito pra isso". Se o paciente me dá a chance, me fala o “sim”, ele se surpreende com o primeiro ou segundo trabalho dele: "Olha, eu nem sabia que de repente no hospital eu ia fazer isso, ia conseguir fazer uma paisagem, ia conseguir aprender a fazer uma aquarela". Então eu acho que é hiper notável, que esse paciente percebe que ele tem um potencial, que ele tem um imaginário fértil e que ele tem uma criatividade, ele tem potencial, que não é o fato dele estar hospitalizado que ele é inútil, que ele é somente passividade e dor, entendeu?
P/2 – Como o médico avalia esse trabalho? Como é esse contato com o médico? Ele é visto? Como é esse trabalho com os outros profissionais do hospital, até em termos da avaliação de uma possível melhora desse paciente?
R – Olha, no início do Projeto, como eu falei, a coisa era meio complicada, apesar de que eu não tive grandes aborrecimentos de, por exemplo, um médico me parar no corredor e falar: "Quem é você e o que você faz aqui?", porque eu percebi que eles olhavam de uma maneira estranha pra mim porque nas primeiras semanas, nos primeiros meses, o que acontecia? Eu vinha de um lado do corredor, daí vinha o médico com a equipe, com os residentes, a enfermeira com a bandejinha de soro, de medicamento e eu passava com bandejinha de tinta, pincel... Eles saíam da visita e eu entrava, eles olhavam assim... Depois uns olhavam meio torto, eu falei: "Hummmmm!" (risos) "Bom, o máximo que eu vou é ser convidado a me retirar, não é?", mas como eu tinha a aprovação do diretor...
P/1 – Você fica de jaleco?
R – No começo... Eu fico atualmente, mas eu estive assim... Há um ano e meio que eu estou de jaleco. No Emílio Ribas você tem que andar com uma roupa própria que é um jaleco deles, um jalecão grande, e você tem que trabalhar com aquilo para você não se contaminar ou levar bactérias para os pacientes. Depois, com essa questão de entrevista, de mídia e até uma questão de profissionalismo, de marketing e tudo mais de divulgar o Projeto no hospital, eu achei que eu tinha que criar um uniforme. Até eu não curto muito jaleco. Outro dia eu fiquei louco com uma entrevista que eu dei que a pessoa falou que eu, baseado na minha experiência eu pus o jaleco pra fazer uma coisa assim meio de homenagem para os médicos e não é nada disso, sabe? Ponho o jaleco porque o jaleco é um instrumento de trabalho do hospital, mas eu particularmente não gosto do jaleco, pretendo um dia mudar esse uniforme – e porque é prático também. Daí, com relação aos médicos, no começo eu nunca tive um médico que chegou e falou: "Quem é você? O que você está fazendo com essas tintas aí?". Eu até esperava isso pra ser sincero, porque quando passavam eles de cá e a gente se cruzava no corredor tinha umas olhadas assim, 45 graus, eu falei... Então todo dia que eu passava e me deparava com médico eu falava... Eu não falo hoje, mas eu também já tinha uma resposta meio preestabelecida. Nunca aconteceu isso, mas nunca também havia essa afinidade, essa coisa de... Porque o que eu percebia na verdade é que as pessoas não acreditavam muito no meu trabalho. As pessoas na verdade achavam que eu era mais um voluntário que ia entrar no Emílio Ribas e ia passar um mês, dois meses, eu não ia aguentar e ia pular fora e tudo mais. Quando eu comecei a ter as dificuldades, e sempre batalhando muito sozinho assim... Porque eu nunca cheguei no hospital e falei: "Olha, eu quero marcar uma reunião com o diretor, eu acho que vocês têm que bancar isso e tudo mais”; eu não queria me estressar com esse tipo de coisa, eu não queria perder o tesão pelo Projeto com coisas burocráticas, tanto que até hoje no Emílio Ribas eu entro com o material, com doação e tudo mais. Eu não tenho nenhum apoio financeiro e nenhum tipo de parceria formal com o Emílio Ribas em termos de material e tudo mais, porque lá é um hospital que eu tenho muito carinho, eu me identifico muito com aquele hospital, então eu não quero me aborrecer lá, eu quero fluir lá, o meu trabalho eu quero que flua da melhor maneira possível. E aí o que aconteceu? O meu Projeto começou... Apesar das dificuldades eu nunca fiquei criando controvérsias com a direção, fui sempre tocando o Projeto, o Projeto começou a ter receptividade da mídia, daí as pessoas começaram a acreditar mais no Projeto.
P/2 – Da mídia como? A própria assessoria de imprensa do hospital?
R – Não, não. Tudo o que eu consegui, assim... Uma ou duas matérias foi via hospital, mas na verdade o Projeto teve receptividade da mídia por uma iniciativa minha, que foi de mandar o release para o Caderno 2 e aquela matéria foi pauta e foi chamando e daí o Projeto começou a ser mais conhecido. As pessoas começaram a ter essa visão melhor e daí eu comecei a perceber o quanto é “meio podre” o mundo. Eu falei: "Bom, vou deixar essas coisas de lado, vamos lá, vou continuar o trabalho. Que bom, agora tem simpatizantes e vamos lá trabalhar e tudo mais". Daí as coisas foram fluindo naturalmente. Eu nunca forcei barra em relação à equipe multiprofissional e nunca esperei nada deles em termos de participar do Projeto. E é o que eu falo e sou repetitivo nisso. Eu acho que os melhores parceiros do teu trabalho são os próprios resultados. Então eu não fiquei fazendo política com médico, com enfermeira, fazendo isso, fazendo aquilo; eu fiquei na minha o tempo inteiro, sempre agindo com profissionalismo, com total transparência, com total assiduidade e daí eu fui percebendo que isso foi o meu melhor parceiro e, lógico, o resultado dos pacientes, da participação, dos trabalhos... Daí a equipe multiprofissional começou a chegar até mim. Quando eu passava no corredor com a tinta eles não passavam reto: "Olha, que legal!" ou então os pacientes chegavam: "Nossa, os médicos vieram aqui e acharam lindos os meus trabalhos. Teve um até que encomendou um". Aí eu ficava sabendo do retorno... Muito legal, eu ficava sabendo do retorno pelos próprios pacientes. E como eu ia à tarde naquele período no hospital e a coisa efervesce de manhã nos hospitais, eu não tinha muito essa coisa... Esse feedback da equipe multiprofissional, porque à tarde o hospital é vazio. Então eu ficava sabendo do retorno via paciente. Depois que eu passei a trabalhar de manhã – até hoje eu estou de manhã – a coisa já estava completamente mais integrada. Os médicos... Hoje a coisa é muito mais assim, parceria, eu diria. Então o médico me chama: "Ah, você não quer dar uma passadinha na Adriana? Ela tá hiper deprimida". Daí eu vou lá, consigo fazer com que ela comece a trabalhar e eles vêm: "Olha, que legal, graças a você". Então isso eu acho muito legal porque é um retorno que eu tive por parte da equipe e que tenho baseado no trabalho, no meu trabalho e na resposta dos pacientes e não na coisa de paparicar e tudo mais. Eu sou muito transparente.
P/2 – Eduardo, vamos falar agora do Projeto Carmim hoje. Hoje, dando um gancho com isso que você está falando, como ele vai se estruturando? Entra um patrocínio? Em que hospitais ele está?
P/3 – Com que frequência?
R – Bom, hoje o Projeto Carmim já passou pelo momento mais difícil, que é o momento das implantações. Como eu falei, o começo é difícil. Você começa no hospital, depois fica um, dois anos no mesmo hospital, daí você tem que conseguir outro hospital... E no começo as pessoas, enquanto elas não têm a visão da real importância do Projeto, você corre o risco de ficar só no hospital, que não é a meta da gente. Hoje o Projeto Carmim eu diria que passou por esse momento inicial de implantação, eu acho que a gente está passando por um momento de transição, que é um momento que eu estou tentando aprimorar mais a metodologia do trabalho, cada vez mais a se constituir como uma pessoa jurídica, porque até então o Projeto Carmim é pessoa física, eu não agilizei isso antes porque eu também não achava que era o momento... Eu prefiro acompanhar a natureza do tempo, entendeu? Quer dizer, o próprio Projeto vai pedindo coisas pra você e basta só você ficar ligado a essas coisas e ver. Não está dando certo o Projeto Carmim ser pessoa física, porque está me dificultando isso, isso e aquilo. E mesmo porque era uma meta minha de depois do terceiro, quarto ano se constituir uma entidade mesmo. Então a gente está nessa fase de transição. Atualmente o Projeto Carmim está em quatro hospitais; nós estávamos em cinco e eu desfiz a parceria com um dos hospitais. Então nós estamos atuando em quatro hospitais: o Hospital Emílio Ribas, o Hospital da Criança – que é o primeiro hospital que a gente trabalha com o público infantil –, o Hospital Nossa Senhora de Lourdes com pacientes adultos, são pacientes também com quadro muito delicado, são pacientes que saem, são pacientes pós-UTI, então é um perfil de paciente que tem que agir com muita cautela, e o Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, a gente está com dois, três meses lá, que é um hospital muito legal, uma experiência muito rica, que são com pacientes com anorexia. São pacientes que ficam muito tempo hospitalizados, um tratamento hiper longo, no mínimo de três a cinco meses hospitalizados e depois tem o acompanhamento no Hospital Dia, ambulatório e tudo mais. E também agora eu comecei com anorexia...
P/2 – Por que com anorexia?
R – Anorexia é um distúrbio na alimentação e tudo mais.
P/2 – Mas por que com esses pacientes dentro do Instituto de Psiquiatria?
R – Isso foi uma parceria; aconteceu um convite da Associação Reluzir, é uma Associação recém-fundada que tem como objetivo dar apoio para os pacientes de anorexia e familiares, então é uma entidade que trabalha junto ao Ambulim, que é o ambulatório do Instituto de Psiquiatria. Eles me convidaram via Ana Maria, da Ashoka e eu estou implantando o Projeto lá e hoje também eu estou trabalhando com outros pacientes, pacientes com esquizofrenia e tudo mais, então estou abrindo o leque. Uma coisa muito legal é que o Carmim tem recebido convites de hospitais, provavelmente para o próximo ano, porque esse ano não tem mais condições. Então eu acho que o Carmim hoje seria assim, eu começo a perceber que ele está tendo outro tipo de receptividade, além dos pacientes. Agora o Carmim está numa fase de trabalhar mais a divulgação, que é uma coisa extremamente importante e com a participação em alguns eventos, simpósios, seminários, isso tem contribuído muito pra divulgar o trabalho para o pessoal da área médico-hospitalar e tudo mais. Com essas experiências de apresentações em seminários, congressos, essas pessoas estão entrando em contato comigo pra convidar, pra ver se existe a possibilidade do Projeto ser implantado nesses hospitais, isso para o próximo ano.
P/2 – E trabalho com o Einstein?
R – O Einstein eu trato ele há dois anos. Então uma coisa muito importante é que a instituição entenda também o enfoque do teu trabalho, porque eu acho que é uma coisa que a gente tem que tomar um certo cuidado, existe uma preocupação minha em relação a esse modismo de humanização. Então você tem que colocar muito bem o diferencial do teu trabalho, a proposta em si, o enfoque do teu trabalho, quais são as suas metas, quais são as suas prioridades, porque se ficar naquela coisa muito de modismo: "Ah, palhaço! Vamos levar ______ no hospital. Ah, atelier vamos lá". Eu acho que os hospitais têm que ter uma preocupação também nisso, quais projetos receber, quais projetos entrar, quais as propostas... Porque se não cai no oba-oba. E a minha parceria foi de dois anos com o Einstein, com a oncologia, trabalhava com pacientes com câncer, foi um trabalho muito legal que eu fiz lá com os pacientes, foi um retorno muito legal, que era uma coisa que me preocupava, porque foi a primeira classe mais diferenciada em termos de público do Carmim e eu não sabia como essa classe mais favorecida, eu diria, iria receber o Projeto, se ia ter interesse em participar. E foi muito positivo lá também, mas começou a haver algumas divergências na parceria e então eu achei melhor tomar outro caminho, eu acho que isso faz parte da trajetória do Projeto.
(PAUSA)
R – Uma coisa que eu não comentei: o Projeto Carmim, além do programa nos hospitais, existe dois programas que já estão engrenados, eu diria; um programa de doadores que ainda precisa ser mais trabalhado em termos de divulgação e tudo mais, que se chama Programa de Doadores Carmim, que são pessoas que se interessarem, pessoas físicas e jurídicas que quiserem colaboram com o Projeto doando mensalmente, semestralmente uma contribuição e tudo mais, isso a gente faz via Informe Carmim, que é o boletim informativo da gente. Existe o Programa de Exposição, que a gente chama de O Branco em Cores, que é um programa que tem como objetivo a produção plástica dos pacientes, que isso é uma coisa importante. Quer dizer, pra fechar todo esse processo de trabalho desde o processo de criação, eu acho importante da criação até a exposição, porque é o momento em que o paciente vai ver o seu trabalho sacralizado, eu diria. Eu acho importante que o trabalho dele seja exposto, primeiro para ele, para ele ver que realmente o trabalho dele não está sendo exposto ali por comiseração, por piedade, porque ele é um paciente; o trabalho dele vai participar daquela exposição porque é um trabalho que tem um valor, que está dentro de um contexto da curadoria daquela exposição... Para ele perceber esse potencial dele e ficar concretizado isso pra ele. Num segundo momento seria para o público ver a real importância dessas ações nos hospitais e ver que não é o fato do paciente estar com AIDS, com câncer, enfim, qualquer doença, que ele é incapaz, quer dizer, a resposta final, o resultado final está no trabalho, que são trabalhos belíssimos para pessoas que nunca pegaram num pincel, num lápis, nunca tiveram oportunidade de ter um contato com a arte. Esse Programa Exposições tem três etapas, eu diria: de promover mostras no ambiente hospitalar para divulgar a produção dos pacientes para os funcionários do hospital, acompanhantes, visitantes e tudo mais; promover exposições em locais públicos, que é a exposição que a gente vai promover agora no Metrô Clínicas, que é a primeira exposição – que eu estou hiper ansioso – do Projeto para a grande massa. Essa produção vai ser divulgada, é uma exposição que vai ter 105 trabalhos de 67 participantes. É uma exposição grande.
P/2 – Onde? Metrô Clínicas?
R – Metrô Clínicas. Então vai ser a primeira divulgação dessa produção para a grande massa. E a terceira etapa seria levar essas exposições, promover mostras itinerantes, de repente, sei lá, levar essa exposição pra Salvador... Divulgar, porque aí você está divulgando a ação do Projeto e divulgando a produção dos pacientes, sabe? Porque o Projeto também tem um efeito multiplicador, eu acho que também é por aí. Uma coisa que a gente está... Esse ano foi muito positivo para o Projeto Carmim e foi um ano que o Projeto cresceu, deslanchou. Apesar de ainda a gente não ter um patrocinador e das dificuldades e tudo mais, o Projeto esse ano conseguiu alguns reconhecimentos que eu acho fundamental: ganhou o prêmio Sheila Cortopassi de Oliveira, que é um prêmio promovido aí pela APTA que é Associação para Prevenção e Tratamento da AIDS, o Projeto Carmim ganhou o prêmio categoria Artes Plásticas. E foi uma coisa muito legal pra mim, fiquei hiper contente e surpreso e comecei a ver a receptividade do Projeto, enfim, o reconhecimento do Projeto no público externo. A gente ganhou um prêmio num congresso de Psicologia na área hospitalar em Curitiba, um prêmio em dinheiro, o primeiro prêmio que também ajudou o fundo do Projeto Carmim. No começo do ano um reconhecimento valiosíssimo, que foi o reconhecimento eu, Eduardo, como empreendedor social, que foi da Ashoka Empreendedores Sociais, que é uma organização internacional que identifica empreendedores sociais que tenham ideias inovadoras e projetos de impacto social; eu com o Projeto Carmim fui selecionado numa seleção aí hiper rígida... E eu acho que a Ashoka tem um selo, um reconhecimento, um carimbo. Um aval da Ashoka é um mérito, um presente pra qualquer pessoa que tenha um projeto que esteja num momento inicial, numa etapa de implantação ainda.
P/3 – Rapidamente, o que é a Ashoka?
R – O que é a Ashoka? A Ashoka é uma organização internacional que tem a sede em Arlington, na Virgínia, Estados Unidos e é muito legal a proposta deles, porque eu vejo assim, que é uma proposta diferenciada da maior parte das fundações. Por quê? Porque antes de chegar até a Ashoka eu já tinha tentado uns contatos com algumas fundações e a minha grande dificuldade era a seguinte: como eu sou pessoa física e na época eu era ainda mais físico ainda, que estava começando o Projeto, só eu ainda... (risos), batia na porta das fundações, o que acontecia? "Ah, a gente não financia projeto de pessoa física, a gente só financia projetos de entidades", então eu via isso muito como uma barreira que acaba desestimulando você, porque eu acho que quando você está no começo, sem apoio nenhum, sem nada, não é uma entidade, você tem que contar com os apoios das organizações. Então a maior parte, eu diria que 80%, 90% das fundações sempre só financiam projetos de entidades. E a Ashoka nesse sentido é extremamente... Eu acho que se não for a única é uma das únicas, que ela rastreia essas pessoas que têm ideias inovadoras e eles entram em contato com você, você apresenta o projeto e você passa por uma seleção rigorosa de três etapas com os diretores e depois por um painel final que você passa... As entrevistas duram no mínimo dez horas, treze, catorze horas. É um negócio extremamente desgastante, mas muito positivo porque você acaba fazendo um exercício do seu trabalho no decorrer das entrevistas. Depois que você tem essa aprovação você passa a receber um apoio financeiro pessoal pra você, empreendedor, pra você ter condições de sobreviver, de conseguir ter uma grana mensal e você conseguir se dedicar de maneira mais light para teu trabalho. Então basicamente é isso. E é criada e você acaba fazendo parte de uma rede mundial de fellows, que é como a gente é chamado, você se torna um membro da Ashoka e você tem a possibilidade de fazer parcerias com outros membros dessa rede mundial; de repente se um fellow da Argentina quiser fazer uma parceria comigo, de apresentar o Carmim, fazer um Workshop na Argentina, a gente faz essa parceria. Um ajuda o outro, a ideia é essa, então é muito positivo. E outra coisa pra finalizar do Projeto Carmim, é que a gente vive de parcerias, de doações de algumas empresas de materiais artísticos... Como eu falei, a grande dificuldade da gente, o grande desafio é conseguir um patrocinador e esse é um desafio imenso, que nesses quase quatro anos eu tenho batalhado o tempo todo. O Projeto tem apoio das duas leis de incentivo à cultura, aprovação das duas leis de incentivo à cultura, mas mesmo com esses benefícios fiscais que essas leis oferecem às empresas a gente não está conseguindo achar um patrocinador. E eu acho que é mais do que um patrocinador, na verdade a gente precisa de um patrocinador e de um parceiro; não basta só entrar com a grana, é importante que essa empresa entenda o teu Projeto, que acredite na missão do teu Projeto e que a gente agregue valores juntos. Enquanto a gente não tem isso... E mesmo que tivesse, é importante que o Projeto tenha condições de poder se autosustentar. Então é o momento que a gente está enfocando mais este ano; é o primeiro ano que a gente vai ter um produto do Projeto que são seis imagens de trabalhos de pacientes que vão se transformar em postais e que a gente vai promover um evento, enfim, vai vender esses postais pra angariar fundos para o Projeto Carmim. As camisetas que a gente vai ter também... Enfim, basicamente o Projeto é isso. A gente está criando um grupo de Voluntários Carmim, não pra trabalhar nos hospitais, como eu falei, é uma causa ainda que eu tenho que elaborar mais, que o objetivo é trazer profissionais da área de artes plásticas que passem por um treinamento também... Até a Morgana vai me ajudar qualquer dia. (risos) Que passem por um treinamento e tenham uma formação legal para atuar com os pacientes. E esses Voluntários Carmim são pessoas de diversas áreas que já conheciam o trabalho desde o início e estão dando uma força nos bastidores do Projeto. E o objetivo de projetos futuros para o Carmim seria de montar um atelier cooperativa onde esses pacientes... Porque existe um envolvimento muito grande, um vínculo muito grande e eu percebi que mesmo depois da hospitalização, da alta, o paciente quer ter um vínculo com o Projeto, então eu pensei: "Por que não criar um atelier cooperativa onde esse paciente aprimore a parte técnica, tenham workshops com profissionais da área, aprendam técnicas diferentes e daí eles comecem a aprimorar a parte técnica, produzir seus trabalhos e a gente sempre procurar vender esses trabalhos, esses trabalhos virarem produtos e a gente poder também ajudar esses pacientes, que não têm... Que a maior parte são desempregados, principalmente os de AIDS, esses pacientes teriam uma porcentagem, uma parte ficaria para o Projeto e uma parte para o paciente, então promover uma parceria com os participantes”. E atualmente a gente tem essa sede aqui do Projeto. Então é isso.
P/1 – Você disse do reconhecimento da sociedade. E você podia comentar alguma história relacionada ao reconhecimento do paciente com você?
R – Ah, tem várias histórias, mas... Deixa eu ver uma... Ah, eu acho que na verdade essa ideia do atelier cooperativa, essa ideia nasceu exatamente desse reconhecimento do paciente, porque eu comecei a perceber que quando chegava o momento da alta... Uma coisa até que me emociona ainda, o paciente ficava assim, meio embargado, entendeu? "Puxa, Eduardo, vai acabar agora!". Fazia assim! "Eu vou ter alta amanhã!". Quer dizer, eu percebia que... É lógico, a alta era um momento de êxtase para ele, mas tinha a coisa do vínculo, a coisa... Tudo bem, existe o vínculo comigo, mas era o vínculo com o Projeto: "Bom, e agora? Eu vou parar? Não tem como eu continuar fazendo isso? Eu não posso vir aqui pintar?". No hospital não tem espaço, tem carência de espaço físico. Daí eu comecei a ver que isso é um reconhecimento pra mim, ou então o paciente chegar pra mim e falar: "Eduardo, como eu poderia ajudar o Projeto Carmim? Olha, eu sou estilista, o dia que você precisar que eu crie um uniforme pra você, eu queria ajudar o Projeto Carmim de alguma maneira". E hoje tem um exemplo, quer dizer, no grupo de voluntários tem a Maurina que é uma ex-paciente que está aqui vindo trabalhar, montar os kits que vocês vão ver no lançamento dos postais... Ela que está fazendo os kits, entendeu? Então existe esse reconhecimento de sempre querer dar alguma coisa em troca por aquilo que você levou até eles, isso é uma coisa que não tem preço. E eu acho que o reconhecimento principal é quando o paciente está pra ter alta e eu chego de maneira muito transparente e explico, que é a hora que eu falo assim: "Você não gostaria... Fique à vontade pra aceitar ou recusar. Você não gostaria de deixar aquele trabalho ou aquele para o Projeto Carmim? Doar para o Projeto Carmim?". Eu nem preciso terminar a frase, o paciente fala assim: "Todos os trabalhos são teus”. Sabe quando você vê que é uma maneira de pagar? Eu falo: "Não, eu não quero todos, eu quero que você leve um pra você lembrar..."; "Não, eu quero doar para o Projeto". Então sempre tem uma maneira de reconhecimento, sempre tem.
P/3 – Eduardo, fazendo uma retrospectiva de tudo o que a gente conversou desde o começo do nosso papo e pensando no momento de vida que você está hoje, do estágio que está o Projeto Carmim e você como pessoa tocando esse Projeto adiante, como você vê hoje essa situação que você viveu, de doença, de hospitalização... Colocando isso num contexto maior da tua vida?
R – Olha, pela minha trajetória, pelo que eu contei pra vocês eu acho que a minha vida sempre foi muito... O percurso dela foi muito intenso – acho que deu pra perceber isso – e ao mesmo tempo algumas vezes meio incoerente. Hoje eu entendo perfeitamente os desencontros, as incoerências que eu não entendia há anos, eu diria, há quatro anos. A experiência que você acaba passando na hospitalização, que eu acho que foi a matéria-prima que gerou o Projeto Carmim, foi uma experiência que doeu muito em todos os sentidos: emocional, moral, por alguns instantes, até definir o diagnóstico e tudo mais e foi uma experiência que mexeu de tal maneira com os meus valores que o que mais me impressionou foi esse processo da hospitalização, que eu falei no nosso intervalo aqui, que é... Eu sempre uso isso: da dor à criação, que eu acho que amarra com tudo, que é aquilo que você perguntou: "Qual o conteúdo disso?" ou: "O que acontece quando o paciente começa a participar do Projeto?". Eu vejo sempre isso, que de um momento de dor sempre leva a gente a uma criação. E a mesma vivência da hospitalização, da dor da possibilidade de estar com o vírus e tudo mais, foi extremamente significante, que mexeu de tal maneira os meus valores, que mesmo durante a alta do hospital eu não tinha condições de ter sedimentado isso. Hoje eu vejo todo esse processo de transformação que a dor gerou pra mim, porque se eu não tivesse talvez passado por esse momento de dor com certeza eu não sei se eu teria esse Projeto, então eu acho que a dor tem um lado positivo que muitas vezes a gente não consegue enxergar; por mais dolorida que seja, ela serve de um alerta. É um alerta. Ela não é gratuita e não deve ser considerada como gratuita e não deve ser menosprezada. Ela deve ser um alerta, porque daquilo vai nascer alguma coisa. E eu acho que hoje... Nos primeiros anos existe uma parte muito forte, emocional do teu trabalho com os pacientes, do Projeto e tudo mais. Hoje eu vejo uma coisa muito mais... Além disso tudo, da parte de vínculo, emoção e tudo mais, eu acho que tem uma coisa muito maior, que é uma coisa que eu tenho pensado mais atualmente, que é a coisa do compromisso mesmo; é onde você se meteu, é o que você criou, o poder disso, que no começo você jamais ia imaginar, por mais que você achasse lindo e maravilhoso, que tem a parte meio romântica no início do Projeto. Hoje não, hoje eu vejo o poder que o trabalho tem, na importância que o trabalho tem e no compromisso que tem. E cada vez mais: O que é a meta? É pegar toda essa vivência que você teve da tua hospitalização, da dor à criação, cada vez mais você se comprometer a isso e fazer com que isso não pare, quer dizer, de uma coisa que eu diria que foi num primeiro momento romântico, de coisa de emoção e de dor mesmo, hoje é uma coisa que tem isso, mas é a coisa da responsabilidade e do compromisso que eu acabei me envolvendo, e o que causa isso no dia-a-dia nos hospitais, o que causa isso para o paciente, que é a minha prioridade acima de tudo é esse poder transformador mesmo. Eu acho que a palavra que sempre se encaixa é transformação, é transformador... Porque aí começa no paciente e depois vai se estendendo e é uma bola de neve. E daí você fala: "Eu estou nessa". É vestir a camiseta. A minha missão é essa... Parece uma coisa muito assim... Missão! Mas é essa, é missão, porque as dificuldades são tantas, em termos financeiros, em termos de conquista e tudo mais, que é só uma coisa assim, de muita missão, de muito prazer, de muito compromisso que faz você segurar a peneira e da própria vivência que você sentiu na pele. A vivência é uma coisa fundamental... Se você não tem a vivência não sei se você entende, você pode entender um pouco ou respeitar, mas não sei se você acaba entendendo. Não sei se eu respondi, Morgana.
P/2 – Bom, pra encerrar, Eduardo, o que você achou da experiência de ter dado esse depoimento pra gente?
R – Nossa, foi uma experiência fantástica! Eu não sei se eu cheguei a falar com vocês, mas eu acho que com a Morgana eu falei. No primeiro momento da nossa entrevista, há algumas semanas, eu no dia seguinte fui para o Rio, fui na Ashoka, no encontro. Para mim foi tão forte fazer a entrevista, participar, porque há muito tempo que eu... Na verdade eu nunca tive essa oportunidade de ficar falando sem preocupação de tempo sobre a história da minha vida, então isso é um fator importante. E outra, falar da história da vida é um exercício que exige uma retomada de coisas que mexem muito com você, com a tua história mesmo, com o teu passado e tudo mais, mas foi assim... Para mim foi uma experiência maravilhosa, porque eu achei que o fato de você saber que tem pessoas aqui do outro lado ouvindo você e você poder deixar a tua história registrada numa matéria, num material, num meio, num instrumento e que isso pode contribuir e enriquecer para outras pessoas, eu acho uma coisa... É uma coisa de impacto, não é? E é como eu estava falando com a Morgana, a gente estava falando isso outro dia, não deixa de ser uma oportunidade de cidadania mesmo, você dá a oportunidade à pessoa de durante um tempo: "Fale sobre a sua história". É muito gostoso falar da sua história. Eu gosto, eu gosto. E me mexeu muito, não negativamente. No dia seguinte eu fui para o Rio, eu fiquei no avião, fiquei pensando na minha fala... Eu fui voltando a fita, entendeu? E comecei a lembrar de coisas da minha infância que há muito tempo eu não lembrava. Então tem essa coisa de voltar ao passado, viver o presente, amarrar com o passado, pensar no futuro... Quer dizer, é a tua vida meio que aberta para as pessoas. Eu acho que foi uma experiência fantástica, foi uma coisa de impacto pra mim, uma experiência gostosa. Eu queria agradecer ao Museu da Pessoa pela oportunidade e à Morgana também. Foi hiper legal.
P/1 – A gente é que agradece a você e só lamentamos ter sido uma entrevista tão curta, não é? (risos)
R – Essa pintura é um trabalho de uma paciente do Hospital Emílio Ribas, a Maurina e foi uma paciente que participou do Projeto Carmim em 1996... (risos) É um trabalho muito interessante porque a Maurina, num primeiro momento de participação do Projeto, expressava mais a parte emocional, a parte ligada e associada mais à experiência da hospitalização, eram trabalhos mais pesados e nessa pintura não, o trabalho dela existe toda uma preocupação com questões de ritmo, de cores, de vibração... E eu acho interessante que ela explora bem as cores primárias e trabalha com cores vibrantes. Hoje eu acho que a participação dela no Carmim resultou também na participação dela no Projeto atuando como voluntária na nossa sede. Esse segundo trabalho é o trabalho de uma criança de dez anos, ela chama Viviane e é um trabalho que tem uma carga emocional muito grande. É uma menininha que tem um problema cardíaco e é um trabalho que ela expressa isso explicitamente, a ligação da doença dela com a pintura. Eu acho que é um trabalho bonito e extremamente lúdico, onde no processo criativo ela sente a necessidade de verbalizar e identificar a doença dela dentro do coração.
P/1 – Só repita um pedacinho, você pode falar a idade dela?
R – Não falei a idade? Falei, não é? Esqueci?
P/1 – Você falou: "Uma menininha".
(PAUSA)
R – Esse trabalho é de uma criança, ela se chama Viviane, uma participante do Carmim no Hospital da Criança e eu acho um trabalho muito bonito... Ou melhor, qual trabalho de criança que não é bonito? Porque existe toda uma espontaneidade no fazer e toda uma carga emocional que está relacionada com a experiência de hospitalização dela e até mais, com a própria doença dela. A Viviane tem um problema cardíaco e de maneira muito espontânea ela expressou através da pintura e do desenho o problema que ela tem no coração. E, além disso, ela teve uma facilidade muito grande de trabalhar com as cores, apesar de não utilizar uma palheta grande de cores, ela basicamente trabalha com azuis e tons de vermelho e é mais um trabalho que vai se transformar num postal do Projeto Carmim.Recolher