Projeto Imigrantes – Memórias de um cotidiano
Entrevista de Irena Bedonska Viti
Código: IMG_HV005
Entrevistadoras: Stella Franco
São Paulo, 27 de junho de 2001
Realização Museu da Pessoa
Transcrição feita por: Jurema de Carvalho
P/1 – Então Dona Irena, pra gente começar, queria que a senhora falasse seu nome completo de novo, o local e a data de nascimento.
R – Meu nome é Irena Bedonska Viti, nasci na Alemanha, 9 de maio de 1927.
P/1 – Em que local da Alemanha a senhora nasceu?
R – Kleinville (Klinjield?).
P/1 – Onde fica?
R – Mecklemburg.
P/1 – De que região da Alemanha?
R – Ah, como é que era? Aquela Alemanha Oriental que era dos russos, é, Alemanha Oriental.
P/1 – A senhora tinha contado antes da gente começar a entrevista que a senhora é alemã, nascida na Alemanha mas de nacionalidade polonesa.
R – Sou de nacionalidade polonesa, devido a meus pais que são poloneses.
P/1 – Conta essa história pra gente.
R – Lá é assim, que nem meus pais que eram poloneses. Eu nasci na Alemanha mas não posso dizer que sou alemã porque...
P/1 – Tinha que seguir a nacionalidade dos pais.
R – É, tinha que seguir a nacionalidade dos pais, então por isso é que...
P/1 – Entendi. Os seus pais saíram da Polônia e foram...
R – Meu pai saiu da Polônia e foi pra Alemanha com catorze anos para trabalhar. Na Polônia não tinha serviço. E minha mãe com dezoito anos foi pra lá.
P/1 – Eles já se conheciam ou não?
R – Não, não. Não se conheciam, chegaram a se conhecer lá na Alemanha. Chegou lá, se conheceram e casaram, aí depois nós nascemos lá, eu, a minha irmã e meu irmão. Somos em três.
P/1 – E seus avós, a senhora chegou a conhecer?
R – Eu só cheguei a conhecer a madrasta do meu pai.
P/1 – Ela foi para lá também?
R – Ela já era de lá. Ela era polonesa também, porque o meu avô, que é pai do meu pai, era polonês, e aí a primeira esposa dele faleceu, que era minha avó,...
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Entrevista de Irena Bedonska Viti
Código: IMG_HV005
Entrevistadoras: Stella Franco
São Paulo, 27 de junho de 2001
Realização Museu da Pessoa
Transcrição feita por: Jurema de Carvalho
P/1 – Então Dona Irena, pra gente começar, queria que a senhora falasse seu nome completo de novo, o local e a data de nascimento.
R – Meu nome é Irena Bedonska Viti, nasci na Alemanha, 9 de maio de 1927.
P/1 – Em que local da Alemanha a senhora nasceu?
R – Kleinville (Klinjield?).
P/1 – Onde fica?
R – Mecklemburg.
P/1 – De que região da Alemanha?
R – Ah, como é que era? Aquela Alemanha Oriental que era dos russos, é, Alemanha Oriental.
P/1 – A senhora tinha contado antes da gente começar a entrevista que a senhora é alemã, nascida na Alemanha mas de nacionalidade polonesa.
R – Sou de nacionalidade polonesa, devido a meus pais que são poloneses.
P/1 – Conta essa história pra gente.
R – Lá é assim, que nem meus pais que eram poloneses. Eu nasci na Alemanha mas não posso dizer que sou alemã porque...
P/1 – Tinha que seguir a nacionalidade dos pais.
R – É, tinha que seguir a nacionalidade dos pais, então por isso é que...
P/1 – Entendi. Os seus pais saíram da Polônia e foram...
R – Meu pai saiu da Polônia e foi pra Alemanha com catorze anos para trabalhar. Na Polônia não tinha serviço. E minha mãe com dezoito anos foi pra lá.
P/1 – Eles já se conheciam ou não?
R – Não, não. Não se conheciam, chegaram a se conhecer lá na Alemanha. Chegou lá, se conheceram e casaram, aí depois nós nascemos lá, eu, a minha irmã e meu irmão. Somos em três.
P/1 – E seus avós, a senhora chegou a conhecer?
R – Eu só cheguei a conhecer a madrasta do meu pai.
P/1 – Ela foi para lá também?
R – Ela já era de lá. Ela era polonesa também, porque o meu avô, que é pai do meu pai, era polonês, e aí a primeira esposa dele faleceu, que era minha avó, né?
P/1 – Na Alemanha?
R – Na Alemanha. Aí ele casou, o pai do meu pai casou outra vez.
P/1 – Com uma alemã?
R – Não, como uma polonesa também, e desse casamento nasceu uma irmã, que é meio irmã de meu pai.
P/1 – Sua tia?
R – Que é minha tia.
P/1 – E qual que é o nome do seus pais?
R – O meu pai chamava-se Joseph Bedonski e minha mãe Bronislawa Bedonska. Em polonês, a mulher, o feminino termina com “a”, Bedonska, masculino é Bedonski.
P/1 – Ah, entendi.
R – Meu pai é Bedonski, eu sou Bedonska e minha mãe é Bedonska.
P/1 – A senhora sabe alguma coisa da história de seus avós e do seu pai, lá da Polônia?
R – Não, não sei.
P/1 – Onde eles viviam, do que eles viviam?
R – Eles se conheceram lá, trabalhavam lá, casaram lá. Os meus avós, eu não cheguei a conhecer, só cheguei a conhecer essa avó, quer dizer, a madrasta do meu pai. Então, eu cheguei a conhecer ela.
P/1 – A senhora se dava bem com ela?
R – Não, eles não se davam bem não. Ela era muito... ela só gostava da filha. Agora, ele com essa meia irmã se adoravam.
P/1 – A mais nova?
R – A mais nova dele, eles se gostavam muito. Então quando ela casou, meu pai foi no casamento deles, ela se casou com um alemão. Ele não era católico, e os outros irmãos, que meu pai tinha uma irmã, todas irmãs não foram no casamento, meu pai foi.
P/1 – Porque as outras irmãs não gostavam da madrasta nem da irmã?
R – Não. Eles se gostavam, só que católico achava que não, não aceitava muito que você casasse com outra religião, naquela época, né. E como ele era alemão, as outras irmãs não foram. Só meu pai com minha mãe é que foram. Só que os primos foram todos, todos na foto estão, menos as outras irmãs dela. Ah não, meu pai tinha um irmão na França.
P/1 – Na França?
R – É, tinha um irmão na França.
P/1 – Mudou-se para França depois?
R – Não, não. O irmão mudou para França, o irmão de meu pai. Aquele, eu não cheguei a conhecer, porque ele foi mocinho pra lá, casou e ficou por lá. Só que escrevia muitas cartas. Eu tenho muitas. Os cartões postais são a coisa mais linda! São bordados a mão, precisa ver que coisa mais linda! Tem setenta e poucos anos, bordado naquele tecido fino, organdi. Os cartões postais são todos de organdi.
P/1 – Da França?
R – Da França. Então ele tinha aquele irmão lá na França e as irmãs todas moravam lá na Alemanha.
P/1 – Que linda heim, eu nunca vi esse tipo de cartão postal.
R – Se eu chegar... eu trago pra vocês verem. É a coisa mais linda que tem. Eu andava muito com eles, são velhos, são lindos, é um bordado que você não faz ideia.
P/1 – Dona Irena, a senhora sabe com que os pais da senhora foram trabalhar lá na Alemanha?
R – Foram colher batata, trigo, e quando era frio, meu pai trabalhava na floresta, era lenhador.
P/1 – E quando a senhora nasceu, eles ainda estavam com esse trabalho de lavradores e lenhador?
R – Ainda.
P/1 – Vocês moravam na cidade, em vila?
R – Em vila.
P/1 – A senhora se lembra da sua casa de infância?
R – Eu lembro. Tem até uma foto. Era uma casa de tijolos, era gostoso, eu me lembro.
P/1 – E dentro da casa?
R – Tinha quartos. Lá era assim, era uma comunidade, porque lá era tudo polonês. Era uma casa enorme, mas cada um tinha o seu lugar, mas só que, quando cozinhava, era um fogão só, enorme. Eu me lembro que minha mãe aprontava a panela, deixava naquele fogão enorme. Eu tinha a minha tia, que era irmã de meu pai, ela que comandava lá na cozinha, ela olhava todas aquelas panelas. Quando terminava, ela tinha um cocheiro que levava lá na plantação pra almoçar. Cada família fazia a sua panela e minha tia olhava. Todo mundo ia trabalhar e a gente ia para a escola.
P/1 – A senhora se lembra o que eles cozinhavam?
R – Eu sei que tinha muito frango, coelho e peixe. Peixe tinha demais. Meu pai acordava às cinco horas da manhã pra pescar, chegava, limpava os peixes, deixava pra minha tia fritar. Ele adorava pescar.
P/1 – Tinha um rio lá perto?
R – Tinha uma lagoa que quando era frio ficava aquele gelo, a gente ia patinar lá.
P/1 – Ah é, patins de gelo?
R – Patins de gelo mesmo.
P/1 – E como eram esses patins, eram de couro?
R – Eram de couro. A gente andava muito também de trenó. Meu pai fazia os trenós pra nós e a gente andava muito de trenó lá.
P/1 – E que animal puxava o trenó?
R – Nós mesmos.
P/1 – Ah, vocês que puxavam?
R – Um puxava o outro, porque lá tinha um cemitério e ele ficava no alto. Quando nevava, ficava aquela neve. A gente ia lá, batia, batia, batia, pegava o trenó, subia e depois descia lá embaixo. Quanto nariz quebrado e raspado que eu tinha, os meus primos, a gente brincava assim. Meu pai fazia os trenós pra nós.
P/1 – Entendi, não tinha ninguém puxando.
R – Não, não. Nós mesmos. Ou você carregava ele até lá em cima e depois descia um bom pedaço. Tinha hora que você caía, rolava na neve. A gente fazia muito aquele boneco de neve, jogava bola de neve um no outro.
P/1 – E só tinha a senhora de filha ou não?
R – Não, tinha a minha irmã, meu irmão. Eu tenho muitos primos. Na foto que tem, todos eles eram meus primos lá. Todos nessa vila. Só essa minha tia que casou, que é a meia irmã do meu pai, ela foi morar pra cidade, ela que foi pra lá. Ela casou com um alemão que estava bem e ela morava na cidade.
P/1 – Por que essa vila tinha só poloneses?
R – Mas tinha alemão também. Era assim, como vou te explicar. Era um lugarzinho que os poloneses se juntavam lá, um conhecia o outro e ficavam lá. Mas tinha muito alemão lá também. Bastante alemão. As minhas tias, irmãs de meu pai eram todas casadas com alemão, só uma tia que era casada com polonês.
P/1 – Tinha escola nessa vila?
R – Tinha.
P/1 – A senhora chegou a ir ou não?
R – Cheguei, estava no terceiro ano. Entrei com seis anos.
P/1 – A senhora se lembra do primeiro dia em que a senhora foi para a escola?
R – Não lembro, só lembro que uma vez eu fui para escola, estava na classe, e você tinha que rezar o Pai Nosso. Eu lembro que eu me escondi porque eu não sabia o Pai Nosso todinho. Eu sei que eu me escondi atrás de uma mesa que tinha lá na classe. E não era pra fazer isso, mas eu me escondi. É que vinha um padre que queria que as crianças soubessem o Pai Nosso.
P/1 – E a senhora ficou com medo de quê?
R – Eu não sabia o Pai Nosso todinho em alemão. Os meus pais eram poloneses, nós falávamos alemão, não sabia falar polonês, a gente entendia, mas não falava, então falava o alemão. Aí quando nós viemos pra cá, nós falávamos o alemão, não sabia falar outra língua. Tinha um casal que era amigo do meu pai e veio junto. Eles tinham um filho e uma filha, eu me dava com a menina. Então a gente podia conversar só entre nós porque o resto que veio com os meus pais eram russos, lituanos. A gente não se entendia. A única pessoa com quem eu conversava em alemão era essa menina, com meu pai e minha mãe que falavam e meus irmãos. Nós viemos para o interior e esse amigo de meu pai, esse casal também veio. Então a gente se falava.
P/1 – Essa alemã veio junto?
R – Vieram juntos, mas depois a gente perdeu o contato porque eles foram para uma outra fazenda que era de algodão. Meu pai não, meu pai quis de café.
P/1 – E na sua escola na Alemanha, além de poloneses, tinha alemães também?
R – Tinha. Eu ia na escola de alemão. Só falava alemão.
P/1 – E igreja tinha na vila?
R – Tinha igreja católica e a igreja deles lá.
P/1 – Protestante?
R – Protestante.
P/1 – Vocês iam na missa?
R – Ia na missa, tudo.
P/1 – Tinha um dia específico?
R – De domingo. Só de domingo.
P/1 – E era obrigado a ir na missa?
R – Não, não era obrigado a ir na missa não. Eles não faziam questão, mas meu pai gostava de ir.
P/1 – Teu pai era praticante?
R – Meu pai era. Ele era coroinha mesmo.
P/1 – Ele foi coroinha?
R – Foi, foi coroinha quando ele era menino.
P/1 – E aí punha uma roupa especial para ir à missa?
R – Terninho, usava uns terninhos.
P/1 – E as meninas?
R – Vestido.
P/1 – Dona Irena, a senhora falou que fazia bastante frio, que fazia neve, e tudo. Como que era na época do inverno, a colheita.
R – Não tinha.
P/1 – Como vocês faziam?
R – Eles guardavam tudo, não tinha colheita, mas meu pai trabalhava na lenha, derrubando lenha. Era lenhador.
P/1 – A senhora chegou a ir com ele na floresta?
R – Com ele não. Mas a escola fazia um tipo de excursão. Era uma coisa do tipo daquele filme da Julia Andrews. Um filme em que ela passeia com as crianças. O professor levava nós e entrava na floresta contando, sabe. Aquele filme em que ela passeia com os filhos do... aquele filme tão falado. Eu me lembrei por causa disso, eu trepava nas árvores, a gente cantando, o professor levando a gente, colhendo cogumelo. E a gente saía cantando assim.
P/1 – Isso durante o dia?
R - Quando ele levava a gente pra conhecer, a árvore, o que tinha nessa árvore. “Isso você podia comer, isso você não podia comer.” O professor ensinava a gente assim.
P/1 – Devia ser uma aventura?
R – Era uma aventura.
P/1 – E era longe da floresta, a escola?
R – Não, não era longe não.
P/1 – Dava para ir a pé?
R – Dava, dava. Ia tudo a pé, senão ia de bicicleta.
P/1 – A senhora falou que vocês estocavam alimentos, né?
R - Eles estocavam alimentos. Aí eles não trabalhavam. Tinham outros afazeres, mas meu pai trabalhava na floresta com lenha. Porque se precisava de lenha nas casas, para os fornos, fogão.
P/1 – E a sua mãe trabalhava?
R – Só quando tinha colheita.
P/1 – Na floresta não?
R – Não, não, isso não. Aí já era abusar. Aí ela ficava só em casa.
P/1 – E, quem cozinhava, era ela?
R – Aí ela cozinhava, deixava lá.
P/1 – O que a senhora lembra de ter comido de gostoso nessa época de infância, do que a senhora gostava mais?
R – Do que eu gostava lá era uma geleia, uma gelatina e um guaraná. Isso eu me lembro.
P/1 – Um guaraná?
R – Um guaraná, que era diferente daqui. Chamava prausen (?), a gente chamava prausen (?) e a geleia chamava rotegritzwen (?). Então a coisa que eu mais gostava era isso.
P/1 – Era geleia de uma fruta especial?
R – Era uma gelatina, minha mãe fazia, mas ela tinha um outro gosto. Era bem diferente. Isso eu me lembro, eu gostava muito.
P/1 – E a senhora aprendeu a fazer ou não?
R – Não, porque aqui não tem aquele tipo de gelatina. Não tem.
P/1 – Era produto industrial? Comprado.
R – Era produto industrial, comprado. Que nem aqui, gelatina em pacotinho, lá tinha assim. E minha mãe fazia muito aquele bolo kuchen que alemão faz. Então, aquilo também, a gente adorava.
P/1 – Como que era, salgado ou doce?
R – Doce. Era um tipo de panetone, mas tem nome de kuchen, todo alemão conhece. E assim, ela fazia muito panquecas, batata. Tinha muita batata. Panquecas recheadas com creme de leite, com carne.
P/1 – A massa que era de batata?
R – A massa era batata. Fazia muita panqueca de massa de batata. Até hoje eu faço.
P/1 – A senhora faz?
R – Faço, o kuchen também faço. O resto é aquela comida, arroz, batata. Tinha muito leite, como é que fala, aquele creme de leite, a minha mãe fazia muito com batata.
P/1 – Tipo páprica o molho?
R – A gente era criança e tinha plantação de cenoura, beterraba, pepino, tínhamos todas essa coisas. Eu vivia no meio daquilo e eu comia cru, a beterraba, a cenoura, o pepino, rabanete. Ah, pegava fresquinho do pé.
P/1 – Tirava da terra?
R – Tirava da terra, se não tinha água por perto, a gente comia assim mesmo, com terra. Era um temperinho, mas era muito bom.
P/1 – A senhora, quando veio para o Brasil, tinha quantos anos?
R – Quase nove. Nós viemos em agosto e em maio eu ia fazer nove anos.
P/1 – Por que o seu pai saiu da Alemanha para vir para o Brasil, por que a decisão?
R – Meu pai viu que tinha muito soldado fazendo treinamento. Ele viu que não ia ser coisa muito boa.
P/1 – Isso era depois da guerra já?
R – Antes da guerra, isso foi em 1936. A guerra começou em 1939. Primeiro de setembro de 1939. Eu não esqueço porque meu pai pôs isso na minha cabeça, porque os alemães atacaram a terra dele. Primeiro de setembro de 1939.
P/1 – Então vocês vieram antes da guerra?
R – Nós viemos em 1936, em agosto. Agora vai fazer sessenta e cinco anos. Aí meu pai cismou de vir pra cá.
P/1 – Ele começou a ver os soldados...
R – Ele achou que alguma coisa ia acontecer. Eu vivia brincando no meio dos soldados. Eles eram gente fina com a gente. A gente viu tanta coisa que a gente ficou meio... mas acho que era só com judeus. Porque eu tenho os meus parentes, estão todos lá. Ninguém morreu.
P/1 – Mas, entre os amigos alemães, a senhora se lembra de sentir algum tipo de discriminação ou preconceito?
R – Não.
P/1 – Era tudo integrado?
R - Era.
P/1 – Não tinha na escola algum tipo de brincadeira?
R – Não, não. Eu era tratada igualzinha aos outros. Isso eu posso falar, eu era tratada da mesma forma. Porque era uma vila pequena. A gente se dava bem com todos, meu pai se dava bem com todos eles. Com todos os alemães. Eles queriam muito bem meus pais. A gente era bem tratado. No navio em que nós viemos, a gente ia pra cima, onde tinha a primeira classe. Eles levavam a gente pra lá. Os marinheiros levavam eu, minha irmã e meu irmão. A gente subia lá em cima.
P/1 – Por que vocês vieram de terceira?
R – Imigrantes. Mas eles chamavam nós e a gente ficava lá em cima brincando. Os marinheiros me levavam no colo, me mostrando tudo como que era, as máquinas. E quando nós chegamos aqui em Santos, que nós vimos assim. O capitão falou pro meu pai: “Se você quiser voltar, eu levo você de volta, se você descer aí eu não te volto; enquanto você está aqui, você pode ficar”.
P/1 – Mas o que era, tinha medo?
R – Era muita pobreza, não é que nem agora. Santos era pobre. Sabe o que eu estranhei, gente de cor. Eu nunca tinha visto. Agora sim, minha irmã foi há uns três anos e agora tem bastante gente de cor. Na França, na Itália, na Alemanha, ela foi visitar e falou que tem bastante. E eu nunca tinha visto. Eu tinha oito anos e nunca vi. Meu pai diz que viu na França. Meu pai viajava, da Alemanha ia pra França visitar o irmão, ele via. Eu nunca vi. Aí meu pai falou: “Eu vim pra cá, eu vou”. Aí nós tomamos o trem e viemos aí na Imigração.
P/1 – Na Hospedaria dos Imigrantes?
R – É isso, dos imigrantes.
P/1 – O trem deixou vocês lá perto da hospedaria?
R – É, direto. E de lá nós tomamos o trem, nós ficamos na Fazenda Santa Cruz. Quando nós chegamos lá, vinha bastante. Aqueles russos eram todos contratados, vinham tudo com contrato. Aí cada um escolheu o que quis. Meu pai escolheu café.
P/1 – Podia escolher o que ia plantar?
R – É. Aí nós chegamos, nós estávamos assim, meu pai olhou. Aí ele falou: “O senhor vai morar naquela casa ali”, mostrou ali. Era uma casa de sapê. “Isso, porco na minha terra tinha melhor que isso, eu não vou, eu quero casa de tijolos.” Mas o dono daquela fazenda era muito bom, pegou e arrumou uma casa de tijolos.
P/1 – Ficava perto de que cidade essa fazenda?
R – Ipaussu. Santa Cruz e Ipaussu. A cidade era Ipaussu e a fazenda era Santa Cruz.
P/1 – A gente já volta pra esse ponto, eu só queria perguntar uma coisa da Alemanha. Como seu pai ficou sabendo do Brasil?
R – Porque meu pai gostava muito de quermesse. De domingo tinha muita quermesse na cidade. Porque meu pai morava assim numa vila, e na cidade tinha muita quermesse. Meu pai adorava quermesse, jogar. Meu pai vinha assim carregado de bicho de pelúcia. Meu pai me levava sempre de bicicleta, ele ia de bicicleta. Então ele ia lá e lá ele encontrou um amigo dele. Esse amigo falou: “Olha, eu vou para o Brasil”. “Dizem que está bom lá”, falava. Dizia que na rua se achava ouro. Falava-se assim, que no Brasil se achava ouro na rua. Não foi por causa disso, meu pai já queria mesmo ir embora. Ele falou e se perderam. Nunca mais ele teve contato com essa pessoa, com esse amigo dele. Aí ele chegou em casa e falou que queria vir para o Brasil. Aí minha tia falou: “Ah, você está brincando”. Quando chegou o dia que a gente se arrumou pra vir, minha tia começou a chorar, falou: “Você vai mesmo”. “Vou.” Meu pai pegou e veio pra cá, e aí viemos pra cá. Aí passou... Quando nós viemos para a Vila Anastácio, meu pai foi trabalhar lá na Armour, que hoje é Bordon. Lá, ele trabalhava com carne. Vinham nos trens, os carregamentos das carne, meu pai tirava e trabalhava no frigorífico. Aí um dia ele chegou, encontrou um senhor lá, os dois se olhavam. Meu pai falou: “Mas eu conheço”... Ele usava aquelas botas de assim..., sabe? “Eu conheço essa bota, mas não sei da onde que eu conheço essa bota.”
P/1 – Não vai me dizer que era o amigo da quermesse?
R – Era o amigo da quermesse. Pra ver como o mundo é pequeno. O que os dois se abraçaram... e choraram... Ele morava na Mooca e meu pai na Vila Anastácio. Aí ele quis vir. “Eu estou procurando uma casa.” Meu pai falou assim: “Olha, eu moro em uma casa que nos fundos tem um quarto vazio, você não quer vir?”. Ele veio. Desde aquela época nós nunca mais nos separamos. Nós moramos juntos. Eles fizeram casa de um lado e nós temos terreno junto. Depois nasceu uma menina e eu sou madrinha da menina. Os quatro faleceram e os quatro estão enterrados juntos.
P/1 – Nossa, que história... Ele era alemão ou polonês?
R – Era polonês também. É assim, os filhos são alemães, só essa menina que nasceu aqui que é minha afilhada.
P/1 – Uma história igual a da família de vocês.
P/1 – Dona Irena, a senhora sabia, quando estava vindo para cá, que era para ficar de vez?
R – Eu sabia.
P/1 – E não tinha assim, a senhora e seus irmãos...
R – Não, não. A minha irmã já tinha catorze anos, meu irmão tinha doze e eu que tinha nove. A gente aceitou. Criança vai mesmo e se ajeita em qualquer lugar. Quando nós viemos da hospedaria e fomos para a fazenda, que meu pai olhou aquilo, a gente veio só com malinha de mão, porque o resto da bagagem vinha depois. Meu pai sentou naquela mala, parece que eu vejo hoje, me pegou no colo e começou a chorar e falou: “Filha, onde é que eu te trouxe?... Se o mar fosse seco, eu voltava a pé”. Quando eu vou para Santos, eu lembro que meu pai dizia que se o mar fosse seco ele tinha ido a pé.
P/1 – Que imagem, hein...
R – Ele viu aquilo e pensou “onde eu trouxe esses filhos”, aí eles deram a casa de tijolos. Meu pai fez cama, eles deram madeira, meu pai fez cama, fez tudo.
P/1 – Seu pai sabia lidar com madeira.
R- Sabia, porque ele era carpinteiro também, marcenaria, ele entendia tudo. Meu pai era carpinteiro, ele construiu o cinema Marabá, todo o madeiramento foi meu pai que fez. O Marabá, o Ipiranga e o que fechou agora, o Esmeralda, que era nas Perdizes. Em todos esses ele trabalhou, negócio de madeira, era carpinteiro.
P/1 – E na fazenda ele fez todos os objetos da casa?
R – Todos os objetos, o meu pai fez.
P/1 – E vocês trouxeram coisas da Alemanha?
R – A gente trouxe. A única coisa que não trouxemos foram os casacos, paletó, coisa grossa. Porque dizia que aqui era muito calor, mas nós passamos frio, porque foi em agosto e aqui fez frio. Meu pai falou: “Falaram que aqui fazia calor”. Meu pai vendeu, a gente tinha aquelas japonas lindas, de pele, a gente tinha. Falaram que aqui era calor e nós passamos frio. Aí ele escreveu para a irmã dele e falaram que era isso, mas não, aqui é frio também. Me lembro muito bem, agosto e setembro, fez muito frio, depois é que esquentou. Se a gente tivesse aqueles casacos bem que serviriam, mas a gente não tinha.
P/1 – E cobertor, vocês tinham?
R – A gente tinha cobertor de pena. Eu tenho um até hoje.
P/1 – É mesmo? Eles davam na fazenda?
R – Não, meu pai trouxe da Alemanha, cobertor de pena. Eu e minha irmã dormíamos juntas, tínhamos, meu irmão tinha, e meu pai e minha mãe tinham o deles. No meio desse acolchoado de pena, minha mãe pôs louças, “tudo coisa” para que não quebrasse. Meu pai pôs com minha mãe, trouxemos louça, talheres, garfos, tudo a gente trouxe.
P/1 – Vocês chegaram antes e a bagagem depois?
R – É, mas a gente tinha com o que se cobrir. Porque na mala de mão só tinha roupa pra gente se trocar. Depois veio, depois de uns quinze dias chegou.
P/1 – E da hospedaria até a fazenda vocês foram de trem também? A senhora se lembra como foi a viagem?
R – Me lembro. A gente via assim passar, a gente falava alemão, falava “quanta vaca”, mas falava assim “quantas kuh”. O pessoal olhava pra gente, assustados. Mas a gente falava mesmo. Sabe por que aquela cerveja chama Caracu, porque é cara de vaca, kuh é vaca. E a gente falava e eles... Aí a gente fez amizade com (umas) meninas e a gente falava e aí elas explicaram pra nós, criança se entende logo.
P/1 – Como é que foi essa história da língua?
R – Quando eu desci do navio, lá dentro tinha muito português, trabalhando no navio. Eu já sabia contar de um até dez, “arroz”, “feijão”, então a gente sabia. Minha mãe fazia pão.
P/1 – Dentro do navio?
R – Não, dentro do navio eu consegui falar de um até dez, já sabia, dentro do navio, “arroz”, “feijão”, “açúcar”. Eu aprendi dentro do navio, quer dizer que quando eu desci eu sabia ao menos falar isso.
P/1 – Não passavam fome?
R – Não, não passamos fome. Aí tinha as meninas que começaram a me ensinar. Aí meu pai fez tudo. Lá tinha escola.
P/1 – Na fazenda?
R – Na fazenda tinha escola. Minha irmã foi trabalhar lá na casa do administrador. Eles eram muito bacanas. Tinha escola, tinha professoras. Quem ia na escola? Eu e meu irmão. O resto não, não ia. Acho que os pais não obrigavam, meu pai não, meu pai e minha mãe obrigavam.
P/1 – Por isso que a senhora fala tão bem?
R – Logo a gente conseguiu falar. Fazer conta, fazia em alemão, mas dava certo em português.
P/1 – E, o português, a senhora se lembra da professora ensinando?
R – Quando viemos para a Vila Anastácio, meu pai cumpriu o contrato lá e aí ele veio, ele cumpriu tudo.
P/1 – Quanto tempo?
R – Um ano. O resto do pessoal fugiu tudo. Fugiu tudo para a Vila Anastácio, ninguém cumpriu contrato. Em casa eu tenho a caderneta de quantos pés de café meu pai colheu, o que meu pai comprou, o que deixou de comprar. O meu pai ainda veio com dinheiro, e eles não, eles fugiram tudo. Todo mundo fugiu de lá. Ninguém aguentou. Meu pai não, falou: “Quero cumprir meu contrato e sair certinho.” Aí nós chegamos aqui, aí eu fui para a escola, estudei, fiz o quarto ano, aí já tinha a guerra. Eu ganhei uma bolsa de estudo, mas não podia ser matriculada porque eu era alemã.
P/1 – Porque tinha uma perseguição?
R – É, tinha perseguição. Mas o que uma menina que tinha onze anos, não eu já estava com treze, o que tinha que ver?! Meu pai não podia pagar uma escola particular assim.
P/1 – E onde era a Vila Anastácio?
R – Vila Anastácio fica aqui perto da Lapa. Tem Lapa depois tem Vila Jaguará, Freguesia do Ó fica perto.
P/1 – E por que esses colonos dessa fazenda – russos, a senhora falou – porque eles foram para a Vila Anastácio também?
R – Todos foram para a Vila Anastácio. Quando nós viemos eles estavam todos aí.
P/1 – Então fez uma colônia de estrangeiros?
R – Porque a Vila Anastácio era uma colônia de gente estrangeira, poloneses, lituanos, tinha muito lituano, ucranianos e russos.
P/1 – E a senhora se lembra como era o convívio desses vários povos lá na Vila Anastácio?
R – Ah, se davam muito bem.
P/1 – Faziam festas?
R – Faziam. De sábado cismavam fazer em casa, fazer uns bailinhos. À tarde de sábado, de domingo à tarde tinham bailinhos. Todo mundo se dava muito bem. Aí começou o cinema, construíram um cinema na vila, aí já todo mundo ia pro cinema. Na Vila Anastácio tinha muita gente estrangeira.
P/1 – Só queria completar com mais uma coisinha da parte da colônia de café. As crianças iam ajudar os pais na colheita ou não?
R – Não, eu não ia. A minha irmã ia e meu irmão também ia. Não, a minha irmã não ia, ela trabalhava na casa do fazendeiro, na administração. Meu irmão ia, vinha embora. Meu pai não obrigava. Mas o resto ia. Pequenininhos não tinham, mas a maioria de dez, doze anos, ia lá.
P/1 – E sua mãe ficava em casa?
R – Não. Minha mãe ia ajudar meu pai, meu irmão ia também. Depois voltava, ia para a escola.
P/1 – Eles sabiam lidar com o café ou não?
R – Nunca viram. Meu pai nunca viu como era um pé de café, como fazia.
P/1 – Aí ensinaram?
R - Aí não sei quantos mil pés de café meu pai quis pegar para cuidar.
P/1 – Para render dinheiro?
R – Porque com a quantia que eles deram pro meu pai, ele falou :“Vou morrer de fome”. Aí meu pai pediu mais. Ele falou: “Não posso dar”. “Não, eu quero.” “Ta bom, eu dou pro senhor, se o senhor não conseguir colher e tratar dos pés de café, eu vou por colonos pra trabalhar e vou descontar do senhor.” Meu pai terminou o dele e ainda foi ajudar os outros. Meu pai conseguiu.
P/1 – A senhora tem uma admiração muito grande pelo seu pai.
R – Meu pai era bacana mesmo, minha mãe também.
P/1 – Como era a sua mãe? Queria saber um pouco mais dela.
R – Minha mãe era mais pacata assim, meu pai não, meu pai gostava de sair, chegava sábado e domingo, se ele me via fazer faxina, ele falava: “Filha, vai passear, vai dançar, não fica em casa, vai dançar, vai sair daqui”. Ele gostava muito de festa, de baile, de sair, se vestir bem.
P/1 – Ele chegou a conhecer as quermesses do Brasil?
R – Chegou. Ele ia, ele ia bastante. Tiro ao alvo, tudo quanto era brincadeira ele ia. E cinema, nossa!
P/1 – Dona Irena, em que ano vocês saíram da fazenda, 1937?
R – Pra São Paulo nós viemos em 1937. Em dezembro nós viemos pra cá.
P/1 – E vocês ficaram na Vila Anastácio?
R – Ficamos na Vila Anastácio, ficamos onze anos lá. Durante esses onze anos meu pai queria ir para a Polônia. Meu pai estava fazendo os papéis para voltar para a Polônia.
P/1 – Mesmo sabendo que tinha guerra?
R – Tinha terminado a guerra já.
P/1 – E durante a guerra a senhora lembra de fazer algum comentário?
R - Ele escrevia. Quer dizer, ninguém escrevia dizendo se estava ruim nem nada. Escreviam que estavam bem, os alemães que nós deixamos lá mandavam lembranças. Só sei dizer que essa minha tia foi morar pra Polônia, porque os filhos casaram, ficaram lá e ela foi pra Polônia, ela tinha parentes lá e ela foi morar lá. Aí meu pai fez a papelada e eu falei: “Eu não vou”. Eu já estava com dezenove anos, eu tenho até o papel que ele estava tirando no consulado. Foi no consulado, tirou, assinei, sem saber o quê. Ele falou: “Assina isso aqui pra mim que eu preciso levar no consulado”. Tirei foto, estava tudo lá. Aí ele falou: “Por que você não vai voltar?”. “Eu não vou voltar, vou ficar aqui.”
P/1 – Por que a senhora não queria voltar?
R – Porque aqui estava bom. Pra que eu ia voltar lá? Não ia conhecer ninguém. Ele estava com a papelada toda pronta. Aí ele falou: “Você não quer ir?”. “Não, eu não vou, eu vou ficar aqui.” A minha irmã tinha casado. “Fico aqui com a Mônica.” “Não quer ir mesmo?” “Não, não vou.” “Então está bom.” Compramos terreno na Freguesia do Ó e ficamos por aqui. Foi a melhor coisa que nós fizemos.
P/1 – Como era na Vila Anastácio, as diversões, o que vocês faziam?
R – Lá tinha muito baile, depois construíram um cinema.
P/1 – A senhora lembra o nome do cinema?
R – Cine Estevão, porque a igreja era Santo Estevão e como era ali pertinho, na mesma rua, então era Cine Estevão.
P/1 – Os amigos eram, em geral estrangeiros?
R – Eram estrangeiros, a maioria eram estrangeiros. A Armour, a antiga Armour, que hoje é a Bordon, ali só tinha estrangeiro trabalhando.
P/1 – Então eles foram trabalhar nesse lugar que era um frigorífico?
R – Era o frigorífico Armour. Antigo. Aí virou Bordon.
P/1 – Seu pai foi trabalhar lá também?
R – Meu pai trabalhou lá uns tempos, depois ele saiu de lá, ele foi trabalhar na construção. Aí meu pai caiu, quando estava fazendo o Cine Marabá. Ele caiu do terceiro andar pra baixo, quebrou sete costelas. Aí quando ele voltou, eu falei: “Larga deste serviço”.
P/1 – Ele já era de idade, já?
R – Já, acho que ele tinha uns cinquenta. Não, acho que ele tinha uns quarenta e pouco. Aí ele saiu de lá e foi trabalhar na Caio Graco, negócio de ônibus, fazer chassis de ônibus. De lá, ele ficou doente, deu câncer nos rins.
P/1 – Nesse lugar em que vocês moraram na Vila Anastácio, vocês passaram esses onze anos numa mesma casa?
R – Não, mudamos de três casas.
P/1 – E as casas eram próximas uma da outra?
R – É. Duas na mesma rua, Camacan, e uma na Caiapós. E aquele senhor, aquele amigo do meu pai, também, sempre junto.
P/1 – Sempre juntos?
R – Se alugava uma casa, repartiam. Se um ficava no fundo, outro ficava na frente. Então a gente dividia a casa e morava junto. Aí compramos o terreno junto, na Freguesia do Ó, e estamos até hoje. A vizinha que é minha afilhada, os pais dela morreram.
P/1 – E as casinhas da Vila Anastácio eram como?
R – Eram...
P/1 – Sobrado?
R – Não, tudo casa térrea.
P/1 – E cabia todo mundo ou não?
R - Ah, a gente só tinha um quarto e cozinha.
P/1 – E o banheiro?
R – Tinha um banheiro só.
P/1 – Dentro ou fora?
R – Fora. O banheiro era fora. Depois que nós viemos para cá, pra Freguesia, é que meu pai construiu dois quartos, sala grande, tudo, com dois banheiros, cozinha. Lá até a cozinha, por causa do amigo dele, que a mulher estava esperando essa minha afilhada, então eles pegaram quarto e cozinha junto. Meu pai ficou com o quarto da frente e a cozinha do fundo. Nunca mais se separaram.
P/1 – Incrível. E na Freguesia do Ó também tinham outros estrangeiros?
R – Tinham.
P/1 – De quais nacionalidades?
R – Tinha polonês também, tinha um, dois, três, quatro poloneses “tudo amigos”. Quer dizer, aquele polonês, um clube dos poloneses, e se juntavam. Aí eles, quer dizer, meu pai e esse eram amigos da Alemanha, daí se conheceram. Tem muito polonês lá, era um clube que faziam baile, tinha muito baile lá, quermesse lá dentro. Era uma casa, os poloneses alugavam e faziam a festa lá dentro.
P/1 – Tinha um nome ou não?
R – Olha, tinha uma na Avenida do Estado, eu não me lembro o nome. Clube dos Poloneses. A gente só sabia que era o Clube dos Poloneses. Agora na Avenida do Estado era uma coisa mais... Ali era mais pra uma coisa da Vila mesmo, o pessoalzinho de lá fazia as coisas. Agora na da Avenida do Estado ia o Cônsul, apesar do consulado polonês vinha lá também. Vinham ministros que às vezes apareciam.
P/1 – Já era uma festa mais imponente?
R – Com pessoas. Se você queria alguma coisa da Polônia, se queria saber. Então vinha muito pessoal da Polônia. Ali eu não me lembro o nome, não.
P/1 – Na Vila Anastácio, nas festas, vocês faziam comidas típicas, danças...
R – Fazia comida típica da Polônia. Fazia repolho com salsicha, depois tinha bastante salame que eles mesmos faziam. Minha mãe, a mãe dessa minha afilhada, faziam todas essas linguiças, faziam tudo, tudo.
P/1 – E danças típicas, tinha?
R – Tinha, tinha. Dançava a polka.
P/1 – A polka!
R – Tinha os discos.
P/1 – A senhora aprendeu a dançar polka?
R – Ah sim, meu pai dançava bem. Dancei bastante polka.
P/1 – A senhora ensinou para os seus filhos?
R – Não, meu filho não gosta de dança. Meu marido também não gostava de dançar. Ah, meu pai era de dançar.
P/1 – Um pé de polka.
R – Meu pai falava: “Você abre o salão e fecha o salão”. Eu gostava também. Minha mãe não gostava de dançar. Ela não ia, mas meu pai ia.
P/1 – A senhora estranhou muito quando mudou da Vila Anastácio para a Freguesia do Ó?
R – Fiquei doente.
P/1 – Ah é? Por quê? Não queria sair?
R – Não queria saber. Porque eu trabalhava na Anderson Clayton.
P/1 – O que é?
R – Hoje a Gessy Lever que comprou, na Vila Anastácio mesmo. Eu morava cinco minutos da fábrica. Pra vir da Freguesia, eu tinha que ir a pé, porque não tinha condução pra ir para lá. Fiquei doente. Achei um absurdo morar aqui e trabalhar lá. Fiquei doente mesmo. Meu pai estava quase desistindo da casa. Mas fui, fui, arranjei umas amizades e fiquei até hoje.
P/1 – Amigas lá na Freguesia?
R – É. Aí eu conheci o meu marido, conheci muitas amigas.
P/1 – Seu marido é brasileiro?
R – Era brasileiro. Filho de italiano e a mãe dele era romena.
P/1 – Como vocês se conheceram, Dona Irena?
R – Na pracinha que tem lá na Freguesia. Praça... Porque tem a praça velha e a praça nova. A praça nova. Tem a igreja. Só que hoje não dá para ficar lá, tem muita violência. Todo ano tem a Feira das Nações, que fazem lá, é uma beleza. É em maio. Todo mês de maio faziam lá. Era um espetáculo a Feira das Nações.
P/1 – Eu não conheço essa feira, a senhora não quer contar um pouquinho dela?
R – Tem barraca de todos, tem japonesa, espanhola, portuguesa, alemã.
P/1 – Polonesa?
R – Polonesa não tinha.
P/1 – Vocês participavam na alemã?
R – Não, eu não participei. No começo, eu era muito mocinha. Depois eu casei e já não ia muito. Ia na festinha, né. Era tudo pessoal amigo, tudo pessoal de lá, agora... Você conhece todo mundo lá, mas quem vai à festa, você não conhece. Sabe, é muita violência. Esse ano, até não fizeram a Feira das Nações.
P/1 – A senhora falou que conheceu seu marido nessa praça?
R – Na praça, aí namoramos.
P/1 – Como que foi o dia em que vocês se conheceram, tinha uma paquera?
R – Tinha paquera. Só que não dava muito certo porque eu gostava de cinema e ele não gostava. Então a gente se desencontrava. A gente namorou dez anos.
P/1 – Nossa, dez anos. E a senhora sempre trabalhando?
R – Sempre trabalhando. Eu trabalhei na Anderson Clayton dez anos, aí de lá eu saí e comecei a costurar. Eu costurava para uma loja de judeus na José Paulino e comecei a costurar roupa pra fora.
P/1 – Aprendeu com quem a costura?
R – Eu aprendi numa escola de Corte e Costura. Eu era mocinha quando eu aprendi. Não é que eu não gostava de costurar, como eu trabalhava numa firma, na Anderson Clayton, e era bom lá para mim. Quer dizer eu trabalhava e estudava o Corte e Costura. Daí eu tirei o diploma, mas não segui, continuei trabalhando lá.
P/1 – A escolaridade da senhora foi até...?
R – Até o quarto ano.
P/1 – Depois fez o Corte e Costura?
R – Fiz o Corte e Costura, porque não podiam me matricular por causa que eu era alemã.
P/1 – Aí a senhora saiu da escola?
R – Então, a gente falava alemão e aí nem alemão você podia falar, porque era proibido falar.
P/1 – Hoje a senhora não fala mais?
R – Eu falo, não vou dizer que eu não sei. Aí eu aprendi o polonês, eu falo bem o polonês, e o alemão eu preciso pensar pra falar.
P/1 – Depois a senhora veio a aprender o polonês?
R – Eu vim aqui mesmo, eu fui na escola aprender o polonês. Tinha o clube dos poloneses e tinha a escola, tinha um professor que vinha ensinar os filhos dos poloneses. Eu fui à escola polonesa, aprendi a falar polonês, escrever, e esqueci o alemão porque não podia falar. Não tinha com quem conversar também, a minha irmã casou, meu irmão foi... Meus pais só falavam polonês, então a gente esqueceu. Se eu fosse três meses numa escola, eu aprendia. Você lembra, mas não tem com quem falar. Aí eu aprendi o polonês, uma coisa que eu não sabia falar. Na Alemanha, eu não falava um “a” em polonês. É incrível uma coisa dessa.
P/1 – E aí a senhora casou com seu marido, ele já é falecido?
R – Já é falecido.
P/1 – E vocês continuaram morando na mesma casa que seu pai construiu?
R – É, moro até hoje.
P/1 – Junto com seu pai e sua mãe?
R – Meu pai e minha mãe faleceram.
P/1 – Quando a senhora se casou, eles já estavam falecidos?
R – Não, eles eram vivos. Eu fiquei no meu quarto. Eu tinha o meu quarto e meu pai tinha o dele. Tinha a cozinha, uma sala, dois banheiros. Eles já eram de idade, então eu fiquei com eles. Moro até hoje, eles faleceram.
P/1 – E aí a senhora teve filhos.
R – Um só.
P/1 – E qual é o nome dele?
R – Auro. Auro Antonio Viti.
P/1 – A senhora tem netinhos ou não?
R – Tenho uma netinha.
P/1 – Quantos anos ela tem?
R – Vai fazer treze na semana que vem.
P/1 – Treze?
R – É.
P/1 – Então a senhora está há muito tempo nessa casa na Freguesia.
R – Desde 1949, são cinquenta e... cinquenta e dois anos que eu moro aí. Quando eu vim morar, era barro, sabe, não tinha asfalto, não tinha nada. Pisei barro lá que só vendo.
P/1 – Que a senhora lembra mais de transformações?
P/1 – Além da falta de pavimentação, o que a senhora viu mais de transformação ao longo do tempo em que a senhora está lá? De mudanças. Luz tinha lá?
R – A minha rua tinha luz e tinha água encanada, desde 1949 tinha água. Só uma rua para baixo que não tinha. Mas até onde meu pai comprou o terreno já tinha água encanada.
P/1 – E o comércio no bairro, dona Irena?
R – Eram vendinhas, essas vendinhas pequenas, comprava em vendinha. Meu pai trabalhava na, na Armour ele só trabalhou enquanto a gente morava na Vila Anastácio, aqui ele começou a trabalhar em construção. Custou para a Freguesia ir para frente. Ficou muito tempo parada, sabe. De repente começou a surgir prédios, prédios e prédios.
P/1 – Isso foi mais ou menos quando?
R – Começou a mudar em 1975.
P/1 – E por que começou a erguer esses prédios?
R - Aí que começou a ir pra frente. Primeiro era só casinha, casinha, casinha. Não saía daquilo. Aí que começou. Agora a Freguesia é enorme. Eu moro mesmo no centro, porque depois tem Vila Brasilândia, tem Itaberaba, Vila Iorio, tem vila não sei o quê, aquilo foi fazendo em volta.
P/1 – São bairros marginais.
R – É, dando volta. Eu moro no centrinho mesmo. Sabe, era mato lá. Onde meu pai comprou era uma chácara, aí foram dividindo. E aquele senhor que vendeu o terreno pro meu pai, ele veio no navio em que nós viemos. Só que quando ele contou isso para o meu pai, ele veio de Portugal para cá, ele veio nesse navio, chamava São Martin. Quando esse navio voltou, ele foi afundado. Quer dizer que a gente chegou aqui em 1936, em 1940, ele foi afundado, na Segunda Guerra. Esse português falou assim: “Eu vim com esse navio”. Quer dizer, meu pai não ficou sabendo que o navio tinha afundado. Ele falou: “Eu vim com o São Martin e quando ele voltou, ele foi afundado, afundaram ele”. Ele falou para o meu pai: “Você veio de navio?”. “Vim.” “Como que chamava?” “São Martin.” Eu tenho até o documento de quando a gente veio. “Eu vim com esse, mas quando ele voltou do Brasil, foi que ele ia voltando, ele foi afundado.”
P/1 – Dona Irena, a senhora contou do bairro, da pavimentação da rua, da água e da luz que já tinha. E transporte?
R – Tinha só um que era o Paissandu, era um ônibus. Freguesia até Paissandu. Bonde não tinha. Assim, eu ouvi dizer que os grandes lá da Freguesia, sempre tem, eles não queriam o bonde lá.
P/1 – Por quê?
R – Porque eles tinham chácaras lá e não queriam que destruíssem. O pessoal mais velho, mais antigo que morava lá, não queria o bonde lá. Eu ouvi dizer, não sei se isso é verdade. Diversas pessoas falaram, que o João Preto, porque de lá que saíram os bandeirantes, e tinha esse tal de João Preto que foi um desses bandeirantes. As filhas moram lá ainda, netos, então eles não queriam saber de bonde ali.
P/1 – Porque ia destruir a propriedade?
R – É, ia destruir as propriedades.
P/1 – Entendi, mas não teve jeito. Depois acabou entrando a...
R – Eu, como ia trabalhar na Anderson Clayton, tinha que ir a pé porque não tinha condução para ir para lá.
P/1 – Todo dia a senhora ia a pé?
R – Ia a pé.
P/1 – E depois que a senhora começou a fazer roupa para a loja dos judeus, no centro da cidade?
R – Era na José Paulino. Eu ia buscar, tudo cortadinho já, jaquetas. Eu costurava muita jaqueta. Eu ia buscar, costurava e levava.
P/1 – E aí a senhora ia como?
R – De ônibus, o Paissandu. Ele passava lá perto, descia no Coração de Jesus, aí eu descia lá pra baixo.
P/1 – Chegava em casa, passava à costura?
R – Ia pra costura. Aí depois larguei disso pra fazer roupa mesmo, vestido, casaquinho, essas coisas. Até hoje, é meu ganha-pão. Criei meu filho porque meu marido morreu, ele tinha dez anos.
P/1 – Seu marido trabalhava em que área?
R – Ele trabalhava com caldeiras. Ele fazia manutenção em caldeiras.
P/1 – Ah, caldeiras.
R – É, manutenção de caldeiras.
P/1 – Aí ficou difícil para a senhora?
R – Aí ficou difícil. Costurei bastante. Varei noites costurando. Criei meu filho assim. Mas foi muito bom porque ele é muito bom pra mim.
P/1 – E ele mora na Freguesia também?
R – Mora, só que ele mora num outro bairro. Mas é perto, cinco minutos. É o que eu estou falando. As vilas foram se formando em volta e ele mora numa dessas, em Vila Iracema, mas é cinco minutos.
P/1 – E sua nora, a senhora se dá bem com ela?
R – Nossa, e como (risos). É estrangeira, filha de húngaros.
P/1 – Olha só...
R – E os pais dela, como a gente se dá bem.
P/1 – Então vocês são majoritariamente da Europa do Leste? Curioso, polonês, húngaro, russo.
R – Lituanos, ucranianos.
P/1 – Então ela também é estrangeira?
R – Filha de húngaros. Os pais são brasileiros, ela é neta de húngaros.
P/1 – A sua neta deve ser bem clarinha.
R – Uma lourinha linda.
P/1 – Como ela se chama?
R – Taís, ela é bonita mesmo.
P/1 – A senhora trouxe tradições alemãs? De comida assim, coisas que a senhora gosta de cozinhar?
R – O que eu faço é esse kuchen que é um tipo de panetone, faço também o repolho – o chucrute, a mamãe fazia também borscht que eu também faço, é a sopa de beterraba, chama borscht. Tudo que minha mãe fazia, eu faço.
P/1 – E de tradição religiosa, tem algum dia específico que vocês comemoram que é diferente daqui?
R – Não, não tem, porque Natal, Ano Novo.
P/1 – Tradição católica. No Bom Retiro tem a Igreja Nacional Auxiliadora, tem padre polonês.
R – Agora não, quando meu pai estava vivo, sim. A gente ia todo domingo. O passeio da gente era pegar o trem, descer na Estação da Luz, tomar um cafezinho e ir para a missa. Não, primeiro ia na missa, depois da missa ia tomar um café, na Estação da Luz, era o passeio da gente.
P/1 – Tinha um café dentro da Estação da Luz?
R – Tinha um café que a gente tomava lá. Era gostoso porque era diferente, era um passeio de trem.
P/1 – Um café que vocês nunca tinham visto na Alemanha, vocês foram plantar o café e depois foram tomar o café na estação.
R – Olha, e quanto café meu pai mandou pra Alemanha, depois que terminou a guerra, a minha tia escrevia que faltava isso, que faltava aquilo. Meu pai mandava vestidos, café, tudo que era coisa diferente daqui, meu pai fazia pacote e mandava. Quanto pacote meu pai fazia e mandava. Escrevia “olha, o café que eu colhi”. (risos)
P/1 – E essa missa do Bom Retiro? Eu fiquei curiosa.
R – A gente ia na missa dos poloneses, e aí tem padre polonês. Esse padre vem todo dia 15 e abençoa a casa de todos os poloneses. Todo dia, ele marca o dia.
P/1 – Ele vai na casa?
R – Vai nas casas abençoar as casas dos poloneses.
P/1 – Não importa se mora no Bom Retiro ou na Freguesia.
R – No Tatuapé, num sei onde, ele vai lá e abençoa a casa. Ele faz isso todo ano. Agora ele mudou um pouco, ele não vem mais dia 15, ele manda uma cartinha para a pessoa e marca o dia para abençoar tua casa, aí ele deixa uma hóstia para nós, para a gente repartir no Natal. Uma hóstia assim desse tamanho e na noite de Natal a gente reparte entre a família. É o costume polonês. Reparte, por exemplo, quando era meu pai, ficava metade para minha mãe e metade para meu pai, repartia a hóstia. Os filhos pegavam um pedaço e desse pedaço eu tinha que tirar um pedacinho, minha irmã tirava um pedacinho, meu irmão tirava um pedacinho. Daí da minha irmã, eu tirava um pedacinho, meu irmão tirava um pedacinho, meu pai tirava um pedacinho, meu pai. Cada um tirava um pedacinho, é uma tradição dos poloneses.
P/1 – Que bonito.
R – Eu faço isso até hoje.
P/1 – Quer dizer, deve ter um significado assim: o seu pai dava pra você e você também dava pra ele. Uma troca mútua. Que bonita essa tradição.
R – Meu filho exige que a gente faça isso.
P/1 – O seu filho?
R – O meu filho. Ele fala: “Mãe, eu não quero esquecer isso”, porque o padre vem e deixa a hóstia para nós. Ele fala: “Essa hóstia, a gente vai repartir entre nós”. Então fica eu, minha nora, meu filho e minha neta.
P/1 – Dona Irena, nós falamos o contrário, o que ficou de lá da Alemanha e da Polônia e o que vocês assimilaram dos costumes brasileiros? O que vocês introduziram dos costumes brasileiros na vida de vocês?
R – Eu acho que eu peguei tudo, peguei tudo.
P/1 – Comida, uma feijoadinha. É uma boa?
R – Comida, e meu pai também gostava. Feijoada, as frutas então, ele tinha adoração por fruta. Ele comia tudo quanto é fruta. Eu falo pro meu filho assim: “Sabe, filho, coitado do teu avô, se ele fosse vivo hoje, o ordenado dele não ia dar para nada”. Porque ele ia no mercado, quando ele era vivo, ele ia no Mercado Central – porque não tinha o da Lapa ainda. Então ele ia no Mercado Central. Aí ele pegava salsichão, salsicha, manteiga, frios, queijos. Ele vinha com tudo. Todo sábado ele fazia isso. Se ele não fizesse isso num sábado, ele não tinha o que comer no outro sábado porque o salário dele já ia embora.
P/1 – Hoje em dia as coisas estão mais caras?
R – Não dá. Meu filho fala: “É verdade?” .“É Auro, o vovô fazia isso todo sábado.” Ele trazia de tudo. Peixe, ele adorava peixe.
P/1 – Vocês estranharam um pouco a comida?
R – Não, eu não estranhei. Arroz já tinha. Batata, eu não sou de muita batata, então pra mim... Meus pais também não.
P/1 – E assim costumes, por exemplo, carnaval. Vocês já tinham ouvido falar em carnaval?
R – Lá tinha carnaval.
P/1 – Tinha?
R – Tinha.
P/1 – Mas era diferente?
R – Era diferente, mas tinha sim. É que eu não trouxe a foto. Na época do carnaval que fazia, o meu pai, a turminha fazendo festinha, fazendo carnaval, eles estão com forma de bolo na cabeça, tudo que era bugiganga eles tinham na cabeça. Engraçado que meu pai está com aquela forma de bolo na cabeça, toda ondulada assim, com garrafa na boca, festejando. Eu tenho uma prima que me mandou uma foto, que ela está na Alemanha, ela está vestida de espanhola.
P/1 – E aqui, o carnaval, vocês chegaram a frequentar?
R – Na Lapa tinha, na rua Doze. Quando nós chegamos e vimos o primeiro carnaval, nós ficamos de boca aberta, porque era ainda bonito, depois acabou.
P/1 – Como era, nessa época, o carnaval da Lapa?
R – Na rua, com veste de carnaval, sabe. Eu não. A minha irmã. A minha irmã se fantasiava, ou de marinheira ou daquelas roupas assim de espanhola. A minha irmã fazia. É que ela era mais mocinha, como eu era mais criança, a minha mãe não fazia não. E era gostoso, a gente ia lá na rua Doze e via passar os cordões. Ou senão em salão, salão tinha bastante, mas pouca fantasia.
P/1 – Aí era matinê?
R – Era matinê.
P/1 – E onde que era a matinê lá da Lapa?
R – Carlos Gomes e o Recreio. Carlos Gomes era onde era... você conhece a Lapa?
P/1 – Conheço pouco.
R – Onde é a Loja Americana, lá era o Carlos Gomes, o cinema.
P/1 – Aí fazia dentro do cinema?
R – É, ou senão no Recreio que é na Lapa de Baixo, o cine Recreio que tinha lá. A gente vinha tudo a pé. Imagina se podia fazer hoje, nem em turminha se vai em bastante, não dá para arriscar vir.
P/1 – A senhora mencionou o Mercado da Lapa, a senhora lembra da época da fundação do Mercado da Lapa?
R – Não me lembro do ano.
P/1 – A senhora se lembra do evento, do acontecimento?
R – Lembro, eu fui, não me lembro data.
P/1 – Acho que foi em 1954, se não me engano. No mesmo ano do Quarto Centenário da Cidade de São Paulo. Mas como foi o acontecimento?
R – Teve festa, tinha banda na frente, fizeram festinha. Eu fui, mas não recordo não. Aí meu pai começou a frequentar esse aí, né? Era bem mais perto. Ele ia a pé. Nós não tínhamos ônibus da Freguesia para a Lapa. Só tinha da Freguesia para o Paissandu, pra Lapa não tinha. E todo mundo ia a pé, por isso acho que o pessoal era mais forte. (risos) Hoje todo mundo vai de carro. A minha mãe chegou a viver até os noventa e seis.
P/1 – O que tem na Freguesia de mais significativo? Porque a gente está enfocando também o bairro. O que tem de forte na sua lembrança? Ou uma coisa que existiu e não existe mais ou uma coisa que continua.
R – Lá tinha o Gitema que hoje é o Vila Rica, levantou seis prédios lá. Tem bailes lá. Gitema era a escola, era o ginásio. Ali de primeiro era um convento de freiras, aí elas foram embora de lá e virou uma escola. A escola se chamava Gitema – Teresa Martin. Agora ele mudou para baixo, na mesma direção só que uma rua para baixo. A escola, é uma Faculdade. Agora levantaram uns oito prédios lá, um aglomerado chamado Vila Rica. Lá era um lugarzinho de dançar, tinha o baile do Sete de Setembro, terminou também. Tinham as quermesses. As quermesses eram muito boas, eram boas mesmo. Ficavam na praça velha.
P/1 – As quermesses eram geralmente todo domingo ou em épocas de festa junina?
R – Joaninas, épocas de agosto, festa da Freguesia, acho que faz quatrocentos e cinquenta e nove anos.
P/1 – Ah, tem aniversário?
R – Tem festa, tem banda.
P/1 – Todo ano tem isso?
R – Tem, tem.
P/1 – É a própria prefeitura que promove ou são as pessoas que se juntam?
R – Primeiro era a prefeitura, mas agora tem uns dois anos que anunciam, tem uma festinha lá no bairro, tem a missa e acabou. Primeiro não, era festança, até com churrasco. Era época do Ademar de Barros, ele ia em pessoa com a senhora dele. A gente chegou a conhecer eles. Eles eram pessoas muito simples, conversavam, ficavam no meio do pessoal. Eles frequentavam uma casa que era de amigos.
P/1 – Tem uma presença marcante lá.
R – Dona Irena, a gente já está encaminhando para o final, mas eu queria fazer umas perguntinhas antes. Como é seu cotidiano hoje. Descreve um dia da sua vida pra gente. Hoje.
R – Durmo, levanto, faço minhas coisas e vou costurar. Que as freguesas querem uma roupa. E essa é minha vida.
P/1 – Suas freguesas são do bairro?
R – São tudo do bairro.
P/1 – São estrangeiras ou brasileiras?
R – São de toda raça. Tem de tudo.
P/1 – E quais são as melhores freguesas?
R – Dona Celeste, Beth, uma porção, tem várias. Mas essas foram freguesas de trinta anos.
P/1 – A senhora faz roupa de festa ou de...
R – Gosto mais de roupa de festa, mas faço de tudo.
P/1 – E qual que é seu lazer preferido?
R – Eu gosto de viajar, passear, sair. Eu saio, pra Campos de Jordão. Saio com minha afilhada. Todo sábado e domingo, a gente sai, Shopping, onde tem exposição a gente vai. O meu filho leva a vida dele, se não saio com ele, vai comer uma pizza.
P/1 – De volta pra Alemanha a senhora nunca foi depois que a senhora veio?
R – Nunca mais. Eu gostaria, ver o lugar onde eu andei, onde eu pisei, eu gostaria. A minha irmã foi, mas não foi lá. Ela foi pra França, ela foi pra Itália, ela foi no Louvre, ela queria ver aquela exposição que teve aqui, do Egito. Eu fui ver, eu com a Marinéia, eu fui ver. Ela quis ver mas estava fechada, estava em reforma. Eu liguei pra ela e falei para ela vir aqui ver.
P/1 – E o que a senhora acha que é a melhor qualidade da senhora?
R – A minha qualidade é que eu me dou com todo mundo, acho que é uma qualidade minha, nunca estou de cara feia, amarrada. Estou de bem com a vida.
P/1 – Dona Irena, um grande sonho que a senhora gostaria de realizar.
R – Gostaria de viver até ver minha neta casar.
P/1 – Ia fazer o vestido de casamento dela?
R – Não, isso não ia fazer não.
P/1 – Porque dá azar?
R – Não, não é porque dá azar, é porque não teria condições.
P/1 – Só mais duas questõezinhas: Se a senhora pudesse voltar no tempo e voltar alguma coisa na sua vida, a senhora faria alguma coisa diferente?
R – Não, deixaria do jeito que está.
P/1 – E para a gente encerrar, o que a senhora achou de estar contando um pouquinho da sua história?
R – Que eu lembrei tudo o que eu passei, pode ser que até esqueci coisas. O mais forte foi aquele do meu pai pegar a mala e sentar e ter dito “filha, onde eu te trouxe?”. Aquilo marcou. “Se o mar fosse seco eu voltava a pé.” Aquilo eu não esqueço. Vou pra praia, olho assim, vou nas férias com meu filho. Meu filho diz “Mãe, já sei, se o mar fosse seco, o vô tinha voltado” (risos)
P/1 – Dona Irena, eu gostaria de agradecer sua colaboração, e parabéns pela trajetória de vida e pela simpatia que a senhora transborda.
R – Obrigada você.
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