P/1 - Boa tarde, Eliane.
R - Boa tarde.
P/1 - Meu nome é Genivaldo. A gente vai começar agora a sua entrevista. Vamos começar pela pergunta mais básica: o seu nome completo, o local e data de nascimento.
R - Meu nome é Eliane Leite Alcântara Malteze. O Alcântara Malteze é do meu marido, mas o meu nome mesmo é Eliane Leite. Todo mundo me conhece mais assim. Nasci em São Paulo, no dia vinte e um de abril de 1962.
P/1- E qual o nome dos seus pais?
R - Meu pai se chamava Antônio Leite, porque ele já faleceu. E aí, com o tempo, ele colocou Antônio “Jaguá” Leite, porque também todo mundo o conhecia como Jaguá. E a minha mãe [se] chama Iracema Amorim Leite.
P/1- E o que os seus pais faziam? Qual é a profissão dos seus pais?
R - O meu pai era... na verdade, ele veio pra São Paulo na adolescência. Ele era de Minas, Muzambinho. Muzambinho é uma cidade que está bem conhecida, hoje em dia, porque o Milton Leite colocou Muzambinho no mapa. E meu pai começou como... Trabalhando na antiga DAE - Departamento de Água e Esgoto de São Paulo, quebrando ruas, quebrando asfalto. Aí foi crescendo profissionalmente, foi estudando, porque ele não tinha estudo nenhum quando veio pra São Paulo.
Ele abriu uma empresa de construção e de engenharia e aí ele ficou. Uma fábrica de lajes, também, ele tinha, e ficou nessa área, como microempresário. Depois, ele abriu uma imobiliária também. Ele tinha uma imobiliária até antes de falecer e trabalhava com isso - além do ativismo, meu pai sempre foi um homem muito ativista nas causas raciais.
Minha mãe era uma dona de casa. O meu pai era machista. Quando a minha mãe... A minha mãe acabou se tornando uma dona de casa. Até chegou a tentar a trabalhar fora, mas o meu pai não deixava. Hoje em dia… A minha mãe ainda é viva. O meu pai já é falecido, mas a minha mãe é viva. Ficou como dona de casa, sempre cuidando de casa, sempre fazendo essas coisas de casa. Hoje ela está com...
Continuar leituraP/1 - Boa tarde, Eliane.
R - Boa tarde.
P/1 - Meu nome é Genivaldo. A gente vai começar agora a sua entrevista. Vamos começar pela pergunta mais básica: o seu nome completo, o local e data de nascimento.
R - Meu nome é Eliane Leite Alcântara Malteze. O Alcântara Malteze é do meu marido, mas o meu nome mesmo é Eliane Leite. Todo mundo me conhece mais assim. Nasci em São Paulo, no dia vinte e um de abril de 1962.
P/1- E qual o nome dos seus pais?
R - Meu pai se chamava Antônio Leite, porque ele já faleceu. E aí, com o tempo, ele colocou Antônio “Jaguá” Leite, porque também todo mundo o conhecia como Jaguá. E a minha mãe [se] chama Iracema Amorim Leite.
P/1- E o que os seus pais faziam? Qual é a profissão dos seus pais?
R - O meu pai era... na verdade, ele veio pra São Paulo na adolescência. Ele era de Minas, Muzambinho. Muzambinho é uma cidade que está bem conhecida, hoje em dia, porque o Milton Leite colocou Muzambinho no mapa. E meu pai começou como... Trabalhando na antiga DAE - Departamento de Água e Esgoto de São Paulo, quebrando ruas, quebrando asfalto. Aí foi crescendo profissionalmente, foi estudando, porque ele não tinha estudo nenhum quando veio pra São Paulo.
Ele abriu uma empresa de construção e de engenharia e aí ele ficou. Uma fábrica de lajes, também, ele tinha, e ficou nessa área, como microempresário. Depois, ele abriu uma imobiliária também. Ele tinha uma imobiliária até antes de falecer e trabalhava com isso - além do ativismo, meu pai sempre foi um homem muito ativista nas causas raciais.
Minha mãe era uma dona de casa. O meu pai era machista. Quando a minha mãe... A minha mãe acabou se tornando uma dona de casa. Até chegou a tentar a trabalhar fora, mas o meu pai não deixava. Hoje em dia… A minha mãe ainda é viva. O meu pai já é falecido, mas a minha mãe é viva. Ficou como dona de casa, sempre cuidando de casa, sempre fazendo essas coisas de casa. Hoje ela está com oitenta e sete anos, então já não com toda a energia, porque teve um AVC. Não está com toda a energia que ela tinha antes.
P/1- E você tem irmãos?
R - Eu tenho uma irmã gêmea, né? Eu falei isso. Elizabete, minha irmã gêmea, parceira, companheira de todo esse tempo de vida, nós somos muito amigas. E uma irmã mais velha, que é a Maria Cristina, que todo mundo chama [de] Cristina. Tem uma diferença de dois anos com a gente.
P/1 - Vamos falar um pouquinho da sua infância. Você se lembra da casa onde você nasceu ou onde você passou a sua infância? Como era?
R - Lembro, lembro. O meu pai, quando veio de Minas, ele veio com quatro, cinco... Com os quatro irmãos dele. Então eles compraram, a minha avó comprou um terreno lá no Parque Peruche. E os filhos moravam ali no Parque Peruche, no terreno da minha avó. E o meu pai que foi sempre, até, considerado o mais metido, comprou outra casa, ali próximo da minha avó - umas três, quatro casas próximo da minha avó. E ali nós crescemos.
Cresci ali no Peruche, numa rua... o Peruche sempre foi considerado um bairro de periferia, bem periferia. E falavam que tinha uma maloquinha - o nome que o pessoal dava era maloquinha - que ficava descendo um pouquinho, na Rua C - se chamava Rua C, depois passou a ser Rua Antônio Cavazzam.
Eu cresci nessa rua, com os meus primos. Como os meus primos moravam… A minha avó morava ali do lado, cresci ali com os meus primos. Tive uma infância muito de brincar, uma infância muito na rua, né? De ficar correndo na rua, no quintal. Como eu tenho uma irmã gêmea e a gente era muito próxima, então era tudo muito rua.
O meu pai, quando a gente… Ainda no começo, nessa questão [de] dificuldade financeira, de pobreza mesmo, o meu pai tinha uma casa [que] ficava no fundo, até construir o sobrado que a gente morou e ali a gente brincava, corria. Não tinha água. Tinha essa coisa de tomar banho na bacia, lá fora no quintal; lavava o cabelo, sabe, cabelo crespo, né? Difícil. A gente corria quando punham a gente na bacia pra tomar banho, era aquela correria. Descia correndo.
A minha mãe ficava nervosa. Três filhos. Nós duas com a mesma idade, gêmeas e uma com uma diferença de dois anos, todas pequenas. E a gente tinha muito esse contato com os primos, então eu tive uma infância muito de rua, de brincar, dessa coisa de comer na minha tia, que morava perto. De ir na minha avó, ir nos meus primos - era uma coisa muito de calçada, atravessava a calçada, já estava na casa da avó, estava na casa dos primos. E brincava.
A rua não tinha asfalto. Era uma rua que tinha essa coisa da gente brincar muito com barro, tudo você construía com a terra. Tinha uma coisa forte com a terra. Tinha pé de um monte de coisa na casa da minha avó.
Foi uma infância muito rica, muito prazerosa, e muito próxima dos primos, tanto é que até hoje a gente tem uma conexão muito grande [com a] família, essa coisa de família é muito importante.
Essa avó materna morava na Casa Verde Alta. A gente chegava, assim... Eu estudava de manhã; lembro que nas férias e à tarde, após a aula, a minha mãe gostava de ir na casa da minha avó. E a gente ia a pé, descia ali pela Rua C e andava ali, até chegar. Era um pouco longe, mas a gente ia muito a pé. Ia pra casa da minha avó, que também era uma casa de vó, né? Uma casa que a minha avó morava e até a minha tia, hoje, mora lá ainda. Era uma casa, um quintalzão, que pegava de uma rua a outra, e tinha pé de maracujá, tinha pé de limão, tinha pé de laranja, de uma série de coisas.
E minha avó, diferente da minha outra avó, essa minha avó por parte da minha mãe tinha muito essa característica da avó, mesmo. Eu lembro dela batendo bolo, quando chegava à tarde. Eu lembro da gente ficar no caramanchão que tinha os pés de maracujá. Eu lembro da gente fazer… O meu avô fazia paçoca com pilão. Eu briguei muito com a minha tia, porque eu queria ficar com o pilão quando eles faleceram, porque o pilão existe. Pegava e fazia paçoca ali naquele pilão, fazia pastel... Tinha uma coisa muito, muito familiar.
[Tinha] festa, nessa época de final de ano, festa junina tinha aquelas coisas que o pessoal punha, essa madeira. Tinha um nome… Que punha o santo lá em cima, o Santo Antônio. Hoje é dia de São João, né? Eu lembro que nessa época, então, o meu avô era a festa total; a outra parte, do meu pai, eles eram evangélicos, da Assembleia de Deus, Congregação Cristã do Brasil. Mas da parte da minha avó não, então tinha essa coisa de pôr o mastro de São João, faziam fogueira.
Eu tive uma infância com muita lembrança boa desse contato com família, com primo, de festas e de uma série de coisas.
P/1 - Você disse, Eliane, que o seu pai veio de Minas com os irmãos. E a sua mãe? Ela é de São Paulo mesmo, ou ela veio de algum outro estado?
R - Minha mãe veio de São Paulo. O meu avô era de Bauru. Nasceu também na zona norte, ali na Casa Verde Alta, nessa casa ali. Cresceu lá, casou e saiu de lá. Você vai ver que eu vou falar muito… Eu tenho uma referência muito forte do meu pai. Engraçado. E não tinha tanto... Da minha mãe, eu tenho essa história da minha mãe me levar pra casa da minha avó, de ir a esses lugares com a minha mãe.
A minha mãe costurava. Eu lembro das roupas que ela fazia pra nós, que éramos gêmeas. Se era um vestido branco, um tinha fita azul, a outra tinha a fita rosa, mas tinha o mesmo vestido. (risos) Era muito legal também essa coisa da minha mãe costurar e fazer essas coisas, essas roupas pra nós.
P/1 - Você tinha algum sonho, quando você era criança, do tipo: “Quando eu crescer, eu vou ser tal coisa”?
R - Como toda criança, a gente passa pela fase da Medicina. Eu queria ser médica. Essa coisa da Medicina, engraçado, ficou um bom tempo na minha história, de querer ser médica. Mas como isso é tão distante, porque você vem de uma família muito simples, que quase ninguém tinha nível superior... O meu pai foi fazer Ciências Sociais muito adulto. A minha mãe também, foi fazer também o ginásio, o ensino médio, também muito adulta, então tinha um distanciamento dessa questão. Era muito sonho.
Mas tinha uma coisa que, pra nós, era fundamental: estudar. Pro meu pai isso não tinha, a gente tinha que estudar. Não tinha perdão, não tinha preguiça, não tinha nada. Isso era muito sério, até mesmo pro meu pai era muito sério. E pros meus tios, que não fizeram essa trajetória do meu pai, de fazer o Mobral, de fazer o ginásio, o ensino médio e depois fazer uma faculdade… Na família do meu tio, o estudo não era uma coisa... Pros meus primos, o estudo não era uma coisa muito forte; estudavam, paravam, repetiam, não iam mais à escola, mudavam pro noturno. E pra nós, não, isso não tinha. Não tinha essa possibilidade, ou parar de estudar pra trabalhar. Meu pai nem permitia.
Meu pai, dos irmãos, dos quatro irmãos, sempre foi o mais sonhador. Então, pra nós, as filhas… Mesmo a gente sendo mais pobre, éramos quase princesas. O meu pai tinha um cuidado com as filhas, com a educação.
Meu pai era muito ambicioso, então comprou a casa. Ele foi o único que saiu, que não ficou nessa casa da minha avó, no quintal do fundo da minha avó. Ele foi o único que foi e comprou a casa dele, ali; próximo, mas comprou ali a casa dele. A casa dele foi uma casa… Construiu um sobrado, e a gente era considerada meio metida. Fez um sobrado, construiu e foi trabalhando, enquanto os meus primos ali, não. Sempre morando muito mal, a casa quase sem condição nenhuma. Quase não tinha a escada pra você chegar na casa da minha avó, o banheiro ficava no quintal. O meu pai, não, [estava] sempre batalhando pra que a gente tivesse uma casa melhor, construiu um bom sobrado. Ele tinha esse olhar, de ter essa condição.
Era muito forte esse sonho do meu pai. É uma coisa que a gente sempre fala: acho que nós também passamos a ser mais sonhadoras, porque o meu pai era um homem sonhador, ele sempre quis mais. Ele sempre quis estar em alguns espaços, conquistando alguma coisa. E foi pra política, foi candidato a deputado estadual. Estava envolvido nesse movimento, no Movimento Negro. Estava envolvido com políticos. Então, o meu pai sempre... Compramos um fusquinha. Na época, ele era o único da família que tinha carro.
Meu pai, por ser o mais novo dos irmãos, chamavam de tio Nenê. Então: “O Tio Nenê é metido. O tio Nenê comprou carro.” E a gente tinha um fusca.
A gente sempre foi criada nesse lugar assim. Quando ele voltava do trabalho... Ele tinha um emprego fixo num serviço público - a Sabesp, na época, era um serviço público. Quando [ele] recebia, trazia… Eu tenho fascinação pelo [chocolate] Diamante Negro, porque eu lembro perfeitamente do dia do pagamento - à noite, o meu pai trazia um Diamante Negro. Hoje ele é até ruim, acho um chocolate horrível, mudou, mas eu adorava. Era uma coisa assim: trazia o Diamante Negro pra gente, pras filhas dele, que ele comia. Fazia questão da hora do jantar, não gostava que a gente ficasse na rua correndo. Meu pai já veio com uma outra concepção de família.
Meus tios, que moravam no quintal… Um dos irmãos dele teve um problema mental, o tio Sininho. O tio Sininho era da... Chamava Força, não era PM, era Força Policial; tinha um nome que eu não lembro mais. Meu tio teve um problema mental e ficou internado muitos anos no Juqueri.
Lembro perfeitamente do Juqueri. Lembro de ter ido, de ter tomado trem pra ir pra lá. É um espaço pra mim que… Quando eu vi, um dia, um documentário, me deixou muito chocada, porque eu lembro perfeitamente daquele espaço, do meu tio ter sido internado muito jovem. Ficou, morreu no sanatório. Quando as pessoas eram internadas.
Você vê como a história de sofrimento da população negra é difícil. A minha tia Lobinha também, casou com o meu tio João. O meu tio João bebia e ela começou a beber. Teve quatro filhos. A tia Lobinha também acabou tendo um problema mental por causa da bebida; não chegou a ser internada. Então nós éramos pra família, pra parte do meu pai, um lado mais... O que eles diziam era “metidos” mesmo.
Meu tio Geraldo trabalhava… Eu lembro que tinha que levar marmita pra ele não sei onde; eu ia com as minhas primas levar marmita também.
Não tive essa história da... Era pobre, mas não uma pobreza com um cenário tão desestruturante, tão forte como a gente tinha quando, às vezes, os meus primos tinham. Por isso que a gente estudou e fez faculdade e uma série de coisas.
P/1 - Eu queria que você falasse um pouco sobre essa questão do ativismo em relação ao racismo do seu pai, do ativismo negro. O quanto isso era comum no seu espaço, ou não? E como isso acontecia?
R - Como eu falei, o meu pai era uma pessoa que foi sempre sonhadora e foi sempre ambiciosa. Quando eu falo ambição, não é ambição... É de estar num lugar melhor. Nunca foi uma pessoa conformada de morar no Peruche. Tanto é que, quando eu estava na... Acho que eu tinha uns dez anos, quando o meu pai trabalhava na Sabesp, tinha uma possibilidade de a gente poder ocupar uma dessas casas que são da Sabesp e aí saímos do Peruche porque o meu pai também tinha muito preocupação da gente ser criada nesse ambiente. Ali, que tinha esse nome de maloquinha. As pessoas… Muita gente bebendo, envolvimento ali naquela região com droga. O meu pai achou melhor, naquele momento, alugar a casa dele, a nossa casa, e a gente foi morar lá na Casa Verde Alta, que era até mais perto da minha avó, numa área que era da Sabesp, que tinha essas moradias dentro dessas caixas d’água. Era caixa d’água e tinha uma moradia, que também era uma casa com um quintal enorme. Uma casa [em] que tive cachorro, tinha pé de milho, tinha uma série de coisas. Meu pai achou que lá a gente teria condições de sair um pouco desse espaço.
Nesse momento de ser um sonhador, ele também percebia que essa desigualdade, que tudo isso vinha muito da população negra. Onde estava essa população negra? Ali no Peruche, no carnaval, no samba, na bebida. O meu pai foi um dos diretores da Unidos do Peruche. Ele via que ali estava muito forte essa concentração negra, tinha muito negro nessa área e muito pouco dessa história desse negro que tinha estudado, tinha uma universidade, que tinha alguma coisa assim.
Naquela época, 1972, 1975, tinha muito, já estavam vindo… A USP estava recebendo alguns nigerianos pra estudar aqui. O Katinguelê, esse pessoal já estava vindo ali, como intercâmbio na USP, e o meu pai já estava envolvido nesse movimento político, movimento voltado mais pra área... [Partido] político, na época, só tinha Arena e MDB. E meu pai sempre achou isso: “Pra preto não importa direita ou esquerda. A gente continua sendo preto, mesmo. Pra mim não importa qual é o partido, a gente vai continuar sendo preto e vai continuar ficando fora desse cenário aí de discussão política e de representatividade”. E aí o meu pai começou... em 1972, pensando nisso e já com esse movimento.
Os irmãos Prudente - não sei se você conhece o Wilson Prudente, o Doutor Eunício Prudente… Era casada com um deles, dos irmãos Prudente, que moravam também no Peruche. E começaram, todo mundo, a se reunir: o meu pai, esse pessoal ali do Peruche… Muita gente desse movimento vinha ali dessa região do Peruche, estavam na USP. Aí começaram, o meu pai criou o grupo de trabalho de profissionais negros universitários, que era um primeiro momento de unir esses negros que tinham uma formação. Ele tinha como sócio um engenheiro que era negro. Ele juntou o engenheiro Sérgio, a doutora, a Creuzinha, que era contadora, e começou a chamar essas pessoas pra unir esses profissionais negros. A Doutora Iracema, que foi uma médica negra, era uma ginecologista negra que morava ali na Vila Prudente... Começou a se reunir com esses profissionais. Os irmãos Prudente, que já tinham uma formação - acho que um deles era geólogo, não lembro qual; eram da USP. E começou essa discussão, de unir essas pessoas e pensar muito nessa formação.
Naquela época, quando se falava da história do negro, se voltava, principalmente com essa vinda dos africanos lá pra USP… Trazia-se muito essa história de voltar mesmo pra raiz, de a gente aprender o iorubá. A gente começa a aprender um pouco, porque a USP tinha até um curso [para] aprender. Tinha o meu pai… Eu lembro que ele se reunia onde ele também tinha uma imobiliária, se reunia ali pra dar aula de iorubá, [para] a gente conhecer a cultura africana. A gente começou a se conectar muito com essa África, que era a nossa história, a ouvir a música. Os meus primos, a Nice e o marido dela, se aproximaram muito do meu pai nesse momento de Movimento Negro. Até hoje, eles se vestem mais tradicionalmente, com vestes mais africanas. Música, dança, dança afro… A gente começou a olhar muito essa história do povo negro, da nossa origem e de onde a gente veio. E esse ativismo do meu pai com essas pessoas foi fazendo, foi muito batalhando sobre isso.
O meu pai, naquela época, era da Arena, com o Doutor Adhemar de Barros. Eu lembro de uns nomes, tinha esse pessoal que eu acho que eram donos da Lacta também. Eu acho que também o chocolate também tinha muito a ver com isso - aliás, me deram uma bolsa pra estudar no Liceu Coração de Jesus. E meu pai começou a muito falar do papel do negro e onde estava o negro nesse espaço político. Meu pai era uma pessoa muito batalhadora, nesse sentido de cobrar mesmo essa posição de onde está o negro.
Tinha o Doutor Rui, também, que chegou a ser uma referência, naquela época. O Paulo Rui, que chegou até a ser presidente da Câmara Municipal. Quando o Paulo Rui assumiu a Câmara - o pessoal até chamava a Câmara Municipal, na época que ele estava lá, como senzala. Porque o meu pai tinha essa coisa: “Não. Vamos trazer”. Tinha _______ Camargo, que foi deputado estadual. Vamos trazer a população negra junto, na Câmara Municipal ter pessoas negras. Quando tinha um negro que começava a assumir alguns cargos, começava a trazer [outros negros].
Meu pai, depois de um tempo, quando teve a imobiliária dele, quem estava com ele eram sempre os sobrinhos, os primos. Ele trazia o negro junto com ele, porque ele tinha uma ideia dos nossos, de a gente trazer os nossos junto.
Quando eu ouço muitas pessoas falarem do Movimento Negro, acho que as pessoas acabam esquecendo dessa história do passado, que já tinha um grupo que tentava trazer essa população negra pra perto, com leitura de livros. Eu lembro que a gente ia no sábado e no domingo, tinha leitura e fazia peça, fazia não sei o que, tinha debates, porque isso era muito forte pra nós. Acho que eu tinha uns nove, dez anos; isso pra mim foi um tempo da minha infância, da minha vida, falando disso. E o meu pai nesse ativismo.
O meu pai era chamado, quando tinha algum caso de racismo grave. O meu pai também, como foi envolvido em política, foi do Conselho da Comunidade Negra do Governo do Estado de São Paulo, então, o meu pai era uma pessoa que era chamada quando tinha crimes. Teve o caso lá em Paulínia, um caso de morte também, de um negro. O meu pai estava lá; ia, falava, criticava e protestava. Ia pra delegacia tirar, porque sabia que era um caso de racismo. Então, isso fez parte da minha vida.
Eu lembro que quando... Agora, se fosse falar quem foi a pessoa, eu não saberia quem era. Na época da ditadura militar, que as pessoas eram perseguidas, lembro que o meu pai escondeu algumas pessoas, uns negros que estavam sendo perseguidos, na casa da minha avó, que morava lá no Peruche - no Peruche, não, lá na Casa Verde Alta. O meu pai tinha um dossiê enorme no DOPS [Departamento de Ordem Política e Social], porque era uma pessoa extremamente envolvida nessa questão.
Em 1978, eu tinha dezesseis anos. O GT-PUC foi criado em 1972, [quando] eu tinha dez. Em 1978, foi criado o Movimento Negro. Meu pai estava ali, foi quem presidiu essa cerimônia. Eu até publiquei na rede essa ata da cerimônia de fundação do Movimento Negro. Só que meu pai, na época, como já tinha essas pessoas que eram universitárias, que eram mais acadêmicas, meu pai nem se sentia, achava que ele não tinha que ser o presidente. Então, estava o Abdias [do Nascimento], tinha outras pessoas. O Abdias não estava na fundação, mas tinha outras pessoas que meu pai achava que tinham mais condição de estar falando, até mesmo por achar que, talvez, um acadêmico tivesse uma voz mais forte, nesse sentido.
Isso fez parte, muito, da minha história.
P/1 - Então, vamos entrar um pouco na sua história escolar. Você se lembra da primeira escola, do seu primeiro dia de aula, como você se sentiu?
R - Lembro. Eu morava no Peruche. Estudei no Capitão... Chamava Capitão… Ah, nem lembro, sei que o nome da escola era Capitão e todo mundo da família estudava lá, porque escola tem muito a ver com comunidade. A gente acaba não pensando nisso, mas você estudava naquela escola que era na comunidade que você morava. Estudei no Capitão, fiz ali o pré, ginásio, uma coisa assim.
Depois eu fui pra o Ari Barroso. Todo mundo estudava no Ari Barroso. Eu lembro até [que] tinha uma professora… Ela não chegou a ser minha professora; [me lembro] de ter uma professora, uma senhora negra, fortona, que era professora alfabetizadora na escola. Todo mundo queria ter aula com ela, porque ela era maravilhosa. Alfabetizava as crianças. Eu não tive aula com ela, mas eu lembro de vê-la, tenho a imagem dela perfeitamente na minha cabeça, porque essa professora era uma senhora negra, fortona, andando pela escola.
Lembro sim, na escola, da merenda escolar que a gente tomava, comia na escola. Lembro daqueles pratinhos azuis [em] que a gente comia a merenda, naquele talher de plástico, que a gente punha a boca, ficava aquela... Todo mundo mordia. Quando você punha a mão na colher, na colher ficava sempre uma coisa que outra criança mordia. Mas era muito bom estar na escola.
Eu tive esse momento de gostar de estar na escola. Principalmente pra mim, quando perguntam do racismo na escola, eu tinha uma coisa que era muito interessante. Eu sempre falo que a gente sentiu menos, porque eu tinha a minha irmã. Como nós éramos gêmeas e a gente estudou sempre na mesma sala, isso trazia, pra gente, uma cumplicidade. Se ninguém quisesse falar com a gente, se ninguém quisesse fazer trabalho com a gente, se ninguém quisesse brincar com a gente, estávamos entre nós, éramos nós duas. A gente tinha um mundo próprio: uma conversa, uma brincadeira nossa. Ia junto, voltava.
Acho que isso nos protegeu, porque a escola, na verdade… Eu lembro de cenas, depois que eu fui para o Ari Barroso, que a gente não tinha dinheiro; da professora - a gente tinha um livro só, que era pras duas - falar, quase humilhar, porque a gente só tinha um livro. Ou porque, às vezes, a professora...
Escola é um lugar assim, por isso tenho muita preocupação com a escola. Você tem que tomar muito cuidado, olhar a escola com muito cuidado, como ela reproduz algumas questões que são traumáticas. Tem gente que passa pela escola e passa de forma traumática.
Eu lembro… Isso eu não esqueço; pensei nessa escola, já lembrei. [Tinha] uma história de fazer… Na minha época tinha muito [a atividade de fazer] cesta de fruta ou caixa de bombom com palito de sorvete. Você ficava catando aqueles palitinhos de sorvete ou então você ia até uma fábrica de sorvete, era uma coisa que se fazia e comprava. Nunca dava pra comprar, porque tinha a minha irmã mais velha e tinha nós duas. Sempre [para] nós duas era: o que era pra uma, era pras duas. [Lembro] da gente não ter o dinheiro pra comprar o palito, ou não ter... E a professora, gente do céu! Você até chorava na escola, porque você não tinha isso. Pra nós, era muito marcante.
A escola tinha coisas muito boas. Comentei a coisa da minha irmã, tinha a coisa da brincadeira da escola. E também teve um momento na escola que a gente tinha que fazer almofada com ponto de tricô porque tinha aula de economia doméstica, arte doméstica, sei lá, arte alguma coisa. Você tinha que fazer aqueles pontos de crochê e depois amarrar na almofada, só que a escola nunca lembra que é pra pobre, né? Eu morando no Peruche, gente! Escola pra pobre, de pobre pra pobre. Por isso as pessoas abandonavam a escola; abandonavam de tanto [se] humilhar, porque quando você não tinha o material, a professora reclamava, você ficava com vergonha. E meu pai não deixava faltar, então iai com vergonha mesmo. Chorava, ficava até cair água do olho… A gente sentada, mijar na coisa, porque a professora de Geografia falou que eu não tinha o livro. E ficar lá em volta, aquele xixi escorrendo na carteira. Porque a escola é triste.
Eu acho que por isso que depois eu acabei indo pra educação, porque como a escola te humilha, às vezes, te deixa num ponto assim, de… Imagina uma criança mijar na carteira, no chão, porque não tem o livro e sabia que… Tinha até medo, porque a professora ia cobrar, ia xingar, ia falar alguma coisa. Você não tinha porque não tinha dinheiro. A mãe fala: “Vai pra escola, não vai ficar aqui.” E você fala: “Mas a professora mandou levar o livro. A professora mandou levar o palito. A professora mandou levar a lã pra fazer o trabalho.” E você tinha que ir de qualquer jeito, ia e chorava, mas você... Na minha casa isso não era permitido, não ir. Então, a gente ia e chorava, né? E se sentia... E ia firme, porque tinha que fazer o bolo, tinha que levar as coisas, ou tinha que... Isso, na escola, me marca muito: o fato de você não ter e a escola te cobrar, cobrar o passeio.
Eu lembro que, na época, tinha o Circo Orlando Orfei, que comprava, vendia não sei o quê. Tinha que pegar o dinheiro pra ir pro Circo Orlando Orfei, e ninguém pensava na criança que não tinha. Muitas vezes eu não tinha, a gente não tinha dinheiro pra ir pro Circo Orlando Orfei. E por isso o abandono, nessa época da escola. Era por isso, porque você não tinha. Você ia ficar lá com a professora te humilhando ou passando humilhação, porque você não ia no circo, porque você não tinha. E aí você tem um abandono da escola; em vez de te incluir, ela expulsava, excluía. Mas foi uma fase.
Eu sou muito falante; eu e a minha irmã falávamos com todo mundo, diferente da minha irmã mais velha. Você imagina: eu e a minha irmã gêmea, a gente era o espeto da coisa, né? Corria, pulava, sempre estava descabelada. Aquele cabelo que a criança ficava assim. A meia branca estava caída no chão, a saia tudo esculhambada, porque a gente era o... [A gente] ia toda arrumadinha, né? Às vezes, a minha mãe não estava, aí não tinha quem penteasse aquela trança, o cabelo; ia com aquele cabelo sempre espetado, mas ia. O chinelo... A meia caía, a meia branca - tinha que ir com a meia branca, tinha que ir com aquele sapato preto. A minha perna fina, era isso aqui [faz o sinal de muito fina com as mãos] e aquela meia não parava, a perna era... A meia escorria. Mas a gente estava lá. [Em] udo o que a escola inventava, lá estavam as duas.
Meu pai sempre falou: “Nossa. Essas meninas são terríveis”. Com tudo isso, tudo o que a escola inventasse, estávamos nós. Vai ter festa, a gente está querendo ajudar na festa, fazer. E a minha irmã mais velha era totalmente diferente de nós. Ela era muito... É uma coisa que só com o tempo a gente percebe, ela era excluída e a gente… A minha mãe não percebeu isso e o pai não percebeu isso. A gente era duas e ela era sempre sozinha, não tinha aquela coisa do incluir a mais velha, de chamar: “Vem, Tininha”. A gente a chama de Tininha. “Vamos, Tininha. Vamos brincar”. Não. Corria, não sei o que, corria, sempre as duas. Sempre as duas, por serem gêmeas, e a minha irmã mais velha sempre ficando mais solitária. Então, ela era muito rígida, muito séria. A roupa dela era sempre a mais arrumadinha. A parte do quarto dela era mais arrumadinha. Ela ia pra escola, impecavelmente. O caderno dela era impecável, tudo. A letra dela. E eu e a minha irmã era aquela zona, mas a gente também era inteligente.
Nunca nem reprovei de ano. A minha irmã, toda certinha, teve um ano que ela reprovou, na quarta série. Imagine pra ela, que era toda certinha, que tinha o melhor caderno, reprovar. E nós que, às vezes, não entregávamos trabalho, a letra era feia, não tinha dinheiro... Pra minha irmã nunca faltava; se tivesse que faltar pra alguém, faltar o dinheiro pro livro, faltava pra nós duas. Pra minha irmã nunca faltava, o meu pai sempre dava um jeito - talvez já percebendo que a gente ia se virar. A gente ia chorar, mas ia se virar. A gente tinha uma força que... E a minha irmã, não, pra ela nada podia faltar. Se a professora pedia o caderno, ela tinha que trazer; se pedia uma capa, o caderno todo encapadinho, tudo. E a gente esculhambadinha, (risos) toda daquele jeito, sempre correndo.
Ah, corria… Eu lembro muito disso. Quando eu falo sobre isso com o meu filho… Pra mim, infância era criança sempre correndo. E corre pra lá e sobe, sobe e desce escada. E vai pra lá, vai pra casa da prima, faz não sei o quê. Sempre nessa correria. E a minha irmã sempre mais certinha; os brinquedinhos, não deixava... Quando a gente pegava um brinquedo dela e quebrava uma boneca, porque a gente era da pá virada, escondia. Ela ficava… Nossa, virava no Jiraiya. A gente quebrava. Se o meu pai dava alguma coisa pra Tininha, ________ , mas se [fosse pra] nós duas, com certeza, logo, logo estava tudo daquele jeito - sem cabeça, sem nada, sem braço. O dela estava tudo arrumadinho, tudo organizadinho.
A gente dormia juntas; o lado da cama dela era todo arrumado. O nosso, tudo... A minha cama [eu] arrumava tudo bagunçado, porque a gente tinha muita energia. (risos) Tudo assim, muito corrido. Era assim que a gente...
A escola, pra mim, foi um momento muito bom. Tive bons amigos na escola. Os professores conheciam muito a gente porque a gente era gêmea e: “As gêmeas, as gêmeas.” Tinha essa vivência na escola, que era positiva, mas tinha alguns pontos que eram muito traumatizantes, que eram muito doloridos. Aí a gente tem que apagar isso na história, senão a gente vai sofrer muito, teria abandonado. Era muito dolorido, muito sofrido saber que o livro é pra uma só. Sempre foi pra uma só, não ia ter dois livros, porque com duas o gasto era maior. Mas a gente sobreviveu na escola.
A gente é que tinha mais amigos, os colegas iam lá em casa, mais os nossos amigos. A gente ainda conseguia fazer uma... Os professores gostavam, alguns professores gostavam muito da gente, então foi bom. Tirando esse lado, a escola, pra mim, foi muito boa. Festa junina, tudo o que eu gosto. Até hoje, na escola, eu adoro fazer festa junina pros alunos. (risos)
P/1 - Teve alguma matéria ou algum professor com o qual você se identificou mais?
R - Eu tinha um professor de História que eu gostava muito. E um professor de Português, o “seu” Antero, que é um excelente professor de Português. Eu tive bons professores na alfabetização, tive bons professores de Português. Tinha uma professora excelente de História, na escola pública.
Quando o meu pai foi melhorando [de vida], a gente sai da escola pública. A gente muda, vai pra Casa Verde Alta. Ali, na Casa Verde Alta, a gente faz o ginásio no Colombo, que é uma escola melhor, não era aquela escola do Peruche. Porque Peruche sempre, né? Até saiu matéria do Ari Barroso -, sempre o Ari Barroso. Peruche é Peruche, meio esculhambadinho, mas tudo bem, eu gosto disso; acho que você traz uma conexão com muito com o que é a população negra e onde está essa população negra, né?
A gente foi pro Colombo, uma escola um pouco melhor, com professores melhores. Peguei bons professores. Lembro que o professor de História era muito bom. Tinha uma boa… Um bom professor de Matemática. E, como eu falei, nós éramos boas alunas. Sem ter que fazer tudo, mas tirava a nota, passava de ano. Boa aluna.
Lembro [que] tenho um trauma da professora de Francês - era na época que fazia Francês. Era boa aluna de Francês, até, tinha boas notas. E ali, no final do ano, que professor… Eu sempre falo que precisa tomar cuidado, eles têm uma maldade quase, no coração. Estava pra passar de ano, já estava até esquecendo que estava no último bimestre, nem precisava de tanta nota. Aí você tira uma nota baixa, a professora te deixa de segunda época. Você tem nota boa quase o ano todo, aí na última prova você ficava de segunda época de Francês, porque tirou uma nota que... Você tirou nove, nove, nove e tirou dois no final, o que é isso, né? Não valeu nada; pronto, está de segunda época.
Eu lembro dessa segunda época de Francês, porque eu acho que foi a única matéria que eu fiquei de segunda época. Não era uma aluna nem de ficar de segunda época, nem de reprovar. Eu era uma boa aluna.
Meu pai melhorou um pouco a situação e conseguiu essa bolsa no Liceu Coração de Jesus. Nós fizemos o colegial numa escola particular. Aí já saímos ali daquela casa ali, na Casa Verde Alta, porque o meu pai também achava que a Casa Verde Alta, não sei o que… Não queria que a gente morasse lá. A gente veio morar próximo de onde eu moro aqui, em Santana. É Imirim, Vila Ester. Uma casa grande, gostosa. Meu pai comprou essa casa e nós viemos morar pra cá.
E no Liceu tinha até uma menina que morava perto de casa, também estudava no Liceu. Meu pai nos levava pra escola. Também estudou no Liceu, conseguiu bolsa no primeiro ano, porque no segundo não tinha, aí foi aquele aperreio pra pagar. (risos) Aquele aperreio que você nem imagina, nem imagina aquela coisa pra pagar a escola - estavam as três na escola. E aí, de novo: pra minha irmã ele garantiu, a mais velha, porque, talvez, meu pai tivesse a intuição de que ela não aguentaria uma situação dessa. Ele tinha uma coisa muito… Ele falava: “Essas duas vão se virar e vão fazer. Vão dar um jeito. Deixa o mais difícil com elas. Pode deixar sem uniforme, isso não tenho dinheiro pra comprar. Elas vão na escola, são caras de pau, elas vão lá e não vão sofrer…” Cara de pau, né? Porque eu lembro que não tinha dinheiro pra comprar a calça vinho lá no Liceu, mas a gente ia dar um jeito. A gente ia falar com o Padre Anderson, lá na escola. Ia fazer aquela cara e conseguiria, sem sofrimento.
A minha irmã era mais poupada. Você imagina a minha irmã parar ali - a escola também, eu falo que, olha... – na porta da escola, porque você não pagou a mensalidade? Não te deixavam entrar. Isso acontecia. E aconteceu várias vezes. E eu a minha a minha outra irmã… Já estava tudo bem, a gente entrava, porque a dela estava paga. E a Bete, lá vinham as duas; chama, aí sobe pra falar com o padre. O padre falava: “Não pagou”, mas falava: “Tá bom. Entra”. Sempre a gente dava um jeito. E a gente nunca ia voltar pra casa porque passou humilhação. A professora... Tudo bem, chorou porque não tinha, mas: “Vai firme, aguenta o choro e vai.” Isso te fortalece, te deixa um pouco mais forte, um pouco mais... Um pouco mais divina.
Tem esses momentos de escola particular. Na escola particular também conheci gente pra caramba, falava com todo mundo. E era do grupo da igreja católica, como chama? O grupo de jovens, lá. Minha irmã, não, minha irmã era mais séria. Eu cantava, dançava, fazia apresentação. Nossa!
Eu falo: eu aproveitei muito, com tudo isso que você pode falar, que não teve dinheiro pra uniforme, de não ter a coisa, mas eu aproveitava tudo, porque a gente estava em tudo. “Ah, vai ter uma peça de teatro, quem é que vai? Vocês querem ir?”, Lá estávamos nós lá na peça de teatro. “Ah, vai ter a dança não sei o quê”; lá estávamos nós. Não tinha muito essa noção, porque a gente tinha uma à outra, então de qualquer jeito a gente ia estar junto. A gente ia se fortalecer. Se ninguém falasse também com a gente, tanto faz, porque a gente se falava.
Até hoje em dia a gente se fala - o meu marido fica louco da vida - dez vezes ao dia. Meu filho, então, nem suporta: “Ai, não acredito que você está falando com a Bete.” Eu falo horas com a minha irmã, todos os dias, cinco, seis vezes por dia.
P/1- Falando na sua vida fora, digamos assim, da escola, nessa adolescência, você e a sua irmã gêmea acabavam se envolvendo em todas as atividades possíveis?
R - Todas.
P/1 - Isso era meio que a diversão de vocês, também, né?
R - [Em] todas as atividades possíveis. E tem uma história… Não era fácil. O meu pai sabia que a gente era terrível. A gente não era terrível no sentido de “nossa, você está bebendo”, nada disso. A gente era terrível quando queria fazer alguma coisa.
Eu lembro que a gente estava na escola e aí eu falei pro meu pai: “Vai ter ensaio de festa junina”. Nem sei se era tão tarde da noite; acho que era umas seis, sete horas da noite. “Vai ter ensaio da festa junina, ensaio de alguma coisa na escola. É pra ir pro ensaio”. O meu pai: “Ensaio, hoje? Agora à noite?” “É, vai ter ensaio.” “Imagina. Eu passei na escola, não tem ninguém.” “Mas é que tem ensaio. A gente quer ir no ensaio porque está todo mundo no ensaio.” Meu pai, aquela coisa: “Ah, se não tiver um ensaio, você nem imagina o que vai acontecer quando vocês chegarem em casa”. Aí fomos.
Fomos a pé, era pertinho de casa. Não é que a gente chega na escola e a escola [estava] toda fechada, não tinha ensaio nenhum? (riso) A escola fechada, escura, não tinha ensaio. O meu pai já tinha falado: “Olha, eu passei lá. Eu quero saber, se chegar lá…” Não tinha ensaio.
Ele falou um monte, brigou, mas também nada de... O meu pai era bravão, mas não era uma pessoa de bater. Ele tinha essa coisa, ele era bom. A minha mãe, não. A minha mãe já, se pega, aquela... Sabe aquela cena do chinelo? Se pega o chinelo: “Corre, porque se eu acerto em vocês, vocês vão ver.” A minha mãe se pegasse, puxava o cabelo, saía até água dos olhos. A minha mãe Tinha aquela coisa: “Quando o seu pai chegar, vou contar pro seu pai.” Já era mais... Se pegava, pegava no braço forte, te sacudia, de deixar até marca. O meu pai, não. O meu pai era bravão, falava um monte, falava grosso, mas não era um homem de bater, desse ponto, então era mais fácil falar com o meu pai. Tanto é que muitas coisas, eu falava mais com o meu pai do que com a minha mãe, porque o meu pai… A gente tinha uma boa relação por causa disso. Com o tempo, ficando mais velho, essa relação foi, até, aumentando bastante. Essa conversa com ele era bem legal.
P/1 - E essa bolsa que você teve no primeiro ano, no Liceu, foi já no ensino médio? Já no segundo grau?
R - Foi no ensino médio porque tinha a coisa que eu falei, da Medicina. Não falei que que a história da Medicina nunca sai da sua cabeça? Eu fui lá pro Liceu porque tinha um curso de Patologia Clínica, laboratório. Era Patologia Clínica que o curso chamava; [era] técnico do ensino médio. Minha irmã fez, a minha irmã mais velha, na área de marketing, uma área mais voltada à criação e marketing. E eu e a Bete fomos fazer Patologia Clínica, dessa fantasia toda de falar que vai fazer - ficou muito tempo essa história da Medicina, na cabeça – Medicina, usar branco.
Lá no curso de Patologia Clínica a gente usava branco, fazia testes com sangue e tal. Fiz o curso lá, fiquei… Nós fizemos o primeiro e o segundo ano lá. No terceiro, a minha irmã, como era mais velha, saiu antes, concluiu. E pra nós, a terceira série a gente não conseguia pagar porque já não estava de um jeito que nós nem terminamos o terceiro ano. Não tinha mais como também, toda hora… Tinha outro padre também, que era… Não lembro o nome dele. O padre Anderson era mais bonzinho. O outro padre era mais bravo, chamava: “Não vou deixar”. O padre Anderson, não.
Agora abriu de novo o Liceu Coração de Jesus. Tinha fechado, agora ele voltou, né?
A gente acabou não terminado lá o ensino médio. A gente foi fazer o ensino médio no Oswaldo Cruz Pais Leme. A gente foi fazer à noite, foi trabalhar. A minha irmã foi trabalhar no Banco Noroeste. Acho que era Banco Noroeste, um desses bancos aí. Na época, você passava na [Rua] XV de Novembro, entregava o currículo e a moça chamava pra você trabalhar. E eu fui trabalhar com o meu pai. O meu pai tinha, ainda, a fábrica. Não estava bem a fábrica, mas eu trabalhei com ele na fábrica de materiais de construção, no Jardim Peri.
O meu último ano do ensino médio foi feito dessa maneira, à noite e trabalhando, mas deixar de estudar jamais, isso era fora de cogitação. Apertado, não apertado, se vai fazer, como vai fazer... Era esse sonho: quando ele colocou a gente na escola particular, era no sentido de querer mesmo que a gente tivesse uma outra condição. Que a gente não tivesse esse cenário dos meus primos, filhos dos irmãos, que não tinham… Principalmente esse que continuou até hoje morando ali.
A minha prima fez Geografia, fez Pedagogia, estudou na [Universidade] São Marcos. Outra acabou não estudando. Mas não era... Essa que a minha tia ficou com problema mental, quase nenhum deles estudaram. O meu pai tinha muito medo de que a gente não estudasse. Já em comparação, da parte da minha mãe, eu já tinha primos que tinham estudado, que eram advogados. Eu tinha uma prima que fez Nutrição. O meu pai até achava essa parte da minha mãe um pouco mais metida, porque estudava. Esses meus primos já tinham outro estudo.
P/1 - Falando sobre esse primeiro emprego, você foi trabalhar com o seu pai. O que você fez quando você pensou: “Bom, agora eu tenho o meu dinheiro. Eu posso fazer alguma coisa que eu quiser”. Você lembra dessa sensação? Ou do que você comprou, que você não tinha essa liberdade de fazer antes?
R - Então, vou falar pra você o seguinte: a gente tinha que trabalhar, estudar, tinha que pagar a escola, o que a gente fez. Nós que pagamos a nossa escola, depois, no último ano do ensino médio. O meu pai, por ser uma pessoa muito sonhadora, uma pessoa que sempre quis estar fazendo, querendo ser candidato, essas coisas... Enquanto ele tentava ser candidato, a gente quase morria, porque uma candidatura, gente, é um... Você quer ver uma família ir à falência, é se candidatar politicamente. Não sei como é agora, mas antigamente, o meu pai se candidatou uma duas vezes. E se você quer ver uma pessoa, uma família ir à falência, é... Porque você deve pro mundo. Porque esses carros... O partido não [dá] nada, quando você não é um candidato expressivo.
Nunca tivemos um conforto financeiro. Meu pai era uma pessoa assim: tinha momentos com muito dinheiro, tinha momentos sem nenhum dinheiro. Então, o dinheiro que, às vezes, a gente ganhava, nunca foi um dinheiro de você falar: “Nossa, meu primeiro emprego. Vou comprar, vou fazer...” Até comprava - comprava roupa, algo que você queria, mas sempre ajudava a família. Um dinheiro que sempre ajudava, sempre precisou desse dinheiro pra ajudar a família. Vai pagar a conta de telefone, pagar a conta de luz, ajudar na compra do mês, ajudar na feira. Não era: “Ai, eu tenho o meu dinheiro”.
A minha irmã era diferente, não dava um real. (risos) Nada. Já trabalhava na Câmara, porque foi quando o Paulo Rui... Mas não dava, porque ela já achava que... Ela já tinha as coisas dela, tinha um carro, um monte de coisa. Mas nós não, sempre... A gente tinha essa coisa de perceber que a situação do meu pai não estava… Às vezes, nessa coisa de política, se endividava de um jeito... E aí a gente acabava ajudando a família, pagando conta, emprestando pro meu pai. Nunca foi uma situação muito confortável financeiramente.
O meu pai às vezes pegava algum dinheiro, comprava um carro zero. Depois de uns anos, vendia o carro zero, comprava um usado. Ganhava um dinheiro ali, comprava uma casa em Lindóia. Cadê a casa? Vendeu a casa em Lindóia e comprou um terreno em Amparo, aí não tem mais. Comprou um terreno lá no Jardim Peri pra fazer a casa; pronto, perde tudo. A vida toda foi nesses altos e baixos, de falar… Nossa, ter uma tranquilidade, né? Essa relação com dinheiro nunca foi saudável. Era pra gente ter, estar super bem, mas porque era sonho, né? “Ah, eu vou ser candidato” “Não, não vai”, vai ser candidato. Gastava tudo, vendia tudo pra ser candidato. “Ah, eu vou agora, com esse movimento...”, montar uma sala ou alugar um espaço pra que o grupo se pudesse reunir. Pronto. De onde vinha esse dinheiro? Do bolso. Não tinha essa coisa da ONG, que recebe dinheiro de outros apoiadores. É do seu salário, então você nunca estava numa situação extremamente confortável.
Só depois de um tempo já, bem adulta, que o dinheiro foi pra... Aí eu passei na faculdade. Fiz a PUC, aí o dinheiro [foi], sim, pra pagar a faculdade. Depois você consegue uma bolsa na PUC [e começa a] sair com os amigos, viajar, ou comprar uma roupa. Mas nunca tive uma relação confortável com o dinheiro, de falar: “Eu estou bem de vida. Nossa! Agora eu estou trabalhando!” Nessa fase minha, até vinte vinte e poucos anos, nunca foi uma situação confortável. Foi muito difícil, financeiramente, pra nós.
P/1 - Voltando a essa fase sua que você já estava trabalhando com o seu pai e também já estava terminando o ensino médio, você já pensou, direto, em fazer vestibular? Ou você teve alguma dúvida, aguardou um pouco mais?
R - Não, não tive, porque essa sequência, pra mim, era natural. Prestei vestibular e prestei pra Medicina. Não passei, né? Aquela coisa da Medicina, que ficou muito tempo marcada. Aí fui fazer cursinho.
Eu fiz o cursinho da Poli que, na época, era ali na [Avenida] Tiradentes. Ali era a Poli. Naquele prédio da Poli, eu fiz aquele cursinho, que foi uma época maravilhosa na minha vida. Tive professores excelentes. Tinha o professor Nicola, que é autor de livro. O professor de Matemática era muito bom. Ali tinha uma participação política também, uma discussão política forte também, naquela época. E aí que eu… Cai a ficha de que você não vai fazer Medicina porque você é pobre, você não vai estudar integral em lugar nenhum, né? (risos) Pra ser bem sincera, fazendo as pazes com a realidade. Minha irmã já estava trabalhando, eu também já estava trabalhando, então ninguém vai fazer Medicina.
E a gente tinha, eu, a minha irmã, no cursinho também, uma coisa, né? Eu era muito magra, muito alta. A minha irmã também, magra e alta. As pessoas: “Ah, vocês são bonitas, são altas.” A gente começou, muito pouco, [a] ter essa coisa de modelo, de fazer curso. Fizemos até curso no Senac, de modelo, pra poder desfilar, porque éramos magras, bonitas. Tinha poucos modelos negros.
Chegamos até a fazer uns desfiles, mas o meu pai também achava, sempre falava que isso era bobagem. E fazendo as pazes com a realidade, você tem que trabalhar e pagar a conta. Não adianta ficar pensando nisso e ter que pagar conta.
Nessa época, a minha irmã trabalhava no banco [por] meio período e eu fazia cursinho à noite. E eu também trabalhava meio período, lá com o meu pai. Tinha essa coisa de fazer à tarde o curso de modelo, de ficar um pouco cuidando disso.
Ali no cursinho que você pega, que você percebe o que você gosta; na verdade, te amplia um pouco o universo, porque você mora na periferia, numa família que não tinha tanto estudo. O meu pai fez faculdade, fez ali na Teresa Martin, fez Ciências Sociais, minha mãe também, então você não tinha um universo de falar: “Eu vou pra USP, eu vou pra Unicamp.” A minha irmã fez Ciências Contábeis na Oswaldo Cruz. O nosso universo era dentro daquela realidade que você vive.
No cursinho, eu percebi que eu gostava tanto de Química como gostava de Matemática, Física também. Eu gostava da área de Exatas. Gostava de História, Geografia, mas da área de Exatas, muito mais. Aí que eu prestei faculdade pra Matemática na PUC. Na hora de olhar o curso: “Olha, isso eu não quero fazer. Isso não quero fazer. Vou pra fazer Matemática.” E fiz Matemática.
A minha irmã foi fazer comigo, continuávamos muito próximas, ainda, muito juntas. A gente foi fazer Matemática, lá na PUC.
Foi maravilhoso estudar na PUC - essa tradição que todo mundo sabe da PUC ser uma instituição mais política, viver esse mundo. Eu vivi esse mundo universitário, na verdade. A Matemática na PUC não era ali na [Rua] Monte Alegre, era aqui na [Rua] Marquês de Paranaguá. Era um núcleo… Eram os mais nerds, não tinha aquele encantamento lá da PUC Monte Alegre, o pessoal da História, da Geografia. Mas a gente tinha, no nosso mundo também… Não que a gente fosse média, mas também tinha um grupo muito ativo. Até concorremos na eleição do centro acadêmico.
A PUC estava perto da Augusta. Tinha umas amigas que jogavam bilhar, iam jogar ali na Augusta. A gente era considerada - era um grupo das meninas que entrou nessa época - as meninas mais bonitas na Matemática. Na área de Exatas, tinha uma belezinha ali, as meninas mais bonitinhas, porque tem aquele monte de homem feio, mulher feia. Não que... Sempre tem essa tradição de que quem faz Exatas é feio, mulher é feia, o homem é feio. A gente tinha uma belezinha e as pessoas…
A gente tinha todo um estilo ali, na Matemática, já estava nessa coisa de moda. As meninas que andavam com a gente também tinham todo um estilo.
Aprendemos muito. Fizemos amizade e saíamos pra beber. Teve esse outro lado da vida universitária que a gente não tinha. Também nunca fui de sair pra beber. Nunca fui uma pessoa desse tipo, mas saía com todo mundo. Saía pra dançar, pra se divertir. Tinha uma outra relação com a universidade.
Aos sábados, ia jogar na quadra. Eu sempre fui péssima de jogar qualquer coisa: vôlei, bola, no centro acadêmico. Péssima, um horror. Mas o centro acadêmico tinha mesa de bilhar, então tinha essa vivência universitária que a [faculdade de] Matemática trazia. A gente ficava lá o dia inteiro, ia no sábado ter aula. Foi muito bom, foi um momento de contato com pessoas totalmente diferentes.
Saía um pouco, a gente já estava um pouco mais afastada. A minha irmã mais velha continuava muito com o meu pai nessa questão do Movimento Negro, com os meus primos, e eu já estava mais afastada, porque estava nesse mundo da universidade, ali na PUC, na Marquês. Talvez, se eu estivesse na Monte Alegre, seria diferente, mas na Marquês não, essa temática não era muito trazida, ninguém falava muito disso.
Continuava esse fervor da questão racial, de trabalhar com isso, mas eu estava muito mais afastada. Mas sempre fui envolvida politicamente, essa coisa de concorrer ao centro acadêmico.
Quando eu estava no Liceu de Jesus, foi na época que o PT surgiu. E eu lembro de ir ao Pacaembu. Eu lembro da gente fazer uma campanha pros metalúrgicos, de comida. A gente sempre teve um... Nunca fui uma pessoa totalmente apartada dessas questões sociais e políticas do país, sempre participei. Sempre tinha a minha estrelinha, andava com a estrelinha [do PT]. Conhecia...
O cursinho aumentou muito isso, porque era muito politizado, era o cursinho da Poli. Eu lembro de uma festa [em] que estava o Zé Dirceu. Tinha aqueles encontros, aquelas festas da esquerda. Podia estar mais longe do Movimento Negro, mas nunca fui uma pessoa que não tivesse um posicionamento. E sabia das desigualdades, sempre sabia qual lado da história queria estar, na verdade. Tem que saber [em] que lado da história você quer estar e que lado da história você quer contar.
A PUC foi isso, me trouxe... A partir do cursinho eu comecei a ter uma vida mais universitária, uma vida mais nesse sentido. O cursinho e a faculdade também aumentaram isso.
P/1 - Conte um momento marcante, um “causo”, algo que tenha acontecido na época da faculdade que marcou e você lembra até hoje.
R - Tem vários fatos aí na faculdade. Na faculdade tinha uma amiga minha, a Ester; ela tinha um fusca marrom. Lembro que a gente ia em altas festas, ia todo mundo enfiado naquele fusquinha marrom. Cabiam acho que quinze pessoas naquele fusca marrom, era um horror. E eu também, naquela época, aprendi a dirigir. Estava fazendo dezoito anos e aprendi a dirigir, aí comprei... [Foi] essa fase de juntar dinheiro, aí: “Vamos comprar um carro”, eu e a minha irmã. Fomos comprar um carro pra ir pra faculdade.
O meu pai falava: “Nunca se compra carro à noite. E nunca de última hora.” Aqui na zona norte, na Casa Verde, tinha uma loja de carro e eu tinha visto uma Brasília lá, pra comprar - um fusca, era um fusca branco. “Nossa!” Junta dinheiro, junta dinheiro.
Compramos o fusca branco, comecei a dirigir. O Fusca branco estava um horror.
É que Fusca funciona de qualquer jeito. Fusca é um carro que funciona sempre, nunca te deixa na mão. O carro não tinha nem assoalho, os assoalho do fundo do carro tinham uns buracões; se bobeasse você punha o pé fora, de tanto buraco.
Eu lembro uma vez que tinha uma festa pra ir. Meu pai: “Vai ter festa?” “Vai.” “Vai sair de carro?” “Vou de carro.” E essa amiga minha: “Vai de carro?” “Vou, já consigo dirigir.”
Essa amiga nossa morava [na] Rua Baré, nas Perdizes, Sumaré, perto da... Acho que era Baré. E pra você ir no Sumaré, sair da zona norte, você tinha que pegar aquela subidona ali pra entrar na [Rua] Heitor Penteado. Não é nem tanta subida, você não sabia dirigir. Gente do céu, como foi pra parar aquele carro! O carro cheio. O carro começava a voltar pra trás, eu não conseguia segurar o carro, o freio do carro... Nossa! Eu suava. Cheguei na festa até molhada, de tanto aperreio que passei. E também [passei] na faculdade.
O professor de Matemática, Peter Almay, [era] um professor conhecido pra caramba. Quem fez matemática conhece. Ele era professor de Cálculo I, II, III, IV, é super conhecido. Aliás, hoje, se eu pensar bem, eu sei muito pouco de cálculo I, II, III, IV, porque eu não fiz Licenciatura. Eu fiz a Matemática Pura, geometria analítica, Cálculo I, II, III, IV, toda aquela parte pesada da Matemática, teoria dos nós.
Tinha os congressos de matemática, a gente se inscrevia e ia. O professor Peter gostava que a gente fosse, se inscrevesse pra esses congressos de matemática. E a gente foi num congresso de matemática lá em Florianópolis. Fomos de ônibus: eu, a Ester, a minha irmã... Quem mais que foi nesse... A minha irmã não foi porque estava trabalhando no banco, não conseguiu ir. [Fomos] eu, a Ester, a Lilian.
Chegamos ali, no congresso de matemática… A gente acabou nem indo pra congresso nenhum. Fomos à universidade federal e ficamos: “Mas onde a gente vai ficar?” Não tinha nem onde ficar. “Onde vai ficar, nesse congresso?” Aí todo mundo falou assim: “Vamos almoçar nos restaurantes onde tem Arquitetura, onde tem Geologia, onde tem mais menino e mais menino bonito.”
As loucas foram lá almoçar naquela parte. Não fomos à [faculdade de] Matemática, fomos num restaurante que já sabia que tinha mais homens. Um deles é hoje bem conhecido aqui perto, que é o Tozzi. (risos) Ficou bem famosinho. As meninas que estão vindo de São Paulo pro congresso não tinham onde ficar, todas de mochila e mala. Aí um dos caras falou: “Vocês não querem ficar na nossa casa?” Aí a gente foi.
O meu pai quase morreu, quando a gente contou essa história. A gente foi ficar lá na casa deles, que a gente não conhecia, numa casa que… Aliás, foi muito bom, muito legal. A gente ficou voltando nessa casa, visitando esses caras um tempão, porque eles foram extremamente gentis.
A gente foi com medo, né? Hoje em dia, eu não sei se as pessoas são [gentis]. Os caras foram super gentis, emprestavam o carro, levavam a gente pra faculdade. Não assistimos um evento do congresso pra falar: “Olha, você assistiu a palestra do fulano de tal”. Só [ficamos] andando, conhecendo Santa Catarina; íamos pra praia não sei onde. Só passeio.
Na faculdade, a gente tinha muitas histórias interessantes de cola. Matemática é difícil, tem muitas pessoas que têm [dificuldade], né? Depois a gente pensa: “Que loucura!” E a gente colava demais. [Em] Cálculo I, II, você vai, mas quando chega no III e IV, gente, tem que saber muito.
A Lilian era uma japonesinha boazinha. Japonês todo mundo acha que é inteligente, aquele viés inconsciente, né? A gente vinha com a manga toda cheia de cola, senão a gente não ia sair do cálculo... III, IV, pra gente, a gente não sairia. Eu nem sei como passei no cálculo III e IV, acho que foi só na cola.
A gente chegava cedo na biblioteca, perdia mais tempo bolando onde a gente ia colocar tanta fórmula e tanta cola - cola na barra da calça, cola na blusa. A Lilian era superbonitinha, superboazinha, uma japonesinha super delicadinha; quando a gente via que o professor ia pegar um de nós colando, a Lilian vinha, assim: “Professor, vem aqui”. O professor vinha, porque a gente ia se arrumar ali. De tanto que a gente colava, trocava prova, trocava tudo.
O que a gente colou em algumas disciplinas que eram… Geometria Descritiva tinha que saber muito, então a gente colava muito. A gente tinha histórias de cola, de todo mundo fazer prova junto pra poder sair dessa faculdade de Matemática.
Na PUC, a gente tinha o pessoal da Matemática e tinha o pessoal da Física. Agora tem Engenharia nesse campus; na época não, eram só Matemática e Física. E tinha essa disputa: a Matemática tinha mais mulheres, a Física tinha mais homens. Tinha essa diferença dos dois cursos. A gente tinha disciplinas que a gente fazia junto até uma parte do curso - o primeiro ano, praticamente, era único e depois separava.
Era um campus, ali na Marquês, muito pequenininho, de Matemática e Física. A gente tomava conta daquele espaço, daquela biblioteca, daquela cantina. E colava, viu? Olha, muita gente terminou aquela faculdade de Matemática só na pura cola. Tinha coisa que só colando mesmo, pra você conseguir se livrar de alguns conteúdos que a gente tinha lá.
P/1 - E durante essa época da faculdade, você já pensava em ser professora?
R - Não, não pensava em ser professora. Eu pensava em trabalhar... Eu fui fazer Matemática Pura, tinha muita gente que ia pra tecnologia, pra IBM, essas empresas. A Cisco buscava muito os alunos, ali pra área de tecnologia. Só que nunca fui de uma família rica e meu pai tinha uma coisa muito forte, de falar assim: “Tem que fazer concurso público. Vai ficar fazendo estágio, procurando estágio nessas empresas? Não. Vai fazer concurso público.” Então, a minha aventura na Matemática… Eu não fui, não cheguei a fazer estágio em nenhuma empresa, nada disso, porque o meu pai ficava [falando] muito: “Não vai ficar inventando.”
A minha irmã, que fazia comigo, já estava no Banespa [Banco do Estado de São Paulo]. Era concursada do Banespa. E concurso é sempre uma coisa segura, que todo mundo falava. Fui fazer concurso pra Secretaria de Educação - de escriturária, eu não lembro o nome mais - na época. Fiz, logo depois, um concurso.
Eu trabalhava na escola de manhã, como escriturária. Era meio período: saía às quatro, saía cedo, e de lá eu ia pra faculdade. Chegava muito cedo na faculdade. Minha irmã era bancária, bancário sempre trabalhou meio período, e o pessoal da faculdade, todo mundo chegava cedo. Por isso a gente ficava muito tempo na faculdade, pelo horário que a gente trabalhava.
A minha ida pra licenciatura, pra Educação, pra dar aula, veio de estar dentro da escola. De estar ali como escriturária da escola, de trabalhar dentro da escola. A escola tem uma dinâmica, você conhece essa dinâmica.
Quando eu estava na faculdade, sempre teve [gente que perguntava]: “Você faz Matemática? Não quer dar aula particular pro meu filho?” Sempre alguém precisava. Cheguei até a dar aula particular, mas não era esse o foco.
Quando eu estava na Educação, que eu fui substituir um professor… O professor Cláudio saiu de licença e eu fui substituir... Na verdade, o diretor [disse]: “Você faz faculdade.” Foi logo no começo, o primeiro ou segundo ano de faculdade: “Você não quer substituir o professor, que vai sair de licença?” Aí eu falei: “Mas pode?” “Não. Você vai ter que pedir demissão do concurso público, do seu cargo público, pra assumir essas aulas e ficar como substituta.” E é isso, né?
O meu pai quase me matou, não queria. Acabei aceitando a substituição e fiquei como professora substituta. De lá pra cá, eu nunca mais saí da escola e da sala de aula.
Isso foi… Acho que foi [em] 1984. Como eu falei, morava ali na Casa Verde Alta, nessa caixa d’água e essa escola era pertinho. Cheguei a estudar lá, fiz uma parte do ginásio na escola. E foi lá que eu comecei a trabalhar e a dar aula. Gostei dali e fiquei.
Fui chamada pra uma escola particular, um curso supletivo particular, ali também na Casa Verde. Porque eu sou bairrista, viu? Eu não saio da Casa Verde, uma coisa! Por isso sair, estudar na Marquês, ir pro Liceu, me abriu uma coisa, que é essa coisa do bairrismo. Você fica bairrista: estuda na Casa Verde, mora na Casa Verde, trabalha na Casa Verde. Você acha que o mundo é esse universo mínimo, então ir pra PUC me abriu essa possibilidade, esse espaço. Quando você vai pra universidade, quando fui pro Liceu também, você tem a possibilidade de fazer amizades com pessoas que moram em diversos bairros de São Paulo e tem a possibilidade de conhecer outras pessoas, outros lugares. Isso te enriquece demais, você acaba aprendendo.
Até mesmo com o meu filho estava acontecendo a mesma coisa, porque eu nunca saí... Saí da Zona Norte [em] uma etapa da minha vida, quando morei em Higienópolis. O meu filho também, estudava aqui numa escola particular aqui da região, desde os três anos. Os amigos, tudo... Nossa, que bairrice!
Terminou o ginásio. Quando ele chegou no colégio, a gente falou assim: “Precisamos tirar o Daniel desse bairro, [ele está] achando que o mundo é a Zona Norte.” Aí ficou: pra onde vai? Vai pro Vera?
Foi pra Fecap, que é uma escola ali na Liberdade, que também possibilitou que ele abrisse esse horizonte, de conhecer pessoas de outros lugares, colegas que vinham de outros bairros - senão a gente fica com uma visão de mundo muito pequena, muito utópica. A gente precisa conhecer o mundo, saber que o mundo é maior. Quem mora desse lado da ponte precisa atravessar, e a gente acaba não atravessando. Isso eu falo muito pros meus alunos: “A gente precisa atravessar a ponte. A gente está do outro lado aqui da ponte e a gente não atravessa pra saber o que tem atrás da ponte. Tem coisa ali que a gente precisa conhecer, vivenciar, experimentar, que é diferente.”
P/1 - E chegando um pouquinho mais pra perto agora, pros dias atuais, como aconteceu de você ir dar aula na Etec Pirituba? E chegar também à direção da escola? Como isso aconteceu?
R - Então, aí... Fui pra Educação. Eu me formei, prestei um concurso público na Secretaria de Educação, de professor, que sempre foi difícil. Passei. Comecei a dar aula em Guarulhos, me efetivei em Guarulhos. Ali foi também uma experiência maravilhosa.
Eu gosto muito de falar que [foi] uma experiência muito boa ter ido pra Guarulhos, [ter] conhecido ali, pra minha experiência de dar aula. Como eu contei pra você, essa coisa de você não ter o livro, não ter o caderno, às vezes não ter o dinheiro, é ver também essa realidade, ali. E você falar assim: “Nossa!” Você, como professora… O aluno não pode chorar porque não tinha o livro. Eu sei porque eu chorei, cheguei a chorar porque o professor falava que você não trouxe o livro, porque você não tinha o dinheiro pra comprar o caderno. Isso te marca demais, então fui uma professora que sempre... Comprei o mimeógrafo, rodava as coisas, os exercícios, pra entregar pro aluno. E comprava do meu bolso, porque muitas vezes a gente sabe muito bem que não tem.
A gente é um país pobre e a escola pública tem esse aluno desse país pobre, é lá que está o aluno. A gente precisa, também, fazer com que esse aluno não se sinta… A sociedade já exclui, ainda a escola vai excluir esse aluno?
Fui pro Meirelles, também dei aula no Meirelles. Dei aula também no Guilherme de Almeida, ali no Jardim Peri - sempre muito em regiões periféricas.
Teve um momento que eu vi [que] o Centro Paula Souza estava fazendo um processo que chamava de assistente acadêmico. Ganhava muito mais que um professor. Era um cargo de confiança, uma coisa assim, dentro de uma escola técnica, aí eu me inscrevi. Um processo longo, de entrevista - nossa, super difícil - e fui pro Carlos de Campos.
O Carlos de Campos era uma escola da Secretaria de Educação, uma escola técnica, mas pertencia à Secretaria da Educação. E o Centro Paula Souza, que já tinha algumas escolas técnicas, como tinha a GV, a ETE São Paulo. Tinha já algumas, catorze escolas que já eram da Secretaria de Ciências e Tecnologia, que era o Centro Paula Souza; ele iria pegar todas as escolas que tinham cursos técnicos, e o Carlos de Campos tinha. Pra esse processo de começar a trazer essas escolas pro Centro Paula Souza eu passei e fui pra Carlos de Campos, pra que essa escola fosse encampada, pra que ela pertencesse ao Centro Paula Souza - encampadas mesmo, porque a gente era vista como o horror da escola, a gente era muito malvista. Eu era muito malvista.
A diretora que já era da escola continuou, mais eu e uma diretora administrativa que ia cuidar de professor, processo de mudança de contratação de professor; eu ia fazer todo esse processo de transição de currículo, pro currículo ser igual ao [do] Centro Paulo Souza, olhar, mexer nessa parte documental do aluno - matrícula, vestibulinho, porque o processo era de vestibulinho.
A gente era vista como invasora, ninguém gostava da gente, que queria destruir a escola, mas eu sou uma pessoa que sempre tive muito... Eu sou uma pessoa muito ligada à educação. Pra mim, é uma coisa muito cara, enquanto a minha experiência na escola do estado, a escola pública, né?
Comecei a também conhecer aquela escola. Foi a primeira escola feminina, fundada em 1911. Tinha uma história que era fora de série. O prédio era maravilhoso: aquele piso, aquela escada de mármore. Destruída, sem luz, meio abandonada, mas a história daquela escola, né? Tinha curso de Desenho de Comunicação. As pessoas que frequentaram aquela escola… Você tinha nomes importantíssimos na área de Design que tinham frequentado a escola. Foi a primeira escola que teve o curso de Economia Doméstica, que tinha cursos de bordados, de prendas domésticas. Ela tinha uma história maravilhosa.
Toda essa coisa do não gostar das pessoas, tudo isso foi… Aos poucos [foi] quebrando esse gelo. Eu fui também me envolvendo nessa história da escola, em conhecer a escola, tudo isso que ela tinha. Ser a primeira a escola feminina de São Paulo, né? Tinha a GV, que foi a primeira masculina. Ela tinha uma história maravilhosa.
Eu tinha uma coisa pelos móveis da escola. Gente! Cada... As carteiras, que depois sumiram todas… As maçanetas da escola! A maçaneta da porta. Eu lembro que - as pessoas acabam não tendo um apreço e não entendendo isso – quando a pessoa foi lá - sei lá, nem lembro quem foi - e assumiu [disse]: “Ah, não, essas maçanetas. Precisa trocar pra colocar maçanetas.” Colocaram essas maçanetas horrorosas que a gente tem e elas tinham maçanetas que eram históricas. A pessoa, lógico que levou aquilo sozinha. A porta da escola, gente! Os assoalhos da escola.
Com o tempo, eu também participei desse processo de colaborar com a construção do Centro de Memória da escola com a professora Sueli, com a professora Eliana. E [fomos] buscando esses documentos históricos porque nesses documentos tinha muita coisa. O Carlos de Campos foi uma escola que teve uma importância fundamental na época da guerra, porque falavam que tinha aquele porão e a esposa de governador que estudava lá, que as mulheres vendiam esses bordados pras famílias ricas. Ela tinha uma história. Os imigrantes italianos que vinham da região do Brás estudavam naquela escola.
Fiz um concurso também pra professor, de Matemática. Ali na escola, eu não era professora. Eu me tornei professora de Matemática com sede numa outra escola, na Zona Sul, mas poderia ampliar naquela escola, aí você vai ficando...
Fiquei vinte anos na escola. Imagina uma história. O meu filho cresceu lá. Meu filho aprendeu a andar de bike dentro da escola, porque eu levava nas férias, levava a bicicleta. Você tem filho; tem escola, criançada, [então] você leva a bicicleta e fala: “Filho, anda aí.”
Fui coordenadora naquela escola, de um curso de extensão, um curso de Turismo que abriu lá. Ajudei lá na Penha, que foi também... Todas... Acho assim: sou uma pessoa que todas as experiências que eu tive na vida, eu agradeço muito. Até as mais difíceis foram com muito aprendizado, com contato com pessoas muito maravilhosas, com pessoas que me ensinaram muito.
Tudo com essa dificuldade. Na escola também não tinha nada. Aí você vai, vai trabalhando, vai construindo, fazendo parceria pra escola poder crescer. Quando eu fui pra Penha assumir a coordenação, [era] um curso que também não tinha nada: “Vai lá. Você vai ser coordenadora num curso de extensão lá na Penha.” O que você recebe? Nada, não tem nada. A escola toda não tinha nada.
A diretora arrumou um cantinho, uma sala lá pra nós. A gente ficou lá na sala, a sala com o piso todo quebrado, todo desdentado. A Sandra também foi comigo e a gente comprou impressora com o próprio dinheiro. Compra papel, compra papel higiênico, limpa a sala. Cuida do espaço. Pinta a sala. Arruma a cortina, arruma não sei o quê. Coloca cesto de banheiro que não tinha, coloca papel higiênico. Cuida daquele espaço, daquela escola, pra que ela se torne um... Porque eu acho que a escola precisa se tornar um lugar bom pra todo mundo. Eu não acredito em escola quebrada, destruída, sem papel higiênico. Eu não acredito nisso. Uma escola tem que ser boa, um espaço bom, bem cuidado, por ser público. A gente tem essa responsabilidade com o público.
Fiz um concurso, um processo de qualificação pra diretor, aí me chamaram pra assumir uma direção, lá numa escola que era perto da [Rodovia dos] Trabalhadores. Fui até visitar. Eu falei: “Ai, gente. É muito longe. Trabalhadores, nem pensar.”
Nunca tinha pensado em ser diretora. Fui fazer pós-graduação, estudar, pensando em me preparar um pouco pra ser diretora. Aí a Sueli: “Tem uma escola lá perto da Rodovia dos Trabalhadores, uma escola nova. Você não tem interesse?”
Fui lá. [Era] longe. Eu moro na zona norte. Falei: “Não. Não dá, pegar a marginal todo dia.” Já bastava o Brás, que já era uma aventura - eu nem contei que trabalhar no Brás, na Etec Carlos de Campos, esquina com a [Rua] Oriente, é uma aventura. Feirinha da madrugada... Quando chovia, enchia, gente; aqueles sacos de roupa espalhados, você não conseguia [andar]. Eu tinha até uma galocha que deixava dentro da minha sala porque, se chovia, cada rato deste tamanho andava pelo pátio, por causa da sujeira da região. A escola era até bem cuidada, mas a região é muito suja; as pessoas que dormem na rua… Trabalhar no Brás… É uma escola do meu coração, a Etec Carlos de Campos, mas não é pros fracos, não. É pros fortes. Uma escola grande, com 1800, aquele mundo todo, mas uma escola que foi muito importante pra mim.
Eles me chamaram, depois, pra ir pra Pirituba. Quando eu fui pra Pirituba, já estava desse lado da ponte, não tinha que atravessar porque Pirituba está aqui. Estou na zona norte, conheço a Etec Pirituba. Uma Etec nova, tinha dois, três anos, quando eu fui. O diretor ficou pouco, não queria mais, aí fui lá.
Adorei a escola. [Era] uma escola totalmente diferente do Carlos de Campos. O Carlos de Campos é uma escola muito voltada pra arte, pra criatividade, porque tinha Desenho de Comunicação, tinha Design de Interiores, então [tinha] muita gente da área de arte. Eu fui pra uma escola que tinha Eletroeletrônica, Segurança do Trabalho, Contabilidade. Um monte de professor homem, o corpo docente masculino, muito homem na escola. E aí vou eu, que não era daquela região.
[Era] uma escola masculina no seu todo - preconceituosa, machista, homofóbica, tudo o que tem de... Mas tudo bem, né? A gente vai com muita dificuldade, as pessoas te vendo sempre como uma intrusa naquele espaço. Quem é essa mulher que está aí, que está pensando não sei o quê?
Quando entrei estava abrindo outro curso, um curso de eventos. A escola muda um pouco essa característica, porque o curso de Eletroeletrônica era 95% de homens. Segurança tinha um pouco mais de mulher, mas era uma escola com uma estrutura muito masculina. Laboratório, engenheiro: “Porque eu sou técnico, eu sou técnico em eletrônica. Porque eu formo pra fábrica.” Essas conversas… A gente sabe que não forma o aluno pra fábrica, a gente forma pra ele que seja cidadão e que contribua na empresa que ele for, no lugar que ele for. E aí a escola começa a perder essa característica tão masculina.
Eu que estava com uma equipe [de] dois... Levo pra uma escola com toda essa característica a minha equipe de confiança, dois homossexuais. (risos) Eram dois homens homossexuais [e] uma assistente que é amiga minha, mais velha, também toda louca, aí começo a mudar toda aquela estrutura que era certinha. Eu vim pra fazer uma revolução naquele espaço e pra falar que a gente precisava, com a ajuda de todo mundo, colocar aquela escola num outro patamar.
A escola já era muito bem cuidada. Eu só mantive a escola mais bem cuidada, trazendo novos cursos, equipamentos, doações, parcerias, conectando muito a escola com aquela comunidade, conectando aqueles jovens ali. Desde o começo, você percebia que eram meninos e meninas que tinham muito protagonismo. Fiz reunião com os professores... Eram jovens que tinham muito protagonismo e a gente precisava fazer com que esse protagonismo viesse à tona, que eles começassem a olhar mais pra sociedade como um todo.
Começo a pensar em projetos de empoderamento feminino, porque o grupo era muito masculino, tinha poucas meninas, então eram muito desrespeitadas dentro daquele espaço. Entramos com um projeto, que é o Plano de Menina, com a Viviane Duarte, pra que as meninas entendessem o seu lugar e tivessem o seu espaço de fala. A gente também começa a trabalhar mais meninas, nesses cursos que são mais técnicos; começa a ter uma entrada de mais meninas. E a escola começa a trazer um gás e outro discurso, outra conexão com a sociedade.
Os professores, a gente nunca consegue cem por cento, mas a gente tem um corpo [docente] que entendeu qual o papel da escola e que a gente precisava tirar aquela escola daquela coisa tão tecnicista: “A escola tem que ser assim, porque...”. Não, não é isso. A escola tem um papel social extremamente importante e a gente precisa avançar nesse papel social. Esses jovens precisam entender qual é a responsabilidade. Eu sempre falo muito isso: quando você está numa escola pública, a gente tem uma responsabilidade. Escolher a escola pública é uma responsabilidade. Quando um pai coloca um filho na escola pública, é uma escolha política. Que nem eu falo, estudei até uma parte da minha vida em escola pública. É uma escolha política, hoje, estar numa escola pública. É acreditar na escola pública, porque todo mundo vai pôr o filho na escola particular, nem que seja até com qualidade pior, pagando um valorzinho. Escolas particulares boas, são dois e meio, três mil reais, aí você paga seiscentos reais numa escola particular, que não deixa de ser uma escola pública, mas você valoriza porque está pagando. A escola pública você também paga.
A gente, com a equipe, com os professores - alguns entenderam e se envolveram - coloca a escola em outro patamar, com projetos que acabam trazendo a escola pra um destaque ali naquela região, naquela comunidade - até fora da comunidade, trazendo a possibilidade dos alunos atravessarem essa ponte.
Eu falei muito do ‘vamos atravessar a ponte, sair daqui de Pirituba e ver o que tem lá do outro lado da ponte´. A escola tem que construir pontes. A ponte não pode ser um espaço que distancie você do outro, tem que ser um espaço que nos aproxima. Então vamos sair, atravessar essa ponte e nos aproximar do que tem do outro lado. Vamos fazer parte do que tem do outro lado. Os alunos começam se envolvendo em projetos, olimpíadas. Vão pra Índia, pra Colômbia; vamos pra Yale, vamos representar o Brasil em Brasília, na ______ de Geografia, vão pra Minas Gerais. Vamos contribuir pra que esse jovem possa ser um cidadão do mundo e que depois ele possa voltar pra aquela escola, pra aquela região e devolver pra aquela região tudo aquilo que a região e que aquela escola deu pra eles.
Eu demorei muito tempo, vinte anos. Eu poderia ter assumido a direção, mas só aceitei quando percebi que realmente poderia contribuir, que realmente eu poderia fazer a diferença no espaço que eu estou. Ir por ir ou porque é um cargo ou seja lá o que for, pra mim não resolve. Acho que a gente [tem que pensar no] o que a gente pode também devolver, né? Porque eu também sou de uma família pobre, que também não tinha dinheiro, que passou dificuldade, uma mulher negra. E saber que você inspira...
Eu lembro que quando fiz a primeira reunião… Eu sempre gosto muito de chamar todo mundo pra falar. Chamo o pai, aluno e não estou nem aí. Vai. “Mas não estava acostumado.” “Vai, sim. Vai em reunião de pai. Tem reunião de pai, pra falar.” Fiz uma reunião de alguns alunos, num espaço aberto que a escola não tinha, lá no pátio, com microfone e tudo. Acabou a reunião de recepção dos alunos, um menino falou assim: “Eliane, eu vou falar pra você: é a primeira vez que eu me lembro que eu tenho uma diretora negra. Eu nunca vi uma diretora negra na minha vida. Você não sabe pra mim o que [isso] significa”.
Então hoje em dia eu tenho muita certeza que quando eu estou lá na escola e estou falando e vem uma mãe ou vem um pai, o que eu represento, muitas vezes, pra aquela menina negra que eu fui - essa negra na escola que muitas vezes é invisibilizada. Eu não era porque eu tinha a minha irmã, mas muitas vezes é invisibilizada - não ganhou o Miss Caipirinha, não foi a rainha da festa junina, ninguém queria namorar com você.
Eu falo: fui começar a namorar com 26, 27 anos, porque você fica totalmente invisível dentro da escola. Ninguém te vê como uma menina bonita, como uma mulher interessante. Riem do seu cabelo, de você. Riem da sua cor. Ninguém te vê. Então, quando eu vejo o olhar que as meninas e os meninos negros… Eu estou lá falando [e] sinto como isso os fortalece, como isso faz com que eles percebam que eles podem.
Eu lembro que eles fizeram, acho que no segundo ano que eu estava lá, na Semana da Consciência Negra, um desfile. Eu não sou muito de fazer evento na Consciência Negra, acho que não é isso, mas eles fizeram um desfile, cantaram e apresentaram música. E eles - dá até arrepio, de pensar! - usaram vestimenta africana. Os meninos negros, que você nem via falar na escola, pintaram o corpo, fizeram todo o corpo pintado, com artes africanas. E eles estavam tão fortes, tão fortalecidos, tão representados! Você via tanto orgulho de ser ali o que eles eram, da raça, da cultura. Nossa, pra mim, aquilo foi revelador.
Como é importante a gente estar nesse espaço e poder fazer com que essas pessoas saiam mesmo, muitas vezes, desse esconderijo, desse lugar. E eles são, as meninas e os meninos negros lá na escola, super empoderados. As meninas também, os não negros também.
A minha sala, como diretora, é aberta. Sempre foi aberta. Eles entram na minha sala e falam comigo a hora que eles quiserem. Até a minha assistente fala: “Vocês querem falar com quem? Com a professora Eliane?” Porque eles: “A Eliane está aí?” Aí a assistente: “A professora Eliane”, porque é professora Eliane, é a diretora da escola. Mas eles falam: “Eu queria falar com a Eliane. Eliane, queria...” Porque a gente precisa construir um afeto respeitoso e construir essa autonomia; que eles possam chegar pra mim e falar: “Eliane, eu tenho um projeto aqui pra apresentar pra você.” Isso é muito forte pra mim, foi muito verdadeiro pra mim estar nesse processo todo com eles. Foi muito importante.
Hoje eu sei da minha responsabilidade como diretora, como mulher, como uma mulher negra, como educadora. Eu fico muito feliz quando tenho alunos que falam, hoje, que querem ser diretores de escola, e isso vem porque a gente quer ser aquilo que a gente tem de exemplo, que a gente vê que é positivo. E a gente sabe que a questão racial é uma coisa que marca muito o país.
Às vezes eu lembro que na minha época o negro tinha até vergonha de conversar com outro negro, pra não achar que é parente. Hoje, não. Eles se falam, eles se unem, eles têm projeto, estão lá; eles falam. E se veem uma cena de discriminação, de preconceito, eles põem a boca no mundo mesmo. Se a professora falou, se o colega falou do cabelo, se o outro falou da menina, falou por causa da orientação sexual do outro...
A gente fez recentemente um fórum de diversidade, porque houve uma fala extremamente intolerante de um professor e os alunos ficaram indignados: “Eliane, o professor falou dos macumbeiros. O que é isso? Desrespeitou, porque a minha mãe também é de uma religião de matriz africana.” Aí você tem que ir lá e falar: “Gente, a gente vai ter que aprender. Tem toda uma coisa legal em relação a isso, mas o que a gente vai aprender com tudo isso?” Então vamos fazer um fórum de diversidade, vamos falar das religiões. Vamos trazer um babalorixá pra falar, trazer um budista pra falar, e vamos fazer também um painel LGBTQIA+. Vamos trazer um homem trans, uma mulher que seja bissexual e falar sobre isso. Vamos chamar pai e mãe, pra fazer parte do painel - porque nós trouxemos pai e mãe pra fazer parte do painel. E vamos, todo mundo junto, conversar sobre isso que nos causou um problema. A gente pode pegar o nosso problema e esconder debaixo do tapete e a gente pode transformar isso em alguma coisa que seja positiva, que seja um aprendizado pra todo mundo. É isso que me fez estar na escola.
P/1 - E em relação ao Uzoma, eu queria que você falasse um pouco. De onde saiu a ideia? Como funciona?
R - A minha irmã é minha sócia, porque a gente nunca… Eu nunca saí muito da minha história de luta pelo Movimento Negro. E eu sou do grupo Mulheres do Brasil há cinco, seis anos.
Quando eu entrei no grupo Mulheres do Brasil, a minha irmã assumiu a liderança do comitê de igualdade racial, porque no grupo Mulheres do Brasil não tinha o comitê de igualdade racial e a Luiza Helena Trajano entendia que era uma pauta importante pro grupo. Dentro do comitê de igualdade racial, a gente começou a fazer uma série de projetos com essa causa, e aí teve um momento também de saber que, pra mim, diversidade é propósito. Teve um momento que a gente percebeu que, com tudo o que vinha acontecendo e ainda [com] o Brasil patinando muito, a gente [tem que] acreditar que tem que ser propósito. As empresas falarem desse movimento antirracista não é só ficar bonito na fita, tem que ser verdadeiro. Pensando nisso, o ano passado a gente começou a [se] estruturar, mas já tinha uns convites pra dar palestra: “Você não quer dar palestra? Não quer falar?” A gente ia, falava: “Vamos estruturar isso da forma que a gente acredita.”
Nós pensamos num processo que é da forma que a gente acredita, no propósito que a gente tem pela diversidade. Diversidade, às vezes, não é só o dinheiro, mas precisa acreditar. Acho que o Silvio Almeida fala uma coisa muito verdadeira: a gente só vai ter uma democracia verdadeira nesse país quando um país que tem cinquenta e quatro por cento da população negra for, realmente, diverso em todos os seus lugares. A gente precisa ter, né? Ter ainda hoje um aluno falando que é a primeira vez que viu uma diretora negra, num país que tem cinquenta e quatro por cento de negros… Tem alguma coisa errada nesse país. A gente ainda tem que avançar e avançar muito pra alcançar as mudanças que a gente precisa.
A gente foi pensar no nome. Olhando, pesquisando, uzoma significa “seguir o bom caminho”. Eu gosto das palavras africanas, o ubuntu. [Para] o africano, a palavra tem força; ela tem uma frase toda, ela é uma história. Não é só [como]pra nós: “cadeira”. Ela traz toda a tradição de um povo com uma história muito forte, de muita luta. Quando eu vi: “Nossa, uzoma; siga o bom caminho”... Siga o bom caminho da diversidade. Por isso que a gente escolheu [esse nome].
A gente é uma consultoria étnico-racial que colabora e contribui pras empresas que querem seguir o bom caminho, o caminho que seja verdadeiro. O bom caminho que seja de coração, que seja propósito. O bom caminho do aprender. Então, a gente contribui com as empresas que queiram seguir essa trilha, que queiram ser mais diversas, que queiram construir dentro da organização um espaço de diálogo, um espaço que seja diverso. Um espaço que não é só pra estar na mídia, “eu sou uma empresa diversa”, mas que ali mesmo seja... Que tenha verdade. E a gente contribui com isso. A Uzoma veio pra isso.
P/1 - Esse trabalho da Uzoma com as empresas, além das contratações, a parceria que vocês têm com essas empresas, também estão ligadas… Pela sua fala eu entendo que com a questão de não só contratar, mas de entender, de incluir também.
R - Uhum.
P/1 - Quais são as ações que vocês fazem nessas parcerias com as empresas?
R - A gente colabora na construção dessa trilha de diversidade. Quando uma empresa fala: “Eu quero ser diversa. A minha empresa vai ser diversa. Eu sou uma empresa antirracista”, é uma fala, é entender que a gente vai estar o tempo todo errando, o tempo todo desconstruindo uma série de coisas que a gente tem. Não é só contratar, realmente. É contratar, fazer com que aquela pessoa pertença, se sinta pertencente naquele espaço. É fazer com que aquele profissional cresça também naquele espaço. É olhar a sua cadeia de fornecedores e falar: “Nossa, na minha cadeia de fornecedores todos são brancos. Eu não quero mais isso. Eu quero que a comunidade negra, que essa diversidade, que esse poder econômico também chegue pra essa população negra, que ficou tanto tempo fora dos espaços. Eu quero construir esse processo. Eu quero rever os meus códigos de conduta. Eu quero rever os meus conselhos, a minha diretoria.”
Não adianta, a gente tem empresas que toda a diretoria é branca. Mas como eu faço pra que esse profissional que entrou lá, no começo... Não adianta eu colocar um negro. “A única CEO. A única. Foi a primeira mulher negra que está no Conselho.” É a única. Única vai ser única sempre, isso não quer dizer nada. Mas como a gente amplia pra que isso seja mais significativo? Como a gente estabelece metas pra que isso seja significativo? E como você começa a olhar em torno de você? Como são as suas relações pessoais? Quantos amigos negros você tem?
Na escola do meu filho... Você fala tanto em diversidade… Você vai no restaurante, não tem negro; você vai ao seu clube, não tem. Quando a gente começa a falar em ser antirracista, também significa eu quebrar uma série de privilégios que eu tenho, pra que eu seja antirracista. Eu vou ter que admitir que talvez, naquele clube que eu frequento, tem que ter negro. E também, se não tiver, [que] talvez não seja o melhor lugar pra eu estar com a minha família, com os meus filhos, porque eu quero que o meu filho esteja num ambiente diverso. Eu quero que ele participe dessa cultura, desse mundo que é mais diverso, e talvez não seja ali. Talvez aquela escola que não esteja dentro daquele programa, que não entenda a importância da diversidade, uma escola que só tem... Que parece que está na Dinamarca, só loiro, talvez não seja a escola ideal pras coisas que eu acredito.
Eu vivo falando, eu falo assim: “É um caminho sem volta. Você quer entrar nesse caminho sem volta? Porque você vai começar a questionar tudo”. Porque não dá.
Hoje eu vi um painel. Não dá pra você ver um painel com quinze homens brancos e eu, que digo que sou uma empresa diversa, patrocinar o painel. Você vai ter que chegar lá pra pessoa e falar o seguinte: “Olha, você está pedindo que eu patrocine o seu evento. Que maravilha! Eu não vou patrocinar. Por que eu não vou patrocinar? Porque esse evento não é diverso.” Você vai ter que ser a pessoa que fala: “Olha, tal evento, se não tiver diversidade, eu não apoio. Vocês não vão ter o selo da minha empresa, o meu nome, em determinados eventos que não são diversos. Eu não compactuo mais com questões que não tenham o respeito à diversidade. Não ponho o meu dinheiro lá.” E você, como empresário, tem que entender: o dinheiro é o que dá o tom da conversa. Não é o dinheiro? Se você não vai pôr o dinheiro, eu não vou ter mais um painel com quinze homens brancos e o meu selinho ali. Então: “Ih, agora eu vou ter que mudar.”
Eu não posso ter uma associação sei lá do que e nessa associação toda a diretoria ser branca. “Ah, querido, a gente vai ter que mudar isso.” Como a gente muda? “Ah, eu não vou mais fazer, comprar em tal lugar que não tem uma política de diversidade. Tal empresa, aquele fornecedor meu, não vai ser mais fornecedor meu porque ele não tem, não está nem caminhando… Não tem nenhuma política que seja de diversidade, então eu não posso estar com ele.” Muda tudo. Muda valores. Não é só: “Agora eu sou diverso. Estou postando, comprei o livro da Djamila [Ribeiro], Como ser antirracista”. Não é só ler o livro da Djamila e você vai se tornar antirracista. São posturas que você vai precisar construir na sua vida, pra que você realmente se torne antirracista. Você vai ter que se incomodar. Não sou eu que tenho que escrever lá no Linkedin: "Olha, tem alguma coisa errada nesse evento, né? Cadê os sete erros aqui? Descubra o erro do evento.” “Ah, não tem negro.” Não sou eu, como mulher negra, que sofro o racismo que tenho… Você que é o branco, que tem que falar: “Pô, tem alguma coisa errada nesse evento aqui. Eu vou tirar o meu patrocínio. Eu peço que tire o meu logo, não compactuo com isso. Não apoio.” Tudo isso muda. Então, é isso. É demorado, é doloroso, é difícil, mas precisa ser feito e é o que tem que fazer.
P/1 - Eu queria perguntar pra você a respeito do prêmio de educadora do ano, do Mulheres que Transformam. Como isso aconteceu? Como você se sentiu?
R - Eu nem esperava; me ligaram e falaram: “Olha, você está sendo indicada pro prêmio.” Sempre um júri, uma comissão que indica. “Você está sendo indicada pro prêmio Educadora do Ano da XP, referente a 2020”.
2020, que pra quem é da Educação, foi o mais caótico; [foi] um ano que a gente se redescobriu, se reinventou, porque saímos do ensino presencial pra ir pro remoto sem estrutura nenhuma. Na escola pública também, [há] alunos que não têm condição de acesso [à internet].
Acho que, pra mim, o prêmio escolher uma educadora de escola pública é reconhecer todo o trabalho que nós tivemos em 2020. Além da questão de não ter equipamento, não ter conexão, a gente teve toda uma questão emocional pra trabalhar. Eu praticamente trabalhei 2020 todinho trabalhando a questão da saúde emocional e mental, tanto de professores como de alunos. E fazendo parceria com psicólogos, trazendo gente pra conversar. Foi o ano todo cuidando desse profissional, que teve... Não só o professor, outros também tiveram, mas a escola, que é um lugar que está muito relacionado ao afeto, foi totalmente desmontada. [É] diferente de [se] conectar na telinha e ter... Porque escola é isso: é pegar, é abraçar, é falar bom dia. Falar bom dia pro porteiro, pra moça da cantina, a tia da limpeza. Ela é essa relação afetiva. Além do aprendizado, dessa convivência, tem um afeto muito grande.
Pra mim, receber em 2020 a indicação, num ano que foi desafiador, e ganhar o prêmio… Não teve como, eu não imaginava que isso fosse acontecer. Quando eu recebi, eu falei: “Esse prêmio é para todos os professores.” Aquele professor que teve que levar... Os diretores também, que tiveram que manter também toda essa equipe coesa - e essa equipe perdeu muita gente. Na nossa escola a gente não perdeu, mas a gente sabe de escola que perdeu quatro, cinco professores. Tive muitos alunos que perderam pai, mãe, avós, então a gente teve que segurar uma estrutura muito difícil em 2020 e ainda falar sempre pra esses jovens que não perdessem a esperança, [que] não abandonassem a educação, porque a educação é o único lugar… A única possibilidade de transformação se dá através da educação. Pra você fazer aquilo [não pode ter] nenhum a menos, [tem que] fazer essa busca pra ninguém mais desistir, ninguém abandonar.
Tive um aluno do período diurno que desistiu, que nós não conseguimos resgatar. O noturno, é lógico, são mais velhos; é só técnico e tem outras peculiaridades. Mas no diurno eu só tive um. Teve um aluno, de quatrocentos e quarenta alunos, que desistiu. Isso que é ter uma equipe que entende essa importância e vai em busca, vai trazer esse aluno. Foi fundamental.
P/1 - Saindo um pouco da sua esfera profissional e ativista e passando pra sua vida pessoal, como a pandemia acabou afetando você pessoalmente, no seu dia a dia?
R - Meu marido adorou. (risos) Meu marido adorou a pandemia porque eu sou uma pessoa que nunca está em casa, estou sempre no ativismo e em reuniões fora. Ele adorou, falou: “Nossa. Viva a pandemia!” Adora tomar café da amanhã, almoçar, jantar... Mas afetou mesmo.
Pra mim também foi um momento de dar uma pausa, ficar na minha casa. Fazia muito tempo que eu estava fora e não ficava em casa, então, pra mim, a pandemia foi esse momento de estar aqui recolhida na minha casa, com a minha família, com o meu marido.
O meu filho, quando chegou em agosto, veio pra cá. Ele comprou um apartamento, ele e a minha nora; enquanto o apartamento não ficou pronto, eles entregaram o apartamento de aluguel, aí vieram pra cá morar comigo. Foi pra mim um resgate, porque o meu filho tem trinta anos; fazia tempo que o meu filho não morava comigo, já fazia uns seis, sete anos.
Pra mim a pandemia teve tudo isso. Foi um resgate de ser mãe do meu filho - agora com outra maturidade, num outro momento. E ele também, trazendo um afeto diferente, porque é diferente. Ele trabalha, está com a companheira dele, montando a sua casa, tudo isso. E tê-lo comigo, os dois comigo, os gatos - vieram com ele os gatos… Veio todo mundo pra cá. Foi o momento de estar junto, de estar acolhido, de cuidar dele.
Nós cozinhávamos juntos, porque não podia sair. A gente quase não saía, o meu marido é grupo de risco. O meu filho é super ‘caxias’, não saía de jeito nenhum, também. Então, poder cozinhar, fazer pão, fazer bolo. Todo mundo engordou, ficou fortinho. Tomar café da manhã juntos, poder bater um papo no café da manhã. Ter um horário da gente parar pra almoçar todo mundo, mais ou menos no mesmo horário. Tomar um café, bater um papo, conversar.
A gente não é muito ligada à TV na minha casa, então, nem tem televisão, quase; tem aqui no quarto. A gente não tem muito essa coisa com a televisão. Então [a gente aproveitou pra] ler, [ouvir] música… O meu marido tem mais de mil e quinhentos CDs. Meu filho também gosta de tocar, tem violão.
Foi um momento que a gente teve pra se redescobrir. Eu, como mãe; o meu marido, como pai; ele também, como filho; minha nora, como nora e ser cuidada. Quase uma mãe, que está ali também com ela, cuidando. Ela ficou mais comigo do que com a mãe dela. E ter esse prazer: “Eu estou com vontade de fazer um bolinho. Vou fazer um bolo pra vocês.” Foi um momento muito bom, poder estar nesse espaço juntos.
P/1 - Voltando nessa questão familiar, eu queria perguntar sobre o seu casamento. Como você conheceu o seu marido? Você estava ainda na faculdade? Como isso aconteceu?
R - Eu conheci o meu marido no Carlos de Campos, em 1995, na escola. Acho que foi em 1994. Ele era professor da escola, é artista. Lá tinha muito artista.
Eu lembro dele chegar. Tinha esse corpo, essa coisa do artista. A vestimenta, a forma que ele... Ele é artista plástico, então a forma como ele se relaciona...
Eu já tinha um filho. Já tinha o meu filho de um primeiro relacionamento, que não durou nada, mas ele deixou de presente o Daniel que, pra mim, foi uma das melhores coisas que aconteceu na minha vida.
A gente se conheceu, dois anos depois a gente foi morar junto. Há dez anos, a gente se casou; a gente está junto há quase 25 anos juntos.
Ele conheceu o Daniel com cinco [anos]. O Daniel tem um afeto paterno e reconhece o Guilherme como pai dele. O Guilherme é o pai dele, isso está muito claro pra ele. Ele não tem quase relação nenhuma com o pai biológico, apesar de ter irmãos por parte de pai, mas ele tem um afeto muito forte. E ele também tem uma coisa também que traz muito da gente, dessas questões de valores, de luta pela igualdade. Ele não é um ativista, mas é um menino que sabe muito bem a responsabilidade e o compromisso que ele tem.
P/1 - A gente vai se encaminhar pras últimas perguntas da entrevista. Primeiramente: o que é mais importante pra você, hoje em dia?
R - Pra mim? Família. Pra mim, família, hoje, é o mais importante. Acho que a pandemia colocou a família, pra mim, num outro patamar. Saber que eu tenho a minha mãe… A minha mãe está viva. Passou todo esse processo de covid super bem, mesmo eu a vendo muito pouco. Mas eu moro duas casas, uma casa [de distância] da minha mãe.
Família, pra mim, é a minha irmã, as minhas irmãs, o meu filho. Pra mim, isso, hoje em dia, é tudo, das questões mais importantes.
Outra coisa pra mim que é importantíssima é propósito. Acho que não dá pra viver a vida sem propósito. A gente precisa acreditar em alguma coisa e ter propósito. Todo esse trabalho que eu faço… Eu não canso, porque pra mim é propósito, porque eu acredito nisso. Eu acredito que a gente precisa, com a colaboração, com todo mundo junto, precisa fazer a mudança.
A Luiza Helena Trajano fala muito isso: a gente quer ser a solução ou quer ser o problema? Eu escolhi ser a solução, escolhi fazer alguma coisa. Pra mim, isso é fundamental, é escolha pra mim. Eu quero fazer. Se está errado, eu quero contribuir pra fazer o certo, seja na questão da diversidade, nas questões políticas, [em] tudo.
Pra mim é propósito de vida fazer o que é certo e pensar muito no coletivo, no bem comum. A gente só... Não dá pra ser feliz sozinho. Não existe um mundo bom só pra você. Não existe eu estar no meu lugar, poder viajar, ter dinheiro, não importa, se a gente está vendo esse mundo do jeito que a gente está. Só é bom quando for bom pra todo mundo e quando a gente caminhar pra essa construção e pra esse olhar pro coletivo, pensar mais no todo.
P/1 - Algum sonho que você tenha pro futuro?
R - Sonho? Nossa, eu tenho bastante. Tenho sonhos que são pessoais, da minha família, de ter os meus netos, de poder aproveitar e curtir ainda tudo isso.
Tenho o sonho de ser, realmente, uma referência. Falo isso com toda a tranquilidade: eu quero que a nossa empresa seja referência, como uma empresa de duas mulheres negras. Não por estar na mídia, em capa de revista, mas por ser referência mesmo, de poder estar. Que as pessoas olhem e falem assim: “Olha, é possível chegar lá. Eu quero ajudar as pessoas. Eu quero poder, dentro da empresa, apoiar projetos de jovens negros. Jovens que queiram estudar, jovens que queiram fazer um curso fora”. Eu quero ter essa força pra poder ajudar.
Eu não quero mais pedir. Eu já pedi, as pessoas já me deram muito, sempre que eu peço. Agora está na hora de eu devolver, e também devolver financeiramente. O que eu posso apoiar em projeto social? Apoiar financeiramente, mesmo. Ser uma pessoa que possa bancar e apoiar projetos, pra que a população negra esteja ocupando outros espaços. Esse é o meu sonho.
O meu sonho é estar... E você vai ver, ainda, que eu vou falar. Quando você falar: “Quem são as empresas que vão apoiar [esse projeto]?” você vai falar: “É ela, ali.” Porque não adianta se você não tem poder econômico de decisão. A gente precisa ter esse poder de decidir e apoiar. “Olha, o fulano quer fazer um filme sobre isso”, eu quero apoiar.
O outro sonho é fazer um documentário sobre o meu pai, que já está em processo de discussão, contando esse outro lado do Movimento Negro, essa outra história. Esse é um sonho, pra mim, que eu gostaria muito de realizar.
P/1 - E a última pergunta é: como foi, pra você, contar a história da sua vida pra gente hoje?
R - Eu me emocionei muito, demais, porque quando a gente começa a contar a gente começa a lembrar. Nossa, quanta coisa - até agora eu estou emocionada - eu vivi, quantas coisas eu passei, quantas coisas eu aprendi… E como eu tive muita sorte, de ter muitas pessoas que me ajudaram, que foram importantes.
Trazer, contar toda essa trajetória me emocionou demais, demais.
P/1 - Então, em meu nome também, mas em nome do Museu da Pessoa, a gente agradece muito a sua participação. A entrevista foi ótima, foi muito boa, mesmo. Muito obrigado!
R - Ai, obrigada. Eu que agradeço vocês - o carinho, o cuidado de vocês. Muito obrigada, mesmo.
Recolher