Programa Conte Sua História Voluntariado 2021
Realização Instituto Museu da Pessoa
Entrevista de Marlucia de Santana Bertho
Entrevistada por Fernanda Micoski e Larissa Guilhoto
São Paulo, 28 de outubro de 2021
Código: PCSH_HV1243
Transcrito por Anna Flora Eichemberger Ummus
Revisado por Marina Tunes
P/1 - Beleza. Então hoje nós temos a entrevista de Marlucia de Santana Bertho, entrevistada por Fernanda Micoski e Larissa Guilhoto. São Paulo, 28 de outubro de 2021. Faz parte do projeto "Conte a sua História", entrevista número PCSH HV1245. Então, vamos começar. [risos]
P/2 - Então a gente inicia a entrevista de hoje, Marlucia, com o seu nome completo, data e local de nascimento, e nome dos pais.
R - Marlucia de Santana Bertho, nasci dia 18 de março de 1953, o nome do meu pai é Adolfo Pinto de Santana e de minha mãe Maria da Conceição Oliveira.
P/2 - Bacana, Marlucia. E a gente inicia formando um processo cronológico, a gente gostaria muito de entender um pouco mais sobre a sua infância, se você puder contar pra gente as suas memórias, brincadeiras, o que você fazia para se divertir…
R – O que eu fazia para apanhar...[risos]
P/2 - Pode ser, também.
R - [risos] É que eu não gostava de estudar, então volta e meia minha mãe dava... Que naquele tempo não é que nem agora, que não pode bater, não pode fazer isso e aquilo outro. Ela tinha uma mira! A gente corria, e o que ela tinha na mão, ela jogava. E pegava! [risos]
P/2 - Imagino.
R - Então, mas foi boa, a minha infância.
P/2 - E tinha alguma brincadeira em especial que você gostava?
R – A gente brincava de roda, brincava de lencinho atrás, pulava corda... É, como é que fala? Mãe da rua... A gente ficava até tarde da noite brincando, não tinha perigo, não tinha problema nenhum. A água que tomava era de torneira, agora não pode. [risos]
P/2 - Muitas diferenças, né?
R – Muita diferença.
P/2 - E a adolescência, Marlucia?
R – A gente não tinha essa...
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Realização Instituto Museu da Pessoa
Entrevista de Marlucia de Santana Bertho
Entrevistada por Fernanda Micoski e Larissa Guilhoto
São Paulo, 28 de outubro de 2021
Código: PCSH_HV1243
Transcrito por Anna Flora Eichemberger Ummus
Revisado por Marina Tunes
P/1 - Beleza. Então hoje nós temos a entrevista de Marlucia de Santana Bertho, entrevistada por Fernanda Micoski e Larissa Guilhoto. São Paulo, 28 de outubro de 2021. Faz parte do projeto "Conte a sua História", entrevista número PCSH HV1245. Então, vamos começar. [risos]
P/2 - Então a gente inicia a entrevista de hoje, Marlucia, com o seu nome completo, data e local de nascimento, e nome dos pais.
R - Marlucia de Santana Bertho, nasci dia 18 de março de 1953, o nome do meu pai é Adolfo Pinto de Santana e de minha mãe Maria da Conceição Oliveira.
P/2 - Bacana, Marlucia. E a gente inicia formando um processo cronológico, a gente gostaria muito de entender um pouco mais sobre a sua infância, se você puder contar pra gente as suas memórias, brincadeiras, o que você fazia para se divertir…
R – O que eu fazia para apanhar...[risos]
P/2 - Pode ser, também.
R - [risos] É que eu não gostava de estudar, então volta e meia minha mãe dava... Que naquele tempo não é que nem agora, que não pode bater, não pode fazer isso e aquilo outro. Ela tinha uma mira! A gente corria, e o que ela tinha na mão, ela jogava. E pegava! [risos]
P/2 - Imagino.
R - Então, mas foi boa, a minha infância.
P/2 - E tinha alguma brincadeira em especial que você gostava?
R – A gente brincava de roda, brincava de lencinho atrás, pulava corda... É, como é que fala? Mãe da rua... A gente ficava até tarde da noite brincando, não tinha perigo, não tinha problema nenhum. A água que tomava era de torneira, agora não pode. [risos]
P/2 - Muitas diferenças, né?
R – Muita diferença.
P/2 - E a adolescência, Marlucia?
R – A gente não tinha essa modernidade que tem. Que nem, minha filha às vezes fala para mim: “Nossa, como vocês viviam sem televisão?” Era um radinho que tinha, a gente tinha um radinho de pilha. Era o que a gente escutava, escutava as rezas dela tudo. Mas televisão, eles vieram comprar quando a minha irmã fez – eu tenho uma irmã, só nós duas, ela é quatro anos mais velha que eu – 18 anos, é que veio entrar uma TV em casa. Que naquele tempo não tinha, nós íamos para o bar, assistir no bar, O Circo do Arrelia, [risos] essas coisas assim. Mas foi uma infância boa, viu, com muita dificuldade, mas foi boa.
P/2 - E como era a relação com os seus pais, com seus familiares? Você falou da sua irmã…
R – Com a minha mãe era boa. Meu pai bebia. Então, quando ele chegava, você não podia abrir a boca pra nada, porque aí ele achava que estava provocando ele. Quando ele chegava, nós ficávamos quietos. Também, ele era assim, ele bebia, chegava e ia dormir. No outro dia ia trabalhar, nunca deixou de trabalhar. Também nunca bateu na minha mãe, nem nada, que ele não era nem doido. [risos] Minha mãe era baixinha, mas com ela o negócio era diferente. Então, o que estragava nele era a bebida, foi internado e ficou louco duas vezes... E ela, pra gente sobreviver, fazia essas figurinhas, colocava em saquinho, mas ia longe buscar. Aí ela trazia uma sacola na cabeça, uma sacola em uma mão e uma na outra, e eu com a sacola. Eu falo pra ela que eu não cresci de tanto carregar peso na cabeça, então... [risos] E aí ela deixava, falava: “Ó, você vai fazer esse e aí, você vai brincar.” E pra minha irmã também, só que a espertinha aqui enfiava todos os envelopes debaixo do colchão. Ela falava: “Ah, você terminou rápido.” E no dia que não tinha trabalho ela foi limpar e, menina... Ela achou [risos] embaixo da cama, mas forrado. Me fez fazer tudinho. [risos] Ah, mas era bom naquele tempo, a gente lembra tudo o que a gente passava, os apertos. Mas, graças a Deus, foi uma infância boa.
P/2 - Teve alguma situação da sua infância que te marcou? Você já compartilhou essa conosco, dos envelopes, das figurinhas. Teve outra situação, assim, que te marcou?
R – Teve, que ela bateu em mim e na minha irmã, e naquele tempo usava saiote engomado. Eu coloquei um monte de saiote e ela bateu, bateu em mim e eu logo parei de chorar. Minha irmã continuou chorando e minha mãe falou: “Ó, lá, ó. A Lucia já parou de chorar e você continua.” [risos] Até hoje minha irmã fala: “Claro, cheia de saiote.” Eu só chorei na hora pra ela não... [risos] Aí… Mas é, eu parei de estudar com 12 anos. Eu falei pra ela: “Ai, mãe, eu não gosto de estudar. Eu vou trabalhar até eu fazer meus 14 anos, e ir pra uma firma”. Fui ser babá, me virei bastante. Quando eu fiz 14 anos fui trabalhar em São Paulo, no Cambuci, de metalúrgica. Era o que eu mais gostava, nossa... Eles me ensinaram pra ser prensista. A minha carteira está como prensista. Nossa, mas eu gostava muito. Depois saí, vim pra cá trabalhar aqui, perto de casa. Depois foi quando eu casei.
P/2 - Sim. E como era o cenário da sua cidade? Que eu acho que você acompanhou por muito tempo, uma transição enorme, muitas coisas acontecendo…
R – Nossa, quando eu vim morar aqui... Porque eu nasci em São Caetano, morava em um cortiço. Tinha umas 20 ou 30 famílias, um negócio assim, e o dono queria que nós que morávamos na frente, e o dono queria que fosse lá pro fundo. Pelo meu pai, ele tinha ido. Minha mãe falou: “Não, é daqui pra rua”, ela falou. “É daqui pra minha casa.” E ficou, nós fazendo essas figurinhas, ele trabalhava na Cásper Líbero, Gazeta Esportiva. E foi indo, foi indo, e comprou esse terreno aqui, e estamos aqui no bairro faz 56 anos. Nós chegamos aqui era cobra, você achava cobra dentro de casa, no quintal... Não tinha ônibus. Para ir para o centro de Santo André, você nem imaginava como ir, então a gente ia para São Caetano que era mais perto. E assim foi indo. As ruas eram de lama, era tudo... Agora, não. A turma diz que aqui é bairro de rico, aí eu falei: “Mas não vê, como os antigos que vieram pra cá, como que era.” Agora não, tem muitos apartamentos, e a maioria dos conhecidos nossos morreu. E tão fazendo apartamentos, agora. Casa, mesmo... Tem bastante casa ainda, térrea, por aqui. Mas a maioria tá virando apartamento. Estão derrubando e fazendo apartamento. Quem vem aqui agora, a gente lembra aquele tempo, que eu morava na rua debaixo e, depois que eu casei, eu vim morar aqui. Morei uns três anos com a minha sogra, Deus que tenha ela num bom lugar, [risos] é outra que eu passei um bom pedaço com ela. [risos] E aí nós viemos morar na rua de cima, aqui nós estamos há 40 anos. Então a turma aqui fala que não subia gás, não vinha nada pra cá. Porque aqui é um planalto, tem muitas subidas. Então a turma falava que aqui não dava. Eu estava mais pra cima, era mais plaino. Agora não, quem chega, ninguém fala o jeito que era. Apesar de que hoje, onde eu moro aqui, você não tem uma padaria, você não tem um mercado... É tudo longe aqui. Mas, mesmo assim, a gente tá.
P/2 - E a sua adolescência? Você falou um pouquinho pra gente que começou a trabalhar muito cedo... Como é que foi esse processo da adolescência, já do trabalho, adentrando profissões?
R - É, a gente trabalhava, eu gostava de fazer muita hora extra, pra ganhar bastante. Nossa, isso meu pai me falava, que eu ganhava mais do que ele. Eu não tinha... Ia dia de sábado, ia domingo... Naquele tempo tinha muita hora extra. Eu conto pra minha filha que eu andava ali em São Paulo – olha a cabeça da gente! - andava naquelas enchentes, desde aquele tempo já tinha enchente. Eu trabalhava no Cambuci, pegava até o Parque Dom Pedro, na Avenida do Estado, e tinha que atravessar no meio da água. E nós íamos na maior brincadeira, via pedaço de madeira... “Mãe, e se tivesse um buraco, e vocês entrassem no buraco?” Imagina, naquele tempo nem pensava nisso, a gente se divertia.
P/2 - Tem alguma memória que te marcou, desse processo da adolescência?
R – Eu nem sei. Penso que foi de uma colega minha, que fugiu. [risos] Era assim, nós éramos muito amigas e, ela morava em Itaquera, vinha em casa e eu ia na casa dela, tudo. E, nesse dia, nós nos despedimos e ela não me falou nada que ia fugir. Quando chego lá no serviço, era o pai atrás dela: “Você sabe onde ela tá”? E eu: “Não, não sei. Ela ficou no ponto do Itaquera e eu vim pro Barcelona.” “Não, porque não sei, o quê.” Lá vamos nós, na firma falaram pra eu ir com o pai dela, fomos na delegacia… e fomos [risos] em hospital atrás dela… E nada. Aí queriam me culpar, falando que eu sabia onde ela estava, tudo. Eu falei: “Eu não sei onde ela tá, ela não me falou nada.” Aí depois nós descobrimos, ela estava pertinho de casa, na rua de cima, na casa do namorado. [risos] Você vê? Porque os pais do rapaz não queriam que ela namorasse com ele. E ela estava na casa dele, em uma rua pra cima. Nós batemos aquele São Paulo inteiro atrás dela, em tudo quanto foi lugar, e nada. Isso daí eu sempre tô contando pra minha menina, essas coisas.
P/2 - Essas histórias são muito educativas, né? Muito legal. Pensando assim, que tem todo um processo de transformação, você contou um pouco do seu bairro, que houve essa transformação. Tem algo assim que se transformou no mercado de trabalho, porque você trabalhou muito tempo com metalurgia, que você queria compartilhar conosco?
R – Tinha uma lojinha, porque eles trabalhavam para a Gulliver, brinquedos Gulliver. E, como eu não queria ficar parada, eu pegava o serviço deles e trabalhava em casa. Trabalhei, eu acho, uns quatro anos montando carro-tanque, contando bonequinho, essas coisas, e, nisso, ia tirando meu dinheirinho. Comprei uma torneira elétrica, comprei uma luminária. [risos] Porque eu casei e meu marido não queria que eu trabalhasse. Foi a pior coisa que eu fiz na vida, e eu falo pra minha filha: “Você não pare de trabalhar. Você tem seus estudos, você tem a sua profissão. Não dependa de homem, que é a pior coisa.” Eu fiz essa besteira, e me estrepei direitinho, porque nunca tinha dinheiro. [risos] Podia receber, você pedia e: “Não tenho dinheiro.” Aí eu comecei a ser acompanhante, cuidar de idoso, mas eu não tinha curso nenhum. Tinha uma senhorinha a umas quatro casas daqui que não tinha ninguém, era sozinha no mundo. E ela era muito amiga da minha mãe, e eu fiquei tomando conta dela, ficava mais lá do que aqui. Depois ela esclerosou, começou a falar que eu queria matar ela, que eu estava roubando ela... Eu fui lá pro padre, na igreja, chorando. A turma falava: “Larga dela, ela não é nada sua”, mas eu tinha dó, ela não tinha ninguém e estava com 86 anos. É duro, né? A pessoa sozinha… Aí eu fui lá pro padre, falei: “Não dá mais não pra eu tomar conta dela. Ela tá me acusando de coisa e tudo.” Só sei que ele começou a tomar conta, pôs cuidadora…[risos] Ele falou pra mim que ela também falou que ele queria matar ela, queria roubar ela... Eu falei: “É a mesma coisa.” Um dia chegou o bombeiro aqui falando assim pra mim: “A senhora tomou conta da dona Adalgisa?” Eu pensei “Meu Deus, lá vem coisa.” Minha sorte é que as receitas dela, ela mandava rasgar e jogar fora, mas eu ia guardando. Ela se trancou falando que tinha gente querendo matar ela lá dentro, e eles arrombaram a porta pra tirar ela de dentro. E falaram pra eles que eu tomei conta dela por muito tempo. Eles vieram aqui e eu falei: “Tenho as receitas dela aqui.” Ele olhou tudo e falou “Ah, isso é assim, mesmo, a pessoa é assim, mesmo.” Eu jurei que nunca mais olhava mais ninguém. Aí veio a vizinha aqui da frente, que a mãe tinha diabetes e cortou os dedos, que era pra mim... Aí eu falei: “Ah, Cirley, não. Você viu o que aconteceu com a dona Adalgisa? Você viu que eu tava roubando, que eu queria matar ela e tudo?” “Não, Lucia, mas nós estamos aqui e...” Eu falei: “Não.” “Ah, não consegue, pelo amor de Deus?” Lá vai eu. Eu sou assim, eu vou pelo coração, não penso. Depois eu me arrependo, e não volto atrás, eu fico. Ela falou: “Ah, Lucia, a gente conhece você há tanto tempo, gente sabe aquelas conversas, da gente nem ligar.” Mas muita gente me acusou. Achava verdade, né, se ela está falando... Aí ela ficou, depois o pai dela veio, que eles moravam em Indaiatuba. Como ela tinha esses problemas, eles compraram casa aqui e vieram pra cá. O seu Antônio veio, também, e a sorte era ele, porque de vez em quando ela me falava umas coisas. Ele falava assim: “Ó, não trata a Lucia assim, não. Ela tá te tratando bem, não é desse jeito.” E a comida dela a filha fazia e deixava no tupperware. Ó, vou te falar a verdade: que eu não comeria aquilo. E sem sal. Aí eu falava “Aqui, dona Amélia. É gostoso.” “Ah, é gostoso? Então come essa gororoba você.” [risos] Ai, meu Deus, eu ia fazer o quê? E ele falava: “Não, Amélia, não é assim. Fala com as tuas filhas, tuas filhas que deixam, ela só esquenta e te dá.” Dava remédio, fazia teste nela... Minha salvação era ele. Um dia eu falei pra filha dela, ela é professora, “Ó, Cirley, não dá pra olhar a tua mãe, não. Ando estressada.” Eu ia no médico, e ele falava que eu que precisava me cuidar. Nessa brincadeira, era pra ter ficado três meses. Fiquei quatro anos com ela, só saí porque ela morreu. Ela amputou a perna, e aí morreu. Cheguei lá no médico e ele falou “Como é que tá?” “Ah, a mulher morreu.” “Não me arruma outra, hein?” [risos] O próprio médico: “Não me arruma outra.” Eu falei: “Não, não quero mais nada.” Vem muita gente atrás, né? Mas não, não quero mais não, porque é duro você lidar com essas pessoas. Eu às vezes falava pra ela: “Ó, dona Amélia, se eu não gostasse da senhora, eu batia na senhora, eu aprontava com a senhora.” Que ela vivia na cadeira de rodas. Eu falei: “Eu não quero isso. Então a senhora me trate com educação.” A minha sorte era o marido dela, porque senão, já pensou? Aí iam falar “Ela já tentou com a outra, [risos] vai tentar com essa também.” Mas graças a Deus. Às vezes a turma pergunta, aí: “Ai, fui metalúrgica.”E minha filha ela apertava assim: “Mãe, você não tomou conta daquelas mulheres?” E eu falo “É mesmo.” Fui até esquecer. [risos]
P/1 - Muitas coisas, né? Muitos processos.
R – E no casamento foi... Pra casar foi duro, filha, por causa do racismo da mãe dele. Eles são descendentes de italiano, a mãe dele não queria, já tinha duas cunhadas morenas. Aí ela falou assim: “Mais uma pra empretejar a família.” [risos] Olha, ela aprontou comigo. E eu sempre... O meu cunhado mesmo, falava: “Se a mãe não viver com a Lucia, ela não vive com ninguém.” Minha vida era assim: eu ia pra um canto, sem ninguém ver, e chorava, descarregava no choro. Depois ela começou a me cobrar porque eu não tinha filho, e ele, de dez irmãos, era o caçula. Aí ela falava assim: “Nossa, só meu filho Zé que não vai ter filho? Todo mundo tem.” Fiz exame, fiz um monte de exame, ele fez também. Aí um dia o médico falou pra mim: “Olha, o dia que Deus quiser, ele vai te dar. Vocês não têm nada.” Eu tive dois abortos, tive um parto prematuro antes da minha filha Ana Paula, era uma menina que ia entrar no sétimo mês e perdi. Achava que não ia ter mais porque eu estava com 37 anos, e a médica que fez meu pré-natal, do convênio dele, falou pra mim - naquele tempo não falava criança especial, falava mongoloide, “Você sabe que a criança pode ser mongoloide?” Aí você já fica apavorado, né? Eu comecei a sentir as dores, minha irmã me levou e meu marido foi junto, falou que não sabia o que eu tinha. Eu falei: “Eu sei, eu tô perdendo.” Pra quem já tinha perdido dois... Ela falou: “Não é nada, não.” E mandou a enfermeira aplicar soro. A enfermeira olhou pra mim e falou: “Olha, eu vou aplicar porque ela tá mandando.” E não deu cinco minutos ela veio correndo “Tira, tira!” Mas com as dores já estava dando as contrações. Aí falou pro meu marido pra me levar para o hospital porque não sabia o que eu tinha. Eu falei: “Eu sei, eu tô perdendo. Pela terceira vez, eu tô perdendo.” Era uma menina, viveu duas horas só. A médica falou: “Ah, mas por que a senhora está chorando? Logo a senhora arruma outro.” Eu falei: “Não arrumo.” Porque eu nunca tinha tomado remédio, nunca tinha evitado, e do outro aborto pra essa menina foram dez anos. Eu já estava perto dos 40. Ela falou: “Não, mas tem um negócio. Quando a senhora arrumar, a senhora tem que dar ponto na bolsa, fazer cerclagem. Nisso fui levando, fiz regime que eu sempre fui gordinha, e só dormia. [risos] Meu marido falou: “Não, nós temos que ir pro médico pra ver o que você tem, porque você só dorme e chupa laranja.” Era médico particular, chegamos lá e ele falou: “Como o seu histórico está que você perde fácil, vamos fazer ultrassom. Mas tudo indica que você está grávida.” E estava mesmo. Eu falei com ele da idade, mas ele falou: “Não, abaixo de Deus tem eu aqui. Você vai por essa criança no colo.” Fiz a cerclagem, fiquei os oito meses deitada, tendo que esperar um prato de comida. Minha irmã chegava e me dava comida, meu marido chegava e ia me dar banho, porque eu não podia nem pegar nada. Daí minha filhota, está com 28 anos, tá formada, se formou em bacharel em História. Tá lá no Canadá fazendo mestrado.
P/2 - Muito bom.
R - Então, eu falei: "Pra Deus nada é impossível." Porque com o outro médico que eu fui, ele falou: “Pode tirar da sua cabeça, que você não vai ter filho.” Era médico da minha mãe. Aí, quando eu fiquei grávida e a Ana Paula nasceu, minha mãe falou: “Você devia ir lá no doutor Eduardo falar: “Aqui, ó.” [risos] “Você nunca vai ter filho?” Então, e graças a Deus foi assim minha vida, ela é minha carreira, é meu tesouro, ela é tudo.”
P/2 - Ah, que legal. Gostaria de…
R – Tem a roupinha dela aqui, ó, o casaquinho dela que eu guardo até hoje.
P/2 - Ah, que legal. Muito legal.
R – Tem a foto do dia que ela nasceu, tá dando pra ver?
P/2 - Tá.
R – Essa aqui foi tirada no hospital.
P/2 - Uau. Olha, gente, que graça.
R – Pra ninguém falar que era mentira.
P/2 - Muito bacana.
R- Então, né? O xodozinho meu. Agora só tem eu e ela, o pai faleceu faz nove meses, deu um infarto aqui. Você vê? A gente não saía há dez meses de dentro de casa. Ela vinha, comprava as coisas e deixava na porta. Graças a Deus que aquele dia ela estava aqui. Porque ele entrou no banheiro e eu escutei o barulho. Eu falei: “Corre, Ana Paula, que o pai caiu no banheiro.” Caiu morto, foi fulminante. E ela que me esteia, é... Nossa, ela é tudo.
P/2 - Muito bacana. Eu confesso que a gente ficou um pouco curiosa pra saber se casou-se com o último homem da terra, assim. A gente ficou curiosa com esse tema, se você quiser compartilhar com a gente e se sentir à vontade, também…
R - [risos] E foi, mesmo. A Ana Paula falava para as colegas: “Ó, te apresento o último homem da terra.” [risos] Era o pai dela. Não, era assim, eles eram dez, agora só tem uma irmã. Morreram todos, aí tem a irmã. Minha cunhada falava assim: “A Diva tá com o Mauro, eu tô com o Augusto, a Lucinha...” Que só me chamam por Lucinha, aqui, que eu sou grande, “Tem o Zé.” “Vocês estão é doidas”, eu falava. “Nem que fosse o último homem da terra eu ia querer ele.” Eu era noiva, ele era noivo, você vê como são as coisas. Eu não suportava ele, e ele também... Nós íamos pra excursão, assim, e naqueles ônibus de antigamente o ônibus era meio mole, então ficava eu e minha colega no último banco e enfiava os pés no banco, e ele sentado na frente com o irmão dele, e nós empurrando... [risos] Aí ele falou assim: “Daqui a pouco eu viro pra trás, essas duas vão ver o que é bom pra tosse.” Aí eu falei: “Dalva, o cara tá que tpê da vida”. [risos] Ele dá risada, ele também falava: “Ó, sou o último homem da terra.” A mãe dele era assim: enquanto eu não namorava com ele, eu prestava. Mas depois que nós começamos a namorar, eu já não prestava. Era assim. Ele me falava: “Nossa, não sei porque minha mãe é desse jeito, porque na fazenda do meu avô, meu avô tinha a cozinheira, criou o filho dela e tudo, deu estudo... Meu avô não era assim." E a mãe dele puxava muito pra quem tivesse dinheiro, fosse rico… Aí era... Depois eu fiquei sabendo que ela aprontava muito comigo, é que eu era... Não era que eu era besta [risos], mas ia levando. Quando ela ficou doente, as irmãs tiveram cinco mulheres e cinco homens. As irmãs: “Porque aí, a mamãe, porque meu filho trabalha à noite, eu tenho os meus netos e tudo.” Eu falava pra ele, a gente tava construindo aqui: “Ó, Zé, sua mãe não gosta de mim, mas não é por isso. Quando a gente terminar, a gente leva tua mãe conosco. Eu não vou querer isso para os meus pais, ver meus pais num asilo. Não, a gente leva.” Aí antes de terminar, ela faleceu. Só que era assim: ela na minha frente era uma coisa, atrás era outra. Ela falava pra turma que eu não tratava ela muito bem, que eu não respondia pra ela... Nossa, um dia, ainda bem que eu cheguei com ele, as latas de mantimento, aquele tempo usava lata de mantimento, todas vazias na porta do meu quarto. O que ela fez com o que tinha dentro, ninguém soube. Eu limpava a casa, e lá eram dois quartos, sala, cozinha, copa e o banheiro. O irmão dele chegou e falou assim: “Ah, a casa tá boazinha pra minha mãe estar aí.” E o Zé falou: “Não limpa mais aqui. Varre e não limpa mais.” Naquele tempo usava enceradeira, essas coisas. Aí eu só limpava o meu quarto, e a porta do quarto era fechada. Quando eu abria, “Ó, o quarto dela é limpo, o resto da casa é um lixo.” [risos] Olha, era fogo. Mas é que ela morreu e apareceu pra mim, não fazia oito dias que ela havia falecido. Meu pai tinha uma banca de jornal, então eu ajudava meu pai. Minha mãe tinha feito uma cirurgia, ficava com minha mãe e tudo. Quando eu entrei no quarto, na saída, eu vi ela na porta. E eu olhei assim e falei: “Ué, dona Pina, a senhora morreu.” Na hora em que eu falei isso, ela deu um grito e sumiu. Meu marido falou: “Ela veio te agradecer. Porque eu não ia deixar, mesmo aos trancos e barrancos, nós íamos viver com ela”. Ia fazer o quê? Porque ele falou que os italianos eram assim: quando os pais morrem, os caçulas que têm que tomar conta. Japonês já é diferente, japonês é o mais velho que toma conta. Antes de nós namorarmos ele falou, e eu falei que tudo bem. Só que ela não queria, ela veio aceitar nosso casamento fazia o quê, uns seis meses, pra nós casarmos. A gente tinha comprado uma casa no Jardim do Estádio, estava construindo lá. Ele falou: “Ó, mãe, a senhora não aceita a Lucia, a gente tá indo embora.” “Ah, não, pode ficar, pode ficar.” Mas depois eu fiquei sabendo que ela falou que não dava três meses pelo nosso casamento – quando eu fiquei sabendo, fazia três anos que nós estávamos casados. E ela falou que não dava três meses. Então nós ficamos casados. Ia fazer 43 anos dia 1° de abril, que até a turma ria, falava assim: “Só vocês mesmo pra casar dia 1° de abril.” [risos] Ficamos 42 anos casados, tivemos nossa filha. Os parentes dele são assim, eles lá e eu aqui. [risos] Depois que meu marido morreu, o irmão dele, em um prazo de um ano, morreu e morreu um irmão dele há quatro meses, o mais velho. A sobrinhada: “Ah, vamos fazer um grupo de família.” e eu falei: “Meu Cristo”. [risos] Pediram telefone, tudo. A gente dá, mas nem participa. Quando eu vou lá, dou uma olhadinha. Começaram a falar de política, aí já começaram a brigar, eu só fico olhando e dando risada de ver as coisas deles. Eu falei: “Engraçado, quando tava tudo vivo, que podia tá tudo junto, viver bem, se dar bem, era aquela cachorrada. Agora...” De vez em quando, tem uma sobrinha que é veterinária, que fala: “Oi, tia, tudo bem?” “Tudo bem.” É assim, não destrata, mas também não fica em cima. E é assim.
P/2 - É, eu fiquei curiosa pra saber sobre... Você disse que não se casaria jamais com o último homem da terra, né? E como…
R – Nem que ele fosse!
P/2 - Nem que ele fosse, exato. E como surgiu, assim?
R – Deus falou: “Você vai ver. Você vai ver se não vai casar com ele.” [risos] A gente pensa uma coisa e Deus tem outros planos pra gente.
P/2 - Onde vocês se conheceram?
R - Nós éramos vizinhos. Eu estava com 13 anos. Foi assim: nós viemos de São Caetano, mudamos na parte da tarde e a irmã dele mudou na parte da manhã, passava uma casa e a outra era a da irmã dele. E ele tinha uma sobrinha de três anos, e eu sempre gostei de criança, então ela ia lá em casa. E quando ela ia pra casa da mãe dela, ela me levava junto. Mas era assim, eu via ele e não suportava ele naquele tempo. Ele era sete anos mais velho que eu, então ele se achava, né?[risos] Então foi indo, foi indo, depois, uma vez, nós fomos pra essa romaria à Aparecida, que começamos a aprontar, depois ele começou a fazer umas excursões e me chamou pra ir pra Santos... Eu falei que meu pai não deixava, vim conhecer um cinema à noite com 21 anos, indo escondida dele. Porque assim, ele me chamou pra dormir, aí eu pensei como que ia convencer o meu pai. A turminha nossa: “Não, fala que nós vamos junto.” Eu fui pedir. “Quem vai?” “Ah, vai a Dalva, vai a Ilma, vai o ...” “Ah, então vai.” Eu falei “Vocês não me ponham a cara pra fora. Porque se ele vê, o negócio vai ser feio.” E foi assim que nós começamos. Depois ele começou a chegar no portão, ele jogava dominó com o pai, o meu marido. Ele ainda falava: “Nossa, eu nunca ia imaginar que vocês iam namorar. Ainda ele falou pra minha mãe: “O que é? O Zé chega ali no portão, não fala nada...” Que ele queria que entrasse, que pedisse pra namorar... Minha mãe falava assim: “Adolfo, o negócio mudou, agora.” “Aqui em casa o negócio não mudou nada, não. [risos] Tem que chegar aqui e falar comigo.” Meu pai gostava muito dele. Minha mãe, também. Tinha hora que minha mãe ia contra mim e a favor dele. Ele era muito sossegado, nossa, e eu já não sou. Eu sou ligada no 220v, eu quero as coisas já. E minha mãe falava: “É o jeito dele, deixa, ele vai viver muito.” E ele ainda falava pra mim: “É, você nervosa desse jeito, vai ter um infarto.” “Ó, que vida. Ele que teve, ele com a calmaria dele, que eu achava que ia longe, daquele jeito.” Nossa, dava um nervoso de ver ele. Quando eu brigava com ele, que ele não brigava, aí é que eu brigava mais ainda, que eu queria que ele respondesse. [risos] É, foram tempos bons.
P/2 - Lembranças boas, né? Eu fico pensando se tem alguma memória que você gostaria de compartilhar com a gente. Memórias de vida, memórias de São Paulo, memórias de relacionamento, memórias com a sua filha…
R – Olha, teve um noivo. Antes de namorar com meu marido eu fui noiva por cinco anos e oito meses, comecei a namorar com ele tinha uns 15, 16 anos. E naquele tempo você não sabia desse negócio de... Desses homens que batem em mulher, e ele me cortou a perna. Naquele tempo, se achava que era coisa normal. Não, normal não. Mas não era que nem agora. Eu falei pra Ana Paula: “Nossa, muita coisa que a gente passava, agora que vê que é abuso.” E, pra gente, para bem dizer, era coisa normal. Eu prendia o cabelo com umas presilhas de latinha, eu fui para lavar a cabeça e ele falou pra mim: “Você não vai lavar a cabeça, porque eu não quero.” Eu falei: “Eu vou.” Fui e lavei, aí sentei na escada e estava ali, e ele começou a raspar minha perna, mas eu achava que era com a unha. “Não te falei que não era pra lavar? Você tem que me obedecer.” Quando eu senti aquela coisa quente correndo que eu vi que era sangue. Comecei a gritar e meu pai quase mata ele. Minha mãe falava assim: “Você tá vendo? Deus já tá te mostrando que se você casar com esse cara o que vai ser da tua vida.” “Ah, mas eu gosto dele...” Olha que tonta. “Mas eu gosto dele, eu gosto...” E ela reclamava pra vizinha, dona Maria: “Vou largar mão, dona Maria. A senhora vai ver.” Ela largou mão e eu larguei dele. [risos] Você vê, parece que é pirraça, né? Comecei a namorar com o Zé, eu mesma falei que não queria mais nada com ele e ele começou... Ele sabia muita coisa da minha vida, mas depois nós descobrimos que era uma vizinha, parente, que contava tudo o que eu fazia e o que eu não fazia. Um dia ele tinha - nós morávamos e tinha a Telefônica, era a CTBC [Companhia de Telecomunicações do Brasil Central] antigamente – meu pai viu ele lá. Meu pai foi lá e falou pra ele: “Ó, eu dei parte de você, ela tá em segurança, e qualquer coisa que acontecer, se foi você ou não, você vai pagar.” Ele sumiu. Eu falo pra Ana Paula: “Eu não sabia que isso daí era abuso.” Você vê que no tempo da gente não... Sei lá, não sei se a gente era inocente ou era besta naquele tempo, ou é que agora tudo é essas coisas.
P/2 - Tem muitas transformações, né? E memórias com a sua filha que você queira compartilhar também, desse processo? A gente leu que era um sonho seu ser mãe…
R - É, o meu sonho era ser mãe. O que eu lutei pra ter, nossa. Ela é tudo pra mim. Nossa, quando eu fiquei sabendo que tava grávida foi a maior alegria pra nós. Lutei pra ela estar onde ela tá agora, eu falo pra ela, é mérito dela, mas eu lutei bastante e ajudei ela. Porque meu marido era assim: que nem o negócio de eu não trabalhar, de ele não me dar dinheiro, não me dava nada. Ele sempre falava: “Mulher, para de ficar pondo essas coisas na cabeça da menina.” Eu falava pra ela: “Olha, o dia em que você tiver sua profissão, não abra mão de nada, segue a tua vida. Porque a hora que você quiser sair, passear, você tem o seu dinheirinho, tem tudo.” Aí ela falou assim pra mim, ela sempre falava: “Mãe, eu quero fazer uma faculdade.” Eu falei: “Ana Paula, não vai dar. “ Ela com oito anos, “Filha, não vai dar, você sabe que teu pai é aposentado, a mãe não trabalha... Faculdade é caro.” Ela falou: “Não, mãe, mas eu vou fazer do Estado.” Ela fala que não lembra disso, um dia ela mexendo nos papéis achou um desenho dela falando que ia estudar na USP [Universidade de São Paulo].
P/2 - Uau, legal.
R - Então, ela começou. Tem uns vizinhos aqui que, nossa, falaram pra mim: “É, a Ana Paula vai fazer prova lá, mas não vai passar, Porque a sobrinha do meu marido fez e não passou.” Eu falei: “Ué, mas ela tá sabendo: é o sim ou o não". Se for não, ela vai tentando até conseguir.” Graças a Deus ela conseguiu de primeira, entrou. Ela falava: “Só que eu vou precisar fazer um cursinho pra prestar.” O Anglo tava fazendo umas provas pra ver quanto que dava de bolsa. Ela pegou e foi fazer. No dia de ver o resultado, ele tava aqui perto do fogão, eu falei: “Zé, vamos lá com a Ana Paula ver.” “Ah, não adianta, vocês vão fazer o quê? Porque eu não tenho dinheiro pra pagar isso.” “Eu não tô falando pra gente pagar, eu tô falando pra nós irmos ver o que vai dar.” “Ah, eu não vou.” “Não tem nada, não. Vamos.” E fomos daqui lá no centro, é longe o centro de Santo André. Fomos a pé.” Ela ainda fala: “Nossa, mãe, como o pai é...” Eu falei “É, você vê, como ele é.” E eu tenho uma casa na rua de cima, que é dos meus pais, então está alugada. É minha e da minha irmã. Então meu pensamento era esse, conforme o que eles falarem que for a mensalidade, eu pego o dinheiro de lá e eu pago, eu já ia com esse pensamento. Chegando lá, ela ganhou 60 por cento. A mulher falou pra mim “Vai...?” “Não, ela vai fazer.” Porque meu pensamento era no dinheiro lá, que tinha certeza. E ela falou: “Se tiver uma pessoa aposentada, a entrada vai cair mais, a matrícula.” Eu falei “Agora a gente vai quebrar o pau lá em casa que o pai vai ter que vir.” Eu vim, falei pra ele, “Mas eu não tenho...” “Eu vou pagar. Ela tem o dinheiro da poupança dela, nós vamos passar agora no banco e vamos tirar...” A matrícula era R$150. ”Nós vamos tirar e pode deixar que o restante eu que vou...” Nós fomos, tiramos, e como ele era aposentado, caiu para R$130. Eu falei “Sobrou já R$20.” E ela fez, foi um ano e pouco, fez tudo. Só que depois que ela se formou, que foi pra lá ele... Todo mundo falava: “O Zé tem um orgulho da filha.” Eu falei: “É bom, né, agora que já tá tudo ajeitadinho, ter orgulho. Mas na hora de ajudar, nunca tem.” Eu passei por uma psicóloga agora, que a Ana Paula ia viajar e ficou preocupada. E ela falou pra mim “Os homens são assim, mesmo.” [risos] “Todo mundo que eu converso, e os homens são desse jeito.” Quando eu me aposentei, falei pra ele: “Graças a Deus não vou mais precisar do teu dinheiro.” Ele falou: “É, fica cuspindo pra cima e vai cair na cara.” “Não, já caiu na minha cara há muito tempo. Quanto tempo que eu fico pedindo pra você...” “Ah, tem dois reais, você quer?” ele falava, “Quanto que é?” Uma vez eu falei pra ela: “Mas você não devia ter feito isso.” Eu sou diabética e tenho pressão alta, e eu pego lá na farmácia popular lá no centro de Santo André. Então eu guardei o dinheiro e meu pensamento era esse: “Eu vou a pé e volto de ônibus”. Naquele solzão. Guardei três reais, e à noite ela falou: “Mãe, você tem dinheiro pra eu comer pastel? Eu marquei com a Leila, a gente vai pra feira comer pastel.” “Quanto que é?” “Três reais.” Eu falei: “Toma.” Fui e voltei a pé, morrendo, de Santo André. Eu falei: “Engraçado, você falou que não tinha dinheiro.” Ele nunca tinha dinheiro. Agora, não. Depois que eu me aposentei viajo bastante, passeio bastante... Quando eu chegava, ele falava assim pra mim: “Vai pra onde?” Eu falava “Tal dia tô indo pra não sei aonde.” Só que eu fazia esses bate-e-volta pra ir, porque nós tínhamos o cachorro, morreu faz dez dias, outra tristeza, o nosso xodó. Então eu ia. Então eu ia. A mulher mesmo falava: “Gente, tô fazendo pra tal lugar, quem vai?” Eu falava: “Pode embarcar a minha, tô indo.” Agora eu vou voltar ano que vem, se Deus quiser. Se Deus quiser eu volto, tô vacinada, tá todo mundo vacinado... Apesar que antes de a Ana Paula viajar, eu tinha ido duas vezes pra Santo... Santo Antônio do Pinhal, um negócio assim, fui pra Itu... Andei, ainda, um pouquinho. Mas eu ia parar por causa do cachorro, que o cachorro estava há 15 anos com nós. Faz dez dias que ele morreu... Meu companheiro.
P/2 - A gente se solidariza…
R – Nossa, aquilo era tudo pra mim. Ainda a Ana Paula falava assim: “Ô, mãe, você não vai levar o –faz chamada de vídeo todo dia- vou falar um negócio, a mãe não vai ficar com raiva?” “O que é?” “Você sente mais falta do Tandy ou do pai?” “Do Tanga.” [risos] E o tanto que me passava nervoso, rasgava as coisas, deixou o sofá aí rasgado...[risos] Eu falei: “Ele tinha muito amor. Teu pai não parava em casa.” Ele arrumou um coiso pra ir ajudar um amigo na feira, saía de madrugada e ia, quando voltava pra casa eram cinco, sete horas da noite. Quer dizer, que eu nem convivia nada com ele. Agora, o cachorro, não. Era 24 horas do dia junto com ele. Eu falei: “Não, filha, não tem nada, não.” Ela falou : Não, é porque eu também sinto mais falta do Tandy.” Porque o pai era tão ausente, né?” [risos]
P/1 - E como era o Tandy?
P/2 - Era isso o que eu ia perguntar, também fiquei curiosa.
R – Ele é a coisa mais linda, gente. Como eu conversava com ele... Deixa eu ver umas fotos. Aqui, o que tem é foto dele. Ela achou ele na rua, porque foi assim: nós tivemos cachorro, fazia dez anos que tinha falecido, e eu falei: “Eu não quero mais ter um sofrimento.” Um dia nós vínhamos da igreja, vimos um cachorro bonitinho, e eu falei: “Não olha pra ele.” [risos] E vi uma mulher e falei “É da senhora?” “Não, ele vem me acompanhando.” Eu falei: “Ana Paula, vamos correr, filha.” Ela falou: “Mãe, dá uma olhada.” O cachorro estava no meio das pernas dela quando nós chegamos no portão. Eu falei: “Não vai levar ele pra casa, não.” “Ah, mãe, mas não pode deixar assim, os donos abandonam os animais, os animais não abandonam o dono.” E ficou 15 anos. Quando nós pegamos, ele era assim, deixa eu ver se dá pra ver. Não dá pra ver que é claro, tá claro.
P/2 - Um pouquinho mais pra cá, por gentileza. Ai, gente…
R - É quando ele era pequenininho. Agora tem outra, o sem-vergonha. Eu fiz muito vídeo com ele. Minha vida ficava falando: “A mãe fica xingando o cachorro e fica dando risada da sem-vergonhice do cachorro.” [risos]
P/2 - Ó o olhinho…
R – Ele já tava cego... Eu saía e falava assim pra ele: “Ó, a tia tá indo, mas a tia logo tá aí, viu? A tia vem te ver.” Ele ficava na porta, esperando. A gente conversava muito, ele me entendia. [risos]
P/2 - Alguma experiência que te marcou com ele?
R – Ele era safado, sem-vergonha. [risos] E o dia em que ele pegou 50 reais dela e rasgou? Você não podia deixar nada em cima do sofá, ele picou o dinheiro dela. [risos] Eu falei pra ela: “Não vai brigar com ele, você que tá errada." [risos] É, aqui em casa tem os puxadores que ele também roeu. O que mais tem aqui é foto dele.
P/2 - Muito bacana. Eu acho que a gente pode ir se encaminhando para o fim. Eu tenho uma pergunta... Deixa eu ver.
R – As bagunças que ele fazia. Os panos dele, tudo jogado. Safado, sem-vergonha. Muito lindo.
P/2 - A gente tem uma pergunta: Quais são os seus sonhos para o futuro…
R – Ai, agora não tenho mais sonho não. Agora não tenho mais sonho não.
P/2 - Alguma vontade, algum anseio?...
R – Quero ver minha filha realizar os sonhos dela, que ela tá fazendo esse mestrado, falou que depois quer fazer doutorado, também. Agora, pra mim, não tem mais nada. Só ver o sucesso dela, tem o namorado dela, o Fernando, tá aqui fazendo companhia pra mim. Que eles sejam felizes, que eles vivam bem, é isso o que eu quero.
P/2 - Muitas viagens, né? Bom. Quer perguntar alguma coisa, Fê?
P/1 - Ah, eu queria fazer uma pergunta. Eu percebi que ao longo da sua fala, Lucia, falou bastante que as coisas mudaram, que a sua filha diz que não é mais bem assim, ou que aquilo não se trata mais daquela forma... Queria ouvir de você o que você acha que a tua filha te ensinou, tem te ensinado. Percebi que a relação de vocês é muito intensa, e eu fiquei muito emocionada ouvindo, porque eu me identifiquei. Achei muito bonito, muito linda a história.
P/2 - Achei, também. Não tem como só dizer “aham”, né? “Okay”. A gente se compactua, mesmo.
P/1 - E o que a sua filha aprendeu com você, ela pode talvez em algum outro momento nos contar, mas o que você aprendeu com ela?
R – Aprendi a mexer no computador... Quer dizer, notebook, não, quer dizer... Em celular, ela me ensinou. Que nem, meu marido tinha mania de falar que eu queria dar uma de mocinha, porque ele não chegava nem perto de computador. Eu falava pra ele: “Não é assim, o tempo tá mudando e a gente tem que ir acompanhando.” Eu não sei mexer bem, mas... “É, você é novinha?” “Sou novinha, se depender disso, de eu mexer com negócio eletrônico, eu sou novinha. Eu tô aprendendo.” Então, e muitas coisas que eu falo pra ela, ela fala assim pra mim: “Ó, mãe, não é assim. Agora...” Que nem, esse negócio de ser preto, moreno, ela falou que não é assim, que é negro ou... Aí eu falo: “Não, mas no meu documento tá "pardo". Foi a última vez que eu falei. [risos] Eu falei porque mesmo assim você vai nos lugares e perguntam se é moreno, pardo, preto... Eu falo: “O documento tá pardo, naquele tempo era pardo. E algumas coisas que eu falo pra ela, ela fala: “Nossa, mãe, isso daí, pra mim, é novo.” Eu falando que ela fez um arranhador, um amigo dela que ela trabalhou no Museu da Arte Sacra, e o amigo dela lá tem gato e fez um arranhador pra gato. Ela falou assim: “Para o Tandy não me estragar o sofá, eu vou fazer um.” Mas ele nunca gostou. Eu pus uma capa e tudo, mas quando ele via ele ia para o outro lado e ia raspar o sofá, mesmo. Minha sobrinha tem um gato, e depois que o Tandy morreu, eu falei: “Dá pra ele”. Precisa ver como a gata gosta, a gata dorme em cima. Aí eu falei assim pra ela: “Ana, você atirou no que viu e acertou no que não viu.” “Mas mãe, esse ditado é novo.” “É mais velho que...[risos] Você fez pro Tandy e pro gato tá servindo, pra gatinha tá servindo.” E muitas coisas ela me ensina, ela fala as coisas pra mim, eu pergunto pra ela... Ela tá lá pro Canadá, ela falou: “Vou ensinar você falar oi pra Gil, eu falei: “Não, ensina ela a falar oi que é mais fácil” [risos] Pra eu conversar com a mulher lá. Então, é desse jeito, assim. A gente compartilha muita coisa. Nossa, nós choramos juntas, ela fica preocupada comigo, ela tá lá, falou pra mim que tá pra voltar só em abril, que ela tem que vir aqui pra fazer pesquisa, e vai voltar pra lá em janeiro de 2023, pra defender a tese dela lá. Agora ela falou que quer vir em dezembro pra me ver. “Filha, mas é muito longe...” “Não, mãe, mas eu quero ficar pelo menos perto...” Eu falei: “Nós não temos Natal esse ano. Não tem nada” “Nós só vamos ficar junto.” Então, é assim.
P/2 - Mas muito bonita essa relação de vocês. Muito bonita, parabéns. Você tem ela e ela tem você.
R – É. Minha mãe sempre falava pra mim... Quando eu perdi a Jéssica, minha mãe sempre falava pra mim: “Não fica revoltada com Deus.” Porque naquela semana que eu perdi, aqui em Santo André eles encontraram uma criança na caçamba do lixo. Eu peguei e falei assim pra Deus: “O Senhor sabia que ela ia jogar fora, e eu queria e o Senhor tirou.” E minha mãe falou: “Não fala assim, vai ver que ele fez o melhor pra você, vai saber se essa criança não vinha com problema, alguma coisa, depois ele vai te compensar.” E compensou mesmo, viu? Porque ele me deu uma benção na minha vida. Nossa, eu falo que valeu a pena, tudo o que eu passei por ela, que não é fácil você ficar - que eu sempre gostei de bater perna - você ficar deitada. Eu falava: “Ai, que bom, vou ficar jogando videogame, vou ficar vendo TV... Que nada, minha filha, nessa hora... [risos] Falaram: “Ih, isso daí vai ser mimada” Quando ela nasceu, eu estava 15 anos casada, falei: “Não vai ser assim, não. Não é porque demorou tanto que...” E era assim, eu e ele combinamos uma coisa: quando falar não, é não. Não adianta eu falar não, e você falar sim, nós combinamos isso. Uma vez, eu ia na minha mãe [risos] - eu ia pra lá todo dia, porque minha mãe era viúva - e vinha o cara vendendo algodão-doce naqueles negócios, aí ela pegou e falou assim pra mim: “Mãe, você tem dinheiro?” Ela sempre perguntava: “A mãe tem dinheiro?”, “A mãe tem dinheiro?” e eu “A mãe não tem.” Porque eu tinha na minha cabeça assim, que não é tudo que vê que vai dar. Você pode dar outro dia, mas... [risos] Aí cheguei em casa que fui tomar banho, tinha aquele monte de moeda, e ela falou: “A mãe tinha dinheiro...” [risos] “A mãe tinha dinheiro e não quis comprar.” Eu falei: “Filha, é assim: não é tudo que você vê que vai comprar. Um dia a gente compra, outro dia já não dá pra comprar...” E ela sempre foi desse jeito, ela sempre perguntou, nunca exigiu nada. Às vezes eu falava pro meu marido: “Compra pra Ana.” “Ah, ela disse que não quer...” “Ela quer. Ela não pede, mas ela quer.” Então quando ela vinha aqui pra casa tinha as coisas tudo aqui. “Ah, mãe, que bom!” Eu falava pra ele: “Tá vendo?” A mesma coisa eu falo pro Fernando. O Fernando fala “Ah, a gente fala as coisas pra ela...” Eu falei “Ela não vai te pedir. Ela não pede. Você compra, você quer dar, você dá. Mas não coisa, não, porque ela não pede.” Ela é desse jeito. Eu falava pra ela que meu sonho , até hoje eu gosto de pão doce, eu não posso comer por causa da diabetes, mas eu como. Eu sempre falava pra minha mãe que, quando eu crescesse – infelizmente não cresci, cresci dos lados [risos] - que eu ia trabalhar em uma padaria só para comer pão doce [risos], e até hoje eu sou doida por pão doce. [risos] Nossa, ela dá risada, ela fala: “Ah, mãe, só você.” Eu falei: “Graças a Deus, hoje, vocês têm.” Não vou dizer que a gente é rico, mas a gente tem, Graças a Deus. Eu vejo essa turma aí morrendo de fome... Ah, gente, é triste. A gente, pelo menos, tem o que comer, tenho a minha casa aqui, graças a Deus, foi com muita luta, nós lutamos bastante pra ter aqui. Nós ficamos um ano sem sair de casa, que todo final de semana a gente gostava de ir em pizzaria e coisa. E eu lavava roupa segunda-feira pra ele ir trabalhar. Essa casa aqui é um sobrado, quase perto de uma ladeira, então quando chegavam os caminhões de areia e de pedra, eu puxava tudo pra dentro. Porque ele chegava à noite, chegava cansado, e se chovesse ia descer tudo, então eu puxava. [risos] Aqui é um monte de gente Zé-povinho, eu começava a puxar e vinha um monte de homem: “Nossa, que coragem”, em vez de falar: “Quer que eu dê uma mão?” [risos] Eu puxava a areia todinha, puxava as pedras... Eu falei pra Ana que eu vejo a turma agora pedindo casa pro governo, eu falei pra Ana Paula... Apesar de que hoje tá mais difícil. Eu falei pra ela: “No nosso tempo, não. Era nós.” Quando nós mudamos lá pra cima, que eu vou vender as férias dele pra pôr luz, que nós viemos sem luz e sem água, a vizinha que dava, pegava água do poço e tudo. Desde aquele tempo já era duro, hoje parece que tá pior.
P/2 - Muitas transformações, né?
R - É…
P/2 - Mas eu adorei a sua história. Eu gostaria de perguntar se você quer acrescentar alguma coisa…
R – Posso te falar. Minha colega que viaja comigo, a Ivete, nós damos bastante risada, aí eu, [risos] começo a falar as coisas e ela: “Lucia, você devia escrever um livro, porque tua vida...” [risos] Ainda ela estava no dia em que nós fomos visitar o Tandy na clínica, ela falou: “Nossa, eu tinha que estar nessas horas com você.” No dia em que precisou sacrificar ele. Ela falou: “Você já passou por tantas coisas e vai passar por essa, também.” Se Deus quiser a gente…
P/2 - Era um parceiro. Eu acho que a gente pode ir para nossa segunda etapa, e a gente gostaria muito de ver as coisinhas que você separou para gente, para mostrar. Você mostrou algumas, a mantinha, a fotinho... Mas a gente vai conversando sobre cada item individualmente, a gente sempre anota porque isso faz parte do nosso acervo, também. É computado junto com a entrevista, essas imagens, e depois a gente pode solicitar algumas fotos desses itens. Então a gente vai conversando sobre cada um, o momento de cada um, o porquê de você fazer a escolha desses objetos, dessas fotografias... pode ser? Se você quiser tomar uma água, também…
R – Eu não sou muito de água não, viu? Os médicos brigam comigo por causa disso, que eu não sou muito de beber água. Fiz caminhada durante 13 anos, e a gente fazia caminhada interparque, de um parque a outro, longe, e o professor me enchia o saco, vinha com o copinho de água: “Lu, não pode, Lu.” Eu nunca fui de água. [risos]
P/2 - Tô tomando a minha aqui, então, em homenagem a você.
R - [risos] Tá bom.
P/1 - A gente podia voltar para o casaquinho da Ana, que você tinha mostrado pra gente.
R – Minha irmã que fez, isso aqui é a blusinha dela.
P/1 - Olha que bonitinha... É cor-de-rosa, o casaquinho?
R - É rosa, é. Essa aqui é a capinha.
P/2 - Uau, foi feita a mão?
R - É tricô.
P/2 - Uau, tricô.
R – Minha irmã que fez, minha irmã é madrinha dela, fez o enxoval quando ela saiu do hospital, fez a manta, fez tudo. Deve estar tudo guardado lá, que eu guardo…
P/2 - Há quanto tempo faz que ela fez a mantinha?
R – 28, 28 anos.
P/1 - A Ana nasceu que dia?
R – Dia três de maio de 1993, mesmo dia do pai.
P/1 - Que legal!
R - Então.
P/1 - Melhor presente que esse, não tem, né?
R – A diferença é de 30 minutos, eles dois.
P/1 - Olha só.
P/2 - Quanta coincidência nessa vida.
R – Minha mãe falou: “Deus já estava com tudo planejado.”
P/2 - É um presente de aniversário, mais presente que esse não há.
R- Não. E o nome dela também foi um sonho que ele teve, só que ele não me falou. Quando eu perdi a Jéssica, eu achava que não ia ter mais, [toque de telefone]. Não vou atender, não.
P/1 - Pode ficar à vontade.
R - Não, é só pra bater o telefone na cara. Seu eu atendo, eles batem na nossa cara. [risos] Então... até esqueci o que eu ia... Então, ele pegou e falou assim pra mim, quando o médico falou que eu estava grávida: “Vou te falar um negócio, se for menina, vai chamar Ana Paula.” Eu falei “Por que?”. “Eu tive um sonho e tinha uma menina correndo, perguntaram pra mim se era minha filha e eu respondi que era, que era a Ana Paula.” Aí quando o médico falou, ele falou: “Não te falei nada porque você já tava daquele jeito, eu não ia falar: “Ah, eu tive um sonho que a gente tinha uma filha".” Ainda quando foi na hora do parto, foi cesárea, o anestesista perguntou se já tinha um nome, e eu falei que se fosse menina, ia ser Ana Paula, e menino eu queria por Diego. “Mas é por causa do Maradona?” Eu falei: “Não vou por Diego, vou por Igor". [risos] Ele falou: “A Ana Paula venceu, é uma menina.” O médico falou “Com direito a furinho no queixo, quem tem?” Eu falei “Eu.”
P/1 - Ah, que legal! E aquela foto que você nos mostrou? Lá no hospital.
R – Foi o dia que ela nasceu. Ela nasceu de madrugada, o rapaz foi lá e tirou. Tá vendo? Naquele tempo não tinha negócio, ele tirou dela lá no berçário. Agora, hoje em dia, a turma carrega, a turma rouba…
P/1 - Essa foto, quem tirou foi o seu marido?
R - Não, o fotógrafo lá do hospital.
P/1 - Ah, olha só.
R – Eles que tiraram.
P/1 - Que foto bonita.
P/2 - Olha esse neném... Toda espertona, já.
R – É. E essa foi quando eu cheguei do hospital com ela, nós três.
P/1 - Isso. Ah, que lindos, que legal.
P/2 - Uma família bonita. Isso no mesmo dia? Não, né?
R – Foi na terça-feira, tive ela na segunda, na terça eu tive alta, chegamos em casa.
P/2 - Foi no dia quatro, né?
R – Oi?
P/2 - Possivelmente foi no dia quatro, né?
R - É, foi no dia quatro. Foi, que ele saiu pra registrar ela e eu marquei o nome dela, falei... [risos] Ele morria de medo, ele tinha 1,80, era grandão, mas morria de medo da baixinha. Eu falei pra ele: “Ó, aqui tá o nome dela, direitinho. Não me venha com nome errado pra cá”. [risos] “Vê até no cartório se eles não vão por nome errado.” Ele levou, levou tudo, até minha mãe falou que era pra ver se eles colocavam, porque meu registro tá o nome dela "Maria da Conceição Oliveira". Porque foi assim, eles casaram um mês depois que eu nasci, então fui registrada como Oliveira, e ela queria que pusesse Santana. Mas lá no cartório falaram que não, que tinha que ser como estava no meu registro. Eu falei: “Por que vocês não esperaram mais um pouco pra poder me registrar?” Naquele tempo não, nascia e já registrava. Diferença de um mês e eles registraram.
P/2 - Muito legal. Lucinha, deixa eu fazer uma pergunta, qual o nome do seu marido?
R - Edvard. [risos]
P/1 - Edvard?
R - É, Edvard. O "d" é mudo.
P/1 - Ah, tá.
R – Edvard José Bertho. Mas eu vim descobrir esse nome dele quando nós fomos marcar pra casar. [risos] Aqui a turma só conhecia ele por "Zelão", "Zé"... Aí quando eu vi aquilo eu falei: “Mas esse é o teu nome?” Ele falou: “Claro que é meu nome.” Quando ele nasceu, a mãe dele tava com quase 50 anos, e ele nasceu com cinco quilos, lá em Paraguaçu Paulista, e a mãe dele achava que ia morrer, aí pediu para as irmãs, tinha as irmãs tudo já mais velha, aí elas procuraram no jornal, viram esse nome, e puseram esse nome nele. [risos] A irmã dele, a caçula, quando ele nasceu, estava com 14 anos. Você imagina os outros mais velhos... Esse irmão dele que morreu agora, faz quatro meses, morreu com 96 anos. Meu marido morreu com 74.
P/2 - Uma família longa vida, né? Muito bacana.
P/1 - Tem mais algum objeto?
R – Essa aqui é meu pai e minha mãe com ela, quando ela fez três anos.
P/2 - Essa roupinha…
R – Eu ainda tenho essa sainha guardada.
P/2 - Que linda. Então em 1996, isso?
R - É. Eu tenho foto minha, de quando eu tinha três meses, ó. Nem dá pra ver, no Museu do Ipiranga, eu tô no colo da minha mãe.
P/2 - Uau, no Museu do Ipiranga! Sensacional.
P/1 - Que legal!
R – 1953. [risos]
P/2 - Não, e é interessante essa foto, porque teve muitas reformas, inclusive essa de 2022, da abertura. Essa foto, pra gente, é o máximo. De 1953 pra agora.
R – De 53 pra agora, né? Deixa eu ver mais.
P/2 - Uau, incrível.
R – Tem aqui meus pais e minha irmã, tiravam fotos m fotógrafo, iam lá para aquelas... Como é que é? Nem sei como fala.
P/2 - Estúdios, né?
R - É, estúdios.
P/2 - Lucinha, como é o nome da sua irmã?
R – Maria da Glória. Tem a da primeira comunhão... Oito anos, aqui.
P/1 - Ah, que gracinha.
P/2 - Que legal.
R - Você acredita que eu ainda tenho a vela da primeira comunhão guardada?
P/1 - Acredito, [risos] vindo de você eu acredito.
R – O Fernando que fala: “Nossa...” Eu falo: “Não dá fim nas minhas coisas, não. Deixa minhas coisas aí. Aqui é tudo uma relíquia.” Aqui é quando eu tinha o meu primeiro ano, as fotos que a gente tirava, ó, na escola.
P/1 - Que linda.
R – Minha irmã dá risada, que ela tem uma, ela fala que parece que amassaram a minha cabeça, [risos] para tirar foto. Mostra pros filhos, eles ficam tudo rindo.
P/2 - Em que ano?
R – 1960.
P/1 - Que legal.
R – E essa aqui outra é de 1961.
P/1 - Até parece uma Marlucia que adorava estudar aí, hein? Segurando o livro…
R – Aqui eu repeti de ano, o segundo ano, e a escola era perto de casa. Eu dei uma volta pra chegar em casa... E nada de chegar. Todo mundo chegou em casa, e a Marlucia, nada. Minha mãe já tava no portão, a molecada do cortiço já tinha tudo chegado. “Repetiu, né?” “Como a senhora sabe?” [risos] “Se todo mundo chegou e você não...” Era eu dando volta pra poder chegar em casa.
P/2 - Pensando no que ia fazer e no que ia falar, né?
R – Meu pai trabalhava e eles pagavam o salário-família, e a Gazeta começou a atrasar. Ele falou: “Não caiu uma bolsa de estudo pra ela?” Iam me pôr em um negócio de madre, eu falei pra minha mãe: “Não, pelo amor de Deus.” porque a madre bate, é outro trabalho. “Você vai lá para o Barão do Rio Branco, é longe.” “Não, eu vou é pra lá.” [risos] Estudei três anos lá, foi quando eu terminei a quarta série. Mas falei: “No colégio das freiras eu não vou, não, que as freiras batem.” [risos]
P/2 - Lucinha do céu.
R – E esse aqui foi o meu casamento, vamos ver se dá pra ver.
P/1 - Ah, olha só.
P/2 - Uau. Você disse sobre a diferença de tamanho, agora notei. Não dava pra ver você falando, mas agora…
P/1 - Lucinha mesmo.
P/2 - Lucinha, super Lucinha.
R – Ai, meu pai…
P/1 - Quem são essas pessoas ao lado?
R - Meu pai e minha mãe.
P/1 - Ah, olha só. Que foto bonita.
P/2 - Uma foto muito bonita, né?
R - É de 1978, dia primeiro de abril.
P/2 - Comentando aqui na entrevista, os bolos de antigamente eram enormes…
R – Mas você sabe que os aniversários da Ana Paula, os bolos não tinham menos que dez quilos? Porque aqui em casa é assim, até hoje, vem uns amigos dela, participam e ainda levam, saem de marmitinha, eu faço questão. Eu vou ver uma foto com um bolo dela, vou mostrar pra vocês.
P/2 - O que? A gente aguarda.
P/1 - Os nomes dos pais da Marlucia são Maria Conceição e Adolfo, né?
P/2 - Isso.
R – Deixa eu ver se eu acho. Tem eu e a minha filhotinha, aqui.
P/2 - A foto do casamento é de 1978.
R – Aqui, ó. Aqui é minha irmã e meu cunhado, os padrinhos dela, e a minha mãe.
P/2 - Uau, que foto legal.
R – Olha o tamanho do bolo dela.
P/2 - Nossa! Que legal, que bacana. Saía mesmo com a marmitinha, com a marmitona.
R – E até hoje, viu? Os amigos dela vêm, vieram aqui se despedir dela, que eu faço um cuscuz... Nossa, que eles gostam. Quando eles vêm eles falam: “Fala pra tua mãe se tem cuscuz.” Aí eu faço pra eles.
P/2 - Muito bom. Tem mais alguma imagem, Marlucia? Que você queira compartilhar?
R – Pode ser meu disco do Roberto Carlos?
P/2 - Claro.
P/1 - Você falou dele no começo.
R – Eu tenho uma coleção dele, parei de comprar quando morreu a mulher dele, a Maria Rita, porque ele começou com umas músicas muito tristes, aí eu falei “Ah, não.” Mas eu tenho uns LPs, comecei a colecionar dele com 13 anos.
P/2 - Uau, é fã dele desde esse tempo?
R – Desde esse tempo. Tenho os discos dele todinhos. [risos]
P/2 - Muito legal.
P/1 - Você gosta mais da fase Jovem Guarda, mais animada, então.
R - Não, mas sabe que até esses outros que ele fez, da Maria Rita, que ele fez muito... Até esse que ele fez pra ela eu... Amor Eterno, Amor Perfeito, um negócio assim, eu tenho, eu comprei, DVD. Mas depois eu falei “Ah, não.” Também depois ele não gravou, agora que ele tá gravando mais.
P/2 - Já foi num show dele, Lucinha?
R - Já. Ganhei lá no campo do Palmeiras.
P/2 - Uau, e como foi esse momento?
R – Nossa... gente... [risos] Eu ganhei, viu? Eu escrevi pra uma revista e ganhei os dois ingressos.
P/2 - Foi sorteio?
R – Foi sorteio.
P/2 - Uau, conta isso pra gente.
R – Parece que era Contigo, aí tinha, né?: "Você quer assistir ao show do Roberto Carlos?" Eu mandei, mas nem lembrava. Um dia o carteiro chega com os convites. Só assim eu vi o Roberto Carlos.
P/1 - Conseguiu pegar uma rosa dele? [risos]
R - [risos] Não, naquele tempo ele não dava rosa. Foi 1900 e trá-lá-lá. [risos] Nossa, tem o quê? Tem é anos, não pensava nem em ter a Ana Paula... Quer dizer, pensar, eu pensava, só que não tinha filho. [risos]
P/1 - Então já faz mais de 28 anos, que legal.
R – Vixe, bem mais. Pai e ela, ó.
P/2 - Olha... E o bolo, né? O bolão.
R - [risos]
P/1 - Essa foto é de qual aniversário?
R – Esse aqui ela tava com... Seis anos? Deixa eu ver. Seis anos. 1999, né? Tenho agora desse último aniversário dela, acho que eu tenho, mas acho que tá no celular. Porque nós fizemos em 2018, depois em 2019, ainda falei pra ela “Você não tirou nem uma foto”. Porque tirava com o pai dela. Em 2020 já teve o negócio da pandemia, aí já não teve mais. Deixa eu ver se eu…
P/2 - A gente aguarda, sem problema.
P/1 - Marlucia, você tem WhatsApp?
R – Tenho.
P/1 - Ah, depois, se você puder tirar uma foto da foto, e mande pra gente…
R – Ah, eu te mando. Mando tudo até, se você quiser. [risos] Aqui ela tá no Canadá.
P/2 - Uau, que demais.
P/1 - Ela tá bem encapuzada, aí.
P/2 - Bem frio, né?
R - Lá tá seis graus.
P/2 - Ui, credo.
R – Entrou o inverno agora. Eu tenho o zap, se você quiser, eu mando as fotos.
P/1 - O teu número foi aquele que você passou pra gente, né? Deixa eu confirmar com você.
R - É, sim senhora.
P/1 - A gente manda um oi pra você então.
R - Vocês vão ver foto pra caramba. [risos]
P/2 - A gente pede essas imagens, porque quando a gente tem a questão física, a gente faz a digitalização e coloca junto com o seu arquivo, mas se você quiser fotografar pra gente, a gente descreve o ano, tudo bonitinho, uma pequena descrição a partir do que você contou pra gente, e a gente anexa junto com a sua entrevista. Então, fica disponível no acervo a sua entrevista junto com os seus objetos e as suas fotografias, tá bom? E quando você puder tirar foto de tudo o que você mostrou pra gente, tanto do álbum do Roberto Carlos, da mantinha, a foto das fotos, fotos dos aniversários que você compartilhou com a gente, a foto das formaturas, dos primários, a gente fica bem agradecida, porque a gente já anotou tudinho, é somente as fotografias.
P/1 - Agora a gente tem o prazo de alguns meses pro pessoal do museu digitalizar essa conversa, eles vão transcrever tudo, colocar no site, e assim que estiver tudo certinho e for lançado, colocado no ar, a gente avisa. Aí você pode mandar aí pro pessoal que você conhece, para aquela sua amiga que disse que você tem que escrever um livro...
R – Eu vou até falar pra ela “Olha lá, Ivete. Consegui, ó.” [risos]
P/2 - Tá dando entrevista, muito chique. Mas sim, você pode realmente, quando estiver tudo no site, a gente sempre envia um e-mail notificando que subiu pro site, manda o link também. Provavelmente, a Ana te avisa, que a gente vai entrar em comunicação com ela, o e-mail atrelado. Então a partir disso a gente vai avisar ela quando subir, ela te avisa e você compartilha também.
R – Ela é voluntária aí, né?
P/2 - Sim, sim, sim. [risos] É voluntária, assim como nós, né, Fê?
P/1 - Sim. Ah, mas adorei, adorei seu sorriso, a sua animação…
P/2 - Muitas histórias…
P/1 - Muitas histórias... Foi um prazer passar a tarde com você. Obrigada por ter remarcado a vacina, também. A gente sabe que é importante tomar, mas saiba que foi muito bom pra gente.
P/2 - Adorei as travessuras, também. [risos] Adorei os contos, gostei muito, mesmo. E a gente fica muito feliz de estar te entrevistando, adorei suas histórias e os seus compartilhamentos... Foi muito intenso, né? Teve muitas questões emocionantes, a gente torce para que você supere tudo da melhor forma possível, e a gente agradece se abrir pra gente nesse momento.
R - Também agradeço vocês.
P/1 - Você é incrível.
P/2 - Continue com esse sorrisão maravilhoso.
R - É que vocês ainda não viram nós na excursão. [risos]
P/2 - Essas experiências devem ser fenomenais, a Lucinha nas viagens.
P/1 - É, o que eu queria ver era o cuscuz. [risos]
P/2 - Exato. Se você tirou uma foto do cuscuz, manda uma receita pra gente seguir ali…
R – Vou mandar uma receita pra vocês.
P/2 - Boa. Manda a receita pra gente, que a gente também coloca no arquivo, pode ser?
P/1 - E já que cuscuz faz tanto sucesso aí, com o pessoal…
P/2 - Exato, Fê, eu acho que serve para o acervo.
R – Nos aniversários todos da Ana Paula tinha que ter o cuscuz, a turma toda perguntava.
P/2 - Vamos botar o cuscuz no acervo, como "Acervo da Lucinha", "uma receita da Lucinha". [risos] Tudo bem?
R - [risos] Tudo bem.
P/2 - A gente encerra por aqui. Lucinha, muito obrigada – a gente já é íntima, já chamo de Lucinha – muito obrigada, uma boa quinta-feira, e boa vacinação amanhã, vai dar tudo certo nesse período.
R – Obrigada, pra vocês também. Gostei.
P/2 - Obrigada.
P/1 - Muito obrigada. Mandamos o WhatsApp pra você então, pra gente dar continuidade ao acervo. Tá bom? Boa tarde, beijão. Vou encerrar aqui, acho que é só isso.
R - Tá bom. [risos]
P/1 - Deixa eu fechar, aqui…
— FIM DA ENTREVISTA —
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