Projeto Diversidade e Inclusão no Mercado Financeiro Banco Pan
Entrevista de Carolina Danieletto
Entrevistada por Bruna Oliveira
São Paulo, 10/08/2022
Entrevista n.º PCSH_HV1224
Realizada por Museu da Pessoa
Transcrita por Selma Paiva
Revisada por Bruna Ghirardello de Oliveira
P/1 – Carol, pra começar eu gostaria que você dissesse o seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R – Carolina Ferraz Danieletto, 16 de janeiro de 1992, São Paulo, capital.
P/1 – E qual o nome dos seus pais?
R – Sheila Ferraz dos Santos e Jorge Luiz Bertoncello Danieletto.
P/1 – E como você os descreveria?
R – A minha mãe é uma mulher muito forte, ela cuidou de mim com a ajuda da minha tia-avó, com quem a gente morou, todo mundo junto, durante toda a minha infância. E a minha mãe nasceu num lugar de muita necessidade. Então, nós viemos de uma família com uma classe social baixa e tudo que a gente conquistou hoje foi fruto de muito trabalho, de muita coisa que minha mãe teve que priorizar, abrir mão e se dedicar muito, pra que hoje a gente tivesse uma vida com mais amor, conforto, para que a gente tivesse mais estabilidade, um tempo maior aproveitar a família, pra poder estar juntas, nem que seja num almoço durante a semana, ou em um café da tarde no final de semana, mas tudo que ela conquistou foi com muita força dela.
P/1 – E com o que ela trabalhava?
R – Mamacita? A minha mãe trabalhava na Rede Globo, ela era radialista lá, trabalhava na parte de design.
P/1 – E você conhece a história dos seus avós? Você chegou a conhecê-los?
R – Sim. Pouco, mas sim. A mãe da minha mãe, minha avó, morreu muito nova e de uma forma inesperada. Ela estava alcoolizada e caiu da janela da casa e chegando no hospital ela não aguentou a fratura e morreu. O meu avô é um homem muito humilde, ele mora em Poços de Caldas, ele não conseguiu ajudar tanto a minha mãe, justamente por não ter condições financeiras, ele hoje é entregador...
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Entrevista de Carolina Danieletto
Entrevistada por Bruna Oliveira
São Paulo, 10/08/2022
Entrevista n.º PCSH_HV1224
Realizada por Museu da Pessoa
Transcrita por Selma Paiva
Revisada por Bruna Ghirardello de Oliveira
P/1 – Carol, pra começar eu gostaria que você dissesse o seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R – Carolina Ferraz Danieletto, 16 de janeiro de 1992, São Paulo, capital.
P/1 – E qual o nome dos seus pais?
R – Sheila Ferraz dos Santos e Jorge Luiz Bertoncello Danieletto.
P/1 – E como você os descreveria?
R – A minha mãe é uma mulher muito forte, ela cuidou de mim com a ajuda da minha tia-avó, com quem a gente morou, todo mundo junto, durante toda a minha infância. E a minha mãe nasceu num lugar de muita necessidade. Então, nós viemos de uma família com uma classe social baixa e tudo que a gente conquistou hoje foi fruto de muito trabalho, de muita coisa que minha mãe teve que priorizar, abrir mão e se dedicar muito, pra que hoje a gente tivesse uma vida com mais amor, conforto, para que a gente tivesse mais estabilidade, um tempo maior aproveitar a família, pra poder estar juntas, nem que seja num almoço durante a semana, ou em um café da tarde no final de semana, mas tudo que ela conquistou foi com muita força dela.
P/1 – E com o que ela trabalhava?
R – Mamacita? A minha mãe trabalhava na Rede Globo, ela era radialista lá, trabalhava na parte de design.
P/1 – E você conhece a história dos seus avós? Você chegou a conhecê-los?
R – Sim. Pouco, mas sim. A mãe da minha mãe, minha avó, morreu muito nova e de uma forma inesperada. Ela estava alcoolizada e caiu da janela da casa e chegando no hospital ela não aguentou a fratura e morreu. O meu avô é um homem muito humilde, ele mora em Poços de Caldas, ele não conseguiu ajudar tanto a minha mãe, justamente por não ter condições financeiras, ele hoje é entregador de botijão de gás e vive com a sua esposa e suas duas filhas.
P/1 – E quando você era pequena, na sua infância, tem alguma data comemorativa, algum cheiro, ou alguma comida que remete a esse período, que você lembra, ou não é marcante?
R – Eu lembro dos Natais com a minha mãe. A gente, às vezes, não conseguia estar juntas durante a noite, na véspera do Natal, então a gente aproveitava os dias que não eram Natal, mas a casa estava toda decorada para o Natal. Então, a gente, todas as noites, ligava as luzinhas pisca-pisca na janela e a gente deitava juntas e ficava conversando, ou, às vezes, só abraçadas, dormindo no sofá, juntas, mas isso me marcou muito. E hoje o Natal tem um carinho. Eu vejo o Natal como uma data de muito amor.
P/1 – E tem algum familiar seu - tudo bem se não tiver também – que você tenha muito carinho, que seja muito próximo de você? Na infância, também.
R – Eu tenho os meus primos como um pilar muito afetivo, a gente se ajuda muito, somos em treze primos hoje (risos) e a gente tem um laço, um carinho muito forte, então a gente passava todas as tardes juntas, a gente conversa muito, se apoia muito. Quando alguém tem alguma dificuldade na família, alguma tensão, alguma coisa que a gente precisa de suporte, eu tenho os meus primos e eles têm a mim, como esse apoio familiar.
P/1 – E você tem alguma memória de algumas férias que você passou com eles, quando você era mais nova?
R – (risos) Nossa, é o que eu mais tenho, de memória. (risos) A minha avó mora no interior de São Paulo, em Bocaina e a gente sempre se encontrava nas férias de julho e nas de janeiro e ficávamos juntos todos os dias das férias e a gente brincava de fábrica de vinho, a gente pegava as uvas da árvore da nossa avó, colocava num balde e ficava pisando (risos) no balde, brincando. Aí tinha um primo que falava que estava coordenando, como se fosse nosso gerente, então essa era uma das brincadeiras que a gente tinha. A minha avó tinha uma loja chamada Ivete Modas e a gente brincava de vendedora, então ficava todo mundo ali, os primos, tem o vendedor, o cliente, a gente provava todas as roupas da loja da avó e pensa que a gente tinha, todos, dez anos. Eram umas roupas pra mulheres de sessenta, setenta, cinquenta anos pra cima, na verdade. Então, as roupas ficavam gigantes na gente, a gente usava, desfilava e era superdivertido. Além dos carnavais. Todo carnaval a gente estava sempre junto e usava fantasias. Às vezes, a gente usava fantasia igual, todo mundo ia de ula-ula, todo mundo bonitinho, a fileira das meninas todas com as mesmas roupinhas, só mudava a cor de alguns detalhes, a gente estava sempre inovando e brincando. A minha família é muito carnavalesca. Então, antigamente, na cidade, a gente tinha um bloco, onde saía todo mundo da família, desfilava no bloco (risos) e era superlegal. Inclusive, um dos temas do carnaval foi Cuba Livre. (risos)
P/1 – E você tem irmãos?
R – Tenho dois irmãos por parte de pai.
P/1 – E você sabe qual é a história do seu nome? Por que é Carolina? E a história do seu nascimento?
R – A minha mãe engravidou muito nova, aos dezenove anos de idade, do meu pai e eles eram namorados na época e minha mãe, quando descobriu que estava grávida, contou pra minha avó e pro meu avô, pros pais dela, sobre a gravidez e ela decidiu assumir a maternidade. Durante toda a gravidez a minha mãe me chamou de Gabriela. Gabriela, Gabriela, Gabriela, Gabriela. Então, ela passava a mão na barriga: “Gabriela”. (risos) Então, foi Gabriela durante nove meses da gestação. Em praticamente toda a gestação dela meu nome foi Gabriela. (risos) E minha avó por parte de pai também visitava bastante a minha mãe, ela estava muito ansiosa com a minha chegada, visto que eu sou filha do filho mais novo da minha avó, do caçula e quando eu nasci o meu pai apareceu no dia, lá no hospital e ele falou: “Poxa, já tem uma Gabriela na família. Não pode ser Carolina?” E minha mãe dopada, tinha acabado de parir, falou: “Pode. (risos) Vai ser Carolina” e assim eu me tornei Carolina. (risos)
P/1 – Carol, você lembra da casa onde você passou a sua infância? Como é que ela era?
R – Durante a minha infância eu mudei muito, então eu não cresci numa única casa. Eu cresci em várias casas, com muitas pessoas, ou só eu e minha mãe, ou eu com as minhas tias, sem a minha mãe. Então, eu falo que foi uma infância meio cigana. Então, no começo, quando eu nasci, morávamos eu, minha mãe, minha tia-avó, os filhos dela, todo mundo junto na casa, era uma casa pequena, humilde, porém com muito amor. Eu acho que o amor nunca faltou, graças a Deus, sempre esteve muito presente na minha família. Tanto da parte da mãe, quanto da parte do meu pai. E depois a gente morou no Centro de São Paulo, moramos na zona norte, na zona oeste, a gente morou em vários lugares. E eu já cheguei a morar sem a minha mãe também, morava só com a minha tia-avó, o marido dela e uma prima minha. Então, morávamos nós quatro num apartamento, não cabia a minha mãe, então a minha mãe morou com uma amiga dela nessa época. Como ela assumiu a maternidade, mesmo, então ela passou por todos os momentos. Foi muito difícil morar sem a minha mãe e, na época, ela tinha dois empregos, trabalhava na Rede Globo e no SBT, então eu não tinha muito tempo com ela, mas o tempo que a gente passava juntas era um tempo muito carinhoso, próximo, cheio de brincadeira. Então, ela se fazia presente, nesses momentos.
P/1 – E o que você mais gostava de brincar nessa época e você brincava com quem? Brincava sozinha, com amigos? Como é que era?
R – Nossa, eu brinquei de tanta coisa! (risos) Eu brincava sozinha, muitas vezes. Como eu me mudava muito, eu acabava tendo que sempre fazer amizades novas. Então, eu brincava com a minha vizinha, na rua, porque eu morei muito tempo em casa também. Pegava piolho, passava o piolho. (risos) Eu sempre tive muitos amigos, apesar de estar sempre mudando, eu sempre conseguia fazer novas amizades. Então, eu brincava muito de Barbie, de Polly também, que eu gostava muito. Brincava muito na rua, de futebol, de vôlei. Nossa! Com os meus primos. Videogame também. Adorava o jogo do Sonic, nossa! Joguei muito Sonic na vida. (risos)
P/1 – E o que você mais gostava de fazer, quando você era criança? Tinha uma atividade especial, um momento especial da sua infância? O que você gostava mais de fazer?
R – Quando a gente fala em infância, é até quantos anos?
P/1 – Até onde você considerar. (risos)
R – Nossa, eu gostava de tanta coisa! Eu gostava muito de cantar Eliana sozinha, no quarto. Então, eu fingia que eu era uma grande cantora, tinha uma imaginação muito fértil, então eu imaginava coisas, situações, eu ficava cantando. Não canto bem, (risos) mas eu adorava cantar e fingir que eu era uma grande cantora, uma grande estrela famosa. (risos)
P/1 – E quando você era mais nova, você tinha sonho de ter alguma profissão específica? Você tinha sonho de ser o que, quando você era pequena?
R – Eu queria ser veterinária, mas depois, com o passar dos anos, eu fui entendendo o que era essa profissão e eu falei: “Não quero mais. Lidar com morte de bichinhos não vai ser bom pra mim, não quero. (risos) Eu quero bichinhos vivos e fingir que eles não morrem, nunca”. (risos)
P/1 – Carol, na sua infância, nos primeiros anos da infância, onde que você estudou?
R – Eu estudei em escolas públicas. Uma vez só, se não me engano, eu estudei numa escola de freiras e eu queria ser uma freira. (risos) Eu achava muito legal. Imagina morar num lugar enorme, que parecia uma grande igreja e tinha um altar, ali, para os católicos. Eu achava aquilo incrível e a roupa que elas usavam, (risos) que é preta e eu adorava, enfim, queria ser freira. Inclusive, antes de eu querer ser veterinária, eu queria ser freira. Então, a primeira profissão é isso: eu gostaria de ser freira. (risos)
P/1 – E tinha alguma professora, professor, ou alguma matéria específica que você mais gostava nessa época? Como que era?
R – Eu gostava muito de História. Acho que História era minha matéria favorita.
P/1 – Tem alguma história marcante das escolas que você passou, que você queira contar? Pode ser qualquer história, que tenha sido marcante. Ou, se não marcou também, se a escola não foi um período que te marcou, também, tudo bem.
R – Não, tem bastante. Estou tentando pensar qual é boa. Ai, gente, é muita coisa! (risos) É difícil selecionar uma só. (risos) Tem quando eu era adolescente, a gente ouvia muito Legião Urbana e o nosso desafio era aprender a cantar a música inteira sem ler, era Faroeste Caboclo. Então, a gente ficava horas e horas e todo mundo passando, cantando a música inteira e a gente ficava lá de fiscal: “Errou essa parte”. Volta de novo e começa a música do zero. Então, pensa que o nosso intervalo era 100% Faroeste Caboclo. (risos)
P/1 – E o que você fazia pra se divertir? Na passagem da infância pra adolescência. E o que mudou, também.
R – Eu acho que o que mais mudou pra mim da passagem da infância para adolescência foi começar a entender... como que eu posso falar isso? Espera aí, que eu estou pensando. Não é fácil, não. Difícil as perguntas. O que mais mudou pra mim na passagem da infância para adolescência foi a questão do gostar. Então, se antes a gente tinha os namoradinhos de escola, andar de mãozinha dada, a gente começou a evoluir isso . Então, começou a falar de beijar na boca. E foi um choque, porque eu ainda brincava de boneca. Eu brinquei de Barbie até os meus treze anos de idade e eu dei meus primeiros beijos aos onze. Então, foi muito rápida essa passagem, mas senti uma pressão de que precisava beijar na boca. Isso era muito doido, por que de onde que surgiu? Eu nem sei de onde que surgiu isso, mas... e foi engraçado dar beijo na boca. Eu gostava de um menino do meu prédio, o nome dele era Felipe e aí a gente marcou de se encontrar na pracinha do prédio, tinha uma pracinha lá, a gente chegou lá, conversou cinco minutos, demos um beijo e eu saí correndo, só saí correndo. (risos) E aí a minha amiga falou: “Eu vou contar pra sua mãe” e eu comecei a chorar, ficar desesperada com aquilo e minha mãe estava trabalhando, eu subi pra casa, liguei pra minha mãe e falei: “Mãe, pelo amor de Deus, vem pra casa, eu quero falar com você” e quando ela chegou, me deitei no colo dela e falei: “Eu beijei o Felipinho” e chorava e chorava e aquilo eu não estava entendendo. Eu não entendi, pra mim eu senti que aquilo estava errado, porque eu fui ameaçada por uma amiga, que ela falou: “Eu vou contar pra sua mãe”. Então, aquilo, nossa, quando você fala pra uma criança: “Vou contar pra sua mãe”, você acha que o que você fez foi errado e então eu me senti muito errada. E aí a minha mãe (risos) ‘segurou’ o riso, ficou: “Calma, filha, está tudo bem, está tudo certo, não tem problema, só não faz isso de novo, você não precisa fazer isso agora, depois você pode beijar o Felipinho, daqui a alguns anos”. Aí eu: “Ai, mãe, está bom”. (risos) E aí eu realmente fui beijar o Felipinho depois de dois anos. Aí já com os meus treze. (risos) Eu sou muito ruim de matemática. (risos) Desculpa. (risos) Mas aí, aos treze. É, treze.
P/1 – E quais são as lembranças mais marcantes da sua adolescência? Para além das mudanças que passaram, o que te marcou durante esse período?
R – Nossa, muita coisa! Vai até quantos anos? Dezessete? (risos) Nossa, eu acho que o momento mais marcante da minha adolescência foi quando eu entendi que eu gostava de menina. Isso, com certeza, porque eu já sentia atração por mulheres, por meninas, desde pequena. Eu sentia uma atração pela minha babá. Eu não sei o que ela tinha, mas eu me sentia atraída por ela. E, claro, era uma criança, nunca fiz nada com isso. Então, na adolescência, quando eu ‘fiquei’ com uma menina pela primeira vez, eu falei: “Meu Deus! Eu amei. O que é isso?” E na época eu namorava um menino, tinha três meses que eu estava namorando com ele, eu contei, falei: “Olha, eu beijei uma menina”. E quando eu contei pro meu namorado que eu tinha beijado uma menina no final de semana, ele falou assim: “Nossa, e por que não me chamou, pra beijar junto?” Eu fiquei muito ofendida com aquilo, que eu falei: “Gente, o que está acontecendo? Que fetiche é esse?” Eu achei muito um absurdo. Aí eu falei: “Não, eu não quero mais ficar com você, não quero mais namorar com você” e aí eu rompi a relação com ele e a partir desse momento eu comecei a beijar só mulheres. Claro, surgia um homem ali, outro aqui, mas muito pontual. Eu estava realmente determinada a ficar só com meninas, tinha gostado muito. E cá estou, aos trinta anos de idade, só beijando mulheres. (risos)
P/1 – E como que foi? Quando foi esse momento, com que idade e como foi essa percepção? Como foi, dentro de você?
R – Quando eu beijei meninas pela primeira vez foi super normal e natural pra mim, que a minha mãe sempre mostrou que o mundo era diverso. Ela me levou muito pra Parada LGBTQIA+, então eu tenho várias fotos, inclusive, registros desses momentos. Minha mãe sempre teve amigos gays, então eu também estava inserida no meio, ela sempre falou que era normal, que estava tudo bem, que é o amor, ela sempre me explicou muito sobre isso, assim como outras questões, como raça, etnia. Sempre foi muito natural. Nunca foi uma questão, nunca foi colocado como um problema. Muito pelo contrário. Na nossa sociedade existem pessoas diversas, então ela me educou pra que eu respeitasse todo mundo e tivesse todo esse lugar de respeito, admiração, enfim e nunca como uma questão. Então, quando eu beijei menina, pra mim foi supernatural, eu falei: “Nossa, que gostoso!” Eu gostei muito de beijar menina, então eu não fiquei me questionando: “Será que agora eu sou lésbica? Ai, meu Deus, será que eu sou bi[sexual]?” Eu não cheguei a me questionar em momento algum, eu só fui me deixando levar pelo que eu gostava, então eu sabia que eu gostava de meninas. Eu fui identificando, então: “Nossa, sou um mulher lésbica” e isso também não foi um problema pra mim, isso foi um alívio, muito natural, nunca foi um conflito, nunca cheguei a ficar em dúvida, nunca nada, sempre foi uma certeza.
P/1 – E logo depois que você se formou na escola, como é que foi? Você começou a trabalhar, ou você já foi pro ensino superior? Como foi esse momento de transição para a vida adulta?
R – Eu comecei a trabalhar aos dezesseis anos, trabalhei em festa infantil, buffet infantil, ficava lá - eu era ‘tia’ do buffet – cuidando das crianças, ‘botando’ as crianças no pula-pula, no escorregador, então brincava com as crianças durante a festa de aniversário e aí eu consegui um emprego pra trabalhar numa empresa multinacional, mas eu ia trabalhar como Jovem Aprendiz. Então, eu trabalhava mais na parte de contato com o cliente. E foi traumático, na verdade, não foi uma coisa legal, porque eu fiquei, trabalhei lá por quatro meses e meu contrato era de um ano e eu sempre fui lésbica, tinha o meu estilo, porque o meu cabelo era loiro, eu era Emo também, então, só pra vocês conseguirem imaginar o estilo. Eu era uma menina Emo, na época e eu era, até então, a única menina lésbica que eu conhecia. Eu também não saía falando para as pessoas: “Oi, tudo bem? Sou lésbica, prazer, Carolina”. Também não era uma abordagem, mas eu achava que só eu era e beleza. E aí chegou um menino pra trabalhar como Jovem Aprendiz também e ele era um menino gay e a gente começou a ficar muito junto, a gente saía junto, trabalhava junto, ficava o tempo todo. E a gente começou a levar muito a questão LGBTQIA+, na época, GLS, há muito tempo isso, no trabalho, ambiente de trabalho. Então, a gente: “Ai, ‘viado’” “Ai, ‘sapatão’”. Então, a gente se chamava assim, brincando e aí a minha gerente me chamou um dia e ela falou que eu não tinha o perfil pra trabalhar lá, que eles estariam encerrando o meu contrato, porque eu era lésbica. Eu não entendi aquilo como preconceito, eu era muito nova, tinha dezesseis anos. Dezesseis? Acho que dezesseis. Posso ver depois, na minha carteira de trabalho. Mas eu era muito nova e eu não tinha essa percepção de preconceito, porque como eu não convivi com isso, como eu nunca tive preconceito com nada, eu não entendi o que era. Eu era adolescente, nova, recém-descoberta da sexualidade e feliz, então eu só falei: “Está bom” e peguei e fui embora. Fiquei chateada, fiquei super triste, chorei, tudo o mais, mas não tinha enxergado como um preconceito. No dia que eu fui assinar a minha carteira de trabalho, pra dar baixa, a moça da cantina que trabalhava lá falou: “Carol, eu fiquei sabendo o que aconteceu, sinto muito, é uma pena as pessoas te demitirem por ser lésbica” e eu falei: “Não, está tudo bem, vai dar tudo certo, eu vou conseguir outro emprego, está tudo bem” e ainda não entendendo que aquilo que aconteceu tinha sido um preconceito. Eu demorei muito tempo pra entender que eu tinha passado por um tipo de assédio.
P/1 – Carol, e como foi a sua experiência seguinte no trabalho, depois dessa primeira?
R – Aos dezoito anos eu consegui um outro emprego com carteira assinada e eu trabalhava lá, a minha sexualidade era assumida, todo mundo sabia que eu era uma mulher lésbica. Na época não tinha, trabalhando, nenhuma outra pessoa com uma orientação sexual voltada para LGBTQIA+, então eu era a única pessoa diversa e aí entrou um menino gay, pra trabalhar comigo e nós éramos uma equipe de seis pessoas e estava chegando a época da Parada LGBTQIA+. Tanto eu quanto ele queríamos ir à Parada, porém a gente trabalhava com escala, então ou era um, ou era outro, não dava pra ser os dois. E aí eu fui pedir pro meu gerente, fui falar com ele: “Eu queria muito ir à Parada LGBTQIA+ e eu queria pedir sua autorização, pra ver se eu posso folgar neste dia e trabalho no próximo” e ele falou pra mim que eu não poderia ir à Parada LGBTQIA+ porque, se ele mostrasse o pênis dele, eu chupava e aí sim eu entendi que a minha sexualidade era um problema pra sociedade. No dia seguinte eu fui demitida. Continuo falando das outras experiências de trabalho?
P/1 – Não, eu ia perguntar o que você sentiu nesse momento. Como foi passar por essa situação?
R – Eu senti muita raiva, que eu não fui respeitada, em momento algum. Nem a minha sexualidade, nem o meu gênero, porque sou uma mulher. Então, eu passei por um assédio que foi muito forte. Pra mim ninguém nunca tinha falado algo desse tipo e eu comecei a entender e perceber outras ações em que eu fui assediada, essa não tinha sido a única. Não era a primeira e não era a segunda. E eu comecei a ficar com medo do que poderia vir, de acontecer alguma coisa comigo. Na época, muito se falava sobre agressões contra pessoas LGBTQIA+. Minha mãe sempre ficou muito preocupada. Ela sempre apoiou, sempre esteve ao meu lado, mas ela tinha muito medo de que eu apanhasse na rua. Então, ela sempre falava, toda vez que eu ia sair: “Cuidado, filha, não anda de mão dada na rua, não beija na rua” e ela falava isso pra me proteger. E quando eu ouvi, quando eu passei por esse assédio, eu entendi que o mundo não estava preparado pra minha sexualidade e que eu tinha que me esconder, de alguma forma. E vivi escondida por muitos anos, inclusive. Eu me ‘fechei’. Para todos os outros trabalhos que eu fui, minha orientação sexual nunca mais tinha sido exposta. Nunca mais falei abertamente. Eu falo que, durante anos na minha vida, eu tive dois guarda-roupas. Então, eu tinha as minhas roupas da minha personalidade Carolina e tinha um segundo guarda-roupa com a minha personagem, que eu a chamava de Flávia. Então, foi a personagem que eu criei, padrão, de uma mulher heterossexual, branca, loira e eu vivi durante anos e muitos anos escondida dentro dessa personagem que eu criei, pra me proteger do mundo.
P/1 – E o que significava, pra você, nesse momento, viver escondida, esconder uma parte de você?
R – Nossa! Foi muito difícil, porque eu não conseguia agir com naturalidade. Então, a Flávia existia no mundo corporativo. Eu trabalhei mais em algumas empresas grandes, de porte grande e eu não podia me assumir, então eu inventava histórias, mentiras, mudava os nomes das pessoas. Então, se eu namorava uma mulher com nome feminino, eu colocava no nome masculino. Nos finais de semana eu tinha que mentir, eu vivia uma mentira. Então, eu gastava toda energia baseada em mentiras, inseguranças, medos. Morria de medo de alguém me achar na rede social, então a primeira coisa que eu fazia, quando eu entrava numa empresa, era bloquear as pessoas do meu departamento, para que elas não me achassem nas redes sociais. Ou então, muitas vezes isso era um pouco difícil de acontecer, porque eu trabalhei em empresas com mais de dois mil funcionários, então não dava pra bloquear os dois mil funcionários, algumas pessoas eu deixava. Deixava minha conta sempre bloqueada e quando alguém questionava: “Você não me adicionou”, eu falava: “Eu nem uso. Está lá só de fachada”. Eu sempre inventava mentiras e desgastes e o pior das mentiras é que eu tinha que lembrar delas, porque depois eu tinha que contar as mentiras e se alguém me questionava: “Mas você não falou aquilo?” “É, sim, sim”. Então, eu tinha que manter as mentiras vivas dentro de mim. Então, eu mentia para as pessoas, pra mim mesma, eu tinha essas duas histórias. A minha história, a Carolina de verdade, quem conhecia eram os meus amigos, as minhas amigas, próximos a mim e era muito doido, porque a pior parte da mentira é quando a gente tinha que falar sobre meninos, porque imagina: meninas gostam de falar de meninos. Então, eu tinha que fingir que eu gostava de meninos e falar sobre os meninos. E eu não tenho nenhuma atração por homens, então, aí, gente, (risos) chegava a ser divertido, porque eu era uma grande atriz, eu me tornei uma grande atriz. (risos)
P/1 – Carol, conta como seguiu sua carreira profissional, quais outros trabalhos você fez durante esse momento.
R – Eu passei, durante... espera aí, deixa eu pensar como eu vou falar isso. Então, a minha vida profissional eu trabalhei em três grandes empresas, depois eu fiz um intercâmbio. Vou fazer uma linha no tempo: antes de me formar em Gestão de Pessoas, eu gostava muito de arte. Então, meu sonho era ser fotógrafa. Isso remete aos meus desejos da infância, quando eu falei que gostava de cantar, que eu queria ser uma grande artista. Então, eu queria expressar a minha arte através de imagens, de fotos, de momentos. Então, eu gostava muito de fotojornalismo, de foto conceito. Nossa! Eu amava fotografar. E eu comecei a trabalhar nessa área, com moda, então fazia desfiles, São Paulo Fashion Week; trabalhava com varejo também, em novas coleções; num Prime Day, que ia acontecer, de alguma marca, eu estava lá, inserida no meio, fotografando e fazendo um curso também, na FullFrame, de fotografia, lá também. Depois disso, fui fazer um intercâmbio e foi curioso, porque não partiu de uma vontade própria. Foi um ano em que minha mãe perguntou: “O que você vai fazer, de estudo? O que você vai estudar agora?” Aí eu falei: “Aí, mãe, não quero estudar. Quero descansar um pouco, já estudei muito, muitos anos da minha vida estudando”. Aí ela falou: “Você não quer estudar? Tá bom”. Ela pegou, naquela época o euro custava dois e cinquenta, muita saudade desse euro (risos) e eu fiz o intercâmbio na Europa, fiquei um ano morando em Dublin, na Irlanda. E, morando lá, num trabalho que eu tinha lá, foi aí que começaram as mentiras, porque eu estava num país estrangeiro, eu não tinha as minhas amigas, eu estava sozinha, então foi aí que nasceu essa minha outra personalidade escondida, que eu tinha um pouco de medo de contar, não sabia como seria a reação. Eu trabalhava num Café, junto com um italiano, um polonês, uma francesa, enfim, todo mundo ali, cada um de um lugar e eu brasileira. E aí eu não queria, eu estava com medo, óbvio, com receio, não tinha ninguém ali que era minha amiga, um parente, um rosto próximo, uma pessoa próxima, então eu comecei a mentir: “Você tem namorado?” “Não”. Então, as mentiras começaram aí, aí que eu comecei a me esconder e , quando eu voltei pro Brasil, eu fui trabalhar numa empresa bem grande, eu não sei quantos funcionários tinha, mas era bem grande, eu trabalhava na recepção, lá e eu não contei pra ninguém sobre a minha sexualidade, então eu mantive esse lugar durante o trabalho, eu tinha que ser formal, eu não podia ser quem eu era, não podia falar sobre a minha vida e, num paralelo, fora do expediente, quando eu estava com as minhas amigas, eu podia ser eu, eu podia ser a Carol, eu estava mais livre. Aí, no segundo emprego, aqui no Brasil, que eu tive, foi uma empresa internacional, multinacional, também não contei quem eu era e eu fui contar, foi a primeira pessoa que eu contei, foi pra minha gestora, na época a Patrícia, eu falei pra ela: “Pat, eu tenho que te contar uma coisa”, a chamei no particular e contei pra ela, porque eu já não estava mais aguentando todas as mentiras que eu tinha que dar e eu falei: “Pat, eu gosto de meninas, eu sou uma mulher lésbica” e ela agiu com tanta naturalidade, ela só falou: “E daí? Está tudo bem. Está tudo certo. Você está segura, bem. Você é uma ótima profissional”. Então, aquilo me tirou, nossa, um peso do meu coração! Eu falei: “Nossa, eu não estou acreditando!” Então, foi um alívio. E aí eu comecei a contar, aos pouquinhos, pra algumas pessoas, ainda com um pouco de medo, mas com o apoio da minha líder eu fiquei um pouco mais segura. E eu chegava pra contar pra outras pessoas, eu falava: “Gente, eu sou lésbica” bem baixinho, assim, bem escondidinho, com medo daquilo, mas eu consegui me soltar, então eu conseguia falar e foi a primeira empresa que eu não bloqueei as pessoas no meu Instagram. (risos) No começo, eles eram bloqueados, de repente eu comecei a desbloquear algumas e fui me ‘soltando’. E aí eu recebi um convite para trabalhar no mercado financeiro, na B3 e eu falei: ‘Nossa, ‘bora’, vamos lá”. E eu cheguei na B3 com a minha aparência hetero, com a minha personagem, com a Flávia. A Flávia entrou na B3. Não foi a Carolina, foi a Flávia. E aí, durante os primeiros anos eu mantive essa personagem, eu não falei pra ninguém, falei só pra uma amiga que trabalhava no mesmo departamento que eu, porque a gente se encontrou num bloco de carnaval de ‘sapatão’ e aí não tinha como. (risos) Eu só olhei pra ela, ela olhou pra mim e eu falei: “Ahhhh! (risos) Tem mais gente aqui neste departamento”. Foi muito engraçado. E hoje somos grandes amigas, a gente se ajudou muito também. Ela não fala abertamente sobre a sexualidade, então a gente se aproximou, teve uma aproximação muito bacana, porque a gente compartilhava dos mesmos medos, então a gente se juntou ali. E aí, quando a B3 começou a falar sobre as diversidades, contrataram uma pessoa para liderar esse tema, eu falei: “Nossa, não estou acreditando que isso está acontecendo!” Isso mudou a minha vida de um jeito, que eu sou eternamente grata. Eu comecei a contar, então eu parti primeiro pra minha líder, falei: “Oi, tudo bem? Então, eu tenho que te contar uma coisa: eu sou lésbica”. Contei pra ela, pra Manu e a Manu teve a mesma reação que a Pat e falou: “E daí? Está tudo bem, (risos) está tudo certo. Conta comigo, eu estou aqui com você, a gente vai junto”. Aí eu comecei a me sentir de novo segura e aí eu comecei a falar aos pouquinhos de novo, então repeti os mesmos passos, falar: “Oi, tudo bem? Eu sou lésbica” baixinho. Então, eu comecei o mesmo movimento e aí me convidaram pra ser líder do núcleo LGBTQIA+ e eu falei: “Nossa! De novo eu não estou acreditando que isso está acontecendo”. Eu fiquei muito feliz, muito, mas muito. Só que tinha um problema, o problema é: se eu vou ser líder de um movimento, eu preciso me assumir. Não posso deixar as pessoas inseguras e com medo. A líder, gente, como vai ‘ficar no armário’? Não dá pra ter uma líder ‘no armário’. Eu falei: “Agora, quer saber? Eu tenho minha chefe, eu tenho aqui os meus colegas de trabalho, eu estou me sentindo forte, estou sentindo que eu não estou sozinha nessa” e aí me assumi pra todo mundo. Então, eu comecei a falar abertamente pra todo mundo da empresa que eu era uma mulher lésbica. Comecei a falar com muita naturalidade, porque eu preciso representar as pessoas e eu não quero trabalhar numa empresa onde eu tenha que ficar escondida. Eu sei como é esse sentimento e é horrível. Eu não quero que as pessoas sintam assim. Então, eu resolvi me abrir, falar sobre a minha sexualidade, trazer minha experiência, vivência para as pessoas pra, juntos, a gente conseguir fazer um ambiente confortável, aberto, com pessoas autênticas, que ninguém precisa ter um segundo guarda-roupa, ou ‘se guardar no armário’, ou inventar mentira do seu final de semana. Parece que é bobo a gente falar sobre isso: mentir no final de semana, mas isso carrega um peso, mas um peso pra quem tem que mentir sobre o seu final de semana, que só quem passa por isso entende. É muito ruim. Você não consegue criar um laço com as pessoas, confiável, genuíno. Você cria mentiras e mais mentiras e o que a gente faz? Então, a gente não consegue ter conexões verdadeiras, quando a gente tem que mentir e fingir quem você não é o tempo todo. Então, foi muito transformador tudo isso que aconteceu, nossa e as mudanças foram acontecendo de forma natural. Antigamente a Carol, a ‘Flávia’ era uma pessoa loira, de cabelo liso, platinado, com luzes, enfim, fazia progressiva, usava salto alto. Eu detesto salto alto, tenho pavor. Mas eu tinha que usar, porque fazia parte da minha personagem. A Flávia era uma padrão, então ela usava sapatilha, salto alto, roupinhas mais femininas, mais padrão, enfim, tinha toda uma estética padrão. E aí eu comecei a ser eu. Então, aquele cabelo eu entendia que não fazia mais parte de mim, não era eu, aquele cabelo não era o que eu queria ter. Comecei a usar as minhas roupas, as que eu gosto de usar, no meu ambiente de trabalho, isso a B3 também trouxe. A gente fez um trabalho de dresscode lá, com uma campanha: “Vista-se de você”. Então, isso também me ajudou muito, pra poder usar as roupas que eu gosto, o sapato que eu gosto, que eu me sinto confortável. Eu acho que tem um ponto que é assim: “Está tudo bem você também ser uma pessoa padrão, que tem uma aparência padrão, está tudo certo”, mas pra mim, Carol, não era eu. Então, pra mim não era verdadeira aquela personagem.
P/1 – Carol, e qual foi a importância, pra você, de poder ser quem você é, plenamente, nesse momento?
R – A maior importância de ser quem eu sou é que não é só sobre mim, também é sobre outras pessoas que se encontram em condições, que tiveram que viver ‘no armário’, ou que não tiveram nenhum apoio familiar dentro de casa, então imagina o que deve ser você não ter apoio familiar. E não ter o seu trabalho. Então, como vive? Como consegue viver bem, em estado de espírito confortável e seguro? Como você se sente seguro, se você não tem nenhuma estrutura, nenhum apoio, em nenhum lugar da sua vida? Então, ter me assumido, estar no movimento, representar, dentro da empresa que eu trabalho hoje não é só sobre mim, então eu carrego aqui todo mundo junto, eu ajudo muita gente também. Ai, não quero chorar. (choro) Ai, gente, é que é muito foda você não poder ser você em nenhum lugar. É muito foda você ser criticado pela sua aparência, pela sua orientação sexual, pelo seu gênero, seja você cis ou trans, você é questionado e bombardeado o tempo todo. Então, você não tem o conforto no lar, muitas vezes e não tem o seu conforto, o seu apoio, uma rede de apoio no trabalho. Então, pra mim é muito importante o trabalho que eu faço. Ele tem um significado muito grande e a gente faz junto, se apoia junto, a gente cresce junto. A gente se identifica. É isso. Acho que é isso. (risos) É que é muito foda, meu. Pode falar palavrão? Nem sei se podia falar palavrão. Ai, gente! É muito difícil. É muito complicado você não ter apoio. Graças a Deus eu tive apoio da minha mãe, dos meus parentes também, mas minha mãe foi o principal apoio que eu tive na vida. A única preocupação da minha mãe era eu voltar para casa viva. O que é importante e difícil.
P/1 – Carol, como é a B3 e o seu ambiente de trabalho lá? Como funcionam as coisas hoje?
R – A B3 é uma empresa diversa, então a gente consegue ser quem a gente é, usar as nossas roupas, nós somos ouvidas também, isso é muito importante. A gente trabalha junto, é um time muito forte, bem acolhedor também, então, quando você entra, você é bem acolhido, desde o momento que você entra na empresa.
P/1 – E como funciona seu trabalho lá? Qual é o seu cargo, a sua função lá e como funciona?
R – Hoje, na B3, eu sou Analista de Treinamento e Desenvolvimento e líder do núcleo LGBTQIA+. Lá eu trabalho com ações de desenvolvimento, então eu olho pra organização, então, o que a organização precisa para bater meta no ano, quais são os desafios da empresa e aí eu vejo a parte das nossas pessoas. Então, o que as pessoas precisam fazer para poder se desenvolver, crescer, atingir os seus objetivos e desejos de carreira, quais são as estratégias e ferramentas que eu vou ajudar as pessoas a potencializar a sua profissão, o seu trabalho. E com o núcleo eu tenho um papel de representar, criar um plano estratégico para o núcleo, criar parcerias estratégicas, então a gente participa do OUTStand, que é a liga do mercado financeiro e aí a gente tem vários grupos, várias empresas trabalhando junto, então a gente tem o Bradesco, o Citibank, o JP Morgan, vários bancos participando dessa liga. E a gente entrou esse ano pro Fórum de Empresas e Direitos LGBTI+. Então, a gente vai construindo e fortalecendo as novas alianças.
P/1 – E pra além desse grupo de afinidades LGBTQIA+, tem outros grupos de afinidades na B3 e como eles funcionam? É uma empresa diversa para outros grupos também?
R – Sim. A B3, além do núcleo LGBTQIA+, nós temos um grupo de mulheres, também de raça e etnia, a frente de pessoas com deficiência e de gerações, que é de pessoas com mais de cinquenta anos. E todas elas atuam da mesma forma que o meu, que a gente vai fortalecendo alianças, trazendo novas oportunidades, incluindo as pessoas de fato, trabalhando na comunidade, enfim, cada grupo vai tendo, aí, os seus desafios. Mas no final a gente trabalha pra todo mundo trazer mais conscientização, educação, inclusão de verdade.
P/1 – Carol, e como você vê a inclusão de mulheres e de pessoas LGBTQIA+ dentro do mercado financeiro e principalmente dentro da B3?
R – Antigamente, quando a gente falava sobre o mercado financeiro, trabalhar no mercado financeiro, a gente já imaginava um homem branco, cisgênero, heterossexual dentro dessa instituição. E, na verdade, não. Hoje a gente tem vários programas para capacitação de mulheres. Recentemente lançamos uma Manas da Tech, inclusive, que abrange mulheres cis e transgênero, potencializando o conhecimento delas e, além desse programa, também tem o Be Together, que é como se fosse o OUTStand, então é uma liga, a gente tem várias empresas participando junto, que é um grupo de mulheres, que falam sobre empoderamento, mulheres no mercado financeiro, educação. Então, a gente vai criando vários programas e grupos, pra gente potencializar e atrair mais mulheres, para trabalhar nas organizações.
P/1 – Carol, e quais foram os maiores aprendizados, na sua trajetória profissional?
R – Acho que os maiores aprendizados da minha vida profissional foi saber criar laços e aproximar pessoas que têm muito pra compartilhar com a gente. Então, aprender com essas pessoas, agarrar sempre as oportunidades. E que ser você, quando você é você, quando você consegue ser autêntico, na sua essência, você consegue se soltar mais, ser mais criativo, mais produtivo. Você fica mais feliz trabalhando naquilo que você gosta. Então, seja você.
P/1 – Carol, pensando na sua trajetória como liderança dentro da B3, eu queria saber se você lembra de alguma história, se você quer compartilhar alguma história de alguma parceria que vocês fizeram, que foi importante de alguma forma, pra você.
R – A parceria mais importante que eu fiz durante todos os meus anos de carreira foi, com certeza, o OUTStand, porque quando você vive numa empresa, trabalha numa empresa só, você não tem um benchmarking ou um conhecimento de como funciona em outros lugares, você não sabe se você está no caminho certo, se está muito pra frente, muito pra trás, se está fraco, se está bom, então você não tem um termômetro. E quando a gente faz uma aliança e olha e vê várias empresas no mercado financeiro juntas, isso dá um ‘brilho nos olhos’, fala assim: “Uau! Não é só aqui”. A gente consegue ver, enxergar essa luta, vontade da gente trazer a comunidade LGBTQIA+ pro mercado financeiro. Mostrar que existem vagas para as pessoas, que elas podem estar aqui, que a gente vai estar todo mundo junto, sabe? Então, você ver iniciativas de outras empresas, você fica admirada, fala: “Nossa, que legal aquilo! Quero trazer pra cá também”. Então, funciona também como um benchmarking. Uma aliança forte, com muita voz, muito local de fala e com muitas iniciativas que a gente fica muito feliz em ver, às vezes, o que a empresa X e a Y fazem de diferente. O importante é você ver as empresas estando nesse movimento. Não é a ‘grama do vizinho é mais verde’. Não, não é sobre isso. É sobre: “Que bom que as pessoas estão tomando iniciativas! Que bom que a gente está fazendo alguma coisa”. Então, é sobre isso. E fazer com propósito. Não é fazer pra ‘vender’ aquele programa ou a empresa. Não, é fazer, estando num lugar de respeito. Então, a gente entende, as pessoas trabalham para que suas empresas sejam um lugar de conforto. De desafios, óbvio, profissionais, de oportunidades de carreira, mas também um lugar confortável pra você ser você. Um lugar onde você consiga ser autêntico. E com impacto na sociedade. Porque não é só sobre a gente, também, mas o que a nossa empresa, que a gente trabalha hoje, como reflete na sociedade. Quais são os impactos que a gente vai levar e a gente tem muitos e que bom que esse movimento está cada vez mais crescendo e a gente vê muitas empresas tomando iniciativas verdadeiras sobre LGBTQIA+.
P/1 – Carol, como é o seu dia a dia hoje? Como é a sua rotina?
R – Ai, gente! Bom, a minha rotina de segunda-feira a sexta-feira ou sábado e domingo? (risos) Os dois? Bom, então, durante a semana eu acordo e a primeira coisa que eu faço é dar bom dia pros meus passarinhos. Eu tenho dois passarinhos em casa, a Catuxa e o Plínio. Então, eu abro a gaiola deles, para eles voarem pela casa, ficarem brincando pela casa, que eles adoram, ficam aqui no meu ombro, às vezes, enquanto eu faço meu café eles estão aqui no meu ombrinho, cantando, dando beijo, fico com eles (risos) pela casa. É muito comum as pessoas me verem fazendo reunião com passarinho no ombro, isso é supernormal. Aí eu começo a trabalhar e eu separo o meu período em dois momentos, então a parte da manhã é mais dedicada à leitura de e-mails, a coisas que eu preciso resolver, do dia, então eu organizo todo meu dia e eu começo algumas reuniões. Nunca antes das dez, porque das nove às dez é meu horário de leitura de e-mail. Das dez em diante eu já estou mais disposta, já entendi, então começam as minhas reuniões e a parte da tarde eu dedico mais pra minha parte criativa. Então, eu já vi meus e-mails, já fiz as minhas reuniões, então preciso montar uma apresentação com PPT [powerpoint], vai tudo na parte da tarde. E aí, à noite, eu gosto de, às vezes, sair pra correr no parque, às vezes, eu assisto uma série, então depende muito do que vai ser do meu dia. Aos finais de semana, eu costumo ver as minhas amigas, então eu saio bastante, eu vou pra algum bar LGBTQIA+, óbvio, estou sempre num bar, ou eu viajo, eu também gosto muito de viajar e a minha mãe entra tanto durante a semana, como no final de semana. Então, às vezes, ela vem em casa, a gente almoça juntas, ou então a gente sai à noite, pra ir em algum barzinho e no final de semana sempre uma pizzinha, que eu vou na casa da minha mãe comer uma pizzinha com ela.
P/1 – Carol, a gente está indo para as perguntas finais e, entrando nessas perguntas mais avaliativas, eu gostaria de saber se você fotografa ainda e o que você sentia, quando você fotografava.
R – Hoje em dia eu não fotografo mais, virou um hobby só, não é mais uma profissão e quando eu fotografava eu gostava de registrar aquele momento. Então, eu gostava de passar para as pessoas algum tipo de sensação, curiosidade, então eu fotografei, fiz desde books de pessoas, de mulheres gestantes, bebês, até a parte, mais, de uma manifestação, de algum protesto. Então, eu ‘naveguei’ muito pelas áreas da fotografia e cada uma dessas fotos tem a sua importância e a sua sensação. Então, se hoje, quando eu viajo pra casa da minha avó, por exemplo, que a gente pega o álbum de fotos e a gente olha aquele momento e compartilha aquela história, a gente conta. Então, quando eu fazia book, era isso que eu queria passar para as pessoas, essa sensação de que, depois de um tempo, aquela foto, aquele carinho, aquele momento vai estar lá, registrado, daquela fase da vida da pessoa. Então, tem a sua importância. Então, eu queria trazer, o meu sentimento era deixar isso vivo nas pessoas: essas lembranças e sensações.
P/1 – Carol, quais são as coisas mais importantes pra você, hoje?
R – Estão relacionadas a impacto de vida, propósito. Então, pra mim, se eu estou fazendo um trabalho que tem um impacto positivo na vida de alguém, nem que seja pequeno, isso já gera, pra mim, uma sensação de que eu estou fazendo a coisa certa. É isso. Então, isso me dá mais força e mais ‘gás’, pra continuar fazendo o meu trabalho. E o meu trabalho é uma grande parte da minha vida. Não só o trabalho porque, como tem esse impacto pra sociedade, eu tenho esse propósito, então eu me sinto realizada na minha vida. Então, eu acho que esse é um bom caminho pra mim.
P/1 – E qual o legado que você deixa para o futuro?
R – Quando eu assumi a minha sexualidade, a minha mãe tinha muito medo de que acontecesse algo comigo fisicamente e ela falava pra mim: “Você não vai conseguir mudar o mundo. Você não tem esse poder. Você tem que aceitar” e aquilo ficou na minha cabeça durante anos: “Eu não vou conseguir mudar o mundo. Como eu vou mudar o mundo?” E quando eu comecei a receber vários feedbacks, muitas pessoas me agradecendo por estar fazendo um trabalho tão importante na empresa onde eu estou hoje, eu virei pra minha mãe e falei assim pra ela: “Mãe, você mentiu pra mim” e ela: “Como assim?” Eu falei: “Você falou que eu não ia conseguir mudar o mundo, mas eu estou transformando o mundo, sim. É um ‘trabalho de formiga’, mas eu estou conseguindo semear”. Então, o meu trabalho, aquilo que eu tinha comentado, tem um propósito e uma realização pessoal muito grande, então eu espero que, com tudo que eu faço, com todo conhecimento que eu compartilho com as pessoas, que as pessoas LGBTQIA+ tenham uma vida melhor, em todos os seus aspectos, tanto social, profissional, enfim. É isso.
P/1 – E quais são os seus maiores sonhos, hoje?
R – Um dos meus maiores sonhos, hoje, é que a gente tenha um mundo com mais oportunidade, mais empatia, mais justo com as pessoas. E morar numa casinha na praia. (risos) Tenho esses dois sonhos.
P/1 – Carol, a gente está terminando, agora, tem mais só duas perguntinhas, só que antes de ir pra última pergunta, eu queria saber se você gostaria de acrescentar alguma coisa que eu não perguntei, ou deixar alguma mensagem. O momento é bem livre, é sobre você.
R – Acho que tem uma mensagem que eu gostaria de deixar. Acho que cada um tem a sua história, a sua vivência. Às vezes a gente se identifica com algumas histórias, outras a gente escuta, pra aprender, então eu tenho um recado que eu gostaria de passar, é: “Deixem as pessoas LGBTQIA+ falarem, elas precisam desse espaço, precisam ser ouvidas. Se a gente quer trazer um mundo mais justo, dar mais oportunidades, a gente precisa trazer essas pessoas pro centro”. O centro que eu falo é pra dinâmica, para construção, pra dar um local de fala dela. A gente não consegue trabalhar com inclusão se a gente exclui. Então, o que a gente faz? Como a gente cria esse mundo? Porque o mundo que a gente está construindo não é o nosso mundo, da fulana. Não. É um mundo só que a gente está, vive. Então, escute as pessoas LGBTQIA+, sua história, deixe-as contarem o que é ser uma pessoa LGBTQIA+ no mundo que a gente vive. Deixa-as trazerem sua inovação, as suas ideias, compartilharem com as pessoas um pouco delas, da sua essência, das suas habilidades. Dê oportunidade. Dê esse local pra elas.
P/1 – Carol, e como foi contar sua história hoje, rever algumas memórias da sua vida, contar trechos? Como foi?
R – Foi gostoso. É daqui pra terapia, depois, é óbvio. (risos) Mas foi uma sensação muito gostosa. É gostoso revisitar. E a gente olhar pro nosso passado, as coisas que a gente já passou e pra onde a gente está hoje, a gente consegue olhar pro futuro também. Então, a gente só vai revisitando lugares que são importantes pra gente e que faz sentido, que a gente olha pra onde a gente está hoje e fala assim: “Puts, agora entendi como eu cheguei aqui”.
[Fim da Entrevista]
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