P1 - Boa noite, Carla!
R - Boa noite, Genivaldo!
P1 - Vou começar pela pergunta mais básica: gostaria que você me informasse seu nome completo, seu local e data de nascimento.
R - Bem, eu sou Carla Piazzon Vieira, nasci em São Paulo (SP) no dia 24 de abril de 1998.
P1 - Qual o nome dos seus pais?
R - A minha mãe [se] chama Luciana Alves Feitosa e meu pai, Carlos Donizete Vieira.
P1 - Qual a atividade dos seus pais?
R - A minha mãe é enfermeira e o meu pai é corretor de seguros.
P1 - A sua família é de São Paulo mesmo? Seus pais nasceram também em São Paulo? Ou a sua família veio de algum outro lugar?
R - Não. O meu pai e a minha mãe nasceram em São Paulo.
P1 - Começando a falar um pouco da sua infância, você se lembra da casa onde você passou a maior parte da sua infância? Como ela era?
R - Eu lembro, e meu pai mora nela até hoje. É uma casa bem grande, porque o meu pai construiu pensando na família, né? Eu, meu pai e a minha mãe. Então, é uma casa de dois andares. O primeiro andar tem uma sala; uma cozinha junto com a sala de jantar; tem uma escada. E aí, no segundo andar, tem três quartos: um que era dos meus pais; um que era meu quarto - que é meu quarto até hoje -; um quarto que era do meu irmão. E tinha um banheiro só pra mim também, isso era muito legal! E tem uma churrasqueira, tem um espaço, no mesmo andar dos quartos, um quintal muito grande, que hoje está cheio de plantas, mas é bem grande. Dava bastante pra brincar de montar a piscina de plástico, coisas assim. E eu lembro que a casa é toda de madeira, os mesmos móveis acho que ainda estão lá, alguns mudaram, as cores mudaram um pouco também. Eu não lembro a cor original, mas hoje ela é laranja e acho que é isso que me lembro. De mais detalhes: tem um portão de madeira enorme na frente, ele é totalmente fechado. Isso era um pouco ruim, é um pouco ruim, porque a casa não fica tão iluminada, mas é um portão de madeira bem grande na...
Continuar leituraP1 - Boa noite, Carla!
R - Boa noite, Genivaldo!
P1 - Vou começar pela pergunta mais básica: gostaria que você me informasse seu nome completo, seu local e data de nascimento.
R - Bem, eu sou Carla Piazzon Vieira, nasci em São Paulo (SP) no dia 24 de abril de 1998.
P1 - Qual o nome dos seus pais?
R - A minha mãe [se] chama Luciana Alves Feitosa e meu pai, Carlos Donizete Vieira.
P1 - Qual a atividade dos seus pais?
R - A minha mãe é enfermeira e o meu pai é corretor de seguros.
P1 - A sua família é de São Paulo mesmo? Seus pais nasceram também em São Paulo? Ou a sua família veio de algum outro lugar?
R - Não. O meu pai e a minha mãe nasceram em São Paulo.
P1 - Começando a falar um pouco da sua infância, você se lembra da casa onde você passou a maior parte da sua infância? Como ela era?
R - Eu lembro, e meu pai mora nela até hoje. É uma casa bem grande, porque o meu pai construiu pensando na família, né? Eu, meu pai e a minha mãe. Então, é uma casa de dois andares. O primeiro andar tem uma sala; uma cozinha junto com a sala de jantar; tem uma escada. E aí, no segundo andar, tem três quartos: um que era dos meus pais; um que era meu quarto - que é meu quarto até hoje -; um quarto que era do meu irmão. E tinha um banheiro só pra mim também, isso era muito legal! E tem uma churrasqueira, tem um espaço, no mesmo andar dos quartos, um quintal muito grande, que hoje está cheio de plantas, mas é bem grande. Dava bastante pra brincar de montar a piscina de plástico, coisas assim. E eu lembro que a casa é toda de madeira, os mesmos móveis acho que ainda estão lá, alguns mudaram, as cores mudaram um pouco também. Eu não lembro a cor original, mas hoje ela é laranja e acho que é isso que me lembro. De mais detalhes: tem um portão de madeira enorme na frente, ele é totalmente fechado. Isso era um pouco ruim, é um pouco ruim, porque a casa não fica tão iluminada, mas é um portão de madeira bem grande na entrada.
P1 - E qual o nome do seu irmão?
R - Meu irmão [se] chama Gabriel.
P1 - Certo. Você tem algum outro irmão, além do Gabriel?
R - Não.
P1 - Certo. E qual tipo de brincadeira você gostava de fazer, quando você era criança?
R - Eu fui uma criança um pouco solitária, porque morava numa casa muito grande e não tinha... Minha mãe nunca foi de deixar eu ir pra casa dos amiguinhos, assim, passar [a] noite, nunca passei noite fora, dormir fora de casa, quando eu era criança. Então, sempre as pessoas vinham na minha casa. Mas a maior parte era brincando com meu irmão e com os meus primos. E eu sempre gostei de brincar de tudo: pega-pega; pular corda; colchão descendo a escada, porque a casa tem uma escada muito grande - então, a gente colocava o colchão e escorregava escada abaixo, coisas assim -; piscina, como eu falei; de brinquedos eu sempre gostei de Barbie, mas eu sempre detestei arrumar as Barbies. Então, eu não gostava de trocar roupa, não tinha paciência, porque é muito chato, são muitos detalhes: tem que enfiar pelo braço, passar pela perna. É muito ruim! E eu também sempre gostei de brincar de corretora de seguros, porque meu pai é corretor de seguros. Então, eu pegava as apólices dele, documentos que ele descartava, e fingia que eu estava fechando seguro. Eu gostava de cozinhar. Enfermagem nunca foi muito meu negócio, não, mas, às vezes, eu montava um hospital de bonecas achando que eram crianças de verdade. Acho que eu gostava desse tipo de coisa e adorava brincar de ser professora. Nossa Senhora, isso é uma coisa que eu lembrei agora! Eu gostava muito! Sempre tive lousa branca em casa. Hoje eu não tenho mais, mas eu sempre tive e gostava de brincar de dar aula, explicar as coisas pra outra pessoa: pros meus pais ou pra minha prima, pro meu irmão. E videogame, depois de um tempo, comecei a gostar também, mas eu confesso que gostava mais de assistir. Mas é porque meu primo fazia comigo, o que é muito comum: deixava o meu controle desligado e eu achava que estava fazendo, [jogando] o joguinho e era ele jogando sozinho. (risos) Então, ele fazia isso muito comigo. Era muito triste. Eu descobri isso depois de muitos anos. Mas eu sempre gostei de jogar videogame, e acho que foi mais isso que eu brincava, mesmo.
P1 - E como era a rua onde você morava? Você conhecia os vizinhos, brincava também com as crianças da rua?
R - Não, era uma rua um pouco vazia. O terreno da frente era vazio, que só servia pra ser uma empresa - que eu não sei do que até hoje - pra tocar o alarme, quando não tinha ninguém pra desligar o alarme. (risos) E as casas do lado, eu não tinha muito contato. Meu pai conhece o bairro inteiro. Então, é o tipo de pessoa que você sai pra ir na padaria e aí ele a cada cinco minutos, para pra cumprimentar alguém ou alguém para pra cumprimentá-lo. Mas eu nunca tive muito contato com as crianças do bairro, não. Eram mais crianças da escola, mas, mesmo assim, não era muito contato. Eu lembro até umas coisas importantes na rua: tem uma padaria que existe até hoje. Sempre que eu vou visitar meu pai eu compro pão lá, que é na mesma rua, no fim, subindo a rua, o último estabelecimento da quadra. Agora, no terreno baldio que eu falei, tem vários prédios. (risos) Construíram vários prédios e tem a banca do ‘Seu’ Fernando, que existe até hoje. É um bar, na verdade, mas que vende chocolate [e] paçoca. Então, todos os dias, eu ia lá fazer aquela conta fiada - meu pai o conhece há muitos anos -, eu ia e falava: “Coloca na conta do meu pai, vou pegar um chocolate”, ou coisas assim. Ou pegar uma pipoca, um doce. E acho que mais coisas assim que eu lembro, mas pessoas, eu não tinha muito contato com vizinhos, não.
P1 - E em que bairro fica a casa da sua família?
R - A casa do meu pai fica em Ermelino Matarazzo (bairro da zona leste de São Paulo).
P1 - Certo. Você tinha algum sonho, nessa época, de: "Quando eu crescer, quero ser tal coisa"? Algo nesse sentido?
R - Eu confesso que as memórias da infância são um pouco embaçadas, não consigo lembrar muitas coisas de quando criança. Eu acho que nunca tive uma vontade muito específica, mas a minha mãe sempre disse que eu gostei de ensinar, sempre gostei. Ela falou que eu gostava muito de brincar de professora, de cuidar, e coisas assim, então ela identificava essa vontade de ser professora, muito forte [de] que eu seria professora um dia. Ela sempre identificou isso. Mas eu acho que eu nunca falei pra minha mãe: “Quando eu crescer, eu quero ser isso”. Acho que eu, pelo menos, não me recordo. Eu já perguntei pra ela algumas vezes, mas não me recordo de ter momentos que eu cheguei pra ela e falei que queria ser alguma coisa específica, assim. Nem coisas bestas, assim; que meu irmão queria ser jogador de futebol. Ele foi atrás desse sonho por um tempo. Mas eu nunca tive nada muito específico, não. [A] criança, às vezes, tem: quer ser cantora, cobradora de ônibus. Tem muita criança que fala isso: “Quero ser motorista de táxi”. Mas eu nunca falei nada assim, não.
P1 - Tem algum momento da sua infância que você se lembra até hoje? Alguma coisa que aconteceu, que gravou, marcou na sua memória?
R - Estou pensando. Acho que tem muitas coisas que marcam a gente. Acho que a infância tem muita coisa que marca também. Mas eu acho que a primeira coisa que veio na minha mente, quando você falou isso, foi que em 2008, 2009, eu mudei pra onde estou morando hoje, com a minha mãe. E me marcou muito um dia que, assim que eu cheguei pra morar aqui, apertaram a campainha e, quando eu abri a porta, tinha, tipo, umas oito meninas. E aí elas: “Vamos brincar?”. Aí eu fiquei muito feliz, porque nunca tive isso, de brincar com um monte de gente na rua, igual meus pais tiveram, né? Uma questão que hoje é mais difícil acontecer, depende de onde você mora, tal. E aí eu lembro disso, porque foi muito marcante. Eu fiquei muito feliz! E aí, todos - depois que eu vim morar em prédio - os dias, eu tinha muita gente pra brincar. (risos) Então, era muito legal! Eu fiquei viciada em ficar... Que eu falava de descer, ficar lá embaixo, pra minha mãe, porque é uma descidinha pra chegar no parquinho: “Mãe, deixa eu descer hoje”. E, às vezes, ela falava: “Não, tem que ficar até tal hora, só, tem que voltar pra casa”. E, às vezes, as meninas vinham aqui, enfim. Eu acho que isso me marcou muito. Mas deve ter outras memórias que eu não estou conseguindo resgatar diretamente, mas lembrei disso, porque eu sempre quis ter isso na infância: ter bastante gente pra brincar, e eu nunca tive muitas pessoas. Ficava muito tempo sozinha.
P1 - E quantos anos você tinha, quando você se mudou e começou a ter essas amigas pra brincar?
R - Eu tinha onze anos; dez, onze anos.
P1 - Certo. Vamos passar um pouquinho, agora, pra sua vida escolar. Qual a primeira lembrança que você tem de escola, de você estando na escola?
R - Eu acho que a primeira lembrança é de uma professora minha, a professora Tati. Ela foi professora, eu acho que antes do ensino fundamental, ensino primário. - Não sei direito o nome. Infanto-juvenil. - Enfim, antes do fundamental. E lembro que eu estava aprendendo a ler e [sobre] as palavras, e ela me deu um "Dicionário Aurélio Ilustrado". Pra quem nunca viu essa versão do Aurélio, eu acho que não tem mais, mas é um livro bem grande. Ele tem um tamanho um pouquinho maior que [folha] A4 e ele é todo ilustrado mesmo. Então, todas as palavras vêm com desenho, tipo: se tem uma vaca [escrito], aparece uma vaquinha do lado [em forma de desenho]. E esse presente foi muito legal! Eu queria muito achar esse dicionário, nunca mais consegui achar, mas eu tenho certeza que deve estar na casa do meu pai, porque todas as coisas da minha infância estão lá. Esse dicionário, acho que me marcou muito. É uma das coisas que eu lembro, dela me dando, assim. E sempre tem uma professora, né, que vê um aluno e se afeiçoa àquele aluno, quer ajudar a incentivá-lo a estudar e acaba dando um presente. Eu acho que marca muito o aluno, quem o professor faz isso. Então, isso é uma coisa que me marcou muito. Sempre lembro disso. Eu queria comprar uma versão atualizada desse dicionário ou achar o original, porque ela deu com muito carinho. Eu lembro até hoje. Não lembro do rosto dela, mas lembro desse dia que ela me deu o dicionário.
P1 - Essa escola onde você fez esse ensino antes do fundamental era perto da sua casa? Você ia a pé? Ou era longe?
R - Era bem pertinho, eu ia a pé. Minha mãe ou meu pai me levava. Era bem pertinho, mesmo. Tinha duas unidades, essa escola. Ermelino Matarazzo tem um fato curioso, que tem muitas escolas particulares. Eu acho isso bem curioso, mas tem muitas, mesmo, em um espaço muito pequeno. Mas aí tinha duas unidades [que eu estudei] dessa escola e uma era bem perto de casa, eu diria que, assim, uns setecentos metros. E uma outra era um pouquinho mais longe. Aí meu pai me levava de carro, coisa assim, ou minha mãe, mas eu passei a maior parte do tempo estudando na [que era] mais perto [de casa]. A outra foi só nesse período que eu tive aula com a professora Tati, que eu ainda não estava no ensino fundamental. Quando eu fui pro Fundamental I, aí eu mudei pra unidade que tinha o Fundamental I.
P1 - Certo. No ensino fundamental, você teve algum professor que te marcou? Alguma matéria que você gostava mais?
R - Não que eu me lembre. No fundamental, pensando, talvez, no Fundamental II, antes do ensino médio, eu tive professores importantes. Eu sempre gostei muito de Matemática. Era uma matéria que... Eu acho que quando a gente é aluno, a gente tem um negócio, uma lógica de que tem a matéria que eu vou bem e a que eu vou mal. (risos) Tipo: "História, eu odeio! Sempre vou mal. Geografia - meu caso, tá? -, odeio! Sempre vou mal. Biologia, pior ainda". Então, eu sempre gostei das coisas que eu ia bem: Matemática... Vou falar de Matemática, porque no ensino fundamental só tem Matemática. Então, é uma matéria que eu gostava bastante. Eu tinha aula de Geometria também e gostava. Aula de Artes, eu também gostava um pouquinho, mas não muito. Eu lembro de História da Arte. Nossa, essa matéria foi legal! Eu tinha a professora Elizana, maravilhosa! Eu lembro que todos os dias ela com "slides", porque era uma aula de História da Arte [e] ela queria mostrar as artes. Ela contava histórias de quadros, da arte ao longo do tempo, sempre explorando diferentes gerações de arte. Eu achava aquilo tão... O jeito, a paixão dela por visitar museus, eu sempre achava isso tão chique, falei: “Nossa, que coisa incrível a pessoa ter essa paixão por arte e museu!”. Eu nunca consegui desenvolver isso. Eu só fui ao Museu da Língua Portuguesa e nunca mais fui em nenhum museu na minha vida. E eu, realmente, deveria mudar isso. Mas, enfim, eu acho que a Elizana me marcou muito. Os professores que eu tive, de Matemática: Wiliam me marcou muito; foi um professor, também, muito querido, que deu aula por pouquíssimo tempo na escola que eu estudava - mas eu cursei parte do ensino fundamental em uma outra escola. - Era uma escola perto de casa também. E a mudança foi um pouquinho antes de eu mudar com a minha mãe, pra esse apartamento que estou hoje. Então, um pouquinho antes de eu mudar, mudei de escola. E aí, nessa nova escola, foi bem difícil. Foi um pouquinho traumatizante no começo, porque era uma novidade do [Colégio] Objetivo e aí era um pouco mais pesado, assim. E aí eu reprovei quase tudo, logo que eu entrei. Eu fui fazendo cursos de recuperação, tentando engatar de novo, melhorar. Faz parte.
P1 - Certo. Quando você terminou o ensino fundamental, você foi fazer o ensino médio perto de casa, em uma outra escola, ou você continuou no Objetivo?
R - Eu continuei no Objetivo. A escola era muito boa, que tem aqui em Ermelino. E aí eu decidi continuar. Meus pais gostavam, a gente tinha bolsa também, era uma boa aluna, e aí eles falaram: “Acho que vale continuar”. A escola tinha também uma taxa boa de sucesso de entrada de estudantes nas universidades públicas, as próprias escolas particulares olham muito, né? Então, sempre divulgam lista: “Nossos alunos que entraram na USP (Universidade de São Paulo), na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), na federal de não sei onde!”. E aí meus pais ficaram animados com essa ideia de eu entrar numa universidade, aí eles decidiram me manter na escola.
P1 - E nesse período de ensino médio, você já estava na juventude, o que mudou em relação ao que você gostava de fazer com os amigos? Qual era o tipo de diversão que você gostava, nesse período do ensino médio?
R - Eu diria... Não, meu pai sempre me fala que eu amadureci muito cedo, então os meus gostos foram mudando muito. No ensino médio, eu me tornei uma pessoa mais introspectiva, com menos contato. Então, coisas que eu recordo bem é que eu nunca fui num ‘churras’ [da turma], que era muito famoso, na época, a gente falar que ia ter ‘churras’ na casa de ‘não sei quem’. Então, eu nunca fui de sair muito ou de ir ao cinema com os amigos. Era uma coisa mais se era aniversário de alguém. Eu era bem quieta, pra ser bem sincera. Era bem quietinha. Então, o que eu gostava de fazer era muito... eu passei a ler muito. Então, eu passei a ler, sei lá, cinco livros por mês. Eu lembro porque meu recorde foi sessenta livros num ano, na época. Então, eu passei a ler muito. Aí, nesse período que eu passei a ler muito, meu pai estava quase surtando porque, cinco livros no mês, pensando que cada livro é uns trinta reais, era um pouco pesado. (risos) Aí eu criei um “blog” de livros. Não por causa disso, mas, na época, eu tinha um “blog” de livros - que existe até hoje - pra fazer resenhas de livros. Então, eu queria ser, nessa época, muito “youtuber”. “Booktuber” (comunidade do YouTube que faz vídeos sobre livros). Eu queria ter um canal no YouTube, de livros. Só que eu não tinha câmera, falei: “Vou investir no ‘blog’ mesmo e vai funcionar”. Eu comecei a fazer contatos com editoras, pra pegar parceria. E aí eu fiz parceria com a Intrínseca, com a Novo Conceito. Eu recebi a (Camanda Mendes?), recebia livros em casa. Me comprometi a fazer a resenha, postar e divulgar.Tinha muitos comentários, tipo, cinquenta por “post”. Tinha bastante engajamento. Em grupos de Facebook, eu participava de vários grupos de blogueiras, aí eu passei a ir em alguns encontrinhos de blogueiras e era uma coisa mais raiz, assim, não tanto que nem tem hoje, mas é uma coisa que eu adorava fazer. Nossa, eu gostava muito de escrever resenhas de livros, ler e postar! E aqueles livros chegando de monte, assim, em casa. Era muito legal! E eu lia que nem uma doida. Eu passei a assistir séries também. Foi nesse período que eu comecei a assistir “Doctor Who” e me apaixonei pela série, passei a encontrar um gosto muito grande por ficção científica. Então, eu fiquei um pouquinho mais introspectiva, não saía muito, passava o dia inteiro estudando o ensino médio. Foi um período bem... Estudando o dia inteiro. Eu chegava em casa uma hora, meio dia, almoçava, descansava [e a] uma hora eu já estava sentada, estudando até tarde. E no dia seguinte, de novo e de novo o mesmo ciclo. Eu tinha dificuldade em aceitar ter que sair no final de semana. Então, pra mim era difícil alguém virar pra mim e falar: “Vamos no cinema tal dia?”. Eu falava: “Não, tenho que estudar”. Até as meninas ficavam vindo aqui: “Carla, vamos descer, não sei o quê”, “Não dá, tenho prova de Química segunda-feira. Não dá”. Porque eu queria ser a melhor, queria ir muito bem. Eu queria, realmente, estar na lista, porque o Objetivo, pelo menos a escola que eu estudei, tem uma lista que eles colocam todo trimestre, com os melhores alunos. E eu queria estar naquela lista dos dez melhores. Eu falei: “Eu preciso estar entre os dez melhores! Eu preciso estar na lista!”. Era o que a gente falava: “Eu preciso estar na lista. Entrou na lista? Você viu se entrou na lista?”. Assim que colocavam a lista, apareciam umas trinta pessoas em volta da lista, todo mundo olhando: “Será que eu estou na lista?”. Eu queria estar na lista. Então, eu estudava muito, mesmo. Muito. E lia, assistia séries, mas eu saía quando tinha aniversário ou coisa assim. Não era muito comum, mas eu saía. E eu passei a fazer amizade com pessoas um pouquinho mais velhas. Isso tem a ver com a parte de amadurecimento que eu falei. Então, pra mim, já não me engajava muito ter amizades da minha idade. Era legal, mas, sei lá, eu passei a fazer amizade com a Ju, aqui do prédio, que ela é três ou quatro anos mais velha do que eu. E a gente fez uma super amizade na época do ensino médio. Então, ela já estava terminando o ensino médio e eu ainda no começo, mas a gente saía, conversava... E era de conversar sobre a vida, estudo, livro, sei lá, várias coisas que estavam acontecendo. Então, eu mudei um pouquinho nesse período do ensino médio.
P1 - Quando você estava no ensino médio, já tinha alguma ideia do que você queria fazer, de graduação?
R - Eu não tinha ideia. Confesso que a maior diversão era ser blogueira de livros: eu ia na Bienal, distribuir marcadores, divulgar meu "blog". Mas eu confesso que, nessa trajetória de ter um "blog", eu comecei a aprender - eu tinha Tumblr também - Html e CSS, que são linguagens pra quem desenvolve "sites", e aí eu falei: “Nossa!”, e comecei a vender - eu não contei isso, né? - "blogs". Então, quando eu personalizei meu "blog" e ele ficou super bonito, fez sucesso entre as meninas de dezesseis anos, da minha idade, assim, que eram blogueiras. E aí eu falei: “Eu vendo. Faço pra vocês e vendo”, e eu comecei a vender. Vendia por cinquenta reais cada "site". Aí eu comecei a vender, transferia pra conta do meu pai, porque não tinha uma conta corrente e era isso. E aí eu comecei a buscar profissões que tinham essa questão de desenvolver "sites". Eu achei coisas sobre Web Designer na Espm, em faculdades particulares, mas eu falei: “Não, preciso de uma faculdade pública. Será que faculdade pública tem esse curso?”. Aí eu vi que já estava mais direcionada para um curso de computação, talvez, e aí eu comecei a olhar. Aí começou a surgir uma opção, eu falei: “Acho que é uma opção viável, vamos tentar e ver no que dá”. Eu confesso que fiz as coisas um pouquinho sem pensar, tá? Porque, na época dos dois últimos anos, eu tive um problema de saúde e fiquei quase um ano sem aula, então eu estava muito perdida nas matérias, eu estava com pouca expectativa de passar no vestibular, que eu falava: "Putz, o pessoal se mata pra passar na Fuvest (vestibular da USP), aí eu vou ficar com cinco meses de aula e vou passar na Fuvest? Isso não vai acontecer”. Então, eu estava um pouco sem expectativa. Já não estava super ansiosa, mas quando você se inscreve na Fuvest, porque eu queria estudar na USP, você precisa escolher um curso, uma carreira, pelo menos uma primeira e uma segunda opção. Não é que nem o Enem, que depois escolhe qual a instituição e você consegue com sua nota. Então, foi um pouquinho complicado, mas eu segui esse caminho de fazer os cursos de computação, de sistemas, de análises de sistemas, olhar um pouquinho isso.
P1 - E aí você prestou, então, Fuvest e passou em Sistema de Informação pela USP?
R - Isso. Eu prestei Mackenzie, mas não fui no dia da prova. (risos) Porque não era o que eu queria e o curso era caro, aí eu falei: “Não vai ter condições”. Aí eu nem fui na prova. Mas eu prestei a Fuvest, fiz o Enem também e fiz o vestibular da Vunesp, que era pra Unesp (Universidade Estadual Paulista). E da Unicamp também. Aí eu passei... No Enem eu fui muito mal, nossa! A minha nota não deu pra nada, até desisti de olhar. Mas eu fui muito bem na Unesp, na Unicamp e na Fuvest. Passei nas três. E aí eu decidi pela USP, porque a Each, que é a escola da USP, que tem o curso de Sistema de Informação, que eu me formei, é muito perto de casa. E eu estava com uns problemas pessoais na época, familiares, então, de forma que a minha família dependia de mim. Então, eu estar muito longe ia ser muito complicado. A questão financeira ia ser muito complicada também. E aí, pensando e ponderando, eu falei: “Tá, a Each é uma ótima escola, tem o curso que eu escolhi como primeira opção. Eu passei, acho que não preciso considerar mudar pra Bauru (SP), pra ir pra Unesp, ou mudar pra Limeira (SP), pra estudar na Unicamp”. Então, eu fiquei com a opção da Each, Sistema de Informação, perto de casa, que tem o trem da linha Ermelino Matarazzo, que vai até a USP Leste. Então, fiquei com essa opção.
P1 - E como foi pra você entrar na faculdade da USP? Você se lembra das suas primeiras experiências, indo estudar no campus da USP Leste? O que você sentiu, quando você realmente estava lá: “Estou fazendo o curso, está acontecendo!”?
R - Eu acho que essa experiência da Each, da USP, foi um pouquinho antes de eu ter idade suficiente pra prestar o vestibular. Logo que abriu a estação de Ermelino Matarazzo e que também ligou a estação com a USP Leste, pra você chegar na universidade, minha mãe me levou pra andar de trem. Foi um passeio: eu, meu irmão e minha mãe, pra andar de trem. (risos) E aí fomos andar de trem. Eu lembro que fui pra Each e que era um lugar enorme. Hoje, eu vejo e não acho tão enorme, mas lembro que, quando eu era criança, pra mim aquilo era enorme. Eu ficava: “Nossa, como as pessoas levam quinze minutos pra ir de um prédio a outro?". E eu lembro que eu comi um chocolate muito gostoso na cantina da Each. Lembro [também] que a minha falou: “É um lugar assim que você vai estudar. Aqui é a USP, que aparece no jornal e tal, que aparece sempre no jornal", a Globo geralmente entrevista alguém da USP. Aparece professor da USP, doutor da USP, falando não sei o quê. Eu lembro porque fiquei com isso na cabeça. E aí eu lembro que, no dia da matrícula, que teve o trote. Hoje, é um trote bem mais humanizado, bem mais tranquilo. Tem regras, né? A universidade, pelo menos, a Each, leva isso bem a sério; os alunos da Each também, os veteranos. E aí eu lembro que meu pai foi comigo nesse dia e que foi um dia de muita ansiedade, nossa! Eu estava muito ansiosa. Acho que eu estava mais ansiosa do que no dia da Fuvest. Já estava: “Como que as pessoas vão ser?”. Porque você vê tanta coisa assim falando de trote, você fica com medo e meu pai super pra cima, aquela pessoa que te motiva. Se você fala que está com medo, ele bate, dá um tapa: “Que medo o quê? Para com isso!”. E aí eu [fiquei] super nervosa, mas ele falou: “Não, vamos lá!”. Eu lembro que fui com uma blusa da Mulher Maravilha e eu não sei por que eu fui com essa blusa, mas, enfim, fui com a camisa da Mulher Maravilha e lembro que eu fiquei toda pintada. Eu lembro que eles não queriam me pintar, porque eles estavam levando as regras de trote muito a sério, pra não invadir a privacidade de ninguém. E meu pai: “Não, pinta essa menina. Se ela sair daqui sem tinta na cara, eu não acredito”. E aí a menina me pintaram todinha, pintou minha testa, sujou meu cabelo e aí pintou a cara dele também. Aí a gente tirou várias fotos: ele fez eu subir nas costas dele, pra menina tirar foto, do curso de Têxtil e Moda, a Rebeca, que estava fazendo uma sessão fotográfica de todos os alunos. E aí foi ótimo esse dia, e eu comendo chocolate de novo. - Claramente, uma bela taurina. - E foi isso: um dia muito emocionante, assim, mas eu estava bem nervosa. E acho que o dia seguinte, da semana de recepção também, foi um dia de estresse muito grande, porque aí eu já fui sozinha. Meu pai falou: “Não, você vai sozinha agora”. (risos) Então, já era caminhar até o ponto de ônibus - aliás, primeiro [fui] olhar como chega, [porque] eu fui de carro a primeira vez - pegar o [ônibus sentido] Praça do Correio, descer na USP Leste, andar a passarela, entrar na universidade com meu cartão USP, passar na recepção, procurar onde era o Auditório Vermelho - porque tinha Auditório Verde, Vermelho, Auditório ‘não sei o que’ -, ver várias pessoas, ‘bichos’ perdidos também, tentar fazer alguma amizade. Mas as pessoas foram super solícitas. Eu comprei o Kit Bicho do Diretório Acadêmico, que vinha blusa que não serve em mim, mas tudo bem, mas veio garrafinha, um manual muito ótimo, do Bicho, que explicava os prédios, que têm apelidos. Então, a gente tem o Titanic, o Elefante Branco... Eles têm apelidos, eles não [se] chamam assim, né? Um é A1, o outro é A não sei do que. Eu nem... Até hoje eu não sei. Pra mim, é Elefante Branco e Titanic. E, enfim, foi um dia muito bom. Eu sinto falta da faculdade, às vezes, assim. Não das aulas, mas eu sinto falta dessa... Ir até lá, tomar um café, ir na cantina ver os colegas. As primeiras semanas foram bem animadas, eu estava bem animada mesmo, comprei... Eu adoro material escolar, adoro papelaria. Tenho milhares de canetas por toda parte, aqui na minha mesa. E aí eu já comprei todo o material, como se fosse no ensino médio. Eu fui comprando caderno, comprei canetinha, estojo, mochila. Foi igual [ao] ensino médio. Comprei tudo bonitinho, assim. No final, quase não usei nada, né? Comprei tudo. Mas foi isso: fui preparada pra guerra. (risos) Eu mal sabia como que ia ser. Acho que a gente não tinha noção de nada, pra ser sincera.
P1 - E, ao longo do curso, como sua vida, a sua rotina foi mudando? Você conseguiu manter os mesmos hábitos de antes, de assistir séries, de ler muito? Ou tudo mudou?
R - Eu continuava a ler muito, lia entre o intervalo das aulas. Sempre cheguei... Eu sou uma pessoa muito pontual. Então, a aula começava às oito, sete e meia eu [já] estava na faculdade, sabe? Eu morava perto, então pra mim era fácil chegar cedo. Então, já ia pra faculdade e eu ficava lendo. (risos) Ou conversando com alguém. Ver séries mudou um pouco, eu acho que reduzi bastante. Depois, com o tempo... É que no começo você queria tudo de si. Você sai com aquela mentalidade da escola, onde todo mundo ali era o melhor aluno da escola. E aí você percebe que ninguém ali é melhor de nada mais, são meros mortais, que vão ficar muito felizes quando tirarem cinco na prova. Que a gente tem a “Nossa Senhora do Cinco Bola” e o lema é que cinco vale dez. Cinco é dez! Porque cinco é a média, cinco é dez. Tirou cinco, passou. Acabou a história. Então, eu reduzi um pouco, mas, no começo, eu me dedicava, estudava muito. Ficava na biblioteca [durante] altas horas. Só que assim: eu tive que começar a trabalhar e aí ficou um pouquinho complicado. Porque na primeira semana, um professor meu, Durval - ele sabe quem ele é, ele é de São Paulo (risos) -, é um pouco malvado com os alunos, bota aquela pressão nos calouros, tipo: “Olha pra sua direita, olha pra sua esquerda. Só um de vocês vai se formar!”. Aí todo mundo fica: “Meu Deus! Só um vai se formar, em cada três, o que é isso?”. E aí ele falou: “Quem trabalha, é impossível manter a faculdade. Se você trabalha, vai ser muito difícil. Você não vai conseguir!”. E aí eu já fiquei assim: “Ai, meu Deus! Eu estou perdida”. Eu estudava no matutino e comecei a trabalhar no primeiro ano, no segundo semestre, e aí ficava um pouco mais difícil manter a rotina. Aí o trabalho era perto da faculdade. Eu comecei a trabalhar com meu pai, ele estava precisando de uma força também. Ele é corretor de seguros, né? Aí ele tem uma empresa que é colada com a nossa casa. Era colada uma na outra, tipo, era a mesma coisa, junto. Mesmo prédio. Aí eu comecei a ajudá-lo, pra dar uma força, e me mantive lá por bastante tempo. Ele estava precisando de ajuda e aí foi um pouco difícil manter as aulas, depois, sair do trabalho e ajudar meu pai, mas deu pra manter, assim. Eu tive um amigo também que morava em Osasco (SP) e que trabalhava também lá na [Avenida] Paulista e conseguiu manter também, mas é difícil, porque você perde a chance que você tinha antes, de fazer como todo mundo da sua sala. A maioria, tipo, noventa por cento da sala não trabalhava. Então... No primeiro ano, pelo menos. Depois todo mundo pega estágio, todo mundo começa a trabalhar. Mas antes você perde a chance de ficar com o pessoal estudando pra aquela prova de Cálculo na biblioteca. Porque [é] ali surgem os “insights”, que o estudo vem, que você consegue fazer as listas em conjunto e se prepara melhor pra prova. E eu lembro de me sentir excluída, por não conseguir fazer isso. Tipo, as pessoas tendo a tarde toda e não vai dar pra estudar a tarde toda, não ter como estudar a tarde toda, não vai rolar. Então, eu tenho que estudar no final de semana ou dar outro jeito de estudar, em outros momentos, à noite. Então, quem faz graduação sabe: falta uma aula pra estudar pra prova da outra e vai começando a fazer essas trocas. Eu fui aceitando que não ia ser a melhor aluna. Foi assim.
P1 - Esse foi o seu primeiro trabalho? Com seu pai, com a empresa de seguros dele? Você se lembra de ter havido alguma alteração financeira nesse aspecto, tipo: “Ganhei meu primeiro salário, vou fazer alguma coisa que eu não fiz ainda”? Teve alguma coisa, algum impacto nesse sentido, pra você?
R - Nossa, zero. Até porque eu realmente só ajudava meu pai. Não era remunerado. (risos) Era, realmente, uma força de família. Então, era, realmente, eu trabalhando com meu pai. Eu trabalhava direto com o público, atendendo as pessoas. Então, não fez muita diferença nessa época, assim. Eu acho que só começou a fazer diferença quando comecei o estágio pela faculdade, no segundo ano. Segundo? Foi no segundo ou no terceiro ano? E agora? No terceiro ano. É que, na verdade, a história é assim: primeiro ano, eu trabalhei; aí, no segundo ano, eu consegui bolsa da faculdade pra participar de um projeto. Eu dava aula de Desenvolvimento Web pra outros alunos, numa incubadora (microempresa) da USP. Então, era aluna do PUB, que é o Projeto Unificado de Bolsa da USP. Aí tinha uma bolsa e eu consegui juntar. Você pode juntar bolsas, né? Então, recebia essa bolsa e também o auxílio, que a USP tem um auxílio que, se você é um aluno baixa renda, você consegue ter um auxílio. Aí, como eu estava morando com a minha mãe, a gente estava passando [por] uma situação um pouco difícil, a gente ficou com essa bolsa que eu tinha, mais o auxílio da USP, que é um absurdo o valor dele. É um absurdo ele não ter tido alteração até hoje, mas é o que tinha e é o que tem até hoje. É o mesmo valor, mas dava um galho: tem refeição no bandejão de graça, pode tomar café da manhã. Você tem auxílio livro, umas coisas assim. Transporte que você não paga. Enfim, aí isso foi ajudando. Mas eu acho que eu nunca parei... Nossa, agora, parando pra pensar, eu acho que não teve nenhum momento que comprei alguma coisa, tipo: peguei o primeiro salário e fui lá comprar um videogame. Eu lembro que o Pedro, um amigo meu, fez isso. Lembro que ele ficou muito feliz em poder comprar o videogame. Eu acho que nunca fiz isso. E parando pra pensar por que eu nunca fiz isso, acho que é porque a gente realmente precisava do dinheiro, sabe? Tipo, tinham outras coisas que eram prioridade: saúde, enfim, casa. Eu nunca parei pra pensar em comprar alguma coisa muito supérflua. Eu acho que só depois que eu comecei a trabalhar, no ano passado, em dezembro de 2019, CLT, nove horas por dia, que eu comecei a pensar em: “Quero comprar coisinhas pra mim, tipo, fone de ouvido, coisas assim, à parte”. Que, no geral, o que eu gastava era coisas de casa ou comprar um livro [de forma] mais tranquila, porque já não conseguia manter o “blog”. Não lembro de nenhuma compra muito específica, assim.
P1 - E falando no seu “blog”, você quer passar o endereço pra gente, pra gente deixar registrado, colocar também no site do Museu? Pode falar.
R - Sim, é “www.carlavieira.com.br”. Só isso.
P1 - Certo. E você continuou conseguindo atualizá-lo ou, realmente, depois da faculdade, [com] estágio [e outras coisas], não conseguiu mais?
R - Não, ficou impossível. Até hoje… Eu acho que tem uma postagem do ano passado, que peguei umas férias pra... E eu acabei revivendo uns “posts”, escrevi umas resenhas, mas não. Eu acho que eu guardo esse espaço e pago o domínio todo ano, pra manter aquela memória viva, sabe? Tem tanta coisa legal ali, história... Todo ano eu fazia um “post” de retrospectiva do ano que passou, o que eu fiz, fotinhas do que eu fiz, o que eu quero pro ano seguinte. Quando eu passei na USP, postei. Então, eu mantenho o “blog” meio assim, e quando bate de escrever uma resenha, se eu ler um livro legal, aí eu vou lá e escrevo. Mas eu reduzi bastante a quantidade que eu leio, então ficou um pouco difícil. Mas é isso. E com estágio é impossível. Estágio, faculdade, nossa, foi um período muito tenso!
P1 - E como foi essa sua experiência nesse primeiro estágio que você fez, na incubadora da USP?
R - Olha, foi muito boa, porque lembra - vocês vão lembrar - que a gente conversou, que eu contei que eu queria desenvolver “sites”. Eu queria ser Web Designer e busquei cursos da universidade pública que tinham a ver com computação, com Html e CSS. E aí, na primeira semana do curso, eu descobri que não tem aula de interface gráfica, não tem aula de você montar um “site”. Isso não existe. É computação, computação [mesmo]. Aí eu fiquei assim: “O que eu estou fazendo aqui? O que está acontecendo?”. (risos) Eu entrei em desespero. Fato. Porque, definitivamente, eu me senti totalmente fora d’água. Senti: “O que eu estou fazendo aqui? Eu não sei mais o que eu estou fazendo aqui”. Eu perdi o que esperava que fosse e foi completamente diferente. Mas eu lembro que, na época, tinha um veterano meu, o Guerra, que estava dando aula - como ele já estava quase se formando, tinha bastante experiência - de desenvolvimento de “sites” para os alunos que queriam aprender. No laboratório, mesmo. Pegava uma turminha e montava a aula durante à tarde. E aí decidi, no primeiro semestre - que eu não estava trabalhando-, ir lá, falei: “Putz, vou dar uma olhada como são essas aulas”. E aí comecei a participar dos encontros que ele tinha e comecei a aprender, a estudar mais, entender melhor como funcionava. Falei: “Nossa, isso é legal, né?”. Aí ele decidiu, estava acabando a graduação dele e ele falou: “Vou ter que sair e eu não queria que o Web/Dev - que era o nome do curso - acabasse”. E eu falei: “Nossa, é verdade! Não seria legal que acabasse”. Ele falou: “É seu. Eu quero que você cuide disso”. Aí eu comecei a cuidar, a ensinar o que eu aprendi com ele, o que eu estudei, com outros alunos. E em algum momento a gente decidiu usar o espaço. Como o laboratório é um espaço público, apareciam pessoas de outros cursos, ficava um pouco uma baderna, não dava pra dar uma aula legal. E aí a gente decidiu usar o espaço da incubadora. Um espaço lindo que tem, a incubadora da Habits, lá na Each. É um espaço que tem computadores, salas de aula, muito bem decorado. É um lugar, tipo, ambiente meio “startup” - tem uma pegada de empreendedorismo -, muito bem organizado. Saí daquela visão de aula, lousa, escuro, com computador. Uma coisa mais divertida, mais alegre. E aí a gente decidiu levar isso pra professora Luciane, que é a professora de Empreendedorismo, que fazia parte do comitê da Habits. E ela super achou legal a ideia. Na primeira aula que eu dei, lotou a sala. Tipo, tinha pessoa [pra] fora [da sala], tentando assistir, e ela falou: “Não, a gente tem que mudar esse curso pra cá e ajudar você a montar uma estrutura pedagógica: o que eu quero que as pessoas aprendam, quais habilidades que eu quero que elas desenvolvam. A gente quer te dar esse apoio pedagógico, de espaço, oferecer computadores pras pessoas estudarem”. Eu falei: “Excelente! Amei, vamos seguir com isso”. Aí ela conseguiu uma bolsa pra mim e eu fui tocando esse projeto, então. No começo, eu dava muitas aulas. Eu dava, tipo, duas aulas, só que as aulas são muito longas. Acho que [são] duas horas e meia cada aula. Um pouco longo. Tinha um intervalo. E aí passou a ter duas vezes por semana, mais o sábado. Aí a gente percebeu que estava me sobrecarregando, [então] começamos a convidar professores e a abrir o curso. Não era mais só pra calouro de Sistema de Informação, era pra qualquer pessoa. Então, tinha gente de Têxtil e Moda; Educação Física e Saúde; Obstetrícia; pessoas de Biologia, que vinham do [Instituto] Butantan; alunos de Etec que vinham de Pirituba (bairro de São Paulo) fazer as aulas; pessoas que vinham de Sorocaba (SP) fazer as aulas. (risos) Foi incrível! Foi um período incrível. Sensacional! E eu estava muito feliz. Eu passei um ano, quase um ano na incubadora. Acho que todo meu segundo ano foi na incubadora. E foi em 2017, isso. Todo meu segundo ano foi na incubadora. E foi um período incrível: eu cresci muito como pessoa, conheci tanta gente incrível, tantas pessoas sensacionais, com potencial. Foi incrível! Resumidamente. Só que chegou um momento que algumas coisas batem na porta, uma delas é dinheiro, e eu falei: “Não. As bolsas estão me ajudando, mas eu preciso realmente começar a trabalhar e fazer estágios”. E fazer estágio, pra quem está na faculdade, é uma coisa boa, ainda mais na área de tecnologia, porque os estágios pagam bem, na maioria das vezes, e você trabalha seis horas. Eu falei: “Nossa, é uma oportunidade muito boa. Por mais que eu ame Web/Dev, tenho que começar a pensar em mim, na minha família, enfim, nas nossas necessidades atuais”, e aí eu fui atrás do estágio na Amazon. Eu queria um estágio em uma empresa grande, e aí eu fui pra Amazon. Mas era meu sonho: preciso estagiar numa... Porque o pessoal, todo mundo [da faculdade], [estava] nessa pegada: “Vou estagiar na Microsoft, na IBM, não sei onde, que a gente estudou na USP”. Eu falei: “Não, eu quero ir pra uma empresa grande!”. Aí eu me candidatei pra vaga na Amazon, que achei no “site” da Companhia de Estágios, e fui. E eu tive que sair da Web/Dev, foi muito difícil [pra mim]. Foi uma experiência que eu fiquei um pouco triste. É como você sair de um emprego que você gosta muito, que você ama aquelas pessoas. Você sente [que está] traindo-as, abandonando-as, deixando-as na mão, mas eu tentei fazer de tudo pra ele continuar existindo e ele continuou existindo: tem turmas até hoje. Não sei como hoje está sendo, [por estar] “online”, mas quando eu saí da faculdade, dois anos seguintes - eu saí do projeto em 2017; 2018 e 2019, que eu continuei na faculdade, o projeto ainda existia. - Sempre que eles precisavam de ajuda, eu ia. Eu ia nas aulas de sábado, porque sábado era o melhor dia pra eu dar aula, porque era um dia tranquilo. Aí cada um levava uma coisa pra tomar café. Então, um levava um bolo, o outro trazia um café, o outro trazia um doce, um brigadeiro e a gente tomava café com os alunos. Virou uma grande família. Mas chegou uma hora que eu tive que deixar [de] ir.
P1 - Então, você acabou saindo do Web/Dev e entrando como estagiária na Amazon. Isso foi no seu terceiro ano de faculdade?
R - Isso. Entrei na Amazon no fim de 2017 pra 2018.
P1 - Certo. E como foi a sua experiência, lá?
R - Olha, uma empresa tão grande assim é um pouco assustadora, no começo, quando você é estagiário, porque quando a gente fala que é muito grande: é muito grande! É muito grande, mesmo. É fora de cogitação. Assustadoramente grande! Mas um fato curioso da Amazon é que eu me inscrevi pra vaga de engenharia de software, estágio; a entrevista foi horrível, eu fui muito mal. O entrevistador era muito seco, um típico cara de TI (Tecnologia da Informação). E aí, sabe quando não rola aquela identificação, você fala: “Ai, eu vou trabalhar com essas pessoas? Elas são chatas. Não quero”. Desculpa, foi isso que eu pensei, porque o meu curso estava um pouquinho acima. A gente é muito fora de ambiente, porque eu sempre gostei de conversar bastante, de falar, apresentar, palestrar, de ser aquela pessoa... Quando [a gente] trabalha em grupo: “Quem quer apresentar?”, “Eu quero, eu gosto”. E as pessoas deixavam, claro, porque ninguém queria apresentar. (risos) Na forma de TI, todo mundo queria jogar e ser bem introspectivo, é um pouquinho assim, mas com o tempo a gente vai quebrando esse estereótipo. Mas, enfim, o cara era um estereótipo de uma pessoa de TI e eu não gostei muito disso. Não me identifiquei com a vaga e não passei, no fim das contas. Acho que não ia dar certo, de qualquer forma. Só que aí minha mãe falou uma coisa, a minha mãe falou: “Liga lá e pergunta por que você não passou, o que aconteceu, o que poderia ter sido feito diferente, o que você pode melhorar nas próximas entrevistas. Não custa nada pedir um ‘feedback’”. Aí eu liguei, a moça do RH falou que ia guardar meu currículo, que se tivesse alguma vaga que batesse mais com o meu perfil, eles iam me avisar. E alguns dias depois, ela me retornou e falou que tinha uma vaga na área de BI, “Business Intelligence”, na área de Marketing, pra analisar dados. Eu não sabia o que era isso, aí eu rapidamente pesquisei, olhei, falei: “Não tenho nenhuma experiência, vamos experimentar”, porque não tem como eu saber o que gosto, a área de tecnologia é gigante. E aí eu fui e passei na entrevista. A entrevista foi super legal, meu chefe era super descolado, muito descolado, sabe? Saí de um lugar super tradicional de TI e entrei na sala de uma cara todo tatuado, com a calça rasgada. Aí falei: “Nossa, que time legal! É isso que eu quero. Que time incrível!”. E aí foi a minha primeira experiência. A entrevista foi super boa. Foi uma experiência, eu diria, que me transformou em uma outra pessoa, pro bem, tanto de carreira, quanto pessoal. Mas é porque é uma experiência que uniu também o final do curso, um momento um pouquinho diferente de carreira. Uniu umas questões pessoais também, que estavam acontecendo. Então, foi um período importante e também foi o período que eu conheci a Raíssa. A Raíssa trabalhava na Amazon, não na Amazon que eu trabalhava. Eu trabalhava na Amazon Varejo. E tem a Amazon Varejo e a WS, que é serviço de nuvem, de computação, que é uma consultoria aqui no Brasil, né, que vende serviços pra empresas. Ela trabalhava na WS, mas como todo mundo [ficava] no mesmo prédio, no mesmo “e-mail”, na mesma empresa, eu marquei um “one on one” (reunião entre duas pessoas) com ela por causa de um grupo de mulheres que tinha em tecnologia, lá na Amazon, que ela trabalhava muito a inteligência artificial e eu estava começando a me interessar no assunto. Ela foi uma pessoa essencial pra decidir fazer o mestrado, por exemplo. Então, eu acho que foi um período muito importante de carreira. Também foi meu primeiro emprego. Eu aprendi muito, porque é uma empresa grande: eu passei a ter contato com pessoas de vários lugares do mundo e a entender como me comportar em reuniões, como lidar com tudo isso, essa experiência com mensagem à distância, falar com pessoas de todo o mundo. Eu falava com muita gente da Índia e eu tinha que, sempre, lembrar que o fuso horário era muito diferente. Eu mandava mensagem: “Mas esse fulano não me respondeu ainda”. Aí eu lembrava [que] eram duas da manhã [na Índia]: “Melhor esperar até o dia seguinte”. Tomar um pouquinho de cuidado, tipo, ficar mandando: “Fulano, você não me responde”, duas horas da manhã, é um pouco chato. Então, eu aprendi muita coisa mesmo.
P1 - Em relação a... Justamente, eu queria que você me falasse um pouco sobre essa questão: você disse que a primeira tentativa foi com uma pessoa, como você disse, [com] estereótipo de TI. No seu curso e nos seus ambientes de trabalho, você viu muito esse estereótipo da área de TI como área de homens, de poucas mulheres? Você chegou a presenciar isso ou teve alguma dificuldade profissional por causa desse padrão?
R - Eu diria que presenciei isso desde o primeiro dia de aula. A minha sala era composta por… Primeiro, metade da turma eram pessoas orientais. E aí eu conversei com elas, pra saber de onde elas eram. Alguns eram descendentes de japoneses; alguns descendentes de chineses; alguns descendentes de coreanos; outros de taiwaneses. Aí, a outra parte eram caras brancos e uma pequena minoria eram mulheres. E aí, claro que você vai em direção àquele grupo que você vê e se identifica, você vai pra lá. (risos) E aí eu fui conversando, né? Primeiro, uma das primeiras amizades que eu fiz foi a Amanda - a gente se conversa até hoje - e eu me identifiquei muito com ela, pelo seguinte: todo mundo ali, a maioria das pessoas tinha feito curso técnico de computação, ou fizeram Etec junto com ensino médio, ou já tinham feito curso de eletricista no Senac ou no Senai, já tinha uma certa experiência com a área de computação, já sabe, tipo, programa desde os doze anos: “Por isso que eu entrei nessa área, porque amo programar e jogar LOL (‘League of Legends’)”. Todo mundo jogava LOL. Eu era uma das poucas... Até a Amanda, que não era de “tech”, jogava LOL, mas eu não jogava LOL, nunca joguei. Mas a Amanda veio de um curso de Administração técnico, ela fez ensino médio técnico, fazendo Administração. E veio parar em TI. Eu fiquei: “Meu, o que você está fazendo aqui?”. E eu me sentia super bem com ela, porque a gente era um pouco diferente; ela era bem vaidosa, que não era muito comum, assim, no curso. Então, é uma sala um pouco estranha: todo mundo se veste de cores escuras; dificilmente, você vê uma pessoa que esteja com roupas coloridas no meio do ambiente. As pessoas são quietas. Eu via isso porque entrava na sala de Marketing e todo mundo falando pra caramba, ninguém ficava quieto, [e era composta por] metade mulheres, metade homens. Aí você entrava na sala de TI, todo mundo em silêncio, um olha pra cara do outro: “Bom dia!”, ‘não sei o que’. Ninguém faz pergunta. Um ambiente esquisitíssimo! E no mercado de trabalho isso se manteve. Na Amazon, por mais que o meu time era de Marketing, eram pessoas super descoladas, como eu mesma falei: meu chefe era super descolado, super fora da curva do que você espera; e o resto do time também era, eram pessoas dos mais diferentes cursos e carreiras super diversas. Quando você ia no andar de Engenharia da Amazon, eu ficava assim: “Que lugar estranho!”. Um silêncio, as pessoas de chinelo trabalhando. O que na área de Marketing não era muito comum, era uma área de negócios, a maioria das pessoas de salto ou de tênis, e na TI as pessoas de bermuda, chinelo, camiseta de “rock”. Aí eu ficava assim, tipo: “Gente, o que está acontecendo aqui? Que andar estranho!”. Eu ia, às vezes, lá, porque eu ia pegar alguma sala de reunião - era a única disponível, que estava no andar de TI - ou ia falar com alguém que eu conhecia. Então, era um andar um pouco esquisito. Era o mesmo clima da minha sala de aula. Então, sim, mas sobre me despedir… Eu acho que o que rolou mais pra mim… Nunca sofri agressões diretas. Eu já tive situações complicadas no trabalho, mas acho que o que rola muito e que foi muito difícil pra mim foi, justamente, essa não identificação. Você começa a duvidar que está no lugar certo. Porque você olha todo mundo da mesma forma, com os mesmos gostos e interesses, e você [é] uma das poucas pessoas ali com gosto diferente. Aí você se sente e fica: “Será que eu que não estou no lugar errado? O que eu quero aqui? Será que eu não devia mudar de curso, ou buscar uma outra oportunidade? Mudar de carreira? Eu estou no lugar errado”. Eu acho que isso fica por muito tempo e você se sente muito mal por isso. Isso é muito ruim no curso, porque te desmotiva. Você não sente mais aquela vontade de ir pra aula, porque já não vê mais perspectiva de carreira, você não arrasa na matéria de algoritmos, nem na matéria de estrutura de dados, nem na matéria de cálculo. Você se sente uma inútil. Porque tem colegas seus que mandam bem pra caramba e arrasam nessas matérias, e você fica: “Nossa, mas que tipo de engenheira de software eu vou ser? Eu não consigo nem passar na matéria de estrutura de dados”, que eu reprovei. Então, acho que isso é que ferra, mesmo, e aí você também não tem muitos professores e isso te deixa triste, assim. Até que o curso de Sistema de Informação tem um corpo docente bem diverso, comparado com Poli (Escola Politécnica da Universidade de São Paulo), que são cursos mais tradicionais e mais antigos. Porque a Each tem um pouco mais de dez anos. Não chega a vinte. Não chega nem a quinze, eu acho. E a Poli tem sei lá quantos anos. Tem muitos anos. Então, é um curso muito mais tradicional. As pessoas são mais velhas, é um curso mais, realmente... Menos diverso. Estrutura de dados é bem menos diverso que os outros, que a Each. Entre os cursos de Comunicação da USP, é o mais diverso. Mesmo assim é, tipo: 75% de homens pra 25% de mulheres [do total de 100%]. Então, eu senti, sim, mas abala mais essa questão emocional, porque o pessoal do meu curso era muito gente boa, sabe? Ninguém me menosprezava por nada. Era um pessoal muito... Que eu gostava pra caramba! Mas o que ferra é o seu consciente, assim, olhando aquelas pessoas, os interesses delas, você se sentir totalmente deslocado e fora... Se sentir deslocado é a palavra. Não tem outra palavra.
P1 - E você... Como a sua faculdade te influenciou profissionalmente? Porque me parece que você teve essa questão, né: "entrei e descobri que não era pra desenvolver 'site'". E aí já foi o primeiro impacto. Depois: "Eu não pertenço ao estereótipo, digamos assim, predominante dos professores ou dos alunos" e aí você percebe que fora você foi parar na Amazon, em uma área de Marketing. Então, como é que você conseguiu cruzar essas informações, pra conseguir seguir profissionalmente? Como você acha que isso aconteceu pra você?
R - Nossa, isso foi muito difícil! Foram anos muito difíceis. Eu via vários amigos meus já contornando um lugar, sabe? A maioria dos alunos iam trabalhar no Banco. Eu lembro que a gente falava que o Itaú era o recorde das nossas turmas. Todo mundo ia trabalhar no Itaú. (risos) E eu via as pessoas se recortando já: “Eu quero trabalhar como 'designer'; Quero trabalhar com 'front-end', pra desenvolver 'site', pensar na parte de 'front'; Eu quero trabalhar com 'back-end'; Quero trabalhar com dados”. E eu totalmente ali, perdida, tipo: "Eu já fui professora; dei aula de desenvolvimento 'web'; sei desenvolver 'sites'; agora eu trabalho na Amazon; aprendi muito sobre Excel; aprendi muito sobre 'marketing'; aprendi muito sobre análise de dados em si. Na própria Amazon, eu comecei a me aprofundar um pouquinho mais na área de dados e aí comecei a puxar, acho que foi o que fez eu direcionar meu caminho. Porém, chegando pro fim do meu estágio - que a gente só pode fazer dois anos de estágio. - O primeiro ano, eu fechei, renovei o contrato. Chegando em 2019, que era o meu último ano de faculdade, meu último ano de estágio: [tinha] um ano de TCC. E eu fiz o TCC na área de inteligência artificial, porque eu estava com interesse nessa área. A Raíssa me despertou uma faísca. Eu até tentei mudar de time na Amazon, mas não deu certo, aí eu comecei a pensar muito e comecei a buscar vagas, falei: “Preciso buscar vagas, antes que meu contrato encerre”, e eu não tinha pretensão de ficar na Amazon. Eu até pensei, por um tempo, depois eu acabei mudando de ideia e aí eu comecei a buscar vagas na área de dados. Só que eu não conseguia achar nenhuma vaga aberta, que tivesse sentido ou que eu me encaixasse, ou que eu passasse no processo seletivo. Algumas eu não passei, a maioria. E eu era pra entrar como júnior, a maioria das vagas eram plenos, sênior, eu falei: “Não, eu sou júnior. Tenho uma experiência com dados, com IA (inteligência artificial), mas é tudo muito teórico, não é nada muito aplicado. Eu nunca trabalhei em um projeto. Eu sou júnior, preciso de alguém que aceite que eu sou júnior e preciso aprender, porque tenho as ferramentas básicas pra aprender”. E eu não conseguia achar nenhuma vaga legal. Não deu certo. A vaga do Nubank foi uma empresa que era meu sonho trabalhar e foi muito difícil. Gente, que processo seletivo terrível! Muito difícil! Eu falo que é muito difícil, porque... Não que não tenha que ser difícil, mas é porque eu achei que era um perfil que não era o meu. Olhando, quando eu fiz o teste técnico, que as vagas de TI têm teste técnico, o teste técnico era totalmente fora da... Eles queriam o perfil [que fosse] o seguinte: um aluno vindo de uma universidade de linha, sei lá, USP, Unicamp, Unesp, universidades públicas, mas "tops"; um aluno que tivesse uma experiência internacional, que o teste técnico era todo em inglês. Por mais que eu fale inglês, era isso que eles queriam. E eu acho que eles queriam, realmente, um gênio, tipo: aquele aluno que participa de maratona de programação, que ganhou o Hackathon. Eles queriam uma coisa desse tipo, sabe? Porque depois eu fiquei olhando as pessoas que passaram, os perfis e eram muito alinhados nessa linha. Realmente não era meu perfil. Foi difícil aceitar isso, porque entrou um pouquinho naquela contradição que eu tive no primeiro ano: “Eu não sou um gênio de programação, não sou aluna que se inscreve em maratona, que passa a maratona e que ganha Hackathon, campeonato no Kaggle e que é um gênio. Eu não sou essa pessoa”. E a única empresa que me deu essa oportunidade de começar e que não era exatamente na área que eu queria, mas era na área de engenharia de software, foi a Loggi, onde eu trabalho hoje. Então, a Loggi aceitou que eu era júnior, ficou muito feliz com o fato de eu ter interesse no mestrado. Porque, na época, me inscrevi no mestrado, decidi fazer o mestrado na área de inteligência artificial. Então foi uma empresa que agarrou os meus sonhos, sabe? Então eu falei: “Não, eu queria muito uma coisa, mas o destino... [Sou] alguém [que] queria outra e essa coisa". Realmente, que eu faço até hoje, faz mais sentido para o que eu estou pensando em alcançar. E é uma coisa muito de perfil. Esse negócio de vaga é fogo: se você não passa, fica super 'bolado', chateado, mas simplesmente você não era perfil da vaga. Se o perfil que eles estão buscando é justo, se não é diverso ou não, essa é uma outra questão, mas eu não era o perfil, definitivamente.
P1 - E pensando nessa questão, também, dos estereótipos: você é cofundadora da perifaCode, mora em Ermelino Matarazzo, foi fazer a faculdade na USP Leste. Então você veio da periferia, né, você está na periferia. Como foi a ideia de fundar o perifaCode e buscar levar a tecnologia pras pessoas da periferia?
R - Olha, a perifaCode surgiu um pouco... Vou voltar um pouquinho antes, pra dar um contexto diferente: em 2017 eu comecei a participar de comunidades de mulheres pra tecnologia. Então, eu entrei na WoMakersCode, participei do Programa Summit, que foi o meu primeiro evento de tecnologia, e foi ótimo esse evento. Incrível! Várias mulheres ali. Foram elas que me incentivaram a aplicar pra Amazon e eu passei na segunda... Foi assim: eu não passei de primeira, mas passei de segunda. Elas que me incentivaram: “Aplica, manda seu currículo!". Então, foi um lugar muito importante, por muitos anos. E, em 2019, eu conheci o perifaCode. Foi um amigo meu que me trouxe o convite, o William Oliveira. O Will trouxe, e eu acho que esse teste estava batendo. Por mais que as mulheres de grupos de tecnologia pra mulheres discutam questões muito importantes, eu comecei a sentir falta de algumas questões que eram importantes pra mim também. E que não são relacionadas somente a gêneros. São relacionadas à raça, à classe social, e que não eram escutadas, não eram discutidas. E o 'perifa' trouxe esse espaço, esse ambiente de acolhimento, em que você vê pessoas que vieram da periferia, de uma realidade parecida com a sua, que sabem a dificuldade que é você morar na periferia e levar três horas pra chegar no seu trabalho. A Amazon fica na Vila Olímpia, em São Paulo, do lado do Shopping Juscelino Kubistchek. Então, levar cinco, seis horas por dia de transporte público é muito bizarro. São Paulo é muito bizarro. E vários estagiários que tinham na Amazon, eram pessoas muito ricas. Isso foi um choque de realidade pra mim, também, na época. E o perifaCode veio nesse apoio, enquanto eu estava lá, em 2019, porque eu precisava de alguém pra conversar, pra compartilhar experiências de pessoas que vieram da periferia e que estão na área da tecnologia: "Quais são as dificuldades? O que a gente compartilha?". Dificuldades que a gente pode fortalecer. E o ‘perifa’ surgiu nesse sentido, a gente fazia eventos em grandes empresas, pagava o ingresso das pessoas, a locomoção pra elas irem até o evento. A gente também fazia eventos nas periferias, pra compartilhar, porque a gente tem muitas potências aqui. Eu acho que esse é um ponto importante. Se as pessoas soubessem quanta gente com potencial tem e que simplesmente não têm uma oportunidade. É muito triste, muito cruel a realidade que a gente vive. E a gente queria tentar, pelo menos, de alguma forma, trazer pra essas pessoas ou pras crianças, principalmente jovens, de que a tecnologia, não só por gostar, mas é uma área que te traz um retorno financeiro muito rápido, que pode te permitir transformar a vida da sua família. E muita gente se identificou nesse discurso, porque, por mais que a gente queira, essa conversa de trabalhar com o que você ama, é linda na prática, mas nem todo mundo consegue ir atrás disso, tipo: “Meu sonho é ser artista de teatro”, sabe? Pra um periférico virar um artista, um ator, uma carreira que não vai ter um retorno financeiro rápido, às vezes é muito difícil. E mostrar que a tecnologia pode ser uma porta pra você trazer esse retorno financeiro pra sua família: às vezes, é a coisa que a pessoa mais quer naquele momento, é a prioridade daquela pessoa. E muita gente viu a vida transformada por esse contato que teve com a gente, de conseguir um retorno financeiro muito bom e conseguir mudar a sua família, comprar sua primeira... Conquistar sua casa própria, poder cuidar dos seus filhos, poder conquistar a casa que sua mãe sempre sonhou. Então, eu vejo isso também muito no meu pai, sabe? Ele é um corretor de seguros pequeno, há mais de trinta anos, mas ele tinha um potencial tão grande, que eu acho que, se ele tivesse tido a oportunidade parecida com a minha - que ele ralou muito pra que eu tivesse as oportunidades que ele não teve -, ele teria conseguido muita coisa, teria sido um profissional muito grande. Então, acho que é isso que a gente queria trazer: de mostrar que a gente tem potências na periferia e que elas não vão pra frente por falta de oportunidade, de apoio, de estrutura. E isso não é só financeiro: é emocional [e] social. É olhar pra toda a sua família, ninguém tem uma graduação e você falar: “Eu vou entrar na USP”. As pessoas não sabem que a USP é de graça, sabe? Eu recebo pergunta direto: “Nossa, mas quanto você paga?”. Eu falo: “Não é pago, é seu! É um direito seu estar naquele território". Você deveria poder entrar na universidade, ficar o dia inteiro na biblioteca, por exemplo. Tipo, é um direito seu!. Então, é muito difícil quebrar essas barreiras e elas ainda existem, por mais que a gente tenha informação, internet, que todo mundo tem celular hoje, fica vendo Instagram, e não sabe, não pesquisa. Às vezes, a pessoa não sabe que ela tem que pesquisar aquilo, não tem nem noção de que ela pode ter a chance de conseguir entrar numa universidade pública, estudar e transformar a vida dela. Então, o 'perifa' surgiu nesse sentido. A pandemia mudou completamente como a gente se movimenta, porque a nossa movimentação era presencial: estar na periferia, nos eventos de tecnologia, fazendo um churrasco juntando todo mundo, e não deu certo. Aí a gente, hoje, é o servidor [do] Discord onde a gente reúne as pessoas, pra discutir sobre tecnologia, falar sobre carreira. A gente criou um canal de boteco, onde as pessoas geralmente se reúnem sexta-feira, pra conversar da vida, pra imitar o boteco presencial que aconteceria depois do evento presencial nas empresas. Então, é pra simular um boteco, ter um canal de desabafo pra contar. A gente divulga vaga, faz parcerias. A gente não treina as pessoas, não oferece essa formação técnica, mas a gente tenta achar e apoiar projetos que já fazem isso muito bem. O Tecnogueto faz isso muito bem. A Resilia Educação é uma outra "startup" de tecnologia que oferece cursos. Tem outras iniciativas por aí também: {reprograma} [e] várias iniciativas pra mulheres que a gente divulga também. PrograMaria. E a gente tenta dar esse acesso, tipo: “Estou perdido, preciso de ajuda”. Aí a gente tenta dar esses acessos: “Tem esse lugar aqui que está com inscrição aberta, o curso é de graça. Tecnogueto, formação de tecnologia de graça, com muita qualidade. Vai e se inscreve!”. A gente foi tentando fazer essas pontes, que é justamente o que a gente tenta fazer. Acho que essa é uma boa definição: a gente tenta construir pontes, pra quem não tem essas pontes. Muita gente nasce com essas pontes prontas, tem todos os contatos possíveis, então: “Pai, preciso de um estágio na empresa tal”, “É seu!”; “Pai, preciso de uma vaga na faculdade tal”, “É seu!”; “Pai, quero montar uma empresa e ser empreendedora”, “’Tó’ o dinheiro pra você montar sua empresa”. São pontes que nem todo mundo tem. Então, a gente tenta... Com o que a gente alcançou, hoje, eu estou numa posição diferente da posição dos meus pais, completamente diferente. E foi pelo trabalho deles que eu cheguei nessa posição. E aí eu cheguei na posição que eu quero, [então quero] também trazer mais pessoas comigo. Então, como que eu posso fazer isso? Como que eu posso trazer mais pessoas da periferia pra dentro da Universidade de São Paulo? Ou trazer mais pessoas pra área da tecnologia, mas que elas não se formem na USP, até porque a área de tecnologia não exige uma graduação, em muitas empresas. Claro que empresas mais tradicionais vão exigir, mas a maioria não vai. Elas querem que você saiba programar. O próprio Will não tem graduação, ele se formou autodidata, que a gente fala, estudou por conta própria: foi atrás de estágio, conseguiu e hoje é "tech lead". Então, é isso que a gente está tentando fazer, aos pouquinhos.
P1 - E o seu mestrado? Você começou seu mestrado ano passado, 2020?
R - Isso.
P1 - Então você já começou e, praticamente, veio a pandemia?
R - Isso. (risos) Foi isso mesmo. Foi bem assim.
P1 - Como é que está sendo isso pra você? Tanto no sentido pessoal, de como isso acabou afetando o seu dia a dia, a sua vida, e também na questão do seu mestrado, dos seus estudos. Como você tem conseguido levar isso durante esse período de pandemia prolongado, digamos assim? Porque a gente esperava que fosse ser rápido e não foi.
R - Eu acho que logo no começo foi um pouco difícil lidar com tudo isso. A questão pessoal é porque minha mãe é enfermeira e ela trabalha na linha de frente. Então, no começo, foi bem assustador pra gente. E fazer o mestrado foi um pouco difícil também. Eu digo que pessoas que se inscreveram numa dissertação ou tese nesse período... Nós somos verdadeiros guerreiros, porque é muito complicado: não é fácil manter a motivação... Escrever não é simples. Que escreve, sabe? Não é você ter todas as ideias na sua cabeça, sair digitando e vai sair um texto lindo e perfeito, com tudo que você queria dizer. Não é assim que funciona. E, particularmente, eu preciso de ter inspiração. Tem dias, semanas, que eu acordo e eu não consigo fazer nada no mestrado. Isso eu fui alinhando com meu orientador e com os professores das disciplinas. Eu acho que eu tive sorte, não sei, de ter professores muito conscientes. Então, eu tive alguns problemas pessoais: minha mãe teve covid, ela ficou doente e, enfim, várias coisas aconteceram. Assim como pra todo mundo aconteceu também. E aí eu fui conversando, assim, com os professores do mestrado, das disciplinas que eu estava fazendo. Então meu orientador: “Olha, eu não vou conseguir entregar isso a tempo, preciso de mais prazo pra entregar essa atividade”, que tinha disciplina que tinha atividade semanal, toda semana tinha uma atividade pra entregar. Falei: “Professora, não dá pra eu entregar nesse ritmo, preciso de um prazo de poder... Eu vou entregar tudo, mas uma por semana não vai rolar. Eu preciso de um prazo maior”. Acho que foi dialogando, conversando, [e] os professores foram super se alinhando e sendo... Meu orientador é muito compreensivo, então acho que pra mim foi tranquilo. Ele não é uma pessoa que finge que não tem nada acontecendo e continua me cobrando, ele entende que tem coisas acontecendo. Tem coisas afetando, também, a vida dele como professor: que teve que pensar em outras formas de dar aula, de fazer provas e avaliar os alunos. Então tudo mudou muito rápido e eu tive esse apoio, que foi muito bom. Foi importante. Mas eu acho que a dificuldade foi alinhar a rotina. E também, a maior dificuldade de fazer o mestrado trabalhando é você aceitar essa troca de contexto: quando seu trabalho não tem nada a ver com o seu mestrado. Então, é difícil você gerenciar seu cérebro pra: “Tá, fechei essa agenda...”, ainda mais na pandemia. Antes, tinha o deslocamento de espaço: eu poderia, sei lá, sair do trabalho e ir pra faculdade e ficar lá até tarde, na biblioteca. E aí muda o ambiente, você entra numa fase mais faculdade, universidade: "Vou focar no mestrado", mas em casa é tudo no computador, é abrir uma janela do Google e fechar uma outra janela. E o nosso cérebro não é assim: eu fecho a janela do trabalho, fecho o Slack e agora eu sou a Carla mestranda, pesquisadora, que precisa escrever. Não é assim que funciona. Às vezes, é somente ficar no trabalho, ficar... Considerando o contexto pandêmico e tudo que está acontecendo, as pessoas do seu bairro que estão precisando de ajuda… E aí eu e meu pai até fizemos, que ele está mantendo até hoje, uma campanha pra arrecadar insumos e cestas básicas. A gente começou lá no começo da pandemia e manteve até agora, uma rede que a gente tem, de poucas pessoas, exclusivamente do bairro de Ermelino, pra ajudar a galera que está precisando, porque muita gente perdeu o emprego, perdeu a renda que tinha. Então, tudo isso ficou na nossa mente. O perifaCode se abalou muito. Isso também afetou quando eu estava me desempenhando em tudo na minha vida, porque a gente estava, cada um, fazendo o seu corre, pra apoiar sua comunidade local. Então, foi um período meio complexo, assim. Está sendo um período meio complexo ainda, as pessoas continuam com dificuldade e continuam fingindo que não tem nada acontecendo. É um problema. De qualquer forma, o mestrado foi muito afetado, mas eu estou 'levando' bem. Eu consegui passar no exame de qualificação. - Foi semana passada. - Graças a Deus deu tudo certo! Eu estava super nervosa. Um exame de qualificação, pra quem não sabe, é um exame que você faz na metade do período do doutorado ou do mestrado, pra avaliar como está sua maturidade em relação a área de pesquisa, se você está pronto pra continuar o projeto. Se o projeto que você está propondo faz sentido, se não é um projeto gigante, que você não vai dar conta, ou se é um projeto muito pequeno. Enfim, deu tudo certo. Estava super nervosa. Então isso também me mostrou que eu consegui conciliar os dois. E o trabalho também está indo bem. É um pouco difícil e eu aceitei o caos, abracei o caos: vai ter uma semana que eu só vou trabalhar porque eu preciso trabalhar, mas não vou fazer nada do mestrado; vai ter semanas que eu vou conseguir fazer alguma coisa; vai ter semanas que eu vou, um dia, tipo, sábado, fazer um monte de coisa, que nem uma doida; e é isso. São dias meio malucos, mesmo. A gente vê uma notícia, escuta um familiar, um parente, que não está bem e aí te abala, você cai de novo. O Brasil dá uma rasteira atrás da outra na gente. A gente se reergue e toma uma rasteira. A gente tenta de novo e toma outra rasteira. Aí você fica: “Meu, não é possível! As coisas não melhoram, não dá pra ser feliz nesse país”. É complicado, mas está indo. Estou tentando levar, na medida do possível.
P2 - Carla, você pode falar um pouquinho mais sobre o seu projeto de mestrado?
R - Claro! O projeto do meu mestrado, tudo começou com o objetivo... Espera aí, deixa eu tentar voltar um pouquinho: logo que eu... Escolher um tema de mestrado não é uma coisa fácil. Eu confesso que eu conversei com vários pesquisadores e perguntei: “Como eu escolho um projeto, um tema? Como isso funciona?”. Enfim, foi muito difícil. E aí eu comecei a pesquisar sobre inteligência artificial e quais eram os principais desafios da área. Tipo: o que tem de difícil, pra ser resolvido? Só que, pelo que vocês já ouviram, deu pra perceber que essa parte de ativismo e militância, pra mim, é muito importante. É parte da minha vida. Então, é claro que isso ia estar presente em tudo que eu faço, inclusive na hora de escolher um tema de pesquisa de mestrado. E aí eu comecei a encontrar o tema discriminação algorítmica; li uns artigos da Karen Hao, que é uma jornalista americana, que escreve pro MIT Review, e eu falei: “Que tema interessante! Será que deve ter pesquisa sobre isso, na área da computação?”, e tem várias pesquisas. Eu propus pro meu orientador, ele achou o tema muito interessante e decidimos começar esse tema. Então, inicialmente, o tema era falar sobre interpretabilidade, explicabilidade, que são meio que sinônimos, e inteligência artificial. Porque um dos problemas que a gente tem em relação a discriminação algorítmica e uso de inteligência artificial, é a falta de transparência. E a falta de transparência é muito relacionada a, que os algoritmos são muito complexos pra seres humanos. Tanto pra um usuário que não tem nenhum conhecimento, uma pessoa que está usando um sistema e está tendo a sua vida afetada por um sistema, por exemplo, do Banco; quanto pra quem desenvolve. Às vezes, quem desenvolve não sabe resolver um problema ou entender porquê o algoritmo está tendo um comportamento que a gente chama de antiético ou discriminatório. Só que eu fui me aprofundando nessa questão e entendendo que o problema é muito mais complexo que a computação. Ele é muito mais complexo do que a transparência, é o problema... É um problema social também. De forma que esses algoritmos reproduzem o que já existe na sociedade, os preconceitos que já existem, né? A tecnologia serve como ferramenta pra perpetuar o racismo, o machismo, as desigualdades e ampliá-las: porque nessas desigualdades é onde se ganha lucro no sistema que a gente vive e a tecnologia é uma forma de lucrar. A inteligência artificial é usada pra automatizar, e automatizar é lucrar. Então, eu comecei a entender que a minha pesquisa tem esse papel que um professor falou pra mim, que ele chama de ‘contribuição dupla’: tanto pra computação, pra área, em si, refletir sobre o assunto. E claro que eu estou desenvolvendo uma ferramenta que busca ajudar a detectar esse tipo de discriminação algorítmica, como a gente detecta isso, porque, hoje, a gente tem isso através de denúncias de testes empíricos. Então, o usuário no Instagram vai lá e denuncia o que está acontecendo com ele. Um funcionário, um ex-funcionário de uma empresa denuncia o que era feito antes, mas você não tem uma ferramenta pra conseguir identificar quando isso acontece ativamente. Então, esse que está sendo o objetivo do mestrado.
P1 - E eu queria que você falasse também um pouquinho sobre a sua experiência na Loggi, atualmente. Com o que você trabalha? É uma coisa diferente do que você fazia na Amazon? Ou ainda você consegue cruzar essas duas histórias?
R - Não consigo cruzar. Totalmente diferente. Na Loggi eu entrei totalmente pra área de "back-end", "python"... "Python" eu já conhecia: essa, acho, que era a única coisa em comum entre a Amazon, mestrado e Loggi, que é a linguagem de programação que eu uso até hoje. Uma coisa totalmente diferente: eu tive que aprender muito de engenharia, tive que voltar muito nas coisas da faculdade que não dei muita trela, de estrutura de dados, de algoritmos, mas que o mestrado me fez rever e foi muito útil. Então, são conhecimentos bem distintos, de arquitetura, de DevOps, muita coisa que eu não tinha nenhum conhecimento. Então, eu vim totalmente crua, aí eu fui aprendendo aos poucos e entendendo como funciona.
P1 - Na sua biografia, nos dados que a gente coletou sobre você, tem informação de que você é uma Google Developer Expert Machine Learning. Eu queria que você explicasse um pouquinho do que se trata [e] como isso funciona.
R - O programa do GDE, sempre foi meu sonho participar. Desde que eu me envolvi com as comunidades de mulheres, depois com o perifaCode, sempre palestrei em vários eventos de tecnologia. Eu palestro até hoje. Então, na época, eu ia em muitos eventos. Em 2018, 2019, eu ia em três, quatro eventos por mês. Tanto organizados pelo perifaCode, quanto organizados por outras comunidades. E eu amava ir... Amo! Não posso mais, não está tendo mais evento presencial, mas amo ir nos eventos, conversar com as pessoas. E o GDE é um programa que oferece um reconhecimento pra pessoas que estão constantemente contribuindo com a comunidade. O que a gente chama “comunidade” são: pessoas que querem trabalhar em tecnologia, pessoas que já trabalham na área. E a contribuição pode ser uma mentoria pra alguém que quer entrar na área, pode ser um artigo que você escreve sobre tecnologia, pode ser uma palestra que você faz. E aí eu recebi o “e-mail” pra me candidatar no processo. Eu fiquei muito feliz, falei: “Nossa, é sinal de que meu trabalho está tendo algum retorno. Se as pessoas acham que eu sou merecedora desse reconhecimento, é sinal de que eu já estou, constantemente, contribuindo pra que outras pessoas aprendam sobre tecnologia e que entrem na área ou entendam melhor como funciona a inteligência artificial”. Isso foi no ano passado, em julho. Recebi o reconhecimento. Participo do programa e o programa te oferece várias coisas. A gente não recebe salário, nada disso, é uma coisa totalmente voluntária, mas a gente recebe contato com pessoas que trabalham na Google: com produtos, pra testar versões beta ou ferramentas novas que a Google vai lançar; participação de eventos. Antes da pandemia, apoio pra viajar pra eventos ou coisas assim, que ainda não pude usar, por causa da pandemia. Então, quero ir pra uma conferência de tecnologia em tal lugar, pode tentar um apoio. Então, tem várias ferramentas! Eles dão apoio também de ferramentas pra gente trabalhar. Tipo, o microfone que eu estou usando, foi o programa que me deu. Então, é um programa muito legal. E você conhece várias pessoas que fazem parte do programa, você se conecta com elas, na América Latina toda. A gente tem os capítulos. Então, tem o capítulo Latam (América Latina). Aí conhece pessoas de vários lugares. É bem legal pra fazer “networking”. É muito bom pra sua carreira, em si. É uma oportunidade, que eu achei muito interessante. Eu acho que vale participar, porque é opcional: você pode ser indicado e não passar no processo seletivo ou não querer participar também, enfim, mas eu estou gostando bastante.
P1 - E você acha que ainda existe muita desigualdade de gêneros nos cargos das áreas ligadas em tecnologia? Do momento em que você entrou na faculdade, pra cá, você percebe que isso tem melhorado? Tem havido alguma evolução nesse sentido?
R - Eu acho que, pelo menos no curso de Sistema de Informação, teve uma pequena evolução. Ela não foi muito grande, como a gente gostaria. Essa porcentagem que eu falei de 75% [e] 25%, ainda varia uns três por cento pra mais ou pra menos. Então não teve uma grande evolução. Eu acho que nas empresas está melhorando, as empresas estão sendo cobradas pra isso. Eu acho que essa ação da sociedade civil de cobrar... E também, outra questão é que tem muitas vagas e você excluir mulheres que... Principalmente em outros grupos, mas mulheres que representam cinquenta por cento da força de trabalho, é uma visão muito... Que não faz sentido. Então, as empresas estão investindo em Bootcamp, contratações exclusivas de mulheres, incentivos, [para] se tornar uma empresa amigável, ter um bom ambiente, pensar na diversidade de dentro pra fora. Não ficar só botando na vitrine: “Somos diversos, queremos você aqui”, mas a pessoa entrar e ser um ambiente que não é seguro. Não faz sentido. Tem que ser um ambiente seguro, onde a gente possa falar o que a gente quer, ter direito ao que a gente quer, ser promovida como todo mundo é [e] não ter diferenças no tratamento dos times. Então, eu acho que o cenário é melhor do que antes, porque tem todo... Vários grupos e empresas se movimentando, pra trazer esse contexto de diversidade em todos os âmbitos, né? Trazer pessoas Lgbt, mulheres, pessoas negras, periféricas, e as empresas estão sempre adotando isso. Mas ainda é bem difícil, sim, porque você vê muitas pessoas juniores trabalhando, muitas mulheres que nunca são promovidas, que ficam muito tempo na mesma fase. Sempre júnior! E aí você: “Meu, que estranho! Ela nunca é promovida, isso é muito esquisito”. Então, os times também estão aprendendo, eu acho que esse é um outro ponto. Funcionários entendendo essa posição da empresa e passar a fazer parte dos valores daquela pessoa também, acho que essa é muito a questão. Não é uma questão só da empresa. É uma questão de nós como cidadãos também, eu acho, sabe? Eu, Carla, que tipo de time eu quero construir dentro da minha empresa? Eu, particularmente, o meu viés é óbvio: eu quero trazer mais mulheres, mais diversidade, vou tratar todo mundo super bem e vou criticar quando, numa contratação, entrar trinta homens de uma vez só. Falar: “Putz, o que está acontecendo? Cadê as mulheres que vocês falaram que ia entrar? Cadê a atuação do time de RH?”. Então, acho que a gente está se movimentando, mas o cenário numérico ainda é bem ruim. Tipo, ainda é bem difícil! Claro que cada empresa varia. Mas tem que olhar essa questão de senioridade que você comentou também. Então, tem várias mulheres, mas são todas juniores. Cadê as mulheres em cargos mais altos também? Então, entram outras discussões.
P1 - No perifaCode você percebeu também essa tendência, de vocês conseguirem estimular cada vez mais mulheres a participar, procurar? Porque a gente sabe que tem essa questão de, talvez, a mulher não achar, pelo estereótipo criado, que aquele não é o lugar dela, na área de TI. Você acha que isso, tem havido um aumento nas mulheres que procuram o perifa?
R - É bem difícil. Tem tido... Mais da metade das mulheres da organização são mulheres: tem eu, a Bruna, a Letícia, a Fabi e a Andressa. Então, já são várias mulheres. Só que é um público difícil de trazer. Eu falo que é difícil, porque quando você vai num evento de mulheres, sei lá, de um Bootcamp mais famoso, o que acontece com esses Bootcamps de mulheres? As aulas, geralmente, são à tarde. Então, a maioria do perfil das mulheres é: são casadas e que não trabalham ou têm filhos e não trabalham porque, enfim, tem muitos casais assim, que perpetuam essa questão do homem trabalha e a mulher cuida da casa. E elas decidem mudar isso: querem um primeiro emprego, sair dessa inércia. Muitos cursos têm mulheres assim: “Ela é uma mulher, mas é mais privilegiada. Ela tem a oportunidade de fazer esse curso sem ter nenhum prejuízo na sua vida”. E como uma mulher periférica, que às vezes tem um filho, mãe solteira, vai fazer um curso de tecnologia das duas às seis da tarde? Não tem nenhuma condição! E é um público mais difícil [de] atingir, por essas questões, por esses recortes interseccionais. Então, são maioria mulheres negras, assim como a organização do perifaCode e é um recorte mais difícil de atingir, mas a gente sempre está tentando. Eu não sei números exatos da comunidade, mas a gente tem um cenário bem melhor do que tinha antes, no começo, e a gente foi percebendo isso acontecendo: “Nossa, a gente não está conseguindo alcançar essas mulheres. Como a gente faz?”. A gente começou a fazer parcerias com programas de mulheres, com outras iniciativas, pra tentar fazer essa movimentação e tem funcionado, mas, ainda assim, às vezes é um pouquinho difícil. Mas aos poucos a gente vai se unificando com outros movimentos de mulheres e vai tornando a comunidade mais diversa também, porque é difícil também.
P1 - E voltando um pouco pra questão, pra sua vida pessoal: você tem o mestrado, seu trabalho, essa sua atuação de militância do perifaCode, também o Google. Quando te sobra algum tempinho, o que você faz pra relaxar, atualmente? Pra se divertir.
R - (risos) Olha, pra ser sincera, eu estou tentando voltar a ler. A pandemia me impediu de ler. Assim: eu leio muitos artigos por dia, coisas do mestrado. Eu leio muito: o texto que eu estou escrevendo várias vezes, vários artigos, vários trabalhos, várias notícias, mas ler um livro simplesmente por diversão, faz um tempo que eu não consigo fazer. Eu consegui destravar isso faz umas quatro, três semanas, que eu estou lendo um livro que uma amiga minha indicou, que é um livro de ficção, de suspense, e eu estou muito feliz que eu estou conseguindo ler esse livro. Então, eu gosto muito de ler, quando dá tempo, mas eu gosto muito de... Eu comecei a praticar atividade física na pandemia. E aí eu me apaixonei por pilates; yoga, que é uma coisa que eu gosto muito de fazer; eu também pratico musculação, passei a gostar de fazer. É uma coisa que, realmente, eu faço não por obrigação, não, porque: “Preciso fazer, porque eu tenho que fazer atividade física”. Não, é porque eu gosto! Saio feliz, libero endorfina. Fico muito feliz de ir, é um momento que eu saio de casa, vou cuidar só de mim ou correr - também passei a correr - e eu vou cuidar só de mim, esquecer tudo. E correr é um exercício que faz você esquecer - quem nunca correu, corra, por favor - tudo: o mundo não existe, sabe? É uma coisa muito doida. Você só foca no movimento, em cada passada e, simplesmente, entra numa outra... Enfim, é muito bom. Mas pra me divertir, assim, na pandemia ficou um pouco difícil. E eu tenho um problema, que eu gosto de comer. Muito. Eu gosto de comida! Então, meu namorado reclama que sempre que eu falo em sair, nunca falo em uma coisa, sei lá, em uma coisa que não tem comida envolvida. Eu sempre falo: “Vamos em tal lugar?”. Ou falo que vou no cinema, já pensando na pipoca, sabe? Então, eu sou esse tipo de pessoa. Mas eu gosto também, coisas que eu queria fazer mais, são esportes radicais, assim, pular de paraquedas... Uma coisa que meu pai me levava quando eu era criança: pular tirolesa; andar naqueles barcos que escorregam na cachoeira, assim. Adorei esse tipo de coisa! Eu não faço com tanta frequência, mais, a pandemia também não está me permitindo, mas eu acho que em breve vou voltar a começar a fazer mais coisas que me divirtam, assim. Por muito tempo, fui uma pessoa que a única coisa que eu fazia era trabalhar, estudar, palestrar, ler e assistir série. E aí eu me achei muito chata. Por exemplo: “Nossa, quem sou eu sem falar do meu trabalho? Quem é a Carla, se eu não falar, se eu for proibida de falar do meu trabalho? Como eu respondo essa pergunta?”. Hoje eu já consigo falar de mais coisas, de atividades físicas que eu encontrei, que eu comecei a gostar muito. Mas é isso. É o que eu tento fazer, assim, pra mudar um pouco e sair um pouco do computador também, ficar o dia inteiro no computador, no celular, nas telas. Eu acho que fazer atividade física te tira disso, parar de ver tela. Ou você está no celular, ou assistindo série, ou está num Kindle (leitor de livros da Amazon). Está sempre fazendo uma tela! Estou tentando mudar isso um pouquinho.
P1 - Bom, a gente está indo, então, pro último bloco de perguntas: o que você acha que é mais importante pra você nesse momento, hoje em dia?
R - Eu acho que...
P1 - Não precisa ser uma coisa só, tá?
R - Tá. Eu acho que, por muito tempo, a minha prioridade foi os outros, assim. Eu estou falando isso, porque é uma coisa que eu estou tratando até em terapia, também. E discutindo bastante. Por muito tempo, a coisa mais importante pra mim sempre foi, tipo: “Eu preciso trazer coisas pra casa, ajudar a família”. E aí, desse último ano pra cá, as coisas mudaram um pouquinho e o trabalho também está me permitindo fazer essas mudanças. Trabalhar de casa está me permitindo fazer isso e aí, o que virou mais importante pra mim é cuidar de mim, da minha saúde, que eu negligenciei por muitos anos. Eu tenho alguns problemas de saúde que eu negligenciei [por] muitos anos. Você vai levando aqui, aquela dorzinha está sempre ali, mas você vai, deixa pra outro dia, deixa pra amanhã. Aí eu acho que o que virou mais importante pra mim - eu não sei se você tinha perguntado nesse sentido - é isso: cuidar da minha saúde, estar bem comigo mesma, fazer terapia, praticar uma atividade física, curtir mais a minha família. Eu nunca fui de passar muito tempo com a minha família, estava sempre viajando pra palestrar ou faculdade ou um trabalho e eu chegava em casa super tarde, onze horas da noite, porque eu trabalhava longe e nunca tinha tempo pra família. Sempre tinha algum compromisso. Como eu te falei, desde adolescente eu tinha dificuldade de sair no domingo, porque eu falava: “Não, vou ter prova segunda-feira”. E hoje eu estou tentando levar isso de uma forma mais leve. Então, pra mim está sendo importante, também, [no] fim de semana não programar, não pegar no computador, na medida do possível. Só se for pra algo muito específico, que eu precise fazer, mas, na medida do possível, eu evito. Eu não sou a pessoa de TI que fica programando até cinco horas da manhã, que fica tomando café 24 horas e que trabalha no escuro, com várias “leds”. Não sou eu. Eu preciso trabalhar num ambiente claro e não programar no fim de semana. Preciso fazer outras coisas, além do meu trabalho, sabe? Eu quero me permitir aproveitar melhor minha família, ligar pra minha vó, ligar pro meu pai, que ele sempre me cobrou isso: “Pô, você podia me ligar todo dia, pra gente conversar. Eu sinto sua falta”. Meu namorado também me cobrou isso, a minha vó, e aí eu falei: “Não, eu vou aproveitar enquanto eles estão aqui, né?”. Já pensou daqui a alguns anos: “Putz, eu podia ter aproveitado mais!”. É horrível, um sentimento muito ruim. E eu sei que ele acontece às vezes, se a gente se arrepende de coisas. Então, a prioridade virou cuidar de mim mesma, mas envolve eu, minha família, as coisas que eu faço, além do trabalho. Então, eu reduzi carga horária, a quantidade de palestras que eu fazia, limitei. Fui realmente priorizando as coisas que são, agora, mais importantes. Em outros momentos da minha vida, o mais importante eram outras questões. Hoje está sendo esse cenário aí, totalmente diferente.
P1 - E quais [são] os seus sonhos pro futuro, Carla?
R - Ai, isso é legal de responder: eu sou uma pessoa que gosta muito de pensar no futuro e uma coisa que eu faço todos os anos, todo fim... Eu sou uma pessoa que gosto do Natal e Ano Novo. Não porque eu comemore o Natal, porque eu não comemoro, mas o fim do ano sempre me traz uma coisa boa, de renovação, de começar um ano novo, de mudanças e de fazer um desejo, sonhar coisas novas. E todo fim do ano eu escrevo uma carta pra mim mesma [para] daqui três ou cinco anos. E ano passado eu escrevi uma pra quando eu tiver trinta anos. Daqui nove... Não, estou doida. Daqui sete anos. E aí eu sempre escrevo essas cartas. A primeira que eu vou abrir vai ser esse ano, porque a primeira que eu escrevi foi em 2018. Eu escrevi pra três anos, vou abri-la em dezembro de 2021. E nessa carta, eu sempre coloco essa pergunta que você me fez: “O que eu sonho? Quais são os sonhos que eu quero? Como foi aquele ano? Quais foram as dificuldades? Quais foram as coisas que eu estava pensando?”. Problemas que eu pensei: “Isso não vai passar, não vai acabar! Eu nunca vou superar isso””. Então, eu sempre faço esse exercício, porque sei que vou me surpreender, no futuro, quando eu ler. E vamos ver como vai ser esse ano. Mas eu acho que, no momento, eu colocaria na minha carta que vou compartilhar com vocês, alguma coisa que eu estou tentando alcançar, assim. Eu tenho sonho de fazer doutorado fora do país, tentar um PhD, e eu estou me dedicando muito pra que isso se torne realidade. E isso não é fácil. Se você já foi atrás, realmente, de como funciona o processo, eu acho que a parte mais difícil, além do processo todo, é o financeiro. Pensando nas coisas caras. As coisas são caras. O Toefl (Teste de Inglês como Língua Estrangeira) é caro, as taxas das instituições são caras. Então, são todas coisas muito caras e que exigem planejamento. Mudar de país também não é uma coisa trivial, tem toda uma questão pessoal, emocional. Eu só fico pensando que não vai passar o carro do ovo. Fico o tempo todo: “Eu vou acordar domingo e não vai ter o carro do ovo passando, nem o carro da fruta e nem o cara do churros, que passa aqui há dez anos”. Tipo, não vai ter nada disso. Doze anos, que eu moro aqui desde 2009. Não vai ter o cara... Tipo, eu vou acordar num lugar que não vai ter nada disso, num lugar frio, porque lá é mais frio, né? Seja em qualquer lugar: Europa, Estados Unidos. É mais frio. Eu vou morar num lugar frio, que não vai ter a minha mãe do lado, nem a minha família aqui pertinho. Enfim, mas eu tenho esse sonho de mudar de país, assim, pra fazer o doutorado. [Ainda] que eu gosto muito de morar no Brasil e gosto muito dos projetos que eu tenho aqui. Acho que esse é o maior sonho no momento. Eu não sei muito o que a vida guarda pra frente, mas eu tenho outras coisas: eu namoro, tenho sonhos de casar com essa pessoa e construir uma família. Acho que esse é um sonho também, que virou um pouquinho mais... Eu não ligava muito, mas depois parei pra pensar e acho que eu quero ter uma família. Acho que tem muito a ver com meus pais não terem tido a família que eles sonhavam: pais casados, com filhos, durante vários anos, sabe? Essa não foi a realidade que eles viveram, eles se divorciaram e as coisas eram pra ser assim, mesmo, mas eu queria muito ter isso: um marido, uma família, filhos e viver vários e vários anos. E quem sabe, um dia, ser professora, como a minha mãe falou? Quem sabe ela está certa? Mãe tem essas coisas. E ser uma professora de uma universidade, ela fala: “Você vai ser uma professora - eu não sei nem se pode falar isso, mas depois vocês cortam - fodona na Universidade de São Paulo, com PhD e um ‘pós-doc’ em outro país, super chique, vai lá dar aula na Each e falar que você já estudou lá um dia e, enfim, falar pra eles tudo que você queria ter ouvido, compartilhar com eles tudo que você queria ter escutado de conselhos e formar novos profissionais da área. E quem sabe, escrever um livro?”. Enfim, ela tem essas coisas, eu gosto de divagar sobre esse assunto, mas acho que mais objetivamente é um doutorado fora, mesmo. (risos) O resto são sonhos, mesmo, são objetivos concretizáveis que eu já tenho um plano de como fazer.
P1 - Então, vamos pra última pergunta, Carla: o que você achou de contar a sua história pra gente, hoje?
R - Ah, eu achei muito legal! Eu confesso que esse é um exercício bom de se fazer porque, quando você vai fazendo algumas coisas na sua vida, perde um pouco a noção do todo. Você fica tão focado no agora, que perde um pouco esse viés de essência. Você perde um pouco do que aconteceu no passado, de coisas que você já passou. E minha mãe me lembra - adora fazer isso -, ela sempre pega e fala: “Nossa, eu lembro daquela prova, não sei o que, aquele dia que você chorou um monte porque não passou na prova, fez um escândalo, ficou a semana inteira com cara chorando. Eu lembro daquela outra situação que a gente passou e a gente superou”. Então, ela traz esses momentos de lembrança, assim, pra mim, que eu falo: “Ai, nossa, eu não me lembro disso, não”. Ela fala: “Eu lembro, porque eu fiquei vendo você chorar um monte, se descabelar e ficar em desespero, achando que nada ia dar certo, que ia abandonar a faculdade”. Enfim, então eu acho que é bom contar a história, porque você faz esse exercício de reflexão. Inclusive, eu fiz isso na terapia, recentemente, que a gente decidiu fazer um processo de passar desde a minha infância até a fase adulta e o que eu espero das fases adiante de mim, e eu achei que foi um ótimo exercício, acho que a pessoa devia fazer isso. E uma coisa que eu queria deixar é que eu acho que as pessoas deviam fazer isso com as famílias também, assim, eu já fiz isso com meu pai, minha mãe e a minha vó, sentei e falei: “Eu quero ouvir a sua história. Quero que você me conte coisas que você nunca me contou, mesmo que elas sejam coisas que você não me diria que eu devia fazer”. E é muito legal! Você descobre coisas incríveis! A gente sempre fala de revisitar as nossas raízes, conhecer quem são os nossos ancestrais e, às vezes, a gente esquece - isso pensando nas pessoas que fazem teste de DNA, um monte de coisa - [que] tem uma pessoa aqui do lado, um familiar, uma vó, um tio, uma tia que tem uma história que você não sabe. Você julga aquela pessoa e fala: “Nossa, tem uma vidinha banal”, talvez, pra muitos, mas, às vezes, tem uma história de vida muito bonita. E que tem muito pra ensinar, né? Eu acho que a gente tem que aprender com os nossos mais velhos. Isso eu penso no meu pai, na minha mãe, na minha vó. Eu acho que foi uma coisa que acho que todo mundo devia fazer, assim, particularmente, com as suas famílias. Claro, quando você conversa com o seu pai, sua mãe e sua vó, que vão contar coisas da vida deles, vão ter coisas mais profundas, mais íntimas, que eles vão te contar. Coisas que eles não vão querer falar também. E claro que a vida tem o seu tempo, momentos que aquelas pessoas vão querer compartilhar sua história ou alguma coisa importante. Várias coisas eu descobri ano passado sobre a minha mãe, estou descobrindo, e ela vai descobrir sobre mim. É assim mesmo: todo mundo tem segredos. Todo mundo tem algo a esconder, algo que não compartilha. Faz parte. Mas eu gostei muito de falar. Eu acho que foi um exercício pra mim. Estou até, tipo: “Nossa, foi uma terapia pra mim”, (risos) de ouvir um pouco de mim mesma, fazer esse exercício de reflexão e de aprofundar. Eu estava em dúvida como vocês iam fazer isso, na verdade. Eu estava muito pensando: “Como eles vão fazer isso? Que perguntas eles vão fazer? Como eles vão começar? Como eles vão aprofundando essas camadas?”, mas foi muito... Enfim, hoje é uma terça-feira diferente.
P1 - Bom, então a gente está finalizando a entrevista por aqui, Carla, muitíssimo obrigado, em nome do Museu da Pessoa e do projeto do Mercado Livre, pelo seu tempo e pelo seu depoimento, que foi muito bom.
R - Tá bom. Eu que agradeço a oportunidade de falar. Espero que eu tenha falado coisas que façam sentido, porque a gente vai falando o que a gente vai sentindo e tem tanta coisa também que eu... Ai, sei lá, tem muita coisa que eu poderia ter falado e que eu falei, que eu não falei. Eu espero que o material que tenha ficado seja útil.
P1 - Certo. Obrigado!
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