Correios – Museu da Pessoa
Depoimento de Maurício Santoro Rocha
Entrevistado por Arnaldo Ferreira Marques Júnior
Rio de Janeiro, 04/06/2013
Realização Museu da Pessoa
HVC_05_Maurício Santoro Rocha
Transcrito por Liliane Custódio
P/1 – Maurício, boa tarde!
R – Boa tarde, Arnaldo.
P/1 – Gostaria de começar com você repetindo seu nome completo, local e data de nascimento.
R – Meu nome é Maurício Santoro Rocha e eu nasci no Rio de Janeiro, no dia 7 de junho de 1978.
P/1 – Maurício, seus pais são aqui do Rio de Janeiro?
R – A minha mãe nasceu no Rio, filha de italianos, e o meu pai nasceu em Marabá, no Belém do Pará, opa, no estado do Pará.
P/1 – E ele veio para cá pequeno? Veio grande?
R – Não, meu pai saiu de Marabá criança e foi para Belém, também no estado do Pará. Estudou lá, se formou em Medicina por lá, e veio para o Rio de Janeiro já adulto fazer uma residência, fazer uma especialização médica. E um belo dia uma colega de turma dele pediu que ele fosse atender uma prima que estava doente e essa prima era a mulher que acabou se tornando a minha mãe.
P/1 – Seus pais são primos?
R – Não. A prima da minha mãe era colega de turma do meu pai e pediu para ele atender a minha mãe, que estava doente, enfim, eles começaram a namorar, se casaram, mas nasceu aí, nasceu de uma consulta médica.
P/1 – Entendi. A sua mãe estudou Medicina também?
R – A minha mãe é psicóloga, quer dizer, também trabalha na área de saúde, mas ela acabou conhecendo o meu pai por conta dessa relação de amizade da prima dela com ele.
P/1 – A sua infância se passou em que região do Rio de Janeiro?
R – A minha infância inteira foi no bairro de Santa Teresa, que é um bairro onde a minha família materna mora há muitos, muitos e muitos anos. Quando os meus bisavôs vieram da Itália, eles se estabeleceram lá e à medida que foram chegando os outros parentes, as pessoas também foram ficando por lá. E praticamente toda a família que está aqui no Rio mora nesse bairro.
P/1 – Da família de Belém só veio o seu pai?
R – Da família do Pará só veio o meu pai e a minha família paterna está basicamente entre Belém e Marabá.
P/1 – E como é que foi a sua infância em Santa Teresa?
R – Olha, foi uma infância meio rural, porque pelo menos naquela época ainda havia uma certa tradição de se brincar na rua, ainda tinha muitas áreas verdes, muito espaço onde as crianças podiam jogar bola, subir morro, brincar. E mais ou menos pela época em que eu comecei a entrar na adolescência é que o Rio de Janeiro foi ficando mais perigoso, mais inseguro, então, esses espaços acabaram sendo um pouco perdidos. Mas eu ainda consegui ter muito dessa infância mesmo bastante tradicional e bastante rara para uma cidade grande como o Rio.
P/1 – E você estudava aonde?
R – Eu passei por uma série de colégios na infância e na adolescência, mas a maior parte deles ou em Santa Teresa mesmo ou então pelo centro da cidade, quer dizer, algo relativamente perto, ia e voltava de ônibus tranquilamente.
P/1 – Teve alguma disciplina ou, principalmente, algum professor ou professora que te marcou, que você lembra com muito carinho, ou não?
R – Lembro. Lembro. Bom, quando eu estava na escola, o que realmente eu gostava de estudar era História, Literatura e um pouco mais tarde, Filosofia. Essas eram as coisas que realmente mexiam comigo, que me faziam gostar de ir à escola. Aí, teve um punhado de professores muito bons, particularmente na área de História, que também era assim, uma referência para mim quando eu era criança, quando eu era adolescente.
P/1 – E dessas brincadeiras em Santa Teresa, você tinha consciência, na época, que era diferente do resto do Rio? Quer dizer, qual era a tua relação com o Rio da praia, o Rio da zona sul?
R – Eu não tinha a menor consciência, eu achava que todo mundo do Rio de Janeiro fazia aquelas brincadeiras mesmo e que aquilo era a coisa mais normal, quer dizer, a gente tinha também, claro, uma infância mais urbana de praia, de shopping center, mas a maior parte do tempo, a maior parte da rotina era ali aquela vida do bairro e com um grupo de amigos, um grupo de famílias que também moravam ali, e eu achava piamente que todo mundo no Rio de Janeiro tinha aquela vida.
P/1 – Vou fazer uma pergunta típica de paulista, apesar de eu não ser exatamente paulista e ter uma coisa mais próxima de vocês, que eu sou de Santos. Mas quem é de uma cidade, que não é de praia, acha que quem mora numa cidade como o Rio mora na praia, vive na praia de manhã, à noite, sábado na praia, na verdade nem sempre é assim.
P/1 – Não é assim. Pois é.
R – Alguém que mora em Santa Teresa, que é um bairro muito característico, como você já colocou, qual era a sua relação com a praia nessa infância, adolescência? Você ia muito?
R – Olha, eu ia, mas não era uma coisa que eu estava todo fim de semana, eu ia muito mais à piscina, no clube do bairro, do que propriamente à praia. Eu passei a ir à praia com mais frequência já adolescente, até por uma questão de grupo de amigos também, mas em criança era muito mais piscina.
P/1 – E era aquela coisa de ou pegar bicicleta, ou pegar ônibus, ou pegar carro para ir para praia? Quer dizer, não dava para ir a pé?
R – É. Não dava para ir a pé, quer dizer, a praia fica relativamente longe, Santa Teresa. Mas assim, também não era algo que fizesse falta para aquela criançada, o nosso barato era muito mais estar ali para jogar futebol ou para subir e descer pelas matas do bairro. Então, a praia, na verdade, era alguma coisa que eu ia mais nas férias, não necessariamente no Rio, às vezes numa cidade próxima.
P/1 – E cinema, barzinhos, aí, você já ficando um pouco mais velho, onde era isso? Já a Lapa como uma região nessa idade?
R – Não. Na época em que eu estava crescendo, a Lapa era um lugar muito abandonado, não era um lugar de diversão, não era uma opção de diversão. A Lapa começou a ser algo um pouco mais frequentado quando eu estava no final da universidade, mas ainda algo, assim, que era quase, assim, você sabia quem eram as pessoas que estavam antenadas com o que estava acontecendo na cidade, porque elas iam à Lapa, não era ainda o que virou hoje em dia, que virou o centro, talvez, da noite no Rio. O que tinha, claro, era muito circuito dos bares da zona sul, mas é claro, já adolescência, principalmente, para mim o período da faculdade, que também é um momento em que esse circuito do cinema alternativo no Rio de Janeiro começa a florescer e se abrem em várias salas de cinema, o bairro de Botafogo se tornou aquilo que ele é hoje, que é o centro do cinema na cidade do Rio, e eu estudava ali perto, eu fiz a faculdade na Praia Vermelha. Então, aquilo era praticamente o meu quintal.
P/1 – Você é da época da inauguração do Estação Botafogo, do cineclube?
R – Exatamente. Eu peguei a reabertura do Estação Botafogo e a abertura de um cinema que teve vários nomes, hoje em dia acho que é Espaço Sesc, na época era Espaço Unibanco de Cinema. Então, foi exatamente o momento em que toda aquela região ali começou a ter um cinema do lado do outro, várias salas, e oferecendo uma programação alternativa que ia além dos grandes lançamentos da indústria americana. Então, foi uma época muito legal para gostar de cinema, para acompanhar, os ingressos não eram tão caros como eles são hoje em dia, então, era uma coisa perfeitamente viável para um orçamento de um estudante universitário.
P/1 – Você comentou que começou na sua adolescência a frequentar a praia por conta de grupo de amigos. Como fica essa coisa, numa cidade muito grande, das amizades? Elas são territorializadas ou os territórios se misturam?
R – Eu acho que são territorializadas, pelo menos no meu caso, na época da infância, onde a gente está ali com aquele circuito, que é o circuito da nossa família, dos nossos pais, mas a medida em que eu fui chegando na adolescência e, principalmente, no momento em que eu entrei na universidade, as amizades começaram a se dar muito mais por afinidade, por temas que eu compartilhava interesse. Claro, e também cada criança ali do bairro foi seguindo o seu caminho na vida, foi seguindo o seu rumo, algumas saíram do bairro, ou saíram do Rio de Janeiro, aí, o circuito mudou muito. O meu perfil de amigos passou a ser muito mais as pessoas com quem eu estudava ou com quem eu trabalhava, e não mais aquele grupo ali do bairro.
P/1 – Eu penso que a universidade, como dificilmente existem universidades de bairro, elas acabam misturando muito, mas eu penso mais na adolescência em que você está ligado a um colégio que normalmente é mais perto, você sentia que eram os amigos de Santa Teresa e arredores, ou você já tinha amigos no Leblon, na Barra, ou na zona norte?
R – Do final do meu ensino médio em diante isso já começou a mudar e quando eu cheguei à universidade, aí, foi uma mudança brusca.
P/1 – Como mudava? Aonde você encontrava essas pessoas? Como você tinha contato com essas pessoas de outros territórios da cidade?
R – Principalmente, por meio da escola ou então por algum outro tipo de instituição de ensino, por exemplo, pessoas que eram meus colegas, digamos, no curso de inglês. E quando eu cheguei à universidade, eu fui fazer um curso que na época era um curso bastante elitizado, que era o de Jornalismo, 90% dos meus colegas de turma eram pessoas da zona sul do Rio de Janeiro: de Copacabana, de Ipanema, do Leblon, inclusive de uma classe social um pouco diferente da qual eu vinha, qual era minha própria origem, que era uma classe média bem mais apertada em termos de grana. Então, já foi uma mudança, era outro tipo de programa, eram programas mais caros também. E a minha turma na faculdade de Jornalismo era muito ligada em cultura, eu tive vários colegas que depois viraram romancistas, atores ou foram trabalhar com cinema. Então, isso também foi uma quebra com relação àquela rotina mais do bairro.
P/1 – Agora você entrou na universidade, vamos entrar nessa seara. O filho do médico e da psicóloga que vira jornalista, como foi isso? (risos)
R – Olha, os meus pais até hoje se perguntam muito. Eu acho, olhando hoje, eu acho que veio das leituras, eu acho que veio de eu estar crescendo num momento em que a imprensa estava jogando um papel político muito importante no Brasil, foi toda a mobilização do Fora Collor, na época eu tinha 12, 13, 14 anos, mas eu acho que foi aquele momento ali, aquela vida política do país, aquela vida pública, que me levou a ser jornalista. Claro, eu gostava muito de ler, sempre, desde que eu me entendo por gente, então, aquilo foi...
P/1 – Você tinha livro em casa? Os seus pais compravam, liam também?
R – Tinha e tem uma biblioteca de literatura brasileira muito boa, e a gente lia muito jornal em casa, na época era o Jornal do Brasil, que tinha uma ambição de ser um jornal que estava falando para pessoas que tinham um interesse grande por política, para pessoas que tinham um interesse grande por cultura. E eu lembro muito bem, isso é uma coisa muito marcada na minha memória, que mais ou menos uma vez por semana a minha tia mandava o Jornal O Globo, que era o que era assinava, e aí ficava aquela pilha de jornal dos últimos dias e eu ia lendo tudo, principalmente, os cadernos culturais e tal, e tinham alguns jornalistas, alguns colunistas que marcaram época, o Paulo Francis, por exemplo, e eu gostava de ficar lendo aquilo e aquilo foi uma coisa que foi fazendo muito a minha cabeça. Então, quando chegou a hora de escolher qual curso eu ia fazer na universidade, não teve dúvida, era o Jornalismo e era aquilo mesmo, embora eu não tivesse parentes jornalistas e não tivesse no meu círculo, por exemplo, de pais de amigos, pessoas que fossem jornalistas. Foi algo que veio mesmo daquele momento da vida do país e, sobretudo, da leitura, da imprensa escrita, era aquilo que mais mexia comigo.
P/1 – Então, você foi fazer vestibular com a primeira opção clara, você queria Jornalismo.
R – Exatamente.
P/1 – E, aí, você passou na UFRJ?
R – E passei na UFRJ, passei em outras universidades públicas também, mas naquela época o melhor curso era o da UFRJ, então, foi para lá que eu fui.
P/1 – E como foi essa passagem do mundo da adolescência, do colégio, para essa coisa da universidade?
R – Para mim foi uma experiência muito boa, uma grande abertura de mundo, uma grande abertura de horizontes, que talvez tenha vindo mais do convívio com os amigos na universidade, do convívio com alguns professores que me eram particularmente queridos, do que propriamente da vida acadêmica, do que propriamente daquilo que eu estava estudando na universidade. Eu até acho que eu estudava muito mais no ensino médio do que na universidade propriamente dita, o curso não me exigia muito, não me cobrava muita coisa em termos de leitura, em termos de dedicação, eu tinha muito tempo livre, pelo menos até começar estagiar, mas havia uma vida cultural e uma vida política na universidade que eram muito atraentes, quer dizer, muito evento acontecendo, muita palestra com convidado de fora, cineclubes. Então, isso para mim é que foi o grande marco da universidade e o que fez aqueles anos realmente serem anos especiais e importantes para mim.
P/1 – Especificamente, a gente vê que mais à frente você vai estar envolvido com a Anistia Internacional. Nessa época, a sua posição, você falou do momento do Fora Collor, da tua formação, como você se posicionava politicamente dentro da universidade como pessoa, como cidadão?
R – Olha, quando eu entrei na universidade, a política era uma coisa importante para mim, mas não era o essencial. O mundo da cultura me atraía muito mais do que a política. O cinema, a literatura.
P/1 – Você queria mais ser um Paulo Francis do que um Carlos Casablanca.
R – Bom, o Paulo Francis escrevia sobre tudo, mas digamos que eu estava muito mais ligado naquilo que eu lia no Caderno B, ou no segundo caderno, do que propriamente na parte política, inclusive, achava que eu ia ser um jornalista especializado em cultura. Agora, quando eu comecei a universidade, desde o início, desde a primeira semana, literalmente, eu comecei a me engajar no Centro Acadêmico, comecei a fazer parte do movimento estudantil e num momento em que o movimento estudantil estava jogando uma briga importante na universidade. Foi uma época difícil em termos de recursos financeiros para as universidades públicas, eu estou falando aí da metade dos anos 90, mais ou menos. Então, as universidades estavam muito sucateadas, havia uma dificuldade grande de contratar professores, por exemplo, e o movimento estudantil estava muito empenhado na crítica a esse estado de coisas. E ao mesmo tempo havia muito engajamento do movimento estudantil com uma agenda política mais ampla, que passava muito pelas bandeiras do nacionalismo, pelas bandeiras do desenvolvimento econômico. E eu participei muito ativamente de tudo isso e comecei a tomar gosto por esse tipo de tema, comecei a ler mais sobre política, ler mais sobre história. Eu tive uma série de professores que tinham também uma trajetória de engajamento na resistência contra a ditadura militar no Brasil.
P/1 – Algum te marcou mais?
R – Ah, sim. Sim. Por exemplo, um dos meus melhores professores na universidade foi o Joel Rufino, o historiador, escritor, que foi preso político, foi torturado, e aquelas histórias que ele contava para gente me marcaram muito. Inclusive, quando eu fui aluno dele, ele lançou um livro muito bonito, que eram as cartas que ele escrevia para o filho dele quando ele estava preso durante a ditadura. Pelo lado da cultura, tinha o Paulo Roberto Pires, que na época era um repórter de suplementos literários e depois foi trabalhar com editora, foi trabalhar com fundações culturais, mas que era alguém que passava muito para gente essa riqueza de uma experiência do jornalismo cultural. Também o Fernando Mansur, que era alguém que vinha da área do radiojornalismo e que incentivava muitos os alunos, eu quase fui trabalhar com rádio por conta dele. Então, assim, eram professores que marcaram época, que foram pessoas muito importantes para mim. Agora, que foram também exceções, assim, de uma maneira geral a vivência que eu tive, a vivência na minha turma, de maneira geral, foi de não encontrar professores muito dedicados, não encontrar professores que estavam ali com a gente. Então, a universidade foi muito mais importante para mim como um espaço de convivência do que propriamente pelo lado acadêmico.
P/1 – Você falou que se engajou no movimento estudantil no Centro Acadêmico. Você foi da diretoria do Centro Acadêmico? Você prosseguiu com isso, chegou até um DCE? Como foi essa tua relação?
R – Não, eu era o que a gente poderia chamar de um ativista de base, de um militante de base. Eu nunca concorri às chapas, eu nunca tive nenhum cargo ali, mas eu estava sempre...
P/1 – Mas estava em todas as assembleias.
R – Eu estava sempre atuando ali, estava sempre ajudando a organizar um evento, estava escrevendo para o jornal do Centro Acadêmico, isso na primeira semana minha na universidade eu já estava escrevendo para o jornal, o meu primeiro editor foi o Pedro Doria, que hoje é editor executivo do O Globo. Então, aquilo ali mobilizava muito, então, era mais esse papel da universidade como uma janela para vida, como uma janela para um mundo mais amplo, do que propriamente pelo que eu estava aprendendo dentro de sala de aula. E nesse aspecto, na verdade, foi bastante decepcionante, o curso ficou muito aquém do que eu imaginava.
P/1 – Você falou que foi estagiar. Que estágio fez?
R – Pois é. No meu terceiro ano na universidade eu comecei a fazer estágios e, daí, não parei mais. Eu comecei estagiando na própria universidade, onde havia um programa especial de treinamento com financiamento da Capes, e que era basicamente ajudar a organizar eventos dentro da universidade, ajudar em publicações. Depois eu fui trabalhar para um jornal de bairro, em Santa Teresa mesmo, e também foi uma experiência importante. Trabalhei numa editora, na Nova Fronteira, na área de assessoria de imprensa, e depois no Jornal O Globo. Então, quer dizer, tudo isso ainda como estudante universitário, só como estágio.
P/1 – No Jornal O Globo você fazia o quê?
R – Eu comecei como estagiário lá. No programa de estágio, na época, a gente rodava as várias editorias e íamos acompanhando os repórteres. Então, eu acompanhava... Passei pela parte de cidade, pela parte de política e pela parte de cultura, e algumas semanas antes de eu me formar, eu fui contratado como repórter pelo O Globo. Então, assim, já desde a metade da universidade eu já estava razoavelmente inserido na vida profissional como jornalista e, daí, não parei mais.
P/1 – Você começou a trabalhar no O Globo?
R – Comecei a trabalhar como profissional formado no O Globo, como repórter do O Globo.
P/1 – De que editoria?
R – Eu estava no jornal de bairros e fazendo plantões também na parte de cidades, ocasionalmente na parte nacional, de política.
P/1 – Bom, e aí como você viu a tua carreira para o futuro e como você se posicionou nessa nova fase?
R – Olha, quando eu entrei na universidade, eu tinha certeza que eu ia ser um repórter de jornal escrito. À medida que os anos foram passando, essas minhas certezas foram sendo muito questionadas.
P/1 – Por quê?
R – Foi uma boa experiência ter sido repórter de jornal escrito, mas eu cheguei à conclusão que não era aquilo que eu queria fazer ao longo da minha vida profissional, o motivo principal é que eu me sentia muito frustrado pela distância entre aquilo que eu queria fazer e aquilo que o jornal efetivamente me oferecia de oportunidades profissionais. Então, eu queria tentar outro tipo de abordagem, eu queria escrever reportagens mais longas e o que o jornal tinha para mim era uma fórmula que já estava ali muito bem definida e de onde eu não podia muito variar. Ao mesmo tempo em que eu tinha começado no jornal, aí, eu estou falando do final dos anos 90, início dos anos 2000, foi um momento em que a internet começou a entrar com força no jornalismo e ela começou a balançar as estruturas das redações no Brasil. Grandes empresas da área de internet começaram a se estabelecer aqui e começaram a criar escritórios e a contratar muita gente, principalmente jovens jornalistas, então, isso era uma coisa que também me seduziu muito. Eu achei que se eu ficasse no jornal, a minha ascensão profissional ia ser muito lenta e que se eu fosse para uma dessas novas empresas, eu ia ter melhores possibilidades. E eu comentava isso com uma colega de faculdade que estava trabalhando numa dessas empresas e ela basicamente me disse: “Olha, nós estamos com uma vaga aberta, te interessa vir para cá?”. Eu mandei meu currículo e duas semanas depois eu estava trabalhando lá com o dobro do salário que eu ganhava no jornal e com um posto de subeditor na área de cultura. Aí, foi bem interessante também, porque, vamos dizer, foi um momento de decisão para mim, eu estava saindo de uma empresa grande, de uma empresa consolidada, e indo arriscar numa empresa nova, mas olhando para trás, eu acho que isso foi absolutamente fundamental, porque a partir daí eu comecei a ganhar certo gosto por correr riscos, por viver um pouco uma aventura profissional de desafio. Isso me levou a ter um padrão de carreira bem diferente e de muita experimentação, de muita tentativa e erro.
P/1 – Agora vou ser um pouco indiscreto. Não sei se indiscreto, mas...
R – Diga.
P/1 – Você pegou uma fase em que alguns críticos apontam que a imprensa brasileira começou a ficar muito militante, quer dizer, tomar posições quase que idealista nas notícias, as notícias viraram editoriais. O Globo é um dos órgãos que certas correntes apontam isso. Foi um pouco na época que você estava lá, pós-impeachment do Collor, quando a imprensa se viu muito poderosa.
R – Sim.
P/1 – Como você viveu isso?
R – Quando eu cheguei ao jornal, o que eu encontrei foi uma imprensa muito acomodada com os poderes constituídos, tanto com a Presidência da República, quando com a prefeitura do Rio, nem tanto com o Governo do Estado. Mas uma imprensa...
P/1 – Que era quem? A presidência era o Fernando Henrique...
R – Na presidência era o Fernando Henrique, na prefeitura era o Cesar Maia e no governo do estado era o Anthony Garotinho e depois a Benedita da Silva. Mas era uma imprensa que não queria ousar e que não queria muito criticar. Então, o que havia ali era um tipo de pauta muito cotidiana em que a gente falava dos problemas da cidade, mas muito mais naquele enfoque: “Olha, em um bueiro ali que está destampado, tem um poste ali que não está acendendo”. E é claro que isso estava muito abaixo do que era a minha expectativa e muito diferente do que tinha sido aquela imprensa mais combativa do início dos anos 90, que afinal tinha sido a imprensa que tinha me dado vontade de ser jornalista. Então, isso pesou também, embora não tenha sido o principal, porque naquele momento o que eu fazia no O Globo era muito mais esse noticiário dos problemas urbanos, não era uma grande política, não eram temas mais conflituosos, mas pesou também. Um certo conservadorismo do jornal, não só no aspecto político-partidário, mas na maneira como o jornal era feito no dia-a-dia. Uma dificuldade grande até de saber quem era o seu público, para quem o jornal estava querendo falar, esse tipo de coisa.
P/1 – Bom, aí você foi para esse seu novo emprego, esse seu novo desafio, como isso se desenrolou?
R – Pois é. Então, eu fui trabalhar para essa empresa que se chamava StarMedia Networks. Era uma empresa americana que estava entrando no Brasil naquele momento, ela tinha comprado alguns sites no Brasil, em particular um portal de buscas chamado “Cadê?” que antes de o Google virar febre, era um site muito visitado aqui no Brasil. E foi uma experiência muito legal, porque era uma equipe muito jovem, todo mundo tinha 20 e poucos anos, recém-formados. Eu tinha uma liberdade de criação enorme e pagavam bem para o que era a época, e ao mesmo tempo essa novidade da própria internet, de uma relação mais próxima com o nosso leitor, uma capacidade maior para usar, para colocar coisas no ar, porque, afinal, se estivesse ruim, bastava apagar o site, quer dizer, não tinha nenhuma grande complicação. E foi muito interessante ter trabalhado nesse meio. Agora, esse era o lado bom, o lado ruim é que também como era algo muito novo, o modelo de negócio não estava bem definido. Ninguém sabia direito como conseguir anunciantes, como angariar recursos.
P/1 – Ela era um provedor de conteúdo?
R – Ela era um provedor de conteúdo, o acesso era gratuito, não tinha nenhum tipo de limitação. E a ideia é que as pessoas iriam ao site por conta das notícias, da informação e que a partir daí se venderia publicidade, os recursos viriam daí. O problema é que se fez uma aposta exagerada com relação às expectativas de publicidade e se havia contratado muitas pessoas, a equipe era muito grande, se mostrou grande demais, então, o site começou a ter muitos prejuízos e começaram acontecer demissões em grande quantidade, e eu comecei a ficar preocupado, e ao mesmo tempo eu já vinha também de uma inquietação em que a minha própria frustração acadêmica com o que tinha sido a universidade, tinha me deixado a vontade de fazer uma pós-graduação. Eu sabia que eu queria fazer um mestrado, porque a minha graduação não tinha sido suficiente. Eu não sabia muito bem no que eu queria fazer o mestrado, isso eram outros 500. Mas depois de bater cabeça durante algum tempo, eu resolvi que ia fazer uma prova de mestrado para área de Ciência Política. Cheguei a essa conclusão, porque eu gostava muito de política e nesse momento é a ocasião em que a política começa a ficar mais importante para mim do que a cultura.
P/1 – Só aí?
R – Só aí. Só nesse momento.
P/1 – Só no momento de crise da sua empresa de provedor de conteúdo informática.
R – É uma coisa gradual.
P/1 – Sim, mas aí é que aflora.
R – Exato.
P/1 – No O Globo você não tinha essa inquietação?
R – No O Globo eu não tinha isso. Na própria StarMedia eu também não tinha.
P/1 –No O Globo você tentou ir para editoria de cultura?
R – Tentei, mas havia um plano de carreira muito específica em que os jovens repórteres começavam pelo jornal de bairro. Aqui e ali eu conseguia fazer alguma coisa para cultura, mas não era muito. Na StarMedia eu era o subeditor de cultura, então, quase tudo que eu fiz lá foi relacionado à cinema, literatura.
P/1 – Só para gente não ter que voltar para StarMedia, é outro grande tema que você está colocando na tua vida, que você passou, você já tem essa trajetória rica que você está passando pelos grandes temas na sua área de atuação. Que é essa concorrência entre a mídia tradicional e as mídias eletrônicas. Você falou de um ponto bom, um ponto mau. No ponto mau, uma das coisas que eu queria tocar, você acha que isso foi um problema pontual do StarMedia ou foi uma bolha que estourou mais ou menos ao mesmo tempo em várias empresas?
R – Ah, não, acho que foi algo mais generalizado. Foi exatamente o momento em que eu estava trabalhando no StarMedia, foi quando houve a bolha da Nasdaq nos Estados Unidos, das empresas que operavam com novas tecnologias. Eu diria que a StarMedia foi uma das empresas que sentiu de maneira mais dura essa bolha, porque as apostas dela para o Brasil tinham sido mais altas também. Mas isso foi algo que passou em várias outras empresas, não foi algo exclusivo daquela em que eu trabalhava, não.
P/1 – E você como uma pessoa jovem... Porque as pessoas das gerações mais antigas tem certa prevenção com o mundo dos blogs e, enfim, da internet. Então, hoje lamentando que nos Estados Unidos, principalmente, estão fechando jornais impressos, alguns se tornando só digitais, outros nem isso. Como você vê essa transformação? Você enxerga um bom caminho? Você acha que há preocupações?
R – Olha, eu sou um entusiasta das novas tecnologias de informação. Eu acho que elas estão aí para ficar, que elas são algo muito bom. É verdade que elas jogaram o jornal numa crise, mas isso aconteceu, porque o jornal não conseguiu mudar para entender esse novo leitor, para entender esse novo público. Afinal, para o que é que serve o jornal hoje? Porque você tem as notícias no teu celular, você tem as notícias em tempo real em vários sites, em vários mecanismos na internet, mas ao mesmo tempo, o jornal não conseguiu se tornar um espaço mais analítico, eu acho que ele ainda continua. O jornal, que eu digo, de maneira geral, aqui no Brasil, em outros países, porque essa é uma crise global. O jornal ainda está muito voltado como se ele fosse a principal fonte de informação do leitor e o que está acontecendo é que simplesmente os leitores estão abandonando, por exemplo, no meu prédio, bom, é um prédio pequeno, são sete apartamentos, mas apenas eu e outro apartamento assinamos jornais, o resto das pessoas se informa por várias outras maneiras, mas não pelo jornal impresso.
P/1 – Então, você acha que na verdade há uma tradição que morre, mas há algo que se repõe. Por que você acha que são tão interessantes as mídias digitais? Quais são as qualidades?
R – Porque elas jogam com a ideia do “faça você mesmo”, qualquer um pode ser produtor ou difusor de notícia.
P/1 – Isso não cria uma overdose de informação?
R – Olha, isso cria uma overdose de ruído e lança um desafio para o leitor, que é fazer a triagem: “Quem eu vou acompanhar na internet?” Mas essa triagem é um processo muito interessante e muito prazeroso também. Então, hoje, por exemplo, eu uso muito o Twitter para me informar, que é uma plataforma muito nova, tem pouquíssimos anos, não existia na época que eu estava trabalhando na StarMedia, por exemplo. E eu sigo uma quantidade grande de pessoas, muitos jornalistas, muitos acadêmicos, mas às vezes pessoas que não têm, digamos assim, obrigação profissional de estar produzindo conhecimento, mas que são muito inteligentes, ou que são muito engraçadas, ou que são muito ágeis na maneira como elas comentam as coisas. Então, é como se eu tivesse ali o meu jornal feito para os meus interesses, para o meu gosto pessoal, e que eu posso estar sempre atualizando, colocando um colunista novo. Tem a vantagem também de poder pegar pessoas de vários países, então, não está restrito àquilo que está acontecendo aqui no Brasil, tudo isso é muito interessante e não existia há dez anos atrás, há 15 anos atrás.
P/1 – Quando você quis fazer um mestrado, isso te impactava ou você colocou de lado e foi trabalhar só com política, com Ciências Políticas?
R – Bom, quando eu fui fazer o mestrado a minha intenção original era estudar a comunicação política, juntar o jornalismo e a ciência política. Então, eu estava interessado em fazer uma dissertação sobre como políticos ou movimentos sociais no Brasil lidavam com a questão da comunicação. Esse era o meu plano, mas aí o mundo resolveu interferir, enquanto eu estava fazendo as provas para o mestrado aconteceram os atentados de 11 de setembro de 2001. Quando eu entrei no mestrado, foram alguns meses depois, estava começando a guerra no Afeganistão e todo mundo só falava de política internacional. Alguns dos professores do mestrado resolveram oferecer cursos nessa área e eu me inscrevi. A princípio era um curso só, entre dez disciplinas que eu faria no mestrado, mas também foi outro daqueles momentos chave na minha vida, porque a partir daquele momento, eu não sabia naquela época, mas a partir daquele momento a minha carreira e a minha vida iam ficar muito orientadas para as relações internacionais. E, aí, isso foi realmente uma mudança muito profunda, porque até então isso não tinha acontecido.
P/1 – Quer dizer, na verdade, naquele momento a questão das novas mídias digitais não eram um tema... Quer dizer, não foi algo que te chamou para matéria de estudo?
R – Não tanto. Eu estava pensando mais num enfoque mais tradicional de televisão, de mídia impressa. As novas mídias, enfim, já faziam parte, eu já gostava da internet, já acompanhava, usava muito a internet nas minhas pesquisas acadêmicas, mas ela só veio a ter uma força maior para mim alguns anos mais tarde.
P/1 – Você fez o mestrado aonde?
R – Eu fiz o mestrado no IUPERJ.
P/1 – E algum professor do mestrado te marcou? Alguma disciplina?
R – Com certeza. Com certeza. Bom, começou por essa disciplina sobre Política Internacional, que eu fui fazer com o Cesar Guimarães e a Maria Regina Soares de Lima. E o Cesar foi a pessoa que eu tinha escolhido para ser meu orientador, ele falou: “Olha, eu vou dar esse curso aqui, vamos lá, você vai gostar”. E eu amei o curso, foi muito, muito bom, foi um curso sobre basicamente a política externa dos Estados Unidos ao longo do século XX. Então, pegava as guerras mundiais, o Vietnã, a Guerra Fria e foi exatamente o tipo de curso que me levou a buscar o mestrado. E quando eu terminei aquela disciplina, o Cesar e a Maria Regina me convidaram para ser assistente deles num grupo de pesquisa que eles estavam montando em Política Internacional.
P/1 – Você tinha largado tudo, pegado uma bolsa e...
R – A minha ideia inicial era fazer o mestrado ao mesmo tempo em que eu trabalhava, mas quando eu passei no mestrado, aquela situação financeira da empresa, que já estava ruim, chegou a um patamar muito, muito ruim, e estava muito claro que a empresa não ia sobreviver. E eu tinha que fazer uma opção, porque se eu quisesse a bolsa, eu tinha que largar o emprego. Na época eu morava ainda com os meus pais, então, os meus gastos pessoais eram muito baixos. E eu resolvi novamente arriscar, pedi demissão no emprego e fui só me dedicar ao mestrado com a bolsa e fazendo alguns trabalhos “freelancers” como jornalista. E foi uma boa decisão, porque seis meses depois de eu fazer isso, a empresa faliu.
P/1 – Bom, você terminou o seu mestrado?
R – Eu fui fazer o mestrado, então, ao longo do mestrado trabalhando como assistente desses dois professores, um deles o meu orientador, o Cesar, e no meio do mestrado um amigo meu de adolescência criou uma empresa. Ele criou um cursinho preparatório para pessoas que queriam ser diplomatas e me chamou para dar aulas de Política Internacional nesse cursinho. Esse curso acabou virando um grande império, virou a maior empresa da área, que é o Curso Clio, e acabou sendo também a minha porta de entrada para carreira de professor, e que acabou virando também, entre outras coisas que eu tenho feito na vida, eu tenho sido professor, isso já há 13 anos, então, começou também por aí.
P/1 – Por volta de 2000 que você começou a dar aula?
R – É. Do início da década passada.
P/1 – Bom, você terminou o seu mestrado?
R – Eu terminei o meu mestrado.
P/1 – Dando aula...
R – Dando aula, trabalhando como assistente desses professores, e no último semestre do meu mestrado, eu já procurando emprego, já querendo voltar para o mercado de trabalho, e uma amiga minha, também de faculdade, que trabalhava numa Organização Não Governamental de Direitos Humanos, me falou que tinha uma oportunidade aberta lá. Eles queriam alguém para ajudar a fechar um relatório sobre os compromissos em direitos humanos que o Brasil tinha assumido na ONU. Era uma vaga temporária de três meses e eles precisavam de alguém que falasse inglês e que entendesse um pouco dessa área de relações internacionais. Eu me candidatei para vaga, e esse trabalho, que era para durar seis meses, durou seis anos. E foi assim que eu entrei no Ibase, o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas, que foi uma ONG fundada na década de 80 pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho. E no Ibase eu vivi anos muito ricos e muito, muito gratificantes trabalhando com cooperação internacional na América Latina e na África, e pegando direitos humanos, políticas públicas, uma série de grandes temas ligada à área. O que estava no meu radar já, quando eu fui fazer o mestrado, uma das possibilidades que eu pensava era de ir trabalhar nessa área de Organizações Não Governamentais, então, assim, casou muito bem. Agora, ao mesmo tempo com o meu orientador e outros professores dizendo: “Olha, ok, você quer ir trabalhar com isso, mas você não vai largar a IUPERJ, né? Você vai continuar, né? Você vai fazer o doutorado”. Eu fiquei muito na dúvida, porque eu achei que eu não fosse conseguir lidar com tudo isso, porque a questão de tempo. Mas eu pensei da seguinte maneira, se eu continuar pelo programa que é a IUPERJ, eu tenho a entrada automática no doutorado, se eu não der conta, eu tranco a minha matrícula, melhor do que se eu deixar para fazer isso depois e tal. Então, resolvi topar o desafio e fiquei fazendo o doutorado, trabalhando no Ibase e dando aula. E funcionou, eu consegui dar conta de tudo, consegui tocar a minha vida juntando essas três coisas.
P/1 – Eu perdi o fio da meada de você absolutamente interessado na editoria de cultura, nos aspectos culturais, aí, eu ainda peguei o fio que você é mordido pela mosca azul das relações internacionais, mas de repente as ONGs, as Organizações Não Governamentais voltadas para as políticas sociais. Não me parece exatamente a mesma coisa, quer dizer, há uma nova guinada. Como isso aconteceu?
R – É. Bom, quando eu entrei no mestrado, eu não sabia exatamente para onde eu iria quando eu terminasse a pós. Falei: “Bom, eu posso voltar a trabalhar como jornalista”. E, aí, a minha expectativa era de que o mestrado em Ciência Política me ajudasse a ir para área de jornalismo político. Eu poderia continuar na vida universitária e me tornar professor, mas eu também já estava pensando na possibilidade de trabalhar em Organizações Não Governamentais, principalmente, porque eu tinha amigos que estavam trabalhando na área, que estava me parecendo uma área interessante, gostava daquilo que eles faziam e das histórias que eles me contavam.
P/1 – Em que área exatamente das ONGs, esse seus amigos?
R – Ah, várias coisas. Algumas questões ligadas à área de segurança pública, outras ligadas à área de juventude, alguns trabalhando com temas de AIDS, de saúde pública.
P/1 – Meio ambiente não?
R – Meio ambiente não. Meio ambiente não tinha nenhum...
P/1 – Porque as ONGs, na verdade, se abrem para um leque muito grande, você está fechando mais na área de direitos humanos dentro do Brasil, uma coisa em relação.
R – Várias coisas. E muito por essa área internacional. A verdade, a minha porta de entrada para esse meio e até hoje o que eu faço nas Organizações Não Governamentais veio pela área internacional por uma questão que passava pelo domínio de idiomas, mas também por eu gostar do tema, por eu estar acompanhando como eram os principais debates, como funcionavam as organizações internacionais, e isso é algo que vem muito do mestrado.
P/1 – Maurício, voltando para uma coisinha que você já tinha falado, voltando para uma coisa mais pessoal da entrevista, pode parecer uma coisa meio óbvia, mas para muitas pessoas, aprender um segundo idioma, ainda mais no Brasil, é como começar na academia de ginástica: na segunda, na segunda, na segunda e os anos passam. Você imediatamente colocou: “Não, esse momento eu fui um escolhido porque eu já dominava o inglês”. Como foi essa tua opção, apesar de ser uma coisa óbvia já para várias gerações, mas focada numa pessoa não é tão óbvia?
R – Não, eu acho que não é óbvio, não. E na verdade foi uma sucessão de acasos. Quando eu estava na escola primária, acho que uns sete, oito anos, o colégio onde eu estudava na época resolveu fazer uma experiência e oferecer aulas de inglês para as crianças.
P/1 – Que colégio era?
R – Na época era o CEAT, em Santa Teresa. Centro Educacional Anísio Teixeira. Era uma escola muito vanguardista, bem para frente. E eu gostei muito de aprender inglês. E por uma dessas coincidências, no ano seguinte eu fui passar férias nos Estados Unidos e eu era o único da família que falava alguma coisa de inglês. Meus pais não falam nada, meu irmão, na época, era mais novo do que eu, não falava também nada. E de repente lá estava eu com oito, nove anos, mas falando inglês nos Estados Unidos e me virando lá e servindo de guia para família e, aí, a coisa deslanchou. Bom, eu gosto de idiomas de maneira geral, português, inglês, o que fosse, e toda oportunidade que eu tive de aprender uma nova língua, eu fui atrás. Então, quando eu me formei na faculdade, eu falava com fluência inglês, francês e italiano. E depois disso eu fui estudar espanhol também, aí muito pelo trabalho, o trabalho me exigiu isso.
P/1 – Mas tudo isso você foi atrás de cursos específicos ou você foi autodidata?
R – Não, eu fui atrás de cursos, mas sempre buscando bolsas. Então, por exemplo, eu fiz italiano quase de graça, porque a minha família materna é italiana e o consulado pagava o curso para gente, a gente pagava uma taxa simbólica, uma coisa irrisória. O francês eu fui estudar na UERJ, porque eles tinham um laboratório de línguas que também cobravam uma mensalidade muito baixa e que eram os próprios alunos que davam aula, tal. Então, quer dizer, sempre tinham oportunidades ali para quem tivesse interessado correr atrás e batalhar. E era algo que eu gostava. E depois, quando isso começou a virar algo importante para mim em termos profissionais mesmo, de eu estar trabalhando com temas de relações internacionais, aí, uma coisa reforçou a outra. Mas esse sempre foi um diferencial forte na minha carreira.
P/1 – Bom, você entra no Ibase, você fica no Ibase seis anos?
R – Seis anos.
P/1 – Seis anos. E quais foram as suas experiências mais marcantes no Ibase? Deve ter sido muita coisa.
R – Foi muita coisa, mas o que mais me marcou, assim, o trabalho mais legal que eu fiz no Ibase foi uma série de iniciativas envolvendo políticas públicas para juventude, e aí pegando não só Brasil, mas vários outros países latino-americanos: Paraguai, Bolívia, Chile, porque isso me levou a ter uma experiência humana muito forte de conversar com os jovens desses países, e jovens que muitas vezes vinham de uma situação social muito difícil de pobreza, de racismo, de violência. Ao mesmo tempo acabou sendo uma porta para o que depois foi outro momento da minha carreira, que foi uma passagem pelo serviço público, porque eu comecei a trabalhar com política pública, conhecer as pessoas na área, e durante algum tempo eu servi no Conselho Nacional de Juventude, que é um órgão que mistura representantes do governo com representantes da sociedade civil. Então, fui começar a ver um pouco esse lado da política tentando enxergar um pouco também o lado do formulador de política pública, ao lado da pessoa que está lá como uma funcionária do governo e colocando aquilo em prática.
P/1 – Você já falou: “Ah, porque eu tinha amigos trabalhando em tais áreas”. Como é essa comunidade? Pensando mais pelo lado pessoal, porque pelo lado institucional nem é tão difícil a gente conseguir informações, mas é difícil a gente conseguir informações de dentro por esse lado mais pessoal, quer dizer, existe uma comunidade relativamente restrita que todo mundo se conhece, troca informações, troca indicações, como funciona isso pelo menos no Rio de Janeiro?
R – Olha, eu diria que no Brasil de maneira geral o peso das relações de amizade, das relações pessoais para as carreiras, acho que qualquer área é muito grande. E para uma área relativamente nova, ainda relativamente pequena, como é o setor das organizações da sociedade civil, é ainda maior. Então, assim, eu não teria feito as coisas que eu fiz, toda a vida profissional que eu fiz, se não fossem os amigos que eu tive. Eles me abriram muitas portas, eles me mostraram muitas potencialidades, muitas coisas que eu olhava e sentia: “Não, isso é legal. Isso eu vou gostar de fazer”.
P/1 – Mas quem são... Não quem, você não precisa me dizer nomes, claro, mas quem são esses amigos? Gente da época da adolescência, colegas de faculdade, gente que você encontrava no bar, a turma da praia? Quer dizer, que comunidade é essa?
R – Olha, começou com os colegas de faculdade, veio por meio deles, mas a partir do momento em que eu fui entrando, aí, foi pegando pessoas de várias, pessoas com quem eu trabalhei, às vezes jornalistas que me entrevistaram várias vezes e acabaram virando amigos. Depois, quando eu comecei a dar aula, alunos ou colegas professores na universidade. Pessoas de vários caminhos diferentes da vida, mas que têm esse interesse comum, que têm esse conhecimento comum.
P/1 – Você falou na tua carreira no magistério, que você começou no curso Clio, que era um curso para o Rio Branco, né? Preparatório para o Rio Branco.
R – Isso.
P/1 – Você continuou nele ou você foi modificando?
R – Eu dei aula nele vários anos, durante seis, sete anos, mas eu comecei a dar aula em outros lugares também. Muito essa equipe que dava aula no Clio foi chamada pela Universidade de Cândido Mendes para reformular cursos lá. Então, eu comecei a dar aula na universidade, depois eu comecei a dar aulas na Fundação Getúlio Vargas, porque entrou um novo coordenador e ele tinha tido referências minhas de várias pessoas e me chamou para dar aula lá também.
P/1 – Em que área? Jornalismo?
R – Não. Na área de relações internacionais. Todos dos cursos que eu dei como professor universitário foram sempre para curso de relações internacionais. Eu nunca dei aula para faculdade de jornalismo.
P/1 – Sei que o termo é um pouco forte, mas de certa maneira você abandonou profissionalmente a carreira de jornalista?
R – Olha, um pouco. Quer dizer, eu não trabalho mais como jornalista, o meu trabalho hoje é muito mais voltado para área de ciência política. Até o que eu preencho nas fichas de registro, como as que vocês me deram agora, mas eu continuo olhando muito para imprensa, olhando muito para mídia. Então, por exemplo, em vários lugares que eu trabalhei, quase sempre eu acabava sendo intermediário com a imprensa, ou porta voz, ou na hora que era para dar uma entrevista, para escrever um artigo para jornal, porque são coisas que eu gosto muito, eu adoro essa vivência do jornalismo, o mundo da imprensa. Embora não seja mais o que está lá na minha carteira de trabalho, continua a ser um aspecto da minha vida profissional.
P/1 – Bom, do Ibase, você caminha para onde?
R – Bom, do Ibase eu fiquei durante esses vários anos, aí, quando eu terminei o meu doutorado eu falei: “Bom, agora está na hora de tentar alguma coisa nova”. E eu vinha desse movimento maior com políticas públicas e era um momento também, Governo Lula, em que o número de concursos públicos tinha aumentado muito, os salários tinham ficado muito melhores, e eu resolvi: “Bom, vou fazer uma experiência de passar pelo Estado, de passar pelo serviço público”. Que era algo que eu sempre tinha olhado com muita restrição, porque eu falava: “Ah, eu não quero ser um burocrata, não quero ficar preso atrás de uma mesa, eu quero uma coisa mais dinâmica, mais viva”. Mas fiz o concurso público e fui trabalhar como gestor de políticas públicas em Brasília.
P/1 – Ligado ao ministério?
R – Uma carreira ligada ao Ministério do Planejamento, mas se circula muito por vários ministérios. Eu acabei indo trabalhar no Ministério da Indústria e do Comércio Exterior, porque eu recebi um convite dessa área do secretário de Comércio Exterior para ser assessor dele lá. Foi uma aposta, disse: “Ah, deixa-me ver se eu vou...”.
P/1 – E você mudou de mala e cuia?
R – Mudei.
P/1 – Até então você estava na casa dos seus pais, ou não?
R – Não. Aí nesse meio termo eu já tinha saído da casa dos meus pais, tinha comprado um apartamento aqui no Rio, já tinha uma vida bastante independente aqui. Tinha dividido apartamento em alguns momentos com amigos, tinha morado sozinho em outros momentos, mas, enfim, já tinha a minha vida própria aqui no Rio.
P/1 – Você fechou o apartamento e foi para Brasília?
R – Aluguei o apartamento aqui e fui para Brasília de mala e cuia. E odiei morar em Brasília, foi uma experiência absolutamente...
P/1 – Eu ia te perguntar imediatamente depois isso: como é um carioca morar, apesar de todos os espelhos d’água, todo esforço do Niemeyer, como foi?
R – Não, o Niemeyer é um grande escultor, mas ele é um péssimo arquiteto, dizendo assim. É muito complicado viver em Brasília. Agora, o que foi engraçado é porque o que eu realmente senti falta não foi exatamente aquilo que eu esperava sentir falta, por exemplo, se perguntar para qualquer carioca, fala assim: “Ah, a praia, a floresta”. Não, eu senti falta disso, mas o que eu realmente senti falta foi a vida de rua que o Rio de Janeiro tem muito forte e que evidentemente é impossível em Brasília. Brasília você circula da casa para o ministério, dali para o shopping center, para o clube.
P/1 – Você morava numa superquadra?
R – Eu morava numa superquadra, eu morava na Asa Sul, mas eu brincava que era meio que uma vida de astronauta, porque eu entrava no meu carro, ia para o ministério, saía do ministério, entrava no carro, ia para um shopping, ou ia de novo para minha casa, mas eu não tinha ali uma vida da rua, da cidade. E aquilo começou a me fazer muito mal, eu comecei a ficar muito deprimido, comecei a sentir uma falta muito grande do Rio de Janeiro, e comecei a pensar em maneiras de voltar. Eu fiquei pouco tempo em Brasília, fiquei um ano só por lá e foi muito ruim, foi uma experiência pessoal ruim. Profissionalmente foi muito bom, eu gostei de ter trabalhado com as pessoas com quem eu trabalhei, de ter visto o Estado por dentro, mas viver em Brasília não foi uma época que eu lembre com saudade, foi mais assim, uma aposta que não se pagou, uma tentativa que não se mostrou ser uma coisa legal para o que foi a minha vida.
P/1 – Uma curiosidade de vida urbana, qual é a vida cultural em Brasília? Como você viveu essa vida?
R – Eu senti uma queda muito grande na minha vida cultural. Eu não tinha nem de longe as opções que eu tinha aqui no Rio de Janeiro, ou as que eu tive em outros lugares onde eu morei, porque durante o doutorado eu morei na Argentina, a minha tese de doutorado foi sobre a Argentina, então, eu fui para Buenos Aires, fiquei um semestre lá. E tanto lá, quanto no Rio, era uma vida cultural extremamente rica, cinema, exposições, festivais, um grupo de amigos muito interessados em cultura. E não era isso que eu encontrava em Brasília. O que eu encontrava lá era uma vida muito mais convencional de clube, shopping center, cinema. E uma dificuldade também, eu acho, de encontrar um grupo de amigos em Brasília onde eu realmente me encaixasse. Tinha os meus amigos funcionários públicos, os meus colegas de ministério, mas que tinham ali as suas preocupações de salário, de carreira, mas que não necessariamente eram as pessoas com quem eu gostava de sentar para conversar sobre a vida, sobre o mundo, sobre cinema. Então, eu senti muita falta disso também, dessa vida mais misturada, dessa vida mais dinâmica que eu tinha aqui no Rio de Janeiro.
P/1 – Uma vez eu ouvi falarem que Brasília é um dos poucos lugares do Brasil, senão o único, que você ter dinheiro não representa muita coisa, o que interessa lá é a proximidade do poder.
R – Já me falaram isso também lá.
P/1 – Se você é um motorista, mas você é um motorista do Presidente, você às vezes é mais poderoso do que um empresário local. Você sentia essa coisa da capital, de você estar convivendo com o poder da República, com os poderosos?
R – Sentia. Inclusive porque eu estava assessorando um secretário, ia para reunião com o ministro, meu próprio chefe em vários momentos assumia interinamente o ministério. E que foi uma coisa interessante, foi legal participar dessas reuniões, escrever esses memorandos, esses documentos. Mas eu sentia aquilo de uma maneira muito fria, de uma maneira muito vazia, e me incomodava muito esse lado da corte de Brasília, o modo como aquilo era um tema de conversa onipresente, quem estava com cargo de confiança, quem não estava, quem estava em ascensão e quem estava caindo. E eu sentia muita falta dessa vida mais intensa, dessa vida mais dinâmica aqui do Rio.
P/1 – Vamos fofocar um pouco. Você acha que... Você falou a questão da corte de se comentar sobre as subidas e descidas políticas, falava-se também da vida pessoal das pessoas? Quem era amante de quem, quem saía com quem?
R – Não era tão divertido, não (risos). Não, olha, parece brincadeira, mas a conversa que eu mais tive em Brasília, em vários ambientes diferentes, era de como era difícil encontrar uma boa empregada doméstica em Brasília. Isso eu ouvia 15 ou 20 vezes em ambientes diferentes, em vários ministérios. E o pior é que eu nem tinha muito que falar, porque logo que eu cheguei lá, um amigo me indicou a empregada dele, a Dona Iraci, é uma ótima pessoa, uma ótima empregada, então, eu nem tinha muito que comentar quando as pessoas começavam as reclamações.
P/1 – Não dava para concordar com a opinião.
R – Eu falava: “Não, está aqui o telefone da Dona Iraci, pode ligar para ela, não tem problema”. Mas eu sentia isso. Olhava às vezes aquelas pessoas, e por ter contato na área econômica, né, muitas vezes eu ia para reuniões onde as pessoas eram tecnicamente muito qualificadas, então, eram discussões muito boas de política de comércio exterior, de política de investimentos, e terminava a reunião e a pessoa fazia uma piada racista, sabe? E eu começava a olhar aquilo e dizer: “Não, mas qual é o meu lugar nesse mundo, nesse ambiente?”.
P/1 – Isso em pleno o Governo Lula?
R – Em pleno Governo Lula. Bom, aí, eram funcionários de carreira, pessoas que estavam lá independente do governo. Mas eu me sentia muito fora de lugar. Eu olhava aquele ambiente, olhava aquelas conversas e dizia: “Caramba, esse não sou eu, esse não é o espaço no qual eu me sinto à vontade”.
P/1 – Nem todo estereótipo é falso, né?
R – Nem todo estereótipo é falso. Embora assim, há vários estereótipos de Brasília e alguns deles são injustos. Por exemplo, é uma cidade onde há uma quantidade muito grande de pessoas extremamente qualificadas e por incrível que pareça onde há uma cultura de meritocracia muito forte, porque muitas pessoas que estão ali porque passaram em concursos e entre os próprios dirigentes, uma certa disputa para puxar essas pessoas para lá. Então, por exemplo, o próprio secretário que me convidou para trabalhar, eu nunca tinha visto mais gordo. Eu tinha duas semanas de Brasília e recebi um e-mail da equipe dele dizendo: “Olha, ouvimos falar de você. Você quer vir aqui bater um papo conosco?”. Isso foi uma coisa legal também, até porque como a minha carreira sempre tinha sido muito pautada por relações pessoais, ter uma vivência diferente, de que eu estava ali porque tinha passado num concurso e tal, também foi algo interessante. Mas assim, eu me sentia muito infeliz em Brasília, foi uma época muito ruim para mim. E querendo voltar para o Rio e tal, e numa situação um pouco inusitada, porque assim, aquele era um momento da minha vida profissional em que eu já tinha conseguido fazer certo pé de meia, então, eu já não era mais aquele garoto em início de carreira, que estava ali batalhando por um lugar ao sol, mas ao mesmo tempo não foi uma decisão fácil sair de Brasília, porque eu ganhava muito bem lá, foi o maior sala...
P/1 – Você se exonerou?
R – Eu pedi exoneração. E foi o melhor salário que eu já tive na minha vida. Então, eu sabia que se eu voltasse para o Rio, ia representar uma perda salarial grande. Mas eu comecei a pensar muito assim também, assim: “Pra quê eu quero esse dinheiro?”. Porque eu fiquei lá um ano, juntei uma grana legal, e me senti assim, o meu problema não era a falta de grana em Brasília, o meu problema é que eu estava sem pessoas com quem conversar ou sem passeios legais para fazer quando eu saía do trabalho, coisas assim. E, aí, resolvi fazer mais uma dessas apostas que de vez em quando eu faço na minha vida, e falei: “Vou voltar para o Rio de Janeiro”.
P/1 – Antes de você voltar para o Rio, a gente pega uma coisa que eu não sabia, que você colocou de repente, você passou seis meses em Buenos Aires? Seu doutoramento era sobre o quê em relação à Argentina?
R – A minha tese de doutorado foi sobre as relações da Argentina com o Brasil e com os Estados Unidos, principalmente, no momento em que o Mercosul foi desenhado e foi implementado. Então o que a Argentina esperava do Mercosul, o que ela queria de uma relação mais próxima com o Brasil.
P/1 – Eu tenho que me segurar de perguntar quais são as conclusões que você chegou. Não está no escopo.
R – Não, mas eu posso falar rapidamente.
P/1 – Como foi sua experiência portenha? Como foi viver em Buenos Aires?
R – Absolutamente maravilhosa e apaixonante. Fui muitíssimo bem recebido em todos os lugares nos quais eu fui na Argentina. E mais do que isso, a Argentina foi um grande momento de consolidar algo que veio do Ibase de uma descoberta da América Latina. Porque na Argentina eu tinha acesso, de maneira muito fácil, ao cinema, à literatura, à música e à produção acadêmica de outros países latino-americanos. E isso foi algo também muito forte, sobretudo nos meus primeiros anos de vida acadêmica, eu trabalhava muito com esses temas.
P/1 – Por que você no doutoramento insiste nas relações internacionais de alto nível e não necessariamente no trabalho de ONGs que você já militava?
R – Porque a formação dos meus professores no IUPERJ era muito voltada para essa área de política externa, de relação entre estados. Se eu quisesse fazer uma pesquisa sobre movimentos sociais, sobre direitos humanos, eu não teria ninguém ali capaz de me orientar com a precisão e o acompanhamento que eles foram capazes de me dar nesses outros temas, nesses temas mais tradicionais.
P/1 – Como não era nenhum sacrifício, você também adaptou, né?
R – É. E eu tinha um pé em cada área. Agora, ao mesmo tempo em que eu estava lá fazendo a tese sobre esse tema, eu estava trabalhando de maneira muito profunda com essas outras questões e estava escrevendo muito sobre elas também. E, aí, os meus trabalhos acadêmicos começam a ser publicados, eu começo a ganhar prêmios acadêmicos, então, as duas coisas vieram sempre muito ligadas.
P/1 – Você teve contato lá com os movimentos sociais argentinos?
R – Eu já tinha antes por conta do meu trabalho no Ibase. Agora, é claro que morando ali, vivenciando aquilo, foi ainda mais forte.
P/1 – Você tem, me parece, uma predileção em trabalhar com a questão dos jovens, pelo que eu percebi.
R – Ah, muitas coisas. Eu acho que foi o que eu mais gostei de trabalhar, pelo menos até entrar na anistia. Anistia, outros temas. Mas no Ibase, com certeza foi o mais legal que eu fiz.
P/1 – Bom, estamos na Granero empacotando tudo na superquadra SQS e vindo para o Rio de Janeiro. E aí? Como foi?
R – Pois é. Aí eu volto para o Rio...
P/1 – Você se arrependeu ou não?
R – Não. De maneira nenhuma. Foi muito bom ter voltado para o Rio, mas eu sabia que não ia ser um processo fácil e não foi.
P/1 – Você veio sem... No vazio. Tipo, “cheguei e estou procurando uma vaga em algum lugar”.
R – Não. Na verdade, o que eu fiz foi o seguinte, abriu no Governo Estadual do Rio a mesma carreira que eu tinha em Brasília, de gestor de política pública, embora não pagasse tanto quanto em Brasília, mas eu vi aquilo como oportunidade de voltar para o Rio. Fiz o concurso já um tanto desconfiado, porque todas as pessoas me diziam que o ambiente de trabalho no governo do Rio não era bom, e realmente não era. Mas foi a maneira que eu encontrei de vir para o Rio com alguma coisa...
P/1 – Mas o concurso era sério?
R – O concurso foi sério, sim. E foi a maneira que eu encontrei de vir para cá com alguma coisa já assegurada, com tudo isso bonitinho, bem organizado. Então, nesse aspecto funcionou. Agora, realmente assim, em Brasília eu tinha críticas a uma certa postura dos funcionários, a um certo ambiente de trabalho, mas o Estado era bem organizado, o Estado era sério. Aqui no Rio não era. Aqui realmente era uma bagunça tremenda.
P/1 – Ineficiência, as coisas não andam, a gente começa se sentindo preso, não é?
R – Ineficiência, corrupção e na própria maneira como o Estado simplesmente não sabia o que fazer com aquela equipe que tinha contratado. Então, as pessoas começaram a sair muito da carreira e fazer outros concursos ou ir para outros lugares. Mas foi um modo de voltar para o Rio de Janeiro.
P/1 – E você atuou? Apesar de todo esse caos, você teve alguma atuação? Ou você acha que foi perda total?
R – No caso do Estado do Rio, eu acho que foi perda total mesmo. Eu tinha uma função absolutamente burocrática na Secretaria de Planejamento. Agora, o interessante e, assim, parte da minha frustração com o Estado, nesse período em que eu trabalhei no Governo Estadual se começou a tentar fazer algo chamado UPP Social, uma agenda de política social que iria acompanhar as Unidades de Política Pacificadora no Rio. E eu conheci o secretário de Direitos Humanos, que era a pessoa encarregada desse programa, e ele me convidou para trabalhar com ele e eu não pude ir por razões burocráticas, porque o secretário de Planejamento não autorizou, porque ele achava que era algo de prestígio ele ter na secretaria dele o maior número possível de gestores, mesmo que ele não fizesse a menor ideia do que a gente iria fazer lá. Então, aquilo também foi algo que me deixou muito frustrado, eu saber que tinha uma área na qual eu queria trabalhar, onde tinham portas abertas para mim, mas não consegui ir por conta de questiúnculas, de disputas pessoais, de disputas políticas ali dentro.
P/1 – Você colocou a questão pessoal, agora eu fico pensando, as suas amizades, a sua família, o pessoal aqui do Rio, como você foi recebido? Eu lembro que teve uma... Quando eu era criança ainda, isso não era comum, ela foi para os Estados Unidos um tempão, uma vizinha, quando ela voltou, tinha uma faixa “bem-vinda” e tal. O que as pessoas achavam de você estar jogando pela janela um salário altíssimo, um cargo no topo da República, de repente você poderia um dia, quem sabe, virar até ministro, eu sei que isso é político, mas, enfim, e de repente você vem para o estado fluminense, que não é dos mais bem afamados, com um salário muito menor? Hoje você está me falando de uma maneira racional e consciente da sua avaliação, mas devia ter dezenas de pessoas falando: “Eu te disse. Eu te disse”. Como foi viver isso, se você teve pressão, se foi algo complicado de se lidar? Como foi isso?
R – Olha, não. Na verdade, quando eu disse que ia para Brasília, aquilo entre os meus amigos, entre o meu círculo mais próximo, foi algo que me olharam assim: “Olha, cara, você não vai gostar de lá”. Na verdade, foi muito raro os meus amigos que disseram: “Vai para Brasília que você vai gostar”. E, claro, foi um período longo, relativamente longo, um ano e tal, e as pessoas foram acompanhando o modo como eu fui ficando muito deprimido. Então, assim, vários dos meus amigos e dos meus parentes, inclusive, depois me disseram: “Olha, a gente estava preocupado com você. A tua voz estava diferente, a gente estava sentindo que você estava muito mal, até fisicamente mesmo, e a gente começou a ficar com medo do que iria acontecer com você do ponto de vista da saúde se você tivesse continuado”. Vários dos meus amigos, inclusive, falam: “Aquele ano que você viveu em Brasília, você não foi você, você foi alguma outra coisa”.
P/1 – Então, no final acharam melhor a sua volta, apesar das...
R – Exato. Não, e o engraçado que isso depois acabou virando um argumento para os meus amigos que estava discutindo com as famílias de por que eles não queriam fazer um concurso e ir para Brasília, diziam: “Ah, está vendo, olha a condição que o Maurício não sei o quê”. Porque eu acho realmente que não é para qualquer um. Eu acho que para morar em Brasília, para ter aquele tipo de vida ligada ao poder, ao Estado, você tem que ter certo temperamento que leve para aquilo, ou você tem que ser alguém que vive e respira aquela política partidária. Ou então você tem que ser alguém que está buscando uma estabilidade muito grande na sua vida e que aquele é o valor essencial para você, quer dizer, você realmente querer alguma coisa ali mais sólida, de saber direitinho quando vai chegar o teu contracheque e tal. O que não foi muito o meu caso, assim, por uma série de circunstâncias as portas para mim em termos de carreira sempre estiveram abertas aqui no Rio. E muita gente me ajudou quando eu falei que queria voltar para o Rio. Pessoas com quem eu tinha trabalhado, lugares onde eu dava aula, eles diziam: “Não, olha, a tua vaga está aqui para você quando você quiser, é só avisar, não sei o quê”. Então, isso também foi um incentivo grande. Saber que embora eu tivesse voltando para um salário menor, eu também não ficaria descoberto, era um salário legal, enfim, tinha aqui uma vida correndo.
P/1 – Da possibilidade de carreira.
R – Exato.
P/1 – Mas puxando pela primeira vez a nossa conversa para o eixo temático, apesar da história de vida, mas nós temos um eixo temático, você teve duas experiências de morar no exterior, uma literalmente, outra...
R – Não, quando eu estava em Brasília, às vezes eu ligava para minha família no Rio e dizia isso como ato falho: “Olha, porque quando eu voltar ao Brasil...”. Porque realmente eu não me sentia morando no Brasil, parecia um subúrbio americano.
P/1 – Mas na sua geração, nessa época, você usava o correio? Você trocava cartas com pessoas do Brasil ou já não passava pela sua experiência?
R – Eu já não mandava mais cartas, mas eu mandava muito cartão postal para os amigos, para família.
P/1 – Por quê?
R – Porque aquilo era um gesto de carinho.
P/1 – Mas não dava para mandar por e-mail?
R – Dava, mas não é a mesma coisa.
P/1 – Por quê?
R – Um e-mail qualquer um manda. Um e-mail, eu posso chegar aqui, escrever meia dúzia de linhas e mandar para 15, 20 pessoas, o postal é diferente. O postal eu estava mandando para aquela pessoa especificamente. E em geral eu comprava postais que tinham alguma coisa a ver, alguma coisa da vida daquela pessoa. Então, por exemplo, se era alguém que gostava de futebol, por exemplo, eu mandava um postal da Bombonera, que era o estádio do Boca Juniors, na Argentina. Então, tem uma coisa ali muito mais de um sentimento de dizer: “Olha só o quanto eu me importo com você. Eu me dei o trabalho de comprar um postal, de escrever uma mensagem personalizada para você, de comprar selos, de ir ao correio”. Então, isso é um gesto de afeto muito mais forte do que mandar um e-mail, que é uma coisa muito mais impessoal. Todo e-mail de viagem você conta: “Olha, estive na cidade tal, não sei o quê”. Em geral escrevia um texto só e mandava para 20 pessoas. Então, o postal tem isso, é diferente.
P/1 – O postal tem aura.
R – Tem aura.
P/1 – Ele tem uma aura... Você estava falando aqui, eu falei: “Ele tem uma aura que o e-mail é...”.
R – Tem aura e tem alma. Porque o postal eu escrevo à mão. Então, eu posso fazer uma brincadeira ali com o texto, eu posso desenhar alguma coisa em volta. Cada pessoa sabe que está recebendo um postal que só ela recebeu.
P/1 – Brasília tinha postal ou não?
R – Em Brasília eu já não fazia mais isso, mas eu fiz em Buenos Aires e fiz em outras viagens, em cursos que eu fiz no exterior.
P/1 – Bom, pelo suspense da sua trajetória, eu estou preparado para um novo pedido de exoneração. Ele veio?
R – Exato (risos). Ele veio.
P/1 – O segundo? (risos)
R – Ele veio. O segundo.
P/1 – (risos) Em 35 anos de vida, duas exonerações?
R – Sim. Sim. Acho que o recorde brasileiro pelo menos (risos). Eu vi, falei: “Não...”. Mas na segunda, na verdade, eu já fui para o Governo do Estado achando que não ia ficar muito tempo, achando que era só uma maneira de voltar para o Rio.
P/1 – Uma aterrissagem controlada?
R – Uma aterrissagem controlada. E que, vamos dizer assim, foi pior do que eu imaginava, porque embora eu não tivesse ido com uma expectativa alta para o Governo do Estado, a realidade foi pior do que aquilo que eu imaginava.
P/1 – E, aí, quando você saiu? Você voltou a dar aula nesse interregno?
R – Voltei. Estava dando aula também.
P/1 – Aonde?
R – Em todos os lugares onde eu dava aula antes de ir para Brasília. Então, eu estava dando aula no Clio, estava dando aula na Cândido Mendes, estava dando aula na FGV. E realmente era o que eu mais gostava de fazer, era muito mais interessante do que estar lá no Governo Estadual, e ao mesmo tempo muito demanda por parte das universidades para assumir novos compromissos, pegar mais turmas, pegar cargos de coordenação, e que eu não podia fazer por causa do trabalho no Governo Estadual, que bem ou mal, era um trabalho ali de horário integral. Num certo momento, depois de um ano de Governo Estadual, viraram para mim em vários desses lugares onde eu estava dando aula e falou: “Pô, mas você não quer realmente pegar essas possibilidades que tem aqui? A gente está criando um curso novo e tal, eu tenho uma coordenação aqui para você”. Eu falei: “Quer saber de uma coisa? Vou nessa”. Aí, pedi a minha segunda exoneração, espero que a última. Aí, fiquei durante um ano e meio trabalhando só como professor. Aí, já também numa escala professor/administrador.
P/1 – Isso nós estamos em?
R – Isso, 2011. Aí, não só como professor, mas também como administrador, também coordenando cursos, desenhando disciplinas. E, aí, começa também uma fase nova na minha vida em que eu começo a ser muito chamado pela imprensa para dar entrevista, para gravar programas de TV, isso começa ficar algo muito forte também na maneira como eu trabalho. Já fazia um pouco disso antes, mas é a partir de 2011 que isso explode.
P/1 – Em todos os canais?
R – Principalmente, na Globo News, no caso da televisão, em que durante certo momento eu ia todo mês na Globo News.
P/1 – Você continua sendo chamado?
R – Continuo, mas numa escala menor. Porque agora como eu estou na Anistia, eu só posso falar publicamente sobre temas ligados a direitos humanos. E antes eu ia muito para comentar eleições ou para comentar acordos comercias, o que agora eu não posso mais fazer por conta do meu cargo atual. Mas falando muito com jornal também, escrevendo muito artigo para jornal. Então, foi um período muito intenso dessa vida acadêmica e de uma vida de um comentarista articulista político também.
P/1 – Você não pegou nenhuma coluna fixa em jornal?
R – Não cheguei a pegar, mas em alguns momentos eu comecei conversas que poderiam resultar nisso. Não chegou a fechar.
P/1 – Não te seduziu?
R – Me seduziu, mas a gente...
P/1 – Mas lá é que não fechou.
R – Não fechou do outro lado. Mas assim, tipo: “Olha, talvez a gente consiga discutir isso aqui, te interessaria?”. Falei: “Me interessaria. Vamos lá. Vamos conversar”. Não chegou a fechar, mas, enfim, chegou a algo parecido com isso, de ver que tinha uma demanda pelo tipo de análise que eu estava fazendo, e que ela estava começando a ter um retorno bom na imprensa brasileira, na imprensa estrangeira. Isso é uma coisa muito legal, porque veio depois de dois anos de funcionalismo público, onde eu estava me sentindo muito ali posto de lado. Então, isso foi um pouco também recuperar uma voz, recuperar uma identidade pública, foi um processo bem legal também.
P/1 – Bom, estamos chegando à Anistia?
R – Estamos chegando à Anistia.
P/1 – Como acontece essa sua... Você já tinha trabalhado com organizações, como acontece... Novamente a rede network, a rede de amigos?
R – Literalmente a rede, porque eu soube da oportunidade na Anistia pelo Facebook. O diretor da anistia, o Átila, era uma pessoa que eu já tinha conhecido na minha época de Ibase, ele estava lá no meu Facebook, e acompanhei quando ele virou o diretor da Anistia no Brasil, quando abriu o escritório aqui. E assim: “Nossa, que legal, é superinteressante e tal”. E um belo dia ele posta no Facebook que a Anistia está recrutando assessores de direitos humanos e que quer alguém especializado em política externa, em direitos humanos, e eu tinha acabado de voltar dos Estados Unidos, porque eu tinha passado um período com um pesquisador visitante, professor visitante, exatamente nessa área, numa universidade americana, na New School University, em Nova Iorque. Eu falei: “Pô, isso pode ser algo legal”. Voltar a fazer algo que eu já tinha trabalhado no Ibase, num ambiente novo, de uma organização internacional, que foi algo que eu nunca tinha feito, um tema que tem tudo a ver com o que eu estou fazendo como acadêmico, falei: “Vou mandar o meu currículo”. E cá estou há um ano, mais ou menos.
P/1 – E que tal a Anistia?
R – Muito bom. Muito, muito bom. Eu acho que trabalhar aqui, para mim pelo menos, é como se eu tivesse juntando vários fios diferentes de outros empregos que eu tive. Então, tem o lado da imprensa, porque a gente fala muito com vários órgãos jornalísticos diferentes, tem o lado do governo, porque a gente tem uma interlocução muito forte com o Estado, e eu preciso entender como pensa o funcionário que está ali lidando com política pública. Tem o lado das Organizações Não Governamentais Brasileiras, que são parceiras nossas, interlocutoras nossas em vários outros projetos. Então, tudo isso acabou se traduzindo também no que é a minha agenda de trabalho aqui, que é muito variada, que é muito diversificada.
P/1 – Você consegue se colocar como ponte mesmo, né? Até pensando um pouco na lógica que está do outro lado.
R – Exatamente. Com a cabeça de quem está do outro lado e fazendo essas várias pontes. Então, assim: “Ah, vamos fazer um evento com as pessoas que estão na universidade discutindo esse tema. Então, vamos lá”.
P/1 – Maurício, a pauta que eu tenho de conversar com você sobre as cartas, a gente já passou primeiro pelos cartões, pela áurea dos cartões, foi muito legal. É algo que se remete... Eu imagino que você tenha, não sei se esse contato ao longo da tua trajetória de estudo, porque você está aqui relativamente há pouco tempo.
R – Embora antes eu já tivesse escrito sobre a Anistia em trabalhos acadêmicos.
P/1 – Enfim, um dos nossos focos é a ditadura, é o período da ditadura, em que existe a questão, a colocação, e a gente quer que a Anistia e você, falando por ela, se coloque em relação à importância da carta, da troca de cartas nas questões de direitos humanos durante a ditadura. Os presos, muitas vezes incomunicáveis, só conseguiam passar... O que você pode dizer sobre isso?
R – Bom, isso é o DNA da Anistia Internacional. A Anistia Internacional foi criada como uma campanha global para escrever cartas para prisioneiros políticos ou como nós preferimos dizer na organização, para presos de consciência, para pessoas que tinham sido encarceradas por oposição aos governos de plantão, por oposição às pessoas que tinham poder nos seus países. Bom, naquela época, evidentemente, eu estou falando de 61, que é o momento em que a Anistia é fundada, não existia fax, não existia, evidentemente, internet, as próprias ligações telefônicas internacionais eram muito precárias, eram muito difíceis, e a carta era o grande instrumento de comunicação. Então, naquele momento é absolutamente natural e lógico que a carta tivesse sido a escolha primordial da Anistia para fazer esse tipo de trabalho, mas existem várias razões pelas quais até hoje em dia, 52 anos depois, a carta continue a ser a ferramenta preferencial. Primeiro, a carta tem uma relação pessoal, que o e-mail, a mensagem pelo celular, ou outra maneira eletrônica de se transmitir informações, nunca vão ter. A carta a gente escreve à mão, é o nosso punho, é a nossa letra, é a nossa maneira de escrever, é o desvio na caligrafia se a gente está com raiva, ou se a gente está emocionado, pode ser uma marca de lágrima se a gente está triste quando está escrevendo. E a carta tem, além de tudo isso, uma presença física que o e-mail, por exemplo, não tem. É claro que os governos podem simplesmente pegar aquelas cartas e jogar na lixeira, mas na nossa experiência, eles não fazem isso, na nossa experiência eles observam a quantidade de cartas que está chegando, ela funciona como uma espécie de pesquisa de opinião pública automática. Então, você vê aquela pilha subindo, você percebe que aquele tema está ganhando atenção, você percebe que aquele caso, que aquela história de vida realmente está de alguma maneira mobilizando as pessoas mundo afora. E a própria embalagem da carta, digamos assim, se ela está escrita em inglês, alemão, português, japonês, quais são os selos, essa própria embalagem já é um indicador também de quais são os lugares do mundo em que as pessoas estão olhando para aquele tema específico de direitos humanos. E isso se a gente pensar os anos 60, os anos 70, não só no Brasil, mas numa série de outros regimes autoritários nos quais a Anistia trabalhava, era “o” elemento de comunicação.
P/1 – Ela é um objeto, ela é um artefato, uma coisa que existe, que tem materialidade, que você acumula, que você conta, que você vê o volume.
R – E algo que você pode pegar e guardar, porque a gente tem as cartas escritas para as autoridades, cartas de pressão, mas tem também o que a gente chama de cartas de solidariedade, que são as cartas enviadas ou para as pessoas que estão presas, ou para os seus familiares. Inclusive, a imagem talvez mais tradicional que a gente tem na Anistia é um antigo preso de consciência posando ao lado das cartas que ele recebeu quando estava encarcerado. E a gente tem várias e várias declarações emocionadas de pessoas dizendo o quanto aquela pilha ali se acumulando era um gesto de esperança, era um gesto de alegria, de que a pessoa pudesse saber que em algum lugar do mundo tinham pessoas que estavam acompanhando o caso dela, que ela não estava sozinha. Exemplo, um caso fortíssimo aqui no Brasil, não na ditadura, mas de uma senhora que teve o filho assassinado por um grupo de extermínio, e ela recebeu cartas do mundo inteiro, posou para fotos com essas cartas, com o detalhe de que ela é analfabeta. Então, ela nunca conseguiu ler por ela mesma nenhuma daquelas cartas, mas ela sabia que aquelas cartas chegando pelo caso do filho dela, era um gesto de carinho, era um gesto de solidariedade, e bastava aquilo para deixá-la emocionada, para deixá-la reconfortada.
P/1 – É um gesto concreto literalmente.
R – É um gesto concreto.
P/1 – É um gesto concreto. Até havia uma questão na pauta muito ligada à questão da ditadura, mas a verdade é que a gente sabe... Você é especialista nisso muito mais do que eu. Muito mais não, você é especialista, eu não sou. De que as práticas autoritárias que atingiram muito a classe média no período da ditadura continuaram atingindo as camadas mais pobres até hoje, quer dizer, a tortura, enfim.
R – Tem uma ex-presa política brasileira que diz o seguinte: “Eu sobrevivi ao pau de arara, mas o pau de arara também sobreviveu a mim”.
P/1 – E já antecedeu, já tinha vindo de muito tempo, né?
R – Já antecedia. Exato.
P/1 – Quer dizer, a importância... Pensando nisso, a importância da carta, não só naquele momento dramático para as camadas médias brasileiras, estudantes universitários etc., mas até hoje na Anistia, inclusive no seu foco, da juventude, hoje não, eu sei, que você falou, mas você tem algum caso específico que você possa falar, independente de poder ter nomes ou não, nesse sentido?
R – É, posso contar alguns casos. Agora, o que é importante também é o seguinte, a maneira pela qual a Anistia atua e os temas com os quais a Anistia lida mudaram muito da ditadura para cá. Na época da ditadura militar brasileira, a Anistia basicamente lidava com temas ligados primeiro a presos políticos e depois a presos de maneira geral. Mas nos últimos anos, sobretudo nos últimos 20 anos, a Anistia abrangeu muito, aumentou muito a abrangência do seu leque de direitos humanos, e hoje em dia a Anistia Internacional trabalha com praticamente todos os temas de direitos humanos. Então, a carta que a pessoa pode estar recebendo, no passado seria um preso político, hoje pode ser, por exemplo, o caso da Laisa Santos, que a gente está trabalhando aqui no Brasil, que é uma ativista ligada a pequenos agricultores, a extrativistas do Pará, e que está ameaçada de morte, é um caso muito parecido com o do Chico Mendes. E ela teve uma irmã e um cunhado mortos por pistoleiros, e ela também sofre muitas ameaças. Então, o caso dela é um caso muito representativo de como a gente trabalha, porque tem as cartas que são mandadas a ela em solidariedade, e tem as cartas que vão para o governo brasileiro, sobretudo para o Ministério da Justiça, como uma maneira de pressionar as autoridades brasileiras a agir no caso dela. Então, assim, ela é muito simbólica de como a gente trabalha num ambiente da democracia, onde, claro, não existem mais presos políticos, presos de consciência, mas ainda existem muitas pessoas para quem receber uma carta da Anistia faz uma diferença.
P/1 – No caso do governo brasileiro, já houve algum sucesso nessa pressão? Quer dizer, já houve um movimento claro a partir dessa pressão?
R – Olha, se a gente olhar o período da ditadura, sem sombra de dúvida, mas na época da ditadura esse tipo de pressão era diferente. Basicamente o que a gente queria é que o governo, que era o dono das chaves, abrisse a porta da cela. Na democracia é mais difícil, porque em geral o que nós estamos pedindo não é uma mudança rápida e fácil, é uma mudança mais estrutural, de longo prazo. Então, as cartas têm sido muito efetivas para que a gente chame a atenção do governo para a importância de se proteger um determinado defensor de direitos humanos, para colocar ele ou ela num programa de proteção, ou para mostrar que a opinião pública internacional está acompanhando com atenção aquele caso. Nisso as nossas cartas têm funcionado muito bem. O caso da Laisa é um caso expressivo, outro caso é do Alexandre Anderson aqui no Rio, que é um pescador, ele dirige uma organização de pescadores artesanais na baía de Guanabara, e tem sofrido muitas ameaças também, porque ele tem protestado contra a poluição da baía. Agora, o que é mais difícil nesses casos é obter essa transformação de longo prazo. Essa mudança de certa estrutura político-econômica que favorece a impunidade, que favorece um ambiente de violência.
P/1 – E em todo esse contexto à rede de Ação Urgente, como ela se coloca em relação ao envio de cartas?
R – Bom, a Anistia tem várias maneiras pelas quais trabalha com o uso de cartas ou de cartões postais. A Ação Urgente nasceu nos anos 70, por coincidência com um caso brasileiro, o professor Luiz Basílio Rossi, e ela é basicamente uma petição global lançada para um caso onde é, particularmente, importante que aquela ação seja rápida, ela é uma ação...
P/1 – Esse caso brasileiro qual foi?
R – Ele foi um professor de história, na época um professor da USP, que foi preso durante a ditadura, e nós tínhamos informação de que ele ia ser torturado. Então, tinha que haver uma ação rápida para que ele fosse libertado antes da tortura começar, ou para que ele fosse libertado antes que ele morresse sob tortura, o que infelizmente era algo que acontecia muito naquela época. E a tortura tendia ser mais intensa nos primeiros dias, no momento do choque da captura. Então, ela foi um tipo de ação diferente da campanha de carta tradicional da Anistia, que eram campanhas que não tinham prazo de validade. A Ação Urgente tem, a Ação Urgente nós pedimos que as pessoas escrevam em geral por um período de tempo que vai durar algumas semanas, no máximo um mês, porque a gente sabe que tem um risco iminente, tem uma ameaça de violência, ou de uso da força iminente, então, aquela ação tem que ser rápida. Então, há uma rede específica de Ação Urgente de pessoas que se cadastraram mundo afora para receber todas as Ações Urgentes que a Anistia coloca em andamento, e cópias dessas Ações Urgentes também vão para alguns organismos internacionais, como o alto comissariado de direitos humanos da ONU. Então, a diferença dela, ela usa o mesmo mecanismo da carta, do cartão, mas ela tem esse diferencial de que ela tem um prazo de validade, ela tem que ser rápida, por isso o nome Ação Urgente.
P/1 – Eu ia te perguntar exatamente sobre isso. Quer dizer, eu acredito que grande parte das pessoas desconheça como esse mecanismo funciona, quer dizer, a Anistia manda, na verdade são pessoas engajadas na luta da anistia. Como essas pessoas se engajam? Hoje em dia pelo site, como era isso em 61? Como isso se dava no começo?
R – Bom, a Anistia Internacional nasceu de um artigo de jornal do nosso fundador, do Peter Benenson, onde ele basicamente conclamava as pessoas ao redor do mundo a defenderem a causa dos presos políticos, dos presos de consciência. Esse artigo saiu no jornal britânico The Observer, mas muito rapidamente se espalhou e foi traduzido para vários outros jornais num momento inicial, sobretudo na Europa, depois em outros lugares. Então, as primeiras pessoas que participaram da Anistia Internacional eram pessoas engajadas nessa campanha de redação de cartas. Ao longo dos anos a Anistia foi crescendo e ela foi se tornando também uma organização, ela começou a contratar funcionários em tempo integral, ela começou abrir escritórios, mas sempre muito ligada também com esse movimento de ativistas. Então, nós somos ao mesmo tempo um movimento de direitos humanos e uma organização de direitos humanos. Hoje em dia, em mais ou menos 150 países, com três milhões de membros, três milhões de pessoas que participam das nossas atividades.
P/1 – Ela se sustenta com contribuições dos membros?
R – Com doações dos membros e quase sempre pequenas doações. A Anistia ganha os seus recursos na base dos números, de ter uma quantidade muito grande de pessoas que são colaboradoras, que são voluntárias. Nós não temos muito a figura do grande doador, do empresário filantrópico, por exemplo, ele existe também, mas ele não é o principal na Anistia. E a maneira pela qual essas pessoas se engajam com a Anistia varia muito, eu acho que é impossível encontrar alguém que pelo menos em algum momento desse engajamento não tenha escrito uma carta para Anistia. E como eu dizia, esse é o nosso DNA, nós nascemos daí, mas pode ser também pessoas que queiram organizar uma manifestação de rua, que queiram fazer um cartaz. Muitos casos de artistas que colaboram conosco com a sua produção, fazem uma música, ou desenham uma camiseta para Anistia. Então, essa participação vai depender do interesse, do desejo, da afinidade de cada uma dessas pessoas. Mas as cartas estão sempre lá. Estão sempre presentes.
P/1 – Maurício, acho que a gente está chegando ao fim da nossa conversa, apesar de ter sempre muita coisa para colocar. Você gostaria de colocar mais alguma coisa que não te foi perguntado? Enfim.
R – Eu queria fazer um complemento. Porque, bom, a Anistia tem 52 anos, algumas das pessoas que estão conosco, estão conosco desde essa época. Então, claro, é muito emocionante conversar com elas, porque para minha geração, por exemplo, a carta já não é mais tão marcante, mas conversando com elas e ouvindo as histórias do passado, é que realmente me caiu a ficha assim: “Não, a carta sempre vai ser importante para gente”. Agora, ao mesmo tempo tem uma nova geração que está vindo aí, uma geração que já é alfabetizada digitalmente, e-mail, mensagem de celular, dispositivos móveis, o que for. E parte do nosso desafio tem sido como é que a gente concilia as duas coisas. Como a gente atrai para escrever uma carta esse jovem de 15, 16, 18 anos, que talvez nunca tenha feito isso na vida dele. E a gente está tentando encontrar algumas maneiras, algumas delas são muito interessantes, por exemplo, a gente já lançou ações onde você pode do seu celular mandar uma mensagem e essa mensagem depois vai virar uma carta. Essa é uma tentativa de construir pontes dessa nossa tradição, dessa nossa história, que é muito importante para nós, nós não vamos deixá-la de lado porque a tecnologia mudou. Mas ao mesmo tempo a gente tem que criar uma oportunidade para conversar com essa turma que está chegando aí, e que tem outra maneira de se relacionar com as comunicações, de mandar e receber mensagens.
P/1 – Então, na verdade é se adaptar, mas nunca perdendo o objeto final, que é a carta.
R – Exatamente.
P/1 – Acho que é isso. Queria agradecer. Foi ótimo.
R – Eu que agradeço.
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