Me chamo Anatília, nasci em Juazeiro do Norte em 1943. Sou filha de uma família muito católica e por isso entrei na vida religiosa com dezesseis anos. Hoje eu tenho sessenta e nove. Sempre me dediquei ao trabalho social, tenho prazer em falar isso.
Eu tenho lembranças muito boas do meu passado, por isso eu sou uma pessoa missiva, uma pessoa tranquila, harmoniosa.
Meu pai era agricultor, mas não gostava de agricultura, então ele era ourives, fazia joias. Minha mãe era uma mulher administradora, ela era administradora da fazenda do pai dela. Os meus pais eram assim: minha mãe muito criativa, muito dinâmica, meu pai muito passivo, muito tranquilo, tenho lindas memórias dele. Meus pais não eram opressores. Uma coisa bonita que eu admiro do meu pai é que ele foi sempre uma pessoa que incentivou as coisas boas, não me lembro dele brigando conosco, mas incentivando as coisas boas que fazíamos. Éramos em três irmãos.
Sempre fui muito preocupada com o estudo, minha mãe, como ela era muito simples, era uma pessoa analfabeta, tinha muito conhecimento, mas não tinha muita instrução, eu mesma me matriculava nas escolas, e quando eu não gostava da escola eu sempre pedia a minha transferência, sempre fui muito dinâmica. Eu sempre fui muito empreendedora também, fazia esteira, eu ia comprar palha, fazia e vendia minhas esteiras e tinha minha conta na venda. Veja que independência minha mãe me deu, isso eu agradeço hoje, pois eu gosto muito de negociar por conta disso.
Eu entrei na vida religiosa de uma maneira gostosa, ninguém me induziu, eu sempre tive vontade e o meu pai disse: “Minha filha, não vá, não, porque é muito sacrifício”, mas dentro de mim tinha uma coisa que me puxava. Realmente era vocação, eu me sinto vocacionada para a vida religiosa, dedicar minha vida a Deus diretamente para servir meus irmãos, me sinto muito grata. Minha irmã entrou também na vida religiosa com quinze anos e saiu depois de oito...
Continuar leituraMe chamo Anatília, nasci em Juazeiro do Norte em 1943. Sou filha de uma família muito católica e por isso entrei na vida religiosa com dezesseis anos. Hoje eu tenho sessenta e nove. Sempre me dediquei ao trabalho social, tenho prazer em falar isso.
Eu tenho lembranças muito boas do meu passado, por isso eu sou uma pessoa missiva, uma pessoa tranquila, harmoniosa.
Meu pai era agricultor, mas não gostava de agricultura, então ele era ourives, fazia joias. Minha mãe era uma mulher administradora, ela era administradora da fazenda do pai dela. Os meus pais eram assim: minha mãe muito criativa, muito dinâmica, meu pai muito passivo, muito tranquilo, tenho lindas memórias dele. Meus pais não eram opressores. Uma coisa bonita que eu admiro do meu pai é que ele foi sempre uma pessoa que incentivou as coisas boas, não me lembro dele brigando conosco, mas incentivando as coisas boas que fazíamos. Éramos em três irmãos.
Sempre fui muito preocupada com o estudo, minha mãe, como ela era muito simples, era uma pessoa analfabeta, tinha muito conhecimento, mas não tinha muita instrução, eu mesma me matriculava nas escolas, e quando eu não gostava da escola eu sempre pedia a minha transferência, sempre fui muito dinâmica. Eu sempre fui muito empreendedora também, fazia esteira, eu ia comprar palha, fazia e vendia minhas esteiras e tinha minha conta na venda. Veja que independência minha mãe me deu, isso eu agradeço hoje, pois eu gosto muito de negociar por conta disso.
Eu entrei na vida religiosa de uma maneira gostosa, ninguém me induziu, eu sempre tive vontade e o meu pai disse: “Minha filha, não vá, não, porque é muito sacrifício”, mas dentro de mim tinha uma coisa que me puxava. Realmente era vocação, eu me sinto vocacionada para a vida religiosa, dedicar minha vida a Deus diretamente para servir meus irmãos, me sinto muito grata. Minha irmã entrou também na vida religiosa com quinze anos e saiu depois de oito anos. Hoje ela diz: “Anatília, essa vocação era sua, não era minha, eu entrei por sua causa”.
No início houve um pouco de dificuldade, mas eu sempre tive tendência para o social, eu ia visitar velhinhos, levar roupa limpa, trazer, levar comida, eu sinto que realmente é vocação. Uma das dificuldades que passei, além de estar longe da família é quando eu fazia Ciências Sociais e fui transferida para um lugar onde não tinha faculdade, foi difícil. Embora quem entra na vida religiosa já sabe que tem que passar por algumas dificuldades. E não foi um problema porque naquele tempo mais uma vez eu me dediquei ao social. Nesse lugar, meu fundador, Dom Antônio Campelo de Aragão, comprou um terreno e fomos plantar para incentivar as pessoas a cultivar. Foi uma experiência fantástica, eu aprendi a cuidar de tomate, fiz um curso de suinocultura, criar porcos, cheguei a criar peixe de tanque, cheguei a criar coelho, por isso eu fiz Biologia lá na frente, eu acho que é por isso, tendência. Foi uma experiência muito interessante social, ensinar a produzir, mas não ensinar só de palavra, você fazendo junto com eles, hoje minhas crianças também têm muito isso, no projeto que nós temos hoje aqui no Pina, que é um lugar de risco. E eu sinto que foram justamente essas experiências do tempo de adolescente na vida religiosa que me fez continuar.
Eu pertenci ao Instituto das Medianeiras da Paz. Hoje, eu participo da comunidade Vida Plena porque em 2003, quando fui transferida para o Sul da Bahia, eu deixei a minha congregação para seguir um pouco mais o trabalho social, que me puxava muito para trabalhar, ficar no meio dos pobres diretamente.
Geralmente, na vida religiosa, de três em três anos somos transferidas, mas eu fui ficando aqui no Recife porque eu fazia faculdade de Psicologia, fiz Biologia em Salvador e fui transferida para cá e entrei como portadora de diploma no curso de Psicologia, e a congregação foi me deixando, não me transferiu logo.
Eu sempre fui muito dedicada à vida religiosa, sempre me colocaram em postos de responsabilidade, participei da formação de líder religiosa em Salvador antes de ser transferida para Recife há vinte anos atrás, onde eu vim trabalhar no bairro onde eu estou hoje. Aqui no Recife, eu percebia muita criança na rua e o padre, Frei Fernando Cornélio, foi o que me ajudou a fundar a instituição, o Centro de Revitalização e Valorização da Vida. Nós começamos esse projeto, e eu me dediquei demais, como hoje ainda sou dedicada.
O CRVV, Centro de Revitalização e Valorização da Vida, é uma organização criada para minimizar a exclusão de crianças, adolescentes e dar oportunidade às famílias ajudar essas crianças a ser cidadãos de uma maneira prazerosa, porque a educação, ela é muito repressiva infelizmente, bota de castigo, força a estudar e eu acho que nós temos um trabalho, uma pedagogia, muito prazerosa, Paulo Freire é um dos nossos admiradores e que nós seguimos também, construtivismo, a criança começar a construir. O CRVV, ele tenta promover a coragem de amar, ajudar a criança a conviver como ela é e a partir daí ajudá-la a crescer e não impor nada à criança. É muito difícil isso, porque a criança machucada, ela tem dificuldade de conviver com as outras, toda criança ferida, ela fere, então essas crianças de modo geral são muito agressivas.
Aqui em Recife eu criei uma menina que hoje é arquiteta, eu e irmã Zena, duas religiosas. Formou-se na faculdade com dezessete anos, coisa mais linda, negra, eu digo negra porque nós sabemos da exclusão que ainda existe. Eu me sinto muito bem com essa experiência porque nenhuma mãe das minhas crianças, que eu tenho setenta e cinco na instituição, jamais vão dizer: “Irmã Anatília, a senhora está dando esse conselho para mim, para minha adolescente porque a senhora não sabe o que é uma adolescente”. Criamos a criança dentro de casa e hoje nós temos uma outra com onze anos, quer dizer, a segunda filha adotiva, criando, quer dizer, cuidando de crianças da favela e criando também conosco dentro de casa para poder até animar as mães, mostrar que vale a pena.
Então a congregação me transferiu para o sul da Bahia e eu tive que renunciar para cuidar da adolescente. Se eu cuidei de todas as adolescentes como é que eu ia abandonar uma que eu cuidei junto desde pequena? Então a congregação me transferiu e eu não fui. Isso significa desobedecer a ordem. A congregação me pediu para pedir uma licença. Eu tinha que terminar o curso e fui ficando e me dediquei de tal maneira aos pobres, às crianças, que fui ficando mais tempo.
Teve um dia que eu estava rezando e a irmã que estava rezando comigo perguntou: “Irmã Anatília, como é que fica a sua obediência?”. Porque fazemos voto de pobreza, obediência e castidade, três votos, na vida religiosa. “Seu voto de pobreza vai bem, castidade pelo menos não tenho nada a falar contra, mas obediência não vai bem, porque a minha, a nossa congregação lhe transferiu e você não foi para onde ela mandou”.
Imediatamente, pensei: “É muito difícil, nesse momento, eu não sei se eu obedeço Deus da cabeça da madre que está me transferindo daqui, tirando da favela, ou se eu obedeço Deus dos excluídos”... “Eu vou ficar com Deus dos excluídos.” A partir daí eu fiz uma opção pela vida religiosa pelos pobres, não pela vida religiosa, que eu já vinha há muito tempo sendo religiosa. Naquele momento eu fiz uma opção concreta, consciente pelo pobre. Pela primeira vez desobedeci as pessoas e obedeci a Deus. E a partir dali fiquei tranquila, não tive medo. Hoje não tenho medo da morte, medo da velhice. Por que ter medo da velhice? Não, o Deus que cuidou de muita gente vai cuidar de mim também.
Pedi uma licença por três anos, venceu, a nossa instituição estava indo, crescendo, não voltei, me deram mais três anos, não voltei, eles me pediram: “Irmã Anatília, o jeito é você se desligar porque já está com seis anos que você está praticamente fora”. Desligaram. Para mim foi um pouco difícil porque eu já tinha mais de cinquenta anos na vida religiosa. Eu passei muito tempo com aquela carta sem botar no correio, depois eu escrevi assim: “Hoje eu não sou nem de Apolo e nem de Paulo, hoje eu sou totalmente de Deus”.
É interessante que antes de me desligar da congregação, quando eu estava na rua pedindo para manter a instituição em que eu estava até criar o CRVV, eu dirigindo uma Kombi para receber doações, as crianças diziam: “Tia, tem vaga?”. E eu dizia: “Me dê nome”. Dessa história de dar o nome, mais de cinquenta crianças estavam esperando por um espaço, mas não tinha, quer dizer, eu não sabia que Deus estava me preparando para uma nova forma, nova instituição. A partir dali, quando a congregação me transferiu, que eu não fui, imediatamente fomos arranjar um espaço para aquelas crianças que me procuraram. Das crianças que eu estava cuidando a congregação já ia cuidar, como de fato cuidou até hoje, e está indo muito bem a instituição que é aqui no Recife também, o Patronato Nossa Senhora da Conceição.
A partir daí então, eu fui me preocupar com aquelas que me pediram vaga e nós conseguimos alugar uma casa, sem dinheiro, mas conseguimos, depois de uns meses foi comprada através do Rotary Clube Boa Viagem aqui do Recife. Uma instituição não do Brasil, suíça, conheceu a nós, achou interessante o trabalho e comprou a casa na favela, então hoje a nossa instituição, o CRVV, tem sede própria.
Nós damos oportunidade às crianças e também aos educadores que entram para trabalhar conosco. Lá eles aprendem muito, ultimamente nós estamos tendo uma parceria com a Aldeias Infantis, que é uma organização criada lindamente fora do Brasil. Acho que nos procuram por conta da nossa abertura, porque no CRVV nada está pronto, você vai para fazer conosco, junto conosco, você não vai manter o que está feito, nós criamos juntos. Todas as semanas nós fazemos avaliação e planejamento, Irmã Zena que é pedagoga. Porque se a criança diz: “Hoje eu não estou com nada, não quero nada”, temos que criar imediatamente alguma coisa prazerosa para ela ser valorizada, passeamos com elas no bairro, tiramos fotografias, voltamos e depois de um passeio pelo bairro, eles voltam outras crianças.
Eu tenho um amor muito grande pela natureza e pelas minhas crianças, hoje tenho setenta e cinco crianças da favela, tomam café conosco, almoçam. Tem informática para eles, música, capoeira, percussão e a oficina de leitura nos deu uma produção muito grande que foi escrever um livro. Nós não temos estrutura ainda para preparar para o primeiro emprego, então temos que repassar para outra ONG, mas eu acho que é por aí, podemos valorizar a vida muito mais do que ela é valorizada. Temos que cuidar urgentemente das crianças e fico muito triste quando eu percebo a lentidão do governo em criar escola em tempo integral, porque a criança, se ela é cuidada desde muito cedo, não vai ficar na rua. Criança busca o quê? Comida, lazer, o que não tem. Mora na favela, só tem buraco, lixo, vai fazer o quê? Não pode chutar uma bola, nada.
O Projeto ViraVida é nosso parceiro. O ViraVida no seu início convidou várias ONGs e nos disse: “Nós temos um projeto muito importante, mas nós temos uma certa dificuldade de conhecer bem perto aquelas pessoas que mais precisam ser beneficiados pelo projeto, vocês ONGs que trabalham diretamente com o povo, diretamente com as comunidades carentes, têm mais contato”. E é verdade, nós nos consideramos parteiras, aonde ninguém vai, estamos lá, nós entramos na favela com a cabeça erguida, ninguém nos prejudica nem nada, porque conhece. Um desconhecido para entrar tem que entrar conosco porque é problema e o ViraVida nos convidou, não a mim, mas muitas organizações. Fazemos parte desde o início, eu fico muito feliz porque nos consideram quase que fundadoras também.
Ficamos com alegria participando, convidando jovens, vendo quem eram jovens que de fato necessitam. Nós conhecemos no dia a dia as famílias que têm moças jovens, que até daqui a pouco já estão engravidando, saindo muito à noite. Eu pego a Kombi, agora eu estou sem carro, mas eu pegava a Kombi, saía para tomar água de coco, não era para tomar água de coco, era somente para acompanhar nossos jovens, onde é que estavam e eu descobria muitos se prostituindo.
Já mandamos acho que bem uns três ou quatro grupos para o ViraVida, temos um prazer muito grande de acompanhá-los. Nós temos uma facilidade muito grande com os jovens, abrimos o jogo com eles, então sabemos quais são as famílias que estão sofrendo com os jovens de catorze, quinze, dezesseis anos se prostituindo para manter a família. Essas que se prostituem com esse objetivo são as principais que buscamos, é tanto que somos orientadas que aquelas profissionais que estão satisfeitas não é o caso, e sim aquelas crianças, jovens que realmente estão ali porque é o jeito, porque é a única fonte de vida, é a prostituição, é a exploração sexual. E infelizmente o maior problema é resgatar jovens depois que já estão acostumadas a ganhar dinheiro com a prostituição, especialmente dos gringos que muitas vezes pagam mais caro.
Tem jovens que mantém a mãe doente ou a mãe alcoolista muitas vezes, sem pai, a maior parte dos nossos jovens não tem pai. Muitas se prostituem para manter a família, muitas e com o ViraVida mudou porque essa ajuda que eles recebem aqui tem uma perspectiva de futuro: “Estamos nos preparando, daqui a pouco temos nossa independência”.
O ViraVida está fazendo um trabalho muito sério e eu acho que é por aí, e ensinando o governo a fazer um trabalho sério também, dando oportunidade ao jovem para estudar, agora está surgindo mais oportunidades, esperamos que melhore também as escolas porque o que precisa é educação, melhorar a educação.
O ViraVida mudou minha vida, criou mais esperança, de dizer: “Tem jeito”. “Mais uma organização que está cuidando da vida.” Então você não tem aquele desânimo de dizer: “Não vale a pena, os jovens estão se prostituindo cada vez mais, cadê o governo que não ajuda, a família está desestruturada, o sistema é de morte”. Você fica com todo esse negativismo e é um grande perigo. E é importante o trabalho preventivo, um trabalho que está cuidando do jovem antes dele morrer, antes de adoecer mesmo, assim como se faz na nossa instituição.
Eu sou sonhadora. Eu sonho em ver a nossa instituição sendo construída e mantida, porque ela é muito pobre, uma casa muito simples no meio da favela, com goteira, com tudo. Também tenho vontade de criar alguma coisa para idosos. Temos muitos idosos abandonados, que estão no fundo do quintal tomando remédio para ficar quietinho, para não denunciar, e o filho e o neto comendo o dinheiro com droga, com tudo que tem direito. Então eu tenho vontade de criar uma instituição assim, não tipo abrigo, não, algo mais aberto, que eles vão e voltem, sintam-se felizes e o dinheiro fique para eles.
Sonho em continuar dando a vida com alegria para quem precisa e despertando, espero, em outras pessoas essa mesma coisa, é tanto que, quando eu chego cheia de pacote na rua, eu digo: “Senhor, o senhor não acha que eu já estou com sessenta e nove anos, não, que já tá bom de diminuir esse meu corre-corre, trabalhar menos?”. Me vem uma pergunta assim: “Será que você não está sendo um instrumento para que as pessoas vejam que vale a pena lutar, trabalhar?”. Não sei, estou aqui.
Trabalhar no social pra mim é isso, dar a vida para que a vida aconteça.
Recolher