Projeto Conte Sua História
Depoimento de Antônia Bezerra de Oliveira
Entrevistada por Carol Margiotte e Renata Pante
São Paulo, 17/05/2018
Realização: Museu da Pessoa
PCSH_HV677_ Antonia Bezerra de Oliveira
Transcrito por Rosana Rocha de Almeida
Revisado e editado por Viviane Aguiar
P/1 – Dona Antônia, bom dia!
R – Bom dia.
P/1 – Muito obrigada por estar hoje aqui com a gente.
R – Eu que agradeço.
P/1 – Fica bem tranquila, tá? Pode ficar olhando pra gente. E, pra começar, o nome completo da senhora.
R – Antonia Bezerra de Oliveira.
P/1 – O local e a data de nascimento.
R – Dia 13 de julho de 1933. Olha, preciso de acalmar! (risos)
P/1 – Por isso estamos começando com as perguntas mais fáceis. Onde a senhora nasceu? Nome da cidade?
R – No Rio Grande do Norte, numa cidade chamada Serrinha.
P/1 – Qual o nome dos pais da senhora?
R – Luiz Bezerra Xavier.
P/1 – E a mãe?
R – Abília Fernandes Xavier.
P/1 – E a senhora sabe de alguma história que eles contaram do dia do nascimento da senhora?
R – Eu gostaria de começar assim, por poucas coisas que eu sei de quando meu pai e minha mãe se encontraram.
P/1 – Ótimo, então, vamos começar!
R – Porque eu ouvi muito ela contar essas historinhas em casa pra gente. Meu avô veio de Portugal e foi pra essa cidadezinha, nem era cidade, era um povoado chamado Serrinha. E lá ele se instalou. Os portugueses sempre traziam algum dinheiro, né? E ali ele comprou muitas terras e ali ele ficou, morou até morrer. Aí então, já casado pela segunda vez, o meu vô... E, no casamento dele, da segunda vez, é o casamento que a minha mãe nasceu. Do segundo casamento. Desculpa alguma coisa que eu misturo!
P/1 – Fica tranquila.
R – E, então, a minha mãe contava assim pra gente, falando, conversando, que, quando eles se conheceram, o meu pai veio de uma cidadezinha, também povoado pequeno – agora é cidade –, de Lagoa Salgada. Veio a negócio, trazer pessoas em Serrinha porque ele tinha um carrinho – meu pai sempre teve carro. Ele, desde novo, falava que gostava de carro. Então, ele tinha um carrinho que chamava Baratinha, naquele tempo, Baratinha. Não sei se tinha outro nome, mas todo mundo chamava Baratinha, Baratinha! Segundo eles, né? Porque eu não era nem nascida. E ele encontrou com mamãe. Mamãe chamava Abília Fernandes. E, então, era filha do meu avô, que era português, da minha avó portuguesa, e ali eles se encontraram. E a família da minha mãe era meio abastada, tinha algum dinheiro, muita terra, essa coisa. E a família do meu pai não. Meu pai perdeu o pai, era novinho. Eram três filhos que minha avó teve com meu avô, que chamava Manoel. E minha avó, da parte de pai, chamava Luísa. E esse meu avô, naquela época, quando eles não tinham emprego lá, eles diziam que queriam melhorar – como o nordestino faz que vem pra São Paulo, que vem melhorar a vida, né? Então, meu vô cismou de deixar a família e ir morar, procurar um emprego assim, no Amazonas. Eles iam muito pro Amazonas naquela época, não vinham pra São Paulo. E o caso é que meu avô, pai do meu pai, foi pro Amazonas e nunca mais voltou. Eles não tiveram uma notícia sequer, simplesmente sumiu! Foi embora, e não se sabe o que aconteceu com o pai do meu pai, o meu avô. E, então, o meu pai ficou pequeno, era novinho. Cresceu e começou a trabalhar carregando pessoas nessa Baratinha, nesse carro que ele tinha. Então, nessa ida que ele foi de Lagoa Salgada pra Serrinha, que eram cidades perto, foi que meu pai conheceu a minha mãe. E se conheceram, começaram a namorar, mas não foi do gosto da minha avó. O meu avô até aceitou, mas a minha avó, mãe da minha mãe, não aceitou porque ele não tinha bens, ele não tinha nada. O bem do meu pai era aquele carrinho. E a minha mãe já era de uma família que tinha mais dinheiro, uma família mais evoluída! E meu pai não. Meu pai naquela época não sabia nem ler, só assinava o nome. Isso era muito ruim pra um casamento, a filha casar com um rapaz desse. Mas era uma pessoa muito boa, muito amável e... Mas isso não foi empecilho, eles casaram assim mesmo, com essa diferença.
P/1 – Dona Antônia, a senhora estava contando da aceitação da família da sua mãe em relação ao...
R – Mas eles casaram, foram felizes, mas minha avó nunca aceitou. Ela morreu não aceitando esse casamento. Mas tratava meu pai meio com indiferença. Mas tudo bem, eles foram felizes, tiveram muitos filhos! A minha mãe teve 16 filhos, quer dizer, 15 partos, um de gêmeos. Então, ficaram 16 filhos. Mas naquela época não tinha medicamento que tinha hoje, então, morriam as crianças, as pessoas morriam com muita facilidade, né? E teve minha irmã, a mais velha, que morreu faz seis anos, e depois eles tiveram muitos filhos pra poder eu nascer. Não sei quantos que foram, só sei que ao todo morreram 11 filhos da minha mãe. Todos morreram pequenos, crianças, e restaram cinco, que são a minha irmã mais velha – chamava Anaísa – e eu, depois de algum tempo, que tinham nascido várias, eu nasci e consegui sobreviver (risos) naquela época! Era isso, conseguir sobreviver, naquela época. E depois veio a minha irmã Judite, também viveu. Depois entre eu e minha irmã Judite tiveram outros filhos, que também morreram. Aí veio minha irmã que sobreviveu e depois também veio minha irmã Berenice e a minha irmã Aparecida, Maria Aparecida. Aliás, minha irmã tinha o nome de Antônia Tereza. Todos os filhos da minha mãe, só não Anaísa, mas depois de Anaísa, que eu saiba, das cinco, todas foram: Antônia Judite, eu, que era Antônia, depois veio Antônia Judite, Antônia Berenice e Antônia Tereza, que é a minha irmã caçula, foi a última. E minha mãe morreu com seis meses que ela tinha nascido.
P/1 – Por que tanto de Antônia? (risos)
R – (risos) Outra história! A minha irmã... Tinha essa serra, e a minha mãe já era casada, e eles visitavam muito essa serra. Iam lá em cima, era tipo de fazer excursão: “Vamos fazer um domingo de piquenique!”, porque eles faziam muito piquenique. E lá de cima dessa serra minha mãe teve uma queda, de cima da serra. E a minha mãe disse que, quando conseguiu pensar na queda, ela falou pra Santo Antônio, que era o padroeiro da nossa cidade, que, dali pra frente, os filhos que ela teria seriam Antônio, se ela escapasse dessa queda. E foi isso. Por causa dessa queda que ela teve de cima da serra, por isso, esses últimos filhos dela foram Antônia. Antônia e Antônio que tiveram. E morreram alguns Antônios depois de mim, e eu fui a primeira depois da queda, né? E tiveram alguns Antônios e teve... Porque faleceu e teve o Antônio, o Antônio que faleceu, não sei se foram um ou dois depois de mim. E a minha irmã que era Antônia Berenice e Antônia Tereza. Foi assim.
P/1 – E a senhora contou rapidinho como seus pais se conheceram.
R – Sim.
P/1 – A senhora sabe como foi esse primeiro encontro deles? Como que se conheceram?
R – Não, eu não sei muito bem. Eu sei essa história assim, que se contava, porque se sabia que minha avó não aceitava meu pai. Então, minha mãe falava pra gente. Foi coisa da minha avó, porque ela era muito orgulhosa – até morrer ela foi muito orgulhosa – e ela não aceitava por causa disso. Meu pai não tinha nada, e minha mãe era de uma família que tinha algum dinheiro, algumas terras. E, naquele tempo, quem tinha muita terra era diferente, não sei. Esse pedaço eu conto porque minha mãe contava (risos).
P/1 – E, Dona Antônia, a senhora estava falando da história dos seus avós portugueses, né? Por parte de mãe. A senhora sabe por que eles vieram de Portugal pra cá?
R – Eu não sei. Eu sei que quem veio, sei bem da historia do meu avô, que veio de lá com mais outro irmão, mas não sei por que foi. Só sei que eles vieram e trouxeram esse dinheiro, que encontraram terra e ali se firmaram, né? Naquela época, os portugueses vinham pra cá, pro Brasil, e justamente no porto de Natal a maioria deles vinha pro Ceará. O outro irmão do meu avô foi pro Ceará, e ele, quando chegou em Natal, disse: “Não, vou descer aqui, vou ficar aqui”. E o meu avô dali foi pro Ceará, o outro, o meu tio, o irmão do meu avô foi pro Ceará. E meu avô ficou em Natal. Aí ele foi pra lugar pequeno. Como Serrinha não era longe, ele quis comprar terra e comprou naquele pedaço, naquele lugarzinho.
P/1 – E a esposa dele, a sua avó?
R – A minha avó era considerada muito braba! Uma pessoa brava, que brigava com todos, que era muito autoritária e muito racista! Já o meu avô não, era calmo. Eu lembro bem, o meu avô era calmo. Mas a minha avô sempre foi assim, até morrer ela foi assim, até morrer. Ela tinha uma... Não sei se posso contar isso ou se vocês não quiserem escrever, não escreve.
P/1 – A senhora pode contar o que quiser, a gente está adorando ouvir essas histórias!
R – Eu sei que minha avó, ela tinha... Naquele tempo acho que não tinha mais escravo, mas ainda se considerava o negro escravo! Pessoas que eram negras – não é como hoje, eles são livres! Ainda considerava assim, eles sofriam muito ainda. E se contava uma história, que se tornava pra eles engraçada, que minha avó tinha essa negra que cuidava de tudo com ela – essa minha avó casada com meu vô por parte da minha mãe. Minha avó, por parte do meu pai, não tinha! Era pobre! Então, ela tinha uma negra que teve um filho na casa dela e ela pegava esse filho da negra e dizia pra ela que ia deixar o filho dela branco. Punha na mesa e cobria o menino de talco e entregava pra ela: “Toma o teu filho branco”. Vê como ela era, né? Ela era assim. E essa história eu ouvia contar porque eles contavam e achavam engraçado, né? Hoje a gente sabe que isso não é engraçado. Mas era assim. E essa minha avó era conhecida, como diz em Serrinha, ela era mandona, ela era mandona dali. Até quando fui há uns quatro ou cinco anos... Não, mais! E tinha uma pessoa que conheceu a minha avó, esse senhor já estava com 90 e poucos anos, e eu fui falar com ele. E ele falou que conhecia muito a Abília, que era minha mãe: “Conheci muito Seu Luiz” – que chamavam meu pai de Luiz Chofer, porque ele sempre teve carro – “e conheci muito a sua avó, que era muito braba!”, que era Joana. Eu chamava ela de Mãe Noca, não sei por quê, mas todos os netos chamavam ela de Mãe Noca. E essa era braba mesmo. Até morrer ela foi brava.
P/1 – Ela também era portuguesa?
R – Ela era portuguesa. Mas a história dela eu não sei. Sei que ela veio pequena de Portugal, aí já era muito pra trás, eu não sei.
P/1 – E como os seus avós se conheceram, a senhora sabe?
R – Não, isso eu não sei, porque já era uma coisa, quando ela era meio velha... Eu nasci, e ela já era velha, já era de idade, já tinha cabelo branco, né? Então, eu não sei.
P/1 – E a senhora chegou a conviver com seus avós?
R – Ah, cheguei! A conviver com meus avós. Com meu avó eu convivi, esse que era português. Por parte de pai não.
P/1 – Sei, o que foi pro Amazonas...
R – Não voltou. Agora, eu convivi com meu avô, que era Antônio, era muito bom. Uma pessoa carinhosa com a gente, ao contrário da minha avó. Minha avó não tinha carinho com a gente. Ela brigava muito, corria atrás da gente com cipó pra bater (risos), ela era brava mesmo. Mas o meu avô não. Quando ele morreu, eu tinha de cinco pra seis anos, mas eu me lembro exatamente dele numa rede, doente de uma ferida no pé. Naquele tempo chamavam ferida, mas devia ser um câncer, né? Porque não tinha remédio pra essas coisas, não sabia nem se existia câncer! Mas já devia ser um câncer, porque ele morreu dessa ferida, dessa doença que ele tinha no pé. Foi disso que ele morreu.
P/1 – E a avó por parte de pai, a senhora conheceu?
R – Nossa, aí a minha mãe casou, e, como minha avó tinha três filhos, tio Pedro e tia Maria, papai era o caçula, papai casou por último. Então, desde que mamãe casou com papai, a minha avó por parte de pai era uma pessoa muito amável, muito querida por todos. Minha mãe adorava minha avó. Ela casou, e já minha avó veio morar com papai e ficaram até a morte da minha mãe. Minha mãe morreu muito cedo. Minha avó ainda ficou com a gente depois que mamãe morreu, cuidando da gente. Elas eram como mãe e filha, né? Mãe e filha. Não era considerada assim, ela chamava ela de Dona Lulu, mas tinha-se como filha. Mamãe era como se fosse uma filha dela. Eram muito unidas! Nunca vi uma discussão entre as duas, nem nunca vi também uma discussão entre meu pai e minha mãe. Eles eram muito felizes no casamento, apesar de ter só filho, filho, filho, né? Minha mãe teve muito filho, né? Mas eles eram muito unidos! Eu me lembro que tinha uma caçamba nessa serra, que a pessoa ia lavar roupa nos cacimbões enormes. Uma largura imensa era a boca desse poço. Chamava de cacimbão, naquele tempo. As pessoas conversavam diferente de hoje, né? E ali as pessoas todas de Serrinha, ia todo mundo lavar roupa ali. E as pedras, em que eles lavavam roupa, tiravam desse cacimbão, e eu me lembro que mamãe tinha tido filho e papai foi nesse cacimbão. E meu pai caiu numa pedra em volta do cacimbão, caiu por baixo assim, e saiu na frente do cacimbão. E ali eles pensavam que papai ia morrer, quem estava por perto. Mas papai devia saber nadar, ou subiu do outro lado. Ele caiu por fora e subiu dentro do cacimbão. Isso meu pai chegou e já preveniu, ele estava com um terno branco de linho, que se usava muito linho. Ele chegou, eu me lembro disso. Ele chegou todo muito sujo da lama (risos), que ele caiu no cacimbão. E minha mãe estava de dieta, e ele não queria que mamãe soubesse pra não ficar contrariada. Aí ele se escondeu, a casa era muito grande. Ele já foi pro banheiro, tomou banho, e minha mãe não ficou sabendo. Não sei se ela ficou sabendo depois, mas nessa época não ficou sabendo. Eles eram tão unidos que eles não queriam contrariar o outro, entende? Aborrecer, deixar o outro nervoso. Eles eram muito unidos. Eu fui criada assim, até 12 anos, numa união muito grande. Foi muito bom. Eu fui muito feliz nessa época, até mamãe morrer. Mamãe era uma pessoa que costurava muito e trazia as filhas com muito luxo! Com muito luxo! A gente tinha muita roupa boa, que era tudo feita por ela, de seda! Roupas caríssimas, tudo feito por mamãe.
P/1 – E de onde vinha o tecido pra ela costurar?
R – Ah, comprava em Natal, na capital. Ela ia fazer compra em Natal, na capital, que não é tão longe de Serrinha e nem de Nova Cruz, onde nós morávamos. Papai trabalhava em Nova Cruz, nosso sítio era em Serrinha, e nós morávamos um pouco em Nova Cruz e, nas férias, vínhamos pra Serrinha. E, como papai passava ali em frente ao nosso sítio, porque Nova Cruz, Santo Antônio e Serrinha, era cidade maior. Nova Cruz já era grande naquela... Hoje é imensa! Mas, naquele tempo, Nova Cruz já era grande, onde papai trabalhava na firma de João Câmara. Ele carregava o caminhão com os fardos de algodão já tirado o caroço. Trabalhava e já levava pra Nova Cruz. Ele levava de Nova Cruz pra Natal. Todo dia, ele fazia essa viagem. Saía cedo e passava em Serrinha, que era onde nós tínhamos nosso sítio, e da terra que era da mamãe, e de lá já ia pra Nova Cruz. Isso que tornava muito fácil, porque toda hora que mamãe queria vir pra Serrinha podia vir, nós morávamos em Nova Cruz! Nós morávamos em casas muito boas em Nova Cruz. Ele tinha uma situação boa porque trabalhava bem, tinha um caminhão, e, naquela época, quem tinha um caminhão trabalhava muito bem! Trabalhava em João Câmara, trabalhou anos e anos na firma João Câmara. E, então, eles viveram bem. E ela fazia as compras de roupa nossa. Até às vezes ela levava a gente, e ela comprava muita boneca pra gente. E chegou a um ponto que eu era pequena e não queria mais estudar! Tinha um quarto só pros nossos brinquedos na nossa casa. Tinha cadeirinha, tinha tudo que podia ser feito naquela época em madeira, a gente tinha em brinquedos, né? E boneca juntava muito. O que nós queríamos ela comprava, era uma mãe maravilhosa! Eu acho que não existe... Tem mãe assim, porque eu fui uma mãe assim, porque eu aprendi com ela. Mas, para aquela época, era uma mãe muito avançada, era uma pessoa muito instruída para aquela época. Tanto que eu mostrei pra vocês, e ele fez a casa pra mestra dos filhos dele! Trouxe a mestra de Santo Antônio, e ela veio morar ali pra educar os filhos dele, do meu avô. Então, eles eram assim. E minha mãe era uma pessoa excelente, muito educada, muito fina, muito luxo ela tinha. Papai entrou na dela, porque papai também começou a trabalhar e ganhar o dinheiro pra sustentar a família. Papai ganhava bem naquela época. Pra época, né? Papai ganhava bem, melhorou a vida do papai. E então ela era assim, cuidava da gente com muito amor, ela cuidava da minha avó com muito carinho, da minha avó por parte de pai! E foi isso, foi uma vida...
P/1 – A senhora se lembra de alguma dessas viagens que foram feitas pra comprar brinquedo, tecido?
R – Nossa, lembro! Lembro muito! Eu me lembro até de uma malcriação que eu fiz. Nós fomos pra Natal – nós íamos muito pra Natal, porque, como papai tinha o caminhão, a gente ia, como chamava, na boleia do caminhão. Chamava boleia de caminhão naquele tempo. E a gente ia toda hora que mamãe queria ou ela ia sozinha fazer compra. E eu me lembro de uma vez que eu fui, eu era pequena, eu deveria ter, pelo jeito que eu me lembro, eu era pequena. Mamãe me comprou uma cadeira de balanço de vime, lá usa muito vime, até hoje. Não sei se vocês conhecem vime, o que é vime. É um cipó que faz cadeiras bonitas! Até hoje no Rio Grande do Norte se usa cadeiras de vime, faz cadeira de balanço, faz sofá, faz tudo. E na casa de mamãe não tinha vime, tinham umas cadeiras muito bonitas, que tinham sofá, tinha cadeira de braço, dos dois lados. E tinham seis cadeiras, três cadeiras de cada lado, que eram umas cadeiras feitas de palhinha. Eu tenho até a minha cadeira de balanço. É exatamente o que tinha na mamãe! Minha cadeira já faz muitos anos que eu tenho. Mas eu tenho uma cadeira de balanço que é exatamente como eram as cadeiras da casa de mamãe. Era uma casa muito cuidada, muito bem arrumada. Todos dormíamos em cama, não dormíamos em rede. Rede era uma coisa pra divertir-se, colocar no alpendre, que tinha uma área que chamava alpendre, e a gente punha rede, fazia as festas de fim de ano. E, como eu estava falando, eu me lembrei de uma dessas viagens, eu era pequena, e minha mãe lá comprou uma cadeira de balanço de vime, cadeirinha assim, pequena, de balanço. Eu devia ter uns cinco anos. Comprou uma boneca também, eu vinha com aquela boneca. Mas, quando papai ia, ele ia carregado. Quando ele vinha, ele vinha vazio. Então, eu não queria ir na boleia, eu de todo jeito queria ir lá em cima. E mamãe tinha cuidado e dizia: “Mas não pode você ir sozinha lá em cima, porque você vai se machucar”. Tinha um ajudante, que carregava os fardos pra papai, e então mamãe falou: “Não, você não pode ir lá em cima porque lá em cima você pode cair dessa cadeira”. Mas eu queria de todo jeito ir lá em cima, pra ir sentada na cadeira. E com essa boneca eu fui. E tanto pedi que uma hora papai falou: “Deixa ela ir! Fulano toma conta” – nem me lembro o nome do menino – “ele olha pra ela”. E eu consegui fazer essa vontade minha de ir lá em cima, de Natal até Nova Cruz, sentada nessa cadeira com essa boneca no braço. Eu era meio teimosinha, sabe?
P/1 – (risos)
R – Mas era assim, porque a gente tinha uma mãe que fazia de tudo, né? Cuidava da gente com muito carinho! Também eu lembro que, quando eu morava em Nova Cruz, eles tinham as festas. Eu era pequena, mas nós morávamos assim, tinha muita amizade com gente importante. Uma das mulheres muito importantes de Nova Cruz era Laura Arruda, o nome dela, Laura Arruda, uma mulher muito importante, que também era da nossa família. E mamãe, ela era comadre de mamãe. E a gente morava em Nova Cruz, e tinha muita festa da prefeitura, e mamãe era uma das convidadas, papai era convidado pra ir pra essas festas do estado, da cidade, que eram feitas na prefeitura. E eu lembro que eu ia muito nessas festas, que as mães levavam os filhos pra essas festas da prefeitura. Ali tinha baile, ali eles dançavam, ali eles tinham mesas de comida boa de tudo, que eu não lembro o que era, mas sabia que comia, eu sei que comia, né? E eram umas festas muito bonitas, muito gostosas naqueles tempos da mamãe. Eu tive uma vida... Essa foi a época boa da minha vida, até 12 anos. Com 12 anos, mamãe faleceu, com 36 anos. Ela teve minha irmã mais nova, que ficou com seis anos. E, depois que ela ganhou a minha irmã, ela não teve mais saúde. Ela já devia não ter, mas o que eu me lembro bem é que ela não teve saúde depois que ganhou essa última filha. E foi a Antônia Teresa, que ficou com seis meses. Daí pra frente, mudou a nossa vida. Nós ainda ficamos um tempo em Serrinha, mas aí já a gente não morava mais em Nova Cruz. Papai continuava trabalhando e papai nos trouxe pra Serrinha, ficamos na casa do sítio. Dali, papai... Ela morreu, e me lembro que papai ficou muito triste, foi uma época meio triste, mas passou logo pra ele. Quando ele começou a trabalhar, ele teve uma viagem, que fazia quatro meses que mamãe tinha morrido. E papai teve uma viagem pra buscar algodão no sertão! Era meio longinho, era sertão, mas era meio longe do nosso lugar. Papai ia, ficava dois dias e voltava. E lá, papai, com quatro meses de viúvo, achou essa moça que ele disse que parou no caminho, perto de São Tomé, que era o lugar que ele ia buscar – ainda hoje existe, é cidade grande agora, naquele tempo era cidade pequena. Ele ia chegando em São Tomé, antes ele parou o carro, e chamava Pedra do Navio, que tem até hoje, parece um navio. Então, aquele lugarzinho se chamava Pedra do Navio, antes de São Tomé. Papai parou ali, pediu, tinham essas moças na janela. E papai foi lá e pediu água. Ele estava dirigindo, desceu do carro, foi lá e pediu água. E conheceu a minha madrasta, fazia quatro meses que minha mãe tinha morrido. Vou tomar um pouquinho d’água!
P/1 – Claro, claro!
R – Foi quando papai teve essa viagem, primeira viagem que ele fez depois que mamãe morreu. Ele fez essa viagem pra São Tomé e, antes de São Tomé, ele estava com sede, de certo. E viu que essas moças estavam na janela, e ele parou o carro, o caminhão, que era justamente esse caminhão que eu mostrei pra vocês. Parou o caminhão e foi lá, pediu água e conheceu a Teresa, a minha madrasta. Ele foi, voltou, e ele foi outras vezes, já por causa dela também. E eles lá namoraram, e ele se casou rápido! Rapidamente. Ele tinha, parece, que cinco ou seis meses que mamãe morreu e já ele estava com ela.
P/1 – E como foi pra senhora e pras suas irmãs?
R – Nossa, toda felicidade parou ali! Toda felicidade. Porque nós éramos muito felizes! Nós tínhamos tudo o que nós queríamos quando criança, nós tínhamos uma vida muito boa! E, quando papai casou com Teresa, aí a coisa mudou. Primeiro porque ela teve que vir pra nossa casa. Aí, ela já veio pra Serrinha, nós não moramos mais em Nova Cruz, era cidade que papai vivia. A gente morava sempre em Serrinha, papai continuava trabalhando, e a minha avó tomava conta da gente até que Teresa chegou. E a Teresa não é que ela era má pessoa, mas ela não aceitou ficar no nosso reduto, no nosso lugar. Ela logo começou a dizer pra papai... Teve o primeiro filho, e ela ficava indo e voltando com papai no caminhão, e ela teve o primeiro filho, Chico. É Francisco, mas a gente chama ele de Chico até hoje (risos). Por isso que eu até me reservo muito em falar da minha madrasta porque eu não quero prejudicar, ter alguns problemas com meus irmãos, que eu gosto muito dos meus irmãos, que eram filhos da minha madrasta. São três. Então, quase eu não comento muito da nossa situação com eles. Eles eram pequenos quando eu me casei, então, ficou nisso. Mas foi aí que começou nossa vida diferente! Nós estranhamos muito porque ela já veio pra nossa casa, lógico, se apossou da casa, né? Tinha minha avó que, desde que mamãe casou que morava com a gente, tomava conta da casa. Já minha avó ficou pra trás, né? Ela já não dava direito à minha avó para comandar a casa. Isso, calcule pra criança, né?
P/1 – Sim!
R – Minha irmã, na época, tinha 16 anos pra 17. Eu tinha 12 quando mamãe morreu. E tinham as outras, Judite, não me lembro quanto tinha, mas era menor que eu. E tinha Berenice, e a novinha, que tinha 6 meses quando mamãe morreu.
P/1 – A senhora se lembra do dia que seu pai chegou em casa e falou que ia casar com outra mulher?
R – Eu vou primeiro falar do dia da morte da minha mãe.
P/1 – Por favor.
R – Quando minha mãe morreu, ela morreu em Nova Cruz, porque ela tinha dois médicos que cuidavam dela. Naquele tempo, era muito difícil pra ter médico, precisava ser pessoa mesmo de posse, porque... Mas ela foi, os partos dela eram assistidos por médicos. E Doutor Otacílio era médico parteiro dela, e Doutor Ramos era o médico do coração, porque começou a sofrer do coração, acho que por tantos filhos, né?
P/1 – (risos)
R – Nós que fizemos ela ficar doente, porque foram 15 partos! Ela, com 37 anos, teve 15 partos! Não tenho nem ideia de quanto ela ficou casada, né? Mas eu sei que era muito filho e isso foi deixando... Ela era uma mulher alta, bonita, cabelos longos, fazia trança. Era muito vaidosa minha mãe! E eu sei que esse momento me deixa meio tensa, vocês desculpam.
P/1 – Fica tranquila, se a senhora quiser, pode tomar água, tem lencinho!
R – Não, eu tô bem. Mas essa lembrança é muito dolorosa pra mim. Quando mamãe morreu, ela morreu em Nova Cruz, porque ela estava se tratando no médico e tinha que ficar ali. E nós morávamos lá mesmo, só tinha o sítio que a gente vinha passar o tempo, férias, essas coisas. Aí mamãe morreu, mas ela pediu pra papai, quando papai saiu, no dia que ela morreu. Foi uma morte muito diferente de todas que eu já vi. Ela gostava muito de rede. Estávamos eu, minha avó, minhas irmãs, tudo em volta dela, e ela pegou e já estava doente, mas conversava bem, ela se comunicava muito bem. Papai estava trabalhando, já iam dar seis horas da tarde. Papai não tinha chegado ainda do trabalho, e mamãe falou pra minha avó. Ela, deitada na rede, meia sentada, falou pra minha avó: “Dona Lulu” – ela chamava ela de Dona Lulu – “Dona Lulu, me traz uma camisola?”, ela estava de combinação. Combinação se usava muito naquela época! Você não sabe o que é, né? Mas se usava. Era uma roupa, um forro de roupa que se usava antes de vestir o vestido. De alcinha, pra cobrir tudo, né? Hoje se usa saiote, aquilo era combinação, era de alcinha, e se vestia aquilo antes do vestido. E ela estava com aquela combinação, na rede. E ela disse: “Dona Lulu, venha aqui”. E a gente vivia sempre em volta dela, né? Todos os filhos em volta dela. Aí ela falou pra minha avó: “Dona Lulu, me dá uma camisola, eu não quero morrer de alça, eu vou morrer agora”. Foi isso que estou te falando, isso marcou muito pra todos nós. Aí ela falou: “Dona Lulu...”. E minha avó: “Não, Abília, você está melhor! E você está pedindo uma camisola dizendo que vai morrer”. “É, Dona Lulu, eu quero trocar a roupa.” Ela, conversando assim, e a gente tudo em volta da rede. Aí minha avó perguntou: “Quer ir pra cama?”. “Não, eu quero ficar aqui.” Aí, ela tirou, minha avó ajudou a tirar a roupa, vestir a camisola e ela falou: “Seu Luiz não chegou ainda, vão dar seis horas, né, Dona Lulu?”. Ela, conversando com minha avó, e a gente escutando, eu já era grandinha, tinha 12 anos, eu lembro tudo como se fosse hoje! E as minhas irmãs tudo em volta. Minha irmã que era mais velha também estava, tinha 16 anos. Aí ela falou... Minha avó insistia que não, que ela não ia morrer, que ela estava muito bem. E ela dizia: “Não, eu vou morrer Dona Lulu, estou esperando só o Seu Luiz chegar”. Porque ela estava doente, mas conversava, participava da conversa e tudo. Aí minha avó não queria, mas deu a camisola pra ela. Ali mesmo ela ajudou ela a vestir, dentro da rede. Eles tinham muita prática de ficar dentro de rede, se usava muito a rede! Tinha cama, tinha tudo, mas o lugar do descanso era a rede. Aí, ali mesmo, ela ficou, e eu me lembro que ela deitou um pouco na rede, já vestida com a camisola e dizia: “Dona Lulu, eu queria Seu Luiz”. Interessante que mamãe chamava papai de Seu Luiz. Papai não, chamava ela de Abília, mas minha mãe chamava ele, desde que casou, de Seu Luiz. E ela dizia: “Dona Lulu, eu só sinto eu morrer e não ver o Seu Luiz”. Aí, minha avó ficou muito agitada, não sabia o que fazer numa situação dessa, e a gente também já chorando, né? E o certo é que mamãe morreu, e papai chegou. Foi assim. Mamãe morreu, e papai chegou. Quando papai chegou, Lulu falou: “Abília acabou de morrer”, mas ela ainda estava naquela posição, com as mãos assim, naquela posição. E papai já desesperou, eles eram muito unidos, ficou muito desesperado. Já chegou, abraçou ela, lembro muito bem, como hoje, abraçou ela na rede, chorou muito. E ela tinha pedido, ela sempre morou ali em Nova Cruz, mas ela falou: “Quero me enterrar em Serrinha”, não era bem Serrinha, em Santo Antônio, porque Serrinha era tão pequeno que quem morria em Serrinha ia se enterrar em Santo Antônio. E era assim, acho que eles chamavam três léguas, não sei nem quanto era isso, mas eles diziam que eram três léguas de Serrinha pra Santo Antônio, quer dizer, era muito perto. Que hoje é quilômetro, mas eles não usavam o nome quilômetro. Usavam légua. Aí, papai pôs ela em cima do colchão, pôs ela em cima do caminhão, com alguém ajudando, que não me lembro, e pôs ela em cima do caminhão, ela deitada no colchão, já morta. E ele levou ela pra Serrinha. E aí chegou na nossa casa do sítio, que aquela casa ela amava muito, né? Tinha sido herança do avô, já tinha morrido a avó, já tinha morrido todo mundo. E dali fizeram o velório dela, eu me lembro muito disso. E dali fizeram o caixão – faziam os caixões em casa mesmo, não se comprava caixão, eles construíam os caixões. Então, ali já cuidaram de construir aquele caixão, já tinha tudo certo. As pessoas que construíam já construíram o caixão dela. Já pôs ela dentro. E ela foi em cima do carro do meu pai, e o pessoal tudo a pé, outros a cavalo, outros andando. E foi um enterro de muita gente! Eu te falo, foi um enterro de muita gente! Todo mundo ali eu acho que parou pra ir no enterro da minha mãe. Ela era muito querida porque era uma pessoa de família tradicional, mas era uma pessoa muito amável. Ela cuidava dos pobres de Serrinha! Eu me lembro muito de uma moça, uma senhora que ficou doente, era meia louca. Ela ia e dava banho nela. Ela não gostava de ver ela suja e não era parente nosso, mas ela dizia: “Vou na casa” – não me lembro o nome – “vou dar banho hoje nela”. E ela ia e dava banho. Ela tinha comadres pobres, muito pobres. As nossas festas eram tudo festa de gente pobre, não tinha gente rica nas nossas festas em Serrinha. Ali do lugar onde tinha nossa família. Tinham meus tios, tinham as comadres. E ali nós fazíamos aquelas fogueiras enormes, ficávamos até amanhecer o dia naquelas fogueiras. Na nossa casa, tinha o alpendre, e ali vinham todas as comadres. E não era gente de posse, era tudo gente pobre daquela época, mas que vivia a vida. Era normal ser pobre! (risos) Era bem normal ser pobre. Então, era assim.
P/1 – E a senhora e suas irmãs eram muito novas, né?
R – Novas! Minha irmã mais velha tinha 16 anos quando ela morreu.
P/1 – E vocês participaram do velório, do enterro?
R – Tudo! Todos nós. Não me lembro da pequena, dos pequenos, mas eu, minha irmã e Judite nós fomos a esse velório. Eu me lembro que entrei no carro de papai com ela em cima, papai dirigindo o carro, e nós na boleia, como ele falava, na boleia do carro. Minha avó também foi na boleia do carro pra esse enterro. Eu já era grande, eu sei tudo porque eu já tinha 12 anos. E eu não escondia, não escondo, eu conto. Por isso, as meninas gostam de falar das minhas histórias, porque o meu passado eu conto muito do meu passado, eu falo muito do meu passado porque foi um tempo de muita felicidade e um tempo de muita tristeza. Porque depois da morte da minha mãe começou o nosso martírio.
P/1 – E como foram os quatro meses seguintes?
R – Nos quatro meses foi normal, depois que minha mãe morreu. Só mudou depois que minha madrasta chegou.
P/1 – E a senhora lembra quando seu pai contou que...
R – Lembro, lembro. Quando ele chegou, tinha quatro meses que minha mãe morreu, foi a primeira viagem que ele fez. Quando ele chegou, ele falou pra minha avó. Não falou pra gente, falou pra minha avó, chamava de “minha mãe”: “Minha mãe, eu conheci uma moça nessas duas viagens que fiz pra lá e vou me casar com ela”. A gente não esperava que papai se casasse tão cedo, né? Porque eles eram muito felizes. Mas eu acho que por causa de tanta felicidade é que ele queria construir a felicidade dele, eu não condeno meu pai por isso. Porque eles foram tão felizes que ele achou... E foi feliz com ela até certo ponto, nós é que não fomos felizes. Mas ele foi feliz com essa segunda mulher. Mas aí ela não foi uma madrasta, ela foi cruel! Isso, essas coisas eu nem conto, nem converso com meus irmãos, porque não quero ofender meus irmãos, porque a mãe é deles. Se eu disser alguma coisa com ela, eles vão sentir.
P/1 – Claro!
R – Mas todos nós sabemos disso. Minha avó morreu, a vida da minha avó mudou, porque minha avó já ficou para o lado. E minha avó tinha 70 anos naquele tempo, uma pessoa com 70 anos naquele tempo já era velha! Hoje eu tenho 85 e ainda passeio, vou para os Estados Unidos, vou para... Já visitei outros países! Mas naquele tempo uma pessoa com 70 anos já era velha, já era idosa mesmo. Hoje eu tenho 85, vou passear, eu vou pra festa, faço festa em casa! Mas aí ele chegou e contou pra minha avó, e minha avó ficou pensando como ia falar pra gente. E a minha irmã tinha 16 anos, eu tinha 12, e os outros eram pequenos, e tinha uma de seis meses, que foi dessa menina que estava com seis meses que ela ficou doente. E então minha avó ficou uns dias sem falar pra gente, conversou com ele que ia contar. E, como eu era grande e minha irmã também já era moça, ela chegou pra nós duas e contou. Para as pequenas, ela não conversou. Ela chamou a gente num canto, no quarto, até me lembro, que ela chamou a gente no quarto e falou que papai ia casar. Assim! Papai casou rápido. Quando ele disse: “É essa!”, foi aquela. Ele não teve outra namorada. E tinha uma coisa interessante nisso aí, porque mamãe, quando ficou doente, falou pra papai. E mamãe tinha uma amiga que vivia sempre com a gente, eu lembrei muito tempo o nome dela e depois eu esqueci, porque também é muita coisa na vida, né? E mamãe tinha essa amiga e, quando ela ficou doente, falou pra papai: “Se você casar, case com a minha amiga”. E era isso que a gente queria, pôs isso na cabeça da gente, né? Mamãe falava pra papai: “Eu vou morrer, eu estou doente e vou morrer e eu quero que você case com a fulana, com a minha amiga, porque ela vai cuidar dos meus filhos bem”. Mas não foi isso que aconteceu e nós até esperávamos isso (risos), coisa de criança. Mas como a gente ouviu aquela conversa que era a amiga dela que ia cuidar da gente, era isso que a gente pensava. Com o tempo, ela vinha, casava com o papai, e ela ia cuidar da gente, mas nada disso aconteceu e isso já estava na nossa cabeça! E aí apareceu a Teresa. A Teresa veio pra nossa casa, não casou, veio junto com papai, já foi morar junto com papai. Meu pai era maravilhoso! Meu pai era uma pessoa que nunca... Para falar a verdade, eu fui a única que recebi uma cintada de papai, a única. Porque eu era muito teimosa, era muito espiritada! Então, papai nunca encostou a mão num filho, fora essa cintada que ele deu em mim, porque eu precisei (risos)! E, então, ele era amável com os filhos, cuidava bem dos filhos e tudo. Chegou a Teresa, ela tinha até ciúme da gente, ela já não achou que ele devia ter... Ele foi mudando! Ele foi mudando, e a gente foi ficando mais para o canto, né? Foi ficando mais para o canto, ela foi sendo a dona, foi sendo a principal, e devia ser mesmo pra ele, né? E minha avó também já ficou sem poder mandar em mais nada, e começou esse martírio. Eu e minha irmã mais velha já não conseguíamos fazer uma boa amizade com ela. Convivíamos, mas não tínhamos boa amizade, também como ela não tinha com a gente. Ela me tratava mal, tratava mal a minha irmã. E papai viajava. Todo dia, papai trabalhava, continuou a trabalhar, e aí ficávamos só eu, minha avó. E depois a minha avó não aguentou ela mais, a minha avó já foi pra casa da minha tia, porque aí já não tinha mais mamãe, né? Já minha avó falou não. Minha irmã mais velha foi pra casa do meu tio, morar em Natal, aí já ficamos eu, minha avó e meus irmãos. Minha irmã já sabia costurar, porque minha mãe ensinou ela a costurar e ela já costurava toda roupa muito bem, dela. E ela já foi trabalhar num ateliê de costura na capital, que também não era longe. Tinha a casa de tio Pedro lá, ela foi. E eu fiquei com minha avó e as outras meninas e minha madrasta e meu pai. Aí também já as coisas, já ficamos... Nós já não éramos mais daquela casa! Nós já éramos de um lado, ela que era a madame da casa, ela que mandava na casa. Ela já não gostava muito da gente, e a gente, por não pensar nisso, a gente também não gostava dela. Era assim: ela não gostava da gente e a gente não gostava dela. Não vou dizer que era só ela, mas a gente não aceitou a chegada dela tão cedo na nossa casa. Foi isso.
P/1 – Sim, sim...
R – E as pequenas não sabiam de nada, mas minha irmã e eu já éramos grandes, e minha avó. Minha avó já foi pra casa da minha tia. Minha avó ainda ficou um bom tempo depois que minha irmã foi embora, minha irmã foi pra casa do meu tio. Aí ali também eu já comecei a fazer minhas coisas, logo no início, porque eu via minha mãe costurar muito. E minha mãe morreu em maio e dali a pouco já ia chegar o Natal, fim do ano, a gente teve sempre muita coisa boa, né? E eu falei pra minha avó, papai já estava casado, eu falei pra minha avó: “Eu vou fazer um vestido pra mim”. Já tinha feito um, mas não deu certo. Aí, eu teimei: “Vou fazer um vestido para o Natal!”. Minha avó: “Eu te ajudo!”, mas minha avó não sabia costurar. Mas tinha máquina da minha mãe, e a gente estava sempre mexendo. Eu sabia costurar, mexia na máquina, costurava e tudo! Ela deixava a gente se envolver com aquelas coisas dela, tanto que minha irmã, com 16 anos, já costurava bem. E eu falei: “Vou costurar meu vestido para o Natal”. Então, nós sempre tínhamos muito corte de tecido, mamãe sempre tinha muito corte de tecido reservado em casa. Aí eu falei: “Vou escolher um corte aqui de vestido”. Eu cismei, usava muita roupa de duas cores, sabe? Eu falei: “Vou escolher essa seda vermelha com essa seda branca”, e eu escolhi fazer aquele primeiro vestido que eu fiz. Então, minha avó falou: “Eu te ajudo”. Pus na mesa, fui cortando por outro, por outro vestido, não sabia fazer como mamãe fazia, mas eu sei que, cortando, eu fiz o vestido. Ficou bom, até bonitinho, franzidinho na frente, daquele franzidinho saía o babadinho aqui. E, naquele tempo, como eu era criança, queria um lacinho do lado, dos lados. Saiu lacinho daqui, lacinho de trás, e eu fazia os dois lacinhos de lado. Mas foi muito interessante: quando eu vesti esse vestido, que eu me arrumei toda, minha avó viu que estava meio torto, um lado estava torto. Eu não sabia costurar, né? Acho que fiz alguma coisa errada. Então, minha avó falou: “Ih, tem alguma coisa errada, seu vestido está torto, esse lado está mais alto e esse mais baixo”. E a minha avó: “O que nós vamos fazer?”. “Ah, vou desmanchar.” E ela: “Não, está todo prontinho, não desmancha!”. Hoje eu acho interessante, mas no tempo eu aceitei, eu chamava ela de Lulu: “O que vou fazer, Lulu? Vou desmanchar tudo isso que está pronto?”. Ela falou: “Não, filha, está assim, tem os dois lacinhos, você levanta um pouquinho desse lado” (risos). E assim eu vesti o vestido com esse pouquinho desse lado levantado pra ficar igual a esse. Foi o primeiro vestido que eu fiz, foi no ano que mamãe morreu. Mamãe morreu em maio, e eu fiz esse vestido para o Natal, porque a gente era acostumada a ter festa, a ter tudo, roupas novas! Preparava para o Natal, para as festas da cidade, Nova Cruz, que ia ser tudo na prefeitura. E tinha festa do fim do ano, festa do fim do ano era na prefeitura, e festa de Natal se fazia em casa. Eu já tinha esse costume de roupa nova e eu queria um vestido. Então, eu fui fazer e fui para o Natal com ele. Aí já o Natal não era aquele também, né? Já tinha minha madrasta, já não existiu, nem lembro de festa mais, eu não lembro de festa que teve em casa. Dali pra frente já não teve mais aquilo que tinha, entende?
P/1 – Sim. E eu queria voltar um pouco, Dona Antônia, para a história que a senhora contou do seu pai, que estava com um terno branco e ele se sujou! Que ele não quis contar pra sua mãe porque sua mãe estava de dieta.
R – Estava de dieta.
P/1 – O que é essa dieta?
R – Dieta era o parto, que ela tinha tido um filho e ela estava poucos dias que tinha tido o filho. E ele não queria contrariar ela, porque ela estava de dieta. Então, diziam que a mulher ficava de dieta quando tinha um filho. E ali guardava 30 dias de dieta, não se fazia esforço, não se fazia muita coisa. E, como teve isso, papai entrou por trás da nossa casa, e mamãe estava no quarto. Pra mamãe não ver, pediu a roupa e ele foi lá escondido e se trocou.
P/1 – Mas essa dieta tinha alguma restrição do que não podia fazer?
R – Ah, tinha!
P/1 – O que tinha que fazer nesse tempo de dieta?
R – O tempo, quando ganhava filho... Hoje, as pessoas não têm mais isso, mas ficavam 30 dias. Não sei, acho que nem ficavam juntos os dois. Não sei, era tão pequena, não lembro. Mas era uma restrição imensa e não se conversava nada! Nada, absolutamente nada do que se passava entre o casal. Não se conversava. Eu me casei com 16 anos, eu não sabia o que ia acontecer comigo. Nunca mamãe falou. Nada, nada, nada se fazia, se falava sobre o casal, sobre filho, sobre como era o parto! Tudo era muito restrito pra gente. Pelo menos para mim e para as outras que eram pequenas. A minha irmã eu não sei se sabia alguma coisa, mas eu não sabia de nada o que acontecia entre um casal. Eu, com 12 anos, não sabia de nada. Sabia que eram meu pai e minha mãe. Dormiam naquele quarto porque eram meu pai e minha mãe e tal. Porque tinha o quarto do meu pai e da minha mãe, tinha o quarto da minha avó e tinham dois quartos que eram meu e das minhas irmãs. Quarto da minha mãe, quarto da minha avó e dois quartos sobravam, que eram quatro quartos, sobravam para o meu pai e minha mãe. Quando a gente morava em Nova Cruz, eram umas casas muito grandes, e também papai só alugava casa assim. Lá em Nova Cruz a casa era alugada, e a nossa casa do sítio nós tínhamos, porque, quando era tempo de férias, nós vínhamos ficar no nosso... Ali era o reduto dos Arrudas! O lugar dos Arrudas ali. Ali mamãe tinha muito prazer em ficar. E era assim.
P/1 – Quando seus pais se casaram onde eles foram morar?
R – Nessa casa.
P/1 – Que casa é essa?
R – Nessa casa grande. Chamava até “casa grande”. Na casa de mamãe, em Serrinha. Eles se conheceram em Serrinha, papai ainda não trabalhava no João Câmara. E depois papai casou e ficou um bom tempo trabalhando... Como papai fazia? Papai ganhava dinheiro com essa Baratinha. Ele levava pessoas da cidade, de Serrinha pra Santo Antônio, e ali ele ganhava o dinheiro. As pessoas pagavam pra passear naquela Baratinha, porque não tinha outra Baratinha na cidade, era só a do papai, não existia. E não existia quase, só alguns caminhões que passavam, papai nesse tempo não tinha carro ainda. Ele vivia daquela Baratinha, por isso que ele era pobre. Não dava pra ter uma vida muito como a da minha mãe! Então, ele tinha responsabilidade da minha avó, ele cuidava da minha avó, que os outros já estavam casados, e ele vivia com isso. Ele levava as pessoas pra passear de uma ponta da rua à outra, só pra experimentar o carro. Ele vivia disso. Levava pessoas de Serrinha a Santo Antônio, de Serrinha a Nova Cruz, de Serrinha a Natal. Era isso que ele fazia com esse carrinho, com essa Baratinha. Porque, às vezes, existe ainda muito velho, mas, quando eu vi, eu fui a uma exposição de carro antigo nos Estados Unidos e eu vi a Baratinha. E eu cheguei: “Essa é a Baratinha de papai!”. Estados Unidos! Coisa de carros muito antigos, muito antigos, muito antigos mesmo. E ali eu vi papai, isso há uns 15 anos que eu fui nessa exposição lá nos Estados Unidos, em Washington, de carro antigo. A minha prima morava lá e falou: “Vai ter uma exposição de carros antigos. Vocês querem ir?”. Em Washington. Aí nós fomos e, quando chegamos lá, eu falei: “Pronto, essa era a Baratinha de papai”. Eu vi exatamente ali. Eu já era casada, já tinha filhos grandes. Mas eu vivi, porque aquilo nunca saiu da cabeça da gente.
P/1 – Que cor que era?
R – A Baratinha? Preta, preta, a Baratinha preta.
P/1 – Ele tinha algum cuidado com a Baratinha?
R – Muito! Muito! Era uma joia preciosa! Uma pessoa que tinha aquilo lá era joia preciosa. Porque não era todo mundo que tinha, nem fazendeiro tinha. Fazendeiro tinha mais uma caminhonete de qualquer jeito, um caminhão de qualquer jeito. E aquilo era um carro de passeio, um carro de luxo de passeio da época. E era a única coisa que ele tinha era aquele... Ele trabalhou até conseguir esse carro de passeio, pra ele trabalhar nele! E ele fazia isso. O povo pegava, me lembro, e papai falava: “Vou levar fulano pra passear no meu carro hoje”. Levava pra passear! Pagavam pra passear, pra ter o prazer de passear na Baratinha, nesse carro.
P/1 – Teve algum passeio que vocês fizeram em família?
R – Ah, fazia muito!
P/1 – E teve algum que você gostou bastante?
R – Olha, eu não lembro exatamente. Eu me lembro de que nós passeávamos muito, porque nós íamos a Santo Antônio no dia da feira, fazer compra, fazer feira, porque em Serrinha não tinha feira. Então, nós tínhamos que ir de Serrinha a Santo Antônio, e papai levava. Aliás, nessa Baratinha eu quase não andei, porque eu via muita foto. Eu quase não andei porque já era o caminhão. A minha irmã que andou muito, a minha irmã mais velha andou muito nessa Baratinha. Agora, depois, quando eu nasci, eu só vi as fotos. Quando eu nasci, já não tinha mais Baratinha em casa, tinha já um caminhão, que era justamente esse caminhão que era da minha época. Mas a minha mãe contava que iam muito comprar e também continuou com caminhão. Com caminhão, nós íamos muito a Santo Antônio fazer compra, de feira e tudo, porque papai comprava para o mês, coisa assim, mas era coisa mais de luxo, mais de roupa ou algum móvel ou alguma coisa, né? Quando ela queria comprar roupa e ia lá, ou comprava em Nova Cruz ou em Santo Antônio.
P/1 – E a senhora estava contando pra gente da história da casa em que vocês moravam. Como essa casa foi construída?
R – A casa grande?
P/1 – A casa grande.
R – A casa grande eu não sei, porque, quando eu nasci, eu já nasci nela. Eu só sei que essa casa grande foi construída... Meu avô casou com a minha avó, pai da minha mãe, ele tinha filhos que já estavam estudados, de outro casamento. Esses já tinham aprendido a ler e a estudar, mas, quando ele casou com a minha avó, começou a nascer a segunda família, a ter a segunda família. Primeiro, foi a minha tia Nanana, era Maria, mas chamava de Nanana, e depois foi meu tio Arruda, chamava tio Arruda. Como ele tinha o nome do meu avô, é lógico, né? Ele chamava José Arruda e foi segundo, meu tio Arruda. E, terceiro, foi minha mãe. Ela só teve esses três filhos. Quando chegou a época do estudo, eu não sei bem qual foi a época que eles começaram a estudar, meu vô construiu. Tinha esse terreno, ele tinha muita terra! E tinha essa terra perto da casa da cidade. A cidade... A Serrinha, né? (risos) Povoado da cidade. Então, ele falou: “Daqui, se eu tivesse aqui no meio da cidadezinha, tinha uma rua que ia direto só pra essa casa”. Era nossa casa grande. Ela tinha nome de “casa grande”, por isso que eu chamo. Tinham outras casas grandes, mas aquela eu acho que seria maior, no caso, não sei. Então, minha mãe contava, já era história que eu não sabia! Minha mãe contava, ela sempre falava: “Essa mesa aqui vai ficar pelo resto da vida de sua mãe. Nessa mesa aqui sua mãe e seus irmãos estudaram”. E a gente sabia que meu vô construiu. Falou: “Vou construir a casa pra mestra da segunda família”. E então ele construiu aquela casa pra mestra. Ele contratou uma mestra na cidade de Santo Antônio, com a família dela, com filho, com marido, e trouxe a mestra. E minha mãe morou ali. E ali tinha uma cozinha, tudo era muito grande, não é como hoje que a nossa casa é tudo pequena. Então, a cozinha era muito grande! Ele fez e pôs essa mesa grande com dois bancos, bancos compridos que eles usavam assim, de um lado e de outro. E a mestra tinha um banco assim, uma cadeira grande, que ele mandou fazer. E me lembro de que isso durou muito tempo, até mamãe morrer. A casa está lá até hoje. Então, ele fez essa casa e trouxe essa mestra. E com essa mestra que estudaram o meu tio, minha tia e minha mãe. Estudaram com essa mestra. E minha mãe lia muito bem, meu tio lia muito bem, minha tia lia muito bem, lembro tudo disso, muito disso, porque convivi muito com meu tio, até depois da morte da minha mãe. E eles eram moços bonitos, todos muito brancos. Meu pai, meu tio parecia um galego, tanto que chamavam ele de Galego mesmo, porque era um homem alto, bonito. Meu tio era muito bonito! Minha mãe era muito alta, uma mulher bonita! Minha tia, todos eram muito altos. Não sei por que, mas eles eram muito altos! (risos) Então, veio a mestra e educou eles.
P/1 – E a casa era para essa mestra, e aí a sua mãe e seus avós...
R – Aí foi herança da minha mãe. Cada um ganhou o que tinha que ganhar, e da minha mãe foi essa aí. Minha mãe herdou essa casa, minha mãe tinha muito amor, todos nós! Minha mãe morreu, foi vendida a casa para os meus parentes, e nós ficamos tendo a liberdade de visitar. Eu, até morando em São Paulo, eu ia pra Natal, mas eu ia visitar a minha casa, porque estava na nossa família. Um primo meu comprou a casa, que, quando minha mãe morreu, a minha madrasta exigiu que meu pai fosse morar no sertão, na terra dela. E aí foi o nosso suplício. Porque nós fomos pra terra dela, para o lugar dela, e dali tinha a menina, a minha irmã que estava com seis meses quando minha mãe morreu, já foi pra lá, já ficou lá, já estava com dois anos. Aí, teve uma situação muito triste, que minha avó já não conseguia ficar com a gente! E minha avó falou: “Como é que vou fazer se eu tenho uma menina, uma neta de dois anos, e eu não posso deixar com a Teresa, sozinha com a Teresa? Ela é muito pequena”. Porque minha avó via que ela maltratava a pequena. Ela não gostava de nenhum, mas nós éramos grandes, respondíamos ou não sei como é que era. Mas a criança pequena não. Minha avó pegou ela batendo na menina! Aí, então, minha avó conversou com meu pai: “Como vou fazer? Eu não vou ficar mais com Teresa e eu não posso deixar...”. E a família de papai e de mamãe era muito unida, a gente tinha comunicação com todos, com os primos, com os tios. Todos os meus tios sabiam dessa situação. Minha avó falou: “Luiz, eu vou embora, eu não tenho o que fazer com essa menina. Ou levo, não tenho condições de ficar na casa da minha tia, o que ela precisa...”. Minha irmã caçula tinha dois pra três anos nessa época. Aí, a gente já morava no sertão, na terra dela, onde tinham os parentes só dela. Lá nós não tínhamos ninguém, ninguém da nossa família. Tudo dela, tudo muito esquisito, tudo muito diferente da vida que nós tínhamos aqui. As coisas já cuidavam de acabar. Eu sei que ela ficou com raiva de mim uma vez, eu me lembro muito disso, porque ela sabia que aquela máquina era uma coisa da gente, que aquela máquina era de mamãe. Ela tirava o filho dela mais novo, primeiro filho, tirava a coisinha, a gaveta da máquina, ela amarrava um cordão para o menino fazer um carro, e a gente não gostava porque aquilo era uma coisa de mamãe e a gente discutia com ela. “Não, não pode!” E aí tinha briga. Ela se sentia a dona da casa, fazia aquilo porque podia fazer. E foi assim, foi uma vida muito atribulada, uma situação muito triste. A nossa vida mudou do mel não sei pra quê. Do céu para o inferno, vamos dizer isso. É pesado, mas vamos dizer isso. E chegou essa situação, que nós estávamos no sertão, tinha essa minha irmã com dois pra três anos e minha avó já não aguentava ficar mais ali com a gente, porque não estava dando muito certo com ela. E tinha menina pequena, minha avó pegou ela por algumas vezes dando tapa na menina, e minha avó não gostava disso. E minha avó chamou meu pai e disse: “Luiz, como é que vai fazer? Eu tenho a pequena, tenho a Teresa, que é pequena, e não posso ir embora pra casa da minha filha e deixar a menina. Levar, não posso levar a menina”. Aí, uma prima nossa, que morava em Natal e era muito chegada à minha avó, muito chegada à gente, muito chegada à mamãe, ela tinha uma situação muito boa, era considerada uma pessoa de classe alta. E, sabendo disso, que minha avó tinha muita comunicação com essa sobrinha, falou pra minha avó: “Você me dá ela, Abília? Não deixe com Teresa, me dê ela”. Falou pra minha avó. “Liquinha” – chamava de Liquinha essa minha prima, que era sobrinha da minha avó. Já era casada, tinha um filho moço, e ela falou: “Não tenho ninguém, só tenho meu filho e então você me dá ela. Fale com Luiz, se ele me der, eu cuido da Teresa” – que era minha irmã pequenininha – “e você fique tranquila”. Houve essa conversa, devia ser mais comprida ou tal, porque eu não sei de tudo da conversa entre elas. Nós estamos morando no sertão, e minha avó chegou para o meu pai e falou o que a Liquinha tinha falado. Como a minha avó não tinha como deixar a menina e não tinha como levar a menina, que a Liquinha ia tomar conta dela, ia criar como filha. Aí meu pai falou, todos conheciam muito a Liquinha, né? Tinha muita amizade, papai também. Papai falou: “Faça o que a senhora quiser, minha mãe”. Papai já estava vendo que a situação não estava boa. Papai falou: “Faça o que a senhora achar melhor pra senhora e pra menina”. Aí, foi essa situação: a minha irmã foi morar com a minha prima, e minha avó foi morar com a minha tia. Aí ficamos só. E minha irmã mais velha...
P/1 – Já estava em Natal.
R – Já estava em Natal, já estava até namorando com o moço que casou. Mas esse casamento também teve muita complicação. Então, ficamos eu, Judite e Berenice, e éramos cinco. Até falei que eram seis, estava dormindo quase (risos)! Seis, eu que tive seis! Mas mamãe criou cinco. Aí, ficamos em três, porque minha irmã já estava em Natal na casa do meu tio, já trabalhando, já namorava até com um moço, um taifeiro da base aérea. E Lulu foi pra casa da irmã e ficamos só nós três. Ficamos eu, Judite e Berenice com ela. Aí, a situação piorou mais sem minha avó. Nós ficamos assim. Quando não estava dando certo de jeito nenhum, meu pai pegava minha avó, nos levava pra outra cidade e alugava uma casa. Ela ficava lá, passava um tempo, eu acho que por motivo de viagem de papai, que não podia passar pra ver a gente. Aí, a gente voltava novamente pra papai. Passava outro tempo, e a gente ia morar noutro lugar em Natal, porque ficou uma coisa muito confusa. Uma situação que eu não sei como papai aguentou aquilo. Aguentou porque amava aquela mulher dele. Então, eu não tiro... Naquele tempo eu me revoltava muito e ficou assim. Até que nós fomos morar em Natal pra ela ter o primeiro filho, da minha madrasta, ela teve em Natal. Estávamos só eu e ela nessa casa, e minhas duas irmãs estavam em Lagoa Salgada com minhas outras irmãs. Só estávamos eu, ela e papai nessa casa, e ela ia ter o primeiro filho. Aí papai, ela falou que queria que a irmã dela viesse cuidar dela. A irmã dela veio pra cuidar dela, quando ela ia ter criança, fosse ter o primeiro filho. Aí, ficamos eu, a Nazaré, que era a irmã dela que chegou, papai e ela. Não: eu, Nazaré, papai e ela, ficamos em quatro. Aí veio essa irmã. Papai nunca fez questão de assistir uma confusão nossa, porque tinha muita confusão. Minha irmã era moça – vou voltar para aquele ambiente lá. Nós morávamos em Natal, com ela também, e ela inventava muita saída para ir para os parentes, no sertão. E teve uma vez que estava chegando o Natal, eu já deixei aquele e voltei para uma vez lá... Teve uma vez que ela deixou a gente. Estava chegando o Natal, nós estávamos com nossa avó. Porque ficava assim, ficou uma divisão: uma hora, estávamos juntos e, outra hora, estávamos separados. Aí, nesse lugar em Natal, na Lagoa Salgada, papai estava com todos, só não com a que Liquinha, a irmãzinha pequena já estava com a Liquinha. Ela foi, ela falou... Estava chegando o Natal, e minha irmã continua morando com meu tio. Minha irmã chegou lá em casa e falou: “A Teresa já comprou roupa para o Natal? Está chegando o Natal!”. A gente queria manter aquilo que era com mamãe, mas não podia mais ser aquela vida. Mas a gente não entendia, porque era criança. Minha avó estava com a gente, e ela tinha saído. Minha avó falou: “Não, não comprou. A Teresa falou que não tem dinheiro”. Minha irmã falou assim: “Como que papai trabalha e não tem dinheiro?”. E ela tinha saído, disse que tinha ido pra casa de não sei quem, não me lembro, e ia demorar. Minha irmã falou: “Nós vamos mexer na casa toda e vamos saber onde papai guarda dinheiro”, porque por algumas vezes nós pegamos dinheiro de papai enrolado em roupa suja, no canto do quarto dela. E a gente falava: “Por que a roupa de papai está ali enrolada?”. Era uma pessoa muito sem instrução ela. Ela falava: “Não, eu deixo ali”. E por algumas vezes nós mexemos, porque ficamos cismadas, porque ela guardava umas roupas sujas de papai no quarto, e nós íamos lá, sem ela ver, pegávamos e tinha dinheiro dentro guardado. Ela tinha costume de esconder o dinheiro. Minha irmã chegou nesse dia e falou... Foi um dia em que minha avó ficou muito contrariada. Nós já estávamos maiores. “Mais grandes”, maiores, desculpe o erro!
P/1 – Imagina, Dona Antônia!
R – É que são tantas coisas que vêm na cabeça, que uma hora a gente...
P/1 – Sim, sim!
R – Então, chegou minha irmã e disse se tinha comprado. E minha avó: “Não, não comprou nada”, e estavam se aproximando as festas. E minha irmã: “Nós vamos procurar dinheiro e vamos achar, ela não está aqui, nós vamos achar”. Chegou ao ponto de... Ela deixou a porta fechada, e no Nordeste usa muito casa de meia parede, sabe o que é isso?
P/1 – Meia parede?
R – Não sabe. É porque o Nordeste é muito quente, então, as casas vêm até aqui e o resto é telha! Só cobertas de telha, mas não têm forros. Então, ficam assim as meias paredes, são casas de meia parede. Isso até hoje é assim, a maioria das casas é assim. Então, minha irmã começou. Nós colocamos, tinham tambores que meu pai tinha, porque meu pai trabalhava de caminhão e levava muita coisa. Era uma vida de muito movimento, papai. E tinham uns tambores no quarto. Era uma casa muito grande, tinha o quarto dela, e no quarto vizinho dela tinham uns tambores muito altos, que dava pra gente subir na meia parede e pular pro quarto dela. Aí, minha irmã falou... Foi um dia de muita contrariedade pra minha avó (risos), porque minha irmã falou: “Nós vamos hoje achar dinheiro! Roupa, quando ela chegar, vai ter roupa aqui em casa!”. Aí, minha irmã subiu naquela meia parede, pulou pra dentro do quarto dela, abriu a porta dela, tinha uma chave lá, não sei como foi que abriu a chave, porque ela trancava a porta quando saía, mas minha irmã, não sei como foi, abriu a porta do quarto. Minha irmã mexeu em tudo, não achou dinheiro. Aí, fomos naquele quarto que tinha bastante lata de leite do filho dela, Leite Ninho – já existia Leite Ninho naquele tempo! No canto desse quarto que tinha bagunça, muita coisa de material, tinha uma... As latinhas secas, empilhadas até o teto. Até o teto não, até o fim da parede, porque em cima o teto era separado. Então, minha irmã não tinha mais onde procurar! E falou assim: “Vamos mexer nessas latinhas”, que estava tudo arrumado, uma em cima da outra, deitadinhas, as latas arrumadas, no cantinho da parede, até uma boa altura. Aí, minha avó, vendo a hora de ela chegar e achar toda aquela arrumação, pense como estava minha avó, que tinha até medo dela... Mas minha irmã não tinha, minha irmã que resolvia essas situações, era minha irmã. Quando aparecia lá em casa, era um reboliço (risos). Aí, nós fomos naquelas coisas, achamos três latas – se usava muita moeda naquele tempo, não era como hoje, mas a maioria era moeda, era muita moeda! Na última fileira, estavam todas as latas cheias de dinheiro, nas últimas fileiras. Minha irmã falou: “Agora nós vamos fazer todas as compras”. Pegou aquele dinheiro, e fomos. Até eu fui. Minha avó ficou com as outras duas, e fomos. Isso era em Natal mesmo, na capital, porque nós estávamos morando em Lagoa Seca. Nós fomos para o centro da cidade, que era um bairro, Lagoa Seca, fomos para o centro e lá nós fizemos todas as nossas compras de Natal! Com todo aquele dinheiro! Aquilo rendeu muito, né? Porque a turma usava muita moeda (risos), a minha irmã esbanjou dinheiro. Não perguntou nem o que ia fazer com aquele dinheiro. E minha avó sofreu porque sabia que ia ter uma confusão imensa quando chegasse. Aí, minha irmã comprou tudo! Naquele tempo, a gente usava, as meninas usavam muito organdi suíço, não sei se vocês iam pra lá. Era um tecido que quem tinha dinheiro comprava, organdi suíço! Então, era um pano que armava roupa de criança, ficava tudo armadinho, e um tecido rico, um tecido caro. Quando mamãe comprava... E minha irmã fez a mesma coisa! Não contou história! Vou gastar esse dinheiro!
P/1 – (risos)
R – Comprou pra mim, pras minhas irmãs, tudo organdi suíço. Eu me lembro que o meu era azulzinho, de organdi suíço, depois virou vestido, que ela costurou. E comprou branco, parece, pras minhas irmãs, de organdi suíço. É um tecido fino que, pra roupa de criança, ficava lindo. Ainda existe hoje isso, que é caro, não sei por que não se usa tanto. Sabe organza? Um tecido fininho, transparente, que se usa pra fazer blusa transparente?
P/1 – Hum.
R – Era aquilo, mas era pano, um tecido muito caro, caro para aquela época, né? Só comprava quem tinha dinheiro! Só fazia roupa de criança com aquilo quem tinha dinheiro. E minha irmã: “Ah, vou comprar!”, tudo que minha mãe fazia minha irmã fez! Nessa época, minha irmã já estava com 18 anos, 18 pra 19. Já costurava muito bem, trabalhava no ateliê de costura, fazia tailleur, fazia tudo. Então, quando minha avó falou: “Fale pra ela que eu venho costurar aqui!”, minha irmã, quando chegamos das compras – compramos tudo, sapato, vestido, meias. Tudo que era possível e foi preciso minha irmã comprou, pra mim e pras minhas duas irmãs. Aí, tudo bem, vamos esperar essa moça chegar.
P/1 – Dona Antônia...
R – Acho que eu nunca vi alguém contar que o pai fazia isso, né? Tá demais, vamos separar!
P/1 – Dá um tempo! (risos)
R – Dá um tempo na família!
P/1 – Dona Antônia, a senhora estava contando pra gente que vocês estavam com todas as compras, esperando...
R – Esperando ela chegar! Aí, nós chegamos do centro, e me lembro muito, porque sempre moramos em casas muito grandes, porque era uma família grande. Então, me lembro que tinha sala na frente, tomava toda a casa, depois tinha uma sala de janta enorme. Então, foi ali, na sala de janta, em cima da mesa, a minha irmã abriu todos os pacotes, sapatos e de tecidos, porque não se comprava feito naquele tempo se fazia, né? Já comprou forro para aqueles vestidos, porque era fininho, transparente, tinha que ter forro. Comprou forro, comprou sapato, tudo que a gente precisava pro Natal. Aí, vamos esperar. Minha avó só faltava morrer do coração, ela não morreu porque Deus não quis! Porque as aflições foram muitas (risos)! Ela morreu bem velhinha mesmo. Aí, quando chegou a Teresa, chegou a Teresa, já minha irmã estava na porta, esperando, e ela falou: “O que você está fazendo aqui?”. Ela entrou e viu logo de cara tudo aquilo em cima da mesa. “O que é aquilo?” Minha irmã enfrentava ela, minha irmã falou: “Compras para o Natal!”. “E onde você arranjou dinheiro?” “Nas latas!” Ela falou: “Aquele dinheiro é de seu pai!”. “Por isso que eu peguei! Era do meu pai!” Então, começou uma discussão muito séria, muito séria. Quando isso aconteceu, foi uma coisa... Só que minha irmã não se deixava vencer por ela. Era só quem conseguia enfrentar ela era minha irmã, nem minha avó não enfrentava, era minha irmã. Eu sei que não teve mais jeito, porque já estava comprado, já tinha gasto, o dinheiro era do meu pai! Estava nas latas, foi um monte de lata, não sei nem quantas latas, mas foi! E naquele tempo só se usava mais moeda. Então, depois de muita briga, não tinha mais o que fazer. As compras já estavam feitas, e minha irmã falou: “Eu venho costurar, toda folga minha vai ser pra costurar, eu vou costurar as roupas das minhas irmãs para o Natal”. E eu sei que fez roupas lindas, nós vestimos vestidos bonitos, e nessa casa mesmo. Nisso, não teve mais jeito. Quando papai chegou, ela pensou que papai ia brigar – papai era uma pessoa que não brigava com ninguém na vida! Nem se visse a gente se pegando, ele não se metia! Então, ela disse: “Quando seu pai chegar, eu quero ver o que ele fala”. Esperamos papai chegar do serviço, papai chegou. Ele já trabalhava mais dentro de Natal mesmo, já pra João Câmara, mas dentro de Natal. Papai chegou à noite, minha irmã não foi embora. Chegou à noite e viu toda aquela situação que estava, roupa em cima da mesa ainda, tudo. “O que é isso? O que está acontecendo aqui?” Papai quase não falava porque tinha medo! Não sei, papai não falava, não reagia. Então, minha irmã que era muito... Falou: “Eu vim comprar hoje a roupa das minhas irmãs”. “E onde você arranjou dinheiro?” “Nas latas!” “Mas eu precisava daquele dinheiro!” “Precisava, papai, agora o senhor não precisa mais. Porque está tudo comprado, as roupas das minhas irmãs, e eu venho costurar.” Papai só falou: “Tá bom!”. Aí, a briga foi ela com meu pai, porque meu pai não reagia. Ele tinha isso de bom, ele não era contra a gente e também não era contra a mulher. Ele ficava... omisso! Nem reagia a favor dela e nem a favor da gente, deixava a gente se virar. Era assim, deixava a gente ficar à vontade. Mas era uma situação terrível. O que eu quero chegar, nessa casa mesmo, que nós estávamos, foi assim, papai viajava muito! Era o trabalho dele. Ele ficava três, quatro dias ou mais fora nas viagens, que ele ia para longe, para o sertão, para aqueles lugares todos. E a gente estava morando na capital, nessa casa mesmo. Papai, quando saía, que ela ia junto, que ela sempre ia, quando era sertão, ela sempre ia porque era família dela, né? E ficávamos eu, minha avó e minhas duas irmãs, que minha irmã continuava sempre com meu tio, a outra já estava com a Liquinha. E ficávamos nós três, e papai dava ordem pra um lugar, se ele ia demorar mais, ordem pra uma pessoa que tinha uma venda, chamava venda. Uma venda muito grande, naquele tempo, que era um armazém. Vamos dizer, um armazém de hoje era uma venda. E, então, naquela rua que nós morávamos, tinha um senhor na esquina que tinha uma venda muito grande, muito amigo do meu pai. Papai deixava algum dinheiro, mas dizia pra ela, pra minha avô, pra ele: “O que minha mãe precisar é pra entregar, quando eu chegar eu pago”. Meu pai era assim, uma pessoa muito boa. Nunca deixou a gente passar necessidade. Ela deixava, mas ele não! Aí, papai falava: “O que minha mãe precisar pode entregar, porque eu vou demorar 15 dias ou dez”. Não me lembro, mas, quando ia pra terra dela, e isso acontecia sempre e sempre, minha avó ia lá e comprava tudo que precisava. Era um armazém enorme daquela época, tinha tudo. Quando foi uma vez, então, ela, calada, meu pai deu a ordem e ela foi lá sem a gente saber e sem papai saber. Falou: “Não entregue nada! Eles vão ficar aí e não é pra entregar nada!”. E disse para o moço: “Seu Luiz já deu dinheiro pra ela comprar”. Meu pai deixava algum dinheiro com minha avó pra alguma necessidade, mas a gente comprava no armazém. E papai foi embora tranquilo, minha avó sabendo que podia ir lá comprar o que precisasse. Aí, precisou, minha avó foi lá e falou com o dono, que era conhecido, amigo: “Vim buscar isso, isso, isso e isso”. O dono da venda, que chamava de venda, falou: “Dona Lulu, quero falar com a senhora em particular”. Chamou minha avó de um lado, devia ter gente, não sei, e ele não queria falar. “Olha, Dona Lulu, acontece o seguinte: eu já sei como é que é, quando o Seu Luiz vai viajar, tudo é comprado aqui e eu dou tudo que vocês precisam. Mas só quero avisar pra senhora que o Seu Luiz veio e avisou que era pra dar tudo, falou: ‘Minha mãe vem buscar tudo que precisar’, mas a Dona Teresa veio depois e disse: ‘Não é pra entregar nada! O Luiz deu dinheiro pra elas comprarem’”. Aí, a minha avó: “E agora? É verdade que meu filho deixa dinheiro, mas não o suficiente, sabendo que a gente tem que comprar tudo que precisar, ele vai ficar muitos dias...”. Ele falou: “Agora? Que eu vou vender! O ‘não’ dela não significa nada!”. Ele sabia da nossa situação. “O ‘não’ da madrasta não significa nada! Depois, eles dois que se entendam, que o que a senhora precisar a senhora vai levar!” Você vê como ela era? Você vê a situação como se vivia, era uma coisa terrível, não era fácil. E papai sempre neutro, porque papai não ofendia a mulher e nem ofendia os filhos, era omisso nesse ponto. E teve outra vez também, já não era nessa casa, quando ela foi ganhar o primeiro filho. Que papai nunca tinha presenciado uma briga nossa, grave, uma briga forte. Uma briga mesmo, uma discussão feia, porque, na frente de papai, ela não brigava. Ela ficava só: “Seu Luiz, sua filha, seu isso, contando aquilo...”. Só fazia isso. Na frente dele, ela não dizia coisas com a gente. Aí, quando foi esse dia, meu pai foi viajar – papai era uma pessoa bem de vida, sempre teve o caminhão dele, sempre trabalhava para firmas enormes, firmas famosas de algodão. E papai viajava muito. Então, teve esse dia que ela casou, minha avó estava em Lagoa Salgada com as outras, e eu vim pra cuidar dela de dieta, mas ela não aceitou. Aí, nesse tempo, eu estava com 14 anos, não sei se eram 14 anos, por aí. Papai falou: “Vou levar você”. Ele passava lá, papai fazia aquele rodízio, passava na família, e vinha pra casa dela. Nunca papai deixou de ver a gente quando a gente estava morando separado. Papai chegou, passou e disse: “Vou levar pra ficar com a Teresa, que ela vai ganhar nenê”. Aí, ela não quis, falou: “Não”. Não falou na minha frente, ela falou pra ele: “Não, eu quero que você vá buscar a minha irmã”, que chamava... Como chamava a irmã dela? Eu até já falei! “Quero que você vá buscar a minha irmã no sertão pra vir cuidar de mim.” Papai, como não dizia “não” pra ninguém, na próxima viagem, papai trouxe a Nazaré. Trouxe a Nazaré, que era irmã dela, pra cuidar dela. Mas eu fiquei ali. A casa era de papai, eu estava ali e fiquei ali, não ia cuidar dela, mas estava ali, não voltei pra casa onde estavam minhas outras irmãs. Aí, veio essa irmã e ficou ali, tudo. Quando essa irmã chegou, juntaram as duas! Elas se trancavam no quarto, as duas, e ela sabia que eu gostava, porque em casa a gente tomava muito vinho, sabe? Vinho bom! Não existia suco. Ou era de fruta ou era sangria de vinho. Você sabe o que é sangria de vinho?
P/1 – Sim.
R – Então! Ou existia fruta ou sangria de vinho para as crianças, ou suco de fruta, que era espremido assim, não tinha um liquidificador para espremer! Então, ela sabia que a gente gostava muito de vinho, que a gente... Não é que eu queira dizer, mas papai comprava os melhores vinhos naquela época. Não é da época de hoje, daquela época! E sempre tinha isso lá em casa, sempre se usava o vinho na mesa. E, então, ela pegou e se juntou com a irmã lá dentro, e ela sempre fazia isso comigo, mas era sozinha, quando eu estava sozinha. E ela ficava gritando e, como era meia parede, como estou falando pra vocês, a gente escutava! Eu escutava. E ela falava: “Coisa boa estamos comendo!”. Ela guardava as coisas naquele caixão. Num caixote que ela tinha. Ela escondia da gente o queijo, o que ela queria. O doce. E ela sabia que eu era muito ligada no doce, até hoje eu como doce, eles vivem brigando porque como muito doce. Ainda bem que não sou diabética. E, então, ela ficou lá de dentro fazendo pouco caso de mim naquele dia. “Olha que gostoso, nós estamos comendo queijo, nós estamos comendo isso, comendo aquilo! Que vinho bom!” E elas trancadas, e eu sozinha do lado de fora. Mas nesse dia houve um troço muito sério. Papai veio mais cedo pra casa e papai veio e ficou escutando. Nunca papai vinha naquele horário, nunca! Foi a primeira briga que papai viu, grave mesmo, que estava forte. Eu fiquei desesperada. Eu fiquei tão desesperada que, naquele dia, eu tirei o pé do lugar, porque, como era meia parede, eu queria retrucar com ela, como mocinha nova, não tinha juízo, né? Eu subia na mesa, eu caí da mesa, porque tinha sala, o meu quarto depois da sala, depois era o quarto dela e a sala de janta. E eu ficava. Como ela falava as coisas, eu ficava jogando também de lá pra cá, por cima da meia parede. Olha, pensa nisso! Que situação era essa? Uma pessoa trancada no quarto com uma, duas pessoas trancadas, e uma de fora discutindo com aquela lá de dentro e jogando coisa pra lá e coisa pra cá.
P/1 – O que a senhora falava?
R – Ah, eu, desesperada! Eu era mocinha nova, tinha quanto? Talvez nem 14, por aí, uns 14 anos, nem isso. Eu me casei com 16! Então, não tinha nem 14. E eu sozinha e sabendo que tudo estava contra mim. Ela escondia tudo ali dentro do quarto, eu só comia o que ela dava, porque nessa hora eu não estava com a minha avó, eu tinha ido pra cuidar dela e ela não aceitou. Foi quando papai trouxe a irmã. Aí, papai naquele dia veio cedo. Quando papai chegou, papai ficou na porta, eu estava na sala de janta e nem eu vi papai. E ali era sala e tinha uma porta da sala pra sala de janta e pro quarto dela, e lá usavam umas portas de meia porta. Sabe o que é meia porta? Era uma porta cortada no meio, abre a frente e fica a debaixo fechada.
P/1 – Ahã.
R – Só se fechava aquela porta de baixo. E papai viu que estava uma zoada tão forte, tão forte, quando meu pai chegou. E nós morávamos em Lagoa Seca em Natal, e minhas irmãs estavam com minha avó em Lagoa Salgada. Ele ficou escutando, e elas duas gritavam de lá, fazendo pouco caso de mim. Diziam coisas fazendo pouco caso de mim. E papai parou, escutou a zoada. Quando chegou à porta, papai parou. E escutou a zoada, ficou escutando, escutando. Nem eu sabia que ele estava, porque eu estava na sala de janta, não estava vendo ele lá, porque a porta estava naquele canto e eu estava aqui na mesa, pulando da mesa, caindo da mesa. Tirei até o pé do lugar, fiquei com o pé inchado. E ela pra ganhar nenê! Aí, papai escutou aquilo, escutou, escutou até quando ele quis. Foi a primeira atitude que papai fez em toda época que estava com ela. Aí, papai entrou, olhou pra mim e falou: “O que está acontecendo?”. Falei: “Aí...”. Mas eu não sabia que ele estava escutando. Falei: “Escute o que ela está falando comigo”, e ela não sabia que papai já estava. Papai bateu na porta, tudo revirado! Menina, você não queira saber que coisa estava aquilo, de bagunçado. Cadeira pra um lado, cadeira pro outro, coisa esquisita. Então, papai bateu na porta do quarto e falou: “Teresa, sai”. Quando saiu a Teresa e a irmã, ela quis dizer que eu era a culpada, mas papai estava ouvindo. Porque eu estava retrucando também, eu não ficava calada! Eu não era santinha não. Ela dizia, e eu respondia. Papai falou: “Manda sua irmã fazer a mala pra voltar pra casa”. Foi a única vez na vida que papai esteve com a gente, foi essa atitude. Papai falou: “Não quero saber de nada, eu só quero que você mande ela fazer a mala e, do jeito que ela veio, ela vai voltar pra casa”. Ela: “Não, não pode, porque eu vou ganhar nenê”. “Não, Toinha está aí. Ela, Nazaré, vai embora, porque vai ser pior você ter filho com Nazaré aqui.” Sem querer, foi uma luta muito grande, uma discussão muito grande. Papai quase não falava, não gostava de discutir. Ela fez a mala e ele pegou ela ali, voltou com o caminhão e foi deixar ela na casa dela. Papai nem foi, papai deixou em Natal, ali no centro, não sei se vocês ouviram falar o que é um carro misto! Naquele tempo, era tudo diferente de hoje. Um carro misto era assim: tinha uma carroceria e duas boleias, como eles chamavam, para levar as coisas de uma cidade para a outra. Papai levou ela no misto, que o misto ia pra terra dela, lá no sertão. E a Teresa ficou desesperada porque a irmã veio pra cuidar dela, e papai teve essa reação, a única reação que papai teve a nosso favor, porque sempre ele ficava neutro. Pegou ela e levou embora. Disse: “Não, vamos ficar só você, Toinha e eu aqui!”. E levou ela e voltou e, quando chegou, falou: “Não...”. E o que aconteceu? Nessa noite, nessa tarde que papai foi levar ela embora, papai voltou e, quando foi à noite, a Teresa teve filho.
P/1 – Teve filho.
R – Teve filho. E eu no outro quarto, nós estávamos brigadas. As nossas brigas eram assim, brigava e se falava (risos). Não ficava de mal, como dizem os meninos. Não ficava de mal. Brigava e se falava. Mas eu tinha muito prazer quando ela precisava de mim!
P/1 – Lógico, né?
R – Nossa, era um prazer quando ela precisava de mim. Então, eu vi que ela estava com papai no quarto. Eu estava no meu quarto, e eu vi que ela chegou no meu quarto, bateu no meu quarto, e disse: “Toinha...”, ela não me chamava, toda minha família me chamava de Toinha e ela errava. Falava meu nome bem mal mesmo. Ela me chamava de Antonha.
P/1 – Antonha?
R – Antonha. Antonha que ela chamava, isso pra me humilhar mesmo, porque ela sabia que eu não gostava do meu nome! Então, ela bateu na porta e chamou: “Antonha!”. Aí, eu sai: “O que você quer, Teresa?”. Falou assim... E ela tinha feito um jogo de quarto pra ela usar no dia em que fosse ganhar nenê, pra cama, fronha, essas coisas. E ela tinha esquecido de fechar uma fronha e, como eu costurava pra mim, fazia tudo, ela falou: “Eu estou precisando que você feche essa fronha que eu quero usar depois que eu ganhar nenê”. “Por quê? Vai ser agora de noite?” Ela falou: “É, seu pai já foi buscar a parteira”. E era pouca coisa que eu tinha que fazer e eu costurava muito bem já naquela época. E eu falei: “Não, eu faço!”. Aquilo pra mim foi um prazer. Dois prazeres! Eu ia tomar conta dela de dieta, que não era pra eu tomar. Eu vim e não era. E eu ia costurar pra ela, terminar uma coisa que ela queria muito, muito. Eu fiz aquilo com todo carinho mesmo. “Não, Teresa, eu faço!” Fui lá. No dia da briga, no dia em que foi embora a irmã dela, que veio cuidar dela! De noite, ela ganhou nenê. Papai foi buscar a parteira, que era com parteira, né?
P/1 – Ahã.
R – E foi muito interessante porque eu que a servi, não sei por que eles queriam, que eu não entendia de nada naquele tempo sobre parto, sobre nada. Nunca foi falado pra mim como era nada, e eu também não me interessava muito. Sei lá. E a parteira mandava pôr água no fogo, mandava fazer não sei o quê. Eu sei que eu fiz tudo pra ela, mas só que não entrava no quarto. Fazia tudo que precisava aqui, e papai vinha, pegava e levava. Eu sei que isso foi uma satisfação muito grande pra mim, de ter acontecido isso, sobre muita coisa. Porque meu prazer de fazer pra ela, me deu muito prazer porque ela achava que só ela que era importante, mas, mesmo ela sendo importante, uma hora ela ia precisar de alguém. Então, eu sei que era isso.
P/1 – Dona Antônia, eu posso voltar bastante na história?
R – Pode. Nossa, tem chão!
P/1 – Eu fiquei curiosa sobre o motivo da cintada que a senhora levou. A senhora falou que foi a única vez, né?
R – É, a única filha. Foi. Ah, meu Deus, eu nem gosto de falar disso!
P/1 – Se a senhora não quiser falar...
R – Não, eu falo. Eu não gosto porque eu fui maldosa! (risos) Tomei de cinta do meu pai, que ninguém nunca tomou! Papai não encostava a mão num filho, de jeito nenhum! Era mamãe que batia. Mamãe batia, viu? Mamãe batia! Tinha a história do cipozinho de marmeleiro lá no interior. Vocês nem sabem o que é isso. É um cipozinho que se fazia assim: arrancava ele, e ele era molinho assim. Mamãe batia na gente com aquilo. Ia lá no quintal, pegava e pá, pá. Mamãe batia, mamãe punha de castigo. Então, é assim: eu e minha irmã, a gente brigava também muito, com Judite, que nós somos assim hoje, hein? Só quando era pequena, a briga era só quando era pequena. Essa minha irmã que eu trouxe pra São Paulo, quando eu vim. E, então, você quer saber da surra.
P/1 – Isso.
R – Nesse tempo, eu era muito pequena. Gente, era muito pequena. Mamãe ainda era viva, acho que eu tinha uns cinco anos, cinco pra seis anos. Então, era assim: nós éramos acostumadas que, quando ia um, ia todo mundo, e papai, quando levava, às vezes papai me levava muito pra algum lugar, pra um lado, pra outro, de caminhão, porque não pagava nada. Ele tinha, né? E eu tinha uns primos que moravam em Lagoa Salgada, em Lagoa... Como era o nome? Não me lembro, mas vou lembrar. Eu tinha uns primos que moravam nessa cidade, e papai ia de carro levar umas coisas pro meu primo. E eu queria ir. E, nesse dia, papai ia... Não era longe, era pertinho. Ah, me lembro, vai chegando! Mamãe tinha uma mercearia, que chamava venda. Sabe o que é mercearia? Que já é mais moderno.
P/1 – Ahã.
R – Então, mamãe tinha uma mercearia em Serrinha, porque papai trabalhava Nova Cruz, era pertinho. São cidades muito perto de Nova Cruz. E mamãe tinha uma mercearia. Papai falou: “Abília, eu não tenho o que fazer hoje”. E nós estávamos no sítio nessa época, e tinha um moço chamado Jacob, que esse moço era o que mamãe comandava. Ele fazia tudo que mamãe precisava. Esse moço ia à venda buscar isso, esse moço ia ao sítio ver os trabalhadores alugados! Sabe o que é trabalho alugado?
P/1 – Não.
R – Naquele tempo, chamava “trabalho alugado”: pessoas que eram empregadas para trabalhar na lavoura, que trabalhavam para o patrão, mas na lavoura. Limpando lavoura, plantando lavoura. E essa nossa terra era muito plantada, tinha tudo! Era muita terra. Uma parte era toda de lavoura, feijão, arroz, milho, mandioca, tudo nós tínhamos. Tudo tinha muito, muito, muito. E mamãe dava para as comadres. E isso no meio de junho, que era a hora de festa de junho, era hora de que tinha tudo isso que se plantava, que era o inverno. Então, papai falou: “Abília, eu estou bem hoje e eu vou na casa de fulano buscar, vou a cavalo”. E eu andava muito a cavalo, eu e minha irmã. Era assim: eu fui criada quase andando a cavalo, né? Porque no sítio tinha o cavalo de mamãe, tinha o cavalo que eu dizia que era meu, mas não era, era de papai, mas eu dizia que aquele cavalinho era meu! E tinha o cavalo de papai.
P/1 – E tinham nomes esses cavalos?
R – Tinha, tinha nome. O meu era... Nem me lembro. Como era o nome do meu cavalo? Mas todo cavalo tinha nome. Depois eu lembro. Então, papai falou pra mamãe: “Abília, eu vou a cavalo buscar o sal que está faltando pra venda nos meus primos”, porque lá os meus primos eram donos de salina. Tinham muito dinheiro os meus primos, eram donos de salina. E ele ia pegar o sal lá porque cobrava tão barato, né? Calcule: hoje o sal é barato, calcule naquela época! Mas todo mundo usava e se usava muito, muito, porque não tinha geladeira. As carnes, tudo que se guardava era salgado e dependurado no sol pra secar. E ficava uma banana pra mosca não sentar. Aquelas coisas tão diferentes de hoje, você nem imagina como eram. E se usava muito sal grosso pra isso, muito, muito, muito. E, então, papai falou: “Vou buscar sal grosso pra venda que tem pouco”, e eu queria ir com papai, porque eu estava acostumada a ir com papai. Aí, papai falou: “Você não vai porque eu vou a cavalo, eu quero ir a cavalo”. Papai pouco andava a cavalo, quando ele andava, era uma distração pra papai. E sei que naquela hora... E o Nordeste, hoje, já mudou muito, mas no Nordeste se usava muita praga, sabe o que é rogar praga para o outro? Usava-se muito! Qualquer coisa, você dizia: “Tomara que aconteça isso!”. E em casa não se gostava de rogar praga, ninguém gostava de rogar praga, mamãe não deixava ninguém rogar praga. Mas, naquele dia, eu fiquei tão nervosa e saí batendo o pé. E eu era muito pequena pra ir com papai a cavalo, e era meio longe. Não era longe, mas pra mim era.
P/1 – Pra criança...
R – Era. Papai ia trabalhar, ia buscar uma coisa porque vinha... (risos) Sei que papai ficou com tanta raiva quando falei pra ele: “Olha, pois eu tenho fé em Deus que seu cavalo vai morrer! Vai ficar doente e vai morrer!”. E eu disse isso porque estava dando uma doença chamada “roda”, chamava “roda”, e estava muito falada. Eu tinha um cavalo. Justamente um desses cavalos que iam era o meu, e eu não queria que ele fosse, eu queria ir nele. E, então, eu falei para o papai, chorando muito, eu falei para o papai: “Pois eu tenho fé em Deus que seu cavalo vai morrer do ‘roda’, vai dar o ‘roda’ e seu cavalo vai morrer”, porque eu ouvia todo mundo rogando praga e eu também roguei. Achei que não ia apanhar por causa daquilo. Papai tirou a cinta na hora e pá! Fui a única filha de papai em que ele deu, por causa de uma praga. Mas também não roguei mais praga depois. Nunca. Não roguei praga e até hoje não gosto de praga (risos)!
P/1 – E a praga funcionou ou não?
R – Ah, meu Deus. Ah, funcionou, funcionou. Mas não foi por causa da minha praga, o cavalo já foi ruim de casa pra lá, né? E justamente o cavalo já estava infectado, porque estava dando em todo... Tanto que eu roguei essa praga porque eu ouvia falar dentro de casa: “Morreu o cavalo de fulano, morreu o cavalo de sicrano, morreu”. De papai não tinha morrido nenhum cavalo. Mas, então, eu, na hora da minha raiva, eu lembrei do cavalo e roguei a praga. Falei: “Vai levar o meu cavalo? Pois eu tenho fé em Deus que o seu cavalo vai morrer!”, o meu não, não ia!
P/1 – (risos)
R – O cavalo de papai que ia morrer. E eu não sei. Eu sei que o cavalo ficou doente, mas não me lembro agora qual foi, se foi o meu ou o de papai, não me lembro de nada. Sei que apanhei dessa cinta. Papai tirou na hora a cinta: “Não quero ver você rogando praga!”, não sei como é que foi, mas sei que papai me deu essa cintada. Foi a única cintada. E doeu! Até hoje eu lembro porque doeu.
P/1 – E, Dona Antônia, ainda na infância da senhora, quais eram as brincadeiras?
R – De roda, pular corda, muita brincadeira de roda, muito pular corda. Eram essas brincadeiras. Ah, tinha uma brincadeira também, que eu não me lembro como é que falava, de pedrinhas! Punha pra lá, punha pra cá, punha pra lá, punha pra cá. Ficava horas brincando essa brincadeira. Mas era só isso, não tinha outras brincadeiras. Era pular corda e brincadeira de roda, e uma no meio e a gente cantava: “Teresinha de Jesus...”, como é? “Deu a queda e foi ao chão!”
P/1 – (cantarola)
R – Você sabe essa música? Pois é, essa música era música da minha época de brincar com roda. Era assim. Eram mais essas brincadeiras. Menina, então, lá em casa só tinha menina. Menina quase não brincava com menino, não tinha isso. Menina pra lá e menino pra cá, né? Não se brincava junto.
P/1 – E a criança, a Antônia criança tinha sonho de querer ser alguma coisa quando crescesse?
R – Não. Nessa época de criancinha pequena, de mamãe, eu nem pensava em nada. Eu tinha uma vida tão boa, uma vida tão cheia de tudo o que eu queria. Mamãe ia pra Natal e comprava brinquedo! Mamãe ia. Nós tínhamos um quarto – igual falei pra vocês – enorme, só pra brincar, só pra brincar. Chegou um dia, minha mãe tocou fogo, já falei?
P/1 – Não.
R – Tocou fogo em 11 bonecas! Minha, minha. Porque eu já estava tão viciada. Se eu dissesse “eu quero isso!”, mamãe comprava. Mamãe era uma mãe muito boa e tinha dinheiro pra comprar. Papai ganhava bem, mamãe era de uma família que tinha tudo. E chegou um dia que eu tinha aquele quarto, e toda hora estudar era aquele sacrifício, um sacrifício eu deixar aquelas bonecas e ir estudar. E, nessa época, eu que estudava. Minha irmã já estava moça, que era mais velha do que eu alguns anos, e tinha a pequena. Estudava só duas horas e eu ia para o quarto brincar com minha irmã. E eu não queria fazer lição. Aí, teve um dia que mamãe falou: “Não, está ficando ruim! Um dia, vou queimar suas bonecas!”, e eu não acreditava que mamãe fizesse isso. “Um dia, vou queimar suas bonecas! Você não quer estudar, vou queimar suas bonecas”, ficava falando isso pra mim. Quando foi um dia, ela falou: “Vem fazer a lição”, porque nós estudávamos na mesa que foi da mestra da minha mãe, onde minha mãe estudou. Isso em Serrinha, essas novidades eram em Serrinha porque, em Nova Cruz, já era outro tipo de coisa, já era uma cidade grande, já era mais festa, igreja, ir pra missa. Era da Irmandade, minha irmã era da Irmandade de Santa Teresinha, eu da Irmandade da Cruzada, minha mãe era filha de Maria. Já era outro tipo de brincadeira. Essas coisas mais a gente via muito no sítio. Nós vivíamos muito. Lá parece que era um lugar que a gente morava no sítio. Como papai passava todo dia, a gente ia e vinha na hora que queria. E ali ficava o moço, o Chicó ficava tomando conta. Quando foi esse dia... Do que eu estava falando mesmo?
P/1 – De ela queimar as bonecas da senhora.
R – Ah, eu não acreditava que ela fizesse isso. Então, nesse dia, ela fez. De tanto ela... Já cansou de me avisar que queimava, porque eu não fazia lição e eu preferia ficar brincando. E, pra fazer lição, eu precisava às vezes levar uns tapas dela. Porque papai não batia, mas mamãe dava tapa, puxava cabelo, puxava orelha. Tudo que fazia naquele tempo ela fazia com a gente. Mas como mãe, né? Naquele tempo, se educava filho apanhando. Aí, naquele dia, eu estava lá e ela: “Venha, venha!” “Não vou!” “Então, está bom”. Ela veio quietinha, juntou tudo aquilo. Eu estava numa cadeirinha de balanço que ela tinha me dado, de vime – usava muito vime naquela época. A gente tinha cadeira de balanço de vime, mamãe tinha. E ela juntou, me tirou da cadeira, me pôs pra lá e pegou as bonecas. Juntou todas as minhas bonequinhas de pano! Tinha uma senhora que só fazia aquelas bonecas, só ela fazia. E era uma coisa linda! Era moça. Nunca vi boneca daquele jeito, nunca. Até fui aprender a fazer uma boneca agora, mas não chega nem aos pés. Mas eram lindas as bonecas. O cabelo, ela fazia com pastinha. As moças usavam pastinha, ela fazia do mesmo jeito. Linda! Fazia seiozinho na boneca, mais altinho. Mas eram lindas as bonecas. Mamãe pegou aquelas 11 bonecas que eu estava brincando e levou tudo pro fogão. Era fogão de lenha no sítio. Na cidade, era fogão a carvão. Lá no sítio, era dentro. Levou tudo e pôs assim: “Eu te falei que ia queimar todas as bonecas!”. Não deu uma palavra, queimou todas as bonecas! “Agora, você escolhe: ou você vai ter outras bonecas ou vai estudar. Mas essas aqui eu vou queimar.” Queimou 11 bonecas, o fogo subiu. Eu sei que, daqui pra frente, eu não fiquei mais assim, porque não houve mais outra queimação de boneca. Eu sei que eu tive muitas outras bonecas, mas não foi queimada mais. E não me lembro de outra confusão que eu tive, que aí eu estudei um pouco. Foi a época em que também eu já estava grandinha, a época em que, com 12 anos, já mamãe morreu.
P/1 – E a senhora se casou muito jovem, né? Aos 16 anos. Eu queria que a senhora contasse como conheceu seu esposo.
R – Ah, o meu marido! Meu Deus do céu, deixa eu lembrar, outra situação (risos), como foi?
P/1 – Porque aí já entra na parte da adolescência da senhora, né?
R – Não, é. Aí, foi na minha adolescência mesmo. Foi assim: como nós vivíamos nessa situação que eu já te contei, e depois teve uma época em que minha avó foi pra casa da minha tia, isso foi lá no meio, e eu fui pra casa do meu tio, irmão da minha mãe, morar com meu tio, irmão da minha mãe. Aí, eu não fiquei mais com minha madrasta. Nos meus 14 anos, acho que 14 ou 15, ainda essa época, eu morava com meu tio em Natal. Como era o nome daquele lugar? Não me lembro agora. Então, estava morando em Natal com meu tio. E a minha tia era muito boa, cuidava muito de mim. E, como eu era uma mocinha esperta, eu fazia todo o serviço dela. E minha tia morreu não gostando de serviço de casa! Porque era cunhada de minha mãe, o marido dela que era meu tio, o José, Zé Arruda. E, nessa época, eu já estava na casa da minha tia, morando com ela. Eu ia em casa só de passeio mesmo e já não tinha mais quase ninguém lá, só Judite e Berenice, nem minha avó. Só ia visitar as meninas com a minha madrasta. Isso já no sertão, porque ela levou meu pai direto para o sertão. E, então, eu morava com minha madrasta, e minha irmã morava com tio Pedro e estava namorando, com uma situação, foi muito triste mesmo, não mais por causa da minha madrasta. Eu estava morando com meu tio, e ela morando com meu tio por parte do meu pai e eu, por parte da minha mãe. E lá ela namorava com o meu cunhado, que foi meu cunhado. Ele era taifeiro na base aérea. Ela era uma moça lindíssima! Olha, eu era muito feia, eu era feia pra ela, no lugar dela. Nós nos trocávamos juntas, nos arrumávamos para ir para as festas, já mocinha assim, com uns 12 anos, no tempo de mamãe e tudo. Chegavam as comadres e diziam: “Toinha” – o povo não tinha, não pesava muito o que dizia, e eu ouvi muito isso – “Toinha, você pode pôr a seda melhor em você, sua mãe e Judite, e Isa pôr chita; Isa fica mais bonita que você”. Eu ouvi muito isso. Porque minha irmã realmente era linda! Uma morena um pouquinho mais escura do que eu, mas uma morena... Pense numa mulher linda, que poderia ser até uma miss. Minha irmã era essa. Cansei de ouvir isso: “Ih, você? Sua irmã pode pôr chita e você nunca chega aos pés dela!”, ouvi muito isso. Mas não ligava. Era minha irmã, tinha até prazer. Nós éramos muito amigas, ela morreu nós sendo muito amigas. Então, eu morava no tio Pedro, Isa morava com tio... Isa morava com tio Pedro, e eu com tio Arruda. E lá Isa arranjou esse namoro. Ela trabalhava no ateliê de costura, ganhava, vivia bem como moça. Não se ganhava muito, mas vivia bem, que dava pra viver bem, se vestir muito bem e tudo. Aí, pegou esse namoro com esse soldado da base e ficou noiva com ele, namoraram, tiveram uma briga, várias brigas, não sei. Mas vou contar até onde sei. E, numa dessas brigas, ela ficou grávida. Ela ficou grávida do menino, que era muito difícil uma moça ficar grávida (risos), mas ela ficou. As moças de família não ficavam grávidas, mas já nem era mais de uma família, porque nossa família foi destroçada, foi revirada, né?
P/1 – Sim!
R – E eu não sabia que ela ficou grávida. Sabia que ela estava no tio Pedro. A gente se via de vez em quando, mas ela escondeu isso de mim. Quando foi um dia, eu fiquei alguns meses sem ver minha irmã. Aí, o meu tio, o outro meu tio – tio por consideração, que era primo só, a gente chamava ele de tio, Cleodon – recebeu um telefonema da minha irmã da Santa Casa. Isso tudo em Natal, eu já estava no meu tio e ela na casa do meu outro tio. Mas, nessas alturas, ela estava no hospital. Aí, que ele tinha abandonado ela, e ela tinha ficado grávida e ela não falou pra ninguém da família. Quer dizer, pra minha avó. Pra mim, nada. Quando eu soube, ela já estava grávida pra ganhar o nenê, já tinha ganhado o nenê na Santa Casa de Natal. Aí, Cleodon, ela ligou pra Cleodon, meu primo. Nem esse meu primo sabia, que era onde estava passeando minha avó. Minha avó passeava muito na casa dos sobrinhos. Minha avó era muito querida, a que cuidou da gente. E, então, Cleodon ligou pra mim: “Toinha, teve uma ligação estranha aqui dizendo que Isa, que Anaísa...” – era Anaísa o nome dela, a gente chamava ela de Isa – “que Anaísa está no hospital, teve gêmeos” – primeiro filho, nem eu sabia que ela estava grávida! Porque ela escondeu o quanto pôde, escondeu de toda família, né? “Ela teve gêmeos e está no hospital muito mal, muito mal.” Eu tinha, nessa época, de 15 pra 16 anos, eu ia fazer 16 anos. E eu fiquei... “E é pra você ir lá amanhã”, me deu o número do leito, da enfermaria. “E é pra você ir lá amanhã ver ela e levar alguma roupa para as crianças. Está bem, só que ela não tem nada para as crianças.” Olha a situação a que chegou a minha irmã, que tinha uma vida, pode-se dizer, de luxo. A minha irmã teve uma vida de luxo com minha mãe. E, então, nossa, foi um reboliço na casa do meu tio. “O que nós vamos fazer?” Ele disse: “Leve roupinhas pras crianças”. Como minha tia tinha um filho atrás do outro, ela tinha muita roupinha (risos). Ela teve muitos filhos. Essa minha tia teve 22 filhos com meu tio! 22 filhos. Então, ela tinha um filho atrás do outro. Como mamãe teve com papai, ela teve com ele. Mas isso, pra mulheres, ter filho era natural. Pra gente solteira, porque a gente não se metia nisso, entende? Até aí, eu com 15 pra 16 anos, eu tinha 16 anos, eu não puxava esse assunto, ninguém falava, tudo era muito escondido. Aí, então, minha tia, eu falei: “Irene, pelo amor de Deus, o que nós vamos fazer? Você tem roupinha pra dar? Vou levar um pouco dessas roupinhas”. Aí, Irene fez uma sacola de roupinhas de nenê, porque ela tinha muito, muito, tinha guardado muito. Até ela era muito descuidada, ficava pelos cantos. Eu peguei aquelas roupinhas, juntei aquele monte de roupinha de bebê e levei. Fui no outro dia visitar a minha irmã. Quando eu cheguei – eu nova, uma mocinha nova, sem experiência de nada, né? –, eu nem esperava encontrar minha irmã naquela situação. Minha irmã muito bonita, muito elegante, sempre se vestiu muito bem! E, quando eu cheguei, dei o número do quarto. Eu era muito criança, com 16 anos. Digo o número do quarto e tudo, e me levaram até lá. Uma enfermeira me levou até lá e deixou na porta da enfermaria, me deixou. Uma enfermaria enorme, com cama de um lado e cama do outro, enfermaria de pessoas que não pagavam nada. Eu vim, passei com aquela sacola na mão, passei olhando pra um lado e pra outro, passei por minha irmã e não reconheci minha irmã.
P/1 – Não reconheceu!
R – Não conheci minha irmã. Aí, eu passei e, quando ela me viu, que eu estava passando dela, ela gritou muito suavemente: “Toinha!” – todos me chamavam de Toinha – “Toinha!”. Eu fiquei procurando. “Toinha, Toinha!”, que eu viro assim, e vejo minha irmã naquele lado ali, numa cama, que não era mais a minha irmã. Falei: “Meu Deus, o que é isso?”, fiquei desesperada quando vi a minha irmã. Pálida, inchada, com uma gravidez decerto muito mal tratada, que eu nem sei como foi essa gravidez dela. Aí, eu fui atrás de uma enfermeira e falei. Ela quase não falava, muito fraca, tinha tido várias hemorragias por causa de uma gestação sem cuidados, né? E eu falei pra enfermeira: “O que ela tem?”. “Ela está de alta.” Nesse momento que ela, a enfermeira, veio e disse: “Não, ela está de alta, teve um casal de gêmeos e tal”. Eu nem sabia o que pensar. Naquele momento, não sabia o que pensar. Quando ela foi ao banheiro, lá ela teve nova hemorragia. Quando ela voltou, já foi uma enfermeira, correu, e já avisou que ela estava tendo nova hemorragia. Aí, eu volto, ela volta pra cama dela, e a enfermeira diz: “Ela não pode sair hoje mais, você venha, vamos dizer, o dia que você pode vir buscar ela”. Aquilo pra mim, não sei dizer se eu fiquei arrasada ou parada, não sei dizer como fiquei de ver minha irmã naquela situação. Por isso que eu digo que foi triste. Então, eu voltei, deixei as roupinhas lá, nem me despedi, porque de lá minha irmã passou na maca e eu só disse: “Tchau”. Eu era tão sem experiência, e ela foi lá pra uma mesa, cirurgia, não sei o quê. Não sabia de nada dessa situação dela. Só sabia que tinha tido uma hemorragia, do banheiro foi lá não sei pra onde. Eu deixei as roupinhas lá e voltei pra casa da minha tia. E falei: “Irene, Isa não saiu hoje, porque, quando a Isa foi se trocar no banheiro, ela teve uma hemorragia, e de lá foi não sei pra onde cuidar dela”. Aí, ficou de marcar outro dia de eu ir buscar. E acho que ficou mais uma semana, mas ela estava muito inchada, pálida demais. Quando eu fui, dali a uma semana, que marcaram pra eu ir buscar, eu fui buscar. Mas eu não sabia pra onde minha irmã ia. Então, ela já estava melhor, já estava andando, dessa segunda vez que eu fui buscá-la. As crianças já vieram pra ali, já estavam com as roupinhas que trouxe, levei bastante roupinha. E eu falei: “E agora?”, eu não sabia da situação da minha irmã. Porque eu vi minha irmã quando minha irmã estava muito bem e, depois, de repente, eu vejo minha irmã daquele jeito. De repente, não, dali a uns meses. Mas eu não esperava minha irmã daquele jeito. Então, eu falei: “E agora, pra onde você vai? E o Neto?” – chamava Manoel Bezerra Neto. Eu falei: “E agora, pra onde você vai?”. Ela falou: “Vou pra Parnamirim”. Parnamirim é onde tem a Base Aérea de Natal. Aí, eu falei: “Então, vamos!”. Eu tinha levado dinheiro porque minha tia tinha dado: “Leve dinheiro que você não sabe pra onde ela vai”. Então, eu levei dinheiro, falei: “Então, vamos”. Aí fomos pra lá, pra Parnamirim. Pegamos um ônibus. Ela, nessa situação, nós pegamos um ônibus – Parnamirim não é longe, é meia hora de Natal pra Parnamirim de ônibus. Fomos. É emendado, agora já emendou Parnamirim com Natal, mas naquele tempo ainda tinha um matinho. Levei minha irmã com aquelas duas crianças pra Parnamirim, e falei: “E a casa?”. Desci do ônibus, levei ela até a casa. Era justamente na rua em que eu me casei. A casa dela ficava numa casinha pequenininha, um trocinho, um negocinho lá em que ela morava com outra família, com a mulher de um cabo que tinha ficado com dó da minha irmã, quando minha irmã estava grávida e Neto tinha abandonado ela. E essa moça, que o marido dela era amigo do Neto, que a acolheu naquela casa dela e ela ficou ali até ganhar nenê. Porque ela ficou grávida e essa moça a acolheu, porque ela não tinha mais onde ficar. Porque ela não queria voltar pra casa do tio Pedro, quando começou a ficar grávida, quando achou que alguém ia descobrir. E ela não queria que ninguém soubesse. Então, nós tivemos esse tempo sem saber onde estava minha irmã. Mas eu pensei que ela estaria... Nunca pensei nada. Eu era tão nova, nunca pensei nada. Cuidava de mim muito mal na casa da minha tia, né? Tinha tanto o que fazer com tanto filho, que tinha sete filhos! Aí, fui pra Parnamirim: “Você sabe a casa?”. “Sei.” Peguei aquelas duas crianças junto com ela, fui naquela rua João Câmara. Descemos lá bem mais longe. No final, tinha aquela casinha. Ela falou: “É aqui”. Eu falei: “É aqui?”. “É.” Mas não tinha o que fazer. Eu entrei, não tinha nada. Umas camas esquisitas, umas coisas ruins. A moça não estava lá, a moça tinha ido na casa do pai. Era um povo que não tinha cuidado com nada, não cuidava de nada. E o marido dela era cabo da aeronáutica, era pra ter uma casa melhor, né? E Neto também era da base, mas Neto não dava nada pra Isa, abandonou. Foi lá que eu conversei com minha irmã como é que foi. Fiquei sabendo que, quando ela ficou grávida, ele não quis mais ela. Aí, ela veio pra casa dessa família, essa família que era amiga do Neto, que ela conhecia, tomou conta dela. Foi meio que uma mãe, pra acolher uma pessoa grávida, sem família. Porque naquela época ela andava sem família. Eu falei: “E agora? E o Neto?”. Ela falou: “O Neto está na base. Eu preciso ir à base”. Já fiquei muito revoltada com o Neto, tinha 16 anos. Eu falei: “E o Neto?”. “Está na base.” “E como eu faço pra ir à base?” Aí, ela me ensinou: “Você vai na rua do Parnamirim e ali tem uns carros da base e você pega os carros da base...”. O povo ficava pra lá, e pra cá da base. Fazia-se compra na cantina da base, os funcionários da base, só que eu não conhecia. Pra mim, era uma nova vida, um troço novo pra mim. O pessoal que trabalhava na base fazia compra na base, tudo se comprava, roupa, sapato, tudo na cantina da base. E era um ir pra lá, de família que ia, todo mundo ia e voltava na base. Era a segunda casa do pessoal da base aérea. Então, falei: “Meu Deus, não conheço isso, como é que eu faço?”. Aí, uma senhora da frente, que sabia da situação toda – ali, todos os vizinhos sabiam da situação de Isa, que ela tinha uma família que não procurava porque tinha vergonha. Então, uma família da frente, quando Isa chegou, a moça da frente veio e me conheceu. E eu falei: “Como faço pra ir à base?”. A Iracema, que cuidou muito dela, que era essa vizinha da frente, tinha muita pena dela, que o marido também trabalhava – ali, todo mundo trabalhava na base aérea –, falou: “Olha, vamos fazer assim, o Neto passa toda tarde pra ir pra casa do pai”, que era em Porto Alegre, não, Novo Alegre. Ah, um lugarzinho lá, depois eu lembro o nome. Se não lembrar também, não faz muita diferença. “E você vai lá e, quando passar os caminhões da base” – daqueles caminhões fechados, de lona, e tinha os bancos e os soldados vinham ali, deixavam na base, e quem morava em Parnamirim ficava em Parnamirim e quem morava em São José de Mipibu ou Nísia Floresta ficava no seu lugar, ele saía distribuindo. Ele morava em São José de Mipibu, o Neto. E ela falou: “Ele passa pra ir pra São José de Mipibu, e você chega lá e pergunta pro soldado: ‘quem é Manuel Bezerra Neto?’”. Eu, uma menina de 16 anos, nunca tinha passado por essas coisas. Tinha passado por briga com Teresa, essas coisas, mas uma coisa complicada dessas eu nunca tinha visto. Aí, eu falei: “Eu vou, eu vou atrás do Neto, porque Isa não pode ficar desse jeito. Ele tem, pelo menos, que cuidar dela, enquanto ela estiver assim!”, e fui. Quando foram umas quatro horas da tarde, no mesmo dia em que nós chegamos, eu fui lá e fiz a mesma coisa. Cheio de soldado. Quando eles me viram perto daquele caminhão, todos mexeram, né? Sabe, uma menina nova, de 16 anos, um monte de menino!
P/1 – Claro.
R – Soldado era tudo novinho, 20 anos, trabalhava na base. E pessoas idosas e tudo, mas os soldados começaram. E eu: “Não, eu quero saber quem é Manoel Bezerra Neto”. Aí já tinham falado qual era o caminhão e tudo. De lá, ele respondeu: “Toinha?”. Ele se assustou comigo porque fazia tempo que não me via. Eu falei: “Desce, quero falar com você”. Eu parecia uma adulta, estava me fazendo de adulta, porque era uma criança ainda com 16 anos, mas eu tinha vivência, estava vendo aquela situação, tinha que enfrentar. E ele desceu, e falei: “Olha, você deixou Isa. Isa teve gêmeos, está na casa do seu amigo, não tem o que comer, não tem leite para dar para os filhos, e eu quero que você vá lá”. “Não vou, não vou.” “Vai, você vai!” Aí, ele me obedeceu. Acho que sentiu até pena de mim, talvez, sei lá. Uma menina dessas, numa situação dessas. Aí ele foi. Chegou lá, comprou leite condensado para as crianças. Leite condensado para dar para as crianças! Leite condensado é mais velho que eu. Então, ele foi num bar, comprou leite condensado – por isso que as crianças morriam, gente. Quando não dava pra mamar, dava leite condensado! E ela não tinha condições nem de dar de mamar, porque a fraqueza era tanta que não era aconselhado dar de mamar. E aquelas duas coisinhas desse tamanho, lá no bercinho, numa caminha feia que doía. E eu trouxe ele. “Olha, a situação é essa aqui. Você tem dois filhos. Se você não quiser que eu vá falar com o sargento na base” – a Iracema já tinha me dado um toque assim – “se você não quiser que eu vá falar com o seu superior da base, você deixa dinheiro e comida pra eles”. Ele fez umas compras de feijão, arroz, essas coisas, nem lembro. Fez umas compras e trouxe. E trouxe o leite condensado para dar para as crianças, e as crianças tomaram. Eu era tão sem experiência de nada, que eu nem pensei em dizer: “Não, não é esse leite, é outro”. Qual a criança que ia resistir tomando leite condensado? Fraquinhas como elas já eram. Eu sei que a Isa melhorou. Aí, nisso, vai chegar no meu namoro. Ah, meu Deus do céu, que história, não? Eu fiquei, e essa vizinha da frente, todos eram amigos da minha irmã porque estavam vendo que minha irmã era uma moça de família que não queria nem ver a família, pra não ver a situação dela. Minha irmã se escondeu ali da gente, nós estávamos em outra cidade, e ela se escondeu ali, não queria que ninguém chamasse papai e nem ninguém, pra não ver a situação dela. Mas a moça da frente já falou: “Aqui não dá pra você dormir, você vai dormir na minha casa”, que era em frente. Aí, já aceitou pra dormir na casa dela, que era em frente. Já vieram as outras vizinhas, Dona Rosa, Dona Chiquinha, todo mundo veio acolher ela; me lembro que Dona Chiquinha fez um caldo pra ela, que eles chamam lá no Norte de caldo da caridade. Você já ouviu falar nisso? Mas tem. Lá no Norte tem uma história do caldo da caridade. Toda família faz isso. Família antiga, não sei se os novos fazem isso, naquela época. De repente, a Dona Chiquinha foi na casa dela, que era em frente quase, tinha aquela casinha lá. Foi, fez o caldo, trouxe pra ela. Ela tomou aquele caldo, melhorou um pouco, foi melhorando. E as vizinhas vinham, e eu fazia comida, fui organizando as coisas. Já conheci as outras vizinhas, já conheci a outra, Dona Chiquinha, Dona Rosa, um monte delas. Eu tenho até foto delas em casa. Então, nisso, foi muito triste. Essa é a hora da tristeza. Foi a hora da felicidade, a hora da confusão e a hora da tristeza. Aí, eu fiquei conhecida, e eles tinham pena, tinham pena dela. Todos a apoiaram, as crianças. Ajudaram, deram roupinha e tudo para as crianças, e ela começou a se erguer. Ela melhorou, melhorou. Nisso, eu fiquei conhecida das vizinhas. E tinha uma vizinha que era da igreja batista. Primeira Igreja Batista chamava essa igreja. E, como eu fiquei com minha irmã, cuidando dela uns dias, fiquei até ela melhorar. Porque, aí, já fui à Irene, já avisei que eu tinha que ficar com ela, aquela coisa toda. A Irene falou: “Fique o tempo que você precisar”. E já a vizinha me chamou: “Vamos pra igreja? Você não vai em lugar nenhum!”, e fazia pouquinhos dias que eu estava lá. Vamos à igreja. E eu fui com Dona Rosa à igreja, e Dona Chiquinha era amiga de Dona Rosa e mãe de Cristóvão, que era o moço que eu fui conhecer. Conhecer não, conheci ali numa hora de tanto aperto, nem sei como ele me quis, vendo aquela situação toda. Aí, eu fui pra casa, com Dona Rosa, pra casa de Dona Chiquinha, que era tudo na mesma rua – as casas estão todas lá ainda (risos) –, para, dali, eu ir à igreja com Dona Chiquinha, Cristóvão e Dona Rosa. Eu não conhecia. Conhecia Dona Chiquinha porque tinha levado o caldo, estava sempre ali ajudando minha irmã, e fazia uns três dias que estava lá. Eu sentei numa cadeira, eles tinham uma sala com cadeira de vime, se usava muito na sala. Aqui era a sala, e ali a porta do quarto dele. Ele estava deitado numa rede. Tinha uma cama, e ele deitado numa rede, bem na porta, só esperando a mãe se trocar. Quando Dona Rosa chegou comigo, ele já sabia que tinha vindo a irmã de Anaísa e que a mãe dele já tinha falado que era uma mocinha nova e tal. Já tinha contado pra ele toda a situação e da situação de Isa eles sabiam, né? E eu me sentei naquela cadeira, ele ali e Dona Rosa no sofá. E ele ficou ali. Ali era a sala de janta, e a mãe dele se trocando lá para trás, nos quartos. E ele já olhou pra mim, não falou nada, perguntou como era o meu nome, aquela coisa toda, mas nem eu pensei que ia dar em alguma coisa. Eu estava numa situação ali que eu pensei que ninguém me queria mais, que eu ia me casar... Porque, vendo aquela situação ali, eu fiquei com medo até de um casamento. Fiquei com medo de casamento. Não tinha experiência, fui criada dentro de uma casa bitolada. Quando não era na casa de papai, foi na casa de meu tio, que tinha muito cuidado. Não podia sair sozinha, aquela coisa toda. Não vivia de baile, não ia em baile pra conhecer ninguém. Então, era essa coisa toda assim. Eu nem pensei em nada. Ver ele lá não me alterou em alguma coisa, nem pensei nada. Aí nós fomos: eu, Dona Chiquinha, Dona Rosa e ele fomos pra igreja. Era um bom pedaço pra igreja, que era bem no centro de Parnamirim, a Primeira Igreja Batista. E ela falou se eu queria ir: “Vou!”. “Pelo menos você distrai.” Aí, eu fui. Não me interessei por nada, só gostei da situação, porque ali estava me aliviando alguma dor. Estava bonita a palestra do pastor e tal. Aí, terminou, e nós voltamos. Dona Chiquinha, não sei se estava combinado ou não, acho que não estava. Dona Chiquinha ficou atrás conversando, e ele procurou me levar andando mais para a frente, conversando normalmente, contando a situação que estava, que eu tinha vindo, falando pra ele toda situação. Ele sabia, mas eu tinha que falar que eu morava no meu tio. Não contei nem nada do que aconteceu na minha vida, nem na vida dela, que eu não tinha intimidade com ele. E eu era tão quieta. Não era como hoje, que eu falo. Naquele tempo, quase não falava, eu tinha vergonha de tudo. As moças, naquele tempo, eram muito singelas, muito criadas dentro de casa, sem sair pra passear, sem sair pra lugar nenhum. E eu falei só o que achava da situação dela. Ele falou: “Onde você mora?”. “Eu moro na casa do meu tio, em Natal.” Ele falou: “Então, está bom”, não falou nada. Aí, ele falou pra mim assim: “E você tem namorado?”, nessa viagenzinha de lá. Na primeira vez que eu vi! Já fui logo grosseira: “Não tenho, não quero, não quero nem saber! Olha a situação em que minha irmã está! Eu não quero nunca ter um namorado na minha vida!”, falei essas palavras pra ele. Mas é que estava cansada de ver aquilo. Foi tão pouco, mas foi muito pesado, e eu com adolescência de 16 anos, uma menina! Ele falou que não tinha a ver, que ela era uma pessoa, eu era outra, que não tinha culpa. Falou algumas coisas. E fomos embora: ele foi pra casa dele, e eu fui ver minha irmã com a amiga dela, e depois fomos à casa dela, que era em frente. Amanheceu o dia. Quando amanheceu... Como eu dormi na casa dessa amiga da minha irmã, que era em frente à casa em que ela estava morando, eu já tinha ido lá, olhado ela, feito o leite das crianças, dado café pra ela, que eu levei da casa da minha amiga. Ela já estava deitadinha lá com os filhos, e eu voltei pra casa daquela que, aí, ficou minha amiga, que era amiga da minha irmã. Aí, ela na sala, perguntando, e eu numa cadeira de costas para a janela. Ela de frente, no sofá, tudo coisa de vime, que se usava muito. Aí, a janela ficava aqui, para a rua. Ela estava perguntando pra mim: “Como está ela? Como amanheceu?”, aquela conversa corriqueira da situação. Eu vi que ela falou assim... Alguém deu “bom dia”. Eu estava de costas, não vi quem era. Tão adolescente, tão sem graça, que eu já sabia que era sem graça mesmo, que nem virei para ver. Aí, ela, a Iracema, que estava de frente, falou: “Ih, Cristóvão! O que você está fazendo aqui essa hora? Você nunca me visitou tão cedo!”, com o que ia ser meu namorado, que eu não sabia (risos)! “Não, vim só saber como é que está”, ele falando muito, que sempre foi muito falante, sempre! Trabalhava na base aérea, tinha contato com americano, tinha contato com todo aquele pessoal de lá. Ele era bombeiro civil da base aérea e ele falou: “Não, Iracema, só vim ver como é que está a situação e tal”. “Ah, duvido que você veio ver como está a situação.” Aí, começamos a conversar. Ela mandou ele entrar, e dali começou a conversa, começou assim. Ele já tinha perguntado se eu tinha namorado, eu disse que não tinha e nem queria. Estava achando que já tinha dado um fora logo na entrada, nem sabia se era fora! Eu falei o que sentia.
P/1 – (risos)
R – Aí, ele foi lá, conversamos, marcou para irmos lá almoçar com eles. Eu fui com ela, mas, até então, não sabia se era namoro. Não sabia. Nisso começou, ele veio, me pediu em namoro. Dali, no outro dia, nós fomos pra igreja de novo. No outro dia, já conversamos e foi muito rápido. Foi muito rápido, porque ele falou pra mim: “Olha, você tem medo de namoro ou você tem medo de casar?”, isso fazia uns três dias que eu estava conversando com ele. “Você tem medo de namorado ou medo de casar, por causa da sua irmã? Mas eu não tenho medo de casar. Aconteceu comigo o seguinte: eu estava noivo, fiz a casa pra mim, aquela casa que você viu é minha, a da minha mãe é do lado, que está alugada” – as casas estão lá até hoje, tenho fotos delas – “então, você está agora com sua irmã, eu estou interessado, gostei do seu jeito, gostei de você, sei que você é uma família boa!”, foi ele que falou pra mim. “Eu sou assim, eu quero casar com você!” Eu falei: “Como? Você não me conhece!”, do jeito de criança, sabe? Não é como estou falando aqui.
P/1 – Sim!
R – Eu nem sabia como falava. “Você não me conhece, eu não te conheço, como você quer casar?” Dali a três dias, ele, vindo da igreja, falou: “Aquela casa que você viu é minha, aqueles móveis são meus, a minha mãe está morando comigo pra eu não ficar sozinho, que sou filho único! Mas eu quero me casar. A moça que eu ia me casar enlouqueceu, e eu acabei o casamento porque não ia me casar com uma moça louca. Ela foi para o hospital, ficou internada lá no hospício em Natal, e eu acabei o casamento faz três meses”, fazia três pra quatro meses. Os móveis estavam todos novos, que eram tudo dele. “Mas eu quero me casar e vai ser você! Vou me casar com você!” E eu fiquei... Não sei como eu fiquei! Já no outro dia, ele foi pra casa da Iracema, já falou logo pra Iracema, sem eu dizer não, até então. Porque eu não sabia o que ia dizer. Já ele contou pra mãe dele, que ia casar comigo, já contou pra Iracema: “Olha Iracema, eu vou casar com Toinha” – minha irmã me chamava de Toinha, e ele também me chamava de Toinha. Aí, falou pra minha irmã: “Olha, Anaísa, eu gostei da sua irmã e vou casar com sua irmã e não vai demorar, porque eu não tenho mais o que comprar mesmo, já está tudo comprado! É só o seu pai vir pra eu pedir a mão dela”, e eu calada, acredita? Como é que pode? Eu não tinha falado nada ainda. Não tinha falado: “Está bom, vou casar com você”, e ele já fez o casamento. Teve uma hora que Iracema até perguntou pra mim: “Você quer casar com ele?”, eu falei: “Eu quero. Eu quero casar com ele”. Foi a hora que eu falei que queria casar com ele, mas, até então, eu só ouvia as conversas de que ia casar, ia casar. Foi quando ele falou: “Então, vão ser três meses pra nós nos casarmos. Vou dar três meses. Você vai na casa do seu tio, conversa com ele, fica lá, conta a história, chama seu pai, vem pra cá”, que Isa está lá naquela casinha, né? Já foi tudo combinado. Eu ficava na Iracema, organizando meu casamento. Você pensou que casamento? Organizando meu casamento, e meu pai veio dali a uns 15 dias. Eu fiquei com minha irmã até ela melhorar, acho que fiquei lá, mas tendo contato com minha tia, com Irene. Porque eu não podia ir por causa da situação mesmo dela, não fosse nem por causa do casamento, mas por causa da situação. Já falei pra ela: “Arranjei um moço e vou casar. Já escrevi para o meu pai”, porque não tinha telefone naquela época, lá pro sertão. Porque lá fazia assim: quando estivesse em Natal, e todo mundo conhecia meu pai, porque meu pai vivia pra lá e pra cá, eu levava uma carta e entregava pro motorista dos mistos e ele entregava na casa do meu pai. Aí, eu falei: “Vou fazer uma carta para o meu pai e vou dizer, vou contar isso e dizer que ele quer que venha aqui”. Nesse entremeio, os menininhos da minha irmã estavam se criando, muito fraquinhos, muito doentinhos, e o Neto não aparecia, só mandava as coisas pra ela. E eu fazia comida, fazia tudo, porque eu sabia fazer tudo isso. Eu era nova, mas eu vivia na casa da minha tia, que fazia tudo, porque minha tia não gostava de fazer, nunca gostou. E lá eu me sentia bem, lá eu me sentia em casa, lá eu era feliz! Eu tinha uma tia, que era mulher do meu tio legítimo. Uma tia que eu penteava o cabelo dela, eu beijava o ombro dela, eu dizia que o cangote dela... “Ah, cangotinho!”, que ela era meio gordinha.
P/1 – (risos)
R – Eu dizia: “Ah, cangotinho gordo!”, eu fazia trança nela, ela me dava as coisas, ela era minha mãe! Ela era mulher do meu tio, mas era minha mãe, cuidava de mim, me dava sapato, me dava sandália, fazia tudo por mim. E, então, eu falei pra Irene, fui lá e falei: “Olha, Irene, eu estou namorando com um moço, e é um moço bom, todo mundo fala que é um moço bom, e eu vou ter que ficar lá mais um pouco”. Mas eu sempre tinha contato com ela, fiquei um mês e pouco com a minha irmã, porque ela estava naquela situação, mas vou me casar dali logo, já está tudo pronto. Minha irmã tinha um monte de enxoval, porque ela estava noiva.
P/1 – Ahã.
R – Pra casar com o Neto! E ela tinha o enxoval. Eu não tinha, porque não pensava em me casar. Então, minha irmã falou: “Todo meu enxoval eu vou dar pra você. Eu tenho pouco, mas o que eu tenho vou dar pra você”. Eram colchas de cama bordadas em ponto de cruz, que ela sabia fazer. Eram toalhas de mesa, era não sei o quê, camisola, essas coisas de casal. E ali também fui ganhando de um, de outro, rapidamente, porque ia me casar logo. E moral da história: em três meses eu estava casada. Três meses. Papai veio, viu tudo, aceitou, porque não tinha outro jeito de aceitar, ele ia casar comigo, né? Então, foi assim. E eu fiquei correndo atrás do Neto, porque ele não vinha. Eu ia lá no centro de Parnamirim, quando ele ir pra casa do tio dele, mas o pessoal do Neto, o pai, a mãe, a família, gostavam muito da minha irmã. Era quem dava apoio à minha irmã. Aí, minha irmã, dali a uns 30 dias ou mais, não me lembro mais quantos dias eram, já melhorou! O menininho morreu logo.
P/1 – Ah, faleceu!
R – É, com dois meses, o menino morreu, ficou a menininha. Aí, ela não foi no meu casamento, ela tinha vergonha dela. Ela falou: “Não vou ficar para o seu casamento”. Eu não tive ninguém no meu casamento, porque minha irmã falou: “Não sou mulher capaz de ver seu casamento”. Ela se sentia... Eu quis convencer muito, mas disseram: “Deixa ela fazer o que ela se sentir bem. Ela acha que não é uma mulher capaz de assistir seu casamento, então, deixa ela ir para a casa do sogro dela”.
P/1 – Sim.
R – Porque eles que tinham consideração por ela. Aí, ela foi com a menininha pra casa do sogro. Eu não sei que vergonha foi essa, mas ela teve vergonha de estar no meu casamento. Então, no meu casamento, não tive nenhum parente, eu só tive amigos.
P/1 – Dona Antônia, a senhora falou que antigamente não se falava sobre a intimidade do casal.
R – Não!
P/1 – E como foi descobrir?
R – Aí, em Parnamirim, eu tinha amigos. Eu tinha amigos do tempo da minha mãe. Porque tinha uma senhora, porque eu já estava pra me casar, tinha uma senhora que chamava Noca e era amiga da minha mãe em Serrinha. Esses são lugares que não são longe um do outro. E o filho dela estava trabalhando na base aérea – que isso foi no tempo da guerra! Em 45. Minha mãe morreu foi no fim da guerra, e a base aérea ainda ficou mais 10 anos em preparação de guerra, em sistema de guerra. Dando alerta para as famílias. Então, um sistema de guerra ali na base aérea. E Parnamirim é vizinha à base, é da base. A base fica aqui, e Parnamirim aqui. Só moram, na maioria, pessoas que trabalham lá. Agora já não deve mais ser assim. E, aí, do que eu estava falando?
P/1 – Dos amigos que a senhora tinha, porque eu perguntei da intimidade do casal.
R – Ah, minha irmã já tinha amigos que eram da vizinhança. Eu sabia que tinha Dona Noca, que era amiga da minha mãe, e já se prontificou: “Não, você não vai ficar na casa da Anaísa, até o seu casamento você vai ficar comigo!”, que era dentro da base aérea. Então, eu cheguei a morar três meses dentro da base aérea. Não chegou a três meses, porque um mês eu fiquei cuidando da minha irmã. Eu já fiquei com ela, ela tomou conta de mim, todo mundo me abraçou. Eu já fui aceitando, a vizinha dela que fez comigo o meu vestido de casamento. Fui à loja junto com uma vizinha da amiga da minha mãe. Já fomos, com meu marido, com minha sogra, e compramos tecido para o vestido, compramos tudo. E eu fiz, junto com essa vizinha, que era mulher de um cabo. Ali tudo... Não é como hoje que não se tem amizade! Naquela época, as pessoas tinham muita amizade um com o outro. E essa moça, que eu fiz o vestido de casamento junto com ela, era vizinha da amiga da minha mãe, onde eu estava, e ela falou: ”Eu te ajudo a fazer!”. Nós fizemos o meu vestido de casamento. E tinha assim, eu não sabia mesmo de nada. Essa moça, que era mais nova que a amiga da minha mãe, que era uma pessoa de idade, e tinha uma neta que morava com ela, chamava Maria. Ela era da minha idade, estava namorando, e eu namorando. Ela estava noiva, e eu estava noiva. Papai já sabia, minha tia e meu tio já estavam sabendo, todos os meus tios já estavam sabendo que eu ia me casar urgente, que ele queria casar rápido. E tudo bem. Aí, eu tive alguma noção de alguma coisa – eu tenho até vergonha de falar disso.
P/1 – Se a senhora não quiser falar, tudo bem!
R – Não, eu vou dizer assim. Não foi coisa demais, que ela não ia mostrar, mas eu tive vergonha quando ela pegou um livro, que esse livro o marido dela proibia ela de ver esse livro – o cabo que era marido dela. Ela falou: “Vou te mostrar um livro que eu pego escondido do meu marido”. Vocês todos aqui sabem das coisas, eu que não sabia. Se fosse hoje, eu não ia ter vergonha de contar essas coisas. “Você sabe o que vai acontecer?” Falei: “Não sei, não sei o que vai acontecer”, e eu não sabia mesmo. Se tinha filho, mas eu não entrava na curiosidade, porque moça não entrava nesse negócio de perguntar como que você teve, nada disso. Moça não tocava nesse assunto. Aí, então, ela pegou um livro: “Ninguém pode saber que estou te mostrando, mas, como você vai agora casar, pelo menos eu vou mostrar isso pra você”. Ela pegou um livro, abriu assim e me mostrou alguma coisa, vamos dizer, como ereção, alguma coisa assim. Eu falei: “Vixe! É?”. “É!” E também foi aquele momento, ela tapou aquilo de repente, e eu só fiquei com aquilo na cabeça.
P/1 – E acabou o assunto!
R – Acabou o assunto. Nada mais. Eu fui pro casamento assim, sem saber de nada. Só vi aquilo, mas não sabia de nada. Também eu tinha tido um namoradinho de infância, do tempo da minha avó, de infância, não, que eu era nova, fazia uns três anos. Tinha uns 14 anos. Meu primo! Namoradinho de primo, que avó fica ali te vigiando. Eu acho que nunca cheguei a dar nem um beijo nesse primo. E era tudo da minha família. Mas esse namoradinho não encostava em mim. Duas cadeiras aqui, e aqui, e minha avó aqui. Então, não tinha experiência de nada! E eu vi essa coisa. Aí, eu fiquei com aquilo na cabeça, mas não tinha ideia, muita certeza, não tinha ideia. Aí, me casei e foi tudo novidade pra mim, aquela situação. E vivi muito bem com meu marido, até um certo ponto. Até vir pra São Paulo, eu vivi muito bem com meu marido.
P/1 – Por que vocês vieram a São Paulo?
R – Porque ele dizia sempre, toda vez que: “Se eu for dispensado...”, porque tinham aqueles efetivos. Ele serviu a base e, depois que serviu, ele passou a ser civil. E tinha uma história de uns contratos, que eu não sei como é que é. E esse contrato, como a guerra tinha acabado, ia ficar mais um tempo e depois algumas pessoas iam embora. E ele dizia pra mim que torcia pra ser mandado embora. E era um emprego bom que ele tinha na base. Mas ele tinha esse sonho porque ele tinha um tio que morava aqui e ele tinha esse sonho de vir pra São Paulo. Ele falou: “Todo tempo que eu sair da base, eu vou pra São Paulo”, e eu não queria vir porque tinha medo de São Paulo. Eu não tinha ideia de como era São Paulo. Eu dizia: “Não, eu não quero ir”, mas naquele tempo as mulheres faziam tudo o que o homem queria, elas não tinham voz ativa. Então, eu tive a primeira filha, tive a segunda e a terceira. Acho que nós tínhamos uns cinco anos de casados. Não, eu tinha quatro pra cinco anos, porque eu tive uma atrás da outra. Eu tinha a Linda, minha filha mais velha. Aí, eu fiquei grávida, com um ano, nasceu a segunda, um ano da primeira. Uma vizinha chamou e falou: “Fala para o seu marido evitar”, e ela era crente. E eu não sabia o que era evitar! “Não, fala para o seu marido, pra você não ter outro filho tão rápido, pra ele evitar. Ele vai saber o que é isso”, isso era coisa entre os casados, os homens, não sei. Aí, eu, muito sem graça, ele chegou da base à noite e eu falei: “Sabe o que a...” – nem me lembro do nome da vizinha, que era crente da igreja dele. Ele tinha muita confiança nela, tanto que nem retrucou nada, aceitou. “Fulana falou que você evitasse pra não ter filho logo”, porque tivemos filho um atrás do outro. Com um mês e pouco de diferença, já fiquei grávida de novo. Com um ano, eu já tinha. Nove meses, com um ano, eu já tinha a segunda! Foi pouco tempo, né?
P/1 – Muito pouco tempo!
R – Aí: “minha vizinha falou que você evitasse”, mas eu falei “evitar” e sabia lá o que era evitar. Ele falou: “Ah, tá bom, eu evito”, ele concordou. Aí, ele começou a evitar (risos)! E nisso eu fiquei quase dois anos para ter a terceira, que foi Ana Maria, que veio com seis meses para cá. Eu tive a terceira, ele foi mandado embora da base, ele praticamente saiu da base, ele quis sair. Quando perguntaram qual é o que quer sair da base, que ninguém queria, ele foi o único que levantou o dedo: “Eu quero”. Ele saiu da base e, quando chegou em casa, ele falou. Porque ele nem tinha falado nada, homem não dava muita satisfação pra mulher. Nem pra mãe ele tinha falado. A mãe dele morava vizinha a mim. Ele chegou e falou: “Mãe, eu quero falar com a senhora e com Toinha”, na sala de janta assim, ele falava grossão, um homão forte, cantava! Ele falava com uma voz grossa. “Quero falar com Toinha e quero falar com a senhora.” Ele não tinha meio-termo, era sim-sim, não-não. Eu nem sabia o que era. “Olha, mãe, hoje foi o dia em que foram saber quem que quer ficar na base, e, da minha turma, eu falei que queria sair da base.” A mãe dele só faltou desmaiar. Porque foi o primeiro emprego dele, serviu ali e ali ficou como civil. E tinha uma vida muito boa. Uma vida boa, não era rico, não tinha dinheiro, mas tinha um salário bom. O pessoal da base tinha casa própria, a mãe dele tinha casa própria, tinha casa de aluguel. Eles estavam bem na vida, e estaria bem até hoje se tivesse ficado lá. Eu não podia dizer não, casada de poucos anos, né? Não tinha voz ativa pra nada. Eu não queria vir, vim chorando. Aí, ele veio na frente. Ele falou pro tio: “Olha, tio, eu aceitei ser mandado embora da base”. E o tio dele era bem influente aqui no Ipiranga. Tinha, naquele tempo, não sei se tem hoje, ele era um militar... Meu Deus, esqueci. Mas ele era bem conceituado aqui e tudo. Quando ele falou, ele sabia que tinha vontade, porque eles se comunicavam, passavam carta, porque era telegrama ou carta. Quando se queria conversar, era por carta. Então, o meu marido conversava muito com o tio por carta, ele era da... Meu Deus, quero lembrar. Aí, ele falou: “Se você quiser, pode vir que eu arranjo um emprego. Você já vem com emprego arranjado”. Só que meu marido tinha que ter um tempo pra sair da base, não podia chegar e sair. Então, tinha o tempo de ficar na base, não sei se eram três meses, alguns meses. Aí, ele fez o tempo que eles ordenaram pra ele ficar na base e ele veio embora. E eu fiquei com a mãe dele lá em Parnamirim. Nós vendemos a minha casa, a casa dele, que ele tinha feito pra casar, pra poder vir pra São Paulo. Ele já tinha vindo. Com três meses, eu vim. Aí, ele já estava empregado na Ultragaz. Realmente, o tio já tinha arranjado emprego, e ele já chegou, foi fazer entrevista, essas coisas, e já estava trabalhando. Depois de três meses, eu vim, e foi justamente que eu conciliei o mês que eu vim com a morte do Getúlio Vargas. Eu era apaixonada pelo Getúlio Vargas! (risos)
P/1 – Por quê?
R – Porque era um presidente maravilhoso para nós naquela época. Então, eu conciliei, nunca vou esquecer da minha ida porque foi na morte do Getúlio e tal.
P/1 – E como a senhora ficou sabendo que o Getúlio tinha...
R – Ah, porque lá tinha rádio, tinha tudo, né? A base aérea era ali!
P/1 – E como foi receber uma notícia de...
R – Ah, todo mundo chorou! Chorou muito, rolou muita lágrima pela morte de Getúlio. Pelo menos no Nordeste, se chorava, se falava e se chorava claramente, não se escondia a dor que se sentiu com a morte do Getúlio. E ali nós tínhamos uma coisa muito chegada ao mundo por causa da base aérea. Ali tinha americano, muito americano! Tinham pessoas de todos os estados servindo a base aérea! Era assim. Foi uma loucura o que meu marido fez, a loucura que ele fez na vida dele foi essa. Aí, tudo bem, ele veio, fiquei com minha sogra. Dali a três meses, eu vim, e ele falou: “Toinha, se você quiser trazer a sua irmã...” – a Judite, que sempre estava comigo. Aí, ela foi morar comigo, ela morava comigo quando me casei. “Traga porque aqui é muito bom.” Naquele tempo, era bom São Paulo. “Aqui é muito bom, ela arranja emprego logo.”
P/1 – Como vocês vieram pra cá?
R – Eu vim de ônibus. Ele veio de navio, e eu vim de ônibus.
P/1 – E como foi a viagem?
R – Nove dias! Com três crianças. Eu, minha sogra e minha irmã e três crianças. Só que parava. Esse ônibus em que eu vim chamava “especial”, se chamava naquele tempo, não sei se era. Mas esse ônibus, ele parava toda noite num hotel, numa pousadinha qualquer que se chamava de hotel, que não sei como que era. Chegava, entrava, tomava banho, dormia e de manhã saía. Porque tem ônibus que é direto, mas aquele nosso não. Por causa das crianças, tive que vir num ônibus especial, porque não sei. Foi opção daquela hora eu vir.
P/1 – E, quando a senhora chegou, qual foi a primeira impressão da cidade?
R – Ele tinha alugado uma casa no Ipiranga, um quarto e cozinha. Olha, eu sempre na minha vida morei numa casa enorme. Casei, morei numa casa enorme. Quando cheguei, foi uma decepção muito grande. Chorei muito! Primeiro, que eu vim porque ele veio, eu não queria vir. Nós tínhamos uma vida muito boa lá. E, quando eu cheguei, nos fundos de uma casa, um quarto que era lá nos fundos, e a cozinha separada. Eu tinha que trazer as meninas na chuva, que era tempo de frio. Eu tinha que trazer as meninas na chuva, cobertas, pra ir à cozinha. Ou, então, levar comida para as crianças no quarto. E era um quarto e cozinha, e a cozinha separada. Aí, tudo bem, ele alugou essa casa. E, quando cheguei, meu Deus! A minha sogra ficou maluca. Ficou assim: “Não posso falar nada, não sei o que fazer”. Ficou espantada, nunca nos vimos num quarto e cozinha. Tudo bem. Aí, logo, a vizinha, a dona da casa, viu que nós estávamos tão assim desajustadas, que falou assim: “Olha, vou falar uma coisa pra vocês, estou vendo que vocês não estão gostando, porque tem criança e a cozinha é longe. Então, procure um quarto que tenha ao menos a cozinha perto!”. Assim nós fizemos. Eu saía procurar. Aí, ela falou: “Não leve criança, porque, se souberem que tem criança, não alugam”. Primeiro, eu fui com criança. Aí, depois que ela me falou isso, eu fui sem criança. E encontramos um quarto e cozinha que, na época, chamava muito bom! (risos) Um quarto e cozinha muito bom. E era um quarto, uma cozinha pequena. O quarto era muito grande, a cozinha era pequena. Eu fui à casa da senhora, era uma senhora de idade. Ela não fez questão porque eu tinha filho. E tinha uma espanhola morando na frente, e eu ficava na parte de trás. Quer dizer, já não era transação muito fácil, que a gente não tinha esse costume. Aí, tinha uma área! Tinha quarto, cozinha pequena e uma área na porta da cozinha. Já meu marido falou com ela: “Não posso fechar aqui e fazer uma cozinha pequena aqui?”. Ela falou: “Pode, mas, quando o senhor sair, o senhor não pode tirar!”. “Não faz mal, quando eu sair, tudo bem”. Aí, meu marido fez aquilo lá, e nós ficamos, então, nesse quarto grande. Minha irmã, dali a um ano, já casou. Arranjou, foi trabalhar e, vizinha a ela, já tinha um moço que era do Rio Grande do Norte, o meu cunhado. Já se namoraram e, dali a um ano, minha irmã já casou com meu cunhado, já foi morar no canto dela. Ele era gerente da Salmac. E, então, dali também eu fiquei três anos nessa casinha. Quando foi um dia, meu marido chegou e falou assim: “Olha, Toinha, da Ultragaz, 25 funcionários compraram um terreno que está em Santo André e estão fazendo casa. Você quer ir ver?”. Eu sonhava com uma casa, porque aquilo pra mim não era uma casa. Mas ali, em três anos, eu fiz muita clientela de costura, muita! Eu já costurava muito, muito mesmo. Primeiro, eu comecei a pegar lá na José Paulino. Depois, quando viram que eu estava costurando e perguntavam quem fazia as roupas – e tinha roupa muito bonita, muito bem vestida. Para as meninas, cada roupa linda que eu fazia para as meninas, de organdi suíço, que se usava naquele tempo. Isso, todo mundo começou... Porque, naquele tempo, se conversava, não é como hoje. Eu falei: “Sou eu”. Pronto, não precisei nem pegar mais José Paulino. Peguei umas duas ou três vezes, e não peguei mais. Começou a aparecer roupa pra costurar, porque naquele tempo não tinha muita roupa feita, se costurava muito. Aí, pronto, eu não precisei mais sair de casa, só costurando, costurando. Nós fomos ver esse terreno, que era em Santo André, Parque Novo Oratório. Estavam construindo 26 casas, tinham 26 casas lá quando fomos ver o terreno. Você não conhece Parque Novo Oratório? Nossa, é em Santo André. Mas é um bairro lindíssimo! Bairro muito bonito. Não virou nada de casinhas, de coisa... Graças a Deus, tive sorte, porque podia ter virado até uma favela, né?
P/1 – (risos)
R – Não tenho nada contra favela, mas era pior, né? Mas virou um bairro muito bonito o Parque Novo Oratório. Aí, quando nós fomos para lá, tinham 26 casas, e algumas estavam construindo, que eram dos amigos do Cristóvão, da Ultragaz. Aí, a Ultragaz cedeu, e em um mês nós estávamos dentro da nossa casa. Um mês! Aí, nós já falamos com a mulher, nós levantamos e cobrimos três cômodos. Fiz tudo isso com as três crianças dentro de casa. Rebocamos, aumentamos a casa. Depois, a casa já estava com seis cômodos. Fiz quarto para as meninas, quarto para os meninos, e meu quarto, sala, cozinha, banheiro. Tudo fomos fazendo. Ali foi logo crescendo, ficou muito bonito. Aí, aos 44 anos, o meu marido morreu. Fazia 12 anos... Não, não fazia tudo isso que eu morava lá, não! Nem me lembro quantos anos. Nós ainda estávamos morando nessa casa dos fundos. Aí, meu marido morreu.
P/1 – Do que ele faleceu, Dona Antônia?
R – Infarto do miocárdio. Ele vivia muito doente, ele era muito estressado, muito nervoso. Ele tinha uma agitação muito forte. Ele era ótimo funcionário, pois a Ultragaz cedeu o caminhão para ele trazer para casa, para levar os funcionários que estavam morando ali. Ele era motorista da Ultragaz. Ele era muito falante, uma pessoa muito culta o meu marido. Então, ele trazia e levava os funcionários para vir para a Ultragaz e para o Parque Novo Oratório. Aí, nós fizemos a casa, e ele morreu logo, não durou muito lá. Nós ainda estávamos... Quer ver, a Débora tinha dois anos quando ele morreu.
P/1 – Nossa, muito novo!
R – A Débora tinha dois anos. Ele morreu em 22 de novembro, e a Débora fez dois anos no dia 7 de dezembro. Ele morreu. Nós fomos na casa de um amigo, e esse amigo tinha uma filha que era desquitada, muito bonita. Amigo nosso desde o Rio Grande do Norte, amigo nosso que também veio morar em São Paulo. Veio primeiro que a gente. Então, era sábado, e ele era adventista e não trabalhava no sábado. Aí, nós fomos visitar os nossos amigos do Nordeste, foi até padrinho do nosso casamento no Nordeste. E ainda ele falou no caminho para mim, brincando: “Toinha...”. Eu com a menina no meu colo – era uma Kombi que tinha nessa época. Ele trabalhava na Ultragaz? Nem me lembro! Ah, já não trabalhava mais na Ultragaz. Ele trabalhou na Ultragaz, na Lalekla, e depois comprou uma Kombi e foi trabalhar por conta. Aí, ele estava melhor, já bem, mas ele era muito nervoso. E, então, no caminho, ele falou assim: “Toinha, você vai morrer e eu vou casar com a filha da Francisca”. Como estava todo mundo na Kombi, as meninas falaram: “Pai, que é isso?”. E a filha da Francisca era desquitada, moça, jovem. Eu também era moça naquele tempo, eu tinha 37 anos e me vestia bem, tinha uma vaidade muito forte. Eu tinha muita vaidade, porque isso já vem da família. E eu falei: “Nem eu vou morrer e nem você vai casar com a filha de Francisca”. E os namorados das minhas filhas deram risada, eu já tinha duas filhas namorando. Aí, tinha só um dos namorados de minha filhas. Deram muita risada. “Pai, o senhor está doido de falar que a mãe vai morrer?”, isso nós estávamos subindo pra entrar na nossa rua. Quando ele chegou na nossa rua, que virou a Kombi pra entrar na garagem, ele só entrou e falou: “Paulinho, fecha o portão que estou passando mal”. Ele pensou que a comida lá tinha feito mal, porque ele comeu muito. Quando eles se juntavam, eles comiam muito. Ele falou: “Fecha o portão, Paulinho, que estou passando mal”. Ele desceu, veio ao banheiro rápido. Quando eu cheguei lá embaixo, ele tinha saído do banheiro e já estava na cadeira, que chamava de “cadeira dele”. Era uma cadeira que era pra ele mesmo. E ele já estava pálido, pálido, pálido, e transpirando assim. Eu falei: “Cristóvão, o que você tem?”. Ele falou: “Estou passando muito mal, me leve ao hospital”. O namorado da minha filha morava na casa de trás, nem tinha saído ainda, estava se dobrando. Falei: “Toninho, corra aqui, leve Cristóvão à Santa Casa porque ele está muito mal”. Toninho já correu. Fomos eu e meu filho, que tinha 12 anos, Paulo e o Toninho. Ele sentado na Kombi atrás, caído aqui. Quando chegou... Não sei se vocês conheceram onde tinha os elevadores em Santo André? Tinha lá, no rio! Tinha um rio com uma ponte e tal na entrada de Santo André, de Parque Novo Oratório pra cá, como quem vem de fora para dentro. Aí, eu senti que ele caiu. Já estava perto da Santa Casa, eu senti que ele se debruçou de uma vez. E ele estava só vomitando, vomitando, vomitando. E o meu filho abanando, muita falta de ar. E ele dando aquelas faltas de ar. Aquilo já era que ele não estava respirando. Já era que ele estava tendo infarto do miocárdio. Aí, quando chegamos à Santa Casa, já receberam ele na maca porque ele não andava mais. Eu considero que meu marido morreu antes de chegar à Santa Casa. Quando eu vi que ele se soltou todo em cima de mim, ele era um homão forte, eu falei: “Chama, porque ele não vai poder andar”. Já veio a coisa e levou ele. E, aí, ele morreu. Eu fiquei com meus seis filhos.
P/1 – Como foi depois?
R – Ah, depois foi muito bom. Foi muito bom, porque eu fazia só o que ele queria. As ideias não eram minhas, as ideias eram dele. As minhas ideias eram diferentes. Ele morreu, fiz o enterro bonitinho, direitinho, tudo. Não demorou muito, e eu tinha uma filha que, por causa do meu marido, ela foi embora. Eu não tinha notícia da minha filha. Esse meu marido chegou ao ponto de estranhar todo mundo dentro de casa. Ele só não batia em mim. Mas ele enjoou todos os filhos, só não maltratava os pequenos, mas as três meninas ele maltratava muito. E fazia dois meses, antes de ele morrer, que minha filha sumiu de casa, a minha filha mais velha. E eu não sabia onde minha filha estava. Eu estava num sistema muito, muito desesperada. Eu acredito até que ele sabia que era por causa dele e que isso afetou mais a doença que ele tinha no coração. Ele não suportou porque sabia que a menina não merecia isso. E dali pra frente mudou a nossa vida. Eu falei: “Bom, agora quem vai mandar aqui sou eu!”. Deixei passar uma semana, a minha filha estava sumida, eu não sabia onde ela estava. E eu juntei as duas mais velhas, todos, Débora no meu colo, Lincoln ficou aqui do meu lado, que tinha cinco anos, e Paulinho, todo mundo. Era um domingo. Eu falei: “Bom, tudo era proibido na minha casa”, ele era um crente fanático! Ele sofria muito por causa da religião. Eu falei: “Agora, na minha casa, tudo mudou! Quem vai mandar sou eu. De hoje em diante, vocês não estão proibidos a nada! Proibição não existe na minha casa, eu só quero o seguinte: sinceridade, honestidade e obediência. Só quero isso. Se vocês quiserem ir ao cinema, que é proibido vocês irem até agora, vocês digam: ‘mãe, eu vou ao cinema’!”. E bem alto assim, estou falando igual ao padre do dia, parece! Desculpa. Mas eu falei assim, na minha cozinha, nós todos em volta da mesa. Só nós, não tinha ninguém de fora, eu falei: “Agora, sou eu que mando, ninguém aqui é proibido de fazer nada, todo mundo tem a cabeça no lugar. Chega uma que foi embora, e a gente não sabe pra onde está, e serve de experiência pra vocês. Agora, aqui ninguém mais vai apanhar, todo mundo vai ter uma vida livre e, outra coisa, só quero isso: obediência. Quando você for a um lugar, vocês são proibidos de ir ao cinema até hoje” – ele não deixava ninguém sair – “hoje, vocês podem ir ao cinema se vocês quiserem ir. Hoje, se vocês quiserem ir ao aniversário de uma amiga de vocês, podem ir. Hoje, se vocês disserem que querem ir...” – naquele tempo, tinha um lugar de dançar que os jovens iam muito lá em Santo André – “... se hoje vocês quiserem ir em tal lugar, vocês digam: ‘mãe, eu vou dançar’, e vá dançar! Eu só quero que diga o que vai fazer e nada mais. É o que eu tenho pra dizer pra vocês. Só quero que diga o que está fazendo, que seja sincero com sua mãe. Seja obediente, porque eu não vou exigir nada de vocês!”, foi assim.
P/1 – E os seus filhos? Como reagiram?
R – Não deram uma palavra, não me lembro que nenhum falou nada. O Paulo tinha 12 anos, o Lincoln tinha cinco, e a Débora tinha dois. Aí, eu tinha a Ana Maria com 15 anos e a Ester parece que tinha 18. E a que sumiu tinha 19.
P/1 – Que se chama...
R – Arlinda.
P/1 – E você a reencontrou?
R – Hoje, ela está muito bem sucedida! Nossa. Ela é doutora da universidade, fez até doutorado, pós-doutorada, aposentada da Universidade Federal do Mato Grosso.
P/1 – E como foi esse reencontro?
R – Ah, encontrei depois de sete anos!
P/1 – Sete anos!
R – Sim, ainda durou muito. Depois de sete anos. Aí, então, mudou toda nossa vida. Nós morávamos na casa de baixo, eu tinha uma Kombi que era dele, as vizinhas ainda falaram pra mim assim: “Dona Antônia, a senhora vai fazer o quê com a Kombi? Vai passear agora muito com os seus filhos, né?”. Eu digo: “Vou passear muito!”. Aí, eu tinha muita amizade ali no Parque Novo Oratório, porque ele era um homem muito honesto, um homem bom, um homem que ajudava as pessoas, um homem trabalhador, ganhava bem. E eu costurava muito. Costurava muito, muito, muito, muito. Eu levantava às cinco horas da manhã, podia estar frio, eu me enrolava com a coberta e ia pra minha máquina costurar. E me deitava quando ele chegava da Ultragaz à meia-noite. Eu dormia muito pouco. E costurava muito, e com todos esses filhos pequenos. Por isso que eu digo: mulher não deixa de trabalhar em casa por causa de filho, não. E minha casa era limpa e é limpa até hoje. Eu sou velha, mas minha casa não parece casa de criança. Tenho prazer que vocês vão no meu apartamento, está convidado pra ir um dia tomar um café comigo.
P/1 – (risos)
R – E, aí, eu falei: “Primeira coisa, eu não sou mais obrigada a ir numa igreja, porque cada um tem o seu pensamento”. Se você é evangélica é evangélica, agora, se você é obrigada a ser evangélica é outra coisa! Eu respeito muito os evangélicos, eu gosto da igreja. Ainda agora, quando eu quero ir, eu vou à igreja evangélica, mas vou sem responsabilidade! E eu falei: “Outra coisa, vocês eram obrigados a ir à igreja” – ninguém queria ir à igreja, se ia obrigado, se ia porque não podia dizer não, entende? Ninguém retrucava com ele, porque ele não aceitava. Mas ele melhorou muito depois que essa minha filha foi embora. Fazia dois meses, e esses dois meses foram suaves. Aí, eu falei: “Já disse e tudo bem”. Acabaram os meus problemas, eu não tive problema com filho. Aí, eu tinha a casa da frente, eu tinha a Kombi. Eu vendi a Kombi e falei: “Vou fazer uma casa pra mim na frente”. Meu sonho era uma casa na frente. E ele não queria, ele não queria casa na frente. Tinha uma coisa lá que ele tinha feito pra pôr não sei o quê. E nunca fez nada. Um tal de um salãozinho. E eu digo: “Vixe, esse salão vai já abaixo”. Não demorou muito, eu falei com um amigo dele, que trabalhava na Ultragaz. Ultragaz não, já trabalhava em outro serviço. Eu falei para o Zé, que era da religião dele, e ele foi quem levou esse amigo para a religião. Eu falei para o Zé, Zé Torres: “Zé, eu só quero que você...” – ele tinha um patrão que ele trabalhava em particular, eu falei pra ele: “Zé, só quero que você venda essa Kombi, que eu quero fazer um negócio com o dinheiro dessa Kombi”. O Zé chegou lá onde ele trabalhava, que os dois trabalhavam juntos, lá do Seu Celso, na Macropel, e falou assim, deu a notícia: “Cristóvão morreu”. Ele telefonou e Seu Celso já sabia que Cristóvão tinha morrido de repente, com infarto do miocárdio. Aí, Seu Celso mandou me chamar. Falou: “Fale pra Dona Antônia vir aqui”, eu fui. Ele devia 700 naquele tempo, ele tinha reformado, deixado a Kombi novinha! Ainda bem que ele deixou a Kombi novinha, novinha, novinha, motor novo, tudo novo! Eu fui lá, falei com Seu Celso, ele me recebeu no escritório dele muito bem, ele era uma pessoa muito boa. Ele era maçom, porque meus filhos são maçons hoje, e ele era maçom. Nem sabia se ele era maçom, mas depois fiquei sabendo. Mas eu vi que ele me deu um trato muito fino, me deu cafezinho, me deu tudo. Um dono de uma grande firma fez isso comigo. E o que eu ia fazer com a Kombi? Eu falei “Seu Celso, é o seguinte: a Kombi está nova, Cristóvão deve 700...” – daquele tempo, não sei o que significa hoje – “700 cruzeiros para o senhor. E é o seguinte: eu vou vender a Kombi e pagar seus 700 cruzeiros e o restinho... Ela está nova, vale um dinheiro bom, o resto eu tenho um sonho na minha vida!”. Ele falou: “Que sonho?”. “Fazer uma casa na frente pra mim, nem que seja uma casa pequena. Uma casa com três cômodos e um banheiro já está bom pra mim. Eu moro numa de seis, mas eu quero uma casa na frente.” Ele falou: “Olha aqui, primeira coisa, a Kombi é da senhora. Eu vou pedir para o Zé Torres levar em todos os lugares e saber o preço que vale a sua Kombi. E eu vou comprar, pra senhora não vender pra ninguém por pouco mais ou nada!”. Falou assim pra mim! “E outra coisa, seu marido, Cristóvão, eu gostava muito dele” – ele já trabalhava com ele desde muitos anos – “eu gostava muito de Cristóvão, ele era grosseiro e tudo, mas pra trabalhar ele era muito bom, me respeitava muito, e Cristóvão não me deve nada”. Falei: “Mas ele deve 700 cruzeiros para o senhor, eu vou pagar”. “Não, Cristóvão não me deve nada, e eu vou comprar sua Kombi pra senhora não vender por pouco mais ou nada.” Essas palavras assim, não sei nem exatamente, pouco mais ou nada, mas eu ouvi dele. Aí, nossa! Falou: “Paulinho tem quantos anos?”. Falei: “Tem 12, vai fazer 13”. “Pergunte pra ele se ele quer vir ficar no meu escritório, servindo cafezinho para as meninas”, para as meninas que trabalhavam pra ele, que era na Macropel, uma fábrica de papel. Eu falei: “Por quê?". Paulinho sempre estava pra lá, e ele conhecia muito o meu filho, que estava com 12 anos. “E eu conheço Paulinho, é um menino bom, ele passa pra estudar à noite, e eu vou dar um servicinho bem levezinho aqui pra ele, servir café para as meninas. Pergunte se ele quer, já lhe ajuda! O salário dele já vai lhe ajudar.” Eu falei: “Tá bom, Seu Celso”. Não tinha muito o que falar pra um homem desse, tinha? Eu vim, falei com o Zé Torres: “Zé, procura saber quanto custa minha Kombi?”. Zé Torres levou e procurou, e Seu Celso... “Você leva e seu Celso vai comprar”, que ele trabalhava lá com Seu Celso, era amigo de Cristóvão. Amigo nosso, da família toda. Ele foi, viu quanto era a Kombi, Seu Celso pagou, não quis receber o dinheiro que devia, fiquei com o dinheiro todo. Paulinho aceitou o trabalho, foi para a noite, foi trabalhar. Lá no Parque Novo Oratório, é bem pertinho da minha casa onde tem a escola pública. Paulinho já estudou à noite e já começou a trabalhar com Seu Celso. E Seu Celso já... O que eu quero falar agora? Estou tão confusa!
P/1 – (risos)
R – E, então, peguei esse dinheiro da Kombi, não fui gastar. Já fui à casa de construção, depósito de construção, que era muito amigo nosso, lá mesmo. Nossa, era amigo demais, Seu Antônio. Eu falei: “Seu Antônio, vim aqui conversar com o senhor e com Dona Leonor”. Ele falou: “O que é, Dona Antônia?”. “Eu vendi a Kombi, eu tenho tanto, tenho que tirar tanto pro pedreiro.” Já tinha conversado com o pedreiro, que era pai do meu genro. Ele falou: “Levantar eu levanto, só não faço acabamento”. E eu falei: “Eu vendi a Kombi para o patrão do meu marido e tenho dinheiro”. Mas esse pessoal era gente de muita confiança. Ainda são hoje muito de confiança os donos desse depósito. E conhecia a gente demais. Tudo compramos lá para fazer a casa. “E eu quero fazer uma casa na frente, nem que eu faça três cômodos e vá terminando devagar. Com esse dinheiro, eu quero empregar para passar para frente e alugar.” Eu já pensava em alugar a casa dos fundos, que era muito grande. Eu ia dividir em duas e alugava pra casal, separadamente, como está até hoje. “Eu faço uma casa na frente e vou morar na frente. Receber meus aluguéis e a pensão do meu marido. E as meninas trabalham e vou viver bem.” Ele falou: “Conte comigo”. E Dona Leonor também: “Conte comigo. A senhora compre o que precisar e pague como a senhora puder”. E eu falava: “Todo mês eu pago, todo mês eu pago um pouco”. E eu fiz a minha casa. Fiz essa casa pequena, três cômodos, depois já aumentei e fiz uma cozinha grande. No lugar que era a cozinha, eu já fiz o quarto, fiz uma casa de dois quartos, sala, cozinha, banheiro e área de serviço e tudo. Fiz essa casa. Não foi nada, eu já estava bem, meus filhos casaram, as maiores. Aí, eu disse: “Agora eu vou fazer a minha casa! A casa que eu quero morrer nela”. Eu pus essa casa abaixo. Eu aluguei um apartamento aqui, onde a Débora morava, na Mauricio Jacquey, onde minha filha morava. O outro já estava casado, já tinha uma imobiliária. Já estava todo mundo bem de vida, e a Débora já lecionava, já era professora, já tinha feito faculdade, já tinha feito tudo, já era funcionária pública. E eu disse: “Agora é a minha vez, eu vou fazer a minha casa, a casa que eu quero”. Aí, meu filho falou: “O quê?”. O meu filho mais velho que tinha imobiliária, que mora nos Estados Unidos hoje. “O que a senhora está falando, mãe?” “Vim te avisar que vou colocar a casa abaixo, já vi preço de tudo, já vi o pedreiro, já vi tudo. Vou derrubar uma parte da minha casa.” Porque a casa que eu fiz tinha coluna, tinha tudo, porque eu pensava em fazer um sobrado ali. E ele: “Mãe, o que a senhora vai fazer?”. E era um metro quase abaixo da rua, subia um degrauzinho pra rua. “Vou fazer a minha casa como eu quero, da altura da rua.” “Não acredito! Aquela casa todinha a senhora vai...” “Sim, vou, já está tudo certo.” Quando ele chegou à minha casa, os pedreiros foram pôr abaixo, destelharam tudo, arrancaram onde puderam pra fazer, pra poder levantar, pra poder ficar mais alta, pra ficar da altura da rua. E meu filho chegou em casa, olhando para o céu assim... Eu vim morar aqui, trouxe meus móveis perto da Débora e ia pra lá todo dia, todo dia. Aí, meu filho chegou, entrou dentro da casa e falou: “Mãe, o que a senhora sente olhando dentro da sua casa lá para o céu?”. Eu falei: “Eu não sinto nada porque eu sei que Deus vai me dar a casa que eu quero!”. Aí, eu fiz uma casa da altura da rua, como eu queria, porque a minha ficava lá embaixo, uma casinha acanhada, feia, sem futuro. Eu fiz minha casa da altura da rua, fiz uma sala de quatro por sete de largura, uma sala enorme. Depois, você mede quanto é quatro por sete. Fiz uma sala de televisão, fiz dois dormitórios, fiz uma sacada em cima, que ela era meio alta, fiz os dormitórios e fiz uma sacada embaixo. Minha casa tinha tudo o que eu queria! Deixei ela bonita. Eu tenho foto dela, não está aqui, não. Mas deixei a minha casa muito bonita. Fiz uma festa no primeiro Natal que eu estava dentro dela.
P/1 – Teve roupa nova nesse Natal?
R – Tudo! Roupa nova para o Natal eu faço todo ano, não é nem novidade (risos). Aí, o que aconteceu? Meus filhos foram para os Estados Unidos. Primeiro, foi a Ester, depois foi Ana Maria e depois o Paulo. Quando Paulo foi, que morava mais perto, ficamos só eu, Lincoln e Débora. A Débora casada, morando aqui. O Lincoln casou e foi morar onde mora até hoje, na entrada de Santo André com Mauá, mora ali, bem no comecinho. E eu falei: “Agora, estou sozinha nessa casa, vou fazer nela o que eu quero!”. Aí, começou a refazer a casa. Meu filho ainda estava aqui, já estava se preparando. Não estava falando ainda em ir, as duas que tinham ido. Depois, eu fiz a minha casa, deixei ela bonita. E, quando eu estava sozinha na minha casa, bem bonita, já muito tempo, acho que fiquei seis ou sete anos ainda morando lá, ou mais, nessa casa nova que eu fiz. Aí, meu filho... Teve um assalto, meu filho já tinha tido três carros roubados, três carros zero. Ele só comprava carro importado, três carros importados, chamava muita atenção. Ele tinha uma imobiliária bem sucedida, ele trabalhava com o Lincoln, o meu filho mais novo. Aí, ele foi sequestrado! Ficou com os sequestradores por um tempo. Quando ele conseguiu se livrar deles, que eu nem me lembro mais o que aconteceu, eu sei que ele conseguiu se livrar. Levaram primeiro os carros, levaram três carros do meu filho, da porta da imobiliária, e depois levaram meu filho com o carro. Levaram meu filho pra Mauá. Quando chegou em Mauá, meu filho pediu pra eles: “Eu só quero que vocês me deixem, pode levar esse carro. Isso não me incomoda”. E ele disse: “Não, vou te levar lá pro matadouro” – como é que eles chamam? Tem mesmo esse negócio em que eles levam as pessoas e matam lá. Quando meu filho viu que eles iam levar mesmo, meu filho conversando com eles: “Não, leva o carro, me deixa, o carro pra mim não é nada, eu compro outro! Não sei o quê”. Meu filho querendo convencer eles: “Vocês têm as famílias de vocês, não vão me matar e tal”. Não, meu filho estava com o caminhão grande, não era com o carro dessa vez. Quando sequestraram, era com o caminhão grande. Meu filho já tinha uma empresa também, de transporte de caminhão. E ele não estava sabendo dirigir. Aí, meu filho: “Passe você, você não está sabendo dirigir, deixa eu dirigir”. Estava vendo que estava com dificuldade, era um caminhão muito grande, e o ladrão, o menino, não estava sabendo dirigir o caminhão, estava pulando muito. Meu filho falou, teve uma ideia: “Vou pular desse caminhão”. Com muito custo, ele conseguiu dirigir, e o que estava dirigindo ficou no meio. Meu filho ficou na porta, mas meu filho planejou: “Nessa estrada, vou pular desse carro”. Ainda tinha muita casa, estava já pra sair meu filho, quando ele pulou pra lá, não deu tempo. Meu filho abriu a porta e pulou pra fora com o carro funcionando já, porque meu filho deixou eles seguirem, porque, se estivesse parado, eles vinham pegar meu filho! Meu filho pulou. Quando o caminhão começou a andar, meu filho pulou, se machucou bastante, foi para o hospital. Meu filho gritou, e eles foram embora não sei pra onde. O carro, meu filho até hoje não achou. Não! Esse carro eles deixaram lá na frente! Esse caminhão, eles deixaram lá na frente. Os carros que não deixaram. Aí, o meu filho começou a gritar, pedindo socorro. Apareceu alguém, ele pediu pra levar ao hospital, acho que já era uma hora, meia-noite, era tarde da noite. Meu filho tinha ido levar uma caçamba lá, que o motorista não podia, o filho estava doente, e meu filho: “Depois que eu fechar a imobiliária, eu levo. Vá cuidar do seu filho”, foi assim. Levaram ele pra Santa Casa, meu filho todo machucado! Meu filho se machucou muito porque se preparou pra cair, sabia que ele ia cair com o caminhão funcionando. Quando foi no outro dia de manhã, ligou pra imobiliária, nós já procurando meu filho, e o meu filho estava no hospital. Depois disso, meu filho foi para os Estados Unidos, já tinha duas irmãs lá, já tinha um filho estudando. O filho mais velho dele mandou ele escolher: “Pai, eu estou aqui sem sossego, vendo tudo isso que está acontecendo com o senhor. Então, ou o senhor vem pra cá ou eu vou embora”. Ele estava estudando lá, minha nora já tinha ido lá e já conhecia e já queria mesmo ir morar lá. Meu filho que não queria, porque tinha as coisas dele aqui, tinha casa, tinha imobiliária, tinha tudo lá dando certo, a companhia de caminhão. Então, meu filho falou: “Vou abandonar tudo, vou vender, me dê seis meses”. “Não, não dou. Seis meses é muito de agonia pra eu ficar aqui.” “Mas eu tenho que ficar seis meses porque tenho os clientes. Dos carros desfazia rápido, e as casas fechavam, mas eu tenho que acertar os clientes da imobiliária” – porque ele tinha muita clientela! Ele vendia muito bem. Meu filho é uma pessoa muito boa, muito carismática, é boa mesmo. Meu filho é bom de coração mesmo. Então, meu filho falou: “Não, agora eu vou embora”. Aí, meu filho vendeu o caminhão, vendeu o sítio que tinha, deixou a casa fechada, fechou a imobiliária. Mas depois que falou com todos os clientes, que deixou todas as coisas em ordem. Ainda levou quatro ou cinco meses. Com seis meses, meu filho foi embora. Está lá até hoje, está muito bem, já é cidadão americano, pegou o green card com sete anos que estava. Com dez anos ele pegou o green card. E agora todos já são cidadãos americanos meus filhos, graças a Deus.
P/1 – Dona Antônia, a gente precisa encerrar.
R – É, eu acabei!
P/1 – (risos)
R – Agora é daqui pra frente!
P/1 – Tudo bem se eu fizer mais duas perguntas só?
R – Sim.
P/1 – Não sei se a senhora quer contar mais alguma história que a senhora queira registrar.
R – Como é que você guarda isso?
P/1 –Guardo o quê?
R – O que eu deixei pra trás que você vai me perguntar?
P/1 – Como assim?
R – Você não falou que vai me perguntar duas coisas?
P/1 – Sim!
R – E você guarda na cabeça?
P/1 – Sim! (risos)
R – Nossa Senhora, é jovem mesmo, né? Como é bom ser jovem! (risos) Sim, fale.
P/1 – Antes dessas duas perguntas, tem mais alguma história que a senhora queira registrar?
R – Não, não. Que eu me lembre só.
P/1 – Então, a primeira pergunta é: como a senhora se sentiu contando sua história pra gente?
R – Isso é uma história que meus filhos sabem, porque eu vivo falando na minha história. E quando a minha filha falou assim: “Mãe, eu quero que a senhora conte”. Porque um dia eu sei que vou morrer. Já estou com 85 anos, vou fazer agora dia 13 de julho, vou fazer 85 anos. E, se eles querem essa história, não esquecer a minha história, quando minha filha falou, eu disse: “Eu vou, com muita satisfação”. Estou feliz de estar aqui. Estou muito à vontade, vocês que me desculpem a minha vontade do jeito que estou aqui! (risos) Porque sei que não me comportei tão bem, falei alto! (risos)
P/1 – Foi muito bom mesmo! E a última pergunta é: quais são os sonhos da senhora hoje?
R – Meu Deus! (risos) Espera aí, eu não tenho mais tanto sonho assim, não! Bom, eu só quero que Deus me dê... Eu sei que não vou chegar a 90 ou 100 ou até quando eu vou, né? Mas só quero viajar, quero ver meus filhos felizes! Isso é a primeira coisa, ver meus filhos felizes, tudo organizado no seu cantinho, isso é a principal coisa. E o que eu tiver que viajar, eu quero viajar. Eu já fui a alguns países, já fui ao Canadá, já fui ao Uruguai, já fui nesse país que o povo faz compras, que eu não gostei, que achei sujo!
P/1 – Paraguai?
R – Paraguai achei horrível, em vista dos outros que eu fui.
P/1 – (risos) Muito bom!
R – Aos Estados Unidos, eu já fui 14 vezes!
P/1 – Nossa!
R – Agora no fim do ano eu vou novamente, se Deus quiser, se eu estiver bem, eu vou. Agora, estou parcelando mais a ida, porque meus filhos estão vindo todos. Agora, eles já podem sair, até morar fora se quiserem e voltar. Já não tem mais empecilho nenhum, porque quem tem o green card não pode ficar seis meses lá, tem que vir embora. E também quem tem o green card não pode ficar seis meses fora do país, porque perde o green card. Então, eles vinham muito pouco, depois que receberam o green card, eles trabalhando, fazendo a vida deles. Mas agora já são cidadãos americanos. As minhas filhas já são cidadãs americanas, e os filhos deles todos já são. Então, meus netos, tudo americaninho já! Então, não tenho mais muita coisa, não. Eu quero saúde. Se Deus me perguntar se eu quero viver, eu quero viver até os 90 e não sei quantos anos! Quero passear ainda um pouco, eu quero passear um pouco, eu gosto de passear, eu gosto de viver! Eu gosto de me vestir bem, eu gosto de ir ao cinema, eu gosto de ir ao teatro. Tudo isso eu gosto de ir, adoro. Então, é isso.
P/1 – Então, tá, Dona Antônia. Em nome do Museu da Pessoa, muito obrigada por ter vindo hoje contar sua história pra gente.
R – Tá, desculpe se eu não soube contar, né? Se errei o português várias vezes...
P/1 – Foi ótimo, mesmo. Muito obrigada.
R – Eu fiz com muito prazer, é a minha historia e não me envergonho dela. Até um prazer contar minha história.
P/1 – Muito obrigada.
R – De nada. Ah, e também não me casei mais, hein?
P/1 – (risos)
R – Isso eu não falei, espera aí! Isso é importante. Não me casei, nunca namorei depois que fiquei viúva, nem por um instantinho. Nunca peguei nem na mão de um homem pra namorar, nada! Encerrei. Encerrei! Isso tem que ficar escrito, hein? Porque é verdade. Fiquei viúva com 37 anos, nunca quis namorado, nunca quis ninguém, nem pegar na mão de um homem eu não quis mais, em situação de namoro. Pronto! Tá encerrado. Agora eu encerrei.
P/1 – (risos)
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