Projeto Conte Sua História - SESC
Depoimento de Patrícia Freire de Almeida
Código: PSC_HV023
Revisado por Fernanda Regina Ferreira
P/1 - Patrícia, primeiro me fala onde você nasceu.
R - Eu nasci no hospital São Cristóvão, na Mooca, Zona Leste de São Paulo.
P/1 - A Márcia costuma falar que você não precisa esperar as perguntas. Se você quiser, ou vier aparecendo as coisas, você pode ir falando. Seu nome completo e onde você nasceu.
R - Meu nome completo é Patrícia Freire de Almeida, eu nasci no hospital São Cristóvão, na Mooca, em São Paulo. Sou filha de pais nordestinos que vieram para cá com meus avós, se eu não me engano na década de 50, 60, mais ou menos. Acho que foram várias fases de vinda da família. Meus pais se conheceram aqui em São Paulo, mas ambos vieram de Pernambuco, de regiões diferentes, e quando chegam aqui, se encontram, se casam e vão formar a sua família. Sou a segunda de uma família de cinco filhos, nasci em 83, na década de 80, 10 do junho de 1983. Quando minha família veio para cá, parte da família da minha mãe veio em um período, minha avó estava com problema de catarata na época, ela precisava fazer uma operação. Ela vem para São Paulo porque sabia que aqui tinha estrutura para fazer essa operação, e faz aqui. E depois, meu avô, esposo dela na época, vem para trabalhar. Eles ficam na zona leste já, na região do bairro Iguatemi, que é um pouco antes de chegar a cidade de Tiradentes. Acho que é isso. Minha avó teve 12 filhos, nove vingaram, e desses nove uma parte grande veio também com o meu avô para trabalhar. Minha mãe conta muito isso, talvez eu esqueça algumas coisas, mas ela conta que eles sempre viveram em uma fazenda, lá em Pernambuco. A cidade se chamava Canhotinho, era próxima de Garanhões, onde meu pai também nasceu, morou muito tempo, e também veio para cá para trabalhar uma época. Mas falando da família da minha mãe, foi isso. A fazenda onde eles moravam não era deles, o que eles produziam, uma parte passava para os proprietários, até o dia em que o proprietário parou com… segundo minha mãe fala… como eles falam "virou tudo cana de açúcar". Depois, as propriedades são vendidas e eles são obrigados a sair, em busca de trabalho. Minha avó já tinha tido a experiência de vir aqui por conta da catarata, por isso que vem minha família para cá trabalhar, meus avós e meus tios. A família da minha mãe, de mulheres era apenas ela e minha tia Isabel. Era uma família, imagina, de nove homens, aliás, de 12 pessoas, alguns faleceram, não sobreviveram, mas só tinha duas mulheres. Minha mãe é uma das mais novas. E quando vem para cá, ela estudou na escola que inclusive depois eu vou estudar, no Jardim Iguatemi, vai se relacionando, crescendo, etc. Aos 15 anos conhece meu pai, uma coisa meio arranjada, eles não admitem, mas é um pouco isso, porque minha mãe já estava ficando mocinha, precisava arrumar alguém para ela. Aí nessas, o meu pai trabalhava na mesma empresa que meu avô, e falou: “tem um cara legal lá, o seu José”. Aí foi que se aproximaram e casaram. Ela já era costureira, trabalhava com costura, minha avó também, mas era uma costura mais por encomenda. Chegava alguém, arrumava calça, fazia roupa para a família toda, era isso. Minha mãe casou muito nova, ela tinha 15 anos. Meu pai já era mais velho, a diferença entre eles, se eu não me engano, é 15 anos. Mas meu pai já tinha vindo para cá várias vezes, ele já morava em uma pensão na região do Ipiranga, têm várias fotos dele de pose em frente ao museu do Ipiranga. E ele circulava muito por ali, cozinheiro, trabalhava na cozinha, veio para cá para trabalhar também. Da parte da família, ele é filho único até onde se sabe, porque ele não conheceu o pai dele, ele foi conhecer já no finalzinho da vida do pai, porque muito por acaso ele consegue ter um contato com uma pessoa que conhecia o pai dele. Nessa aproximação, um pouco tempo depois ele falece, meu avô por aprte de pai. Meu pai era filho único, e quando vem para cá para São Paulo, veio ele e minha avó apenas. Meu pai já trabalhava na cozinha da mesma empresa que meu avô, pai da minha mãe, e foi nessa que eles se conheceram, se arranjaram e foram constituir a família deles. No momento, eles vão morar no Jardim Iguatemi, mas depois se mudam, e como o meu pai trabalhava no Centro, ficava muito tempo para chegar do trabalho. Então, fizeram de tudo para morar em um bairro mais próximo da região central. Foram morar ali onde eu passei a minha infância e tenho mais recordação, na região de… Como se chama? Bairro São Lucas. Vão morar em outras casas, mas que eu me lembre mais fortemente é no São Lucas. Eles vão ter cinco filhos, como eu falei, eu sou a segunda mais velha, então foi uma escadinha, um atrás do outro, minha irmã mais velha nasceu em 82, depois eu em 83, outros dois anos depois, enfim. São três mulheres e dois homens. Os mais novos são os homens. Como que era isso? A gente vai morar em casa de aluguel, porque é década de 80, inflação pegando, pós abertura política, está um arranjo social ainda muito forte, ainda era isso de pouco trabalho e o que tinha se apegava com toda força para não perder, era aquele medo de investir muita coisa. Mas ao mesmo tempo, eu lembro que uma época meu pai começou a comprar coisas em casa, enceradeira, batedeira, começou a comprar umas "trecaiadas" que quase não usava… mas enfim, é uma coisa que eu lembrei agora e depois eu vejo onde liga do ponto de vista econômico do Brasil. A gente pagava aluguel, minha mãe trabalhava em oficina de costura, e meu pai trabalhava em restaurantes na região central. Na época, eu acho que ele já trabalhava no Itaú, um restaurante interno que tinha relacionado ao banco. Ele trabalhava em restaurantes industriais. O que acontecia conosco? A gente ficava em casa, todos novinhos, nós nunca tivemos alguém que cuidasse da gente, era um cuidando do outro. Eu tinha, deixa eu ver, seis, sete anos, e apesar de eu ser a segunda mais velha, a minha irmã mais velha, eu cuidava mais dela do que tudo, porque ela era muito terrível, a Michele era difícil, era muito brincalhona. Então, esse senso de responsabilidade, de cuidar um do outro, eu já tive que ter de imediato. Minha mãe saía para o trabalho e falava: “cuida do seu irmão”. Já tinha depositado essa responsabilidade mais para cima de mim, porque minha mãe já percebia que a Michele era a mesma coisa de não dizer nada. Nesse período, criança, então eles saíam, a gente ia para a rua, ela não sabia, deixava a porta fechada, mas nós descobríamos onde estava a chave e descíamos. A gente morava em uma vilinha, eram várias casas de aluguel, uma área social, então tinha um portão que dividia para a rua. Nós morávamos em uma rua chamada Santo Antônio do Inca, que era próximo da escola onde eu morava, que era Marechal Mascarenhas de Morais, que fiz o pré e o ensino fundamental eu e minhas irmãs, mas a gente descia para a rua, brincava o dia todo, criança é bem sapeca, a gente jogava bola, brincava de tudo. Tinha uma vizinhança que tinha molecada, era uma coisa muito legal. Tinha um vizinho que tinha tartaruga em casa, a gente ia ver. As pessoas tinham alguns animais, era interessante. Eu lembro que tinha um com louro, outro que tinha um quintal um pouco maior, a vizinha deixava a gente brincar e depois sair, a gente circulava nas casas das outras pessoas. Era interessante isso. E quando estava quase no horário da minha mãe chegar, a gente corria para casa, tomava um banho rapidinho, arrumava a casa mais ou menos porque minha mãe ia chegar. Porque minha mãe era muito… como posso dizer? Muito rígida. Meu pai já era todo amor. Meu pai já chegava muito cansado, muito a noite, mais avançada a hora, e… Já chegava em casa, sempre ajudou muito na questão dos afazeres domésticos, então, ele lavava louça, fazia de tudo. Essa questão do ofício dele como cozinheiro nunca impediu ele de fazer nada em casa, lavava roupa... Essa coisa de trabalho de homem e trabalho de mulher…. meu pai fazia absolutamente tudo, lavava fralda. E a minha mãe também trabalhava muito fora. Só que a minha mãe tinha uma relação com a gente muito difícil, e eu até entendia, porque ela era uma mulher que se casou muito nova, eu percebia sempre que ela tinha uma coisa que deixou de fazer por ter casado muito nova, e teve de cara muitos filhos. Então, talvez para ela tenha sido uma coisa muito frustrante, e acho que pegou muito em depressão também. Então, ela violentava muito a gente. Difícil não falar, daqui a pouco passa. Devido essas questões todas do momento da minha mãe, dessas questões dela ter casado muito nova, a gente percebia uma frustração muito grande nela, ela caía em depressão e batia muito em nós. Era uma questão de violência doméstica muito forte. Principalmente a minha irmã mais nova. E eu convivi muito tempo com essa situação. Só que também tinha momentos que a gente percebia muito nitidamente que ela pedia desculpa, muito triste também por ter feito algumas coisas. Tentando superar aquilo, meu pai conversava com ela. Nós percebíamos que era uma fase dela muito complicada. Mas aquilo marcou de alguma maneira a gente do ponto de vista da tristeza, do ponto de vista de que não era uma época muito fácil, mas não foi uma coisa que pegou. Depois disso, nós pagávamos aluguel, tinha uma questão também de correria com trabalho, falta de um monte de coisa… Teve uma fase que a coisa melhorou um pouquinho, porque eu estudava na escola Marechal Mascarenhas de Morais. Eu ia falar na questão da mudança do meu pai, mas depois eu falo disso, porque acho que a questão da escola é interessante, porque essa escola que eu estudei era incrível. Era uma escola pública, era resquício ainda de um período da década de 80. Eu lembro que tinha muito professor que era muito PETISTA, eram muito aguerridos com a questão da educação. Não escondiam essa bandeira política, eles falavam abertamente. Eu era pequenininha, não entendia muito bem, mas minha mãe falava: “os professores de novo falando de política”? Eu lembro que ela ia nas reuniões comentando isso, mas eu acho que talvez por isso preservou uma estrutura mínima de uma boa educação na escola.
P/1 - Patrícia, você se lembra da escola, como era o espaço?
R - Lembro totalmente. Eu lembro cada detalhe. A sala de aula era piso de madeira, eram escolas que tinham umas salas amplas, depois eu fui retornar à escola novamente e mudou bastante. Mas as salas eram amplas, a área do refeitório era enorme, a gente percebia um cuidado com a escola. Tinha muitos profissionais trabalhando, tinha dentista na escola. Os professores eram ótimos. Eu tive uma professora de primário que me alfabetizou e alfabetizou minha irmã, Arlene, era uma professora negra, nordestina, porreta, que tinha uma relação muito forte com nós todos, brincava, era bem para cima. O lugar onde eu mais gostava na escola era a sala de leitura, a sala de leitura era A sala. Ela era colorida, tinha livros, alguns quadros pintados de lápis de cor, eu ficava olhando horas e horas, eu gostava de ver esses detalhamentos. Eles mesmos decoravam, eram professores que tinham um cuidado estético muito grande, eu achava incrível. Aquilo ali me formou também, porque elas estimulavam muito a leitura. A professora Aida, que era a professora da sala de leitura, ela parecia a fada madrinha das histórias. Falava calmamente, era de um nível difícil de achar, eu fui privilegiada nesse sentido. Como eu estava em um bairro que eu diria que tinha muitas pessoas com um poder aquisitivo um pouco melhor, eu convivia com famílias que tinham já uma certa estrutura. Minhas colegas falavam de ter viajado, de ter ido para a praia. Eu ainda não tinha essa situação, mas ouvia e achava super máximo. Isso foi até a terceira, acho que até quarta série. Aí, foi quando eu cheguei em casa e recebi a notícia de que a gente ia se mudar. Nós íamos para um bairro mais a leste, mais para a periferia. Despedimos da sala, da escola. Aí falaram: “a gente vai para lá porque vai sair do aluguel”. A gente vai morar na casa no mesmo terreno da minha avó. Como eu falei, minha avó já veio para São Paulo e tinha uma casa no Iguatemi, então tinha lá uma casa vaga. Nós íamos para lá. Eu falei: oba, a gente vai sair do aluguel, vai desafogar um pouco. Minha mãe estava contente, foi uma época que ela estava muito contente e meu pai também, só que para ele ia ser mais difícil, porque era mais tempo de estrada todo dia para ir para o trabalho, e ela ia ter que se arranjar com outros trabalhos. Ela estava inclusive pensando em formar uma oficina de costura. Okay, até aí tudo bem, a gente foi ver escola, e nós fomos estudar na escola que ela estudou, que é o Felício Pagliuso. Inclusive eu voltei recentemente lá. Nessa época, minha mãe tinha acabado de ganhar o meu irmão mais novo, o Hernando. Na sequência, é a Michele, minha irmã mais velha; eu; a Andreia; o Leonardo; e o Hernando. O Hernando veio depois de cinco anos que minha mãe não ficava grávida, ele nasceu com um tempo maior de diferença. Eu lembro até hoje que a gente pegou as coisas, minha mãe veio na frente, porque ela estava com o Hernando novinho, eles se instalaram na casa da minha avó, então colocaram berço lá. Eu vim junto com a minha mãe, carreguei bolsas, porque ela trazia bastante coisa. E aí minha mãe voltou para o Iguatemi para ajudar na mudança, trazer as coisas para cá. Era aquelas mudanças de periferia, em que vai tudo em um caminhão desse tamanhozinho. Até hoje eu lembro. Aí conseguimos nos instalar, fiz matrícula, eu fui para a escola Felício Pagliuso. Totalmente diferente. Eu lembro até hoje que eu cheguei a chorar na porta, não queria entrar, foi traumático. Eu já entrei lá no primeiro dia de aula, a professora não estava no dia, tinha tido um problema, então era professora substituta. Estava uma zoeira a sala de aula e para mim aquilo foi traumático. Eu não queria ir para a escola. E aí, teve um contexto um pouco diferente. A maioria dos meus colegas eram todos negros, nordestinos, evangélicos, tinha de tudo, era uma diversidade grande. Enquanto no Mascarenhas, eu já tinha um incentivo muito maior de aprendizado, leitura, todo mundo estava em um nível legal em termos de aprendizagem, quando chegou lá, eu percebi que estava mais avançada em termos de aprendizado, de conteúdo formal. Não falo por falta de cultura, não por isso. A questão do aprendizado, da concentração, da disciplina, eu tinha muito mais. E não é que eu veja isso positivamente, mas eu percebi que eu ficava meio sozinha. Todo mundo ficava: “Você sabe já isso e aquilo”? Ficou uma coisa esquisita para mim. Eu não tinha isso com meus colegas. Na outra escola, eu era mais uma. Quando foi nessa, era diferente. Eu tinha colegas que não sabiam ler e escrever, na quarta série. E que tinham problemas sociais terríveis, que chegavam marcados nas pernas de violência e sem chinelo na escola. Eu vi tudo isso. Eu precisava me entrosar também com as minhas colegas, para não parecer uma coisa diferente, muito distante.
P/2 - Na outra escola o entrosamento era bom?
R - Era bom porque eu já era do local, do bairro. Ali eu já tive mais dificuldade. Para não me isolar como a CDF da turma, porque eu não queria também, foi no jogo que eu me entrosei mais. Eu gostava muito de jogar bola, então eu jogava para valer, e com elas, não tinha brincadeira, era violento o negócio.
P/1 - Você tem alguma história?
R - Tenho. Teve um dia, sabe quando você divide a turma e cada um vai para um lado, para o outro? Ele vai escolhendo e ninguém sabia qual era a minha. Eu era magrela, todas as meninas eram fortes, muitas delas até trabalhavam. Ninguém me escolheu, me deixaram para o final. "Essa menina não deve jogar nada". Aí no finalzinho, eu fui para um time. Jogamos muito, jogamos queimada nesse dia, e eu joguei muito de ficar com a bochecha rosada, e a queimada você tem que jogar com aquela bola de borracha, bem pesada. Eu joguei e queimei várias do outro lado, e elas não me pegavam e ficaram bravas comigo. E no final "ah, você joga bem, hein. Você joga! Ficou uma coisa meio estranha, mas foi legal porque depois disso eu me entrosei mais. “Patrícia, você vai para o meu time, você é minha, é nossa”. Essa aproximação veio muito disso, da brincadeira, do jogo. Depois de uma semana, eu já estava entrosada, criança não tem essa, formamos um pacto na hora. Já estava junto, conversando e brincando. Foi só um impacto mesmo, mas eu percebi nitidamente a diferença. Até hoje eu fico imaginando que se eu não tivesse vindo, eu seria outra pessoa em termos de visão social, se eu não tivesse mudado de escola. Se eu tivesse ficado no São Lucas, talvez eu teria tido outra visão de mundo, talvez teria escolhido outra profissão, fizesse outras coisas.
P/2 - Mas que influência teve, você acha?
R - Eu acho que de ter contato com outras realidades. A minha realidade não foi fácil, porém eu percebi coisas ainda mais diferentes das minhas, também difíceis, e superações diversas. Sabe o que eu acho mais incrível? É o contato com outras pessoas. Eu falo que são corpos, são outros corpos diferentes. E mesmo com outros corpos próximos, familiares nordestinos, pessoas negras, eu acho que isso foi importante, esse contato.
P/2 - Fala um pouco mais dessa coisa do corpo.
R - Porque assim, por exemplo, na escola onde eu estudei, a maioria eram brancos e orientais, tinham muitos orientais. E as pessoas eram fofas, todo mundo tinha caderno, tinha lápis, ia para o dentista, ia viajar. Tinham estrutura. E eu não estou dizendo que elas eram ricas, porque também estudavam em escola pública, mas tinham uma situação econômica mais estruturada. E é engraçado que nessa escola também, foi a primeira vez que eu entendi que eu tinha um sotaquezinho. Isso porque eu nunca fui para o Nordeste, nunca morei lá, mas meus familiares eram nordestinos. Então, tinha algumas palavras que eu puxava o R. Eu não sabia, mas tinha um apelido por parte que era baiana. Por que eu tinha o apelido de baiana? "Parece que você é nordestina", "você fala errado". Foi a primeira vez que eu senti essa história. Quando eu vou para o Iguatemi, aí eu vejo outros nordestinos e negros. É como se você se conectasse com algumas coisas que nessa primeira escola não tinha contato. A descendência lá era mais europeia, eram outras descendências. Mas é engraçado que mesmo assim, eu não estava tão lá também. É como se fosse: nem aqui, nem ali ainda. Até hoje é assim, sinto um pouco isso. Acho que do corpo é essa questão dessa diversidade.
P/2 - Posso voltar um pouco? Você falou que tinha uns 12 anos e já cuidava dos seus irmãos...
R - Sim. Menos até.
P/2 - Aconteceu alguma vez alguma coisa que até hoje você lembra? Alguma situação… ou nada marcante?
R - Marcante, não. Para a criança que tinha que cuidar de irmão, uma das principais preocupações era a chave. A chave de casa não podia perder de jeito nenhum. A gente saía da casa escondido. Era um quintalzinho miúdo, tinha um corredor enorme e um portãozinho. A gente não tinha a chave do portão, então nós contornávamos ele para o lado da mureta que dava para o segundo andar. Era perigosíssimo. Se minha mãe soubesse, ela...
P/2 - E quando vocês iam brincar na rua, ia todo mundo?
R - Todo mundo. Levava todos os irmãos, e todos atravessavam. O mais pequeno, o Leonardo, tinha cinco anos. Tinha vizinhos que falavam: “e essas crianças sozinhas? Cadê a mãe deles?" Eu ouvia muito isso, mas eu não entendia, para mim eu tinha condições de ficar ali cuidando de todo mundo.
P/2 - Aconteceu alguma coisa engraçada alguma vez?
R - O que a gente tomava cuidado demais era se a gente caísse. Porque a gente caía, brincava de bola, ralava o joelho. Então quando a gente ralava, tinha que esconder o joelho para a mãe não ver, botava calça. Minha mãe falava: “está calor, vai botar calça”? “não mãe, eu estou com frio”. Disfarçava. Mas era muito mais forte do que o conselho e a orientação dela. Criança quer espaço.
P/1 - E depois que você mudou, continuaram essas brincadeiras de rua?
R - Continuou. No Iguatemi tinha um pedaço mais de terra, minha mãe sabia que a gente estava um pouco maior então ela já deixava, a gente pedia. Mas a questão do cuidado era com a chave para não perder, uma vez quase perdi a chave, foi uma loucura. Colocava a chave no pescoço, improvisava umas coisas. Aconteceu um episódio complicado que desencadeou um processo importante. Nessa da gente cuidar dos irmãos, minha mãe orientando, teve um dia que estava chovendo e a gente não foi para a rua, ficou em casa. Nessa de brincadeira, pega-pega, correria dentro de casa, tudo o que fazia na rua fazia dentro de casa, meu irmão sofreu um acidente, cortou na porta, aqui perto do olho, quase que deu coisa séria. Minha mãe quando chegou ficou extremamente nervosa e falou para o meu pai: “eu não posso mais sair, vou ter que trabalhar em casa”. Foi quando ela comprou a máquina de costura a prestação, instalou essa máquina em dois cômodos, tinha o quarto, tinha a sala que dava para o portão, tinha a cozinha e uma áreazinha. Na sala ela improvisou uma oficina de costura. Ela tirou os sofás e colocou duas máquinas. Uma máquina veio emprestada e uma máquina ela comprou mesmo. Ela trabalhava nessa oficina e começou a trazer o serviço para dentro de casa. Aí foi quando a gente começou a ajudar ela, arrumava roupa, empilhava.
P/2 - E ela trouxe mais alguém para trabalhar?
R - Sim, foi um período. Esqueci o nome dela. Mas era super legalzinha. Ela ficou muito pouco tempo, porque minha mãe ainda tinha uma máquina reta e uma máquina hooverlook. Ela ficava usando as duas. Corria para entregar as coisas, madrugava, trabalhava muito. A gente convivia muito com ela e ajudava. Ela ficava em casa vendo comida, compras. Esse período foi o período que ela ficou mais tranquila, porque ela viu uma perspectiva de ganho. Foi também quando a gente se colocou para ajudar ela no arremate, na organização, nessa época eu aprendi a cozinhar, fazia faxina, ia para o mercado, fazia tudo dentro de casa eu e minha irmã mais velha, mas a Michele não tinha tanta responsabilidade. Mas era muito excessivo e pesado aquilo para uma criança pequena. Eu ia sentir depois isso. Na época eu juntava com brincadeira, mas não era muito fácil não. Quando a gente vai para o Iguatemi, acho que minha mãe não leva as máquinas, ela vende e vai comprar outras depois. Porque ela vai trabalhar para minha tia depois, por um tempo. Minha tia também costurava, tinha uma oficina de costura bem estruturada, ela vai trabalhar com a minha tia. Aí elas brigam, tem uma briga feia e ela monta a oficina dela, quando a gente já está no Iguatemi. De novo casa pequena, então ela improvisa, esquece sala na casa, é quarto, oficina de costura e cozinha.
P/1 - Vocês dormiam tudo junto?
R - Tudo junto. Teve uma época que a gente colocava o beliche no lugar onde era a oficina de costura. Como a casa onde a gente vai morar era um terreno da minha avó, a casa onde nós estamos foi construída pelo meu tio. Só que esse meu tio, Evandro, ele já tinha a casa dele lá em São Bernardo do Campo, ele era Metalúrgico. Aquela casa era dele para ele vir fim de semana ver minha avó. Quando ela ficou vaga, ele falou: “Lúcia, você tem vários filhos e precisa de mais espaço, vem morar comigo”. Ele só pediu para deixar a garagem livre e ele vinha com o carro e deixava na garagem. Quando ele viu que minha mãe, estava tudo muito prensado, ele liberou a garagem e minha mãe montou a oficina na garagem. Deu um alívio. Mas continuou não tendo sala, porque aí foi colocado dois beliches na casa. Foi aí que eu aprendi a costurar, acho que eu tinha uns 13 anos, porque eu não tinha menstruado ainda.
P/2 - Ela te ensinou?
R - Sim, eu pedi. Eu já era altinha então já alcançava, fazia coisa fácil, controlava a máquina, fechava argolinha, fazia manga. Minha irmã mais nova também aprendeu, eu tinha 13 na época, Andreia tinha 10, aprendeu. A Michele um pouco depois aprendeu também. Aí veio uma fase que era a fase da costura. Nossa rotina de brincadeira diminuiu e a gente trabalhava muitas horas. Minha mãe nunca colocou ninguém para trabalhar nessa época com ela. Era ela e a gente. Meu pai continuou trabalhando como cozinheiro, ia todo dia super cedo, chegava super tarde.
P/2 - Quantas horas ele levava?
R - Ele trabalhava no centro, levava o tempo que leva até hoje de ônibus, umas duas horas. Ele trabalhava ali na região perto do Parque Dom Pedro. Isso quando o ônibus não quebrava, pegava trânsito etc. ele saía muito cedo, porque cozinheiro tem que chegar sete horas da manhã. Esse foi o período que eu aprendi a costurar, eu e minhas duas irmãs, o Leonardo ficava no arremate e o Hernando era miudinho, só ficava ali enchendo o saco nosso. Nossa rotina era essa. Eu sempre estudei de manhã, então eu ia para a escola, chegava em casa, almoçava e máquina. Todos os dias. Fim de semana, de domingo a domingo. A gente pegava serviço com brasileiros, uma época pegamos com coreanos, até hoje essa questão ainda é assim, não conosco, mas em relação ao sistema da costura. Com os bolivianos é bem parecido. E entre calotes e pouco pagamento, a gente até chegou a pegar uma firma que pagava um pouco melhor. Era mais instável. Só que o serviço, quando tinha muito, era tudo muito rápido e intenso. Quando não tinha a gente ficava um bom tempo, duas semanas no máximo, sem serviço nenhum. E isso dava desespero na minha mãe também. A gente começou a inventar coisa. Foi nessa época que minha mãe começou a ensinar a gente a fazer viés, esse negócio que tem na peça de camiseta hoje, que as pessoas usam para fazer tapete, a gente já fazia. Esticava o tecido de malha e fazia tapete para vender. Foi nessa época que eu aprendi a fazer mais trabalhos manuais. Minha mãe ensinou crochê, bordado, tricô. O período que não tinha costura era o mais legal. A gente fazia roupa, calcinha, para nós e para vender, para jovens. A gente já queria sutiãzinho então minha mãe fazia. Ela tinha uma noção de molde de corpo muito boa. Minha mãe era uma excelente costureira.
P/2 - Você gostava de costurar?
R - Gostava, eu não gostava da questão intensa da costura. Até hoje eu gosto. Adoro, porque depois eu vou para a escola de teatro e vou fazer figurino. E agora eu passo na USP também com moda. Essa parte de desenvolver a peça, ter noção de molde, cortar, foi fascinante para mim. Concertar roupa, criar, adoro.
P/2 - Qual é a sensação, você consegue descrever?
R - Eu sou geminiana, então minha concentração é muito difícil, eu disperso muito fácil, estou falando uma coisa e pesquisando outra aqui. Costura eu consigo me concentrar. Pôr uma musiquinha e ficar o dia todo, não precisa nem comer de tanto que eu gosto. É uma sensação muito boa.
P/2 - E quando a peça fica pronta, tem uma sensação especial?
R - Você fica ansiosa para passar para a pessoa, é sensação boa, de realização. Porque os trabalhos que eu vou pegando nessa área de figurino e costura, são ímpares, não são para reproduções. Diferente da costura que você vai fazer mil golas na semana, essa peça especial ela vai ter a satisfação de você ter conseguido superar várias questões daquela própria peça. Você conseguir fazer uma peça que resista a calor, iluminação de teatro, você deu conta de uma tarefa que te deram. É uma sensação muito boa nesse sentido.
P/2 - É interessante essa parte do figurino para o teatro.
R - É, foi para esse lado. Porque depois, quando eu vou fazer faculdade, eu vou ter contato com a cultura. Por isso a coisa vai ser interessante. A gente ficou muito tempo na costura e com aquilo eu aprendo disciplina, organização, tem uma série de coisas que estão intrínsecas que eu vou aprendendo. Quando eu terminei o ensino médio, eu falei para a minha mãe que eu queria fazer faculdade, ela falou que não poderia pagar e eu tive que dar um jeito, fui ver todas as possibilidades. Na USP eu não consigo entrar, eu não tinha ideia onde era. Eu fui aprender a andar de ônibus com 17 anos, já era meio caipira andando pela cidade. Eu gostava de ver mapa, olhava o mapa e me resolvia.
P/1 - Você se lembra da primeira vez que foi para o centro?
R - Lembro. Eu já fui muitas vezes por conta de médico, com meu pai. Mas a primeira vez que eu fui a lazer foi com um amigo da escola que sabia andar de metrô, era um namoradinho, estava afim de mim e me levou, a gente foi passear no centro, foi muito legal. Um pouco antes disso eu tinha ido ao playcenter, que era meio sensação na época.
P/1 - Mas o ensino médio para você foi? Porque tem gente que fala que é traumático.
R - Eu gostei do ensino médio. Foi difícil para mim, porque eu tinha muito problema de espinha no rosto. Era coisa da adolescência, do corpo, mas depois eu fui entender isso. Fora isso, a relação com meus colegas era 10. Eu tinha colegas incríveis, o ensino médio foi muito bom.
P/2 - Na mesma escola?
R - Não. Eu fui fazer o Jardim Iguatemi que era uma escola recém construída, que eu fui a primeira turma. A escola estava novinha e tinha uma sensação de nós termos que cuidar, eu lembro que do ponto de vista arquitetônico da época, ela teve várias adaptações que eram consideradas necessárias para uma escola. Rampas, espaços mais abertos, espaços sociais mais organizados, tinha uma claraboia maravilhosa, uma área de sol. E os colegas também muito bacanas. E a escola tinha grêmio, várias coisas. Eu não me enturmava nessa questão de grêmio, não era minha praia. Eu ficava o tempo todo lendo, era muito leitora. As pessoas me achavam meio louca, era ler de pegar três livros por semana. Minha coisa, quando não tinha oficina era ficar lendo, ir ao banheiro e levar o livro, eu fiquei um tempo mergulhada na leitura.
P/2 - Por que será que você tinha esse gosto pela leitura?
R - Porque era para a cabeça sair. Quando você costura é muito mecânico, era o tempo todo aquele movimento. A sensação que eu tinha era que você ficava imaginando mundos dali. E você tirava repertório dos livros. Eu não gostava muito de TV, é engraçado isso. Eu gostei de TV até toda aquela fase da cultura. Mas quando adolescente eu não gostava muito de TV, não me interessava muito. Mas a leitura acessava uns espaços diferenciados. Era outro mundo. Um dos primeiros livros que eu li foi voltado para a idade, indicado pelo professor, a sala de leitura da escola que eu estudei do Padriuso, a sala de leitura da primeira escola era incrível, essa também eu tive a sorte de ser ótima. Era uma coisa linda. E as professoras de lá me adotaram, porque viam que eu gostava de ler, enquanto pegavam um livro ou outro eu pegava dois, três, deixavam eu pegar mais. Viam que eu estava super interessada.
P/2 - Eu perguntei porque teve esse gosto pela leitura, e você fez essa relação com a sala de leitura.
R - Sim. Eu tinha um reforço em casa porque isso podia me manter em outros mundos, e na escola também, porque se estimulava muito com a sala de leitura. Era um espaço inusitado na escola.
P/2 - Você consegue descrever o que é para o corpo, como você falou que era meio mecânico ficar horas trabalhando, é uma repetição de peças?
R - Tem horas que você fica na imaginação, mas tem horas que bate ansiedade e você faz contagem regressiva. Eu vou ficar com o olho molhado mesmo. Deve ser diferente de um adulto trabalhar tanto tempo quanto eu trabalhei, e de uma pré adolescente trabalhar tanto tempo quanto eu trabalhei. Porque a expectativa que a gente tem quando está trabalhando é a de estar em outro lugar. Não que o adulto não tenha, mas ele tem um pouco mais de consciência de que aquilo ali é um período. Um adulto diz: dali eu vou para outro trabalho, é uma fase, ele começa a se conscientizar dessas questões. Quando você é adolescente, não tem perspectiva de quando aquilo vai terminar. Tem dia que você tira de letra. Você olha e tem aquele monte de coisas, aquela pilha de peças. Eu fazia muita blusa, camiseta, pijama, legging. Eu pegava muito gola, ia muito na galoneira, que é uma máquina pesada, a gente até tinha umas máquinas que eram leves do ponto de vista do controle dela, mas essa era muito pesada. Quando eu chegava em casa e almoçava, já sabia que tinha que ir para aquele serviço. E no primeiro momento você tem que ir com muita energia, se você desanima parece que aquilo multiplica. Nas primeiras semanas que eu comecei a costurar, quando eu ficava um tempo sem costurar, doía as costas. E dá muito chulé no pé também, porque sua muito. A gente costurava de chinelo havaiana mesmo. No fim do dia você tinha que tomar um banho, se não desse para tomar um banho você tinha que lavar o chinelo sempre, para tirar o cheiro, e fazer algum movimento para relaxar as costas, porque ela fica tensa. Você não pode fazer movimentos abertos, são movimentos menores. Se você faz movimentos maiores, você perde tempo. Se você faz duas golas por minuto, se fizesse alguma coisa diferente você perdia aqueles segundos. É o valor dos segundos para uma costureira de produção. Depois de duas horas direto você dá uma pausa. E não tem exercício, nada disso. Quando era adolescente, eu gostava que tinha uma barra de ferro em casa que ficava no quintal. Eu adorava subir ali e me balançava. Meu sonho era ser ginasta olímpica, que eu adorava ficar me pendurando. Aquilo me relaxava. Brincava de bola com os meus irmãos e depois voltava para a máquina, tinha o período da janta e ia até às 11h da noite. Até acabar o trabalho.
P/2 - Isso dava quantas horas?
R - Umas 12 horas. Isso quando eu não tinha escola, quando eu tinha era menos. Umas seis ou sete horas de trabalho, se é um dia que eu não tenho escola. O que era legal é que eu e meus irmãos a gente brincava muito, fazia muita piada. Mas eu via no rosto que todo mundo ficava muito cansado. Os quatro trabalhavam. O Leonardo costurava, eu, a Michele e a Andreia. Meu pai uma época saiu do trabalho, eu lembro até hoje quando ele falou e eu achei que a casa caiu. Ia depender mais da oficina e a responsabilidade ficou muito grande.
P/1 - Da onde você tirou o curso de faculdade que você queria fazer?
R - Foi até legal falar dessa coisa do corpo e da costura, porque era uma coisa tão direcionada e limitada que eu queria fazer qualquer coisa, não queria deixar de ir para a escola. Eu queria no primeiro momento fazer na área de artes, que eu adorava desenhar, desenhava nas horas vagas. Quem morava na periferia não tinha essa perspectiva. Aí foi que um ex professor de psicologia falou que tinha uma universidade que ficava em São Miguel, que eles estavam oferecendo bolsas 100%. Aí eu vou tentar. Na primeira faculdade a gente pensa que vai partir para uma coisa que vai conseguir dinheiro. Aí eu tentei enfermagem. Não consegui, porque para conseguir bolsa 100% em enfermagem você tinha que conseguir uma pontuação maior. Aí eu fui ver os cursos que a pontuação necessária era menor. Geografia, história, música. Aí eu fui fazer história. Prestei, passei. Eu teimo até hoje que minha mãe não ficou nem um pouco satisfeita com a história, eu não tive nenhuma comemoração.
P/2 - A sensação quando você viu que passou, você lembra desse dia?
R - Lembro. Eu vou chorar. Foi da hora. Para enfermagem, que a pontuação necessária era muito maior, eu já tinha conseguido uma pontuação boa no geral. Quando eu prestei a segunda vez, eu estava com a sensação de que tinha passado mas queria ter certeza. Eram 30 vagas, uma coisa assim. Eu vi lá e tinha passado entre as cinco primeiras. Fiquei chorando do ônibus até em casa. Muito feliz. Minha decepção foi quando eu falei para os meus pais, nenhum abraço. Mas eu entendo isso. É porque a faculdade com esse valor eu que dei, eles não tinham isso. Era uma alegria muito grande minha, e talvez uma decepção por eles não terem tido a mesma situação. Eu já tinha tido uma experiência anterior que eu tinha passado para uma escola técnica, para fazer um curso que hoje é o nome de designer. Na época eu não vou lembrar o nome. Era uma área das artes. Foi um conflito de sentimentos, porque para mim era importante, mas eu percebi que para eles não era tanto. Eu tinha passado para o curso técnico em uma escola, eu ia ter acesso a plataformas digitais da época, de desenho, ia realizar esse sonho que eu tinha. Minha família na época não pôde dar nenhum incentivo. Eu precisava pegar ônibus, eu estava no último ano do ensino médio. Eu falei para minha mãe que se eu tivesse um apoio agora, eu conseguiria me virar depois. Eu via que teria condições, seria possível, mas para ela não tinha valor. Ali eu aprendi que se eu não pegasse firme, não iria fazer. Eu acabei desistindo dessa escola. Eu fiz três meses, mas eu não conseguia acompanhar, porque tinha que pegar ônibus e o dinheiro não vinha. Eu não recebia um salário na oficina. Quando eu passei nessa daí, eu falei que essa eu ia ter que segurar firme. Eu já tinha brigado muito com ela porque eu precisava de um salário, quando eu entrei na faculdade eu já tinha um salariozinho. Agora eu vou ter que ter a minha independência para pagar ônibus e comida, minimamente. No primeiro ano na faculdade fui atrás de estágio, peguei um estágio na casa de cultura de São Miguel, que foi uma indicação de um amigo na época que morava na região, que conhecia os produtores culturais da época, o pessoal do MPA, movimento popular de arte, foi o primeiro contato que eu tive nessa época. Abriu um outro universo que eu nunca imaginei. O namoradinho que eu tinha na época a gente terminou, ele terminou comigo na verdade, não teve nada de especial, foi um término de namoro normal. Eu mergulhei nessa coisa da cultura, fazer projetos. Eu acho que tudo aquilo da disciplina na época da costura, do foco, da seriedade, da responsabilidade desde pequena veio tudo de uma vez nesse período. Eu levei tudo isso para a cultura. E eu fiquei sempre ouvindo das pessoas que trabalham na cultura que não tinha esse lugar, essa prática, era tudo muito livre. Eu trouxe toda essa minha bagagem e demanda para essa situação. O Júlio na época trabalhava na cultura, tive um contato com ele, e ele me convidou para fazer parte do movimento cultural Penha, nessa época. Eu tinha acabado de me formar, não queria dar aula, eu tive uma experiência não muito boa não com os alunos, mas com a educação institucional de uma maneira geral. Eu queria fazer outras coisas.
P/1 - Você ainda morava em casa?
R - Eu tive uma experiência na faculdade de um ano morando com outros colegas na São Miguel. Mas também não consegui me manter porque o recurso era muito pouco, então eu voltei para a casa dos meus pais.
P/2 - Quando você entrou na faculdade você parou de trabalhar na oficina?
R - Um ano depois eu saí da oficina. Foi um trauma para a minha mãe, porque ela não esperava. Eu falei para ela que não era o que eu queria e que eu ia sair. A gente brigou muito nessa época. Não que ela obrigava, mas eu comecei a questionar algumas coisas, questão de divisão de custos, por exemplo. Eu falei que ela tinha que lidar com a gente como se a gente fosse funcionário, e não sua filha. Ela foi mudando aos poucos isso. Meus irmãos ainda ficaram um bom tempo com ela. Mas eu fui a primeira a sair da oficina. E acho que foi um estímulo porque minha irmã mais velha não, que ela foi ter dois filhos, mas a Andreia e o Leonardo eles saíram da oficina e foram estudar também.
P/2 - Ela ficou como?
R - Ela pagou funcionário e estruturou. Mas eu entendo porque não tem esse entendimento dessa questão do empreendedorismo e como lidar.
P/2 - E na faculdade, você teve alguma experiência?
R - Eu tive uma professora excelente que foi a Maíra. Curso de história, que a gente já tem essa ideia de que é um curso que vai discutir as questões sociais do mundo, direita e esquerda. Já lá os professores tinham uma visão mais conservadora. Tinham uma visão de mundo mais elitista. Tinha outra parte que era muito mais aberta. Esses eu simpatizava mais. Apesar de estar fazendo uma licenciatura, eu tinha disciplinas como psicologia da educação, que eu gostava muito com a professora Rosana, eu tinha uma disciplina com a professora Maíra de história do Brasil que era excelente, era uma palestra a fala dela e dava uma noção macroeconômica também, tinha uma abrangência legal a aula dela. E tinha uma fala muito forte, uma experiência de vida incrível. E nessa época na faculdade, eu tive uma experiência que eu me inscrevi para participar de um projeto chamado universidade solidária, que a gente viajava para algum outro município do Brasil que tinha o IDH baixo para desenvolver algum tipo de ação no território. Isso era uma ideia para formar melhores profissionais e estudantes. Eu fui uma das escolhidas, pude viajar, até então não tinha essa noção de viagem, eu fui para Alagoas em Santa Luzia do Norte. Foi muito legal essa experiência. Fui a historiadora do grupo, tinham grupos de outras áreas da faculdade. Mas também foi a experiência do trabalho com outras pessoas. Até então eu me relacionava com meus irmãos, minha família. Se a gente tivesse algum problema, a gente se pegava. Ali você tinha que criar uma relação. Eu fui para o jogo de novo, igual na escola, eu sempre fui muito brincalhona então sempre tentei trazer para esse lado de criar uma empatia com a pessoa, e com muita seriedade. Eu nunca fui muito paz e amor na cerveja e não encaminhava relatórios, eu tentava fazer os dois. Mas é essa experiência que foi legal na faculdade.
P/1 - E das vivências sociais com o pessoal da faculdade?
R - Era tudo pessoal para fazer revolução amanhã. Por ser uma escola privada que tinha uma bolsa, era uma bolsa de 100% e também tinha um esforço muito grande de manter essa bolsa. A gente era tudo Caxias mas tinha essa revolução. Brincava, mas falava das questões sociais. Da minha turma, acho que eram 40 e se formaram 20, acho que se formaram eu e mais uma moça de mulheres. Era uma turma interessante porque eram das mesmas condições que a minha. Colegas que não tinham condições de acessar uma USP, por exemplo, mas que gostavam de estudar, trabalhavam bastante. As aulas eram de manhã, então só quem tinha trabalho flexível conseguia fazer isso, eu estudava de manhã e trabalhava a noite. No primeiro ano de faculdade. Então apesar de ter essa ideia de esquerda, eu percebia que eles eram um pouco mais práticos e saíam bastante do discurso. A gente queria fazer revolução de verdade. E como fazer isso? A gente ficava muito se questionando também. E eu fui saber que isso era muito peculiar nesse período, com pessoas que a gente teve acesso a outros colegas e de outras universidades. As questões eram sociais e imediatas, diferentes, permitia até um pouco de ficar conjecturando apenas. A prática ficava muito distante. Eu acho que eu também tive o privilégio de estar em uma situação em que o que fazer de verdade era urgente, mais urgente do que o próprio discurso.
P/2 - Pela condição de vida que vocês tinham que ter.
R - Sim. Era mais importante a gente saber o que fazer hoje, nesse momento, com a nossa situação social e que isso atravessava não só o que estava fora de nós, mas também a nossa família.
P/2 - Quando foi, você lembra?
R - A faculdade eu terminei em 2004.
P/2 - Dessa discussão toda, teve alguma ação que vocês conseguiram colocar em prática?
R - Teve pequenas experiências. Desde fazer atividades ligadas à comunicação, essa experiência de Santa Luzia, mas muito pequena. Eu fui realmente ter essa ação mais forte quando eu fui para a casa de cultura de São Miguel, porque aí eu fui ter contato com as pessoas da cultura e da arte, e eu via uma movimentação muito grande por parte dessas pessoas. Porque foi um período da época da Marta. Estava também no governo Lula na época, estava uma explosão de incentivos para esses grupos. Eu percebi que muitos grupos abraçaram isso, foi uma efervescência. Quando o Júlio me chama para participar do movimento da Penha, outro bairro, outro local, para trabalhar memória. Eu fazia o curso de história e trazia muito forte essa ideia de trabalhar a memória local. Aí eu falei que eu queria trabalhar nessa área, não queria dar aula, queria fazer outro tipo de projeto. Aí eu tenho contato pela primeira vez com a festa do Rosário. Para mim foi incrível. Eu lembro de ter o primeiro contato com pessoas da cultura popular, eu lembro de ter chorado picas quando eu vi o pessoal da folia de reis do oriente, porque eu achei aquilo lindíssimo. Tocou alguma coisa em mim. Eu lembro de uma imagem muito forte de quando a gente começou a desenvolver algumas atividades, que a gente fazia alguns trabalhos com as escolas, desenvolvia palestras lá e estimulava para que os alunos fossem ver as atividades no Largo do Rosário no período da festa. Era um movimento trabalhando em pequenos períodos do ano. Eram coisas mais espaçadas. A gente planejava em abril, maio tinha isso e junho era o grande momento. E nessa de estimular os alunos, a gente estimulava eles a pensarem e trazerem outras atividades para apresentar no Largo do Rosário, para outros colegas deles aqui do bairro. Eu me lembro até hoje de ver as meninas se arrumando atrás dos tapumes para se apresentar. A maioria crianças negras, se arrumando colocando roupa, para dançar a dança afro no Largo do Rosário. É uma imagem que aparece para mim.
P/2 - Eram as crianças da escola?
R - Da escola aqui da região. Elas apresentavam e a gente fazia um relatório, tinha mais tempo na época, então toda ação tinha relatório, tinha foto, era registrada. Entrevistava as crianças, via com professor, tentava pensar pedagogicamente. Eu tinha experiência de oficina, mas não que misturasse com a memória. Era uma experiência nova para nós.
P/2 - Você lembra do mais importante dessa experiência para você e para quem estava vivendo?
R - Era a experiência de você estar em um local diferente da escola. Você estava em um local que tinha uma peculiaridade, que ela tem uma memória e aquilo de alguma maneira muda o presente. Citam muito coisas: “é muito boa a sensação de estar aqui, isso conecta com a minha história, eu não sabia que tinha isso”. Quando a gente conta que foi construída pela antiga irmandade dos homens pretos, as pessoas não imaginam. Eu fiz faculdade de história e não tinha essa informação. As narrativas que eram construídas e formadas era como se a população negra nunca tivesse contado isso. Nunca pudesse ter registrado isso. Existe, por que a gente não conta essa história? Deu um curto circuito e intuitivamente eu vi que ali também tem alguma coisa, potência. Engraçado que aquilo ali ainda não estava relacionado com a minha história particular, mas estava também. Foi um pouco o processo de pensar como trabalhar essas memórias com esses jovens. Até hoje a gente pensa isso.
P/1 - Inicialmente quando você entrou no movimento, na verdade foi uma aproximação do movimento junto à comunidade do Rosário que já tinha um trabalho.
R - Porque o Júlio já tinha uma aproximação com a comunidade de Rosário. Ele já era produtor cultural, ele vai trabalhar na casa de cultura ele já morava lá. Só que ele vinha para Penha muito, porque encontrava com o pessoal aqui. Quando eu vou estagiar lá, ele achou interessante e trouxe para o movimento. E já estava acabando a gestão da Marta. O Júlio vai para cima e me chama. Eu não fazia ideia do que era uma ONG, uma entidade, então eu vou estudar e pesquisar. Mas eu sabia fazer projeto. Na faculdade a gente teve uma disciplina muito forte e boa de projeto. Na universidade solidária também, que era esse projeto que eu participei lá em Santa Luzia. Eu tive a oportunidade de ter muito curso de gestão. Quando o Júlio me convida para fazer parte do movimento, ele já tinha proximidade por causa da festa, e começa a sugerir ter atividades junto às escolas. Ele chama um grupo de pessoas para ajudar. Além de mim tinha também o Exautino, que era na época um colega meu da faculdade, que também estagiava na casa de cultura. Só que ele já era um senhor, na época tinha 50 e poucos anos, não que a idade fosse um problema, mas eu percebia que ele não queria ficar vindo para um outro bairro, queria atuar lá no bairro dele mesmo, então acabou ficando por lá. Mas para mim, sangue novo, eu estava doida para aprender coisa e ali eu via uma possibilidade de aprender mais.
P/2 - Você falou: “eu não imaginava na faculdade que tinha toda essa história”. Você falou também que isso tinha alguma relação com a sua vida. Lembra que relação é essa?
R - Na faculdade, essas outras memórias a gente não aprende. É como se eu aprendesse sempre a história do Brasil, nunca essa relação, eu nunca me via dentro dessa história direito. A gente entendia enquanto território, macroeconômico, o país. Eu tinha uma professora que dizia que a memória era um tijolo da história, estava uma parte ali. A memória ficava nesse tijolinho aqui, era como se todo o restante não tivesse muita importância. O que eu percebo é que, acionar essa memória, é tão importante quanto você pegar um documento oficial e acionar ele para entender a história do Brasil. Quando eu aciono o patrimônio histórico aqui da região, trabalho com ele, ele é um patrimônio importantíssimo, poderia contar a história do Brasil tranquilamente junto com os outros documentos oficiais. Por que ele não é trazido? Porque tem todo um contesto ideológico, uma narrativa que ela não interessa tanto assim. Quando eu digo que tem a ver comigo e não tem, é porque faz parte de uma memória dos afrodescendentes. Porém, ela sendo também uma outra memória não oficial, ela também tem a ver comigo nesse sentido.
P/2 - Você fala que aprendeu a história do Brasil e a história dos brasileiros.
R - Também.
P/2 - Fala só quem é o Júlio, que você falou que te convidou.
R - O Júlio é uma pessoa que trabalhava na casa de cultura de São Miguel, é um ativista na região lá também, que junto comigo e com o coelho vai ser responsável pelo período formalização, de tornar o movimento cultural Penha uma entidade.
P/2 - Você conheceu o coelho?
R - Não conheci. Quando eu vim fazer esse trabalho aqui na Penha, eu não tinha remuneração nenhuma. Projeto a gente tinha, mas não tinha financiamento desses projetos, eu terminei a faculdade e eu me vi tendo que voltar para a oficina novamente. Eu não tinha trabalho. Eu cheguei a dar aula em escola particular três meses, achei horrível. A relação com os jovens não era ruim, é que eu não entendia o projeto pedagógico, aquilo para mim não fazia sentido. Como eu viabilizaria essa estrutura que eu achava interessante no movimento, mas que não tinha condições financeiras para isso? Aí eu fui trabalhar em uma entidade perto de São Miguel, em União de Vila Nova, foi a nova união da arte. Eu trabalhei lá durante três anos, eu era coordenadora pedagógica, tinha 23 ou 24 anos, a coordenadora pedagógica mais nova do pedaço. De novo, toda aquela disciplina vinha para esse trabalho. E ali eu voltei ao contato com a ideia de gestão. Dando muita cabeçada e lidando com uma realidade social muito mais difícil do que até então eu tinha descrito, quando estava lá no Iguatemi. Porque a união de vila nova é um bairro que está entre a trabalhadores e a Assis ribeiro, então eles ficam ilhados em São Miguel, em uma região que foi ocupada na década de 90. A CDHU começou a construir os prédios, e antes disso não tinha nenhum equipamento de cultura, tinha toque de recolher, tinha morte o tempo todo ali, aí um cara chamado Hermes resolve fundar essa entidade. Já tinha pelo menos uns cinco ou seis anos de estrada sem entidade. Era uma ONG que, através de uma parceria com a novo olhar, eles conseguem conveniamento com a prefeitura, e através desse conveniamento conseguem ter um projeto chamado centro da criança e do adolescente. Convênio, aquele valor baixíssimo para o pagamento das pessoas, mas para mim e aquele momento que eu queria muito, estava muito legal. Eu acho que por isso eles me aceitaram tão novinha sem experiência em nada, porque falaram: “só você quer”. E lidar com umas buchas, mãe brava, falta de dinheiro, falta de experiência. Foi outra faculdade. Mas foi uma experiência importantíssima. A gente passou por um processo de aprendizado e eu consegui, minimamente, com a experiência que eu tinha de gestão, com os cursos de formação junto à novo olhar, de projetos, porque focava muito na questão da relação com a entidade. O pessoal da entidade falava: “Patrícia, mas isso é muito do ideal, a realidade não é essa”. Eu falava: mas até onde a gente pode ir com essas ideias? Aí foi que eu comecei a sugerir algumas coisas por lá. Algumas coisas eu consegui, outras não. Vou dar um exemplo mínimo para entender melhor. Prestação de contas, sempre atrasava o pagamento das pessoas, era difícil. Eu consegui organizar. Nesse foco eu consegui encaminhar melhor esses pagamentos, as pessoas ficam mais instáveis, começam a ter melhor experiência e contato com essas ações. Já é difícil você ter que atravessar a cidade, lidar com um público alvo muito difícil, situação de vulnerabilidade muito alta. Você não tinha perspectiva de pagamento regular, ter material, ter espaço, era difícil. Aí a gente consegue regulamentar isso. Ao mesmo tempo, eles estavam em uma fase legal porque estavam começando a ter parcerias com empresas que eram da área da assistência social, ela estava ganhando um espaço muito grande, o bolsa família estava forte. Essa experiência foi bacana por isso. Contato com a questão das políticas públicas, muita coisa romântica que eu tinha também cai, muitas coisas não eram bem aquilo e a prática da gestão. São essas três coisas que foi forte. Isso tudo estava em paralelo com o trabalho do movimento cultural Penha.
P/2 - Você continuou atuando?
R - Atuando. Era final de semana, saía do nua e ia para o movimento, e o pessoal dava risada porque durante o dia eu estava nua e a noite eu estava no movimento. Era uma tiração de sarro. No movimento também eu comecei a encaminhar projetos. Aí saiu o primeiro vai, uma parceria com a prefeitura que foi o primeiro recurso que a gente conseguiu provar. Em seguida saiu o do ministério de cultura. E eu fiquei tão contente com aquilo, conversando com o Júlio que na época estava próximo, eu falei que chegou a hora de eu sair da entidade, porque essa estabilidade que a nova união da arte me deu, me possibilitava ficar mais no movimento e encaminhar o movimento. Porque de fato o nua puxava muito energia, era muita coisa. Eu faço isso. Peço as contas lá em Vila Nova e vou para a Penha de vez.
P/2 - E você morava ainda no Iguatemi?
R - Morava ainda no Iguatemi. Aí eu vim também morar para cá. Eu venho morar aqui já tem oito anos. E é um período muito difícil, porque nesse meio tempo o Júlio se separa da esposa dele, a Suzi, que é a mãe do Miguel, filho dele, e a gente se relaciona, se apaixona na verdade. O trabalho e as coisas se misturam e vem um impulso novo. Ele já estava morando em Osasco há algum tempo, já tinha se separado, e a gente conversava tanto que veio meio que natural. Eu venho morar aqui na Penha e um pouco depois ele vem morar comigo. Na entidade a gente começa a fazer outras imersões de outras pessoas que também atuavam conosco, para que a gente comece a organizar melhor que estrutura a gente quer pensar para essa entidade.
P/2 - Já tinha criado um CNPJ?
R - Já, ela já tinha CNPJ desde 2001. Antes de eu entrar, inclusive. Eu entrei em 2005. Em 2010 é que criamos estabilidade econômica cada um, o Júlio tinha a situação dele também, e nesse momento é que possibilita da gente falar: vamos abrir mão dos nossos trabalhos e atuar mais aqui. E nessa atuação que a gente se apaixona, e resolvemos atuar de forma mais específica e morando aqui na região.
P/2 - Que época foi?
R - Em 2010.
P/2 - Você se formou em 2002?
R - 2004. Até 2010 tem uns seis anos entre amadurecimento desse projeto no movimento, a minha experiência em vila nova, escolas que eu tentei trabalhar. Esse período foi de amadurecimento. Porque na verdade o que eu queria mesmo era atuar na área da cultura. Quando eu estava aqui já na Penha, a gente começou a focar mais no trabalho do Rosário. Tentar levantar mais informações sobre essa igreja. A gente lança o primeiro livro nosso em 2011, que é o recado aos nossos ancestrais, que é um projeto que a gente conseguiu financiamento. Esse primeiro livro também definiu algumas questões que a gente queria trabalhar que era com produção cultural, memória, na época tinha a educomunicação, arte. Mas focado era produção cultural, isso subentende todas as ações que consigam relacionar memória, patrimônio. O Júlio tinha uma articulação muito grande na zona leste como um todo. Conhecia muita gente, circulava muito. Nessas andanças, ele conversando com o padre Chicão na época, a gente percebeu que, as palestras que a gente participa era a chave para a gente entender, talvez, porque as políticas públicas ligadas aos patrimônios não chegavam aos territórios. E tudo isso era coisa que a gente conversava, tomava um café e pensava. E tinha até um certo acúmulo de falar: eu estou no caminho.
P/2 - Quem fazia essas conversas?
R - Eu, o Júlio, o Edson, que era um outro amigo nosso de escola pública que vinha, Denise, que era feminista e ligada ao movimento de mulheres. Legal isso, que ela trazia uma outra questão, algumas pessoas do Rosário, alguns outros agentes culturais que não eram do movimento, mas que a gente acabava tendo contato, tinha o Soares, o Passarinho que também foi gestor da casa de cultura de São Miguel.
P/2 - Como você chamava as pessoas?
R - Eu tive dificuldade de entender isso também. Basicamente o movimento, quando a gente fala movimento parece muita gente. Mas durante um período o movimento era só uma entidade. Tinha pouca gente trabalhando ali. Eu acho que a gente retoma esse conceito do movimento recentemente, quando a gente se aproxima muito dos homens pretos. Em termos de número, de movimento se aproximou também da Sanininha que era uma produtora que aciona vários artistas, e hoje eu entendo mais que a gente está como movimento. Antes desse amadurecimento a gente estava muito focado ainda em amigos que vinham, visitavam, conversavam, ligavam, trocavam. Era um grupo de amigos, pessoas que se encontravam e viam coisas, por isso para mim era tão interessante. Porque era um momento que eu também refletia e tentava entender o que eu queria. E nesse tentar de coisas era um trabalho de escola, a produção de um livro, o encaminhamento de um projeto para conseguir fazer uma pintura em um muro etc. muitos projetos não deram certo. Esse exercício de fazer projeto também foi importante.
P/2 - Você disse que surgiu uma ideia da igreja do Rosário, a gente quer fazer uma determinada ação cultural e tem alternativas, por que a igreja do Rosário?
R - Eu como já formada em história, e em um processo de amadurecimento na minha percepção, da história da memória da cultura afro-brasileira, do Brasil como um todo, eu vou me aproximar porque ali eu vejo como uma outra perspectiva de ver a história do Brasil. E que é tão importante quanto a história oficial. Eu acho que para o Júlio pegava também na questão dele ser negro. Outra coisa que pegava era estar em um território que não era a região central. Eu achava isso curioso. Porque eu me formei com essa ideia de que patrimônio tem minas. A diferença é que a UNICSUL, ela estava em São Miguel quando tinha a capela de São Miguel, a gente falava bastante sobre ela. A gente acabou fazendo essa conexão. Mas é engraçado porque era uma igreja antiga e eu não consegui conectar e relacionar com a história local. Aqui eu consegui fazer melhor isso, porque eu acho que a gente viu uma comunidade aqui presente. Já estava acionando um patrimônio, tendo essa movimentação. Eu acho que fazer essa relação foi até fácil e natural.
P/2 - Tinha um grupo, que eu ouvi da outra pessoa que contou, que tinha um fórum discutindo o tombamento e tudo. O Júlio e esse grupo não faziam parte desse fórum?
R - Faziam. O Júlio ele vinha muito para Penha como esse agente cultural interessado. Ele não vinha ainda com a ideia de movimento enquanto cultura, entidade. Porque a gente ainda não morava aqui. Nesse paralelo que eu falei que tinham seis anos, antes de eu vim morar para cá, eu não morava aqui, então eu não vivi esse lugar. Eu achava importante, interessante, mas a presença de estar aqui era importantíssima. Acho que quando eu vim morar aqui que eu fui entender um pouco melhor, me relacionar de ir na casa do outro. Criar essa relação com o território ela foi imprescindível depois. A gente estava ainda em processo de amadurecimento e nessas idas e vindas, como eu falei, a gente conseguiu até encaminhar alguns projetos, em 2011 a gente consegue publicar um livro, outras parcerias começam a aparecer, articulação com outras comunidades, principalmente aproximação com a igreja do Rosário dos homens pretos. Eles já estavam fazendo a festa desde 2001, algumas pessoas do movimento já tinham essa relação com esse momento. Porém ainda não era dentro da gestão desse grupo. A gestão desse grupo ainda tinha uma relação muito próxima com as idas e vindas do próprio governo da época. Tinha a ver até com a gestão desse prédio aqui. Essa autonomia do grupo e sua própria articulação ainda não era tão forte.
P/2 - Qual grupo?
R - Do Rosário.
P/2 - E que prédio?
R - Na época você tinha a festa do Rosário acontecendo, só que essa relação dos homens pretos ainda estava muito próxima dos órgãos públicos. Com o centro cultural da Penha, a prefeitura, só se articulava alguma coisa quando esses órgãos chamavam, viabilizavam recursos etc. E o movimento se aproxima como uma entidade dentro desse grupo, uma entidade que desenvolvia um trabalho com as escolas. Basicamente era isso. Só em 2011, quando a gente publica o livro sobre a igreja dos homens pretos, e vai tentar aprofundar as informações sobre essa igreja, porque quando as pessoas traziam ainda era algo muito superficial e estava ligado à devoção ao são Rosário e são Benedito. A gente tentou aprofundar mais porque essa igreja tem em vários lugares do Brasil, qual é o significado disso? Tentar entender mais para trabalhar isso com a escola. O aprofundamento sobre o conceito de patrimônio ele foi imprescindível para a gente entender esse espaço. As políticas públicas também estavam ligadas a isso. A questão da preservação histórica também entrou na pauta, porque tinha uma urgência na questão do espaço. Precisava pintar, fazer uma série de coisas e essa preservação aparecia como uma forma de engessar essa preservação em torno do lugar. E eu fiz faculdade de história, mas essa questão de patrimônio e de memória, principalmente patrimônio, ela passava muito baixo. Eu vou me aproximar sobre isso, se aproximam outras pessoas nessa áreas, pesquisadores historiadores etc.
P/2 - Era as pessoas do fórum?
R - Esse fórum que talvez tinha na época era já do próprio movimento memorial Penha de França. Estava relacionado a alguns memorialistas da região que discutiam fóruns. Era mais um movimento que tinha também. Não querendo comparar, mas enquanto um estava com a preocupação com a fachada, material, nós estávamos com a articulação real com a comunidade. Talvez essa era a nossa grande questão. O Júlio circulava muito em outros fóruns de discussão, de políticas públicas de maneira geral, tinha contato com o padre Ticão, e um fórum muito forte que discutia políticas públicas na época, bem na época do começo da gestão do Haddad, principalmente, e aí a gente sugere fazer um seminário com esse coletivo, sobre patrimônio, em que a grande pergunta era: por que tinha mais visibilidade a discussão sobre patrimônios da região central, se a gente tinha um patrimônio também muito grande, por que não chegava aqui? Até a gente chegar no ponto que no centro também não é tão preservado como a gente imagina, porque tem na verdade projetos de iniciativas isoladas que conseguem viabilizar algumas coisas por lá. Mas a partir desse seminário aglutinou pessoas. Veio estudantes, o Lucas, o Maurício, o próprio Márcio que era do gabinete do Nabio e estava se aproximando.
P/2 - E o pessoal da festa?
R - A festa vinha o Altair e o Carlos. O Carlos vinha menos porque trabalhava bastante, mas o Altair vinha bastante, a gente até convidou ele para ser diretor do movimento cultural Penha, já era na época. Ainda não. Mas a gente estava namorando para ele vir mais próximo da instituição. A gente queria que a Penha e o Rosário se juntassem, tornasse uma simbiose de tudo isso. Nesses seminários, teve o segundo em seguida que teve a discussão de trazer essas iniciativas ligadas à memória social, veio memorialistas que desenvolviam algumas pesquisas e que podiam estar expondo no dia. Veio a Suzi, que trabalhava com museus. Tinha um pessoal de um movimento de memória, o CPDOC, que tinha lá em Guarulhos. Essas iniciativas a gente quis dar visibilidade, porque o primeiro seminário convidou diretores desses órgãos de proteção. A gente quis trazer agora, nesse segundo seminário, iniciativas populares. Já que essa questão do espaço dos patrimônios era muito mais complexa do que a gente imaginava, e ao mesmo tempo existem várias iniciativas em várias regiões da zona leste que são interessantes e ajudam a gente a entender o patrimônio, a terceira veio para pensar o que a gente podia fazer para conseguir ter políticas públicas que incentivassem mais esses projetos de desenvolvimentos de ações que conseguissem relacionar entidade e memória dessas pessoas, junto a esses patrimônios.
P/2 - Esses patrimônios ainda eram materiais?
R - Materiais. Porque a gente pensava que se a gente partisse do imaterial, surgiu essa discussão, a gente podia se perder. Tratando primeiro do material, partindo desses patrimônios tombados e reconhecidos pelos órgãos e também pela comunidade, a gente conseguiria partir de um ponto que poderia acionar outros patrimônios materiais ou imateriais. Eles poderiam ser o primeiro eixo de início.
P/2 - Foram três seminários?
R - Três seminários. O terceiro era um projeto mais ambicioso, era plano de desenvolvimento da zona leste a partir dos patrimônios culturais. Esse exercício permitiu que as pessoas se aproximassem da gente, veio uma galera legal, veio Mônica, Maurício, Lucas, Danilo, veio pessoas que não eram historiadoras, uma bibliotecária chamada Neide.
P/2 - Esses quatro primeiros são historiadores?
R - São historiadores. Veio o João, o Márcio do gabinete Nabio, as meninas do instituto do Brasil que eram a Sandra e a Taís, essas pessoas se aproximaram. Desses encontros, a gente tentou encaminhar um projeto para o gabinete do Nabio, a gente conseguiu viabilizar um projeto. A gente partiu da ideia de que a gente precisava aprofundar os dados em relação ao patrimônio. Nesse sentido a gente se reuniu com um coletivo chamado (inint) [01:57:20], tem o Rui também que escolhe esse nome.
P/2 - Isso parte do terceiro seminário?
R - Terceiro seminário. Na verdade, ele já estava se constituindo entre o segundo e o terceiro seminário.
P/2 - Como é que se constitui mais detalhadamente o Rurai?
R - O Ururay é dado por um nome de uma aldeia indígena do século XVIII, e esse aldeiamento indígena ainda é do período colonial, então ele não é esse aldeiamento que a gente entende com oca, círculo, ponto central etc. ele já vai ser um terreno, um pequeno sítio que vai produzir para esses donos desses loteamentos. A região do Ururay é uma região enorme, gigantesca, quem abarca essa região hoje é a zona leste, para além de outros municípios. Poá, agora eu não lembro o território total. O Ururay significa filho de pássaro ou passarinho, e esse aldeiamento também é um outro nome que se dá para esse trecho do rio Tietê, que pega ali a penha, para a zona leste, é que eu sou péssima de lugar, mas extremo Poá, Guarulhos. Para homenagear esse grupo a gente dá o nome do nosso de Ururay. Ururay com Y, como eram as escritas antigas antes. Para isso a gente pensa em todo um projeto, quais vão ser os objetivos, com base em que questões nós vamos pautar o patrimônio, para nós é fundamental a questão da museologia social, das outras narrativas, de pensar o turismo, mas um turismo que insira a população no processo, a gente começa a pensar quais questões o patrimônio pode estar relacionado ao desenvolvimento econômico também. Também tinha essa pretensão. E todos os valores que pudessem ser referências para nós pensarmos ururay. Para a gente não cair na armadilha de estar falando de patrimônio e estar trazendo um outro escopo de trabalho, pertencente a um outro tipo de lógica, que já estava negando.
P/2 - Qual lógica, se vocês puder falar em duas palavras, que vocês estavam negando?
R - Como se você visse o patrimônio como algo que precisava ser preservado nele por si mesmo. Por ele próprio, ele já se justificaria como um espaço a ser preservado. Você acaba valorizando muito mais do ponto de vista material, a história dele, o tempo dele e ele não precisa ter conexão nenhuma com o hoje. Essa lógica que a gente vê muito forte. Junto com essa lógica vai ser o turismo comercial. Essa história para a gente não nos interessa. Porque se o patrimônio está comunicando com o hoje, não nos interessa. Para a gente não entrar nessa lógica, a gente tentou pensar que lógica é essa que a gente quer fazer. O Ururay é um coletivo que tem outras pessoas que se aproximam. Só que essas pessoas elas não são necessariamente obrigadas a participar do Movimento Cultural Penha. Depois a gente vai convidando as pessoas que acabam entendendo o movimento, no começo não é, mas depois a gente vai seduzindo. Participando do coletivo, o movimento vem para dar esse suporte oficial do ponto de vista institucional. Quando vai viabilizar um projeto, pode contar com o movimento. Meu trabalho e o do Júlio acaba vindo um pouco como isso, dar esse suporte, articulação, ter o CNPJ, espaço, telefone, endereço etc.
P/2 - Foi entre o segundo e o terceiro seminário. São as pessoas que participaram do segundo seminário, posso dizer isso?
R - Elas participaram do segundo seminário, mas também vinha de outras articulações nossas. Foi uma convergência de várias questões, mas principalmente do seminário, acho que pode se dizer assim.
P/2 - Esses nomes que você citou, eles eram do seminário?
R - Sendo bem sincera, teve gente que veio que eu não sabia nem de onde veio nem como ficou sabendo. O Maurício, por exemplo, eu não lembro dele no seminário. Porque tinha bastante gente. Era legal, porque você reunir pessoas em um sábado de manhã para falar sobre projeto de memória e a gente viu cheio. A gente fez uma divulgação muito forte. A gente tocou algumas redes. Um chamou o outro que chamou o outro.
P/2 - Patrícia, formar o coletivo, dê os detalhes. Como é essa história vamos nos reunir para formar um coletivo?
R - É tipo isso. Vamos nos reunir, que horas, no memorial, você leva o café.
P/2 - E quem teve essa ideia?
R - Eu acho que veio do precisamos fortalecer. A maioria das pessoas falavam que vinham de discussões da faculdade, que vinham de experiências de outros coletivos então meio que traziam essa experiência. A gente escolheu o memorial para ser essa conversa, tanto é que depois, recentemente, quando a gente consegue um recurso via culturas de periferia, a gente consegue pensar outras possibilidades de discutir patrimônio, para além da discussão da memória. A gente tinha acabado de lançar um livro, territórios de Ururay, em 2016, para nós foi um documento muito importante para dizer: tem muita coisa que dá para desdobrar em outras ações. Essa experiência hoje com o edital do projeto dos fomentos das culturas de periferia, eles nos possibilitam a gente ter experiências práticas de produção cultural para além dessa pesquisa. Usa a pesquisa para desencadear outros processos. O Ururay, como eu disse, outras pessoas passaram a saírem, outras entraram, a gente está em movimento. Atualmente, o projeto tem um núcleo de pessoas que está mais maduro dentro do processo. Mas não inviabiliza a gente criar aproximação com outras ações e outras pessoas.
P/2 - O livro foi resultado da primeira iniciativa do coletivo?
R - Da primeira iniciativa. Como a gente tinha o gabinete do Nabio que estava participando muito próximo ao nosso e eles acharam muito legal a iniciativa vinda da zona leste, igual o nosso eu acho que só lá em Peru que tem uma discussão na fábrica de cimento. A gente tinha uma coisa de encaminhar junto com outros patrimônios da região leste, além do nosso, porque a gente tinha experiência aqui no Rosário. Eu falo nós o movimento cultural Penha. Já tinha essa experiência de pensar produção cultural, pertencimento, através dos patrimônios aqui da região. Como a gente poderia ter a mesma coisa nos outros? Para isso, vamos ter que identificar e entender melhor esses patrimônios, onde eles estão, quais são as questões que estão em torno de cada um.
P/2 - Esse projeto já aconteceu e virou esse livro ou vai acontecer?
R - Foi. Esse projeto que eu falo, quando a gente vai para esses lugares, é dali que a gente vai reunir, tentar entender esse contexto, essas contradições, levantar mais dados dessas informações, convidar outros pesquisadores para fazerem parte desse material, e reunir 13 discussões de patrimônios na região leste que foram tombados por patrimônios históricos, pelos órgãos. Fora isso teve uma exposição que a gente fez aqui no centro cultural da Penha, um vídeo-documentário de 30 minutos que a gente lançou, e esse material reúne as informações sobre esses 13 espaços. Depois disso a gente continuou se encontrando e tentando viabilizar esses projetos, estamos nesse atual que é o edital de fomentos de cultura das periferias, que a gente desenvolve um projeto para encaminhar trabalhos de produção cultural nesses mesmos patrimônios, só que um em cada território, porque a gente acabou trabalhando com quatro macroterritórios. Que estão bem no eixo do Rio São Paulo, a gente teve essa dinâmica até colonial. Mooca, Penha, Itaquera e são Miguel. São quatro territórios. Esse projeto novo vai desenvolver uma ação em cada um desses territórios.
P/2 - Ações culturais?
R - Isso. Agora a gente teve em Itaquera o projeto na casa de Raul Seixas, que a gente desenvolveu lá. Agora tem esses patrimônios imateriais presentes no território, para a gente pensar esse território. É esse o trabalho que nós temos feito nesse projeto atualmente. E esse projeto ele vai até o final do ano que vem. O que é bom do fomento é que ele abarca a possibilidade de a gente desenvolver uma ação um pouco mais longa. Estamos, vamos dizer, a 40% do projeto, caminhando.
P/2 - Só para deixar registrado, eu posso dizer que, a partir do patrimônio material, você desdobra e estende para o imaterial?
R - Isso. A partir do patrimônio material a gente percebe que é possível desdobrar no patrimônio imaterial e na memória das pessoas. Em outras narrativas. Acho que essa é a percepção maior que a gente teve dessa metodologia de trabalho. Que está em criação e desenvolvimento ainda. Junto a isso tem o trabalho com as escolas, que a gente retoma com o projeto fomento das culturas de periferia, e vê como é isso também na educação. Acho que deu certo, ficou claro?
P/2 - Ficou muito claro. A gente vai terminando. Que horas são?
P/1 - 18:25.
P/2 - Você quer perguntar alguma coisa?
P/1 - Não, aquelas perguntas finais que a gente faz.
P/2 - Se você quer registrar alguma coisa que nós não perguntamos.
R - Eu só queria dizer que depois da minha trajetória desde criança, eu tenho revisitado, eu me relaciono muito com as pessoas através do trabalho. Eu falo mais do trabalho do que questões amorosas. E para mim não é trabalho, eu tenho percebido isso ultimamente. E eu tenho acionado todas as minhas experiências, conhecimentos, a conexão através do trabalho é muito forte. Só queria deixar registrado, acho que é uma percepção recente.
P/1 - Qual é a tua perspectiva dentro do movimento?
R - Quanto ao projeto, eu tenho várias perspectivas. Tem margem de desenvolvimento de trabalho nessa linha. Porque eu acabei desenvolvendo uma perspicácia para pensar projetos. Eu penso muito nisso com o Júlio. Dá para encaminhar projetos, desenvolver tal coisa. O movimento mesmo, a minha expectativa é que entrem mais pessoas novas. Não é à toa que se chama o movimento cultural Penha. Não é à toa que ele preserva esse nome inicial que surge como movimento, ficou com muita cara de entidade, para amadurecer depois, agregando outros trabalhos. A perspectiva é que ele nunca pare disso, que sempre esteja em um processo de entrada de pessoas e amadurecimento. Eu me vendo assim, eu queria me ver menos nesse processo porque eu quero fazer outras coisas. Eu tenho perspectiva de ter um bebê, eu tenho perspectiva de ter alguns trabalhos na área de costura que eu gosto. Não que se chocam, porque eu consigo até conciliar algumas coisas nesse sentido, mas eu queria muito poder fazer muito mais coisas na área da costura que eu amo. Eu queria que outras pessoas carregassem o movimento, a minha perspectiva está como mais uma colaboradora para a entidade.
P/2 - A costura para você é uma paixão?
R - Sim. Tem coisas de alma, eu me construo quando costuro. Quando eu posso, eu sempre trago a costura no meio. Mas eu sei que não é por acaso que eu estou passando por isso, que vão ter outras questões que não vão ser tão apaixonantes, mas vão ter.
P/2 - Você já trouxe costura?
R - Já teve projeto. Agora, com o Ururay, teve uma exposição que a gente fez que a casa era de tecido, as portas e janelas tinham esse tecido esvoaçante, ficou bem legal.
P/2 - Você que fez?
R - Foi. Tem muita coisa nessa área de costura. Porque tem uma materialidade muito interessante que está nas roupas, na decoração, nos objetos, bordado, nas técnicas. Volta e meia você aciona a memória, tem um patrimônio cultural aí também.
P/2 - Você está falando isso eu estou lembrando da Patrícia lá, fazendo aquele trabalho naquela máquina. Tem alguma relação?
R - Tem, total. Porque quando eu aciono essa relação da costura, desde pequena, quando eu estou costurando na criação, vem o momento que eu estou me conectando com a minha mãe, com a minha família, com meus irmãos. Eu aciono cor, tramas, eu percebo essas coisas delicadas. Quando minha mãe fala: “se você corta dessa maneira, você tem um outro tipo de efeito no pano se cortar de outra maneira”. Quando eu costuro, eu lembro dela falando aqui comigo, ela está comigo nesse momento.
P/2 - O que você achou de contar a tua história? Rapidamente como foi contar a sua história nesse momento, a experiência, para nós é importante saber.
R - Eu acho que foi um pouco da gente se distanciar e conseguir ver de outra perspectiva, de um processo histórico também. Esse afastamento, eu consegui ver melhor a minha vida. Eu vi melhor a minha vida, o quanto ela é complexa, rica, interessante, emocionante tanto para mim e acho que para vocês também. Para você também que está vendo. Todo mundo vai acionar isso e cruzar com outras ideias. Esse distanciamento é importante de se fazer. Sabe a sensação que dá, de verdade? Eu estou em um caminho legal. Às vezes a gente pensa: eu não sei o que eu faço da minha vida. Acho que eu sei o que eu faço da minha. Sem ser arrogante ou prepotente, eu me sinto mais ancorada, acho que essa é a ideia.
P/2 - Muito bom, para nós foi ótimo, parabéns.
R - Obrigada.
P/2 - Obrigada por você ter compartilhado com tanta sinceridade.
[02:21:10]
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